Sobre o Falar e o Calar: a Experiência Indizível no Primeiro Wittgenstein

July 24, 2017 | Autor: Eduardo Simões | Categoria: FILOSOFIA DA LINGUAGEM, Lógica
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XV Semana Filosófica – IV Encontro de Ciências da Religião Concepções antropológicas: conhecimento e re-conhecimento do humano Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes

De 08 a 11 de Novembro de 2011

Sobre o Falar e o Calar: a Experiência Indizível no Primeiro Wittgenstein1

SIMÕES, Eduardo Universidade Federal de São Carlos – UFSCar Programa de Pós-Graduação em Filosofia A temática que envolve a questão do dizer e do calar no Tractatus encontra-se no que ali é convencionalmente chamado por Doutrina do Dizer e do Mostrar. Tal “doutrina” é a reflexão pessoal de Wittgenstein sobre o caráter único das proposições da lógica. Estas são tidas como diferentes das proposições ordinárias, pois não precisam ser confrontadas com alguma coisa no mundo – sua verdade ou falsidade mostra-se. Vários temas estão ligados ao mostrar do Tractatus: a forma pictórica (2.172-2.174), o significado dos signos (3.33), o fato de um símbolo significar um objeto (4.126), o sentido de uma proposição (4.022), a lógica dos fatos (4.0312), a multiplicidade lógica (4.041, 4.12), os limites ou a armação da linguagem e do mundo (5.5561, 5.6, 6.124), a idéia de que não há alma (5.5421), entre outros temas. Mas, o mostrar aqui proposto é o da esfera da ética (6.42 e seg.) e do místico (6.52 e segs.) que, segundo o próprio Wittgenstein, longe de estarem em segundo plano em suas preocupações, predominam no Tractatus – pelo menos em sua “parte não escrita”. [email protected] O prefácio do Tractatus denuncia de antemão o seu objetivo, a saber, o de “estabelecer um limite ao pensar, ou melhor, não ao pensar, mas à expressão do pensamento”. Sendo assim, Wittgenstein reconhece que “para traçar um limite ao pensar deveríamos poder pensar ambos os lados desse limite (de sorte que deveríamos pensar o que não pode ser pensado)”. Tais afirmações incitam-nos algumas questões: que limites seriam estes? Como estabelecer limites à expressão do próprio pensamento? Como determinar o que pode e o que não pode ser pensado? E o que nos autoriza a determinar previamente que haja algo que não possa ser pensado? Como estabelecer certeiramente isto? Todas estas questões apontam para a clássica distinção tractariana entre aquilo sobre o qual se pode falar e aquilo sobre o qual se deve calar.

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Para referenciar este trabalho:

SIMÕES, Eduardo. Sobre o Falar e o Calar: a Experiência Indizível no Primeiro Wittgenstein. In: SEMANA FILOSÓFICA e ENCONTRO DE CIÊNCIAS DA RELIGIÃO, 15, 4, 2010, Montes Claros/MG. Anais Eletrônicos da XV Semana Filosófica e IV Encontro de Ciências da Religião – Unimontes. Montes Claros: Editora Unimontes, 2010, p. 1-10. ISSN 1984-0489.

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O entendimento da experiência indizível, isto é, da obrigatoriedade do silêncio contemplativo, especificamente aqui, do ético e do religioso, não pode estar dissociado do entendimento da crítica da linguagem estabelecida no Tractatus Logico-Philosophicus. Toda esta obra está envolvida com a questão da análise da linguagem, nomeadamente, com a resolução de questões lógicas que importunavam Wittgenstein e que advieram das filosofias de Frege e Russell, especialmente, com a questão do referente externo e do sentido lingüístico e com sua necessidade de determinação. Da filosofia de Frege, Wittgenstein tenta resolver o problema da referência de nomes próprios que pareciam não apontar para nada na realidade e, de Russell, quer corrigir o problema da denotação e eliminar os subterfúgios encontrados pelo britânico, como suas teorias: das descrições, dos juízos e dos tipos. Aqui nos envolveremos com a influência do pensamento de Russell sobre a primeira filosofia de Wittgenstein e com o como a mesma redundou na doutrina do “falar e do calar”, ou então, “do mostrar e do dizer”. Podemos dizer que Russell é defensor de fundamentos epistemológicos de feição empirista e que sua concepção de predicação, por exemplo, é fundada na noção de que todas as relações são externas, isto é, que devemos ter o conhecimento direto ou por familiaridade (Knowledge acquaintance) do objeto lingüístico. Em uma das versões de sua teoria do juízo como relação múltipla, por exemplo, ao tratar das condições lógicas do sentido proposicional, introduz a idéia de “sujeito” “como uma entidade que está familiarizada com algo, isto é, ‘sujeitos’ são o domínio da relação de familiaridade. Inversamente, toda entidade com a qual algo está familiarizado é chamada ‘objeto’...” (RUSSELL, 1992, p. 35)2. Só que Russell parecia não dar conta de analisar ou explicar, enquanto empirista convicto, formas proposicionais que envolvessem: a) “crenças”, por exemplo, “para alguma crença c, c é verdadeira se necessariamente existir algum C que nela acredite, os objetos x e y, e a relação R, tal que c é a crença possuída por C de que x tem a relação R com y e x tem a relação R com Y”, que sintetiza a “crença de Otelo de que Desdêmona ama Cássio” (RUSSEL, 1912)3, por exemplo; b) “julgamentos”, por exemplo, “A julga que p” – “A explicação correta da forma da proposição “A julga que p” deve mostrar que é impossível julgar um contra-senso. (A teoria de Russell não satisfaz essa condição.)” (TLP, 5.5422); e c) “paradoxos”, isto é, proposições que na teoria dos conjuntos envolvem enunciados acerca de todos os elementos do conjunto – “Quero dizer que enunciados sobre todos os seus elementos são disparates”

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RUSSELL, B. Theory of Knowledge: The 1913 Manuscript. London: Routledge, 1992. RUSSELL, B. [1912]. The Problems of Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 1980.

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(RUSSELL, 1908b, p. 61)4. É o caso do Paradoxo do Mentiroso; por exemplo, “eu estou mentindo” é equivalente a “há uma proposição que estou afirmando e ela é falsa”, que por sua vez equivale a “não é verdadeiro de todas as proposições que ou eu não as estou afirmando ou elas são verdadeiras”. Como a proposição do mentiroso fala de todas as proposições e é ela mesma uma proposição, ela é um elemento da coleção que a “envolve”, portanto, viola o Princípio do Círculo Vicioso (PCV) e é sem sentido. Todos os casos acima testificam que Russell está envolvido na resolução da insuficiência do sentido proposicional das proposições que tratam de crenças, juízos e paradoxos. E para resolver o problema da insuficiência do sentido tanto no caso dos paradoxos da teoria dos conjuntos, como na constituição do sentido do juízo, como na análise da verdade ou falsidade enquanto compreendidas como propriedades de crenças que dependem de algo que se situa fora da própria crença, Russell teve que recorrer a uma outra premissa: a teoria dos tipos5. Teoria esta que, segundo Wittgenstein, ainda deixava em suspenso a resolução da indeterminação do sentido proposicional, pois no caso dela, “o erro de Russell revela-se no fato de ter precisado falar do significado dos sinais ao estabelecer as regras notacionais” (TLP, 3.331). E o problema da indeterminação do sentido perdurava. Sabe-se que o início da carreira de Wittgenstein foi marcado por uma série de correspondências com Russell, correspondências essas focadas na análise, discussão e crítica de um montante de problemas encontrados pelo primeiro na filosofia do segundo, críticas estas, que afetaram “uma parte vital de toda a epistemologia de Russell” (EAMES, 1992, p. 20)6. E o ponto da divergência entre ambos está, principalmente, quando confrontam a questão do “conhecimento do objeto” que, no caso de Russell, é possível ter o conhecimento “direto” ou por “familiaridade” do mesmo e, no caso de Wittgenstein, tal conhecimento se dá numa espécie de intuição sub specie aeterni (universalmente entendida como “julgamento a priori no sentido de Kant”). A coordenação dos fatos em Wittgenstein se dá justamente pela coordenação de seus objetos e é justamente isso que possibilita a constituição do sentido de maneira independente da existência do fato “objetivo” que a proposição afigura, dependendo exclusivamente da existência dos objetos que constituem a substância do mundo – “O sentido de uma proposição é sua concordância e discordância com as possibilidades de subsistência e

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RUSSELL, B. [1908b]. Mathematical Logic as Based on a Theory of Types. American Journal of Mathematics 30: 222-262 apud HAACK, 2002, p. 193. 5 Sobre a qual não trataremos aqui. 6 EAMES, E. Introduction to Theory of Knowledge: The 1913 Manuscript’s Russell. London: Routledge, 1992.

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não-subsistência de estados de coisas” (TLP, 4.2 – grifos meus). Mesmo que o fato não ocorra, o sentido proposicional ficará garantido através dos objetos (que são a substância do mundo), isso é, através do contato entre eles e os nomes. Portanto, as relações entre coisas e estados de coisas, entre proposição e fato, entre nome e objeto, preconizadas pelo Tractatus, são de ordem interna, independem do que acontece ou não no mundo objetivo, empírico. Essa posição nunca foi assumida por Russell, para o qual, todas as relações eram externas. Wittgenstein até o Notebooks (1914-1916) demonstrava-se muito mais preocupado em perseguir o ideal de análise lógica completa e ainda não havia apresentado sua concepção de mundo. No Tractatus reapresenta as discussões dos tempos do Notebooks, acrescidas da concepção ontológica de mundo. As questões que nos ficam são: por que portas a ontologia teria entrado em sua filosofia? Como Wittgenstein consegue relacionar lógica e ontologia? Qual a necessidade subjacente àquela “constituição” do mundo do Tractatus? Qual teria sido sua fonte inspiradora? E quais foram as conseqüências desta nova forma de pensamento? Certo é que, a partir da lacuna deixada pela teoria de Russell, que não resolvia a questão da indeterminação do sentido proposicional, Wittgenstein vê-se obrigado a postular um conjunto de entidades absolutamente simples, indestrutíveis, indescritíveis, eternas, não submetidas à mudança (sua mudança é apenas mudança de configuração); entidades estas, que não deixariam dúvidas a respeito do sentido de qualquer nome, que seja do “rei da França” ou de outros conceitos complexos da linguagem cotidiana como “Scott”, “Warveley”, “George IV”, “mesa”, “cadeira”, “vassoura” que, por serem descritos pela linguagem ordinária, e não nomeados, introduzem a linguagem em um mar de confusões. Os objetos tractarianos que só poderiam ser nomeados e não descritos, estariam em sua base ligados aos genuínos nomes da linguagem, que seriam seus substitutos. E assim como os nomes se encadeiam para formar proposições elementares, que são os representantes diretos dos fatos, tais objetos concatenamse em estados de coisas (no espaço lógico) para formar fatos. Com essa concepção formal de mundo que permite conexão direta com a linguagem, Wittgenstein consegue salvaguardar o sentido proposicional, tornando-o plenamente determinado7, pois os genuínos nomes do Tractatus não deixariam dúvidas de que seriam eles os substitutos dos objetos simples. Para livrar o sentido proposicional da indeterminação e livrar-se das dificuldades enfrentadas por Russell, quando o mesmo tenta buscar o conhecimento direto do objeto, Wittgenstein foi obrigado a pensar neste “mundo” como condição formal do mundo empírico, 7

“Se uma proposição tem sentido, ela tem um sentido inteiramente determinado” (SANTOS, 2001, p. 67).

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a postular um conceito ontológico do mundo. A vantagem deste modelo é a de que pensando em um mundo no qual os objetos simples que se concatenam para formar fatos, garante-se a generalidade e a independência formal do seu sistema. Quanto à linguagem esta estará plenamente determinada, na medida em que, seus nomes apontam para os objetos do “mundo”, garantindo assim seu sentido nestes objetos. Da mesma forma que os nomes se concatenam para formar proposições, os objetos se concatenam para formar fatos. Estará na existência dos fatos a garantia do sentido proposicional salvaguardado, pois, mesmo que no entrecruzamento das proposições com o mundo real estas sejam falsas, seu sentido estará plenamente determinado na medida em que foi possível a concatenação dos objetos no espaço lógico. Proposições cujo sentido não foi possibilitado, visto que a concatenação de seus objetos não efetivou a existência de nenhum mundo possível, são consideradas disparates – não dizem nada a respeito de nada. E no conjunto total das proposições, as únicas significativas, por ser elas as únicas que conseguem representar a contingência dos objetos no espaço lógico, são as proposições da ciência. A verdade das proposições não lógicas, ou significativas, ou da ciência só pode ser reconhecida através da comparação com a realidade – “a realidade é comparada com a proposição” (4.05). Somente as proposições da ciência podem ser eleitas como figura, pois somente elas são capazes de representar o mundo. Sendo assim, o tratamento das proposições da filosofia (e nela as discussões a respeito de ética, estética e religião), da lógica e da ciência, ganha, em Wittgenstein, contornos diferenciados. No Tractatus Wittgenstein trata desses três tipos de proposições: as proposições da filosofia, as da lógica e as significativas (proposições da ciência). Quanto às proposições da filosofia, estas não são falsas, mas “contra-sensos”; e “a maioria das questões e proposições dos filósofos provém de não entendermos a lógica de nossa linguagem” (4.003) e, com isso, tentarmos dizer algo de metafísico; sugere então que “sempre que alguém pretendesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que não conferiu significado a certos sinais de suas proposições” (6.53). Quanto às proposições da lógica, estas não são figuras; por serem sem sentido não dizem nada a respeito do mundo. As proposições da lógica são necessariamente verdadeiras (tautologias) ou necessariamente falsas (contradições), ou seja: elas não possuem condições de verdade, não são “propostas” de concordância com o mundo. Sua função é mostrar os casos-limite da ligação de sinais, isto é, a sua dissolução enquanto sinais significativos – “Tautologia e contradição são casos-limite da ligação de sinais, ou seja, sua dissolução” (4.466). Os valores de verdade se cancelam tanto na tautologia quanto na

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contradição. Quanto às proposições da ciência, já dissemos, somente elas podem ser eleitas como figuras, pois somente elas são propostas de representação do mundo. É justamente nesse ponto que introduzimos nossas discussões a respeito da ética e da religião no primeiro Wittgenstein, propondo estarem elas envolvidas na condenação ao silêncio absoluto do Tractatus, pois que se enquadram no “sobre aquilo que não se pode falar...” de seu aforismo 7. É claro que Wittgenstein não se cala diante do ético ou do místico, e que no Tractatus, “apesar das aparências que o fazem passar por um livro de lógica, são as preocupações éticas que, longe de estarem em segundo plano, predominam, pelo menos em sua ‘parte não escrita’, como Wittgenstein escreveu a Ficker” (CHAUVIRÉ, 1989, p. 31). Diz Wittgenstein: O impulso para o místico provém da insatisfação dos nossos desejos mediante a ciência. Sentimos que, mesmo se todas as questões científicas possíveis obtivessem uma resposta, o nosso problema nem sequer ainda foi aflorado. É claro que então já não resta mais questão alguma; e tal é justamente a resposta [cf. TLP, 6.52]. (Notebooks, 25/05/1915 – grifos meus)

Esse impulso para o místico que surge da insuficiência da ciência em responder a todas as questões, parece ser algo inerente ao ser humano. É por isso que em sua Conferência Sobre Ética, proferida em 1929, Wittgenstein assume, ao final da mesma, que ética e religião tratamse de “um testemunho de uma tendência do espírito humano que eu pessoalmente não posso senão respeitar profundamente e que por nada neste mundo ridicularizaria”. No entanto, tratam-se também de temas sobre os quais não se pode falar, visto que seus conteúdos lingüísticos ultrapassam as fronteiras do dizível ou, nas palavras de Wittgenstein, “os limites do mundo” – “Deus não se revela no mundo” (6.432) e “os limites de minha linguagem denotam os limites do meu mundo” (5.6), portanto, falar sobre Deus (ou sobre ética ou estética) é debater-se contra os limites da linguagem, tentar atingir o inatingível. Mesmo assim, Wittgenstein afirma que “o sentido do mundo deve estar fora dele” (6.41) e que “existe com certeza o indizível. Isto se mostra é o místico” (6.522). Portanto, desrespeitando suas próprias determinações não se cala acerca do místico, ou do ético, ou do estético; reserva para eles um lugar especial em sua obra que demonstraremos ao término desta apresentação. Mas, porque coube aos temas expostos acima pagar pela crítica da linguagem tractariana e serem condenados ao silêncio? Em sua Conferência Sobre Ética (1929), depois de o Tractatus ter alcançado sua devida fama, Wittgenstein demonstra que mantém as mesmas convicções de tempos anteriores com relação à Ética quando, por exemplo, diz: “A

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ética, se ela é algo, é sobrenatural e nossas palavras somente expressam fatos, do mesmo modo que uma taça de chá somente pode conter um volume determinado de água, por mais que se despeje um litro nela” (p. 4). Se “nossas palavras somente expressam fatos”, nesse sentido, a ética por não expressar fato algum “é sobrenatural”. A sobrenaturalidade das proposições éticas se deve, de acordo com a exigência de que proposições significativas (da ciência) digam algo a respeito do mundo, ao fato de que elas não dizem nada a respeito do mundo – seu conteúdo expressa um sentido, mas não encontrando um constituinte no mundo que possa o figurar, trata-se de um fato inexistente. Diz Wittgenstein que uma proposição é uma figuração lógica (4.03), representa um estado de coisas possível, ela não precisa ser verdadeira, o estado de coisas não precisa existir, para ela ter sentido. Sendo a proposição, por exemplo, falsa, ela representa um “fato inexistente”8 ou negativo e esse é o caso das proposições da ética, da estética e da religião – “a expressão que damos a estas experiências carece de significado” (WITTGENSTEIN, 1929, p.5). Wittgenstein reforça dizendo que: Todas as expressões (éticas, estéticas, religiosas) parecem, prima facie, somente símiles (...). Desse modo todos os termos religiosos parecem ser usados como símiles ou alegorias. Quando falamos de Deus e de que ele tudo vê e quando nos ajoelhamos e oramos, todos os nossos termos e ações parecem ser partes de uma grande e completa alegoria que o representa como um ser humano de enorme poder cuja graça tentamos cativar, etc, etc (...). Em nosso caso logo que tentamos deixar de lado o símile e enunciar diretamente os fatos que estão por trás dele, deparamo-nos com a ausência de tais fatos. Assim, aquilo que, num primeiro momento, pareceu ser um símile, manifesta-se agora como um mero sem sentido. (WITTGENSTEIN, 1929. p. 6)

Parece-nos que, com isso, Wittgenstein elimina de vez os temas aqui expostos de sua pauta de reflexões ou, pelo menos, de seu ideal de linguagem perfeita – aquela cujos signos apontavam para os símbolos, cuja figuração dar-se-ia ao nível das proposições da ciência da natureza e não da filosofia. Por isso, “o método correto em filosofia seria propriamente este: nada dizer, senão o que se pode dizer; portanto, proposições da ciência natural – portanto, algo que nada tem a ver com filosofia; e então, sempre que alguém pretendesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que não conferiu significado a certos sinais em suas proposições” (6.53). Pois, “a palavra ‘filosofia’ deve significar algo que esteja acima ou abaixo, mas não ao lado, das ciências naturais” (4.111) e que a filosofia não teria outro papel que não o de “esclarecimento lógico dos pensamentos” (4.112). Nisso, percebe-se que o Tractatus privilegia o discurso factual em detrimento de outros como o ético, o estético, o religioso, etc. 8

FILHO, Raul F. Landim. Sentido e Verdade no Tractatus de L. Wittgenstein. Trabalho apresentado no Encontro de Filosofia das Ciências, 1, nov. Campinas, 1979. 10 p. (datil.). p. 45.

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Mas, ainda nos fica a responsabilidade em apresentar a funcionalidade dos temas supramencionados no Tractatus de L. Wittgenstein, tal como anteriormente prometido. Onde está a importância desses temas naquela obra? A ética do Tractatus, por exemplo, é diferente das várias concepções e/ou teorias sobre o mesmo assunto, pois se trata de uma ação indiferente às posturas boas ou más dos indivíduos, e não se preocupa com nada de interno à cultura, às relações humanas, etc. É uma ética preocupada com o bem absoluto, que não tem contrário e que é absolutamente desejável. Ela está absorta na contemplação daquilo que é “absolutamente desejável por si mesmo” – o mundo como condição de possibilidade. O sujeito transcendental, que se coloca diante da existência dos objetos necessários, aqueles que se encontram no espaço lógico e que não estão submetidos à oposição entre o verdadeiro e o falso, tem diante de si uma ordem eterna de significações, que não se confunde com nenhum fato do mundo. E é a contemplação desses objetos eternos que constitui propriamente o objeto da ética – a ética é a contemplação da ordem eterna do universo: contemplação de uma ordem da qual todo e qualquer universo é um recorte, contemplação de todos os estados de coisas, da ocorrência do mundo. A contemplação ética é o olhar dirigido à possibilidade do acontecimento, trata-se de um exercício silencioso dirigido à essência do mundo – um exercício de iniciação ao silêncio; e tal exercício, não pode ser descrito, pois não é um fato e sim a possibilidade de um fato (SIMÕES, 2008). Diz Wittgenstein: Em outras palavras, vejo agora que estas expressões carentes de significado não careciam de significado por não ter ainda encontrado as expressões corretas, mas sua falta de significado constituía sua própria essência. Isto porque a única coisa que eu pretendia com elas era, precisamente, ir além do mundo, o que é o mesmo que ir além da linguagem significativa. Toda minha tendência - e creio que a de todos aqueles que tentaram alguma vez escrever ou falar de Ética ou Religião - é correr contra os limites da linguagem. Esta corrida contra as paredes de nossa jaula é perfeita e absolutamente desesperançada. A Ética, na medida em que brota do desejo de dizer algo sobre o sentido último da vida, sobre o absolutamente bom, o absolutamente valioso, não pode ser uma ciência. (WITTGENSTEIN, 1929. p. 7-8)

O absolutamente bom ou o absolutamente valioso não é, de fato, algo sobre o qual podemos falar, cabe-nos aqui sua contemplação silenciosa e não sua expressão lingüística. Aqui é também interessante atentar para o fato de que o ponto de vista ético e religioso do Tractatus é também um ponto de vista estético, pois, se há alguma coisa que é absolutamente

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boa tal coisa deve ser também absolutamente bela. O que é absolutamente belo é o mundo visto do ponto de vista da eternidade, que não é visto pelo cientista e sim pelo filósofo9. Wittgenstein compartilha a concepção do Círculo de Viena de que a filosofia deve ocupar-se com os limites do dizível através da crítica da linguagem, mas não aceitou as conseqüências que os neopositivistas tiraram para a exclusividade da ciência e a resultante rejeição da religião, da ética e da estética. O fato de ser incluído, por exemplo, como representante do Positivismo Lógico de Viena não teve sua pela aceitação. O Tractatus contém diversos aspectos inteiramente contrários aos ideais neopositivistas, o mais importante, talvez, seja o papel dado à metafísica na obra; papel este totalmente ignorado pelo Círculo, sobretudo porque a crítica à metafísica constitui-se num dos seus principais pontos. Enquanto Wittgenstein sustenta que a necessidade lógica deriva de estruturas metafísicas que a linguagem tem em comum com a realidade (do mundo como a totalidade dos fatos), os neopositivistas sustentam que as proposições necessárias são verdadeiras em virtude de convenções lingüísticas arbitrárias. Wittgenstein não afirma que se deve eliminar a metafísica. Não nega a existência o indizível e sua experiência. As proposições da ética, da estética e da religião e as proposições da filosofia em geral não se situam dentro dos limites da linguagem, por isso, não passam de pseudos proposições. Não é possível nenhum discurso sobre essências, quaisquer que sejam elas, nem sobre os limites ou a armação da linguagem e do mundo. O que se coloca para além dos limites da linguagem, não pode ser por ela expresso, só pode ser mostrado. Os limites da linguagem wittgensteiniana coincidem com os limites do discurso factual; proposições filosóficas ou metafísicas não são factuais, portanto, não podemos falar nada a respeito delas, portanto, “sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar” (7).

Referências

CHAUVIRÉ, Christiane. Wittgenstein. Trad. de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991. CUTER, J. V. Gallerani. A Ética do Tractatus. Analytica, vol. 7, nº 2, 2003.

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Para melhor entendimento da questão da ética do Tractatus, vide: CUTER, J. V. Gallerani. A Ética do Tractatus. Analytica, vol. 7, nº 2, 2003, p. 43-58.

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EAMES, E. Introduction to Theory of Knowledge: The 1913 Manuscript’s Russell. London: Routledge, 1992. FILHO, Raul F. Landim. Sentido e Verdade no Tractatus de L. Wittgenstein. Trabalho apresentado no Encontro de Filosofia das Ciências, 1, nov. Campinas, 1979. 10 p. (datil.). RUSSELL, B. [1908b]. Mathematical Logic as Based on a Theory of Types. American Journal of Mathematics 30: 222-262 apud HAACK, 2002. RUSSELL, B. [1912]. The Problems of Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 1980. RUSSELL, B. Theory of Knowledge: The 1913 Manuscript. London: Routledge, 1992. SIMÕES, Eduardo. Wittgenstein e o Problema da Verdade. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008. WITTGENSTEIN, L [1929]. Conferência sobre Ética. Trad. Darlei Dall'Agnol. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2010. WITTGENSTEIN, L. [1914-1916]. Notebooks. Ed. G. H. von Wright e G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1969. WITTGENSTEIN, L. [1922]. Tractatus Logico-Philosophicus. B. Russell, F. R. S. – Introdução. Trad., apres. e ensaio introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: EDUSP, 1995.

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