Sobre o filosofar e a filosofia num contexto de fim da metafísica: uma problematização heideggeriana

June 13, 2017 | Autor: Fábio Beserra | Categoria: Martin Heidegger, Pedagogía, Filosofía, Educação, Metafísica
Share Embed


Descrição do Produto

Sobre o filosofar e a filosofia num contexto de fim da metafísica: uma problematização heideggeriana Fábio Beserra UNESP/REDEFOR Resumo: O presente artigo procura problematizar a Filosofia e o ato de filosofar a partir de alguns conceitos heideggerianos, enfatizando sua crítica à Filosofia enquanto consolidação esgotada de uma metafísica da subjetividade. Nesse propósito se faz inicialmente uso do texto “Que é isto – a Filosofia?”, ampliando a outros em virtude da complexidade dos conceitos. O papel da Filosofia na educação e formação, assim como problemas relacionados à possibilidade de seu ensino são tangenciados a partir de um questionamento ontológico, isto é, sobre o ser enquanto ser. Nesse sentido, a pesquisa aponta os limites da percepção da filosofia como uma disciplina científica, submetida a reduções determinadas por uma metafísica centrada na representação antropológica do Ser, procurando restabelecer a relevância de se pensar a filosofia em seu caráter fático, temporal e finito, disponível a todo ser-aí enquanto tal.

Introdução Nos últimos anos tem havido na cultura escolar brasileira uma exaltação da Filosofia enquanto saber privilegiado. Assim demonstram não apenas os documentos oficiais, mas também as práticas mais efetivas do cotidiano escolar. Há nessas diferentes esferas a prescrição da Filosofia como disciplina capaz de efetuar o desenvolvimento crítico do pensamento, ora associando-a a uma “reflexão” de características privilegiadas, capaz de desenvolver uma “atitude” promissora, ora exaltando-a como disciplina que “ensina a pensar”. Diante dos problemas que esse cenário coloca, dentre os quais a clássica questão de se é ou não possível ensinar Filosofia (KANT, 1983), destacamos outros não menos relevantes: o que se consolida no imaginário coletivo quando se exalta uma “atitude filosófica”? Qual a relação entre filosofia e pensamento, e, num sentido mais específico, o que se espera “ensinar a pensar” com a Filosofia? Nossa proposta almeja colocar em questão algumas dessas proposições a respeito da Filosofia e do filosofar. Nesse sentido, optamos por pensar a Filosofia a partir de um posicionamento metafísico e, particularmente, de uma ruptura metafísica. Entendemos ser essa uma abordagem promissora, permitindo-nos escapar de outras tantas possíveis, indo direto à origem de problemas que ultrapassam as determinações de ordem exclusivamente históricosocial e, sobretudo, mantendo a característica filosófica de se preterir a parte pelo todo.

1

Optamos por fazer uso das reflexões propostas por Heidegger no escrito “Que é isto – a Filosofia?”. Pressupomos em tal pensador uma relevante contribuição na clarificação dos desdobramentos da metafísica Moderna, em especial porque entendemos que Heidegger foi um pensador capaz de evidenciar muitos dilemas e encruzilhadas que remontam à filosofia nascente e nos chegam até a contemporaneidade.

1 Filosofia: identidade ôntica ou ontológica? A filosofia é. E o que é esse ser da filosofia? Uma das possibilidades de lançar luzes ao problema está em evidenciar a questão por detrás do modo como habitualmente se coloca a própria questão: direcionada ao Ser mesmo da filosofia, ou ainda, propor um questionamento que se dirige a seu ente. Dito isso efetuamos uma ruptura ontológica entre o ser enquanto tal e aquilo que se manifesta enquanto entidade. Aliás, o modo mesmo como formulamos a questão e aventamos respostas é, nos dizeres de Heidegger, historial. Ou seja, atrelado não apenas à filosofia enquanto fenômeno da história grega em sua origem, mas, sobretudo, à forma de questionar posta pelos gregos e sua permanência até nossos dias. E que forma é essa? Quais suas características e implicações a ambos, isto é, ao modo de conceber o ser das coisas e a filosofia enquanto uma de suas manifestações? É importante salientar que a obra que usaremos como referência é posterior à sua fundamental obra “Ser e tempo”, portanto, muito de suas colocações remetem a conceitos ai desenvolvidos, sobretudo a partir da ruptura que realiza entre a metafísica clássica e sua abordagem analítico-existencial, qual propõe, entre outras coisas, a distinção entre dois diferentes planos ao se pensar o ser: o ôntico e o ontológico. Porque ôntico é o que se refere aos entes, às diferentes formas de entes; o que se refere ao ser, é o que ele [Heidegger] irá chamar de ontológico [...] Mas o que tem de mais original, de mais criador, é precisamente que ele desce a um nível muito profundo, mais profundo que qualquer filósofo contemporâneo, sem dúvida nenhuma, e então ele aponta o que é o problema fundamental da filosofia: o sentido do ser em geral; ele trata de entender o que quer dizer a palavra ser - em geral, em todos os sentidos - mas - e aí está a grande descoberta de Heidegger - a abordagem do problema do ser depende precisamente do problema do Dasein, do problema do existir, porque justamente o nível, diríamos, em que se aborda o problema do ser é o problema do Dasein, o problema - diríamos - da pessoa. A pessoa que é cada um, cada um de nós, esse ente que somos nós. Não é o homem, porque se falamos de homem, falamos de antropologia e aqui se fala precisamente da estrutura da própria realidade; justamente o que chamamos o ser, a pessoa. E isso é o que suscita o problema do ser em geral; o problema do ser em geral se expõe precisamente ao analisar o Dasein, ao analisar esse gemeines, esse cada um de nós, que somos e que tem um tipo

2

de realidade novo, completamente distinto, que é o que será chamado de existencial. (JULIÁN MARÍAS, 1999, p. , grifo nosso)

A filosofia é uma espécie de competência capaz de perscrutar o ente, a saber, sob o ponto de vista do que ele é, enquanto ente (HEIDEGGER, 1973a). Essa caracterização de filosofia resume, para Heidegger, a elucidação aristotélica e, entretanto isso pouco pode nos dizer – tampouco diria algo se assim o fizéssemos com cada um dos filósofos ao longo da história, inclusive Heidegger. E por quê? Porque o acúmulo de tais representações não passa pela natureza mesma de sua origem, isto é, se fazer enquanto se questiona e, assim, se mostrar enquanto é – filosofia. Portanto o problema é deslocado de uma mera resposta, ou seja, uma afirmação que replica e se verifica enquanto representação do conceito “filosofia”, para uma correspondência ao ser do ente, isto é, para uma disposição correspondente que procura dar conta de um passado e de uma tradição, sem nela se esgotar. Destruição não significa ruína, mas desmontar, demolir e pôr-de-lado – a saber as afirmações puramente históricas sobre a história da filosofia. Destruição significa: abrir nosso ouvido, torná-lo livre para aquilo que na tradição do ser do ente nos inspira. Mantendo nossos ouvidos dóceis a esta inspiração, conseguimos situar-nos na correspondência. (HEIDEGGER, 1973a, p. 218)

Qual a relevância dessa aproximação da questão sobre a filosofia ao nosso propósito aqui esboçado? Estaria Heidegger sugerindo um subjetivismo insensato, um romantismo barato que nos convidaria a exaltar a filosofia enquanto prática docente? Estaríamos tão somente recobrindo de conceitos mirabolantes uma simples apologia a fim de garantirmos nossas aulas de filosofia numa instituição de ensino? Dessa herança que nos chega todas as vezes que nos colocamos a filosofar, a colocar e recolocar a questão sobre isso que se faz como Filosofia, o fundamento a partir do qual emergimos é um páthos – uma das nossas dimensões humanas enquanto disposição para algo. “O páthos do espanto não está simplesmente no começo da filosofia, como, por exemplo, o lavar as mãos precede a operação do cirurgião. O espanto carrega a filosofia e impera em seu interior” (HEIDEGGER, 1973a, p. 219). A proposta inicial da pesquisa consiste em problematizar melhor essa relação, sobretudo, propor caminhos ao estudo dos conceitos de atitude filosófica e problema filosófico no contexto da formação de professores. Entendemos que a filosofia alcança uma identidade muito mais ontológica que ôntica, isto é, mais endereçada ao Ser em seu

3

fundamento que seus desdobramentos no ente, e é aí que esperamos encontrar pistas para compreender melhor as questões que se colocam em relação a esse páthos. Afinal, em que medida o professor, em sua prática docente, é capaz de inspirar ou ensinar uma postura filosófica? Ou ainda, em que sentido a relação professor-aluno é capaz de provocar a percepção de um problema dito “filosófico”? Qual a relevância do desenvolvimento dessas especificidades do saber filosófico na formação docente de modo geral?

1.1 O problema ontológico da modernidade Uma das importantes contribuições de Heidegger à Filosofia consiste na síntese que elabora dos problemas fundamentais da Modernidade, sobretudo dos desdobramentos da metafísica e do projeto científico moderno buscando, entre outras coisas, restituir a questão fundamental do Ser, resgatando-o de seu esquecimento: O pensamento ocidental é visto como uma longa tentativa de escamotear e reprimir o Ser, em benefício do Ente [...] trata-se, portanto, de destruir o que Heidegger chama de “metafísica”, até chegar à origem, em busca do Ser exilado, cujo retorno coincidirá com o fim e a realização da metafísica. (ROUANET, 1987, p. 241).

É nesse esquecimento que reside um dos problemas fundamentais na relação entre o saber filosófico e o científico. Antes de adentrar nessa problemática vamos nos deter ainda na diferenciação entre Ser e ente, uma vez que a partir dela almejamos elucidar qual seria o caráter específico dos problemas que denominamos “filosóficos” e, sobretudo, sua diferenciação (se houver) frente à perspectiva dos conhecimentos denominados científicos. Seria a filosofia uma disciplina científica como outras? Seria sequer ciência, ou ainda, uma disciplina? Quem melhor nos esclarece essa diferenciação entre Ser e ente é o próprio filósofo, e para tal seremos levados a nos desviar um pouco da proposta inicial, retrocedendo a um texto anterior cerca de 20 anos, de fato sua primeira aula pronunciada ao assumir a cátedra de Filosofia na Universidade de Freiburg em 1929, frente à aposentadoria de Husserl (STEIN, 1973). A fim de, minimamente, nos acercarmos da questão posta sobre o Ser, somos chamado a filosofar a metafísica juntamente com o filósofo, e, ao fazê-lo, não podemos nos furtar da espinhosa questão sobre o Nada: “Por que é afinal ente e não muito antes Nada?” (HEIDEGGER, 1973b, p. 260). A questão do Nada, entretanto, é tomada em Heidegger em 4

oposição à metafísica moderna tradicional, fundamentada numa antropologia. Assim, ainda que coloque o homem no centro da reflexão sobre o Nada, Heidegger o faz a partir de outra ótica, que não pode ser reduzida ao antropológico ou psicológico: o homem é um ente entre outros entes, mas dotado de existência (a qual Heidegger enfatiza a ambiguidade do exsistente), ou seja, enquanto os demais seres são apenas o homem existe, não que seja mais ou menos real, mas, sobretudo, porque carrega a ambiguidade de estar no e fora do Ser, não de um modo subjetivista ou substancial mas em relação direta de abertura para o Ser. Esse ser que é o homem, a partir da existência, é o que Heidegger denomina Dasein (ser-aí), e essa existência é, por conseguinte, a “essência” do ser-aí que é o homem. Cabe salientar, no entanto, que a consciência não é, de modo algum, aquilo que configura no ser do homem seu caráter de existente, este é anterior e remete à relação mesma entre o Ser e o Nada, portanto, sem qualquer tendência de redução ao subjetivo ou psicológico, [...] “nem a palavra ‘ser-aí’ tomou lugar da palavra ‘consciência’, nem a ‘coisa’ chamada ‘ser-aí’ passou a ocupar o lugar daquilo que é representado sob o nome ‘consciência’” (HEIDEGGER, 1973b, p. 257). Tampouco a existência em Heidegger é uma exaltação ao humanismo, sobretudo após 1930 – nas obras do segundo/último Heidegger (DELLA FONTE, 2007). Ao afirmar que a essência do homem é sua existência, Heidegger “não pretendia estabelecer uma filosofia da existência enquanto existencialismo, e sim seu tema era a verdade ou o sentido do ser” (WERLE, 2003, p. 98). Ou seja, transcendendo-a “na direção da história do pensamento filosófico ocidental como um todo” (WERLE, 2003, p. 98). Mas qual é a importância da reflexão sobre o Nada na questão fundamental do Ser, e, em especial, na diferenciação entre filosofia e ciência? A fim de diferenciar a dimensão ôntica da ontológica, Heidegger faz ainda nesse texto uma analogia interessante com a luz e a visão do objeto. Em toda questão sobre o ser das coisas, portanto, dos entes, a própria questão se realiza a partir de uma luz que não se coloca como problema, mas ilumina e desvela a entidade do ente - seu caráter ôntico. No entanto, o que permanece velado é a própria luz enquanto tal, isto é, a dimensão ontológica, e mesmo quando a ela nos remetemos, fazemos isso transmutando-a também em uma entidade (HEIDEGGER, 1973b). Reside aí parte da insuficiência da metafísica tradicional e, de outro lado, a insuficiência da ciência toda vez que ambas colocam a si o problema do fundamento do Ser. É possível escapar desse dilema? Infelizmente não nos cabe aqui encaminhar essa

5

questão, a nós compete refletirmos nas consequências de tal dilema e, sobretudo, nas características da ciência e da filosofia que se configuraram a partir dele. A metafísica permanece a primeira instância da filosofia. Não alcança, porém, a primeira instância do pensamento. No pensamento da verdade do ser a metafísica está superada. Torna-se caduca a pretensão da metafísica de controlar a referência decisiva com o ser e de determinar adequadamente toda relação do ente enquanto tal. (HEIDEGGER, 1973b, p. 254).

A ciência rejeita a questão do Ser, sobretudo porque negligência também a questão do Nada. Para ela o Nada é negação e, como tal, pouco tem a dizer sobre os entes. “Em tão objetiva maneira de perguntar, determinar e fundar o ente, se realiza uma submissão peculiarmente limitada ao próprio ente, para que este realmente se manifeste” (HEIDEGGER, 1973b, p. 234). A ciência é, segundo Heidegger (2009, p. 43), “uma possibilidade essencial da existência do homem”, em última análise uma escolha do homem frente a abertura do ser. Resta saber se essa possibilidade se articula com a filosofia e, sobretudo, se privilegia o ser do homem enquanto ser-aí. O Nada é fundamental para consolidação da dimensão existencial do homem, portanto, para seu caráter como existente e, sobretudo, como transcendente, isto é, nessa ponte entre o ente em sua totalidade e o Ser (HEIDEGGER, 1973b). Embora o Nada não possa ser objetivado por qualquer uma delas (ciência ou metafísica), no entanto, se manifesta no ser-aí do homem. Tal manifestação não o torna objeto, mas o faz em oposição a qualquer objetificação, segundo Heidegger uma das possibilidades de se deparar com o Nada, no qual ele se revela não enquanto ente ou objeto, mas como “abertura originária do ente enquanto tal”, é a angústia: Na angústia se manifesta um retroceder diante de...que, sem dúvida, não é mais uma fuga, mas uma quietude fascinada. Este retroceder diante de... recebeu seu impulso inicial do nada. Este não atrai para si, mas se caracteriza fundamentalmente pela rejeição. Mas tal rejeição que afasta de si é, enquanto tal, um remeter (que faz fugir) ao ente em sua totalidade que desaparece. Esta remissão que rejeita em sua totalidade, remetendo ao ente em sua totalidade em fuga – tal é o modo de o nada assediar, na angústia, o ser-aí –, é a essência do nada: a nadificação. Ela não é nem uma destruição do ente, nem se origina de uma negação. A nadificação também não se deixa compensar com a destruição e a negação. O próprio nada nadifica. (HEIDEGGER, 1973b, p. 238-239).

Assim, retornamos à questão: qual a relevância desse nada para o problema que nos colocamos, isto é, a configuração da relação entre filosofia e ciência na modernidade, em especial, a questão da possibilidade do ensino da filosofia diante das características da metafísica moderna? 6

Sua negligência revela que tanto a metafísica quanto a ciência são incapazes de acessar a diferença ontológica entre ente e Ser, e esse é, no diagnóstico de Heidegger, parte do problema do fundamento de todas elas, isto é, da ciência, da metafísica e, consequentemente, da Filosofia – já que essa é entendida exatamente como a metafísica que se desdobrou até então e que, talvez, possa vir a ser superada. Filosofia é Metafísica. Esta pensa o ente em sua totalidade – o mundo, o homem, Deus – sob o ponto de vista do ser, sob o ponto de vista da recíproca imbricação do ente e ser. [...] O fim da Filosofia revela-se como o triunfo do equipamento controlável de um mundo técnico-científico e da ordem social que lhe corresponde. Fim da Filosofia quer dizer: começo da civilização mundial fundada no pensamento ocidental-europeu. (HEIDEGGER, 1973c, p. 269-271).

Seria possível uma superação dessa condição, em particular, desse tipo de metafísica? Haveria uma possibilidade de instaurar uma nova relação com o Nada e sua condição de manifestação – a angústia? Nesse cenário, qual seria a ação educativa em relação à filosofia, haveria possibilidade de sua realização enquanto educação formal – escolar?

1.2 Tendências pedagógicas e concepções metafísicas Toda ação educativa parte de uma concepção de humano, seja ela mais ou menos consciente de sua ação como tal. Isso significa dizer que tanto os sistemas formais de educação, como a educação em sentido mais amplo, se realizam a partir de modelos formativos, isto é, direcionados a alcançar um modelo humano (ético, estético, cognitivo, religioso, etc.), no limite se configuram como pedagogias, isto é, “uma concepção filosófica da educação” (LUCKESI, 1994, p. 33). Nessa maquinaria toda há, por certo, valores diversos mais ou menos camuflados quais orientam práticas individuais ou coletivas desse ou daquele grupo social, econômico, político, religioso, entre outros, muitas vezes organizando programas educacionais públicos com interesses particulares, e toda sorte de conflitos e contradições que se instalam frente a tal diversidade. Em suma, há aí uma série de ideologias que vão marcando os modelos educacionais. Embora relevantes, quando propomos pensar a tônica das tendências pedagógicas não serão tais ideologias nosso foco de reflexão, mas algo que julgamos anterior e fundamental, isto é, a metafísica mesma que as orienta. Assim podemos notar que a própria concepção de que há, necessariamente, no final de toda ação humana um modelo de sujeito a ser alcançado corrobora, previamente, uma concepção metafísica – a primazia do sujeito (cognoscente, 7

moral, político, etc.). Afinal, que sujeito é esse? Em que sentido ele se consolida, sobretudo a partir da Modernidade? Como dito anteriormente, uma importante contribuição filosófica de Heidegger se deu a partir de sua leitura da Modernidade, sobretudo a partir da interpretação que efetua da filosofia de Nietzsche e, em particular, à tarefa que toma como sua ao decretá-lo como o “último dos metafísicos”, portanto, cabendo a ele (Heidegger) encaminhar uma nova maneira de se pensar para além da metafísica (GHIRALDELLI, 2008, p. 45). Mas qual é essa metafísica que Nietzsche critica e Heidegger terminar por demolir? Como se configura esse novo pensar, longe da metafísica? Embora Heidegger enfatize o retorno à questão do Ser, ele o faz, como vimos, pelo prisma de uma diferença entre o ôntico e ontológico a partir do ser-aí do homem. Portanto, quando fala de “retorno ao ser”, Heidegger não fala apenas contra a metafísica tradicional, mas também contra todas as correntes que se colocam pretensamente contra essa metafísica, mas, no fundo, se alinham com ela ao refundar a esperança de constituir uma base sólida ao sujeito (cognoscente, ético, político, estético, etc.). Ou seja, a metafísica Moderna tem na subjetividade a sua marca (GHIRALDELLI, 2008), e dela não escapa o positivismo e a ciência de um modo geral como saber positivo (que tem o ente como um dado manifesto). Para se superar essa metafísica a diferença ontológica entre Ser e ente precisa ser compreendida de fora (DELLA FONTE, 2007). Mas qual é exatamente o problema da subjetividade na Modernidade, ou ainda, em que medida uma ação educativa, entendida como pedagogia, é caudatária dessa metafísica? De fato, na modernidade, a subjetividade é o centro irradiador de certeza e verdade, portanto, a questão mesma da subjetividade é a própria questão da verdade, é nela que repousa a crise da modernidade como crise da subjetividade. De acordo com o professor Franklin Leopoldo e Silva, há no projeto histórico da modernidade, enquanto emancipação racional do homem frente aos dogmas estabelecidos e as forças da natureza, pelo menos duas fontes de inquietação oriundos daqueles que são seus “pais fundadores”: o caráter utópico do equilíbrio social que seria alcançado pela busca e organização de todo saber (Bacon) e a integração de todos os saberes visando à totalidade do saber humano – mais acentuado em Descartes, mas presente também em Bacon. Ambos indissociáveis de um objetivo humano articulado entre teoria e prática, a saber, “a consecução da felicidade humana”, no entanto “a história da modernidade mostrou a incompatibilidade entre as duas partes do projeto: a autonomia da razão e a conquista da felicidade” (SILVA, 1997). 8

Num primeiro momento, a invenção e a consolidação dos meios de dominação proporcionados pelo conhecimento é tarefa de uma racionalidade instrumental; num segundo momento, o estabelecimento das finalidades a que tais meios deveriam servir para consecução dos fins constitui o objetivo de uma racionalidade prática [...] num projeto de emancipação autêntico, as duas coisas são inseparáveis, embora coordenem suas diferenças no próprio processo de expansão racional [...] o significado do predomínio da subjetividade na instauração da cultura moderna é a plena assunção do valor de que se devem revestir as finalidades humanas. A razão como medida de todas as coisas não tem a princípio um estatuto apenas lógico, mas também axiológico, que se expressa no reconhecimento do homem como valor, a partir de sua condição de ente racional. (SILVA, 1997, grifo nosso).

Pois é exatamente essa unidade da razão, fundamento da certeza e da verdade na relação entre sujeito e objeto – pautado pelo paradigma da evidência matemática, que entra em crise na modernidade. Afinal, sua unidade pressupõe também unidade entre método e objeto, nesse sentido, toda e qualquer diversidade dos objetos será reduzida a “uma uniformidade intelectual” (SILVA, 1997). Isso significa dizer que o avanço dos ideais da modernidade, embora trouxessem a princípio o valor da diferença entre o teórico e o prático na dimensão da subjetividade humana, passa a esquecê-la em função de um modelo de conhecimento exclusivamente objetivo. A subjetividade passa a ser recurso à objetividade. A própria delimitação crítica do conhecimento teórico feita por Kant, isto é, a restrição teórica do conhecimento metafísico, irá corroborar com esse modelo de conhecimento, reforçando “o caráter puramente – e formalmente – racional do fundamento da atividade cognitiva”, ou seja, como restrição da subjetividade ao cognoscente (SILVA, 1997). No limite, a crise da subjetividade é a hipertrofia da razão instrumental, de sua hegemonia como modelo de todo conhecimento, transmutando autonomia em subordinação. Instrumento que atinge seu mais alto grau de elaboração na técnica, isto é, a racionalidade enquanto determinação instrumental e antropológica (HEIDEGGER, 2012). Parece evidente, portanto, que a pedagogia enquanto campo de conhecimento surgido na Modernidade, não escapará da lógica dessa racionalidade instrumental, sobretudo, de sua “redução” à técnica. A alternativa que se esboça diante desse quadro reside, talvez, em algum lugar do mundo vivido, isto é, no qual o fundamento último do conhecimento e da verdade não é extraído do sujeito e da subjetividade, mas da finitude do concreto (STEIN, 1991, p. 43). Ficamos, portanto, com pelo menos três problemas quando pensamos a educação e o ensino de filosofia: é possível estabelecer uma ação educativa desvinculada de qualquer perspectiva antropológica fundamentada na metafísica do sujeito? Em que sentido a técnica, esse “destino” da modernidade no qual “passamos a ver o mundo como depósito de recursos 9

inesgotáveis” (STEIN, 1991, p. 48), determina nossos referencias educacionais e pedagógicos? Por último, e talvez mais relevante, qual a relação estabelecida entre técnica e verdade nas trilhas pedagógicas de uma modernidade que esgotou a metafísica da subjetividade?

2 Filosofia e seu ensino: contribuições da ontologia heideggeriana Em que sentido, portanto, a ontologia heideggeriana poderia colaborar na superação desses dilemas trazidos pelo desdobramento da modernidade, em especial, no âmbito da educação e do ensino de filosofia? De uma forma muito ampla, e até superficial, passamos por alguns dos pensamentos de Heidegger a fim de determinar suas consequências à educação, sobretudo à Filosofia e seu ensino. Seu modo de conceber a filosofia como metafísica, diagnosticando essa em seus últimos estertores até sua morte completa naquilo que seria, talvez, o fim da Modernidade e o princípio da pós-modernidade – em especial com o advento da técnica e sua supremacia como um modo de ser nunca antes alcançado, uma “fatalidade de nossa época, onde fatalidade significa o inevitável de um processo inexorável e incontornável” (HEIDEGGER, 2012, p. 28), conduz nosso pensar a lidar com uma fronteira tênue entre racionalidade e irracionalidade, afinal, a técnica não é uma fatalidade do tipo demoníaca. Segundo Heidegger, a busca de sua essência (entendida como aquilo que não se confunde com algo técnico) revela uma forma de desencobrimento do real (com-posição). Com-posição é a força de reunião daquele “pôr” que im-põe ao homem descobrir o real, como dis-ponibilidade, segundo o modo de dis-posição [...] não é ao depois que o homem se relaciona com a essência da técnica [...] a essência da técnica moderna põe o homem a caminho do desencobrimento que sempre conduz o real, de maneira mais ou menos perceptível, à disponibilidade. (HEIDEGGER, 2012, p. 27)

Nesse sentido, o posicionamento ontológico heideggeriano sugere um caráter ambíguo da técnica, ou melhor, dessa sua disposição (entendida como modo que desafia o homem) a partir do qual desencobre o real – não por uma postura cognoscente, antropológica, mas anterior a isso, carregando perigo e possibilidade: O desencobrimento em si mesmo, onde se desenvolve a disposição, nunca é, porém, um feito do homem, como não é o espaço, que o homem já deve ter percorrido, para relacionar-se, como sujeito, como objeto [...] O desencobrimento já se deu, em sua propriedade, todas as vezes que o homem se sente chamado a acontecer em modos próprios de desencobrimento. Por

10

isso, desvendando o real, vigente com seu modo de estar no desencobrimento, o homem não faz senão responder ao apelo do desencobrimento, mesmo que seja para contradizê-lo. Quando, portanto, nas pesquisas e investigações, o homem corre atrás da natureza, considerando-a um setor de sua representação, ele já se encontra comprometido com uma forma de desencobrimento. [...] o destino do desencobrimento sempre rege o homem em todo o seu ser, mas nunca é a fatalidade de uma coação, pois o homem só se torna livre num envio, fazendo-se ouvinte e não escravo do destino. (HEIDEGGER, 2012, p. 22-27, grifo nosso).

Portanto, o caráter ambíguo, perigoso e disponível desse desencobrimento que é a técnica, reside em dispor do real apenas como essa disponibilidade, isto é, explorar a natureza “como objeto de pesquisa até que o objeto desapareça no não objeto da disponibilidade” (2012, p. 22), ou seja, interpretar mal o desencobrimento e torná-lo equívoco: [...] quando todo real se apresenta à luz do nexo de causa e efeito, até Deus pode perder, nesta representação [...] à luz da causalidade, Deus pode degradar-se a ser uma causa, a causa efficiens [...] do mesmo modo, em que a natureza, expondo-se, como sistema operativo e calculável de forças pode proporcionar constatações corretas, mas justamente por tais resultados que o desencobrimento pode tornar-se o perigo de o verdadeiro se retirar do correto. [...] Quando o des-coberto já não atinge o homem, como objeto, mas exclusivamente, como disponibilidade, quando, no domínio do não objeto, o homem se reduz apenas a dis-por da disponibilidade – então é que chegou à última beira do precipício, lá onde ele mesmo só se toma por disponibilidade. (HEIDEGGER, 2012, p. 29, grifo nosso).

Assumir a filosofia como a guarda do pensar, do páthos enquanto disposição para além do disponível pela técnica. A ruptura entre o ôntico e o ontológico proposta pela analítica existencial heideggeriana não aponta a filosofia – como ela se desdobrou enquanto história da metafísica ocidental, isto é, esquecimento do ser, capaz de se reformular e encontrar respostas a si e ao mundo Moderno, ao contrário, a metafísica enquanto tal se consome, cabendo àquilo que ainda denominamos “filosofia” uma escuta muito mais que uma fala. Não basta elaborar uma crítica das limitações da metafísica enquanto fundamento da razão, do conhecimento, não basta apontar o esquecimento do ser, o advento da técnica e da ciência Moderna como pontos limítrofes desse modo de disposição explorado às últimas consequências; a tarefa desse pensamento que se pode vir a desejar assume um caráter muito mais preparatório que fundador: Aqui se tem em mira a possibilidade de a civilização mundial, assim como apenas agora começou, superar algum dia seu caráter técnico-científicoindustrial como única medida da habitação do homem no mundo. Esta civilização mundial certamente não o conseguirá a partir dela mesma e

11

através dela, mas, antes, através da disponibilidade do homem para uma determinação que a todo momento, quer ouvida quer não, fala no interior do destino ainda não decidido do homem. (HEIDEGGER, 1973c, p. 272, grifo nosso).

Esse algo que “fala no interior do destino” já foi dito outrora na Filosofia grega nascente, mas não foi pensado exatamente por sua transformação em metafísica, ou ainda, foi pensado de modo restritivo enquanto metafísica do sujeito: dicotômica, representacional, etc. Quando Heidegger interpreta o mito platônico da caverna, portanto, a filosofia tornada metafísica nesses moldes, não deixa de apontar o equívoco em não se atentar para o essencial da alegoria, isto é, que ela narra ‘acontecimentos’ e não apenas “domicílios e situações do homem dentro e fora da caverna” (HEIDEGGER, 1976). Ou seja, narra “o que se dá e ocorre enquanto aquilo que se prepara e processa desta ou daquela maneira, ou seja, enquanto o que se envia e destina” (HEIDEGGER, 2012, p. 54), mas o qual não necessariamente prescreve uma representação subjetiva, antropológica, cognoscente – uma ‘ideia’ ao estilo da modernidade, uma determinação do ente enquanto humanismo e seus valores. De fato há, segundo Heidegger, uma mudança na essência da verdade ocasionada exatamente pela ambiguidade entre o não dito que fala (desvelamento), e o que se torna dito e, assim, se encobre pelo parâmetro da correção da representação, portanto, uma normatização para o conjunto do pensamento ocidental como enunciação. “A verdade não é mais, como desvelamento, o traço fundamental do próprio ser, mas tornou-se correção, em consequência de subjugação à ideia e, a partir daí, o traço distintivo do conhecimento do ente” (HEIDEGGER, 1976). E como fica, nesse aspecto, a formação? Ela pode continuar sendo pensada como modelo, protótipo para aquilo que se espera realizar no homem e em sua comunidade (política)? Talvez exista um pensamento mais sóbrio do que a corrida desenfreada da racionalização e o prestígio da cibernética que tudo arrasta consigo. Justamente esta doida disparada é extremamente irracional. Talvez exista um pensamento fora da distinção entre racional e irracional, mais sóbrio ainda do que a técnica apoiada na ciência, mais sóbrio e por isso à parte, sem a eficácia e, contudo, constituindo uma urgente necessidade provinda dele mesmo. Se perguntarmos pela tarefa deste pensamento, então será questionado primeiro, não apenas este pensamento, mas também o próprio perguntar por ele. Perante toda a tradição da filosofia isto significa: Nós todos precisamos de uma disciplina para o pensamento e antes disso de saber o que significa uma disciplina ou falta de disciplina no pensamento. Para isso Aristóteles nos dá um sinal no Livro IV de sua metafísica [...] ‘É falta de disciplina não ter olhos para aquilo com relação a que é necessário procurar uma prova e com relação a que isto não é necessário. ’ [...] ainda não se

12

decidiu qual maneira por que deve ser experimentado aquilo que não necessita de prova para se tornar acessível ao pensamento. É ela a meditação dialética ou a intuição que dá de modo originário, ou nenhum dos dois? Aqui a decisão só pode vir da maneira de ser própria daquilo que antes de qualquer outra coisa requer que lhe deixemos livre acesso [...] a tarefa do pensamento seria então a entrega do pensamento, como foi até agora, à determinação da questão do pensamento. (HEIDEGGER, 1973c, p. 279).

Talvez não haja mesmo uma superação no sentido de apontar uma proposta que a substitua (metafísica do sujeito), mas pensamos que há, ao menos, uma possibilidade de entender melhor o problema e, nesse sentido, estar aberto a proposições inovadoras a respeito das diferenças entre formação e educação.

2.1 Da relação entre filosofia e ciência É comum encontrarmos nos manuais de ensino de filosofia, nos diferentes níveis da educação formal, a prescrição do desenvolvimento de uma “atitude filosófica” por parte daqueles que desejam filosofar. Em muitos casos tal atitude é associada a um processo reflexivo, de um pensamento que pergunta tudo sobre tudo, circunscrevendo, inclusive, esse seu ato de “pensar” como um perguntar “pensando” / pensar perguntado – daí o termo “reflexão”. Demerval Saviani (1975), por exemplo, chega a estabelecer três exigências para caracterizar uma reflexão como filosófica: ser sistemática, radical e de conjunto. Ainda que em muitos casos se faça uso de expressões como “objetos do mundo”, “mundo ao redor”, “vivência”, “relações com o mundo”, o acento desse questionamento e pensamento acaba por incidir em elementos de ordem cognitiva, lógica, epistemológica ou mesmo metodológica. Vamos procurar apontar alguns limites dessas e de outras prescrições comuns à filosofia e seu ensino, a partir da caracterização heideggeriana de “filosofar como transcender” – sustentada pela sua singular ontologia. Inicialmente havíamos estabelecido uma restrição ao escrito “Que é isto – a Filosofia?” a fim de tratar sua caracterização. Ao longo da pesquisa, no entanto, ficou patente a dificuldade de compreender alguns de seus conceitos quando circunscritos a um único texto. Este é, portanto, um dos resultados mais imediatos de nossa pesquisa: a constatação do necessário aprofundamento em suas obras a fim de abarcar minimamente a complexidade de sua filosofia. No propósito de explicitarmos o sentido do “filosofar como transcender”, faremos uso de sua preleção, em particular a primeira secção, realizada entre 1928/1929 na Universidade de Freiburg, editada a partir de seus manuscritos e publicada em 1996 na 13

Alemanha, chegando ao Brasil com tradução Marco Antonio Casanova em 2008. O plano geral da obra procura abordar o problema a respeito da filosofia e do filosofar a partir da relação entre filosofia e ciência, filosofia e visão de mundo e filosofia e a história, no entanto apenas os dois primeiros “caminhos” foram levados a termo. Na primeira secção do livro, Heidegger faz uma aproximação a respeito do problema de uma introdução à filosofia levando em conta sua relação com a ciência. Emerge daí uma série de elementos importantes, dentre os quais a peculiaridade do homem como ser-aí lançado ao mundo em sua facticidade; a primazia da dimensão ontológica da filosofia quando recolocada a questão fundadora do ser e da verdade como desvelamento; a dimensão ôntica da ciência e sua determinação proposicional de verdade (ôntico) derivada da verdade como desvelamento (ontológico) bem como sua imbricação com a técnica, etc. Em suma, Heidegger enfatiza os limites de se pensar a filosofia a partir de categorias ditas “científicas” exatamente porque essa é limitada ontologicamente a fim mesmo de explorar determinadas regiões do ente como tal (HEIDEGGER, 2009). Esse viés de aproximação de Heidegger, isto é, da relação entre filosofia e ciência, procura dar conta de uma questão inicial colocada pelo pensador: afinal, uma introdução à filosofia sugere que estamos fora dela e que, portanto, devemos ser conduzidos a seu interior a partir de algum caminho (método). Será que é assim mesmo? Qual seria tal caminho? A tese é que não, isto é, que não estamos fora da filosofia e, sobretudo, do filosofar. Portanto, a primeira parte da obra procura demonstrar que “ser homem já significa filosofar. Segundo sua essência, o ser-aí humano como tal já se encontra na filosofia, e isso não de modo ocasional” (HEIDEGGER, 2009, p. 4). Isso não significa, no entanto, que a filosofia e o filosofar se realizem sem qualquer direcionamento, mas que tal direcionamento é fundamentado no ser-aí, sobretudo nas características emergentes da diferença entre ser e ente, isto é, no caráter transcendente do seraí frente a dimensão ôntica e ontológica, e dessa em relação a tudo aquilo que poderá surgir nas investigações interpretativas propostas pelos três “caminhos”. Nesse aspecto, Heidegger (2009) afirma mesmo que “transcender é filosofar”, no sentido de que não somos um ente manifesto, mas que nos tornamos manifesto (em vários sentidos) exatamente porque a essência da constituição ontológica do ente que somos está situada na ultrapassagem do ente. É dessa maneira que Heidegger fará uso do conceito de transcendência, deixando claro sua peculiaridade interpretativa frente à tradição.

14

De acordo com as conclusões de Heidegger a relação entre ciência e filosofia não reside apenas nessa diferença ontológica. Propor a ideia da filosofia como “científica” é tratar de um “não-conceito”, isto é, atribuir à filosofia, por decréscimo ou privação, algo que não lhe convém ou que ela originariamente já possui. Heidegger (2009, p. 18-19) equipara à expressão “círculo arredondado”: afinal o círculo não é “arredondado”, tampouco “mais ou menos redondo” ou redondo “apenas em alguma parte”, ele é “pura e simplesmente redondo”. Tal equiparação entre filosofia e ciência, ainda que se o faça frente a uma ciência determinada e vista como mais pura e rigorosa (matemática), é equívoca, conduz ao erro e denota uma característica da modernidade – quando houve certo distanciamento quanto à essência da ciência e da própria filosofia (esquecimento do ser), não encontrado na Antiguidade, quando, ao contrário, “as ciências se mostram aí como ‘filosofias’ de um tipo determinado” (HEIDEGGER, 2009, p. 20). Portanto, enquanto a ciência se direciona ao conhecimento do ente, a filosofia se direciona ao ser, em categorias que diferem das determinações ônticas. Outro aspecto dessa relação, paradoxalmente, coloca a ciência em consonância com o transcender, portanto, com o filosofar. Trata-se do caráter positivo da ciência, isto é, a ciência lida exatamente com o ente manifesto (ente como positum) ao ser-aí a partir de um fundamento ontológico que não é, nem pode ser, científico, pois é desvelamento – numa relação muito diversa frente à “verdade” determinada pela objetividade científica: “Desvelamento do ente não consiste no serapreendido do ente; esse ser-apreendido só é possível com base em um tal desvelamento; o desvelamento pode subsistir sem a apreensão” (HEIDEGGER, 2009, p. 216). Isso significa que o projeto ontológico que veio permitir o desenvolvimento científico é fundamentado nessa relação transcendente preliminar do ser-aí. A transcendência, isto é, essa ultrapassagem do ente que somos, revela ainda que o ser-aí é possuidor de uma elevação originária de si mesmo, que em nada se confunde com as posições do idealismo ou realismo, tampouco de uma teoria do conhecimento – ir do sujeito ao objeto, etc. Fica claro agora o sentido ambíguo de “destino” e ao mesmo tempo “escolha” que engendrou a Modernidade dentro do paradigma técnico-científico-industrial que mencionamos no início do trabalho. Poderia ter sido diferente? Dependia exclusivamente do “homem”, antropologicamente falando? Essas são questões relevantes, mas que aqui não iremos aprofundar. Ao nosso propósito interessa apenas ter problematizado a dificuldade de se estabelecer uma metodologia do ensino de filosofia pautada por elementos de uma metafísica estreitada em seu projeto pela exclusividade do ôntico, em oposição a uma ontologia aberta no sentido do ser. 15

Qualquer atitude que se queira filosófica, portanto, não se realiza como atitude epistemológica ou cognoscente meramente, mas como postura, isto é, em relação direta com o ser-no-mundo, naquilo que o caracteriza como possibilidade de fazer filosofia: “o problema do ser desenrola-se e transforma-se no problema do mundo, o problema do mundo imiscui-se no problema do ser [...] os dois problemas perfazem a problemática, em si única, da filosofia”. (HEIDEGGER, 2009, p. 423) Nesse aspecto surge o fundamento tal no qual a transcendência inerente a todo ser-aí se manifesta em sua essência como fenômeno, este é, segundo Heidegger (2009, p. 424) “o conceito filosófico-transcendental propriamente dito de fenômeno”. Portanto o filosofar é esse “transcender expresso” que se dá a partir de possibilidades concretas de uma confrontação com o ente, isto é, visão de mundo como postura fundamental, sem, no entanto, que tais possibilidades sejam determinadas por meio da filosofia. Assim chegamos a um ponto importante: Quanto mais puramente ela compreende a si mesma, quanto mais puramente o que está em questão para ela é apenas deixar acontecer a transcendência a partir de seu fundamento, tanto mais pura e imediatamente está ela em condições de satisfazer o que só ela pode ser, considerando-se a formação fática da visão de mundo, e tanto mais pura e imediatamente pode fornecer a cada homem faticamente existente a ocasião para que irrompa nele as possibilidades de uma postura. (HEIDEGGER, 2009, p. 425).

Não avançaremos com esse segundo “caminho”, isto é, a filosofia e a visão de mundo a partir do qual ser-com-o-outro ganha maiores contornos, mas fica indicada aqui sua relevância.

Considerações finais Diante da proposta de problematizar a relação da filosofia e do filosofar no contexto da modernidade, a partir de algumas perspectivas do pensamento heideggeriano e, em particular, do ensino da filosofia e seu papel na formação (docente/discente), as considerações finais aqui esboçadas não se confundem com uma conclusão. No entanto, ainda que não seja conclusivo no sentido positivo do termo, isto é, de se formular uma representação objetiva, podemos concentrar algumas das problemáticas de modo a lançá-las num aprofundamento futuro com menores riscos de reducionismos. Uma delas diz respeito à própria constituição da filosofia como herança grega. Ficou patente ao longo das pesquisas a necessária contextualização do sentido grego de verdade 16

como desvelamento (alethéia) a fim de se endereçar ao questionamento do ser, sentido esse que foi marcadamente alterado já em Platão quando verdade se torna correção do olhar frente àquilo que se da como ideia. Nesse aspecto a leitura do texto de Heidegger intitulado “A doutrina de Platão sobre a verdade” é fundamental. Nele é possível acompanhar o desdobramento da alegoria da caverna de Platão sob o prisma de uma gradual transição tanto do sentido de verdade quanto de sua articulação à formação (paideia). Reside aí, talvez, a possibilidade de ampliar os questionamentos a respeito do papel da filosofia na formação docente, bem como seu caráter formativo ou meramente informativo. No que se refere à identidade da filosofia, isto é, como direcionada ao ôntico ou ao ontológico, ficou claro que a filosofia enquanto tradição metafísica, ou seja, perscrutando o ser do ente em sua totalidade, possui uma identidade ôntica e esgotada. Havíamos insinuado inicialmente que sua identidade seria ou deveria ser exclusivamente ontológica, no entanto, foi possível perceber que as coisas são mais complexas e que o “esquecimento do ser” não é assim “curado” por um retorno a um passado distante, numa essência perdida dos gregos – se havia uma suspeita de subjetivismo ou romantismo no início da pesquisa ela se revelou muito mais pertencente a nós que ao filósofo. Entretanto ficou claro que a abertura do ser permanece, mas o projeto que se delineou precisa ser concluído em suas últimas consequências, isto é, o desdobramento do ser consolidado, literalmente, como saber técnicocientífico, determinando assim a estrutura da realidade sob um prisma que atingiu a universalidade pretendida. O fim da filosofia, portanto, é o projeto da racionalidade européiacientífica-ocidental levada a termo em um nível planetário, mas, como dito, a abertura mesma permanece. Isso foi surpreendente, pois descobrimos que não é nem no “ser”, como um dado puro, uma ideia, localizado num “céu” filosófico, tampouco no “ente” enquanto consolidação da técnica que o filosofar ou a filosofia pode vir a ser. Ela pode vir a ser nesse caminho que é a transcendência (ultrapassagem) entre um e outro, portanto, ela se instala na condição mesma da existência finita de cada ser-aí. Filosofar é lidar com essa abertura do ser no ente, a partir da finitude, portanto numa imbricação essencial com o tempo, a morte e a angústia, nesse aspecto a filosofia não pode ser uma disciplina científica tampouco uma “disciplina”, sob o peso de permanecer numa região do ente que está esgotada, afinal, como foi apresentado na pesquisa, a ciência e mesmo a filosofia enquanto metafísica, acabam por não problematizar de modo fundamental a relação entre ser e nada, assim como o tempo, essenciais na constituição existencial do ser-aí, portanto, da própria filosofia. Desse modo ambas “fixam” o real a partir 17

de determinados princípios (válidos na região circunscrita do ente, sem dúvida) a fim de garantir universalidade e infinitude, projeto que a Modernidade levou a cabo com vigor numa “modelagem” sustentado sob o paradigma matemático – daquilo que pode ser apreendido por uma técnica (µαθήµατα + τέχν). Com a diferença ontológica o ser-aí tem acesso à compreensão do ser não num sentido objetivável (projeto científico), mas propriamente filosófico (enquanto transcendência). Tal conceito de compreensão precisa, portanto, ser aprofundado no pensamento heideggeriano a fim de se alcançar a abrangência que sugere em relação à tarefa da filosofia no fim da metafísica. Talvez esse aprofundamento seja capaz de elucidar minimamente os problemas apresentados em relação à ação educativa do professor de filosofia, enquanto disciplina numa educação formal, articulado ao sentido originário de formação (paideia) e verdade enquanto desvelamento. Nesse mesmo sentido podemos problematizar o desenvolvimento da pedagogia e dos ideais educativos da Modernidade, afinal afirmam um caráter positivo do ente que é o homem, fixando um modelo antropológico que apenas em um aspecto restritivo corresponde ao propósito formativo enquanto paideia. A presença é aqui também concebida como um dado (manifesto). Mesmo quando problematizadas no sentido de “humanizar” a educação, as questões e soluções educacionais se direcionam ao ente como prescrição – na qual a liberdade se resume em escolher entre aquilo que está posto (pedagogia tradicional, existencial, libertadora, crítica, etc) ou que pode ser posto em consonância estrita ao modelo de racionalidade vigente, portanto pouco tendo a ver com formação. Se a filosofia pode vir a assumir algum caráter além do educativo, isto é, no sentido formativo, ela precisa agir e acontecer na estrutura mais relevante do ser-aí lançado no mundo, portanto na liberdade mesma. Embora não haja pensamento sem representação, o caso é que a modernidade fez do cognoscente e sua representação a mola propulsora de toda subjetividade e, dessa forma, hipertrofiou a dimensão exclusivamente cognitiva do ser do homem enquanto consciência e domínio, colocando, em oposição a ela, tudo que chamará objeto – a era do domínio objetivo do ser, a técnica. O fim da filosofia se realiza nisso que foi esboçado, mas sua possibilidade enquanto filosofar não está aí restrito. Há muito a ser desenvolvido a partir do pensamento heideggeriano, exigindo não apenas um aprofundamento conceitual, mas uma disposição em construir junto ao filósofo uma vivência literalmente inebriante do filosofar, afinal, é preciso “[...] escapar de uma simples repetição irrefletida de expressões heideggerianas que só 18

compreendemos sob a condição de ninguém nunca nos perguntar o que elas propriamente significam” (CASSANOVA, 2009, p. XIII). Não porque não seja possível articulá-las conceitualmente, mas, sobretudo, porque tal articulação não esgota o percurso daquele que se põe a filosofar em seu contexto existencial único, inconfundível em relação ao outro, mas que se realiza junto a outros. Esse é outro ponto interessante alcançado, problematicamente, no trabalho: o filosofar como característica do ser-aí na relação como o outro, isto é, no ser-aí frente a outro ser-aí (ser-com-outro). O trabalho não avançou muito nessa direção, mas foi capaz de apontar seu necessário aprofundamento. Abstract: This paper aims to discuss the philosophy and the act of philosophizing from some heideggerian concepts, emphasizing his criticism of western Philosophy exhausted while consolidation in a metaphysics of subjectivity. In that regard was initially makes use of the text What is Philosophy?, expanding to other in an attempt to deal with the complexity of the concepts. The role of philosophy in education and formation (paideia), as well as problems related to the possibility of its being teaching are tangent approach from ontological matters, it means, about Being itself. In this sense the research shows the limits of perception of philosophy as a scientific discipline, subject to certain reductions by focusing on a metaphysic of Being in an anthropological representation, trying to reestablish the relevance of philosophy to think in character factual, temporal and finite, available whole being-here as such. Keywords: Metaphysics. Heidegger. Technique. Education. Ontology.

Referências CASSANOVA, Marco Antonio. Apresentação à tradução brasileira. In: HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. 2. ed. São Paulo: Martin Fontes, 2009. p. XI-XXI. DELLA FONTE, Sandra Soares. Heidegger e o pensamento educacional contemporâneo. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO (ANPED) – 30 ANOS DE PESQUISA E COMPROMISSO SOCIAL, XXX. Anais... Caxambu, 2007. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2012. GHIRALDELLI Jr., Paulo. O que é filosofia contemporânea? São Paulo: Brasiliense, 2008. (Coleção Primeiros Passos, 336). HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica In: ______. Ensaios e Conferências. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p.11-38. (Coleção Pensamento Humano). ______. Introdução à filosofia. 2. ed. São Paulo: Martin Fontes, 2009. 19

______. A doutrina de Platão sobre a verdade. In.: ______. Wegmarken. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1976. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2012. ______. Que é isto – a filosofia? In: ______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1973a. (Os Pensadores, XLV). p. 211-222. ______. Que é metafísica? In:______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1973b. (Os Pensadores, XLV). p. 223-261. ______. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento In: ______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1973c. (Os Pensadores, XLV). p. 263-280. KANT, I. Crítica da razão pura. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores, Kant I). LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da educação. São Paulo: Cortez, 1994. MARÍAS, Julián. In: CONFERÊNCIA DO CURSO “LOS ESTILOS DE LA FILOSOFÍA”, 1999, Madrid. Heidegger. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2012. ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. SAVIANI, Dermeval. A filosofia na formação do educador. In: ______. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 11. ed. Campinas: Autores Associados, 1996. p.9-21. SILVA, Franklin Leopoldo e. Conhecimento e Razão Instrumental. Psicol. USP, São Paulo, v. 8, n. 1, 1997 . p. 11-31. Disponível em: . Acesso em: 4 dez. 2012. STEIN, Ernildo. Epístemologia e crítica da modernidade. 2. ed. Ijuí: Editora Unijuí, 1991. (Coleção Ensaios – Política e Filosofia, 4). ______. Nota do tradutor. In: HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica? Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores, XLV). p. 225-229. WERLE, Marco Aurélio. A angústia, o nada e a morte em Heidegger. Trans/Form/Ação, São Paulo, n. 1, v. 26, p. 97-113, 2003. Disponível em: . Acesso em: 2 nov. 2012.

20

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.