Sobre o mito e a maldição do «Eu»

June 3, 2017 | Autor: Atahualpa Fernandez | Categoria: Law, Philosophy Of Law, Direito, Human nature, Filosofia do Direito, Natureza Humana
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Sobre o mito e a maldição do «Eu» Atahualpa Fernandez

“¿Que yo me contradigo? Pues sí, me contradigo. Y, ¿qué? Yo soy inmenso, contengo multitudes.” WALT WHITMAN

Que todo estado psicológico vai associado a um estado biológico, que o cérebro e a mente são inseparáveis, que a mente humana não é uma unidade, que não há um só condutor ao volante e que está constituída por múltiplas subunidades é uma ideia já veterana que foi repetida por muitos autores de muitas disciplinas, desde filósofos a psicólogos e cientistas. Resulta ser que, no que se refere à natureza de nossa identidade pessoal e a maneira em que seguimos sendo a mesma pessoa através do tempo, a consciência consiste em um remoinho de eventos distribuídos ao largo do cérebro. Estes eventos competem por atenção e, na medida em que um processo se destaca mais que outros, o cérebro racionaliza os resultados depois do sucedido e confecciona a impressão de que um «eu» único esteve a cargo todo o tempo. Estamos tão familiarizados e satisfeitos com a experiência de nosso «eu» como um ser único e permanente que a pergunta sobre se realmente esse «eu» existe (e 

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídicocivilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.

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quantos) parece mais uma ocupação de algum retrasado mental. Não é difícil entender que de vez em quando nos enreda o elementar, que não entendemos coisas que se explicam muito simplesmente, e não as entendemos porque nos custa assumir essa simplicidade e desconfiamos das evidências (especialmente as contraintuitivas). Pensamos que algo não quadra, que tem que haver algo mais, que a realidade há de ser mais complexa, profunda e misteriosa, que algum desconhecimento por nossa parte nos impede calibrar um fato como merece, em toda sua intricada, enigmática e insondável magnitude. Resultado: às vezes nos deixamos narcotizar com a fascinação gerada por uma suposta «inescrutabilidade», aceitando, até à indiferença, a comoção de estar saciado com «não entender». Nada obstante, estou convencido de que se o amável leitor (a) já advertiu alguns seres humanos que, segundo as circunstâncias, se mostram felizes ou tristes, introvertidos ou extrovertidos, generosos ou mesquinhos, ambiciosos ou preguiçosos, humildes ou arrogantes, será capaz de compreender - ou ao menos poderá intuir – o que estou tratando. Vamos por passos. Tudo o que sabemos sobre o mundo o sabemos por nosso cérebro: gera as cores e as imagens, os olores e os sabores, a dor e o prazer, as emoções e os sentimentos, as representações, juízos e ações, e qualquer coisa que se ponha em seu ponto de mira é observada, estudada, analisada, valorada e armazenada. Tudo o que pensamos, fazemos ou deixamos de fazer sucede em e depende de nosso cérebro. A estrutura de este ser vivo desperto, atento, vigilante, rápido, “plástico”, flexível, incansável e inesgotável, dia e noite ativo, determina nossas possibilidades, nossas limitações e nosso caráter. Se em algum órgão se manifesta a natureza humana em todo seu esplendor é sem dúvida em nosso volumoso cérebro: «Somos nuestro cerebro. Punto.» (S. Martínez-Conde). Uma dessas representações, pensamentos ou sensações é a ideia que temos de «nós mesmos». Como surge é até hoje um segredo que parece que custa revelar a nosso cérebro: Tu existes, certo? Então demonstra. Como bilhões de neurônios tagarelando criam o conhecimento — ou a ilusão — de que estás aqui? (S. Pinker). Por que - como indicou Max Stirner – “para mim não há nada mais importante que «eu»”? Está bem claro que de nosso «eu» são responsáveis diferentes áreas em

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nossa cabeça1. Fecundam-se umas a outras, se influem, complementam, condicionam e refletem. E, ao menos em toda pessoa sana, ao final aparece um «eu». Não podem equivocar-se «siete mil millones de personas en el mundo que se dicen “yo” a sí mismas. El “yo” es una realidad sentida». (R. D. Precht) De fato, a surpreendente conclusão da ciência da consciência é que essa sensação intuitiva que temos, de que existe um «eu» diretor e único que se senta no centro de controle do cérebro, observando as telas de nossos sentidos e pressionando os botões de nossos músculos, é uma ilusão criada pela perspectiva [Nota bene: a palavra ilusão não significa que não exista; “existe como fruto de la actividad cerebral que al parecer genera esa ilusión en nuestro propio beneficio” (S. Blackmore); e que o «eu» unificado é uma construção cerebral o demonstram os experimentos realizados por Roger Sperry (Nobel 1981) e Michael Gazzaniga em sujeitos com cérebro cindido ou dividido]. Justamente isso: somente uma ilusão, uma realidade sentida, construída por nosso cérebro. Por mais inverossímil que pareça, não existe um «eu» como uma entidade unificada, estática e imutável em nosso interior (algo como uma substância), senão um conjunto de capacidades multidimensionais variáveis e dependentes de condições cambiantes, incluídas as experiências e/ou interações que o corpo (cérebro-mente) tem com o mundo. Nosso «eu», “nuestro mí mismo, nuestra autoimagen y nuestro sentimiento de autovalía solo existen como un abracadabra en el cerebro” (R. D. Precht). E o que outros percebem de nós é somente um envoltório: nosso corpo, nossas miradas, movimentos e palavras. Nunca, jamais, nosso «eu».2 O que fazem os demais é formar-se uma imagem própria de nosso «eu». Às vezes nos reconhecemos nas descrições que outros fazem acerca de nós; às vezes menos e às vezes nada em absoluto. Mas um standard objetivo, uma instância imparcial ou um «eu» concreto, que pudera fazer de essência ou servir como modelo,

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Vilayanur Ramachandran, por exemplo, crê que o «eu» não é uma propriedade holística de todo o cérebro, senão que surge da atividade de séries de circuitos que estão distribuídos por todo o cérebro e interconectados entre si. 2 Nas palavras do poeta William Butler Yates, dito com tom certamente dramático: “La tragedia de la relación sexual es la perpetua virginidad del alma”.

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não há3. Pois, não nos vemos também nós mesmos de um momento a outro diferentes

ou

experimentamos

câmbios

frequentes

de

personalidade

e

comportamento? Não dependem sempre nossa autoimagem, nosso sentimento de autovalia e nossos câmbios cotidianos de conduta de situações e estados de ânimo? Não é precisamente por isto pelo que atuamos, assumimos distintos papéis, vivemos à altura de nossas expectativas e, desse modo, nos reinventamos continuamente? Por acaso o que chamamos «stress» não é um “simples” conflito ou um desequilíbrio que com frequência tem lugar entre nossos discrepantes desejos e nossas possibilidades, ou melhor, entre nossas contraditórias emoções, nossos pensamentos discordantes e nossa débil razão? Por que, em termos subjetivos, parece existir um imutável núcleo ou “centro de gravidade narrativo” (D. Dennet) responsável por nossos pensamentos e experiências? Como é possível que sem estar divididos consigamos conviver com nossos dissociados e às vezes contraditórios (entre si) «eus»? E já que estamos: Podemos afirmar categoricamente que existe um «eu» autêntico? Não, não podemos, a não ser que abracemos cega e insensatamente algumas das ideias da larga lista de «ciências vudus» em voga no momento (ou de uma “alma imortal” como um empréstimo divino). Nosso «eu» é, definitivamente, um material muito volátil: não é uma unidade invariável, determinada e claramente delimitada. Já 3

Nosso círculo de amigos nos vê de outro modo que nossos colegas de trabalho ou nossos vizinhos. Também nos desagregamos em muitos papéis diferentes e há partes de nossa humanidade que não deixamos de ocultar (nossa própria negatividade, os desejos inconfessáveis que nos habitam e que reprimimos, nosso lado escuro). Meu currículo, por exemplo, já me desglosa em muitas categorias distintas (procurador, professor, investigador, etc.) e esta é uma seleção muito reduzida. Como ser humano estou neste mundo com apuros e necessidades muito diferentes que como “colunista” ou “escritor”; e meus filhos me percebem de modo distinto que meus amigos, que a gente em uma sala de aula ou as pessoas que leem meus artigos. Em outras palavras: os conhecimentos, limitados em cada caso, de outros sobre nosso «eu» - que se amontoam sem chegar quase nunca a formar uma imagem completa - “confluyen pocas veces en uno. El peligro de un balance total es muy escaso” (H. Popitz). E posto que o risco de que outras pessoas nos conheçam e se adentrem em nós é mínimo, podemos jogar diferentes roles sociais ou morais, adornar nossa imagem e permitir-nos (consciente ou inconscientemente) mais contradições. Depois de tudo, a onisciência, para o bem ou para o mal, não é possível nem desejável na vida diária, porque nosso «eu» não pode suportar estar exposto a uma perfeita e absoluta transparência de comportamento sem parecer ridículo, necessita algo de penumbra: “¿Quiere usted que su mujer y sus hijos le conozcan tal como es y le honren en su justo valor? Si es así, amigo mío, usted vivirá en una casa triste y frío será su dulce hogar (...) ¿No te creerás que eres como les pareces?” (W. M. Thackeray). Voltarei a esta questão mais adiante.

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seja projetado por nós mesmos ou por outros, o «eu» não é uma entidade real, senão uma ideia que nos fazemos: uma função do cérebro; “um estado funcional do cérebro e nada mais, nem nada menos” (R. L. Llinás); um complexo mecanismo eletroquímico, uma ideia construída pela atividade fisiológica dos tecidos cerebrais como todas as demais ideias, “sin ninguna connotación especial más allá de cómo lo hace con otras ideas” (F. Mora). David Hume e Ernst Mach tinham toda a razão: “¡El yo es insalvable!... ¡El yo es uma ilusión!”. A causa disso não é difícil de encontrar. Na história da evolução do ser humano nunca foi necessário um «eu» fixo, inamovível e substancial. De modo que não se produziu algo assim. Como tampouco nenhum sentido de centro do «eu» ou de elemento material ou espiritual com sede no cérebro. Claro que nossa consciência é (quiçá) o que há de mais fascinante no reino animal. Mas para sobreviver na savana, para competir com êxito na complexidade de um estilo de vida essencialmente social, o realmente importante para nossa espécie era aprender4 a entender mais ou menos o que pensava, construir modelos da mente e poder predizer a conduta do inimigo mais formidável, o mais imprevisível e inteligente que encontrou: o próprio ser humano. Não estou negando em modo algum a importância, a necessidade e/ou utilidade de crer que há um único «eu» no interior da mente, “un ego discreto que se agazape en nuestro interior a la manera de un Minotauro en el laberinto del cerebro” (S. Harris). O que digo é que, dada nossa peculiar capacidade de gerar pensamentos e representações que nos superam sensivelmente e de conceber coisas que de fato não existem, nosso sentido do «eu» é uma construção que tem suas raízes nas narrativas baixo as quais opera nosso cérebro, narrativas que servem para que nos movamos pela vida com a convicção necessária para defender e/ou modificar nossos pontos de vista, nossos sentimentos, nossos desejos e nossas condutas, a fim de acomodar-nos às circunstâncias em que nos encontramos. O mito é a existência de um «eu» separável da função cerebral (R. L. Llinás): somos os únicos fabricantes dos significados e do sentido (ou «sem-sentido») que damos à nossa ideia do «eu» tampouco caberia esperar outra coisa de uma espécie cujo «ego» luta incessante e

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Somos uma espécie maldita que tem que aprender tudo, inclusive a amar e a fazer amor.

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encarniçadamente por afirmar e defender sua existência, sua autoimagem, sua autoestima, sua honra e suas idiossincrasias. 5 Mas há algo mais. Nosso «eu» não é somente uma representação, senão também um conjunto inteiro de representações mutuamente contraditórias6. O problema é que, como temos recordos (memórias biográficas), tendemos a pensar que somos a mesma pessoa ao largo da vida, quando em realidade somos muitas diferentes. O que chamamos identidade, explica Erving Goffman, se dissocia em muitos roles diferentes. O motivo é bastante simples: como seres vivos que têm intenções e podem reconhecer intenções em outros nos sentimos sempre observados (analisados ou valorados) e, dessa forma, nunca somos completamente autênticos7; isto é, como “hacer y ser no son nunca lo mismo en la naturaleza del ser 5

Por isso, quando alguém me diz seriamente: "Sei o que sou, o que quero e o que recordo", me encanta pensar: "Não, não o sabes". Não temos ideia de “por que” fazemos o que fazemos (posto que carecemos de acesso integral aos processos inconscientes que determinam nossas ações e decisões, e tratamos de inventar razões plausíveis depois do fato) e nem sequer podemos confiar em nossos recordos (uma vez que são reconstruídos cada vez que acedemos a eles, e podem chegar a deformar-se ou contaminar-se com outros recordos). Grande parte do que percebemos, recordamos, pensamos ou processamos o inventa alegremente nosso cérebro, modificando as instantâneas da realidade como se dispusera de um sofisticado PhotoShop. Nossas memórias (indispensáveis para eleger, interpretar e decidir) em realidade são reconstruções e não autênticos reflexos do que aconteceu, nossas interpretações do mundo distam muito de serem impecáveis e nossa razão, com seus processos de eleição e decisão, não funciona sem a força dos mecanismos da regulação biológica, da que as emoções e os sentimentos são expressão. Por dizê-lo de alguma maneira mais simples: nossa percepção e nossa memória tomam do mundo circundante aspectos significativos e os transformam, armazenam, evocam, transformam de novo e voltam a armazenar de forma reiterada. O fato é que não sabemos grande parte do que cremos saber. Simplesmente não entendemos. Como disse em certa ocasião Bobby Fischer: “Me gusta ese momento en que quiebro el ego de mi rival.” 6 “Todas las contradicciones se dan en mí *…+ Vergonzoso, insolente; casto, lujurioso; charlatán, taciturno; duro, delicado *…+ y cualquiera que se estudie bien atentamente hallará en sí mismo, e incluso en su propio entendimiento, esta volubilidad y discordancia.” (Montaigne) 7 De fato, dado que nosso mundo são os demais - e frente a eles nos jogamos nossa imagem e reputação, nossos maiores e mais apreciados bens -, não somente nos importa e afeta muito a opinião que tenham ou o que pensam de nós (por isso há um tipo de informação que nos interessa sobre todas as demais: as informações sobre nós mesmos), senão que – precisamente por isso - poucas vezes na vida do que se trata é de impor sempre e em todo momento nosso «eu autêntico» (não gostamos de parecer tontos). E mais: os seres humanos se definem a si mesmos comparando-se com os demais, e a maioria dessas comparações sucedem de forma arbitrária, espontânea e inconsciente – quer dizer, se produzem de modo caprichoso, suave e com frequência apenas perceptível (T. Mussweiler). Para Susan Fiske, “los seres humanos nos estamos comparando continuamente, somos unas máquinas de compararnos”. Em verdade, tudo o que sabemos sobre nós mesmos (nosso «eu») o sabemos

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humano”, tratamos constantemente de convencer-nos de algo, nos apresentamos como algo e aparentamos ser algo. (E. Goffman) Por quê? Pois porque o contexto importa. E se o «eu» depende do contexto, então temos que especificar nossos «eus» segundo o contexto; quero dizer, cada um dos distintos contextos em que nos movemos conforma um «eu» em particular: nosso cônjuge espera de nós outro comportamento que nosso chefe e o papel que representamos frente a nossos filhos não é o mesmo que em uma conferência ante o público. E não é inteligente nem sensato mesclar todas essas coisas que se originam de psicologias deveras diferentes. O que implica que nossa ânsia de continuidade (coerência ou uniformidade), ávida de paradoxos e tão aborrecidamente emocionante como velar o crescimento de uma planta, desaparece ante nossos «eus» impermanentes e diferenciados para tratar com circunstâncias qualitativamente distintas8. Segundo Douglas T. Kenrick, quando estamos baixo a influência de uma motivação fundamental determinada, somos uma pessoa diferente em cada caso, percebemos as coisas de maneiras distintas, recordamos coisas diversas e respondemos de modo díspar à cada situação9. Embora os indivíduos lutem para manter a congruência entre seus «eus», por intercâmbio e em comparação com outros. Sabemos quem somos porque sabemos o que não somos; e porque sabemos ou imaginamos como nos veem os demais. Toda a vida social do nosso «eu» é uma série quase infinita de comparações: “El comparativo categórico es innato en el ser humano, el imperativo categórico no”. (R. D. Precht) 8 V. Ramachandran fala de diversos «eus», ou ao menos de distintos aspectos do «eu», como, por exemplo, o sentido de unidade, a multitude de sensações e crenças, o sentido da continuidade no tempo, o controle das próprias ações (este último relacionado com o tema da liberdade ou livre-arbítrio), o sentido de estar situado no corpo, o sentido da própria valia, da dignidade e da mortalidade (ou imortalidade). Cada um destes aspectos pode estar mediado por centros diferentes em distintas partes do cérebro e que, por conveniência, os agrupamos a todos em uma única palavra: «Eu». 9 “Las investigaciones realizadas por diversas subdisciplinas de la psicología sugieren que eso que llamamos yo es una ilusión y que cada uno de nosotros posee varios “subyoes”. La creencia de que tenemos un único yo es falsa. De hecho, tenemos múltiples identidades, o “subyoes”. Cada uno de nosotros tiene un conjunto de “subyoes” funcionales, uno dedicado a llevarse bien con nuestros amigos, otro a la autoprotección, otro a ganar estatus, otro a encontrar compañeros, etc. El cerebro humano no usa el mismo conjunto de reglas para tomar decisiones acerca de las diferentes personas de nuestra vida. Puede ser hasta un error hablar “del cerebro” como si fuera un único órgano que sostiene nuestro yo. Por contra, tiene más sentido imaginarnos a cada uno de nosotros como una confederación de “subyoes” modulares dentro de nuestra cabeza, cada uno controlado por una combinación diferente de hardware y software (común a veces) y especializado en hacer una cosa bien. En cualquier momento dado de conciencia solo uno de estos “subyoes” se encarga del show; otras veces

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suas percepções das próprias ações e suas impressões de como os outros lhes percebem, o ser humano, tal e como enunciou William James, “tiene tantos yos sociales como grupos distintos de personas cuya opinión le importa”. Por esse motivo no mundo em que vivemos há cristãos que na Igreja veneram a um Jesus (cujo Pai - que também é Ele mesmo – é o exemplo supremo e absoluto de «eus múltiplos» e de «abandono afetivo») que é amor e em casa castigam a seus filhos ou fustigam a seus cônjuges. Há pessoas que por seu trabalho enganam sem cessar, mas têm grandes escrúpulos em fazer o mesmo a seus amigos. Há pessoas que em um pequeno círculo são valentes e em público miram para outro lado e calam a boca. Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, parece que não tinha problema algum em encomiar o bom no ser humano e abandonar seus numerosos filhos em um orfanato. E o grande Sigmund Freud, que sabia mais que muitos de seus contemporâneos sobre “la sensible psique de los niños, prefirió a uno de sus hijos sobre los demás y a menudo brillaba por su ausencia en las tareas familiares”. (R. D. Precht) Tampouco o meu «eu de hoje» é em absoluto o (meu) mesmo «eu de ontem» (Adam Smith), nem o «eu» que mira desde a foto de há 10 anos. Já não somos os mesmos de há 10 anos atrás, não pensamos da mesma forma, não amamos ou odiamos as mesmas pessoas, não queremos as mesmas coisas e não fomentamos os mesmos sonhos10. Não somos os mesmos quando atuamos em solitário ou quando o los diferentes “subyoes” tienen objetivos incompatibles” (D. T. Kenrick; Colin Martindale; L. Carter). Por certo, se está começando a aceitar a ideia de que o cérebro humano não encaixa na visão burocrática de um sistema com um controle hierárquico e muito bem organizado onde tudo está em ordem: se parece mais a uma anarquia com alguns elementos de democracia. Quer dizer, dado que todos os neurônios estão presos no cérebro, são células encarceradas, estes neurônios competem entre si para sobreviver, para ter influência. E isto prepara o terreno para a cooperação e as alianças. Às vezes pode lograr um estado de estabilidade e ajuda mútua, uma espécie de frente único e em calma, e tudo marcha sobre rodas; mas também é possível que as coisas se torçam, que alguma aliança se faça com o controle e acabemos sofrendo obsessões, delírios ou outros transtornos. Parece que a mente normal bem afinada, quer dizer, a mente organizada, não é o estado mental básico, senão que é um logro que somente se alcança quando tudo segue com normalidade. Isto supõe uma arquitetura e funcionamento cerebral muito diferente e quiçá o segredo de nossos estados de consciência: uma organização mais livre e anárquica, e que o preço que pagamos por isso é a vulnerabilidade às ilusões, a incoerência de nossas emoções, a ocorrência de “sesgos cogitivos”, a debilidade da razão, etc...etc. (D. Dennett; Sebastian Young) 10 E logo estão as promessas... Realmente podemos prometer? Estamos imunes às multiplicidades e contradições de nosso «eu», por exemplo, em nossas relações conjugais?

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fazemos em grupo, quando estamos entre amigos ou entre pessoas desconhecidas, quando nos encontramos em uma situação romântica ou em um ambiente de trabalho, quando estamos entre familiares ou em um evento social, etc...etc. Isto significa que nos iluminamos desde a perspectiva do contexto e do papel que estamos desempenhando em cada momento. O gracioso é que ao fazê-lo nos identificamos mais com o papel que com nós mesmos, com nosso maldito «eu».11 Portanto, apesar de que operamos baixo essa ilusão de um «eu» único, inerte, contínuo e invariável, cada um de nós alberga em nosso interior uma multiplicidade de «eus». Já disse Montaigne que «estamos por entero hechos de pedazos, y nuestra Inclusive hoje se promete amor até que “a «vida» nos separe, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza...”, segundo famosa formulação. Mas, está obrigado o “homem de hoje” por aquela promessa que fez à “mulher do passado”, a uma jovem esbelta e alegre com quem falava da filosofia existencialista de Sartre, e que agora, amargada e multiatarefada, se passa a maior parte do tempo “conectada” e ocupada com a vida dos demais, mirando e “atualizando” Facebook, Instagram, Twitter... ou vendo novelas? Ou, está obrigada a “mujer de hoje” pela promessa que fez ao “homem do passado”, a um jovem atencioso, sobrecarregado de ambição, sonhos e projetos de futuro, e que agora se converteu em uma criatura obesa, egocêntrica e narcisista a quem só interessa a ociosidade inútil, a “boa” culinária e o bobo palavreado compartido com amigos reais ou virtuais?". 11 A ideia de que o «eu» é uma maldição é de Mark R. Leary: “En un sentido estricto, todos somos egocéntricos. Esto se debe a que el centro de nuestro cosmos siempre es un YO, un ego. Se trata de algo física y mentalmente insoslayable. El problema es que nuestro natural egocentrismo puede hipertrofiarse hasta degenerar en una obsesión egocéntrica: el Yo hipertrofiado es sin ningún género de dudas una maldición. Y las formas en que la gente se sirve para representar uno o varios papeles ante los demás, el modo en que piensa acerca de sí misma y se "habla" a sí misma en su propia mente crean una gran cantidad de sufrimiento innecesario y de infelicidad. Por ejemplo, la gente reproduce acontecimientos de su pasado y se preocupa por acontecimientos futuros, aun cuando hacerlo no sirva a ningún propósito útil. Por supuesto, la capacidad para pensar sobre el pasado y el futuro puede ser útil a veces, pero todo el mundo la exagera, generando una gran cantidad de estrés e infelicidad no relacionados con la calidad real de sus vidas. De igual forma, las evaluaciones mentales que hacen las personas de sí mismas crean una serie de problemas, y sus esfuerzos por defender sus egos pueden conducirles a conductas inadaptadas y dañar sus relaciones con otras personas. Además, los esfuerzos que hacen la gente para proyectar ciertas imágenes de sí mismos en los otros les pueden llevar a comportarse peligrosamente. En resumen, aunque la capacidad de pensar centrado en el yo es esencial, crea asimismo muchos problemas en la vida cotidiana de las personas.” Ou seja, apesar de que a impressão de um «eu» que temos a maior parte do tempo nos resulta indispensável, que é o fundamento de todo um conjunto de “capacidades añadidas que son justamente las que nos hace humanos” (S. Harris) e que constitui a substância mesma de todas e cada uma de nossas relações sociais, o fato de que nos identifiquemos habitualmente com o incessante fluxo dos pensamentos e sensações isto é, a incapacidade para precatar-nos de que os pensamentos e sensações gerados pelo cérebro são efetivamente isso, pensamentos e sensações, fugazes e contraditórias aparições no campo da consciência – é a principal e mais relevante fonte do sofrimento, da desgraça e da confusão humana.

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contextura es tan informe y variada que cada pieza, cada momento, desempeña su papel. Y la diferencia que hay entre nosotros y nosotros mismos es tanta como la que hay entre nosotros y los demás». E não se trata de uma curiosa aberração, senão o estado natural do ser humano e que é em si mesmo uma fonte positiva para a constituição do «eu», porque dá lugar a que este se transforme, se modifique e se aprimore.12 Dito de outro modo: a continuidade do «eu» de que tanto presumimos, a impressão de que seguimos sendo uma e a mesma pessoa, nada mais é que um fluxo de pensamentos e sensações no cérebro que mantém um ativo intercâmbio com os elementos do mundo exterior, de algo que “hemos creado (como una creación de la fantasía) para dar cuenta de la multiplicidad de impresiones, emociones, pensamientos y sensaciones que el cerebro registra en la consciencia” (M. Csikszentmihalyi). O «eu» não tem centro, está em movimento perpétuo e é esta fluidez o que lhe dá um sentido de valor. (E. Illouz) Nem sequer o que chamamos personalidade é algo fixo, coerente e individual; mais bem somos múltiples atores representando uma obra de teatro, já que estamos conformados por várias personalidades que se mantêm unidas graças a recordos comuns, como explica Rita Carter em seu livro Multiplicity. Nosso caráter não é a ilustração de uma propriedade, senão um conjunto de contradições. Na imagem que temos de nós mesmos – a agência moral de nosso «eu» – intervém ao mesmo tempo, de modo dificilmente discernível, sentimentos, considerações e circunstâncias. É nossa forma de adaptar-nos às novas situações, quer dizer, «cuantas más personalidades tributarias poseamos» melhor dotados estaremos para enfrentar-nos 12

“Tener un modelo de sí mismo significa tener éxito en un entorno determinado. Empieza con propiedades muy simples: necesitas saber hasta dónde puedes saltar, qué puede hacer tu cuerpo, lo grande que eres y dónde están tus límites, de modo que no te empieces a comer tus propias piernas, como de hecho hacían algunos animales primitivos, o como hacen ciertas personas con trastornos psiquiátricos. La pregunta es qué es lo que hace que un modelo del yo sea bueno. Puede que sea eficaz para tener un montón de hijos y nietos, o apropiado en relación con determinado entorno social. Cuando estás de juerga con tus amigos el sábado a las dos de la madrugada sueles tener un modelo del yo diferente que cuando estás desayunando en casa de tus padres a las diez de la mañana del día siguiente. Así que de hecho puede ser un signo de buena salud mental presentar varianza en tu modelo del yo, tener diferentes ego-experiencias, diferentes identidades fenoménicas conscientes en contextos sociales diversos; pero eso también puede descontrolarse, como en los casos de trastorno de personalidad múltiple, o en los políticos”. (T. Metzinger)

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às situações inesperadas (P. Linville); “un brilhante mecanismo de la mente que nos ayuda a desenvolvernos en un mundo en transformación”.(L. Carter) Nos enganamos continuamente, porque atuamos acreditando que somos de uma única peça, quando em realidade somos uma sucessão de fragmentos. Não existe nenhuma região do córtex cerebral nem nenhuma via de processamento neural central que ocupe uma posição privilegiada em relação com nossa personalidade, senão muitos estados distintos do «eu», elaborados pelo cérebro, “em um ensaio de continuidades” (Hume): estados funcionais gerados pelo cérebro ou padrões mentais emergentes que têm muitos aspectos, mudam continuamente e variam segundo as circunstâncias - daí a sugestão de introduzir um pequeno câmbio à famosa tese orteguiana: «Yo soy yo [y mis yos sucesivos] y mis circunstancias, y si no los salvo a ellos tampoco me salvo yo». Por isso nunca somos aceitos como tais na anelada e cândida autenticidade de nossa aparição: nossos micromundos e microidentidades não formam um único e autêntico «eu», senão que surgem e se extinguem em uma sucessão de pautas cambiantes (F. Varela)13. Como expressou Jean-Jacques Rousseau: «Nada hay más diferente de mí que yo mismo. [...] Y lo que me saca de quicio es tener que legitimar mi multiplicidad dentro de la unidad, es tener que explicar el extraño y singular agregado de (mi) alma»; ou, parafraseando a Miguel de Unamuno: «Quando dos personas se encuentran no hay dos, sino seis personas: una es como uno cree que es, otra como el otro lo percibe y otra como realmente es; esto multiplicado por dos da seis».

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Francisco Varela sustentou, entre outras coisas, que a ciência cognitiva “ya ha descubierto que la percepción de nuestra mente como una entidade unificada es una ilusión impuesta sobre nosotros por nuestros cerebros inteligentes”. Uma ilusão que nasce de nosso desejo narcisista de crer que somos especiais, da falaz euforia egocêntrica de que entre tantíssimas pessoas como existem, somos, de alguma maneira, diferente de todas. Temos algo de extraordinário, de invulgar, ainda que não sejamos consciente dele. Um it esquivo, um fator “X”, um «eu» único. E o intuímos, percebemos que “está aí” e sentimos no fundo de nossa alma. Não é um talento, uma quimera nem uma virtude. É outra coisa, algo singular e inefável. Um asterisco invisível que pende sobre nossa cabeça, como o protagonista de um “videogame”. Louca sabedoria!

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Por isso também nos conhecemos tão pouco ou nos desconhecemos tanto14. Primeiro, porque nossa espécie não está feita para meditar sobre si mesma ou para conhecer-se de memória por dentro e por fora; e o sentido, o significado ou a importância que damos às nossas percepções, sensações e representações não são mais que interpretações «que nosotros ponemos en ellas»: e sempre buscamos uma interpretação ou um resultado com o que possamos viver em paz e sentir-se bem consigo mesmo (nosso «tribunal interior» não é nem com muito tão neutral como o sonhou Kant). Segundo, porque o problema de conhecer-se a si mesmo é que se trata de uma experiência fundamentalmente introspectiva, e as histórias que nos contamos a nós mesmos sobre como somos frequentemente soem estar bastante distantes da realidade, distorcidas, fragmentadas e construídas por uma percepção distorcida, fragmentada e construída, todas contextuais, rodeadas e atravessadas por pensamentos fundados em ilusões ou «sesgos» cognitivos, inclinações pessoais e apofenias, em mitos culturais e valores sociais de grupo, em estereótipos tomados voluntária ou involuntariamente e em crenças, dogmas ou explicações falsas, mas amplamente divulgadas e admitidas. Nosso «eu» fictício, recorda John Gray, “es una construcción frágil y la vida interior es demasiado sutil y fugaz como para resultar cognoscible por sí misma”. 15 Em resumo: estamos desenhados para perceber identidade em nós mesmos, quando, em realidade, o único que há é câmbio. Estamos configurados para aceitar a ilusão do «eu» que, como construção ou função cerebral, não tem uma localização exata no cérebro. O «eu» está vazio de natureza própria, desprovido de substancialidade tangível e existem distintos tipos de «eu» ou de consciência16. Seus 14

Dito seja incidentalmente e de passagem que o fato de não conhecer-nos a nós mesmos tão bem como desejaram Sócrates, Aristóteles ou Kant que se conhecera a si mesmo o ser humano, não deixa de ser uma enorme vantagem (de desempenhar algum papel importante ou ter algum valor adaptativo). Em uma sociedade que adora a “autenticidade”, cultua a integridade e venera a beleza como nenhuma outra, o autoengano, a mirada turva ou deturpada de si mesmo, tanto no aspecto físico como no moral e/ou intelectual, é muitas vezes toda uma bendição. 15 Tal como lamentaram recentemente Richard Davidson e o Alfred Kaszniak: "Todavía hay muy pocos estudios metodológicamente rigurosos que demuestren la eficacia de las intervenciones basadas en la introspección, ya sea para el tratamiento de enfermedades específicas o en la promoción del bienestar". 16 Também no que concerne ao próprio sentimento de felicidade (a diferença entre experienciar instantes felizes e sentir-se feliz ao pensar na vida), não há um único «eu»

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limites não são fixos e tanto certos experimentos como a patologia mostram sua fragilidade. A noção segundo a qual nossas vidas são guiadas por um homúnculo – uma classe de pessoa interior que dirige nosso comportamento – é reflexo de nossa capacidade para ver-nos a nós mesmos desde o exterior. Projetamos um «eu» em nossas ações porque ao fazê-lo podemos explicar a aparente coerência destas. Em muitos casos, as continuidades que encontramos não são mais que imaginárias, mas quando são reais “no se debe a que nadie las haya puesto ahí” (J. Gray). Também é curioso o fato de que atribuamos ao «eu» a maioria da atividade cerebral, quando em realidade o «eu» racional é uma instância tardia em comparação com o inconsciente que governa a imensa maioria de nossa atividade cerebral ao serviço da sobrevivência. Falta conhecer por que é gerado esse «eu» unificado pelo cérebro, e qual é sua verdadeira finalidade. Para terminar, um conselho de cautela epistemológica: descobrir nosso «eu» ao outro, com toda “clareza” e “franqueza”, para que este também se desvele integralmente ante nós, resulta ingênuo, enganoso e decepcionante ao mesmo tempo. Supõe, ilusão suprema, «que uno se conoce, que uno es de una pieza y que el contacto con el otro o con el mundo no nos modificará, nos confirmará en nuestro ser» (P. Bruckner). Apresentar-se deste modo - «isto é o que sou e serei para sempre jamais» – não é revelar-se, senão ocultar-se, petrificar-se em uma imagem. Por um curioso contra-senso, este tipo de extremismo de “sincera transparência” se transfigura no colmo da mentira: «o se le miente al otro, pues uno siempre cambia a su pesar; o se miente uno a sí mismo negándose a admitir el cambio». Triste sinceridade, porque quem crê que pode confiar-se a seu próprio e inalterável «eu» em cada situação vital que experimenta; e confundir a experiência com a memória da mesma é uma poderosa ilusão cognitiva. Para explicar a confusão entre experiências e memórias felizes, Daniel Kahneman (Nobel 2002), por exemplo, diz que habitam em nós dois «eus» muito diferentes e em permanente conflito (e a maior diferença entre eles é em seu tratamento do tempo). O primeiro é o «eu que tem experiências» ou o «eu do presente». É a parte de nós que vive no presente, sentindo dor e prazer em instantes sucessivos; o «eu» que vive a cotidianidade e o que experimenta os diferentes graus de felicidade sem dar-se conta: desconhece o passado e não pensa no futuro; vive fugazmente. Nosso outro «eu» é o «eu que recorda», o «eu» que mantém a história de nossa vida e decide que ou quanto de tão feliz crê (o quer crer) que somos; é um narrador de histórias e o único ademais que toma decisões. É a parte de nós que tem memória e julga as coisas (o «eu» que responderá se alguém pergunta como nos sentimos ultimamente).

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delata uma insana fantasia ou é uma pessoa demasiado estranha, miseravelmente afetada pela “síndrome de baixo rendimento crônico” (estupidez).

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