Sobre o modo de existencia dos coletivos extramodernos

June 9, 2017 | Autor: E. Viveiros de Ca... | Categoria: Antropologia, Filosofia
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Sobre os modos de existência dos coletivos extramodernos: Bruno Latour e as cosmopolíticas ameríndias (projeto de pesquisa)

O presente projeto dá continuidade à meta e inspiração teóricas mais amplas de meu trabalho recente: investigar as implicações, efeitos e impactos epistemo-políticos, do ponto de vista da antropologia como disciplina acadêmica, das “cosmopolíticas” ou “(contra-)ontologias práticas” dos povos indígenas do continente sul-americano, tomados estes como exemplo ou instanciação etnográfica local da condição dos coletivos extramodernos no mundo contemporâneo. Trata-se aqui de perseguir este objetivo por uma via, à primeira vista, pouco usual — pela constatação da ausência desta questão naquele que pode ser considerado um dos estudos de antropologia (na verdade, um vai-e-vem transcategorial entre a antropologia empírica e a metafísica especulativa) mais importantes produzidos no século que se inicia, a monumental síntese Enquête sur les modes d’existence: une anthropologie des Modernes, de Bruno Latour, tratado vindo à luz na França em 2012 e já traduzido nas duas línguas dominantes do Ocidente, o inglês e o espanhol.1 Minha intenção é, assim, realizar uma análise fina (um close reading, como dizem os críticos literários) de Enquête sur les modes d’existence, seus antecedentes e condicionantes, seus desenvolvimentos paralelos e seus desdobramentos2, de modo a

1 Latour 2012. Ver a apreciação do livro feita de um ponto de vista filosófico (mas fortemente marcado pela antropologia — pelo estruturalismo de Lévi-Strauss, em particular) por Maniglier 2012. Patrice Maniglier, professor da Universidade de Nanterre, é um dos principais colaboradores (e incentivadores) do presente proponente tanto no que respeita à retomada da antropologia lévi-straussiana como à empresa de repensar as relações entre antropologia e filosofia, e em particular de reivindicar para a antropologia um papel axial na reconstrução da metafísica “filosófica” como empresa necessariamente comparativa.

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Entre os quais se destaca a versão do livro transposta para o AIME, uma grande plataforma digital colaborativa bilingue (inglês/francês), envolvendo dezenas de pesquisadores — antropólogos, filósofos, teólogos, juristas, matemáticos, biólogos, economista. O site AIME (http://www.modesofexistence.org/) traz o texto da Enquête e uma quantidade de outras contribuições, como uma bibliografia e um aparelho de notas (dois componentes que não foram publicados na versão em livro da Enquête), um valioso glossário, além de extensas discussões e críticas dos colaboradores do AIME, de links para textos e outros materiais relevantes, bem como os desenvolvimentos mais recentes do projeto.

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poder avaliar tanto antropológica como etnograficamente a consistência daquilo que Bruno Latour denomina “modos de existência”, e que outros talvez chamassem ontologias regionais, práticas consolidadas de sentido ou regimes específicos de veredicção reconhecidos — prática ou oficiosamente antes que institucional ou oficialmente — pela cosmologia hegemônica da Modernidade ocidental e seu projeto de extensão universal (a “modernização”). Trata-se de avaliar esta consistência, em particular mas não exclusivamente, de um ponto de vista comparativo, isto é, da perspectiva do que poderiam ser os modos de existência dos outros “coletivos” (um termo técnico latouriano), aqueles coletivos não-modernos ou, como prefiro designálos, extramodernos, uma vez que a noção de “não-moderno”, frequente na pena de Latour, tende a assumir irresistivelmente (e ao revés das intenções deste autor) um viés evolucionista que a torna sinônima de pré-moderno, primitivo, atrasado, tradicional, ou, como se dizia nos velhos tempos, “subdesenvolvido”. O prefixo extra-, assim, marca exterioridade, não superlatividade (como se se pretendesse “compensar” a conotação privativa do conceito de não-moderno), em relação ao regime ontológico (re)descrito por Bruno Latour nessa antropologia dos Modernos que é a Enquête.3 Dada minha formação como etnólogo dos povos autóctones das terras baixas da América do Sul, interesso-me pelos portadores daquilo que Robert Redfield chamava de “Pequenas Tradições”, os ethnoi e demais coletivos extramodernos ou terranos4 que insistem em existir — que “rexistem” — sem se considerar absolutamente representados pelos Estados nacionais territoriais que os submeteram a uma heteronomia político-cultural e a uma “racionalização” econômica e ideológica impostas, quase invariavelmente, a ferro e a fogo. Esses povos menores, no sentido que Milles Plateaux dá ao conceito, assistem com uma ansiedade e uma perplexidade não isentas de desdém aos estertores agônicos do nomos europeu e à passagem de bastão da ofensiva modernizadora para as “Grandes Tradições” do extremo oriental da Eurásia. Mas eis também que eles agora se vêem, não sem pequena surpresa, chamados a vir em socorro dos velhos Modernos subitamente 3 Nesta exposição, vou-me restringir à versão publicada em livro do projeto AIME (ver a nota anterior), deixando de lado, por exigir um esforço de reflexão que só poderá ser feito no decorrer mesmo da pesquisa, o “modo de existência” da antropologia latouriana dos Modernos em sua forma colaborativa e multi-autoral da plataforma digital.

4 Para o conceito de “terrano”, ver Danowski & Viveiros de Castro 2015.

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extenuados, acossados como se acham, de um lado, pelos novos Modernos do Oriente (e, como gostamos de imaginar aqui no Brasil, do Sul)— que aplicam as lições aprendidas da Europa literalmente with a vengeance —, e, de outro lado, pela “intrusão de Gaia”,5 essa potência estranha que passou da posição passivamente indiferente de pano de fundo das proezas taumatúrgicas dos Modernos (também chamados ironicamente por Latour de “Humanos”)6 à posição de protagonista ameaçador, tanto mais mortalmente imprevisível quanto mais ativamente indiferente a nós ela se mostra. Pois “Gaia”, a Terra, sequer reage às ações da espécie ou de seus “representantes” (as megacorporações industriais e os Estados soberanos) — ela apenas as registra implacavelmente. Estamos falando, bem entendido, da catástrofe climática que se abate sobre o planeta, amplamente documentada pelas ciências biogeofísicas, uma situação que tornou popular o termo “Antropoceno” como designação da nova época geológica (alguns falam mesmo em nova era geológica) iniciada com o advento da Revolução Industrial, mas cujos efeitos mais dramáticos passaram a se fazer sentir a partir de meados do século passado.7 É com tais reflexões que se encerra a Enquête sur les modes d’existence: com uma exortação para que o Ocidente venha “buscar o socorro daqueles outros coletivos cujas competências haviam sido rejeitadas, por crermos que nosso primeiro dever era, antes de mais nada, fazê-los sair de seu arcaísmo, modernizando-os” E isso precisa ser feito ”antes que seja tarde demais, antes que a modernização não se tenha implantado (abatido, frappé) igualmente em toda parte” (Latour 2012: 480-81). Antes, portanto, que o mundo acabe, antes que Gaia desabe sobre todos nós, franceses e chineses, yanomamis e maoris — sem esquecer os bilhões de outros (con)viventes que ainda não conseguimos varrer da face do planeta. Obedeçamos então a essa exortação in extremis de Latour e perguntemo-nos sobre as consequências da reforma da ontologia da modernidade realizada nesse livro realmente extraordinário que é a Enquête (doravante EME) para a redefinição dos termos de negociação entre os antigos senhores da Terra e os coletivos deixados por conta, os povos da Terra, aqueles que nunca saíram dela em busca de qualquer

5 Stengers 2009. 6 Em oposição, precisamente, a “Terranos” (Latour 2013a, Danowski & Viveiros de Castro op.cit.). 7 Chakrabarty 2009.

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transcendência ou condição de exceção, teológicas ou antropológicas, e que portanto não têm qualquer necessidade de “voltar à Terra” (revenir sur Terre). O primeiro e, para nossos propósitos, ponto fundamental a notar é que o livro termina antes de encarar de frente essa noção crucial de EME, a da diplomacia, no que concerne precisamente às “relações exteriores” dos Modernos. Pois o livro passa suas 500 páginas quase inteiramente voltado, à parte curtas digressões meramente indicativas, para a diplomacia interna, a pacificação da guerra civil entre os modos de existência admitidos no espaço prático-institucional do Ocidente8 — digo admitidos antes que estabelecidos oficialmente, visto que todo o trabalho do autor consiste justamente em reinstaurar nas formas devidas os requisitos ontológicos de cada modo. É como se a etnóloga ficcional que conduz retoricamente a narrativa de EME desse seu trabalho por encerrado ao escrever sua antropologia dos Modernos, cabendo então aos etnólogos concretos dos povos extramodernos (i.e. os observadores de “carne e osso” ou “reais”, um dentre os quinze modos de existência, aliás, estabelecidos por EME) a tarefa de se indagar sobre a adequação dos modos de existência que compõem a ontologia moderna — sua universalidade variável, sua exportabilidade mais ou menos direta, sua especificidade suficiente ou excessiva, e assim por diante — para o caso dos outros coletivos, aqueles que a modernização ainda não infectou irreversivelmente. Trata-se então de começar a começar, por assim dizer, a integrar a “investigação coletiva” de antropologia comparada cuja possibilidade nos foi aberta por esse “relatório provisório” que é EME (p. 474). Pois entendemos que a antropologia dos Modernos ali esboçada utiliza uma metodologia descritiva que propõe uma nova forma de comparatismo para a antropologia em geral. § O conceito de “instauração” (que substituiu o idioma latouriano da “construção”) bem como o de “modos de existência” foram tomado por Latour de Etienne Souriau, filósofo francês que floresceu nos anos 50 e 60, e cuja obra foi redescoberta — depois de uma nota discreta mas crucial em Deleuze & Guattari 1991— por Bruno Latour, Isabelle Stengers, Didier Debaise e outros filósofos contemporâneos que seguem, ou antes, prosseguem o que Pierre Montebello (2003) chamou de a “outra metafísica”, a linhagem ao mesmo tempo não-kantiana e não-analítica de pensadores como Nietzsche, Renouvier, James, Peirce, Bergson, Tarde, Whitehead, Souriau e Deleuze, e que costumam ser identificados pelos rótulos, geralmente pejorativos, de espiritualistas,

8 Ver as Gifford Lectures de Latour (2013a), “Facing Gaia: six lectures on the political theology of nature”, em especial as duas primeiras conferências da série.

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pragmatistas, empiristas, vitalistas, panpsiquistas ou pan-experiencialistas.9 A relação propriamente cosmopolítica entre esta sinuosa linha “menor” do pensamento especulativo ocidental e as metafísicas práticas (a “cosmopráxis”) dos povos extramodernos — a dos coletivos “animistas”, como os ameríndios e tantos outros, em particular — é uma das questões que se impõem ao presente projeto, dada a intenção comparativa de nossa retomada crítica, ou radicalização continuativa, da investigação iniciada por Bruno Latour.

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Antes de expor sinopticamente a estrutura e o conteúdo de EME, convém advertir que meu trabalho recente traz a marca de uma já longa (desde 1997, para ser preciso) colaboração e diálogo com Bruno Latour, cujo célebre Jamais fomos modernos10 foi uma das inspirações para a teoria do perspectivismo ameríndio que venho desenvolvendo há vários anos, juntamente com outros etnólogos de diversas partes do mundo. Em particular, este livro de Latour, ao mesmo título, vale notar, que a antropologia de Roy Wagner e Marilyn Strathern, permitiu-me precisar comparativa e contrastivamente a diferença diacrítica entre o que se poderia chamar de vulgata metafísica moderna (monoculturalismo + multiculturalismo) e as contra-ontologias “perspectivistas” e “multinaturalistas” dos coletivos ameríndios. Desde então, venho acompanhando a evolução do pensamento de Latour, participando como interlocutor constante da sua produção intelectual.11 Fui um dos pareceristas do manuscrito da EME para a Harvard University Press, em vista da tradução do livro para o inglês, bem como um dos membros da equipe de comentadores da plataforma digital AIME, na qual EME se expandiu e se transformou em uma investigação coletiva que prossegue e se desdobra em outras formas de apresentação, como a exposição Reset Modernity! que

9 Ver Souriau 2009, Les différents modes d’existence (suivi de L’œuvre à faire), uma reedição de dois textos de Souriau precedida de uma importante introdução por Latour e Stengers. Este livro foi publicado paralelamente ao ensaio de minha autoria, Métaphysiques cannibales (Viveiros de Castro 2009), como os dois primeiros títulos da coleção “MétaphysiqueS” lançada pelas P.U.F.

10 Latour 1991 para a edição francesa. 11 Isto

pode ser verificado nas referências aos meus trabalhos, em especial aos conceitos de “perspectivismo” e de “multinaturalismo”, presentes em diversos textos de Latour, que dedicou, aliás, um curto mas polemicamente denso comentário-reportagem às diferentes concepções da comparação antropológica defendidas por mim e por meu colega Philippe Descola (Latour 2009).

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acontecerá no ZKM (Zentrum für Kunst und Medientechnologie Karlsruhe) em março vindouro, sob a curadoria de Peter Weibel e Bruno Latour. Além disso, ministrei um curso no PPGAS do Museu Nacional em 2013 dedicado à leitura da EME, de seus antecedentes mais importantes, notadamente o manifesto “Irréductions” (Latour 1984) e o já citado Jamais fomos modernos, bem como de seus desdobramentos então recém-publicados, como as Gifford Lectures e outros artigos.12 Este curso serviu de plataforma para a redação do livro Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins, escrito em co-autoria com a professora (e esposa) Déborah Danowski, da PUC-Rio, especialista em filosofia da natureza, que vem se dedicando a uma reflexão sobre as implicações metafísico-políticas da crise ecológica mundial.13 O curso está igualmente na origem “histórica” do presente plano de pesquisa.

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A Enquête sur les modes d’existence: une anthropologie des Modernes — notar a inicial maiúscula de “Modernos”, o que os representa como um “povo” ou “tribo”, isto é, como uma forma de vida singular antes que como uma condição histórica universal — procura reinserir o Ocidente (os “Modernos tradicionais”, por oposição aos neoModernos da Ásia e, quem sabe, da América do Sul) dentro do quadro etnográfico mundial. Ao mesmo tempo em que sublinha a verdadeira, ao olhos do autor, originalidade da contribuição à história da cultura humana, EME insiste sobre as profundas e perigosas linhas de fratura, as falhas tectônicas do sistema de valores do complexo civilizatório do Ocidente. O manuscrito original do livro (justamente aquele que avaliei para a edição inglesa de EME) previa uma “terceira parte” que estaria sendo escrita (no livro definitivo seria uma quarta parte, já que ele terminou redividido em três partes), na qual a ontologia reconstruída dos Modernos, e o inventário dos modos de existência que devem — Latour pertence ao grupo dos metafísicos “reformistas” antes que “descritivos”, para usarmos uma distinção de Peter Strawson — ser admitidos

12 O presente projeto foi escrito antes da publicação da versão fortemente modificada das conferências Gifford, o livro Face à Gaïa (Latour 2015), de que tratarei no decorrer da pesquisa.

13 Danowski & Viveiros de Castro op.cit.

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oficialmente por nossa cosmopráxis entrariam em diálogo com as ontologias e cosmologias de outros coletivos, em outras palavras, com os extramodernos, termo que eu hesitaria em escrever com inicial maiúscula em vista da multiplicidade constitutiva, intensiva como extensivamente, dessa categoria. É esta a parte que acabou não sendo escrita; o que, naturalmente, aproveita ao presente plano de pesquisa, que pode ser visto como uma tentativa de escrevê-la, o que não poderá ser feito, entretanto, sem alguma reconstrução (o que inclui uma destruição parcial) da reconstrução latouriana da antropologia dos Modernos. É bastante evidente que o autor de EME está convicto de que “nós” deveríamos ter orgulho de nossa herança civilizatória, e que o Ocidente não só pode e deve ser salvo (em muitos sentidos, do tecnológico ao teológico), como ele pode ajudar a salvar a humanidade de si mesma — com uma pequena ajuda de nossos amigos extramodernos, já vimos mais acima. O otimismo latouriano não é portanto uma validação incondicional do status quo civilizatório do Ocidente moderno. O autor propõe uma abordagem — melhor dizendo, uma retomada (reprise) — da cultura ocidental movida por um espírito radicalmente reformador. (A despeito de seu confesso catolicismo, Latour não deixa de se assemelhar a um Lutero da etnoantropologia ocidental.)14 O objetivo maior do livro é pintar um auto-retrato filosófico adequado da civilização ocidental moderna, tanto para sua exibição privada (reflexiva ou intracultural) como pública (diplomática e intercultural). Esta reforma proposta pretende modificar profundamente a natureza e a qualidade das relações entre o Ocidente e outras tradições antropológicas. A missão que se impõe Latour é a de reposicionar a cultura ocidental dentro da trajetória global da humanidade — na verdade, da trajetória da “criação”, i.e. de nosso mundo sublunar com todo seu mobiliário, animado como inanimado, biótico como abiótico, autopoiético como alopoiético, artefactual como “autofactual” —, ou, em outras palavras, terminar de uma vez por todas com a auto-imagem do Ocidente como

14 Falo em “etno-antropologia” como os antropólogos falam em “etnobiologia”, “etnofisiologia” etc., isto é, como uma versão “local” ou “indígena” de uma Biologia ou Fisiologia Científicas. Ao aplicar o termo etno-antropologia à nossa antropologia (seja à sua versão “científica” como a “filosófica”) estou sugerindo que todo logos, e toda “-logia”, é necessariamente “etno-x-logia”, e que a disciplina antropológica é simplesmente uma etno-antropologia entre outras — uma “outra entre outras”, para falarmos como Lévi-Strauss (o Eu é “um outro entre outros”, como ele escreveu em sua homenagem a Rousseau — cf. Maniglier 2010).

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constituindo o padrão-ouro ou o telos da civilização humana. O objetivo políticodiplomático do autor é renegociar as bases daquilo que ele chama um “mundo comum”, que é um mundo por vir, um mundo a fazer, antes que um mundo já dado, já unificado por princípio e já conhecido, em sua unidade a priori, pela Ciência ocidental,15 que nisso se mostra a herdeira “secular” da revolução monoteísta na origem do Ocidente (Assman 2009). Esse mundo comum latouriano, entenda-se bem, tem muito pouco a ver com o “Comum” de Negri e Hardt e outros teóricos neomarxistas — pois a ênfase está posta em um “comum” transespecífico ou mesmo transontológico. Ele não aponta para uma nova forma de organização sociopolítica ou um novo modo de produção, mas para uma nova ontologia política, onde o sentido de “político” se estende e aplica muito além do domínio do “humano” (Latour 2004). Em poucas palavras, não se trata, como no caso dos pensadores, sempre humanistas, da esquerda tradicional, de naturalizar a política (“tudo é político” — tudo que é humano, entenda-se), mas de politizar a natureza.16 Pode-se assim argumentar que o otimismo que perpassa o livro (o título do manuscrito original, em boa hora abandonado, era “Elogio da civilização por vir”) não é um defeito mas um atributo,17 e que, antes que Lutero, o personagem-modelo de Latour é na verdade G.W. Leibniz, com seus ambiciosos projetos diplomáticos no século XVII — reunificar a Cristandade, pacificar a Europa, incorporar a filosofia chinesa, e assim por diante. Leibniz fracassou espetacularmente em quase todos estes

15 E aqui a inicial maiúscula em “Ciência” tem um sentido irônico-crítico. Latour, como Stengers, é um adversário feroz da ideia da Ciência como entidade única, epistemologicamente estável, uma espécie de Estado do Espírito do qual somos todos — querendo ou não — súditos. Em troca, tanto Latour como Stengers são atentos etnógrafos (e admiradores!) das ciências, em minúscula e no plural, enquanto práticas de conhecimento controversas, plurais, metodologicamente heteróclitas e dotadas de “ecologias” específicas (ver os sete volumes da série Cosmopolitiques de Stengers 1997).

16 Não esqueçamos que “simetria” foi por muito tempo um lema crucial da antropologia latouriana, e que os “não-humanos” (outro rótulo privativo de que terei ocasião de discordar) receberam atributos de agentividade e de personalidade graças, em larga mas obviamente não exclusiva medida, ao trabalho deste pensador.

17 “It’s not a bug, it’s a feature”, como dizem os programadores de computador em resposta às críticas do público a algum comportamento estranho dos aplicativos que inventam… Observo que o otimismo latouriano, aparentemente invencível, não deixou de se revestir de uma inquietação crescente com a catástrofe ecológica planetária, e que sua crença nos poderes taumatúrgicos da alta tecnologia mitigouse consideravelmente nos últimos anos. Ver as Gifford Lectures, bem como o cortante artigo ‘War and peace in an age of ecological conflicts” (Latour 2013b) e seu rompimento com o Breakthrough Institute (Latour 2015)

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projetos (pois o I Ching foi em parte responsável pela linguagem binária de nossos computadores); mas legou-nos um esplêndido sistema metafísico, não completamente estranho à infraestrutura conceitual de Latour, e fez contribuições decisivas para a matemática e a física modernas. EME pode ser considerada como a Summa metaphysica da longa e produtiva carreira de Latour, o livro onde ele reune em um sistema único suas variadas investigações empíricas e um número de sínteses parciais, mais filosoficamente orientadas, publicadas nas últimas décadas (Nous n’avons jamais été modernes, Politiques de la nature, L’espoir de Pandore, Reassembling the Social, Petite refléxion sur le culte moderne des dieux faîtiches). O livro reevoca, organiza e desenvolve os princípios comuns a seus trabalhos sobre a etnografia das ciências, sobre a revolucionária onto-metodologia da “Teoria do Ator-Rede”, sobre o regime de veredicção jurídica (La fabrique du droit) e suas meditações sobre a religião (Jubiler). De certa forma, EME pode ser visto como a versão finalizada de Jamais fomos modernos. Ele possui o mesmo escopo generalizante do livro anterior (os fundamentos ontocosmológicos do Ocidente moderno), e a mesma intenção ambiciosa: a reforma de nossa “Constituição”. Mas, sobre cobrir muito mais “chão” que o ensaio de 1991 — pois vai muito além da ciência e da política como seus dois objetos etnográficos centrais —, ele é mais ousado em suas formulações metafísicas (o autor escreveu um artigo recente intitulado “Saindo do armário enquanto filósofo”), e, acima de tudo, ele procura apresentar uma definição positiva (empírica) antes que simplesmente negativa (crítica) do projeto civilizacional do Ocidente. Pois seu problema em EME é o de redefinir o Ocidente sem apelar para a ideologia da modernização e para a imagem da modernidade que o distorcem antropologicamente.

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O objetivo de EME é construir uma tabela ou lista sistemática dos modos de existência vigentes na cultura ocidental. A ideia básica é que as clássicas noções dicotômicas de sujeito e objeto, matéria e forma, linguagem e mundo (signo e referente), natureza e

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cultura, indivíduo e sociedade — para evocarmos apenas as principais dentre elas — são o resultado de erros de categoria, equívocos que “amalgamam” indevidamente os requisitos ontológicos e as condições de felicidade necessárias para gerar diferentes modos de “ser real” e “ser verdadeiro”. Os diferentes modos de existência são diferentes modos de capturar o movimento e a descontinuidade da ação, características que se originam de uma sorte de reserva ontológica que o autor chama de ‘o ser-enquanto-outro” (tomada de posição radicalmente anti-heideggeriana, não custa anotar). Um modo de existência é um modo de transformação — a transformação tem valor axiomático na ontologia formal que fundamentará a metodologia descritiva de EME — que produz o “ser-enquanto-ser” a partir do “serenquanto-outro”, um modo de capturar a alteridade fundamental do mundo e do ser e lhe conferir uma capacidade de subsistência (por oposição a substância), uma continuidade “institucional”. Os modos de existência necessitam serem instaurados, isto é, receberem suas condições próprias de articulação. A tarefa principal do livro consiste em re-instaurar os diferentes modos com seus requisito corretos (ou corrigidos), estabelecendo suas condições específicas de veredicção (não no sentido de juízo, mas de “fazer verdadeiro”, “tornar real”) e suas chaves interpretativas corretas, assim como em examinar as múltiplas combinações (“cruzamentos”) entre os modos que geram as práticas culturais e instituições vigentes entre os Modernos — e também expor as combinações impróprias (os amálgamas) que geram as numerosas aporias político-metafísicas que assolam a cosmopráxis ocidental. A meta-linguagem ontológica de EME é altamente abstrata. O que não é para surpreender, uma vez que o livro se propõe a deduzir alguns “personagens” ontológicos básicos, como matéria, forma, signo, realidade, ficção etc. a partir de elementos ainda mais genéricos e formais. Assim, seu vocabulário analítico abunda em conceitos que seria impossível descrever em detalhe aqui, ou mesmo sumarizar: movimentos, vetores, passagens (Fr. passes), surpresas, hiatos, traduções, translações, mediadores vs. intermediários, imanências, transcendências (pequenas e grandes, boas e más), continuidades e descontinuidades, preposições, redes e por aí afora. A intuição motivadora é que para que qualquer ser ou ente venha à existência, é preciso que ele passe por outros seres. A identidade requer um movimento através (no duplo sentido de atravessar e de tomar como instrumento) da alteridade, o Mesmo só pode ser obtido

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graças ao Outro. A descontinuidade é primária, ela é o tecido do ser (assim, o domínio do “ente” é uma vasta rede de nódulos esparsos de concrescência — Whitehead — conectados por largos hiatos de vácuo ôntico.) A continuidade é essencialmente fenomenológica, o resultado de um “alisamento” da descontinuidade primal do ser por meio de certos movimentos vetoriais que preenchem ou fazem a ponte por cima dos hiatos. Há quinze modos de existência. Os três primeiros a serem expostos, mas que constam no fim da tabela final do livro (EME: 484-85), são a rigor meta-modos, ou modos formais, instrumentos de investigação antes que domínios investigados: (1) O modo “Rede” (abreviado como RES, cf. réseau — cada modo é indicado por um acrônimo de três letras, o que acaba gerando uma espécie de “álgebra” elementar de combinação e cruzamento entre os modos: REF.REP, ORG.FIC, MET.DRO etc.), que pode ser definido como a Relação enquanto primitivo ontológico: ele indica a conexão de uma série indeterminada de elementos heterogêneos que formam o network de alteridades necessária para qualquer ser vir à existência, como também a trajetória vetorial que ele deve tomar. (2) O modo “Preposição” (PRE), que confere o tom ou tonalidade, o valor ou qualidade, a chave de interpretação que dá a especificidade de cada modo de existência. O modo RES é familiar aos praticantes da Teoria do Ator-Rede, na medida em que é seu poderoso conceito central. O modo PRE é uma inovação específica, e provavelmente a mais polêmica, de EME: ele define o quadro (o frame, também no sentido de Goffman, aliás não citado no livro) no interior do qual um certo tipo de atividade, domínio ou material articulado em RES é reconhecido pelos atores como uma província distinta do ser. Há uma multiplicidade infinita de associações RES; mas o número de valores ou interesses-de-verdade PRE, ainda que decididamente plural, é finito (finito se considerado desde o interior da cosmologia dos modernos, permito-me ressalvar). Com isso, a “ontologia plana” de RES — um aspecto crucial da Teoria do Ator-Rede que gerou inúmeras discussões e alguns desenvolvimentos inovadores (penso em Manuel De Landa, por exemplo) — é reafirmada em EME, mas ao mesmo tempo ela é diferenciada e por assim dizer “estriada” no mundo multimodal de PRE. O modo PRE, que Latour tomou diretamente da “preposição” jamesiana (parte da

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pragmática da verdade de William James) está intimamente relacionado ao conceito de valor, um conceito que, juntamente com o de instituição, é deliberadamente destacado por Latour como necessitado de uma reciclagem e recuperação dentro da metafisica reformada dos Modernos. É o modo PRE que traz consigo a noção de “condições de felicidade”, que Latour tomou da teoria dos atos de fala de John Austin, mas que, justo como no caso dos “erros de categoria” (Gilbert Ryle), desviou de seu significado pragmático-semiótico para vir preencher uma função plenamente metafisica ou mesmo ontológica. A condição de felicidade de um determinado modo de existência é a especificação dos tipos particulares de hiatos que precisam ser cruzados ou preenchidos por tipos particulares de vetores — o movimento característico de cada modo —, de forma a produzir o estilo adequado de veredicção, a chave de interpretação que define cada modo. (3) O modo curiosamente nomeado “Duplo Clique” (DC), por analogia com a aparente facilidade com que se acede ao longínquo com o mero clicar do mouse de um computador. O DC é um modo negativo, ou melhor dizendo, o modo que inverte o modo RES, o trickster enganador que afirma a identidade imediata entre o ser e a identidade, e tudo que daí se segue — a começar pela promessa de uma “realidade” dada a priori, e acessível gratuitamente. O DC é o representante, em EME, daquilo que os filósofos da Ciência chamariam de o “obstáculo epistemológico” por excelência. Trata-se de um modo operante em diversos dos equívocos e amálgamas expostos no livro, na medida em que ele encarna a fantasia do acesso sem mediação, a “brutalidade do intelecto” (para lembrarmos uma expressão de Chesterton) que ignora o custo — noção central para Latour, desde a teoria do Ator-Rede — energético, no sentido tanto físico como semiótico, de toda ação. O DC é a tentação da imanência grátis. Tudo isso pode soar excessivamente abstrato. Mas EME faz um bom trabalho na aplicação desta meta-linguagem formal a exemplos concretos (alguns pitorescos) e na caracterização meticulosa dos doze modos-objeto atualmente “reconhecidos” (no sentido ambíguo já anotado) por “nossa” civilização. Indico sumariamente, abaixo, alguns deles:

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(1) REP, o modo a “existência bruta” ou o que se costuma chamar “realidade material”, animada ou inanimada. Este é o modo de perseveração dos existentes. O acrônimo deriva do nome do modo, “Reprodução”, o modo de subsistência que consiste em durar, passar pelo ser-enquanto-outro de modo a produzir o ser-enquanto-ser. Como sabemos desde Whitehead (talvez o principal inspirador da conceituação latouriana deste modo), mesmo uma montanha precisa insistir para existir, passar pela transformação para continuar a mesma montanha. A “infelicidade” característica deste modo REP é a interrupção da reprodução (no sentido literal, no caso dos organismos) ou a pura e simples destruição material. (2) MET, o modo da Metamorfose, é uma sorte de parceiro ou correspondente do modo da estabilidade que é REP. O modo MET é a província a que pertencem os “espíritos” e os fantasmas — no sentido psíquico do termo — da interioridade, mas também todas as forças de alteração. Este é o modo da mudança pura; ele invade e possui as pessoas, tem uma cumplicidade sinistra com o invisível, pois é puro dinamismo, transformação e afeto (no sentido espinosista). Por isso, é objeto em nossa cultura de extremo cuidado e ansiedade, tanto mais que tendemos a localizá-lo privilegiadamente no psiquismo. Ao mesmo tempo, ele é a origem de toda e qualquer mudança ou transformação no universo. O modo da subsistência REP necessita do modo MET para se instaurar. (3) HAB, o Hábito, que é a capacidade de eclipsar a preposição (PRE) que define cada modo de existência, de forma a produzir um curso de ação normal e contínuo sem que seja necessário parar a cada momento para “pensar” sobre o que se está fazendo. HAB (outro empréstimo do empirismo jamesiano e butleriano) é o modo da prática diária, irrefletida, daquilo que “não-é-preciso-dizer”. Esse modo não diz respeito, como tampouco (obviamente) os dois precedentes, apenas ao humanos. Ele é o modo da continuidade conquistada pela subsistência, e como tal é “imperceptível”. Sua ruptura eventual leva a uma refocalização na PRE que ele tinha por função eclipsar (o martelo que se quebra…). Esses três modos formam um grupo, o “pano de fundo do ser”, que preexiste a toda diferença entre sujeito e objeto, e mesmo às modificações latourianas destes conceitos nas categorias de “quase-objetos” e “quase-sujeitos” que capitularão as duas próximas famílias de modos de existência. Os modos REP, PRE e HAB são — difícil caracterizá-

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los de outra maneira — absolutamente universais; os entes inanimados tanto quanto os animados banham neles. Os próximos três modos formam o grupo dos “quase-objetos”: (4) TEC, a Técnica, que define uma certa dobra ou desvio dos materiais e permite a criação de dispositivos. Este é o modo da invenção. Interessantemente, Latour parece reservá-los aos humanos exclusivamente (Homo faber), inclusive atribuindo-lhe o poder antropogenético. A possibilidade de que TEC seja o modo geral dos seres animados ou viventes, algo que permitiria distinguir, decerto apenas provisoriamente, os seres vivos dos seres “indiferentes” (Whitehead), não é considerada pelo autor. (5) FIC, a Ficção, um modo importante, definido por uma certa “vibração” entre materiais e formas (Latour dedica uma longa explanação sobre a inexistência “objetiva” e a inconsistência conceitual da “matéria” versus a onipresença dos materiais, assim como se detém sobre os diferentes e contraditórios sentidos do conceito de forma.) FIC é um modo responsável por certo erros importantes de categoria e algumas aporias clássicas, em particular o suposto abismo ontológico entre signo e referente, palavra e coisa, linguagem e mundo. (6) REF, a Referência — este é o modo do conhecimento científico. Sua amalgamação com o modo REP, a “existência bruta” ou, nos termos latourianos, a subsistência do ser através de sua passagem pela alteridade, produziu os mais sérios erros de categoria da metafísica ocidental, a saber, a ideia de que o conhecimento, tal como constituído pela cadeia de transformações referenciadas pelos métodos científicos das transformações que mantêm certas constantes estáveis, é o único modo de acesso à “Realidade”. O argumento polêmico central de EME é precisamente o de que, primeiro, o conhecimento cientifico não é o único modo de acesso ao que quer que seja; e, segundo, que a “realidade” enquanto tal (isto é, enquanto “tal-enquanto-outra”) é ela própria um modo de existência situado no mesmo plano ontológico que o conhecimento (científico), a metamorfose, os espíritos, os hábitos, os objetos técnicos, os personagens ficcionais, o discurso político, as organizações “econômicas” etc. Este talvez seja o gesto mais ousado de EME: a realidade (tanto a essência como a existência) é um modo de existência entre outros. Existem “seres de REP” (que chamamos normalmente de “coisas”, “fenômenos” ou “(viv)entes” tout court) assim

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como há “seres de ficção” (FIC) , “seres científicos (REF)“, “seres do direito” (DRO), “seres da religião” (REL) etc. Um pluralismo ontológico radicalmente horizontal. Os valores PRE priorizam conjuntural e contextualmente interesses e cursos de ação; eles não ordenam hierarquicamente graus de dignidade ontológica. Seguem-se mais dois grupos de três modos cada um, cuja exposição, mesmo resumida, terminaria por alongar demais este plano de pesquisa — eles serão objeto de discussão comparativa detalhada na execução do plano. Baste dizer que o Grupo 3 (os “quasesujeitos”) reune os modos da Política (POL), do Direito ou Lei (DRO) e da Religião (REL). Aqui entramos no que se poderia chamar de “mundos da superestrutura”. O próximo e último grupo dissocia o amálgama que chamamos “Economia” em três modos de existência: o Pertencimento (ATT, de attachement), que instaura os “interesses apaixonados”, e cujo hiato a ser preenchido consiste em desejos e carências; a Organização (ORG), que instaura impérios, estados, organizações, firmas, e cuja trajetória (um dos elementos da meta-linguagem formal de EME) consiste na produção e desempenho de roteiros ou scripts para a ação; e a Moralidade (MOR), que explora a relação entre meios e fins, se define pelo escrúpulo como valor, e tem como alteração (outro elemento meta-linguístico) o cálculo de um optimum impossível. A conclusão do livro “inconclui” recapitulando o trajeto e situando a tarefa cosmopolítica de fazer o pluralismo ontológico dos Modernos reformados entrar em diálogo ou acordo diplomático com os outros mundos, dos outros coletivos. E é aqui que começa nosso próprio trabalho.

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A questão que se coloca para este projeto, de saída, então, é a do valor heurístico, e, no limite, empírico — ao menos para alguns deles — da tabela de quinze modos de existência que conclui o livro, isso de um ponto de vista estritamente comparativo. Refiro-me aqui tanto aos doze modos-objeto (como vimos, categorizados em quatro grupos com três modos cada um) como aos três meta-modos que, consolidando uma axiomática abstrata, um formalismo pré-ontológico de natureza quase matemática,

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reflexivamente aplicável aos meta-modos eles próprios — vetores, hiatos, surpresas, passes, trajetórias, condições de felicidade etc.—, fornecem os elementos de construção dos modos-objeto. Há várias maneiras possíveis de permanecer intrigado diante deste pluralismo ontológico tão bem arrumado, essa arquitetônica modal-modular dos modernos, de aparência quase kantiana, justamente o filósofo, Kant, que deu a feição mais acabada à cosmologia não-reformada dos modernos, o que inclui a celebração (a “dedução”) da Ciência. Poderíamos, por exemplo, especular que os três primeiros modos (REP, MET, HAB) são “sucessores” da antiga noção de Natureza; eles estão muito próximos do que alguém chamaria por este último nome (digo isso com alguma hesitação, conhecendo a denúncia insistente de Latour relativa aos erros de categoria que subjazem à ideia de Natureza); que os três seguintes (TEC, FIC, REF) são avatares da tradicional noção de Cultura;18 que os próximos três (POL, DRO, REL) remetem a algo como a velha Sociedade; e sabemos que os últimos modos-objeto “desempacotam” explicitamente o confuso amálgama que chamamos de Economia, gerando uma tríade (ATT, ORG, MOR) que repete ou ecoa, em sua função de “segunda Natureza” dos Modernos (a expressão é de Latour), a primeira “Natureza” da tríade que encabeça a tabela. Não seria tampouco absurdo sugerir que a ressonância entre a condição de “existência bruta”, engenhosamente reformulada como modo REP (o primeiro da tabela) e o mundo moral (MOR, o último e, impossível não suspeitar, mais eminente modo-objeto), não deixa de evocar algo do clássico dualismo entre o is e o ought, o ser e o dever-ser. Ou, ainda, enfim, observar que os doze modos-objeto de EME são como a explosão de uma tríade originária, as três “ontologias regionais” cujas relações conflituosas estão no centro do projeto pacificador de Latour, a saber: ciência, política e religião (natureza, cultura e sobrenatureza?), objetos privilegiados de suas investigações anteriores e que continuam, a despeito da pluralização levada a cabo em EME, seus alvos supremos de reinstauração.

18 Sugestão que se torna ainda mais verossímil, digamos assim, na medida em que Latour reserva TEC aos humanos (é TEC que nos hominizou paleontologicamente, diz ele), quando nos parece que ela é um componente intrínseco da biologia evolucionária, e que ele exclui a vigência de modos de tipo FIC para o resto do reino animal em geral (ah os bower birds e seus elaborados ninhos-armadilhas, a mensagem “‘isto é uma brincadeira’” [“this is play” — as aspas são parte da mensagem] que Bateson explorou tão bem para o mundo animal…). Isso para não falarmos nos estudos de Adolf Portmann e, mais recentemente, de Bertrand Prévost.

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Nada disso deve servir de argumento desqualificador; os modos de existência de EME são construídos exatamente como reformulações ou redeterminações, segundo critérios analíticos rigorosos, das velhas categorias, erros de categoria e dualidades aporéticas com que os Modernos estriavam o mundo. Quanto ao número dos modos, e a sua arquitetônica de suspeita simetria, nosso antropólogo dos Modernos insiste, um tanto embaraçado, que se trata de mera contingência histórica, tanto do lado dos nativos como do investigador (EME: 471); que a questão do número de modos atuais ou virtuais resta em aberto; e que de qualquer forma os variados cruzamentos (curiosa e inexplicavelmente sempre binários) entre modos são capazes de dar conta de uma quantidade indefinida de instituições, agenciamentos ou dispositivos — chame-se-os como se quiser — próprios dos Modernos. Mas chegamos à questão: o que dizer dos modos de existência dos outros? Se nossa dúzia moderna de ME é contingente, tanto do ponto de vista de seu número como de sua identidade característica, é de se imaginar que outros coletivos disponham, no duplo sentido de possuir e de ordenar, de modos de existência insuspeitos: “já houve e há ainda muitas luas mortas, pálidas ou obscuras no firmamento da razão”, como diziam Durkheim e Mauss, que ainda não dispunham dos instrumentos para apreender a alteridade metafísica senão per speculum in ænigmate. E acontece que várias destas “luas obscuras” podem se revelar estrelas distantes, de magnitude igual ou maior que nosso modesto luzeiro provinciano. Tanto mais que precisamos desesperadamente, na presente conjuntura, de toda luz disponível. Mais que imaginar, então: é teoricamente indispensável que se possam determinar modos de existência outros que os nossos, se decidirmos, como é nossa intenção, utilizar a linguagem formal e a metodologia analítica propostas em EME, que fornecem um instrumento notavelmente poderoso para a antropologia geral ou a metafísica comparada, noções que, como vem mostrando Patrice Maniglier (2015), caminham para uma convergência próxima da sinonímia. Acredito que os três meta-modos que fornecem a armadura descritiva de EME são contribuições conceituais fundamentais, permitindo uma nova definição do objeto e do objetivo maiores da investigação antropológica. Assim, de um lado, o pluralismo ontológico aberto pelo novo modo PRE (introduzido em EME) vem corrigir a excessiva

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genericidade ou “planitude” do modo famosamente descoberto pela teoria do atorrede, o RES, e, de outro lado, o solerte sedutor “duplo clique” (DC) vem designar o grande obstáculo epistemológico (se a expressão pode ser usada aqui sem escândalo) para a correta declinação de diferentes modos de existência, na medida em que ele é a figura mesma da hubris Moderna. Mas no que concerne aos doze modos-objeto, que são como os cômodos da orgulhosa mansão que os Modernos construíram sobre os escombros de incontáveis moradas extraontológicas alheias, entendo que as indicações de EME sobre sua vigência (ou não) alhures são ainda insuficientes, hesitantes, e por vezes inconsistentes. Tudo se passa como se o demônio do Duplo-Clique (DC) não tivesse sido completamente exorcizado, justamente na passagem estratégica de dentro para fora do multiverso dos Modernos. O custo do passe, a largura do hiato, a natureza da surpresa, a alteração requerida para especificarmos as condições de felicidade dos modos de existência dos outros não se acham tematizados de modo a satisfazer um antropólogo dos extramodernos. Não basta observar, como faz o autor de EME, que o grau de elaboração ou a prioridade ontológica dos modos de existência recenseados em seu tratado não são os mesmos para outros coletivos: por exemplo, que o modo MET é objeto de muito maior investimento institucional e elaboração cognitiva entre os extramodernos do que entre nós, para quem ele foi reduzido ao nevoeiro psíquico da interioridade do Indivíduo. No mínimo, diga-se de passagem, caberia sublinhar que a ordenação introduzida nolens volens pela marcha expositiva (e a tabela) de EME entre REP e MET deveria ser decididamente invertida para o caso extramoderno. Seria preciso, além disso, nos perguntarmos se tem sentido diferenciar esses dois modos para o caso de certas “ecoontologias” exóticas, como a dos coletivos chamados “animistas.19 Entendemos que mesmo no caso dos Modernos, a definição de todo modo de existência como constituindo “uma versão do SER-ENQUANTO-OUTRO” (EME: 189; maiúsculas no original) — este conceito que está na raiz da “hipótese central desta investigação” (EME: 168) — exigiria uma inversão da ordem entre REP e MET. Começar pelo primeiro parece-nos um resto do preconceito substantivista do qual o projeto

19 Para os quais, paradoxalmente, é a corporalidade, i.e. o “somatismo” antes que o “animismo”, o verdadeiro operador da alteração. Ver Viveiros de Castro 2009.

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latouriano quer justamente nos libertar: não é um pouco contraditório definir os “entes” de REP pelo devir e colocar os “devintes” de MET como sobrevindo depois …? Esta talvez seja uma lição que devamos aprender com os extramodernos. Não basta tampouco dizer que os outros coletivos valorizam os três primeiros modos (REP, MET, HAB) mais intensamente do que nós — o que não deixaria aliás de explicar por que os chamávamos de Naturvölkern... A noção evolucionista de uma ordem de precedência que “sobe” piramidalmente de modos universais a modos panhumanos e destes a modos exclusivamente modernos parece-nos só ser possível da perspectiva da ontologia não-reformada dos Modernos (EME: 293-94). Além disso, a eventualidade de modos de existência radicalmente outros, que seriam compartilhados por humanos e não-humanos, ou seriam mesmo exclusivos dos não-humanos — passemos por cima, por ora, da duvidosa pertinência dessa distinção privativa entre “humanos” e “não-humanos” para os mundos dos outros humanos, i.e. os extramodernos — essa eventualidade não chega sequer a ser considerada. O que seriam, para nos restringirmos às multiplicidades extramodernas que designamos pelo rótulo de “humanas”, alguns dos modos de existência nãorecenseados em EME? O que dizer, por exemplo, do parentesco, esse objeto-fetiche dos antropólogos dos extramodernos? Constituiria ele um modo sui generis, ou é redutível a REP — reveladoramente nomeado por uma metáfora mestra do parentesco ocidental, a “reprodução”20—, ou talvez, no caso dos coletivos extra-estatais, a um cruzamento REP.POL?21 Mas como pensar o parentesco em um mundo afectualmente centrado no modo MET? Como separar, neste mundo transformacional de povos como os ameríndios,22 por exemplo, o parentesco da feitiçaria, verso e reverso de uma mesma ontologia da influência?23 Como pensar um modo de existência do parentesco que aproxima miticamente, antes que distingue teologicamente, “humanos” de “nãohumanos” (o chamado animismo)? O que dizer de uma forma de praticar o modo POL

20 Schneider 1984; Strathern 1992a,b. 21 Fortes 1969; Fortes & Evans-Pritchard 1969. 22 Viveiros de Castro 1996. 23 Leach 1961; Wagner 1967; Sahlins 2013.

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em uma sociedade “contra o Estado”24, ou onde as subjetividades não-humanas são coletivos políticos ao mesmo título que “nós” (“para nós a politica é outra coisa” — Davi Kopenawa)?25 A antropofagia ritual ou “metafísica da predação”26 — outro exemplo — essa forma muito particular de articular POL, MET, REP e, dadas suas poderosas referências míticas, FIC — constitui ele um modo de existência de pleno direito? A “ciência do concreto” de que falava Lévi-Strauss é apenas o modo REF em chave “selvagem”, ou abre para uma outra multiplicidade ontológica ainda não cartografada nos termos de EME, um outro modo de pensar o, no e do mundo? E assim por diante. Ao cabo da leitura de EME, fica-se com a incômoda sensação de que os extramodernos possuem menos modos de existência do que os Modernos, esses configuradores milionários de mundo em quem pensava Heidegger (os extramodernos são apenas “humildes em mundo”, para toda a filosofia da história da modernidade tardia). Fica-se, a fortiori, com a impressão de que os não-humanos possuem ainda menos modos de existência que os extramodernos, e que, no frigir dos ovos, os Modernos continuam dotados de um suplemento de modos de existência, como se de um “suplemento de alma”. O que nos leva, à guisa de conclusão, à vexata questio da construção de REL, a “religião”, em uma linguagem univocamente cristã. Só os Modernos seriam os felizes possuidores de pessoas? Só eles disporiam, ou careceriam, de uma experiência da proximidade e do presente divino (envenenado?) da salvação? O que fazer, então, com a experiência do sonho entre povos como os Yanomami, cuja descrição pelo xamã e líder político Davi Kopenawa (Kopenawa & Albert op.cit.) nos introduz a uma “fenomenologia” onde sensibilidade à palavra do outro (o extrahumano), reconstituição da pessoa e política da natureza estão inextricavelmente entrelaçados? O que pensar da experiência da divindade entre Dinka, tão magistralmente descrita por Godfrey Lienhardt?27 Seriam outras tantas modulações de REL, ou sempre ainda o modo “cabe-tudo” MET, onde os Modernos colocamos o que somos incapazes de compreender?

24 Clastres 1974, 1977. 25 Kopenawa & Albert 2010. 26 Lévi-Strauss 2000. 27 Lienhardt 1961.

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Há, enfim, muito trabalho a fazer ainda para que se estabeleça a ponte diplomática entre o pluralismo intra-ontológico dos modernos descrito por EME e as ontologias meta-plurais, pluralmente plurais daqueles que, como dizia Clastres dos selvagens, “querem a multiplicação do múltiplo”. No mínimo, se o desafio é, como formula lapidarmente Latour, “cessar de modernizar para ecologizar”, é muito provável que tenhamos que adotar, no sentido afetiva e juridicamente complexo em que se adota um filho (REP.DRO), alguns dos modos de existência dos outros coletivos, daqueles que, realmente, jamais foram modernos. A saída passa pelo outro; pelo serenquanto-outro dos outros.

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A tarefa que se impõe este plano de pesquisa, assim, é o de reconstruir certas velhas categorias antropológicas a partir do vocabulário e do instrumental conceitual fornecido pela Enquête sur les modes d’existence. Já tive mais de uma ocasião de argumentar pela necessidade de produzirmos um discurso antropológico onde o “nativo” esteja em posição de estrita interlocução simétrica com o “antropólogo”. A determinação das cosmopráxis ameríndias (inter alia) nos termos do conceito de “modos de existência” poderá permitir, talvez, que essa interlocução se faça dentro de uma meta-linguagem comum, capaz de permitir uma intertradução que esteja efetivamente atenta para o equívoco, a transformação e a deformação que envolvem necessariamente tal empresa. Ao mesmo tempo, ela permitirá que as questões indígenas (por oposição à “questão indígena” i.e. a questão de como os brancos acabarão de vez com o “problema dos índios”) possam se infiltrar em nosso próprio repertório de perplexidades, apontando a existência de, justamente, outros modos de existência, inseparáveis de outras formas de vida. Mesmo porque, como vai cada vez mais constatando e alertando Bruno Latour, nossa forma de vida se aproxima do esgotamento de suas potencialidades, e sua criatividade vai-se cada vez mais revelando como uma forma particularmente perversa de destrutividade.

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