Sobre o Museu, o Cinema e o dever da Memória em \"Les Statues meurent aussi\"

June 29, 2017 | Autor: M. Aparício | Categoria: Film and Media Studies, Chris Marker, Alain Resnais, Museums and Film Theory
Share Embed


Descrição do Produto

(2014) “Sobre o museu, o cinema e o dever da memória em Les Statues meurent aussi” apresentado a 27 de Janeiro de 2014, no âmbito do Ciclo “Uma visita guiada ao Museu no Cinema”, realizado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL entre 27 e 31 de Janeiro de 2014.

Les Statues meurent aussi: sobre o museu, o cinema e o dever da memória Statues Also Die (Les Statues meurent aussi), 1950-1953, 28 m. Realização: Alain Resnais e Chris Marker. Texto: Chris Marker e Jean Négroni. Montagem: Alain Resnais. Fotografia: Ghislain Cloquet. Música: Guy Bernard. Orquestra sob a direcção de: André Hodeir. Voz off: Jean Négroni. Prémio Jean Vigo, 1954.

O Cinema foi ao Museu... Mas o resultado dessa viagem incomensurável, efectuada pela câmara de Resnais e Marker, não é um olhar contemplativo. É antes um movimento do pensamento que projecta duas questões inquietantes, as quais procuramos destacar entre muitas outras possíveis. A primeira, inscrita no movimento de contorno e reflexão concretizado pelos travellings e a consequente abstracção dos objectos, logo desde a primeira sequência do filme, é a seguinte: “Que Museu é este que o filme torna presente quando as luzes da sala se apagam?”. A segunda: “Que Cinema se revela nessa transformação do museu em história inacabada invadida pelas estórias?”. Uma e outra têm o poder de agitar a consciência do espectador, a cada projecção envolvido num contexto que afecta o seu presente, tal como assombra todos os outros “presentes”, os do passado longínquo ou recente e os do futuro. A primeira questão inscreve o Museu num espaço qualquer, que não se confina às suas fronteiras físicas e geográficas. A segunda projecta o Cinema para o domínio da acção sobre o sentido do real, conferindo aos objectos o direito à recordação mas também ao esquecimento, à ruína e à morte, sobrepondo esse direito ao dever da memória, consubstanciado pela ideia de preservação que orienta a exposição e a gestão do olhar sobre eles, que é a primazia do Museu. Neste sentido, se há um filme que equaciona bem a pertinência da interrogação sobre os possíveis efeitos do cinema numa prática tradicional do museu e vice-versa, esse filme é, sem dúvida, o documentário Les Statues Meurent Aussi (Alain Resnais e Chris Marker, França, 1950-1953). De um ponto de vista global, a actualidade do problema dessa relação é enunciada no preâmbulo ao texto Cinéma muséum. Le musée d`après le cinéma, onde Barbara Le Maître e Jennifer Verraes estebelecem, desde logo, a intenção de compreender as influências recíprocas museu-cinema. Embora a referida reflexão incida sobre o cinema como uma «tripla experiência», em que o mesmo configura «um objecto e uma memória do património, um objecto e um meio da história da arte, um objecto e um instrumento de mediação: [...] [Isto é,] ao mesmo tempo uma função estética e uma função cultural.»1, há, nesta procura das positividades, o reconhecimento claro de um território comum que confere ao cinema e ao museu um mesmo lugar de experiência, e a consequente possibilidade de transformação da narrativa histórica. É nesta linha crítica da dimensão linear, cronológica e de causalidade dos eventos históricos e das práticas da arte, que o filme de Marker e Resnais problematiza, subliminarmente, o papel do museu no colonialismo e as consequências da colonização política e cultural. Partindo da questão «Porque é que a arte negra se encontra no Musée de L`Homme, enquanto a arte grega ou egípcia está no Louvre?», numa assunção implícita de que os museus, tal como os filmes, não são todos iguais, Resnais e Marker 1

Cf. Barbara Le Maître e Jennifer Verraes. Cinéma muséum. Le musée d`après le cinéma. Paris: Presses Universitaires de Vincennes, 2013, p. 7.

1

ainda assim, denunciam uma certa “museificação” da cultura africana, operada pela suspensão da vida da arte negra então submetida, pela exposição diferenciada, à hierarquização de um valor afecto aos mercados da arte ocidental. Denúncia velada de legitimação de poderes, que parece estar na origem da interdição da projecção integral do filme em França, pela Comissão do Centre National de la Cinématographie, após a sua projecção no Festival de Cinema de Cannes, em 19532, e até 1963. Reflectindo sobre uma lista de filmes censurados e esquecidos, num extenso Relatório que constitui a contribuição da UNESCO para a conferência de Veneza de 10 e 11 de Setembro de 19613, Jean Rouch regista o estatuto de «filme banido» de Les Statues meurent aussi, elogiando a «forma brilhante» como os seus autores filmaram os museus Africanistas da Europa e editaram esses e outros materiais de arquivo da África Tropical. Para Rouch, O principal argumento do filme é o de que as estátuas Africanas expostas nos nossos museus estão a perder, progressivamente, a sua importância, na medida em que o seu verdadeiro sentido se esvanece, enquanto a nova arte Africana, sob a influência ocidental, está já completamente decadente4. O autor documenta que o filme, «admirável e intenso, foi condenado a permanecer inédito e invisível, excepto para alguns, poucos, privilegiados»5 e, em nota de pé de página, acrescenta: «a versão comercial do filme Statues, desde então posta em circulação, é uma versão não aprovada, distinta do filme original, com a qual os seus autores não se identificam»6. É pois a partir deste filme-manifesto, que só seria visto integralmente a partir de 1964, que procuramos definir os contornos de uma outra percepção da realidade que emerge no gesto versátil, dinâmico e interventivo do cinema, na sua visita sokuroviana pelo(s) museu(s). À questão de Le Maître e Verraes - “Que museu depois do cinema?”-, acrescemos outras orientadas pela problemática da condição política e pós-moderna da memória e, no limite, da sua impossibilidade, que o cinema resgata à prática do Museu: “Que cinema pode resultar de uma confrontação do museu com os arquivos da história?”, “Como pode o cinema circular nos espaços irrepresentáveis de uma história em processo, forçosamente obliterada pelo museu?”. Encomendado pela Revista Présence Africaine, o filme foca as possíveis consequências das polarizações arte / política e realidade / museu, plasmadas em duas camadas de sentido configuradas pela articulação entre o texto poético em voz off e as imagens, também elas de uma extrema poesia, ambas convergentes numa imagem inquietante da paisagem da arte negra. Percebe-se, no entanto, que sob a aparente exaltação da arte, num trabalho sublime sobre o grandeplano, o movimento e a luz, persiste, também, uma impiedosa análise dos irreversíveis efeitos

2

O filme obtém o Prix Jean Vigo em 1954, mas é totalmente interditado até 1957, data em que o público assistiu, pela primeira vez, a uma versão comercial censurada. O filme só seria mostrado integralmente a partir de 1964. 3 Conferência organizada pela Fondazione CINI e patrocinada pela Italian National Comission for Unesco. 4 Cf. Jean Rouch. “The Cinema in Africa – Present Position e Current Trends”, Paris: United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, 1962, p. 12. 5 Ibid., P.12. 6 Ibid., p.12.

2

étnicos e antropológicos do processo de aculturação em curso na designada “África negra”, num contexto sócio-cultural em que a descolonização parecia já inevitável7. Filme ensaio sobre a identidade e os contestados efeitos do colonialismo sobre as práticas da Arte Africana, Les Statues Meurent Aussi começa, então, com a seguinte afirmação escrita, e também pronunciada por Jean Négroni em voz off: «Quand les hommes sont morts ils entrent dans l`Histoire; quand les statues sont mortes elles entrent dans l`Art. Cette botanique de la mort, c`est ce que nous appelons la culture...». Esta imagem aural, desenhada sobre um fundo negro instaura o plano essencial do cinema, onde se vislumbra o movimento lembrar/esquecer que, perante a morte do homem e a ruína da obra, tende a relegar o primeiro para o domínio da história e a arte para o espaço confinado e cego do museu, enquanto depositário da memória cultural. É, porventura, na confrontação de um discurso alusivo ao desempenho dos objectos no quotidiano das populações africanas com as reconfigurações rasas, fragmentárias e frontais da sua exposição, que o cinema se opõe à sedimentação da imagem-estátua simbólica, fantasmática, celebrada e esculpida pelo museu. É também nesse território de passagem, um espaço-tempo virtual que medeia a história dos homens e a arte das estátuas, que o filme traça o seu percurso de objecto censurado, controverso manifesto anti-colonialista, cujo diálogo profícuo com o Museu é o da desambiguação, perante as cristalizações de uma História que tende a olhar para o tempo e o espaço das civilizações, com os olhos do seu próprio presente, elidindo frequentemente o olhar do outro, e legitimando a versão daquele que olha num gesto de neutralização e anulação da história própria daquele que é olhado. Terá sido, assim, o gesto absolutamente contra-memória de Les Statues Meurent Aussi, que releva da ambiguidade do olhar do cinema sobre o museu, e a sua indelével inscrição histórica, que ditou a sua condição de ruptura com o seu próprio tempo e espaço, instaurando-o como ferida, isto é, como falha da memória, mas também como acção de transgressão da arte sobre a sua própria imagem e vice-versa, movimento que o Museu per se seria incapaz de efectuar, mas para o qual o cinema encontra uma solução: a sutura no limite do conflitual e, por isso mesmo produtiva, pela montagem. Ecoando, paradoxalmente, essa ideia de ambiguidade que, noutras circunstâncias, poderia levarnos à saturada discussão do cinema como atitude ética perante a vida, e à célebre questão do travelling de kapo, comentada por Serge Daney, Georges Didi-Huberman sublinha a ausência de neutralidade da câmara de Resnais e Marker, operada por Ghislain Cloquet, que filma as esculturas africanas, à imagem das fotografias dos álbuns do Museu imaginário, «enquadradas numa espécie de proximidade antropomórfica, leia-se empática»8 sob uma «luz contrastada que dramatiza todos 7

É nesta mesma década que surge o Mouvement National algérien (MNA) que substitui, em 1954, o Mouvement pour le triomphe des libertés démocratiques (MTLD), visando a independência da Argélia, e que se assiste, também, á inscrição política de muitos artistas e intelectuais cujas obras e escritos reflectem um efectivo desejo de mudança. Veja-se, por exemplo, o filme Muriel ou le temps d`un retour (França, 1963) realizado por Alain Resnais, autor que foi, aliás, um dos primeiros subscritores da Déclaration sur le droit à l`insoumission dans la guerre d`Algérie, documento que ficaria conhecido como Manifeste des 121, publicado na revista Vérité-Liberté, a 06 de Setembro de 1960, manifesto esse subscrito por personalidades como André Breton, Claude Lanzmann, Henri Lefebvre, Hubert Damish, Jean-Louis Bory, Jean-Paul Sartre, Marguerite Duras, Maurice Blanchot, Simone de Beauvoir; ou, depois, por Guy Debord, François Truffaut e Françoise Sagan, entre muitos outros. 8 Cf. Georges Didi-Huberman. L`Album de l`art à L`époque du “Musée imaginaire”. Paris: Louvre Éditions, 2013, p. 154.

3

os seus contornos»9. Apesar de tudo, o cinema é aqui, pelo seu olhar abismado numa certa ideia de homem veiculada pelo museu, o traçado de uma realidade social em mutação constante; a abertura para uma outra ordem histórica, instaurando-se como arquivo virtual e imenso, um museu incomensurável, de difícil exibição, que professa a dúvida sobre a legitimidade das ideologias dominantes e das imagens “totémicas” que as representam. Neste contexto, à questão baziniana “O que é o Cinema?”, de algum modo equacionada pela obra integral de Chris Marker, o filme Les Statues Meurent Aussi contrapõe a questão “O que é o Museu?”, no sentido em que evidencia as temáticas que lhe estão associadas, nomeadamente a importância dos legados culturais e do património – incluindo o próprio cinema, que a seu tempo entrará, também ele no museu –, na configuração de uma imagem sócio-cultural e política que confronta uma história-crónica. Efectivamente, o poder de Les Statues Meurent Aussi é bem aquele que Jacques Rancière reconhece quando escreve: «[...] a era em que o cinema toma consciência dos seus poderes é também o tempo em que uma nova ciência histórica se afirma, face à históriacrónica, a história feita a partir dos eventos e das grandes personagens, recorrendo aos “documentos” elaborados pelos seus secretários, arquivistas e embaixadores [...]»10. É, sem dúvida, numa história elaborada a partir dos documentos religiosamente guardados na arkheion dos tempos modernos, que o museu tradicional frequentemente se inscreve. É essa mesma história que a visita ao museu pelo cinema desmonta, deixando a nu uma arte que se excede, uma outra história que se expõe nas marcas da ruína – porque as estátuas também morrem –, nos vestígios residuais dos seus usos. Uma história feita a partir de «traços não escolhidos», ou de «testemunhos mudos», uma imagem emotiva do quotidiano que religa o museu à vida... O cinema será assim, inspirador e contemporâneo de uma nova história que opõe ao documento enquanto “memória oficializada”, o monumento entendido no seu sentido primeiro, de objecto que não pode deixar de comemorar – isto é, lembrar –; o monumento como território que inscreve e revela as actividades dos homens com mais imparcialidade do que «qualquer crónica dos seus [“gloriosos”] empreendimentos»11. São esses monumentos, transformados em documentos pelo museu, que o cinema recupera para a vida: «um objecto caseiro, um tecido, uma peça de cerâmica, uma coluna, uma ornamentação pintada de uma arca [...]. O monumento fala-nos sem palavras, ensina-nos sem intenção de nos instruir, comporta memória pelo simples facto de convocar apenas o seu presente»12. À herança do Museu como colecção e lugar de preservação conceitos que, paralelamente aos conceitos de “museal”, “musealização” e “museologia”, marcam a idealização da obra de arte como objecto-documento-memória, o cinema apõe um outro legado bem mais problemático e substancial, que reflecte a obra como “carne”, “pedra”, “metal”, enfim, “matéria”, isto é como “corpo” de uma experiência, que rememoração alguma pode reconfigurar, a partir das suas ruínas; os vestígios imagéticos e aurais da vida e dos seus fantasmas. Em Key Concepts of Museology André Desvallées and François Mairesse propõem a distinção entre reflexão teórica e acção prática do museu, a partir de um refinamento linguístico que opõe os conceitos de museologia e museografia, e que permite subtrair o museu à “maldição” da sua 9

Ibid., p. 154. Jacques Rancière. Figures de l`Histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 2012, p. 25-26. 11 Ibid., p. 26. 12 Ibid., p. 26. 10

4

condição mais vulgar de arquivo morto – isto é, depósito, para não dizer mausoléu, como lhe chamou Adorno. Os autores partem da questão “Porque existem os museus?”, reconhecendo que o museu é indissociável do conceito de herança, mas salvaguardando o seu carácter de ampla compreensão do termo, propondo o «conceito de campo “museal”13 que é para o museu, o mesmo que o campo de reflexão política é para a política. O “museal” é, assim, o domínio de reflexão crítica e teórica da museologia, enquanto os aspectos práticos do museu são objecto da museografia»14. Mais de sete décadas passadas sobre a efectiva realização de Les Statues Meurent Aussi, e depois de todas as reflexões críticas que o transformaram em manifesto involuntário de uma causa, o filme entra assim no “campo do museal”, e nesse movimento de resgate dos objectos ao espaço tumular dos museus da Europa, inscreve-se, ele próprio, como objecto museológico para as gerações futuras, que encontrarão no mise en abîme da tela de projecção cinematográfica, os museus do passado e os do futuro, incluindo o próprio cinema que assume assim a gigantesca função de expor continuamente o passado ao olhar daqueles, a quem a monstruosa operação de velocidade da rede, vai progressivamente e irremediavelmente tornando cegos. As questões que aqui enunciámos não esgotam a problematização da temática do museu visitado pelo cinema. Como é óbvio, não houve, também, qualquer propósito de subalternizar ou invalidar o lugar do museu tradicional como descritor das vivências humanas. A complexidade das relações entre o cinema e o museu permitiu, apenas, uma breve alusão, mais às questões do que às respostas, ambas permeabilizadas pelo conceito de memória. O filme Les Statues Meurent Aussi surge, enfim, como esboço experimental de um mapeamento de fronteiras continuamente diferidas; mapa incerto, constituído por todas as estátuas dotadas de alma e religadas aos seus lugares de origem, e que conduziu o cinema nesta visita ao museu. O filme é, finalmente, pontuado por constelações que agem sobre a memória, não no sentido de uma aproximação ou assimilação das suas imagens de suposto museu imaginário, mas justamente no movimento de distanciação e delimitação da alteridade que as separa, devolvendo ao outro o espaço absolutamente necessário e urgente de legitimação da sua diferença.

Lisboa, 27 de Janeiro de 2014 Maria Irene Aparício

13

O termo é, aparentemente, um neologismo, sem inscrição nos dicionários de língua inglesa. Não havendo, por isso, também, possibilidade da sua tradução para português. Daí que tivéssemos optado pela conservação do termo “museal”. 14 André Desvallées and François Mairesse (Edited by). Key Concepts of Museology. Armand Colin, 2010. P. 19.

5

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.