Sobre o Naturalismo em Ética e Política (Naturalism in Ethics and Politics)

September 10, 2017 | Autor: V. Brito Júnior | Categoria: Evolutionary Psychology, Naturalism, Evolutionary Science, Naturalismo
Share Embed


Descrição do Produto

Sobre o Naturalismo em Ética e Política Por Valdenor Monteiro Brito Júnior 1 RESUMO: este artigo tem por objetivo mostrar a importância de conceber a filosofia de uma perspectiva naturalista, inclusive para o pensamento em ética e política. Apresentamos a distinção entre naturalismo substantivo e metodológico, bem como o surgimento deste último com o empirismo sem dogmas de Willard Van Orman Quine. Tratamos de como a integração conceitual é fundamental para o sucesso da ciência, e mostramos que o paradigma atual das ciências humanas – o Modelo Padrão das Ciências Sociais – impede essa integração no âmbito destas ciências. Apresentamos as ciências – psicologia evolucionária, ciência cognitiva, neurociência, genética comportamental, antropologia biológica e evolucionária – que serão as pontes para a integração das ciências humanas com as ciências naturais. Abordamos formas de como o naturalismo pode afetar o pensamento em ética e política, em especial sobre as condições em que modelos idealizados para análise de variáveis normativas são aplicáveis ao mundo real. Concluímos pela importância e urgência da integração conceitual entre ciências naturais e sociais, e a “naturalização” da filosofia moral e política. Palavras-chave: Naturalismo, Quine, Integração Conceitual, Ética, Filosofia Política ABSTRACT: this article has, as objective, to show the importance of conceiving philosophy from a naturalist perspective, inclusive for the thinking in ethics and politicals. We show the distinctions between substantive naturalism and methodological naturalism, as well as the appearance of this last one with the without dogmas empiricism of Willard Van Orman Quine. We treat of how the conceptual integration is fundamental for the success of science, and we show that the actual paradigm of human science - the Standard Model of Social Science - prevents such integration in the ambit of these sciences. We show the sciences - evolutionary psychology, cognitive science, neuroscience, behavioral genetics, biological and evolutionary anthropology - that will be the bridges to the integration of human sciences with the natural sciences. We approach ways of how naturalism can affect the thinking of ethics and politicals, in particular in the conditions where idealized models, for the analysis of normative variables, are applicable to the real world. We conclude by the importance and urgency of conceptual integration between natural sciences and social sciences, and the "naturalization" of moral and political philosophy. Key-Words: Naturalism, Quine, Conceptual Integration, Ethics, Political Philosophy.

1

Bacharel em Direito pelo CENTRO UNIVERSITÁRIO DO PARÁ - CESUPA. Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

151

Valdenor Monteiro Brito Júnior

1. INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo mostrar a importância de conceber a filosofia da perspectiva naturalista pode impactar positivamente sobre o discurso em ética e política, alcançando resultados potencialmente mais precisos nesses âmbitos. Em um primeiro momento, será explicado o que é o naturalismo, quais são os tipos de naturalismo que existem e a importância primordial da figura do filósofo Willard Van Orman Quine para a “virada naturalista” em filosofia. Em um segundo momento, será explanada a possibilidade de extensão do método experimental para as ciências humanas/sociais e a crítica ao Modelo Padrão das Ciências Sociais. Por fim, serão sugeridas formas pelas quais o saber naturalista em filosofia podem impactar positivamente disciplinas como a ética e a filosofia política.

2. O QUE É O NATURALISMO?

2.1. OS TIPOS DE NATURALISMO O naturalismo pode ser considerado como uma reação crítica ao método de tratamento das questões filosóficas pelos filósofos analíticos. A filosofia analítica, logo na primeira metade do século XX, veio a considerar que os problemas filosóficos tradicionais eram problemas acerca do uso da linguagem. A filosofia analítica pretendia, então, que ainda houvesse um método de acesso à realidade que fosse próprio da filosofia, consistindo nesta análise da linguagem e de conceitos. O naturalismo surge, nesse contexto, para defender que os problemas filosóficos não podem ser respondidos por esses métodos de biblioteca (armchair) a priori dos filósofos, mas cuja resposta demandaria sua implantação em (ou substituição por) teorias empíricas adequadas (LEITER, 2012, p. 68).

Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

152

Sobre o naturalismo em ética e política

Contudo, esse modo “histórico” de encarar o naturalismo pode obscurecer uma distinção fundamental entre variantes de naturalismo, quais sejam, o naturalismo metodológico e o naturalismo substantivo (LEITER, 2012, s. n.). O naturalismo substantivo está relacionado, primordialmente, com a ontologia usada por nossas ciências mais bem-sucedidas, de tal forma que os únicos objetos aceitos nessa ontologia seriam físicos ou redutíveis aos físicos, ou seja, uma forma de fisicalismo: Tendo os cientistas descoberto em que consistem os componentes físicos fundamentais do mundo, o conteúdo do fisicalismo pode então ser muito simplesmente enunciado. De acordo com os fisicalistas, tudo é, ou o é de alguma maneira apropriada, dependente do físico. (RITCHIE, 2012, p. 161162)

Mas também há um naturalismo substantivo em termos semânticos: S-naturalism in philosophy is either the (ontological) view that the only things that exist are natural or physical things; or the (semantic) view that a suitable philosophical analysis of any concept must show it to be amenable to empirical inquiry. (…) In the semantic sense, S-naturalism is just the view that predicates must be analyzable in terms that admit of empirical inquiry: so, e.g., a semantic S-naturalist might claim that “morally good” can be analyzed in terms of characteristics like “maximizing human well-being” that admit of empirical inquiry by psychology and physiology (assuming that well-being is a complex psycho-physical state). (LEITER, 2012, s. n.)

Já a outra variante, o naturalismo metodológico, significa que a teorização filosófica deve estar conectada à investigação empírica das ciências, rejeitando-se a ideia de que se possa ter uma “filosofia primeira” que possa resolver problemas filosóficos a priori (LEITER, 2012, p. 70). Isso significa também que não há um acesso propriamente filosófico à realidade, nem um método especial reservado à filosofia para acessar a realidade do mundo, sendo toda a realidade objeto da ciência empírica ou (ao menos potencialmente) acessível por meio desta. A filosofia é apenas o braço mais reflexivo e abstrato das ciências: Quando o conhecimento se torna sistemático, passamos a chama-lo de conhecimento científico, mas o conhecimento enquanto tal não contém restrição nenhuma quanto ao seu assunto. Em grande medida, a “filosofia” é o nome de todas aquelas questões a que não conseguimos responder de maneira sistemática que caracteriza a ciência. Essas questões integram – embora não se restrinjam a ela – a grande família das questões conceituais que preocupam tradicionalmente os filósofos: o que é a verdade, a justiça, o conhecimento e assim por diante. Para os propósitos desta discussão, a única Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

153

Valdenor Monteiro Brito Júnior

distinção importante entre filosofia e ciência é a seguinte: a ciência é um conhecimento sistemático; a filosofia é, em parte, um esforço para alcançar aquele ponto a partir do qual podemos haurir conhecimento sistemático. (...) A partir do século XVII, a área do conhecimento sistemático, ou melhor, o conhecimento científico, desenvolveu-se com o aumento de métodos sistemáticos de aquisição de conhecimento. Infelizmente, boa parte das questões que mais nos intrigam ainda não se mostrou muito afável aos métodos de investigação científica. Mas não sabemos até onde é possível chegar com esses métodos; não devemos afirmar a priori que certas questões estão além do alcance da ciência. (SEARLE, 2010, p. 24)

O leitor pode imaginar isso da mesma maneira como a ciência cruzou fronteiras que antes eram de privilégio exclusivo da religião. Exemplos importantes disso seriam a origem da vida, tendo sido a narrativa criacionista suplantada pela teoria da evolução por seleção natural, e mesmo a origem do universo, existindo modelos pautados exclusivamente em leis da física para dar conta desse evento, como o da autocausação em uma curva temporal fechada (GOTT III; LI, 1998). Por que a filosofia não sofreria pressões semelhantes diante do avanço das ciências e mesmo da própria natureza das questões filosóficas enquanto questões sobre um mundo real e natural? Essa continuidade da filosofia com as ciências naturais e sociais pode ser obtida por dois modos: “continuidade de resultados” e “continuidade de métodos” (LEITER, 2012, p. 71). A continuidade dos resultados demanda que as teorias filosóficas estejam fundamentadas nos resultados das ciências bem-sucedidas, enquanto a continuidade de métodos demanda apenas que as teorias filosóficas imitem e/ou adotem os métodos de investigação e os estilos de explicação que caracterizam as ciências bem-sucedidas (LEITER, 2012, p. 71). O foco do presente artigo é sobre o naturalismo metodológico, não sobre o substantivo. E como é impossível falar de naturalismo metodológico sem mencionar a obra de Willard Van Orman Quine, a próxima seção será reservada ao seu trabalho “divisor de águas” em filosofia. 2.2 WILLARD VAN ORMAN QUINE E O EMPIRISMO SEM DOGMAS Um dos problemas a afligir os filósofos por séculos é o chamado problema do ceticismo: “Como podemos ter certeza de que sabemos alguma coisa?” (RITCHIE, 2012, p. Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

154

Sobre o naturalismo em ética e política

24). A resposta a esse problema poderia demandar uma separação estrita entre filosofia e ciência, uma vez que a ciência necessitaria de uma “filosofia primeira”, anterior e fundadora da ciência e de nossa confiança epistemológica nela: Se um cientista tentasse explicar como eu sei acerca dos objetos a minha frente e começasse a falar sobre a luz refletindo a superfície do laptop, que é então focada em minha retina pela lente dos meus olhos (entre outras coisas), onde é convertida em um sinal elétrico e enviada através do nervo ótico ao meu cérebro, e assim por diante – por mais plena e completa que essa resposta parecesse, ela não responderia à preocupação de Descartes. Se levarmos Descartes a sério não poderemos estar certos de que qualquer um desses objetos referidos na explicação do cientista exista. Portanto, não podemos usálos para responder à questão de Descartes. Eis aqui, portanto, um problema que estabelece a filosofia radicalmente separada da ciência. Trata-se ainda de um problema que devemos responder antes que possamos pôr total confiança nos resultados de qualquer ciência. (RITCHIE, 2012, p. 24)

Diante disso, a filosofia teria um papel “fundacionalista”, de estabelecer as bases indubitáveis do conhecimento, a partir das quais podemos assegurar a verdade de nossa ciência. No caso dos empiristas ou positivistas lógicos no início do século XX, essas bases indubitáveis advêm da experiência e assegurariam a ciência: Los fundacionalistas quieren una reconstrucción de la relación entre teorías y pruebas que justifique el estatus epistémico privilegiado de, al menos, algún subconjunto de nuestras teorías: nuestras teorías (en particular, nuestras mejores teorías de la ciencia natural) deben estar “basadas” en pruebas indudables (esto es, impresiones sensoriales inmediatas). (LEITER, 2012, p. 73)

E então apareceu Willard Van Orman Quine. Com seu artigo seminal de 1951, “Dois Dogmas do Empirismo”, mais tarde publicado, junto com outros ensaios, em “De Um Ponto de Vista Lógico”, em 1953 (edição brasileira: 2011). Os dois dogmas atacados seriam: 1) a distinção analítico/sintético; 2) o reducionismo com base no qual a linguagem da ciência é redutível à experiência imediata. Nas palavras dele mesmo: O empirismo moderno foi condicionado, em grande parte, por dois dogmas. Um deles é a crença em uma divisão fundamental entre verdades que são analíticas, ou fundadas em significados independentemente de questões de fato, e verdades que são sintéticas, ou fundadas em fatos. O outro dogma é o reducionismo: a crença de que cada enunciado significativo é equivalente a alguma construção lógica com base em termos que se referem à experiência imediata. (QUINE, 2011, p. 37)

Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

155

Valdenor Monteiro Brito Júnior

O dogma da distinção analítico/sintético deriva da constatação óbvia de que a verdade de um enunciado depende tanto da linguagem como de fatos extralinguísticos, mas confunde-se ao postular uma separação entre o componente linguístico e o componente factual da verdade de um enunciado, de modo que, para alguns enunciados, o componente factual seria nulo, e aí teríamos as verdades analíticas (QUINE, 2011, p. 59). O que Quine visa mostrar ao longo da primeira parte do artigo é que a noção de “analiticidade” nunca foi esclarecida satisfatoriamente. O dogma do reducionismo tem relação com a teoria verificacionista do significado: Mas o dogma do reducionismo tem, de forma mais sutil e atenuada, continuado a influenciar o pensamento do empirista. Persiste a noção de que, para cada enunciado ou para cada enunciado analítico, existe associado a ele um domínio único de eventos sensoriais possíveis tais que a ocorrência de qualquer um deles aumenta a probabilidade da verdade do enunciado, e existe associado a ele outro domínio único de eventos sensoriais possíveis cuja ocorrência diminuiria essa probabilidade. Essa noção está evidentemente implícita na teoria verificacionista do significado. O dogma do reducionismo sobrevive na suposição de que cada enunciado, tomado isoladamente de seus pares, pode, de qualquer forma, admitir confirmação ou invalidação. (QUINE, 2011, p. 64-65)

Ambos os dogmas estão ligados por meio dessa teoria verificacionista, uma vez que, se faz sentido falar em confirmação e invalidação de enunciados isoladamente, parece plausível que haja um tipo-limite de enunciado que é confirmado aconteça o que acontecer (QUINE, 2011, p. 65). As raízes dos dogmas são idênticas: Os dois dogmas, na verdade, têm raízes idênticas. Observamos há pouco que, em geral, a verdade dos enunciados depende obviamente tanto da linguagem como de fatos extralinguísticos, e notamos que essa particularidade óbvia implica, não logicamente, mas de modo completamente natural, o sentimento de que a verdade de um enunciado é de alguma forma decomponível em um componente linguístico e um componente factual. O componente factual deve, se formos empiristas, reduzir-se a um domínio de experiências confirmatórias. No caso extremo em que o componente linguístico é tudo o que importa, um enunciado verdadeiro é analítico. Mas espero que estejamos agora impressionados com o quão obstinadamente a distinção entre analítico e sintético resistiu a qualquer demarcação direta. (...) Tomada coletivamente, a ciência tem sua dupla dependência da linguagem e da experiência, mas essa dualidade não é significativamente delineável nos enunciados da ciência tomados um a um. (QUINE, 2011, p. 66)

Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

156

Sobre o naturalismo em ética e política

Ao dogma do reducionismo, Quine (2011, p. 65) contrapõe uma tese holista, segundo a qual os enunciados sobre o mundo exterior enfrentam o tribunal da experiência sensível como um corpo organizado, não isoladamente. Isso significa que inclusive enunciados altamente abstratos como aqueles da lógica e da matemática se confrontam com a experiência e podem ser invalidados por esta. Não que os enunciados matemáticos e lógicos sejam substancialmente “empíricos” como tais, mas sim que eles servem para subsidiar uma ciência empírica que faz previsões acerca de eventos concretos. Pode-se imaginar a ciência como um conjunto de enunciados que, diante de uma experiência recalcitrante e que foge à previsão de uma teoria, pode ser modificada, potencialmente, em quaisquer de seus enunciados; contudo, estamos mais dispostos a fazer essa modificação em alguns enunciados ao invés de outros. Por exemplo, um cientista será considerado um mau cientista se, há cada previsão de suas hipóteses que falha diante da experiência, resolver sempre revisar a aritmética elementar para que, assim, sua teoria possa ser válida. Mas podem existir razões de peso para revisar mesmo a matemática. Isso não é uma especulação por parte de Quine, porque já aconteceu na história da ciência: Para um pensador do século XVIII, alguém como Kant, teria sido impossível imaginar revisar afirmações tais como ‘os ângulos internos de um triângulo somam 180 graus’. Com o desenvolvimento da geometria não euclidiana, tornou-se possível pensar que esta afirmação pode ser falsa; e com o desenvolvimento da teoria de Einstein da relatividade geral, começamos a pensar que, de fato, era falsa (enquanto uma afirmação acerca do espaço físico, pelo menos). Podemos estar na mesma situação em relação à nossa lógica e aritmética básicas que o pensador do século XVIII estava em relação à geometria. (RITCHIE, 2012, p. 58-59)

Assim, deve-se pensar que é o todo da ciência que se contrapõe à experiência, e não há uma única maneira de revisar os enunciados para que a ciência continue ajustada aos fatos, de modo que a ciência é subdeterminada pela experiência: a totalidade da ciência é como um campo de força, cujas condições limítrofes são a experiência. Um conflito com a experiência na periferia ocasiona reajustes no interior do campo. Os valores de verdade têm de ser redistribuídos em alguns de nossos enunciados. A reavaliação de alguns enunciados acarreta a reavaliação de outros, em função de suas interconexões lógicas, sendo as leis da lógica, por sua vez, simplesmente certos elementos adicionais do sistema, certos elementos adicionais do campo. Tendo reavaliado um enunciado, devemos reavaliar alguns outros, que podem ser enunciados conectados logicamente com os primeiros ou Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

157

Valdenor Monteiro Brito Júnior

podem ser enunciados sobre as próprias conexões lógicas. Mas o campo total é tão subdeterminado por suas condições limítrofes – a experiência -, que há grande margem de escolha a respeito de quais enunciados devem ser reavaliados à luz de qualquer experiência individual contrária. Nenhuma experiência particular está vinculada a algum enunciado no interior do campo, exceto indiretamente por meio de considerações de equilíbrio que afetam o campo como um todo. (QUINE, 2011, p. 67)

Isso poderia parecer implausível à primeira vista, mas é bem claro que “qualquer enunciado pode ser considerado verdadeiro, aconteça o que acontecer, se fizermos ajustes drásticos o suficiente em outra parte do sistema” (QUINE, 2011, p. 67): por exemplo, mesmo um enunciado bastante próximo da periferia pode ser mantido como verdadeiro diante da experiência que o contraria, alegando-se alucinação ou revisando-se a lógica. Isso pode parecer um problema: Quine defenderia que nossa ciência não é exata, nem confiável? Seria ele um relativista pós-moderno? Longe disso. Leiter (1997, p. 1752) comenta que, para Quine, a ciência separa o joio do trigo quando se ocupa das diversas “perspectivas” sobre a realidade, e a consequência é bastante austera: a palha inclui a religião, a metafísica, a poesia e a astrologia, mas também a psicologia não behaviorista e todas as “ciências especiais”, à medida que não sejam redutíveis à física. E cabe lembrar que era o próprio Quine (2010, p. 47) quem dizia que a ciência era o último árbitro da verdade. Como se poderia reconciliar esta visão tão positiva da ciência, com o que vimos anteriormente, acerca da subdeterminação da teoria em relação aos fatos? O caminho é sugerido no próprio “Os Dois Dogmas do Empirismo”, onde se defende um empirismo sem dogmas em que o sucesso preditivo, não a correspondência um-a-um de seus termos com a experiência, é a justificativa suficiente do empirista: Como empirista, continuo a pensar o esquema conceitual da ciência, em última instância, como uma ferramenta para prever a experiência futura à luz da experiência passada. Os objetos físicos são inseridos conceitualmente na situação como intermediários convenientes, não pela definição em termos de experiência, mas simplesmente como postulados irredutíveis, comparados, epistemologicamente, aos deuses de Homero. De minha parte, como físico leigo, acredito em objetos físicos, e não nos deuses de Homero; e considero um erro científico acreditar no contrário. Mas, quanto ao fundamento epistemológico, os objetos físicos e os deuses diferem apenas em grau, não em espécie. Ambos os tipos de entidades integram nossa concepção apenas como postulados culturais. O mito dos objetos físicos é epistemologicamente superior à maior parte dos mitos na medida em que se mostrou mais eficaz do que outros como dispositivo para fazer operar uma estrutura manipulável Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

158

Sobre o naturalismo em ética e política

no fluxo da experiência. (...) A ciência é uma continuação do senso comum, e dá continuidade ao procedimento do senso comum de expandir a ontologia para simplificar a teoria. (QUINE, 2011, p. 69)

Como Leiter (1977, p. 1792) bem pontua, o motivo para aderir à ciência em Quine não é fundacionalista, mas sim pragmático: o sucesso da ciência em permitir que lidemos com o fluxo da experiência de modo satisfatório. Aliás, isso é dito expressamente na conclusão do ensaio que estamos examinando: Carnap, Lewis e outros tomam uma posição pragmática na questão da escolha entre formas linguísticas e estruturas científicas, mas seu pragmatismo termina na fronteira imaginada entre o analítico e o sintético. Ao repudiar essa fronteira, defendo um pragmatismo mais completo. A cada homem é dada uma herança científica, acrescida de um bombardeio contínuo de estimulação sensorial; e as considerações que o guiam na elaboração de sua herança científica para ajustar suas contínuas incitações sensoriais são, quando racionais, pragmáticas. (QUINE, 2011, p. 71)

Esse pragmatismo também é espelhado na ideia de que, ao ajustar nossa ciência às experiências recalcitrantes, seguimos alguns critérios convenientes, como a busca da simplicidade e o conservadorismo. Em outro livro seu, “Palavra e Objeto”, explica-se o porquê da simplicidade ser um objetivo pragmaticamente valioso para o senso comum e para a ciência: De qualquer maneira, podemos dizer que considerações acerca de simplicidade, em algum sentido, determinam até mesmo os atos mais casuais de identificação particular do observador menos inquisitivo. Pois ele está continuamente tendo de decidir, mesmo que implicitamente, se deve construir dois encontros particulares como encontros repetidos com um objeto físico idêntico, ou como encontros com dois objetos físicos distintos. E ele decide de forma a minimizar, segundo o melhor de sua habilidade inconsciente, tais fatores como multiplicidade de objetos, rapidez de mudança provisória de qualidade ou posição, e, em geral, irregularidade da lei natural. (...) O mecanismo neurológico da propensão à simplicidade é indubitavelmente fundamental apesar de desconhecido, e seu valor de sobrevivência, extraordinário. (QUINE, 2010, p. 42-43)

E: Um benefício concomitante da simplicidade que pode não ser notado é o de que ela tende a aumentar o escopo da teoria – sua riqueza em consequências observáveis. Seja θ uma teoria, e seja C a classe de todas as consequências testáveis de θ. A teoria θ nos terá sido sugerida por algum conjunto K de observações anteriores, uma subclasse de C. Em geral, quanto mais simples θ, menor a porção de K de C que terá sido suficiente para evocar θ. Dizer isso é apenas repetir a observação anterior: de que a simplicidade é aquilo que guia a extrapolação. Porém a relação também pode ser descrita de forma Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

159

Valdenor Monteiro Brito Júnior

invertida: dado K, quanto mais simples θ, mais inclusiva C tenderá a ser. Concedido isso, verificações subsequentes de C poderão eliminar θ; enquanto isso, há ganho em escopo. (QUINE, 2010, p. 43-44)

Assim, podemos concordar com Marcelo Bulcão Nascimento (2008, p. 111) que Quine apresenta uma nova forma de realismo, um realismo naturalista/pragmatista, pelo qual, mesmo rejeitada a pretensão de uma descrição absoluta da realidade por meio da linguagem, ainda assim podemos descrever o mundo por meio da linguagem. A questão da verdade é feita dentro de uma teoria e, assim concebida, é questionada rigorosa e seriamente: O que tivemos oportunidade de ver, assim, é que, com o naturalismo quineano, nós podemos, sim, falar de conhecimento e de crença. Conhecimento do mundo, crença na realidade de seus objetos. A diferença é que, para Quine, isso não implica nenhuma garantia absoluta. As garantias são internas ao método científico, falível por certo, virtualmente em perpétuo desenvolvimento. A diferença é que Quine renuncia — e o faz desde o ponto de partida — àquele conhecimento absoluto, final. Recusa mesmo a idéia daquele conhecimento que, embora falível, pretende estar indo na direção do conhecimento absoluto, final, definitivo. A ele assim renunciando, bem como a qualquer projeto fundacionista, Quine fica com as verdades internas às melhores teorias de que o homem dispõe em sua renovada tentativa de dar conta do mundo, de sua experiência. Com o naturalismo, Quine consegue reorientar o empirismo tradicional e escapar de seus dogmas. Incidentalmente, ou melhor, necessariamente, nessa reorientação do empirismo, ele também reorienta o realismo em ciência e nos permite adotar uma posição realista em ciência que é não-dogmática. Em Quine, crença e conhecimento são possíveis, mas nem por isso são definitivos, absolutos; eles são sem dogmas. (BULCÃO, 2008, p. 111-112)

Assim, realmente, não há tribunal maior do que a ciência, e as questões da ontologia e da verdade são internas à ciência. No que diz respeito ao conhecimento, a ciência é tudo o que temos. Diminuímos, até aqui, nossa ambição, de forma a nos conformarmos com uma doutrina relativista que defende a estimativa-de-verdade de enunciados de cada teoria como verdadeiros para tal teoria, sem tolerar crítica mais elevada? Não. A consideração salvadora é a de que nós continuamos levando a sério nosso próprio agregado particular de ciência, nossa própria teoria de mundo particular ou a frouxa trama total de quase-teorias, seja o que ela for. Ao contrário de Descartes, nós possuímos e usamos nossas crenças do momento, mesmo em meio ao filosofar, até que, por meio do que é vagamente chamado de método científico, nós as mudamos aqui e acolá para melhor. Dentro de nossa própria doutrina total em evolução, nós podemos julgar a verdade tão seriamente e absolutamente quanto possível; sujeitos à correção, porém isso é evidente. (QUINE, 2010, p. 47)

As consequências mais drásticas são enfrentadas pela própria filosofia, dado o diagnóstico de Quine em “Dois Dogmas da Filosofia”. Sem um domínio de verdades Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

160

Sobre o naturalismo em ética e política

analíticas que seriam o objeto apropriado do pensamento filosófico e que excluiriam quaisquer críticas por parte da ciência, temos que todas as verdades são empíricas e, portanto, sujeitas à revisão científica. Logo, a filosofia também se ocuparia de questões que, potencialmente, são também sujeitas à revisão empírica e, em alguns casos, de fato as questões filosóficas seriam substituídas por em questões empíricas (como na epistemologia naturalizada de Quine). A filosofia é o ramo mais reflexivo e abstrato das ciências.

3. O ESTUDO CIENTÍFICO DO SER HUMANO Steven Pinker (2004, p. 106) comenta que o reducionismo bom, ou hierárquico, não consiste em substituir um campo de conhecimento por outro, mas conectá-los ou unificalos. De fato, a integração conceitual é uma marca das ciências bem-sucedidas, porque promove a consistência entre campos teóricos, reforçando o holismo inerente ao sucesso pragmático da ciência. Integração conceitual, ou integração vertical, é o princípio pelo qual várias disciplinas dentro das ciências sociais e comportamentais seriam feitas mutuamente consistentes e consistentes com o que é conhecido nas ciências naturais, às quais já são integradas entre si (COSMIDES ET AL, 1992, p. 4). Uma teoria é conceitualmente integrada quando é compatível com dados e teoria de outros campos relevantes do saber científico, por exemplo, químicos não propõem teorias que violem o princípio da conservação da energia, elementar para a física (COSMIDES ET AL, 1992, p. 4). Enquanto as ciências naturais têm sido entendidas como contínuas, o mesmo não ocorre nas ciências humanas: biologia evolucionária, psicologia, psiquiatria, antropologia, sociologia, história e economia existem em grande medida isoladas uma em relação às outras e a formação em um desses campos não acompanha regularmente um entendimento compartilhado dos fundamentos dos demais (COSMIDES ET AL, 1992, p. 4).

Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

161

Valdenor Monteiro Brito Júnior

A integração conceitual é uma característica que garante um crescimento poderoso no conhecimento ao permitir que investigadores usem conhecimento desenvolvido em outras disciplinas para resolver problemas em sua própria: por exemplo, evidência sobre a estrutura da memória e da atenção pode ajudar antropólogos culturais a entender por que alguns mitos e ideias se espalham mais facilmente e rapidamente do que outros (COSMIDES ET AL, 1992, p. 12). Cabe destacar que a força das ciências naturais não advém do empirismo por si só, mas empirismo unido com o poder da inferência, tendo em vista um processo de feedback positivo: quanto mais é conhecido – quanto mais pode ser simultaneamente trazido à análise – tanto mais pode ser deduzido, explicado e mesmo observado (COSMIDES ET AL, 1992, p. 13). E a consequência de não ter esta integração conceitual nas ciências humanas é a de permanecermos em uma situação na qual encontramos biólogos evolucionários postulando processos cognitivos que possivelmente não resolveriam o problema adaptativo sobre consideração, psicólogos propondo mecanismos psicológicos que nunca poderiam ter evoluído e antropólogos fazendo suposições implícitas sobre a mente humana que nós já sabemos serem falsas (COSMIDES ET AL, 1992, p. 4). Diante disso, pode-se perguntar: se a integração conceitual é importante para o status pragmático da ciência, por que as ciências sociais/humanas não foram ainda (completamente) integradas às ciências naturais e entre si? Um dos motivos está no paradigma subjacente usada por muitos estudiosos na área das ciências humanas/sociais: o Modelo Padrão das Ciências Sociais (Standard Social Science Model), termo criado por John Tooby e Leda Cosmides (1992, p. 23), que defendem que existe um conjunto de suposições e inferências sobre os seres humanos, suas mentes e sua interação coletiva que tem provido os fundamentos conceituais das ciências sociais há aproximadamente um século e serve como garantia intelectual para o isolacionismo das ciências sociais. O Modelo Padrão das Ciências Sociais é formado por algumas ideias fortemente conectadas. Os grupos humanos particulares são caracterizados como tendo uma cultura: práticas comportamentais, crenças, sistemas ideacionais, sistemas de símbolos significantes Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

162

Sobre o naturalismo em ética e política

ou substância informacional de algum tipo que é abrangentemente distribuída ou quase universal no grupo, perfazendo entidades delimitadas (COSMIDES; TOOBY, 1992, p. 31). Os elementos comuns são mantidos e transmitidos pelo grupo, uma entidade que tem continuidade intergeracional; e as linhas separadas dessa substância informacional, a cultura, transmitida de geração em geração, são a explicação para as similaridades dentro do grupo e as diferenças entre os grupos. As similaridades são consequências da cultura herdada por todos aqueles que exibem a similaridade e, a menos que outros fatores intervenham, a cultura é precisamente replicada de geração em geração (COSMIDES; TOOBY, 1992, p. 32). Esse processo é mantido através de aprendizado, que, desde a perspectiva do grupo, é um processo organizado ao nível de grupo denominado socialização, imposta pelo grupo à criança para fazer dela igual aos adultos de sua cultura; e o aprendizado é uma explicação poderosa e suficientemente especificada para qualquer aspecto da vida humana organizada que varia de indivíduo para indivíduo e de grupo para grupo (COSMIDES; TOOBY, 1992, p. 32). A organização mental/social da espécie humana é resultado de processos emergentes ao nível do grupo, cujos determinantes operam nesse nível e o indivíduo é um recipiente mais ou menos passivo de sua cultura e produto dela. Tudo que é organizado e com conteúdo nas mentes dos indivíduos veio da cultura e é socialmente construído. Os mecanismos evoluídos da mente são livres de conteúdo e independentes de conteúdo, logo, todo o conteúdo se origina do ambiente social, e, às vezes, do não social (COSMIDES; TOOBY, 1992, p. 32). Esse Modelo Padrão das Ciências Sociais também é anti-evolucionista: as ciências sociais, no século atual, foram em grande parte construídas sobre a rejeição da teoria darwiniana e da perspectiva evolucionista. Apesar de, da boca para fora, admitir-se que a evolução aconteceu, o fato de ela ter acontecido há tanto tempo vem sendo razão suficiente para acreditar que suas implicações são mínimas. (FOLEY, 2003, P. 243)

Uma crítica a esse modelo foi feita por Robert Foley (2003, p. 246): cultura não é um modelo útil, uma vez que ele escamoteia o problema, ao invés de solucioná-lo. O próprio conceito seria raramente definido ou constantemente redefinido, muitas vezes sendo algo como a frase de Lord Raglan, “tudo o que nós fazemos que os macacos não fazem”, o que o Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

163

Valdenor Monteiro Brito Júnior

torna uma tautologia, porque significaria as coisas que não são biológicas (FOLEY, 2003, p. 246). Ademais, A capacidade do Modelo Padrão das Ciências Sociais de explicar os humanos, em última análise, repousa na adequação do conceito de cultura. Como conceito analítico e evolucionário, essa adequação é passível de questionamento. Em princípio, trata-se de um conceito estático, de é-ou-nãoé. As criaturas ou têm cultura ou não têm, e vêm daí, por exemplo, as discussões, tão frequentemente tautológicas, sobre se os chimpanzés ou outros animais vivos possuem ou não cultura. Chegar a uma conclusão sobre essa questão não significa concluir o que quer que seja a respeito da evolução humana, porque ou os chimpanzés não a têm, e, nesse caso, o termo simplesmente confirma a definição de Lord Raglan, ou eles a têm e, nesse caso, alguma definição nova para a singularidade humana será necessária. Os humanos anteriores à humanidade aqui descritos são prova da inadequação da cultura como instrumento analítico, uma vez que está claro que os hominídeos extintos situam-se exatamente sobre o divisor de águas daquilo que, em geral, é entendido por cultura. A complexidade dos comportamentos dos quais eles eram capazes não pode ser restringida à cultura, e o fato de termos evitado por completo a abordagem cultural permitiu que aprendêssemos muito mais. (FOLEY, 2003, p. 246-247)

Apesar do conceito “cultura” não ser muito operacional, aquilo que é geralmente referido por esse nome, especialmente os construtos mentais que estão na base da complexidade do comportamento humano, pode ter grande impacto sobre o modo como a evolução passou a operar, como se vê nos modelos de coevolução gene-cultura; mas esses modelos reduzem a cultura a um conceito muito mais limitado e específico do que aquele geralmente empregado no Modelo Padrão das Ciências Sociais (FOLEY, 2003, p. 247). Por exemplo, temos o “modelo de transmissão (cultura) de Henrich”: Henrich’s model (30) demonstrates that under certain critical conditions, directly biased transmission can lead to cumulative adaptation of a culturally inherited skill, even when the transmission process is inaccurate. Each individual in a population of size N has a z value, zi, that measures their level of ability at some cultural skill or in some cultural domain. Members of this population attempt to learn from the maximally skilled individual (i.e., direct bias), but an imperfect learning process leads on average to a loss of skill (a reduction in z value), determined by the parameter α. However, individual errors or “inaccurate inferences” during transmission (the extent of which are governed by a parameter β) occasionally allow some learners to acquire a z value greater than that of their model. Henrich shows that as population size, N, increases, the more likely it is that the positive combined effect of these occasional inaccurate inferences and the selective choice of cultural model to copy will outweigh the degrading effect of low-fidelity transmission. This results in an increase in the mean level of skill in the population, z. He terms this “cumulative adaptive evolution” and derives the critical population size necessary, N*, for this to occur for specific ratios of α and β (30,31). (POWELL ET AL, 2009, p. 1.300) Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

164

Sobre o naturalismo em ética e política

Um importante aspecto a ser destacado, inclusive, é que a sociabilidade mesmo é um fenômeno puramente natural, biológico, e encontrada em todos os primatas. De fato, a explicação da origem da sociedade não é tanto uma tarefa dos antropólogos/sociólogos, mas sim dos primatólogos: A sociabilidade é, de fato, parte do cerne da adaptação dos primatas. Ela é, no jargão da sistemática evolucionista, uma “plesiomorfia”, ou seja, um traço mantido desde os primórdios da espécie, e não uma característica singular dos hominídeos e dos humanos. A tarefa de explicar as origens da sociabilidade e da sociedade cabe mais aos primatologistas que aos antropólogos, uma vez que à época do surgimento dos hominídeos ela já se encontrava bem estabelecida. (FOLEY, 2003, p. 218)

Isso também conduz a pensar sobre o papel da ecologia: O segundo ponto é que a discussão sobre a relação entre tamanho do cérebro, sociabilidade e energética materna, exposta nos dois capítulos anteriores, mostrou que não é possível separar o social do ecológico, o comportamental da energética na qual o comportamento se baseia. A energia permeia todos os aspectos da vida e, portanto, mesmo o comportamento funcionalmente mais remoto tem a capacidade de retrogadar até os elementos mais básicos da vida. (FOLEY, 2003, p. 248)

Cosmides e Tooby (1992, p. 33-34) fornecem três críticas principais ao Modelo Padrão das Ciências sociais: 1) Mecanismos psicológicos ou módulos 2 podem desenvolver-se em qualquer momento do ciclo de vida, de modo que, o que está ausente na criança não necessariamente estará presente no adulto por aprendizado, assim como a presença de dentes na criança, mas não no recém-nascido, obviamente não acontece por aprendizado, mas por processos inatos de desenvolvimento. 2) A idéia de que é possível partir o comportamento em traços “geneticamente determinados” e “ambientalmente determinados” é um grave mal entendido acerca da biologia e da explicação desta ao comportamento, já que “fatores biológicos” e “fatores ambientais” não são excludentes. 3) O Modelo Padrão das Ciências Sociais requer uma psicologia impossível: uma arquitetura psicológica que consistisse em nada mais que mecanismos de propósito geral, 2

Isto é, estruturas complexas que são funcionalmente organizadas para processar informação de modo específico, não genérico. Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

165

Valdenor Monteiro Brito Júnior

livres de conteúdo, não poderiam realizar com sucesso as tarefas que a mente humana realiza, ou resolver os problemas adaptativos que os humanos evoluíram para resolver – desde a aquisição da linguagem até a seleção de parceiros sexuais. Dito isso, é interessante apresentar que existem promissoras ciências acerca do ser humano que não pressupõem o Modelo Padrão das Ciências sociais e que intencionam a integração conceitual. Segundo Pinker (2004, p. 55), a primeira ponte entre biologia e cultura é a ciência da mente, a ciência cognitiva, que se baseia nas seguintes ideias: 1) “o mundo mental pode ser alicerçado no mundo físico pelos conceitos de informação, computação e feedback” (PINKER, 2004, p. 55); 2) “a mente não pode ser uma tábula rasa, pois tábulas rasas não fazem coisa alguma” (PINKER, 2004, p. 58); 3) “um conjunto infinito de comportamentos pode ser gerado por programas combinatórios finitos da mente” (PINKER, 2004, p. 61); 4) “mecanismos mentais universais podem fundamentar a variação superficial entre culturas” (PINKER, 2004, p. 62); 5) “a mente é um sistema complexo composto de muitas partes que interagem” (PINKER, 2004, p. 65). A segunda ponte é a neurociência cognitiva, o estudo de como a cognição e a emoção são implementadas no cérebro, que mostra como nossos sentimentos e pensamentos, alegrias e pesares, sonhos e desejos consistem em atividade fisiológica do cérebro (PINKER, 2004, p. 67). O terceira ponto seria a genética comportamental, o estudo de como os genes afetam o comportamento (PINKER, 2004, p. 73). Aqui se destacam os estudos experimentais com gêmeos: Os efeitos das diferenças nos genes sobre as diferenças nas mentes podem ser medidos, e a mesma estimativa aproximada – substancialmente maior do que zero, mas substancialmente menor do que 100% - surge nos dados, independentemente do critério de medida usado. Gêmeos idênticos são muito mais semelhantes do que gêmeos fraternos, sejam criados juntos ou separados; gêmeos idênticos criados separadamente são muito semelhantes; irmãos biológicos, sejam criados juntos ou separados, são muito mais parecidos do que irmãos adotivos. (PINKER, 2004, p. 75-76)

A quarta ponte da biologia para a cultura seria a psicologia evolucionária, o estudo da história filogenética e das funções adaptativas da mente, buscando traçar o projeto da mente, não em um sentido místico ou teleológico, mas do simulacro de engenharia que Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

166

Sobre o naturalismo em ética e política

impregna o mundo natural por meio da evolução via seleção natural (PINKER, 2004, p. 81). Esta ciência se desenvolveu sob o pano de fundo da sociobiologia, ligada ao estudo do comportamento social animal: Na revolução sociobiológica da década de 1970, biólogos evolucionistas substituíram a vaga impressão de que os organismos evoluem para servir ao bem da maioria por deduções de que tipos de motivos tendem a evoluir quando os organismos interagem com prole, parceiros, irmãos, amigos, estranhos e adversários. Quando essas predições foram combinadas com alguns fatos básicos sobre o estilo de vida de caçadores-coletores no qual a humanidade evoluiu, partes da psique que antes eram inescrutáveis revelaram possuir um fundamento lógico tão claro quanto o da percepção da profundidade e a regulação da sede. (PINKER, 2004, p. 84)

Eu acrescentaria, à lista de Pinker, a antropologia biológica, em especial em seu ramo evolucionário: Este livro, entretanto, está limitado a fazer e responder à pergunta sobre por que os seres humanos existem dentro de uma estrutura evolucionista. Há razões para afirmar, não que este seja o único modo de formular a pergunta, mas que ele é o único modo que pode fornecer algumas respostas passíveis de verificação e de exame empíricos. A teoria da evolução tem alguma primazia quando se trata de humanos, exatamente por que ela é uma teoria que abrange não apenas os humanos, mas todo o mundo vivo. (FOLEY, 2003, p. 39)

Assim sendo, as ciências humanas se tornarão melhor conectadas entre si mesmas e às ciências naturais, o que fará ainda mais forte a estrutura total de nossa ciência, e seu sucesso preditivo, o critério pragmático central para nossa adesão a mesma enquanto naturalistas.

4. APLICAÇÕES DO NATURALISMO À ÉTICA E POLÍTICA

Caso o saber naturalista fosse “livre” para criticar a produção em filosofia moral e política do século passado, a que conclusão chegaríamos? Eu penso que, provavelmente, compreenderíamos o quão frágeis eram certos sustentáculos de vários referenciais teóricos importantes e o quão prepotente era fazer uma análise conceitual “de biblioteca” esperando com isso obter verdades definitivas.

Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

167

Valdenor Monteiro Brito Júnior

Um exemplo costumeiramente criticado é o do uso seletivo por Rawls da ciência social, incluindo o artifício de comparar modelos idealizados dos sistemas que ele favorece com modelos realistas de sistemas que ele desfavorece (BRENNAN, 2013, s. n.; WILKINSON, 2012, s. n.; VALLIER, 2013, s. n.). Mas outro ponto importante em que o saber naturalista poderia influir (naturalizar?) a filosofia moral e política está em estabelecer as condições em que um “modelo idealizado para análise de variáveis morais (por exemplo, justiça)” pode realmente ser aplicável ao mundo real. Por exemplo, a crítica de Anthony Flew (1993, p. 3-5) à teoria da justiça de John Rawls perpassa pelo profundo irrealismo da premissa de que nós podemos redistribuir ignorando o passado, quando avaliamos o mundo real, não a situação idealizada do véu de ignorância. Já a crítica de John Tomasi (2012, p. 31-32) pertine ao raciocínio sobre justiça social em torno de uma economia estacionária, quando o mundo real experimenta crescimento econômico por meio de economias de mercado modernas. Um exemplo simples de como a visualização rawlsiana ignora o crescimento econômico, e como a assunção deste pode interferir no raciocínio da teoria, é apresentada por Jason Brennan (2011, s. n.). Suponha dois países, “Terra do Superior de Pareto” e “Terra da Equidade”. Ambos são democracias liberais, e são divididos em três classes: pobre, média e rica. Contudo, em 1900, o governo da Terra da Equidade resolve aplicar o princípio da diferença de Rawls, resultando em que a classe mais pobre se torna 50% mais rica que a classe pobre do outro país. Isso significa que é melhor os pobres viverem na Terra da Equidade? Depende. Digamos que o crescimento econômico anual na Terra do Superior de Pareto seja de 4%, para uma distribuição inicial (em 1900) de 10 – 20 – 40 (pobre, média e rica, respectivamente), enquanto o crescimento econômico anual na Terra da Equidade seja de 2%, para uma distribuição inicial de 15 – 19 – 24. O que aconteceria ao longo do tempo está descrito na tabela abaixo:

Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

168

Sobre o naturalismo em ética e política

Terra do Superior de Pareto 4% Classe Pobres média 1900 10 20 10.4 20.8 1901 10.8 21.6 1902 53.3 1925 26.7 71.1 142.1 1950 1010.1 2000 505.1

Ricos

Terra da Equidade 2% Classe média Ricos Pobres

40 41.6 43.2 106.6 284.3 2020.2

15 15.3 15.6 24.6 40.4 108.7

19 19.4 19.8 31.2 51.2 137.7

24 24.5 25.0 39.4 64.6 173.9

(BRENNAN, 2011, s. n.) Em 1925, a renda dos pobres da Terra do Superior de Pareto fica maior que a dos pobres do outro país. Em 2000, a renda da classe pobre da Terra do Superior de Pareto é aproximadamente 5 vezes maior que a da classe pobre da Terra da Equidade, e 50 vezes maior que a renda de 1990. Onde o padrão de vida dos pobres é realmente melhorado? O exemplo pode parecer irrealista e exagerado, mas compare-o com o gráfico feito por Branko Milanovic (2010), um dos maiores pesquisadores de desigualdade global na atualidade, que compara a renda média dos 5% mais pobres dos Estados Unidos com as faixas de renda das populações do Brasil, China e Índia. Milanovic (2010, p. 116) divide a população desses países em vinte “ventiles” (grupos de 5% da população), ordenados de forma crescente em relação à renda (Ex: O primeiro ventile representa a parcela mais pobre da população, enquanto o vigésimo representa a mais rica). Esses “ventiles” estão representados no eixo horizontal do gráfico. No eixo vertical, a população do mundo inteiro é dividida em grupos de 1% (“percentis”), também ordenados de forma crescente em relação à renda. Com isso, ele calcula a renda média de determinado “ventile” e verifica em qual “percentil” do mundo esse “ventile” fica. Eis o gráfico:

Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

169

Valdenor Monteiro Brito Júnior

(MILANOVIC, 2010, p. 116) Os 5% mais pobres dos Estados Unidos estão situados no 68º percentil da distribuição de renda do mundo; ou seja, os mais pobres dos pobres americanos têm, na média, uma renda maior do que 68% da população mundial. Sua renda média supera a da maioria da população de três economias emergentes. Também supera a renda de aproximadamente metade dos “ventiles” do Brasil, ou seja, a de 50% da população brasileira. Outro exemplo interessante é a crítica de David Schmidtz (BRENNAN, 2011, s. n.) às defesas do igualitarismo pautadas em exemplos como “se chegássemos em um planeta com uma nave espacial, e tivéssemos que dividir os recursos desse planeta, a única forma justa seria dividir em porções iguais”, uma vez que o irrealismo disso é revelado pela simples pergunta “e se o planeta fosse habitado?”; afinal, a premissa mais válida para o mundo real é justamente que haja possuidores prévios. Como exemplo digno de nota, Gerald Gaus (VALLIER, 2011, s. n.), tem um projeto alternativo para a justificação das instituições legais pautada na chamada “public reason”: tomar como ponto de partida, não uma concepção teleológica de razão prática da qual se derive a racionalidade do “seguimento de regras”, mas sim um entendimento da natureza dos seres humanos como já sendo “seguidores de regras” (devido à evolução) e da

Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

170

Sobre o naturalismo em ética e política

natureza das emoções morais e atividades cooperativas que acompanham o “seguimento das regras”.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A história das relações entre filosofia e ciência tem mostrado o quão nosso raciocínio filosófico pode ser revisado – ou mesmo radicalmente realocado – pelo conhecimento científico. Não devemos temer isso, mas, antes, abraçar esses novos desenvolvimentos que possibilitam correções sistemáticas e aberturas conceituais radicais em nosso modo de conceber o mundo. Como diria Nozick (2001, p. 11), a filosofia ainda tem papéis cruciais: a transformação de questões filosóficas tradicionais em hipóteses factualmente testáveis e a abertura de novas possibilidades conceituais. O naturalismo não é um rebaixamento da filosofia, mas, antes, a única concepção de filosofia que é consistente, com o caráter imanente de nosso conhecimento, e, ao mesmo tempo, que não devemos desistir de rigorosos padrões epistêmicos para avaliar o conhecimento sobre o mundo. Assim, o naturalismo pode refletir em importantes desenvolvimentos em ética e filosofia política, possibilitando ver novos caminhos pelos quais essas questões possam ser tratadas atentando às variáveis que sejam relevantes em um mundo real, não apenas em uma situação idealizada.

REFERÊNCIAL BIBLIOGRÁFICO BRENNAN, Jason. Fairnessland and Economic Growth. Disponível em: Acesso em 29/12/2013 ________, Jason. In This Post, I Definitively Prove Neoclassical Liberalism is True. Disponível em: Acesso em 29/12/2013 COSMIDES, Leda; TOOBY, John; BARKOW, Jerome H.; Introduction: Evolutionary Psychology and Conceptual Integration. In: COSMIDES, Leda; TOOBY, John; BARKOW, Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

171

Valdenor Monteiro Brito Júnior

Jerome H. (org.). The Adapted Mind: evolutionary psychology and the generation of culture. New York: Oxford University Press, 1992. COSMIDES, Leda; TOOBY, John. The Psychological Foundations of Culture. In: COSMIDES, Leda; TOOBY, John; BARKOW, Jerome H. (org.). The Adapted Mind: evolutionary psychology and the generation of culture. New York: Oxford University Press, 1992. FLEW, Anthony. “Social Justice” isn’t any kind of Justice. Disponível em: Acesso em 29/12/2013 FOLEY, Robert. Os Humanos Antes da Humanidade: uma perspectiva evolucionista. São Paulo: Editora UNESP, 2003. GOTT III, J. Richard; LI, Li-Xin. Can the Universe Create Itself? 1997. In: Phys.Rev. D58, 1998. Disponível em: Acesso em 29/12/2013 LEITER, Brian. Naturalism in Legal Philosophy (Stanford Encyclopedia of Philosophy). Disponível em: Acesso em 29/12/2013 _______, Brian. Naturalismo y Teoría del Derecho. Madrid: Marcial Pons, 2012. _______, Brian. Why Quine Is Not a Postmodernist. 1997. Disponível em: Acesso em 29/12/2013 MILANOVIC, Branko. The Haves and Haves-Not. United States: Basic Books, 2010. NOZICK, Robert. Invariances: the structure of the objective world. The Belknap Press of Harvard University Press, 2001. PINKER, Steven. Tábula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. POWELL, Adam; SHENNAN, Stephen; THOMAS, Mark G. Late Pleistocene Demography and the Appearance of Modern Human Behavior. In: Science Magazine 2009. Disponível em: Acesso em 29/12/2013 QUINE, Willard Van Orman. De um ponto de vista lógico: nove ensaios lógico-filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2011. _____, Willard Van Orman. Palavra e Objeto. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

172

Sobre o naturalismo em ética e política

RITCHIE, Jack. Naturalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. SEARLE, John R. Consciência e Linguagem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. TOMASI, John. Social Justice, Free Market Style. Disponível Acesso 29/12/2013

em: em

VALLIER, Kevin. Rawlsian Trash. Disponível Acesso em 29/12/2013.

em:

VALLIER, Kevin. Review about The Order of Public Reason: Conclusion (and Appendix A). Disponível em: Acesso em 29/12/2013 WILKINSON, Will. Market Democracy and Dirty Ideal Theory. Disponível em: Acesso em 29/12/2013

Amazônia em Foco, Castanhal, v.2, n.3, p. 151-173, jul/dez 2013.

173

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.