SOBRE O NEOPIRRONISMO E A ANTIGA VISÃO COMUM DO MUNDO

June 8, 2017 | Autor: Luiz Eva | Categoria: Ceticismo
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SOBRE O NEOPIRRONISMO E A ANTIGA VISÃO COMUM DO MUNDO

Luiz Antonio Alves Eva

"...Se logro manter-me (na esfera da Vida comum) , apegado ao humano Saber do Mundo, se consigo resistir com êxito à investida cética, poderei ter a certeza de que me libertei para sempre do canto da sereia, de que me reencontrei totalmente como Homem. Terei vencido a luta contra a corrente. Em caso contrário, porém, meu retorno à plenitude da vida comum terá sido passageiro e ilusório. Vitorioso o ceticismo, as filosofias saberão servir-se dele para rever minha renúncia a elas. Tal é, como sempre foi, o perigo do ceticismo: ele se faz facilmente -ele se fez, historicamenteporta de entrada, vestíbulo, propedêutica metodológica, a certas formas de dogmatismo..." (Porchat O., "Saber Comum e Ceticismo", p. 120) (1)

Um aspecto do percurso filosófico pessoal de Oswaldo Porchat que tem recorrentemente despertado o interesse de seus leitores são as reviravoltas que o pontuam. Do ceticismo ao abandono da filosofia, da filosofia da visão comum de mundo ao neo-pirronismo, parece-nos possível afirmar que elas sempre guardaram algo de intrigante a seu protagonista e aos leitores -mesmo que de maneiras diversas. Para alguns olhos, a perplexidade adviria da 1

- Todas as referências aos textos de Porchat se referem a Vida Comum e Ceticismo, São Paulo, Brasiliense, 1993. As abreviaturas dos textos citados são CSC (Ceticismo e Saber Comum), CME (Ceticismo e Mundo Exterior) e SA (Sobre o que Aparece).

possibilidade de profetizar outras reviravoltas, segundo um movimento pendular (como no caso de Bento Prado Jr.). Mas diante das meditações do Porchat de 1986 sobre o canto da sereia cética, é preciso notar que, se ali havia alguma perspectiva de mudança de rumo, as reviravoltas concretas não terão sido menos surpreendentes. Ao mesmo tempo, essa situação de Porchat frente a elas já define um caráter próprio do seu trajeto filosófico de reflexão pessoal. O cético Montaigne, por exemplo, quem sabe inspirado pelo Quarto Tropo de Enesidemo (que contrapõe as impressões contraditórias das coisas, provenientes de circunstâncias diversas de apreensão, como razão para a suspensão do juízo), assim se observou nas suas próprias reviravoltas de opinião: "Eu agora e eu outrora somos bem dois. Qual é melhor? Não sei dizer..." (III, 9, 964c) (2) Se nos fosse permitido estabelecer uma relativização semelhante no caso de Porchat, não poderíamos também imaginar que o Porchat de 1986, apresentado ao Porchat neo-pirrônico, afirmasse: "Vejo que somos bem dois, ainda que tenhamos muito em comum. Mas você, como profetizei, deixa-se levar pelo canto da sereia. Seu neo-pirronismo parece-me antes uma porta ao neo-dogmatismo..." E assim introduzo meu propósito nesta comunicação: esboçar algumas ponderações, talvez não muito originais, sobre o neo-pirronismo considerado no trajeto filosófico de Porchat, esperando poder dar alguma contribuição, por mais modesta que seja, ao debate que se reacendeu com a publicação de "Sobre o que aparece". Demarquemos melhor a radicalidade e o teor com que as reviravoltas filosóficas de Porchat lhe aparecem. Para o Porchat de hoje, promover filosoficamente as "verdades comuns" foi um recurso in extremis para salvar a filosofia dogmática do questionamento cético (SA, 171); dispensá-las de qualquer fundamentação configura-se hoje como "um bem 2

-Todas as referências a Montaigne são da edição P. Villey, V. Saulnier dos Essais, Paris, Quadrige-PUF, 1988.

estranho procedimento", que cabe interpretar como sintoma de um "profundo desespero filosófico". (SA, p. 172, 173) Mas quando isso ocorria, numa aparente tranquilidade advinda de superar a filosofia tradicional e seus conflitos angustiantes, uma observância "adoxástica", sem crenças, da vida comum -como a que o neopirronismo traz em seu bojoparecia a Porchat "patológica". (CSC, p. 118) Aqui me parece possível prosseguir as tentativas de aproximação com o texto de Montaigne: signos da honestidade intelectual de Porchat, essas reviravoltas parecem caber bem na descrição que o filósofo francês nos apresenta dos céticos pirrônicos, como os que discutem sem a vaidade dos que buscam a todo custo afirmar suas opiniões, sem temer alterá-las. (II, 12, 503) De outra parte, quando não mais descreve os pirrônicos, mas a si mesmo, Montaigne assim reinterpreta outro argumento cético, de maneira que descreve aparentemente bem a situação: "No que creio hoje, creio de toda minha crença; todas as minhas ferramentas e meu recursos empunham essa opinião e me valem tudo o que podem... Aí estou inteiro e verdadeiramente; mas não me ocorreu, mil vezes e diariamente, de ter abraçado algo com esses mesmos instrumentos, nesta mesma condição, que depois julguei falso?" (II, 12, 563a) E daqui, mutatis mutandis, não estaríamos a um passo do oráculo? Se agora Porchat formula sua posição sem a pretensão de asseverar a verdade, não seria o caso de esperar encontrar no futuro a mesma ataraxía, hoje vista como parte integrante de uma postura neo-pirrônica, como sintoma de um análogo "desespero filosófico" insidiosamente disfarçado pela malícia do neodogmatismo? Por outro lado, eis o que Montaigne conclui da variação de suas crenças: "...ao menos, nossa condição errante deveria fazer com que nos conduzissemos mais moderadamente e contidamente em nossas mudanças. Ela deveria nos lembrar que, ainda que as recebamos pelo

entendimento, aí frequentemente recebemos coisas falsas..." (II, 12, 564a) Mas se pode parecer, à primeira vista, que às reviravoltas de Porchat caberiam essa preconização, talvez o caso seja bem outro. Muito embora Montaigne afirme "...não faço senão ir e vir: meu julgamento não caminha sempre adiante; ele flutua e vaga 'como frágil barco surpreendido no mar por um vento furioso'" (566), ele certamente se guiou, no mais das vezes, por um claro norte filosófico achado no ceticismo antigo. Também Porchat esteve orientado por tal bússola precisa (por mais que os ventos a tenham feito oscilar). A despeito das alternâncias pró e contra o ceticismo, é um fato evidente, desde "O Conflito das Filosofias", a presença permanente de um fio condutor cético, que ora se pretende abraçar integralmente, através da explicitação da consistência potencial que possuiria, e outrora se pretendeu abraçar como parte integrante de uma ordem de razões superior, que lhe fez culminar, paradoxalmente, numa coerência que exige o próprio abandono da filosofia. (ver. p. ex. VCM p. 94, par. final) Portanto, se o núcleo da reflexão resultou de pacientes meditações sobre a ordem das razões do pirronismo de Sexto Empírico, as mudanças interpretativas em seu conjunto podem, por sua vez, ser compreendidas como tentativa de aperfeiçoamento constante de uma visão cética de mundo, em busca de sua plena coerência. Em particular, essa empresa consistiu em tentar conciliar uma perspectiva crítica sempre renovada com a aceitação de uma espécie de denominador comum da experiência humana, a "visão comum de mundo". Dizemos isso para destacar uma primeira singularidade da trajetória cética de Porchat. Se essas reviravoltas são causadas pela mudança de julgamento acerca do sentido do material cético que inspirou suas reflexões (ora visto como inexoravelmente conduzindo ao mentalismo filosófico, ora

não), isso nada explicaria sobre a particularidade desse trajeto. É preciso atentar para o fato de que há um cuidado perene, especial e enfático, por parte de Porchat, em tematizar e defender a existência de uma visão comum do mundo. Cuidado que demonstra a existência, por assim dizer, de um segundo fio condutor, algo subterrâneo, onde se depositam fundas e particulares preocupações filosóficas de Porchat. Contra o pirronismo interpretado segundo o paradigma cético-cartesiano, que ardilosamente roubava o mundo dos homens ao confundir fenômeno e representação, tratava-se de afirmar essa visão comum, ainda que ao alto preço de abandonar, juntamente com o ceticismo, a própria filosofia. À medida em que o ceticismo pirrônico, na intenção e na letra, pôde ser liberado desse fardo, a visão comum de mundo pôde se reinstalar no seio do ceticismo e mesmo se conciliar com uma postura crítica acerca da afirmação da realidade dos fenômenos, posto que agora estava claro não haver o risco de perdê-los: "Fica-nos manifesto que cabe plenamente falar de uma visão cética de mundo, a qual entretanto diferirá, sob muitos aspectos, de um cético para outro... Diremos que ela nos aparece tendo como núcleo uma visão comum de mundo, própria à constelação histórica e social em que o cético está inserido, tornada porém auto-crítica e consciente". (SA, p. 198) Afinal, as mudanças de posição são aqui moderadas. Pondo momentaneamente à parte as eventuais diferenças de aspecto que essa "visão comum" assume num momento ou noutro, o fato é que, ao longo de todo esse percurso sinuoso, o Mundo existente ao comum dos olhos, visto por um viés ou por outro, esteve sempre presente, embora sobre ele tenha também sempre pairado a iminente possibilidade de sua espetacular dizimação. Mais do que isso, o sentido fundamental que a reflexão de Porchat assumiu foi a de defender esse núcleo mundando, atacando a postura mistificadora e enganosa da filosofia (ora vislumbrada

apenas no dogmatismo, ora filosofia como um todo).

no

próprio

ceticismo

e

na

Pascal, recuperando em seus Pensamentos diversos aspectos da reflexão cética através de Montaigne, afirma: "Não digam que eu nada disse de novo: a disposição da matéria é nova... Diversamente arranjadas, as palavras formam sentidos diversos; os sentidos, diversamente arranjados, produzem efeitos diversos..." (Pensées, ed. Brunschvicg, # 22/23) Tentando agora assumir um viés pascaliano, digamos que o ceticismo teria propiciado a Porchat uma reflexão demorada e incessantemente refeita sobre a existência do mundo comum (cuja compatibilidade com o pirronismo antigo não estamos pondo em questão), em contraposição ao tratamento algo lacônico e obscuro que o tema recebe no ceticismo antigo. Não estaria essa diferença, precisamente, ligada a um diverso "arranjo de sentidos"? Poderíamos, assim, falar de uma floração filosoficamente diversa a partir de mesmas raízes pirrônicas (como Pascal eventualmente diria, ao menos em parte, de sua própria maneira de pensar), mas sendo filosoficamente diversa, talvez não se tratasse mais de pirronismo, por essa razão mesma. E a Porchat, como isto lhe apareceria? Observemos outros pontos que talvez acentuem melhor a singularidade do ceticismo de Porchat. Narrando sua experiência pessoal à maneira de um cronista, o filósofo pirrônico, segundo Sexto, pôs-se no encalço da verdade e deparou-se com o espetáculo da diaphonía das opiniões filosóficas. E esse espetáculo de conflito que, aliás, definiu o título do artigo inaugural das reflexões céticas de Porchat- não deixa de se apresentar na formulação da postura neo-pirrônica como uma causa primeira e fundamental da epokhé: "...Se aceitarmos demorar-nos a sobre (o tropo da diaphonia) meditar... então nenhuma decisão filosófica

se faz possível, não vemos como atribuir verdade a nenhuma doutrina. Retido nosso assentimento nessa incapacidade crítica de escolher verdades, nós estamos em epokhé." (SA, p. 169) Tudo está, até aqui, aparentemente conforme aos textos céticos antigos; mas é de se ressaltar que, não apenas "Sobre o que aparece", mas todos os textos céticos de Porchat testemunham de como o argumento da diaphonía foi objeto de uma leitura particularmente decisiva. Paralelamente à afirmação permanente de uma visão comum de mundo, afirmou-se enfaticamente o conflito das opiniões como razão fundamental e básica para descartar a tematização filosófica do mundo ou como razão filosófica imbatível que, por ter conduzido o antigo cético a uma armadilha, só poderia ser enfrentada por um abandono da filosofia. Mas qual é exatamente essa particularidade? Talvez possamos vê-la na medida em que os efeitos desse argumento da diaphonía possam ser aproximados de uma outra singularidade perene de seu trajeto, que ele próprio reconheceu como tal: o abandono da postura zetética do pirronismo de Sexto Empírico. Este apresenta como o princípio fundamental do ceticismo opor a cada discurso (dogmático) um discurso oposto de igual força (HP, I 21), princípio que é explicitamente desenvolvido numa permanente investigação das filosofias que anunciam a posse da verdade. Sexto empreende uma luta sempre renovada contra o poder do dogmatismo que renasce nas teses a que, aparentemente, para evitar a precipitação de um juízo dogmático acerca do alcance da ignorância humana, o cético assente ao menos o direito de formulação e de exame, como candidata possível a representante da verdade. Montaigne, quando apresenta a postura cética como desprovida da vaidade de pretender a qualquer custo nas discussões, relaciona-a expressamente a essa atividade argumentativa pela qual o cético pode se opor a toda e qualquer opinião.

Isso posto, tratou ele mesmo de empreender um desbravamento cético de sua própria subjetividade, numa direção investigativa muito própria e inusitada comparativamente ao ceticismo antigo. Por mais que o poder dos argumentos tradicionais compilados por Sexto e retomados em parte por Montaigne tenham tornado remotas as possibilidades de alcançar a verdade, por certo que o antigo pirrônico grego não terá se tornado, ao menos, uma das principais fontes doxográficas da posteridade senão graças ao respeito pelo exercício desse princípio investigativo. Frente à ênfase com que se desenvolve essa argumentação contra cada filosofia, o argumento da diaphonía, que traduz a experiência fundamental e primeira da postura cética, é preservado e convertido em apenas um dentre os múltiplos argumentos com que Sexto se põe a refutar um a um os dogmatismos sempre vicejantes. Porchat, no seio da visão comum de mundo, abandonara a filosofia. Se permanece no âmbito do ceticismo, abandona a investigação por não mais nela ver sentido. E se a meditação sobre a diaphonía, em "Sobre o que aparece", surge como fundante da experiência da epokhé, o segundo passo imediatamente dado é extrair dessa experiência, sem mais mediações, a sua reiteração indefinida: "...E nos ocorrerá talvez, se a experiência (da epokhé) se renova suficiantes vezes, deparar, como consequência casual da mesma epokhé, aquela tranquilidade que outrora buscáramos na posse da verdade. Isto porque não mais ansiamos pelo que não mais parece caber buscar..." (SA, 170) Ora, dever-se-ia esse abandono da busca a um motivo outro que a profundidade com que o argumento da diaphonía reverberou em suas reflexões? Trata-se do argumento cético por excelência para Porchat. Não nos vemos em nenhuma condição de negar que esse argumento ocupe, no neo-pirronismo, um mesmo lugar que

o ocupado na ordem das razões geradoras do pirronismo antigo, segundo Sexto. Mas, como um contraponto da ênfase e do poder de persuasão com que foi acolhido por Porchat, não ocupará, nos dois casos, um lugar diverso na ordem das razões como instância que sustenta essa postura cética? Isso posto, cabe indagar pelo momento preciso em que teria o dogmatismo, aos olhos do neo-pirrônico, perdido seu viço e possibilitado que se afastem as preocupações com suas ameaças. Porchat, por certo, não deixa de mencionar e analisar os tropos argumentativos céticos, aceitando seu poder como inequívoco e impossível de resistir. Significa isso, porém, que os dogmáticos sejam levados a sério como carecendo de respostas particulares? Como personagens do discurso filosófico, o bergsoniano, o fenomenógo, o marxista, o filósofo analítico e os céticos, entre outros, aparecemos ao neo-pirrônico à mesa do bar, todos de acordo sobre a existência do chopp. Estamos, com efeito, todos de acordo, por mais que o garçon demore, mas não se trata exatamente de um Banquete pirronista, pois tais personagens não se manifestam filosoficamente no interior desse discurso. Portanto, descolados do desenvolvimento particularizado que têm no ceticismo antigo, os Tropos gerais do pirronismo parecem antes se beneficiar do poder hiperbólico adquirido pelo argumento da diaphonía, irmanando-se numa generalização pela qual a falência dos dogmatismos passados (conjunto que, por definição, parece incluir os eventuais dogmatismos atuais, desde que reconhecíveis como tais) surge como retrato acabado de todo e qualquer dogmatismo futuro. Assim, a mediação neopirrônica entre o argumento da diaphonía e a epokhé (pretendida como semelhante à dos antigos céticos) tende a ser algo semelhante a uma admissão axiomática metodológica acerca do poder da argumentação cética, um pouco parecida com a que, em "Saber Comum e Ceticismo", era denunciada na

suspensão prévia do juízo sobre a existência do exterior por parte dos modernos (v. pp. 113, 114).

mundo

É evidente, de outra parte, o poder da argumentação porchatiana e seria obviamente um equívoco afirmar que ela desconhece as balizas das discussões mais modernas sobre os problemas conceituais em que mergulha. Porém, onde (em que lugar de sua ordem de razões textual, ao menos) ele nos apresentaria algo de análogo a essa atividade minuciosa e central da atividade filosófica do antigo cético, pela qual se estabeleceu uma espécie de arquivo morto em que cada dogmatismo contemporâneo que viesse a incomodar era de pronto fulminado, embalsamado e dissecado nas suas menores dobras argumentativas? É preciso aqui tentar compreender em que consiste, afinal, a dimensão neo-crítica da filosofia cética ora reabilitada. Em "Sobre o que Aparece", a maneira pela qual Porchat se refere à dimensão crítica do ceticismo nos parece, mais uma vez, remeter a um mesmo quadro de peculiaridades. Se aí não mais se trata de condená-la como algo que subtrai o mundo do Saber Comum (como ocorria quando o ceticismo antigo era visto em continuidade com a Primeira Meditação cartesiana), agora ela é defendida como uma postura distintiva tanto em relação aos dogmáticos quanto em relação ao homem comum: "(...) A filosofia e a ciência têm nos ensinado em boa hora a criticar os mitos coletivos. O homem comum, quando ele se faz dogmático -ele se faz dogmático em muitas áreas e sob muitos aspectos- revela com frequência um apego exacerbado a seus pontos de vista, erigindo suas asserções em verdades indiscutíveis e absolutas... Seu dogmatismo não difere, quanto a esse aspecto, do dogamtismo filosófico, falta-lhe apenas a sofisticação desse último..." (SA, pp. 172,173) Como resultado desse posicionameto crítico, pelo qual a epokhé pode atingir toda e qualquer crença humana que, formulada

num juízo, se proponha como conhecimento verdadeiro de uma dimensão qualquer do mundo (SA, p. 173), este mundo se torna inteiramente relativo, ao sujeito e à cultura. Mas, na falta de argumentos precisos que destruam o dogmatismo concreto dos contemporâneos, filósofos ou homens comuns, resta alguma dificuldade em compreender precisamente como a presente afirmação de uma visão comum de mundo (cética) seja outra que a presente na fase anterior da reflexão de Porchat. Se ela se diversifica filosoficamente (as reversões radicais parecem exigi-lo, não se poderia falar de um mesmo mundo comum que subsiste como nexo entre essas etapas? Nesse caso, o mesmo Mundo Comum é a única via pela qual antes o dogmatismo da Filosofia da Visão Comum do Mundo precipitadamente fazia derrapar (segundo os olhares de agora) ou que o ceticismo terrorista do gênio maligno pretendia interditar (segundo as perspectivas de outrora)? Antes, Porchat achava-se trilhando uma via dogmática especial, à prova desses terrorismos. Agora, porém, descobre que suas placas não eram bem legíveis, por caminhar em outra muito diversa, devidamente iluminada e pavimentada de puro fenômeno. Não se tratará de uma mesma via, que nas suas curvas apenas dá a impressão de ser descontínua apenas à medida em que se trocam os óculos conceituais? Mas cabe indagar até que ponto seria possível extrair esta conclusão sem afinal acabar por destruir a tal via comum, a despeito de todos os esforços em salvaguardá-la, à medida em que, afinal, dever-se-ia concluir que, segundo os olhares diacrônicos de Porchat, é ela mesma que estaria disfarçadamente presente em ambos os momentos num sentido problemático, seja como objeto das ilusões do gênio maligno (fato invisível antes das reflexões sobre a Filosofia da Visão Comum de Mundo), seja como perversão refinada das estratégias dogmáticas (fato invisível, agora, antes do

neo-pirronismo). Sem pretendermos ir tão longe, limitemonos a constatar que esse passeio acaba por nos conduzir, forçosamente, a uma nova paisagem dessa atividade crítica de Porchat, que antes poderia ter passado despercebida. Dissemos anteriormente que o abandono da postura zetética do ceticismo antigo era fruto de um firme convencimento acerca da impossibilidade de sucesso das empresas dogmáticas, logo tidas como aparentemente inofensivas. Porém, a adoção do neo-pirronismo em "Sobre o que aparece" revelou também a descoberta, por parte do neo-pirrônico, de um dogmatismo insidioso onde menos se esperava que ele devesse ser atacado: na própria Filosofia da Visão Comum de Mundo, antes defendida contra o ceticismo. É através da crítica cética, afinal, que ela pode se afigurar agora como um "bem estranho procedimento". Portanto, deve ter-se revelado, ao menos, que o dogmatismo, ainda que não possa se fundamentar, não era assim tão facilmente identificável. Seja como for, quer nos parecer que se trata apenas de um exemplo da natureza geral da atividade crítica da filosofia porchatiana, presente no trajeto aqui considerado. Quando essa atividade crítica consistia sobretudo em encarar o questionamento cético-cartesiano "(...) não como questões que se devam diretamente enfrentar e tentar resolver, mas como formulações que os filósofos propuseram num certo vocabulário, às vezes mal dissimulando seus pressupostos..." (CME, p. 165), também não se tratava de um acerto de contas com uma posição filosófica por ele mesmo admitida (a despeito da ignorância acerca das supostas consequências)? Assim, eis aqui um último traço constante que apontaremos como aparente ao longo da trajetória filosófica de Porchat: em certo sentido, a atividade argumentativa cética da filosofia de Porchat parece ter sempre estado às voltas com um objeto concreto: não os filósofos dogmáticos realmente existentes, nem o homem comum, mas o próprio Porchat -ou melhor, os aspectos

anteriores da filosofia de Porchat que, devido a um posicionamento crítico, podem agora mostrar sua verdadeira face. No caso do neopirronismo de "Sobre o que aparece", essa atividade argumentativa parece apresentar ao menos dois aspectos distintos. Em primeiro lugar, Porchat enfrenta abertamente a Filosofia da Visão Comum do Mundo que engendrou, considerando-a como uma entre outras no coro da diaphonía, para afirmar a possibilidade, em contrapartida, de uma Visão Comum inteiramente cética. Mas concedamos que nosso diálogo cético se dá no "market place" e aceitemos plenamente a descrição da verdadeira face daquela filosofia anterior como "bem estranho procedimento", do qual é possível, a Porchat e a nós, desembaraçarmo-nos em poucas linhas. Parece haver, porém, um segundo adversário contra o qual combate o neo-pirronismo, mais perigoso à medida que, ao menos, ainda é reconhecido como portador de um grande poder de sedução: "Não somos insensíveis (...) ao fato de que uma teoria do conhecimento articulada em torno da noção de representação nos convida sedutoramente a confundir representação e fenômeno. Porque a tentação parece grande de dizer que, ao suspendermos nosso juízo sobre a natureza e a realidade das coisas, ficamos então confinados tãosomente a nossas representações, a única coisa que nos resta e que constitui o que nos é imediatamente dado, o resíduo único da epokhé..." (SA, p. 186) Tentação essa que se materializava na intepretação do ceticismo segundo um paradigma cético-cartesiano, mais detidamente combatido em "Saber Comum e Ceticismo" e "Ceticismo e Mundo Exterior" e cuja rejeição é reiterada, com base em argumentos aparentemente semelhantes, em "Sobre o que aparece".

à

É claro que esse vilão mudou de face, sobretudo devido interpretação do ceticismo antigo. Enquanto este era

interpretado como portador de uma filosofia da mente em gestação, podia-se falar do ceticismo como um paradigma contínuo que foi embutido na epistemologia moderna. Quando essa interpretação não mais se aceita, a suspensão cartesiana da primeira Meditação pode mais claramente ser vista como uma propedêutica dogmática que traz embutidos esses pressupostos. Porém, ainda que "Sobre o que aparece" não pareça trazer novidades quanto à concepção que se faz desse "ceticismo cartesiano", ele permanece bem sendo um adversário sedutor (assim como o ceticismo insistia com seu canto de sereia quando Porchat advogava a Filosofia da Visão Comum do Mundo). Embora seja, de alguma forma, neutralizado como um dogmatismo disfarçado, ele parece ser uma espécie de alter-ego cético do neo-pirrônico, antigo impostor que este pretendia despachar, com passagem só de ida, no ônibus do dogmatismo, mas que insiste em se despedir cantando as cantigas ambíguas e sedutoras da sereia cética. Façamos aqui o papel de motorista do ônibus lotado, que se recusa a partir sem maiores explicações. Onde se encontram, afinal, as credenciais dogmáticas desse pseudoceticismo? Segundo o neo-pirrônico, a filosofia dogmática moderna construiu uma noção de mente, identificada à subjetividade, instaurando por trás do eu fenomênico, um outro eu, invocado como resultado de uma "lógica" pretensamente irrecusável, presente no fato de os fenômenos serem todos centrados no eu (eu a que, num sentido puramente fenomênico, o neo-pirrônico reconhece serem todos os fenômenos relativos). Um eu "...anterior de direito à fenomenicidade e pressuposto por ela, algo como um eu transcendental pretensamente exigido como explicação última a dar conta da experiência fenomênica..." (SA, p. 190) Mas sobre essa estrutura subjetiva do aparecer, o neo-pirrônico também suspende seu juízo, pelo que não se poderia tomar sua posição como uma filosofia da subjetividade. (ibid.)

Adiante, no mesmo artigo, Porchat explica como o neopirrônico, embora assumindo uma postura adoxástica, não se proíbe de utilizar termos do vocabulário corriqueiro, segundo o uso comum. "...Porque 'verdade', 'realidade', 'conhecimento', em seu uso vulgar, remetem primordialmente à armação interna do mundo fenomênico, não têm peso ontológico ou epistemológico..." (ibid., p. 199) É tal permanência nessa armação interna da pura fenomenicidade que permitiria afastar a problemática pseudo-cética do mundo exterior e, particularmente, o argumento cartesiano do sonho (instância exemplar de sua instauração): "É no interior do mundo fenomênico que distinguimos entre 'real' e imaginário ou fictício, 'verdadeiro' e 'falso', sonho e vigília (o argumento cartesiano do sonho é estranho à problemática pirrônica), 'conhecimento' e ignorância ou conjectura. Tais distinções as fazemos como um homem qualquer e vale lembrar que o homem comum não parece ter a menor percepção do que está em jogo na problemática filosófica que se quer enxertar em seu uso quotidiano da linguagem..." (ibid., p. 200) Essas precauções são tidas como munição suficiente para descartar a problemática moderna da existência do mundo exterior, que agora parece emergir, estritamente, da Primeira Meditação cartesiana. A partir daí, o cético moderno irá privilegiar a mente, o sujeito e o mundo interior, enquanto se confere a liberdade de questionar exclusivamente a existência ou não de um mundo exterior à mente. Portanto, a mente está pressuposta, enquanto o questionamento -pirrônico e neo-pirrônico- do discurso dogmático " (...) incide igualmente sobre a natureza e a assim chamada realidade de sujeito e objeto, corpo e mente, faculdades da alma e propriedades da matéria. Por um lado, reconhecemos o dado sensível e inteligível que se impõe à nossa experiência, por outro problematizamos todos os discursos que se propõem, para além do fenômeno,

interpretá-la. Se humanamente nada perdemos dos assim chamados mundo do espírito e da matéria, inteiramente abstemo-nos de juízos apofânticos sobre um e outro. Se isso se quiser chamar de dúvida, dever-se-á então dizer que duvidamos da alma e do corpo, da mente e da matéria, da realidade do mundo "externo" e da realidade do mundo "interior"..." (SA, p. 202) Mas por que não reinvocar aqui um pseudo-cético da Primeira Meditação e tentar convidá-lo a se defender, num diálogo imaginário com o cético autêntico? Tomemos aqui a inteira liberdade de isolar a Primeira Meditação cartesiana como um texto autônomo e admitidamente cético, tentando levar a sério uma pretensão de estabelecer uma suspensão universal e isenta, segundo a ordem das razões que argumentativamente estabelece (a despeito das consequências dogmáticas que se seguem, de maneira evidente, a partir da Segunda Meditação). Convencer-se-ia esse pseudo-cético tão imediatamente da sua impostura e dos preconceitos dogmáticos com que se teria contagiado pelo uso da linguagem comum? Retomemos o início das Meditações e consideremos que, por exemplo, o cético pirrônico atacasse o método da dúvida hiperbólica como procedimento tendencioso que, ao exacerbála, cria por si mesmo uma necessidade justificacionista de a ela responder. Mas o nosso cartesiano talvez respondesse que, como o pirrônico se atém a descrever sua experiência pessoal em busca da verdade a partir de um ponto de vista puramente exterior às filosofias, assim procede ele. O pirrônico, diria ele, pondo-se honestamente em busca da verdade, adota espontaneamente um método que lhe parece neutro, natural e único. Primeiramente, investiga cada filosofia, assentindo igualmente a seu poder de persuasão. Posteriormente, convencido humanamente (mas também algo arbitrariamente) de sua indecisão, resolve reiterar esse

processo contra cada filosofia, inventando argumentos destruidores. Porém, permita o pirrônico que lhe seja concedida a utilização de um outro método para investigálas, método que, se de princípio parece ser tão legítimo quanto qualquer outro, tem a vantagem de lhe poupar tempo, posto que as opiniões não precisarão ser analisadas uma a uma (o que pode ser útil caso a verdade esteja efetivamente à disposição, embora, como o pirrônico, desconheçamos esse ponto). Tal método consiste em, apenas provisoriamente, chamar de falsas as representações sobre as quais suspendemos o juízo. Isso não quer dizer que elas são efetivamente falsas para todos os efeitos, especialmente no que tange à nossa vivência no Mundo comum; quer simplesmente dizer que, como pretendemos discriminar uma eventual representação verdadeira, trata-se de deixar de lado, nessa tentativa, aquelas que não sabemos se são verdadeiras. O "justificacionismo" desse cartesiano, assim, não é gratuito e não emerge do nada, mas é derivado do propósito de analisar todas as opiniões e ver se a alguma delas se pode dar assentimento como efetivamente verdadeira. É derivado de um propósito que o nosso cartesiano, aqui, alegaria ser exatamente o mesmo do cético pirrônico. Mas prossegue aquele: ainda que não se queira conceder essa honestidade de propósitos ao método da dúvida hiperbólica, isso pouco afetará a argumentação suspensiva de minhas razões de duvidar. A formulação do argumento do sonho, por exemplo, em nada parece ser determinada por esse método, posto que, aliás, ele só será invocado no momento de estabelecer os seus limites naturais. (3)

3

- Ou seja, é apenas depois de apresentar o argumento do sonho e tornar duvidosa a crença na realidade de nossas representações atuais pela semelhança que guardam com as do sonho, que Descartes afirma: "Suponhamos, pois, agora, que

Deixemos de lado o argumento do erro dos sentidos e sua rejeição, que entenderemos aqui, simplesmente, como o assentimento de uma possível objeção (a existência de limites naturais em que os sentidos operam), objeção que poria em xeque uma primeira tentativa de duvidar sistematicamente de todo o conhecimento sensível, por levar a resultados semelhantes à situação dos insensatos que julgam ter o corpo de vidro. Retenhamos desse movimento apenas um ponto, que desejamos ler aqui de uma maneira especial (sem cerimônia de esticar a pele de Descartes como nos convém). Se não quero me igualar aos loucos, diria nosso cartesiano, é porque desejo isolar aqui um fato de minha experiência pessoal, relativo à minha circunstância particular de homem são e em vigília (que afirmo aqui de maneira inteiramente não-dogmática e fenomênica, como um mero componente da visão comum de mundo): "Todavia, devo considerar que sou homem e, por conseguinte, tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas menos verossímeis, que esses insensatos em vigília..." (Medit., p. 86, #5) Entendamos que esse fato supostamente natural aparece fenomenicamente ao cartesiano, do mesmo modo que lhe aparecem outras coisas. Aparece-lhe que está escrevendo esse texto, que a porta de seu escritório está fechada e que ele se machucará se quiser sair pela janela; aparece-lhe que, estando desperto, os sonhos que teve na noite passada não ocorreram efetivamente no mundo que lhe aparece agora, fenomenica e relativamente, como existente; aparece-lhe que, quando sonhava, não sabia que aqueles fenômenos não ocorriam no mundo que, quando desperto, chama de existente, mas justamente o contrário. Aparece-lhe, diante desse conjunto de aparências, que a impressão que agora tem de serem esses fenômenos percebidos pelos sentidos como relativos ao mundo estamos adormecidos..." (Medit., p. 86, #6, início). Apenas ao fazê-lo considera como falso o que é apenas duvidoso.

da vigília pode ser tão errônea como aquela. Em seguida, ele admitirá, por causa do método que adotou, chamar esses fenômenos de falsos como sonhos. Por ora, ele espera um argumento oposto de igual força, que possa suprimir sua impressão acerca de as suas representações lhe aparecerem como possivelmente falsas (no mesmo sentido em que empregamos esse termo para os nossos sonhos). A questão principal é esta: qual o problema em imaginar e compreender plenamente o argumento do sonho -que pode engendrar, por certo, uma problemática do mundo exterior- num sentido inteiramente interno à estrutura dos fenômenos "que me aparecem"? Se a problemática do sonho, formulada nesse sentido, foi historicamente estranha ao pirronismo, que razões argumentativas tem o neo-pirrônico, que historicamente está sendo por ela desafiado, para negar a novidade do problema cético cartesiano enquanto legitimamente cético? Ora, responderia talvez o neo-pirrônico, só é possível admitir essa problemática se se aceita de princípio uma teoria da mente implícita na própria conclusão de que o aparecer é produto de minha mente. Ocasião para que o cartesiano se faça mais preciso, respondendo: simplesmente desconheço, até aqui, qualquer teoria da mente. Discorro sobre o que me surge na mente e na imaginação no simples sentido em que qualquer um diz, quando desperto, que seus sonhos foram fabulações de sua mente. Com uma pequena correção: que meus sonhos me aparecem como tendo sido fabulações da minha mente. Mas é essa mesma aparência que o argumento do sonho agora projeta sobre o que me aparece, sem que eu soubesse, em princípio, se o aparecer tem algum estatuto subjetivo ou objetivo. Falo de "mente" no mesmo sentido frouxo que, como o neo-pirrônico, posso falar de "realidade". Porém, se esse termo traz historicamente embutidos pressupostos dogmáticos, por que eles não se

manifestam, de maneira igualmente comprometedora, quando o neo-pirrônico se dá o direito de se valer da linguagem em seu uso comum? Há um eu lógico pressuposto por detrás do eu fenomênico? Também desconheço por ora o que isso queira dizer, e não é necessário que eu me conceba desse modo para que, aqui, faça-me sentido o problema com que me deparei. (Com efeito, seria possível, nas Meditações, falar de um conhecimento filosófico, seja em que grau for, acerca do eu, da mente ou da alma antes da Segunda Meditação?) Tudo o que pretendo cartesiano- é que, frente

afirmar -insistiria o a esse argumento e os

nosso fatos

fenomênicos que ele alinha, aparece-me como inteira e particularmente misteriosa a natureza do que costumo chamar de mente. Aparecia-me, em primeiro lugar, relativamente à circunstância em que dialogamos (lúcidos e despertos) que a mente é por vezes capaz de produzir impressões fantasiosas, como os sonhos, que não refletem o que julgo estar ocorrendo no mundo existente. Aparece-me agora, em segundo lugar, que a razão admitida para julgar que os fatos que aqui percebo não são produtos da minha mente, como os sonhos, parece-me inteiramente desprovida de valor. Penso estar descobrindo, ao considerar as coisas de maneira puramente fenomênica, que pode haver um desequilíbrio entre o que chamo de "subjetividade" e “objetividade”, aparentemente problemático. E, nessa medida, prossegue ele, o argumento do sonho revela algo anteriormente desconhecido acerca de um mesmo fato do mundo que o neo-pirrônico reconhece, posto que este não admite sequer a inteligibilidade da noção de "puro aparecer" e, embora suspendendo o juízo acerca de todas as noções filosóficas de mente e corpo, aparece-lhe que o seu "eu" particular é o centro do mundo fenomênico. (v. SA, pp. 177, 189-190). A diferença, com efeito, é que o neo-pirrônico, aparentemente recusando inteligibilidade aos termos do problema que lhe proponho (por razões que desconheço), recusa-se a ver nesse

fato um indício problemático acerca dessas coisas que costumamos chamar, na linguagem comum, de mente e mundo exterior, problema cuja dimensão última e cuja solução, digamos, são-me igualmente desconhecidas. Vejo-o, sobreudo, como um objeto de investigação (no sentido pirrônico ou não). Encerremos esta ficção filosófica com uma última indagação. Afastemos a possibilidade de que o neopirronismo, reconhecidamente relativo às constelações culturais, seja fruto de um tempo em que o dogmatismo é mais pálido. Igualmente, desconsideremos a hipótese de a razão humana ter se tornado menos manca do que o era na circunstância em que argumentaram os antigos pirrônicos. Mas em que medida a postura não-zetética de Porchat, recusando inteligibilidade autêntica aos percursos que a reflexão cética assumiu no interior da época moderna, não acabará por ter se tornado algo precipitada e por fazer com que sejamos obrigados a encontrar, nessas palavras com que Porchat anteriormente se afirmava na Filosofia da Visão Comum do Mundo, um tom profético renovado: "-Você não está excessivamente cético? -Eu diria exatamente o contrário." Uberlândia, 18 de junho de 1994.

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