\"Sobre o pensamento político de Kelsen. Notas marginais a Da essencia e valor da democracia (1920)\"

August 19, 2017 | Autor: Antonio Martins | Categoria: Political Philosophy, Democratic Theory, Hans Kelsen
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SOBRE O PENSAMENTO POLÍTICO DE KELSEN. NOTAS MARGINAIS A ( 1920 )

DA ESSÊNCIA E VALOR DA DEMOCRACIA

António Manuel Martins

Universidade de Coimbra

Kelsen foi um dos poucos juristas famosos da república de Weimar que pode ser considerado um defensor da democracia. O Kelsen teórico da política aparece frequen­ temente ofuscado pelo jurista. Mas, de facto, Kelsen dedicou muita atenção a ques­ tões políticas centrais. Nem poderia deixar de ser de outra forma se nos lembrarmos de alguns dados biográficos importantes. O mais significativo tem que ver com o seu papel na redação definitiva da constituição da Primeira República Austríaca (1920) e na criação do respectivo Tribunal Constitucional. Nesse mesmo ano publica um estudo monumental, ainda pouco estudado, sobre 0 problema da soberania e a teoria do direito internacional (Kelsen, 1920a) e um pequeno ensaio sobre “a essência e o valor da democracia” (Kelsen, 1920b). A reflexão de Kelsen sobre a democracia está infima­ mente ligada ao seu trabalho no domínio do direito. Pretendemos chamar a atenção para o interesse da primeira edição deste texto que conhece uma segunda edição mais ampliada em 1929. Segundo nos informam os editores da mais recente edição alemã dos textos de Kelsen em torno da democracia, esta primeira edição só foi traduzida em três línguas (italiano, 1932, japonês, 1977 e sérvio, 1999).1Entre nós há uma refe1. Ver Hans Kelsen & Matthias L epsius J estaedt (eds.), Vertádigung der Demokratie, Abhandlungen zur Demokratietheorie. Túbingen: Mohr, 2006, p. 1. Não admira apenas o facto de o texto de 1920 ser praticamente desconhecido como também a segunda edição teve vários problemas de tradução em espanhol. A versão de Rafael L uengotapia & Luis L egaz, publicada em 1934 pela editora Labor, para além de datar erroneamente a segunda edição permitiu-se cortar o último dos dez capítulos do texto de Kelsen, intitulado “democracia e mundividência” [Weltanschaung] substituindo-o por um texto de 1933 sobre “Forma de estado y filosofia” [Weltanschaung], Foi preciso esperar até 2006 para poder ler uma tradução espanhola que apresente uma tradução integral e fiel do texto de Kelsen , De la esencia y valor de la democracia, trad. y nota preliminar de Juan Luis Requejo Pagés. Oviedo: KRK, 2006. Mas o mais admirável é ainda não existir nenhuma tradução em inglês destes textos de Kelsen sobre a democracia. Nem da primeira nem da segunda edição de Vom Wesen und Wert der Demokratie. Os italianos continuam a ser os mais diligentes estudiosos do pensamento de Kelsen em toda a sua amplitude. Estranhamos não darem os editores da colectânea alemã supracitada, notícia da mais recente tradução italiana da primeira edição de EVD feita por Agostino Carrino , H. Kelsen , Essenza e valore delia democrazia. Torino: Giappichelli, 2004. Passaremos a referir-nos à l.a edição de 1920 pela sigla EVD1 e EVD2 para a edição de 1929.

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rência clara à segunda edição alemã em Cabral Moncada (1930) .2Vamos tomar como ponto de partida destas breves notas o texto de 1920 porque, como Sara Lagi (2008), pensamos que EVD1 não é uma espécie de esboço ou texto preparatório da versão final de EDV2. Isto apesar de ser verdade que há partes do texto de 1920 que reapa­ recem, quase inalteradas, na versão de 1929. Começaremos por fazer uma breve resenha das principais diferenças entre EVD1 e EVD2 (I) orientando a nossa leitura pela análise de Lagi (2007, pp. 189-226). Em (II) apresentaremos algumas notas sumárias sobre alguns temas focados em EVD1 desta­ cando o uso da obra de Vaihinger na construção de uma teoria das ficções jurídicas e políticas. 1. Há diferenças manifestas desde um ponto de vista puramente externo e quan­ titativo entre EVD1 e EVD2 que seria fastidioso analisar em pormenor.3 Lagi (2007: 189) sublinha a diferença de contexto histórico em que surgiram as duas versões de EVD. Em 1920 Kelsen estaria mais dominado pela atenção às tensões políticas ligadas à formação da Primeira República Austríaca com a natural centralidade da reflexão sobre o parlamento e a constituição como garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos. E neste contexto que se explicaria a atenção de Kelsen a toda a problemá­ tica ligada à lei eleitoral e mecanismos de representação e de participação política. Mas a autora insiste em dois aspectos que lhe parecem importantes para se apreciar devidamente EVD1: 1) a originalidade do texto que condensa a reflexão de Kelsen sobre as insituições e os princípios que as devem reger em confronto com uma vasta literatura; 2) apesar de EVD1 poder ser legitimamente considerado ponto de partida para EVD2 não é menos verdade que EVD1 deve ser lido por si mesmo e, antes de mais, como ponto de chegada, provisório sem dúvida, mas ponto de chegada de um itinerário que Kelsen percorreu, se não desde o seu doutoramento em 1906 pelo menos desde a sua Habilitation (Kelsen, 1911).4 Neste ponto não parece haver razão para grandes divergências. Já não nos parece tão claro o alegado papel das preocupa2. Apesar da indicada concordância com Kelsen quanto aos elementos essenciais da ideia de democracia (“a idea de liberdade individual, a idea de igualdade, a própria idea de povo e ainda a de representação jurí­ dica dêste último pelo parlamento, ous seja a idea de parlamento”. M oncada , 1930: 25) não há dúvida de que Cabral Moncada usa estas ideias como instrumentos heurísticos para organizar a sua exposição crítica do que ele designa como democratismo ou demo-liberalismo. As escassas referências aos textos de Kant não desempenham qualquer papel positivo na sua compreensão da democracia (Moncada , 1930: 32, 36, 39, 48). A presença de Radbruch e Heller, entre outros, é muito mais forte e reduz a recepção do texto de Kelsen a mera circunstância. 3. Desde logo o número de páginas que podemos comparar facilmente a partir do volume citado na nota anterior que inclui os dois textos (EVD1 ocupa 33 páginas e EVD2 80 páginas nessa edição contendo, respetiva­ mente, 7 e 10 capítulos). Há evidentemente aspectos que se poderão explicar melhor pela introdução de novos elementos. Mas, para citar apenas um exemplo, a nota 1 de EVD1 fica reduzida à citação de Koigen (1912: 4) omitindo a citação constante da primeira edição e a introdução, significativa em nosso entender, que Kelsen faz a esta referência sublinhando o “carácter anti-heróico da democracia”já referido por Koigen e resultante, para Kelsen da ideia negativa de iguladade que está na raiz das aspirações democráticas a par da liberdade negativa. 4. L agi (2007:190).

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ções de Kelsen com os movimentos que iriam redundar na instauração dos fascismos na Europa. Mesmo que não seja de excluir essa percepção por parte de Kelsen bem como do crescente anti-semitismo que grassava em muito ambientes da Viena onde ele foi juiz do tribunal constitucional durante toda a década 20, não se pode esquecer a continuidade do esforço teórico de Kelsen em permanente reelaboração dos seus conceitos chave e da sua aplicação. Os textos sobre a democracia mostram à saciedade um compromisso pessoal de Kelsen com os valores básicos da democracia e da liber­ dade que vão muito para além da reação imediatista à conjuntura. Deste ponto de vista, o texto de 1932 sobre a defesa da democracia5é muito significativo. Depois de uma declaração de admiração incondicional pela constituição de Weimar, a constituição mais democrática em todo o mundo, Kelsen observa que, no período que vai de 1922 a 1932, a Constituição de Weimar tornou-se um corpo cada vez mais estranho para o povo alemão e “no domínio da teoria social” houve uma alteração radical quanto ao “juízo sobre o valor da democracia” (Kelsen, 1932: 92). Mas voltaremos a este ponto e a alguns aspectos do diagnóstico de Kelsen (1932), mais adiante. O contexto histórico é muito complexo está bem analisado em Lagi (2007) e em muitos outros textos que se ocupam da época e da obra dos grandes juristas da época. Se é verdade que hoje ouvimos e lemos mais sobre Cari Schmitt também são conhecidos os textos e as polé­ micas que envolveram Kelsen com outros autores importantes como Rudolf Smend, Erich Kaufmann e Hermann Heller. Isto sem esquecer Gustav Radbruch que, apesar de não pertencer ao “quarteto de Weimar”, influenciou muito (negativamente) a inter­ pretação da obra de Kelsen na Alemanha e em Portugal. Deslindar os preconceitos de Kelsen e de cada um destes autores seria tarefa imensa que não pode ser sequer esbo­ çada neste brevíssimo apontamento. Fica apenas o registo da convicção de que ainda há muito por descobrir e esclarecer nestas controvérsias e nos textos que lhes estão associados. Citamos na bibliografia alguns textos mais antigos que nos dão uma breve amostra da literatura que se publicou no início do século XX sobre a democracia e outras questões de regime. Não se trata de um elenco exaustivo e tem como simples objectivo dar uma ideia da complexidade e do volume de textos que Kelsen leu criticamente para a eleboração da sua doutrina da democracia.6 5. Kelsen (1932), “Verteidigung der Demokratie”. BlátterderStaatspartei, 2. Jahrgang, pp. 90-98.

6. As posições de quantos escrevem sobre a democracia é muito diversificada. A par de alguns textos bem conhecidos, sobretudo dos juristas, encontramos em muitos casos uma literatura em grande parte desconhe­ cida; mesmo os nomes de alguns autores não são fácilmente identificáveis. Por vezes, dá-se o caso de nem sequer figurarem em dicionários enciclopédicos alemães como, por exemplo, o da dtv (20 volumes) ou o Brockhaus. O texto de Paulsen (1921) é significativo por se tratar de um grande manual que vem já de finais do séc xix mas continuou a ser reeditado até aos anos 20. Nele se defende a tese de que a democracia não seria muito adequada à cultura dos povos germânicos. Paulsen (1921, vol. 2: 619-621, 623, 626). Kelsen critica tanto os adversários da democracia como é o caso de Hasbach como os seus partidários (por exemplo o socialdemocrata sueco Gustaf Steffen) pela sua falta de rigor científico. Hasbach, não pode fazer uma exposição rigorosa se partir do pressu­ posto de que a monarquia é o melhor regime político. Por outro lado, Steffen é criticado por não apresentar as características da democracia que em seu entender são os pontos mais problemáticos utilizáveis pelos inimigos da democracia. EVD 1 (pp. 3-4). A mesma isenção leva Kelsen a dar razão em alguns aspectos aos adversários da

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Todo o ensaio de 1920 está estruturado em breves capítulos que, com extraor­ dinária claridade e precisão, apresentam as características essenciais da democracia parlamentar. Depois de uma primeira parte dedicada à distinção entre democracia ideal e democracia real, Kelsen aborda o que ele considera um dos grandes problemas da democracia moderna, a saber, a questão da representação parlamentar. No contexto desta análise ressalta não só as referências aos clássicos do pensamento político - antes de mais ao contrato social de Rousseau - e a todos os mecanismos associados ao exer­ cício do poder político com particular destaque para a eleitoral e os mecanismos de representação, escolha de deputados e suas funções bem como de outros dirigentes políticos e adminitrativos. Na segunda parte de EVD1 Kelsen dá particular atenção aos novos desafios colocados pela teoria e prática do novo modelo democrático proposto pelos novos poderes na Rússia, depois da triufante revolução de outubro. São, porven­ tura, das páginas com carga ideológica mais forte. Nelas se confronta com a doutrina e a prática da democracia dos sovietes. Além da informação privilegiada de que dispunha como conselheiro do chanceler austríaco refere ainda a versão alemã da obra de Lenine sobre as Próximas tarefas do poder soviético.7 Kelsen faz um confronto sumário em EVD1 com os vários aspectos suscitado pela Revolução de Outubro designadamente as que se referem à democratização da economia e à abolição do parlamentarismo remete os seus leitores para a sua Investigação sobre a teoria política do marxismo, publicada naquele mesmo ano.8Apoia-se nas teses de Weber (1918) para integrar na sua reflexão sobre a democracia a ideia de que não haveria distinção, sob o ponto de vista estritamente teórico, entre as questões organizativas do sector público e privado. Tese que agradaria, ainda hoje a muito boa gente, mas talvez já não se possa dizer o mesmo de outra ilação que Kelsen retira da obra de Weber. Sendo assim, temos que concluir que as ques­ tões relativas à natureza e funcionamento da democracia não dizem respeito apenas

democracia como Hasbach quando este chama a atenção para a dificuldade em conciliar a soberania popular com a doutrina de Montesquieu da divisão dos poderes. EVD1 (p. 15, n. 20). 7. Vladimir L enin , Die nàchsten Aufgaben der Soxojet-Macht, Proletarier aller Laender veránigt euch. Bern: Promachos, 1919. Kelsen conhecia a posição crítica de Kautsky e de Karl Renner face à proposta de nova democracia na jovem república soviética. Embora não o cite em EVD1 é de crer que Kelsen conhece a violenta réplica de Lenin à obra de Kautsky sobre a ditadura do proletariado. Neste contexto, não deixa de ser interes­ sante notar que Kelsen se permite criticar frontalmente certos pontos de Weber (1918: 55): “In seiner Schrift uber, Parlament und Regierung im neu geordneten Deutschland’ fordert Max Weber, nicht ein redendes, sondern ein arbeitendes Parlament, ein Parlament, das die Verwaltung fortlaufend mitarbeitend kontrolliert’. .Registrierung und Kontrolle’ sind aber die Funktionen, die auch Lenin in seinen Schriften immer wieder und mit allergròBtem Nachdruck fur das in den Sowjets organisierte Volk in Anspruch nimmt.” EVD 1 (p. 19). 8. Kelsen , Sozialismus und Staat, eine Untersuchung der politischen Theorie des Marxismus. Leipzig: Hirschfeld, 1920. Não deixa de ser significativo que Kelsen publique uma segunda edição ampliada deste texto na mesma editora passados escassos três anos. Esta segunda edição tem 208 páginas em contraste com as 129 da primeira edição. Esta segunda edição foi ampliada em grande parte para responder à critica que Max Adler fez à primeira edição da obra de Kelsen sobre Socialismo e Estado. Cf. Max Adler , Die Staatsauffassung des Marxismus. Ein Bátrag zur Unterscheidung von soziokgischer und juristischer Methode. Wien: Verlag der Wiener Volksbuchhandlung, 1922.

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ao estado mas também às empresas.9 Este sentido de objectividade que está presente em todos os trabalhos de Kelsen não deve ser confundido com uma neutralidade indiferente aos valores políticos defendidos. Trata-se apenas de, metodologicamente, procurar evitar que tal compromisso não desvirtue a descrição da democracia tal qual ela é (ou deve ser segunda a sua essência) sem falsear nenhum aspecto importante. 2. Um dos aspectos mais conhecidos da reflexão de Kelsen sobre a democracia tem que ver com a sua articulação do parlamentarismo numa compreensão mais estrutu­ rada que consiga libertar-se das contradições da retórica política em torno da soberania popular10e da (ficção) da representação. Já nos clássicos da política, muito particular­ mente em Rousseau, se encontrava reflexão crítica sobre estas questões. Contudo, nem a solução de Rousseau através da sua vontade geral nem a posterior reflexão no campo da teoria política superararam verdadeiramente estas aporias. Kelsen não terá forne­ cido a resposta definitiva a este feixe de questões mas foi quem apresentou uma das propostas teóricas mais consistentes. Mesmo quando temos a impressão de que alguns aspectos já estão datados, não se perderia nada, antes pelo contrário, em revisitar os seus textos para alimentar uma reflexão verdadeiramente crítica sobre a reforma do sistema político, do estado e das instituições. Vejamos a questão da ficção da representação. Em EVD1 e nos textos posteriores Kelsen opera com uma noção de parlamento enquanto “órgão do estado” e não “órgão da sociedade”.11 A compreensão antropomórfica da vontade popular, ainda hoje em voga no discurso político dos mais diversos quadrantes ideológicos, é objecto de uma crítica muito acutilante. Uma das questões que Kelsen coloca é muito semelhante à colocada por Moncada (1930: 44) apesar de os pressupostos divergirem designadamente no que diz respeito à assumida dimensão despersonificante da abordagem da teoria do direito por parte de Kelsen. Mas parecem convergir no facto de reconhecerem que o conceito de represen­ tação por mandato, muito útil no direito privado, ser, por definição, seriamos tentados 9. “Darum ist ja auch das Organisationsproblem in beiden Fàllen grundsàtzlich das gleiche. Und Demokratie nicht nur eine Frage des Staates, sondern auch der wirtschafdichen Betriebe.” EVD1 (pp. 13-14, n. 19). 10. A soberania é compreendida como uma questão a ser analisada, antes de mais, em termos de psico­ logia social sem esquecer outras com efeitos psicosociais. “Weil Souveranitât kein in der Aussenwelt sozialer Tatsachen wahrnehmbares Faktum ist und solches nicht sein kann, sondern nichts anderes ist ais eine Annahme des Betrachters, eine Betrachtungs-, Wertungs-Voraussetzung ist, bedeutet die Frage: wann ist die Souverenitàt gegeben: 1. Welches sind die psychologischen Bedingungen, unter denen ich, der Betrachter, die rechtslogische Voraussetzung der Souveranitât mache, und 2. welches sind die psychischen, insbesondere die sozialpsychischen und sonstigen (etwa wirtschaftlichen, religiòsen, politischen, aber immer wieder nur sozialpsychisch wirksamen, die zu einer Massenvorstellung von Souveranitât, die zu der Tatsache fflhren, dass auch die Volksgenossen oder doch eine bestimmte Gruppe derselben die Vorstellung der Souveranitât ihres Gemeinwesens haben, mit ihrer Staatsordnung ais mit einer hôchsten, nicht weiter ableitbaren operieren.” Kelsen , Das problem der Souverãnitãt, p. 15. 11. Para uma análise desta evolução no pensamento de Kelsen; ver Lagi (2007:193-224).

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a dizer, inaplicável às situações em que as vontades em presença não sejam, de facto, individuais. A ilusão criada pelo discurso sobre “a vontade do povo” não pode justi­ ficar que se esqueça que o povo não é um indivíduo. Banalidade que todos conhece e, no entanto, o discurso mitológico a que Kelsen se refere continua até aos nossos dias. A eleição dos deputados do parlamento não pode ser ocasião de tratarmos o Parlamento de modo diferente de outros órgãos do estado (EVD1, p. 13). Criação e representação, defende Kelsen, são coisas completamente distintas. Do seu ponto de vista só uma diferenciação normativa entre representantes e representados pode superar, pelo menos parcialmente, as antinomias básicas do sistema eleitoral de modo a permitir uma articulação dos interesses individuais dos cidadãos e dos diferentes grupos da sociedade civil. Kelsen chama a atenção para o facto de os regimes autori­ tários de diferentes tipos apelarem igualmente para esta retórica com base na ficção da representação.12 No § 43 da Teoria Geral do Estado (1925) Kelsen retoma a questão da representação fictícia do povo e da soberania popular. Neste texto, ao contrário do que afirma Moncada (1930, p. 44), Kelsen contesta a dependência intrínseca do conceito de representação do direito privado. Kelsen insiste no facto de a única possi­ bilidade de eliminar a ficção passar por uma fixação dos critérios quer permitam veri­ ficar se a vontade do representado está (ou não) a ser “executada”.13 Kelsen continua a examinar a questão da justificação política da ficção da representação e uma possível saída que não venha a enredar-se em outra ficção omnipresente, a da soberania popular (Kelsen, 1925a: 315-320). Não poderemos seguir os complexos meandros da análise de Kelsen. Desejamos apenas deixar o registo de uma nota marginal sobre a reflexividade da noção de ficção com que opera aqui Kelsen nestes textos. A comple­ xidade da sua noção de ficção, no campo da política e do direito, foi sendo elaborada ao longo da sua carreira de jurista e de juiz do tribunal constitucional austríaco mas passou por um confronto analítico muito directo e detalhado com a teoria das ficções de Hans Vaihinger (1913) no contexto da sua filosofia do como se. O texto de Kelsen (1919) sobre as ficções jurídicas mereceria um pouco mais de atenção. Trata-se de uma artigo muito bem estruturado em que se faz o cotejo dos passos em que Vaihinger fala das ficções jurídicas para fazer uma apreciação crítica desse uso e propor uma generali­ zação no domínio da teoria do direito. Reconhecendo que Vaihinger construiu grande 12. EVD1 (pp. 16-17): “Wie wenig verwandt der Reprâsentativgedanke dem demokratischen Prinzipe ist, erkennt man daraus, daB die Autokratie sich derselben Fiktion bedient. Wie der Monarch und ganz besonders der absolute Monarch, so gilt auch jeder vom Monarchen eingesetzte Beamte ais Organ d. h. aber ais Repràsentant der Volksgesamtheit, des Staates. Es hat keinen Usurpator und keinen Tyrannen gegeben, der auf diese Rechtfertigung seiner Macht verzichtet hãtte. Die autokratische Reprãsentationsformel und die Pseudodemokratie eines gewãhlten Cãsars unterscheiden sich nicht allzusehr voneinander.” 13. “Dies wãre der Fali, wenn eine positive Rechtsregel bestúnde, die im allgemeinen den Beschlússen des “Volkes” die Wirkung von Gesetzen gibt; ausnahmsweise aber das Parlament Beschlusse mit solcher Wirkung fassen kõnnte, ais ob sie vom Volk selbst gesetzt worden wãren. Das ist ja nach manchen Verfassungen unmittelbarer Demokratien der Fali.” Kelsen (1925a: 314). Mas continua Kelsen este não é o caso dos outro tipos de democracia em que o povo está, constitucionalmente, excluído do exercício do poder legislativo.

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parte da sua teoria baseando-se no que se lhe apresentava como “ficção jurídica” Kelsen não deixa de observar que Vaihinger se refere a coisas muito diferentes usando esta mesma designação.14Apesar de em muitos dos exemplos de ficção jurídica não se tratar verdadeiramente de uma ficção, Kelsen retem a caracterização de Vaihinger pela finalidade e pelo meio: o telos é sempre o “conhecimento da realidade”, o meio, “uma falsificação, uma contradição, um artifício, um desvio e um ponto de passagem do pensamento”.15 O texto estimulante de Kelsen termina com a tese provocadora de que as ficções teóricas da teoria do direito, ao contrário do que pensava Vaihinger, não se compreendem melhor a partir da ciência do direito mas através das ficções da mate­ mática e de outras ciências.16 A articulação entre ciência e democracia e o tão discutido relativismo de Kelsen terá que ser discutida em outra ocasião. Fica apenas o registo de que o problema de fundo que Kelsen pretende resolver é o mesmo que ainda hoje temos que resolver em sociedades complexas onde o pluralismo é um facto social. Para terminar gostariamos de retomar algumas observações de Kelsen no texto em defesa da democracia (1932). A lucidez com que Kelsen descreve a situação política na Europa e na Alemanha em particular é admirável e ainda mais se compararmos este texto com o que escreveram muitos dos seus contemporâneos na mesma data. O declínio iminente da democracia e a aproximação da ditadura nazi estão aqui bem patentes. Os tempos sombrios são, apesar de tudo, interpretados poisitivamente por Kelsen na medida em que são o testemunho vivo de que a democracia não é uma forma política adequada à luta de classes ou qualquer outra forma de combate em que o adversário se transforma em inimigo e o objectivo da luta política passa a ser o extermínio do outro. A democracia, conclui Kelsen, “é a forma política da paz social”.17 Para terminar com uma nota marginal retirada deste mesmo texto e que mantém toda a sua actualidade. Nos tempos de tecnocracia financeira e de outra espécie 14. “Unter der Bezeichnung der “juristischen Fiktion” werden jedoch sehr verschiedene Erscheinungen zusammengefaBt. Nur ein verhâltnismâfiig kleiner Teil stellt sich ais Fiktion in der eigendichen Bedeutung des Wortes, ais Fiktion im Sinne des von Vaihinger aufgestellten Begriffes dar. Ja, das meiste, was Vaihinger selbst ais “juristische Fiktion” behandelt und seiner hochverdienstlichen Theorie zugrunde gelegt hat, ist gar keine Fiktion, ist zumindest nicht das Vorstellungsgebilde, auf welchesjene charakteristischen Merkmale passen, die er treffend bestimmt hat.” Kelsen (1919:631). 15. “Die Fiktion charakterisiert sich nach Vaihinger ebensosehr- durch ihren Zweck wie durch das Mittel, mit dem sie diesen Zweck erreicht. Der Zweck ist: Erkenntnis der Wirklichkeit, das Mittel: eine Fâlschung, ein Widerspruch, ein Kunstgriff, ein UmwegundDurchgangspunktdes Denkens.” Kelsen (1919: 631). 16. “Doch fállt das Licht auf diese Fiktionen nicht eigentlich aus der Rechtswissenschaft - wie Vaihinger meint - sondern umgekehrt: Die echten, theoretischen Fiktionen der Rechtswissenschaft werden verstãndlich durch die Fiktionen der Mathematik und der anderen Wissenschaften. Die Fiktionen der Rechtstheorie haben gar nichts spezifischjuristisches an sich, sie sind keine fur diejurisprudenz charakteristische Methode”. Kelsen (1919:658). 17. “Diese Flucht aus der Demokratie ist nur ein Beweis dafixr, daB die politische Form der Demokratie

sich nicht fúr einen Klassenkampf eignet, der mit dem entscheidenden Sieg der einen und der vemichtenden Niederlage der anderen Partei enden soll. Denn die Demokratie ist die politische Form des sozialen Friedens, des Ausgleichs der Gegensãtze, der gegenseitigen Verstãndigung auf einer mittleren Linie.” Kelsen (1932: 232).

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seria saudável reler este texto e as suas obsservações sobre o papel dos especialistas na condução da política. Sem negar o papel imprescindível do contributo do conheci mento técnico especializado Kelsen não deixa de sublinhar que num sistema político bem ordenado o papel do especialista deve ser sempre secundário. Aquilo que cons titui o cerne da decisão política pertence a uma esfera em que o especialista não tem qualquer competência específica. Não falta a crítica a uma certa mentalidade alemã que sob a capa da eficácia e eficiência se rende às mais diversas formas de autocracia.18 Referências Baume, Sandrine (2007). Kelsen, plaider la démocratie. Paris: Michalon (trad. ingl.: Hans Kelsen and the casefor democ-

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POÉTICA DA RAZAO HOMENAGEM LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS Organizadores

Adriana Veríssimo Serrão Carla Meneses Simões Elisabete M. de Sousa Filipa Afonso Maria Luísa Ribeiro Ferreira Pedro Calafate Simões Ubirajara Rancan de Azevedo Marques

CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA 2013

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