Sobre o real fundamento dos direitos fundamentais

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Revista Digital de Direito Público Faculdade de Direito de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo

Seção de Artigos Científicos

Sobre o real fundamento dos direitos fundamentais Josué Mastrodi Resumo: Os direitos fundamentais representam a positivação, no ordenamento jurídico, dos direitos humanos. Direitos fundamentais é expressão que indica que eles dão fundamento a esse ordenamento jurídico. Mas o que dá fundamento a eles? As abordagens mais correntes apontam a dignidade da pessoa humana, o contrato social ou outro conceito ideal e abstrato. Neste artigo procura-se apresentar seu fundamento na realidade social e, a partir dele, apresentar os direitos fundamentais como uma estrutura histórica totalmente moldável aos interesses dominantes de uma época. Palavras-chave: Direitos fundamentais; Definição realista; Dignidade da pessoa humana; Interesses sociais conflitantes; Fatores reais de poder. Abstract: Fundamental rights are the legal form of the human rights, proper to every and each legal system. It is an expression that indicates that they are fundamental because they give ground for the whole legal system. But what gives ground to them? The most common approaches lead to human dignity, to the social contract or to other abstract and ideal concepts. By this article I seek their foundation on social reality and, from that point on, present the fundamental rights as a historic structure, fully moldable by social dominant interests. Keywords: Fundamental rights; Realistic definition; Human dignity; Social interests under conflict; Real relation of forces. Sugestão de referência: MASTRODI, Josué. Sobre o real fundamento dos direitos fundamentais. Revista Digital de Direito Público, vol. 1, n. 1, 2012. Disponível no URL: www.direitorp.usp.br/periodicos Artigo submetido em: 28/10/2011

Aprovado em: 21/12/2011

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REVISTA DIGITAL DE DIREITO PÚBLICO, vol. 1, n. 1,2012.

SOBRE O REAL FUNDAMENTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Josué Mastrodi*

Sumário: 1. Introdução 2. Da hipótese e do problema a se enfrentar 3. Metodologia empregada 4. Direitos fundamentais indicam, ao mesmo tempo, direito e ciência do direito 5. Justificação dos direitos fundamentais 6. Como se fundamentam os direitos fundamentais? 7. Concepção dialética da história 8. Sobre o fundamento material dos direitos fundamentais 9. Ocultação das relações sociais estruturais 10. Da necessidade de consenso social 11. Direitos fundamentais como fator de consenso 12. Fundamento dos direitos fundamentais 13. À guisa de conclusão 14. Bibliografia

1. Introdução A teoria dos direitos fundamentais provocou uma mudança significativa no Direito positivo, que anteriormente se embasava no princípio da legalidade: as leis e os atos normativos foram submetidos a certas pautas valorativas – os direitos humanos – positivadas na forma de princípios constitucionais. O ordenamento jurídico é interpretado hoje, segundo a moderna hermenêutica constitucional, a partir dos direitos fundamentais e segundo o sentido imposto por estes1. Os direitos fundamentais são, grosso modo, a positivação dos chamados direitos humanos no âmbito do ordenamento jurídico de um Estado2, retomando, dentro do positivismo jurídico, a compreensão jusnaturalista pela qual alguns direitos seriam inerentes ao homem, pré-existentes a qualquer sistema normativo estatal e que * Professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 1

Para o desenvolvimento deste trabalho, utilizaremos a expressão direitos fundamentais na forma apresentada por Perez Luño, para quem Estado de Direito, constitucionalismo e direitos fundamentais são elementos interdependentes e incindíveis entre si: o Estado de Direito, para ser Estado de Direito, deve garantir os direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que estes somente podem se realizar no âmbito do Estado de Direito: “Os direitos fundamentais constituem a principal garantia com que contam os cidadãos de um Estado de Direito de que o sistema jurídico e político, em seu conjunto, se orientará ao respeito e à promoção da pessoa humana, em sua estrita dimensão individual (Estado liberal de Direito), ou conjugando esta com a exigência de solidariedade, corolário do componente coletivo da vida humana (Estado social de Direito).” PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los Derechos Fundamentales. 7ª edição. Madri: Tecnos, 1998, p. 20. 2 Cf. PEREZ LUÑO, op. cit, p. 46: “...com a noção de direitos fundamentais se tende a aludir àqueles direitos humanos garantidos pelo ordenamento jurídico positivo, na maior parte dos casos em sua normativa constitucional, e que costumam gozar de uma tutela reforçada.” Sobre a “transformação” dos direitos naturais em direitos humanos, ou mesmo da constatação de utilização dessas expressões como afins ou até sinônimas por autores como Herbert Hart, John Rawls, Ronald Dworkin, Robert Nozick e John Finnis, cf. PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 7ª edição. Madri: Tecnos, 2001, p. 176-180.

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devem ser reconhecidos por este. Direitos humanos, a partir de meados do século XX, são a forma com a qual os antigos direitos naturais foram revestidos3. A partir das revoluções liberais, a velocidade das mudanças sociais acelerou. Os direitos naturais declarados como direitos humanos passaram a determinar o sentido lógico-racional de toda e qualquer norma jurídica. Os textos normativos não mais poderiam ser interpretados conforme o costume ou a tradição do local, mas segundo a razão lógica, aplicável universalmente em todos os lugares, independentemente das formas anteriores de solução dos conflitos. No início da idade moderna, por influência racionalista e por adequação aos interesses da ascendente classe burguesa, a norma jurídica passa a ser compreendida como decorrência lógica de verdades evidentes, consubstanciadas na forma de conceitos normativos, aos quais bastava subsumir o caso concreto para se obter a única resposta correta. Os juízes nem precisariam interpretar o texto das leis4, a exegese seria feita por silogismo lógico-racional. Entendia-se a lei estatal – deliberada pela nação como resultado ou decorrência do contrato social – como o único parâmetro de conduta social, segundo o qual não se deve agir se houver lei proibitiva (ou o oposto: deve-se agir se houver lei exigindo tal ação). Até o meio do século XX, por força dessa visão liberal-racional que estruturava a sociedade, lutas por novos direitos eram entendidas como casos de polícia, já que os únicos direitos seriam aqueles prescritos em lei. Essa compreensão começou a mudar a partir do momento em que os temas de direitos humanos passaram a ser considerados como princípios norteadores da aplicação da lei e, com muito mais força, quando tais temas passaram a ser positivados

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A teoria geral do direito passa, ao longo da história, por um movimento pendular, ora em direção à força normativa das leis positivas, ora em direção à legitimidade de regras imemoriais, numa dicotomia apreendida desde a antiguidade, como se vê em Sófocles e sua Antígona. Na era moderna, o direito natural foi recepcionado na forma de prerrogativas evidentes do homem, decorrentes de sua verificação racional. Seriam os direitos, assim, fatos não mais destacados da natureza (matriz helênica), nem frutos de revelação divina (matriz medieval), mas derivados da Razão universal. Nessa formatação racional, os homens teriam certos direitos naturais, em especial que lhes conferissem liberdade. Até mesmo a vontade foi submetida à crítica da Razão. A sociedade foi compreendida como o fruto de um acordo racional de vontades entre os homens. O sistema jurídico, como uma elaboração normativa que decorria diretamente de conceitos ideais lógicos e racionais. Essa compreensão do homem, da sociedade e do direito não ocorreu de imediato. De Leviatã de Hobbes (1651) até Do Contrato Social de Rousseau (1762), passando por Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Kant (1754) foram 111 anos, que devem ser contextualizados numa mudança estrutural na sociedade europeia que se desenvolveu ao longo do Renascimento, período histórico iniciado (por convenção) em 1453 e cujo ápice se deu em 1789 com a Revolução Francesa. Essa transformação da vida feudal ao início da organização estatal moderna levou 336 anos. 4 Juízes boca-da-lei, na conhecida afirmação de Montesquieu. Cf. MONTESQUIEU, Charles Secondat (Barão de). Do Espírito das Leis. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 172.

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na forma de princípios normativos constitucionais. Inicialmente, tais princípios eram entendidos ora como sugestões (cf. art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro)5, ora como programas6. Com o desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais, estes passaram a ser vistos como normas jurídicas válidas e de eficácia imediata. O conceito de direitos fundamentais7 encerra a compreensão de um conteúdo tão importante que serve para conferir alicerce tanto a uma teoria descritiva do direito quanto para fundamentar todo o sistema jurídico-normativo. Em termos materiais, a descrição teórica informaria sobre a força normativa dos direitos fundamentais8. Em termos formais, a força normativa dos direitos fundamentais está no fato de terem sido positivados como princípios constitucionais9.

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Atual nomenclatura do Decreto-Lei nº 4657, de 4 de setembro de 1942, originariamente denominado LICC – Lei de Introdução ao Código Civil. Seu artigo 4º dispõe que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” 6 Sobre o conceito de norma programática, Silva as define como normas de eficácia limitada ou reduzida, dependentes de integração legal para operarem a plenitude de seus efeitos. Cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7ª. edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p 150. Para Barroso, trata-se de “normas que têm por objeto traçar os fins públicos a serem alcançados pelo Estado.” BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividadade de suas Normas: Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 4ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 91. 7 Sobre este tema, cf. Mastrodi: “Não há que se falar em limites formais tampouco em definição unânime do conceito de direitos fundamentais, pois ele é mutável, como mutável é a Sociedade. A noção originária de direitos fundamentais, como direitos inerentes às pessoas pelo fato de serem pessoas, visava à proteção destas contra ingerências provocadas pelo Estado absolutista (e também por terceiros) nos aspectos mais importantes de sua personalidade. Dada a generalidade e a abstração naturais de definições valorativas, necessariamente abertas, o conceito de direitos fundamentais sofre modificação em seus limites (tanto no conteúdo quanto na extensão) conforme as necessidades e valores de cada tempo e lugar.” MASTRODI, Josué. Direitos Sociais Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 27. Segundo Queiroz, “não é o povo que vem definido pelos direitos fundamentais, mas os direitos fundamentais que vêm definidos pelo povo”. QUEIROZ, Cristina M.M. Direitos Fundamentais (Teoria Geral). Coimbra: Coimbra, 2002, p. 23. E ainda: “A expressão ‘direitos fundamentais’ tem origem na Constituição alemã aprovada na Igreja de S. Paulo em Francoforte, em 1848. Aí, com efeito, nos termos do disposto no seu artigo IV; § 25, proceder-se-á ao estabelecimento de um catálogo dos ‘direitos fundamentais do Povo alemão’ (Grundrechte des deutschen Volkes). O qualificativo ‘fundamentais’ destinava-se a sublinhar o caráter de ‘reconhecimento’ e não da criação de direitos por parte do Estado. O caráter pré-estatal e de indisponibilidade dos direitos quedava assim estabelecido” QUEIROZ, Cristina M.M. Direitos Fundamentais..., cit., p. 26. 8 Sobre força normativa, cf. por todos HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: SAFe, 1991, em especial no contraponto que esse autor propõe em relação aos fatores reais de poder de Lassalle. Isto será considerado com mais precisão no item 11 deste trabalho. 9 Sobre normas constitucionais de caráter formal e material, cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1974, p. 309-311. Para esse autor, no âmbito de sua teoria pura do direito, normas materialmente constitucionais são aquelas cuja natureza refere-se à estrutura de disposição de competências, e normas formalmente constitucionais são aquelas que constam do texto constitucional, mesmo sem função de disposição de competência. A dogmática jurídica, por outro lado, passou a considerar normas materialmente constitucionais aquelas cujo conteúdo trata da prescrição de direitos e formalmente constitucionais aquelas que, independentemente de seu conteúdo, são constitucionais por constarem de seu texto.

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A questão formal esbarra no problema que todo e qualquer direito fundamental, por ser norma de matriz constitucional, possui a mesma força normativa dos demais10. Ou seja, em caso de colisão de conteúdos, não há como determinar a exclusão de um deles, haja vista que ambos são formalmente direito posto. Um deles será escolhido, negando-se eficácia aos outros, cuja validade permitiria sua aplicação no mesmo caso concreto11. A questão material esbarra no problema de fundamentação ou justificação de um direito. Em caso de colisão entre dois direitos fundamentais igualmente válidos, há que se decidir pela prevalência de um deles. Decisão é ato de vontade que nada tem a ver com lógica ou com determinação racional. Trata-se de escolha política. Escolhas políticas se fundamentam em interesses valorativos e não em descrições objetivas. Ainda que tais escolhas sejam apresentadas como se fossem o resultado de um argumento racional alicerçado em valores universais, elas continuarão sendo escolhas e não conclusões lógicas12. A decisão não deriva de uma verdade ou em uma definição objetivamente verdadeira, mas da ponderação de interesses em que, ao fim e ao cabo, define-se que, para o caso concreto em análise, um direito é mais fundamental que outro. Embora seja famosa a frase de Bobbio em que ele afirma a necessidade de tornar os direitos eficazes, tornando-se despiciendo questionar sobre seu fundamento13, não há como garantir direitos apenas com base em força ou autoridade, mas por sua legitimidade social que, em geral, refere-se ao estabelecimento social de um certo padrão de comportamento percebido como justo. Aliás, é essa legitimidade que confere, nos conflitos normativos, preferência pela eficácia de um direito fundamental em detrimento de outro.

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Cf. por todos BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Trad. José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 1995. 11 Os princípios normativos, Segundo Gallupo, “não precisam ser concebidos rigorosamente como harmônicos e coerentes no contexto de sua aplicação. Muitas vezes, eles indicam diferentes projetos de vida, presentes em uma mesma sociedade, e o intérprete que pretenda realizar o tipo de justiça inerente ao Estado Democrático de Direito deve levar a sério esta divergência principiológica. Esta ideia já estava presente na obra de Esser, para quem não existe um ‘princípio supremo,’ já que todas as funções do direito podem expressar-se em princípios que, a cada vez, atuam antinomicamente”. Cf. GALLUPO, Marcelo Campos. Hermenêutica Constitucional e Pluralismo, in SAMPAIO, José Adércio Leite e CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (coords.). Hermenêutica e Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 60. 12 Cf. por todos KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1974, em especial nas páginas 468-473. 13 “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político”. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 24.

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2. Da hipótese e do problema a se enfrentar A fundamentação dos direitos fundamentais tem sido lançada sobre abstrações de caráter idealista, tais como dignidade da pessoa humana, liberdade, bem comum ou justiça. Porém, tais termos são altamente abrangentes, passíveis de preenchimentos dos mais variados modos, inclusive de modos contraditórios entre si. Todos que buscam proteção jurídica o fazem visando à consolidação de sua dignidade, de seu ideal de liberdade, de sua perspectiva de bem comum e do atingimento da justiça. Entendemos possível encontrar o substrato que confere conteúdo a tais conceitos indeterminados na prática das relações sociais, na profunda interação entre interesses sociais conflitantes. Nesse sentido, os valores da dignidade, da liberdade e da justiça mantêm-se relevantes para a estruturação do direito e para a legitimação dos direitos fundamentais; no entanto, não mais de forma ideal e abstrata, mas concreta e determinada. Em termos de legitimação dos direitos, estes acabam sendo fundamentados em valores. Ainda que seja possível considerar a construção ou a constatação racionais de um valor, este não decorre da razão (em termos kelsenianos: não existe um valor verdadeiro). Algo há que lhe dê fundamento. Deve haver um fundamento para a dignidade da pessoa humana, para a liberdade, para o bem comum e para a justiça. Autores clássicos da filosofia política basearam suas teorias sociais em pressupostos de caracteres idealista, racionalista e objetivo. Em especial, Rousseau, para quem a vontade geral seria o fundamento democrático de toda e qualquer norma estatal. Tal vontade geral foi habilmente identificada em termos racionalistas e se tornou a base de toda a legislação francesa pós-Revolução Francesa (em especial por conta da conjugação da representação popular com a representação da soberania nacional, desenvolvida pelo abade Sieyès). Não só Rousseau, mas também Locke, Kant e Montesquieu desenvolveram critérios metafísicos de fundamentação racional da sociedade moderna. Nesse mesmo esteio, e já na segunda metade do século XX, Rawls desenvolveu uma teoria de justiça das estruturas básicas da sociedade que, em sua formulação inicial, fundava-se integralmente em conceitos metafísicos (por exemplos, o véu de ignorância, a posição original e o critério maximin). Rawls14, Habermas15 e, mais recentemente, Perez Luño,16 têm buscado um fundamento para os direitos humanos identificável na intersubjetividade e nas

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Mais voltado à compreensão das estruturas básicas da sociedade justa; não obstante, um dos pressupostos de sua teoria da justiça é, precisamente, o respeito aos direitos humanos. Cf. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Piseta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 7. Após seu segundo livro, Rawls refundou sua teoria da justiça em discussões de caráter político, substituindo a fundamentação originalmente metafísica racional por uma base argumentativa e razoável. Cf. RAWLS, John. O Liberalismo Político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª edição. São Paulo: Ática, 2000, em especial nas páginas 52, 57, 83 e 190. Sobre os direitos humanos como critério de

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possibilidades sociais de consenso. Os dois primeiros tendem a buscar o consenso por artifícios de caráter racional (consenso sobreposto para o primeiro, ação comunicativa e ética do discurso para o segundo); o terceiro também busca a verdade pelo consenso, mas a partir da compreensão racional das necessidades do homem. Aliás, para Perez Luño, o fundamento último de qualquer valor é, exatamente, a constatação de uma carência: “o que satisfaz uma necessidade humana tem valor, o que a contradiz é um desvalor”17: Por se tratar de abstrações mentais, os valores são um produto do homem, que se configuram a partir do discurso racional intersubjetivo embasado nas necessidades humanas. O valor é uma projeção da consciência do homem sobre o mundo externo, representa “um modo de preferência consciente” – nas palavras de [Agnes] Heller–, que arranca de determinadas condições sociais e históricas e que, portanto, tem um fundamento empírico e não 18 metafísico .

A questão da verdade pelo consenso, contudo, por não ser objetiva, mas intersubjetiva, não permite constatação racional, mas sua aceitação dentro do que autores como Resaséns Siches denominam de lógica do razoável. Como a verdade deve ser construída racionalmente pelos interessados, exige-se a participação de todos os interessados, o que, em termos práticos, é impossível. Talvez a grande maioria dos interessados na definição de temas como, por exemplo, direito e justiça, fique alijada de qualquer processo decisório. No final, acaba-se por utilizar a racionalidade como instrumento de definição e de fundamentação dos direitos, em substituição à vontade dos ausentes. No entanto, não é admissível que a lógica substitua a vontade neste tipo de processo, já que o que está em jogo são valores, interesses e necessidades humanas que, embora possam ser racionalmente compreendidos, não são percebidos ou sentidos de uma mesma forma por todos os indivíduos19. O objetivo desta pesquisa reside em identificar que necessidades e interesses são esses e saber se, de fato, eles são fundamento dos direitos fundamentais. organização do direito internacional, cf. RAWLS, John. O Direito dos Povos. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 84-85 e 102-106. 15 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade, vol. 1. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 190-210. 16 PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución, cit., p.180-184. 17 Op. aut. cit., p. 181. 18 Op. aut. cit., p. 182. 19 Aliás, por conta da estrutura racional de definição valorativa, os partidários da intersubjetividade acabam se baseando em diretrizes normativas para organizar procedimentalmente a forma de se atingir a verdade. Isso quer dizer que o consenso só pode acontecer se os participantes, por exemplo, não forem contraditórios, buscarem o bem comum e visarem à verdade, ainda que a verdade não lhes seja benéfica. O que, na prática, é inviável: pessoas mudam de opinião e de interesses (o que causa, na lógica do discurso, contradição entre o que sustentou antes e o que sustenta depois da mudança); a busca do bem comum trata-se de um fim de difícil definição; pessoas podem ocultar a verdade ou mesmo mentir deliberadamente visando a obtenção de algum benefício material. Todos esses fatores prejudicam o atingimento de consensos e, por consequência, de uma verdade intersubjetiva.

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3. Metodologia empregada Devemos pontuar algumas precisões de caráter metodológico para o desenvolvimento adequado deste trabalho. O ponto central desta pesquisa está na busca da legitimidade do direito. Desde os adventos da Jurisprudência dos Valores, da Teoria da Argumentação e da reviravolta linguístico-pragmática, havidos no pós-2ª Grande Guerra, essa legitimidade tem se consolidado no desenvolvimento dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Se o que legitima o direito está nos direitos fundamentais, esta pesquisa se direciona para a compreensão do que realmente confere legitimidade aos próprios direitos fundamentais. Por uma decisão metodológica, deixou-se de lado a questão sobre a legitimidade dos direitos humanos. Embora altamente relevantes, as discussões envolvendo a internacionalização e a universalização dos direitos humanos, o direito internacional e a cooperação jurídica internacional fogem de nosso âmbito de conhecimento específico. Assim, entendemos necessário realizar, aqui, um profundo corte epistemológico, de modo a pôr foco nas relações internas dos Estados. Também pelo mesmo motivo, que é a busca da legitimidade dos direitos fundamentais, esta pesquisa voltou-se às vertentes francesa e alemã da teoria dos direitos fundamentais. Em que pese a importância histórica das vertentes inglesa e norte-americana, estas se desenvolveram muito mais voltadas à questão da eficácia do direito que à sua legitimidade20. Não obstante, é possível apresentar exemplos dentro das realidades históricas inglesa e norte-americana no sentido de identificar situações em que a hipótese desta pesquisa tenha incidência. Buscamos, enfim, um fundamento de legitimidade para os direitos fundamentais que esteja estabelecido além dos fundamentos geralmente apresentados pelas correntes doutrinárias idealistas, positivistas e realistas. Esse fundamento, a nosso ver, está calcado nas relações sociais ou, em outras palavras, na vida real e prática da convivência em sociedade. Esperamos confirmar a hipótese pela qual existiria algum substrato real e histórico, constatável na prática das relações humanas, que confere legitimidade social a quaisquer direitos historicamente identificados. Nesse sentido, não entendemos necessário dialogar com as teses idealista, realista e positivista do direito21, já que procuramos afirmar um fundamento comum, tanto para os valores idealistas como para os fatos realistas e as normas positivistas, verificado na prática social. 20

Sobre as “famílias constitucionais” ou sistemas constitucionais de matriz inglesa, americana e francesa, cf. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 71110. Sobre a de matriz alemã, ibid., p. 124. 21 Sobre tais correntes, cf. por todos PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución, cit., p. 54-62.

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Sequer apresentamos este tema segundo os termos de uma ou outra corrente. Por buscarmos um fundamento comum real, histórico e concreto para os direitos fundamentais, talvez possamos ser incluídos entre os realistas22. No entanto, não buscamos provar o direito como um fato. Normas jurídicas não existem, elas valem e devem ser aplicadas23. O realismo desta pesquisa está, enfim, na busca do fundamento do direito nas relações sociais, em especial naquelas necessárias e suficientes para a manutenção do homem em sociedade, isto é, voltadas à produção das condições de sobrevivência e desenvolvimento. Temos consciência que, grosso modo, os idealistas fundamentam o direito em valores, os realistas, em fatos e os positivistas, em normas jurídicas. Também temos consciência que há relação dialética de complementaridade entre essas três dimensões do direito, na expressão de Reale24. De igual forma, compreendemos as discussões sobre a universalidade de certos valores, a evidência de certos fatos sociais e a vontade da autoridade na elaboração da norma. No entanto, a questão, aqui, é

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Isto na medida em que entendemos que quaisquer ideias, quanto ao desenvolvimento social, têm seu substrato na materialidade das condições de sobrevivência. Ao compreender a sociedade e o direito como estruturas em que as relações sociais concretamente ocorrem, qualquer conceito (ideal por definição) só pode ser adequadamente entendido se tiver sido abstraído da concretude dessas relações sociais. Não é, portanto, o conceito que determina a realidade social; é a realidade social que determina a elaboração de conceitos, embora estes também sirvam para a estruturação da realidade social: “‘vida’ não está por aí, esperando para determinar as consciências assim que elas aparecerem. ‘Vida real’ e ‘consciência’ não têm muito significado se isoladas uma da outra: elas são cada uma o resultado da outra em um complexo processo de interações que não pode ser compreendido pelo determinismo” Cf. DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: The Political Philosophy of Justice. Oxford: Hart Publishing, 2000, p. 210. 23 Adotamos essa concepção kelseniana quanto à distinção entre o mundo do dever ser, normativo, e o mundo do ser, descritivo. Não obstante, reconhecemos a relevância teórica de teses realistas que não admitem o dever ser senão inserto no mundo do ser (cf. por todos, ROSS, Alf. Direito e Justiça. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro. 2000, p. 53-63) e teorias argumentativas que tornam esses dois mundos interrelacionados, em que se afirma a existência, e não apenas a validade, dos direitos fundamentais. Cf. ALEXY, Robert. The Existence of Human Rights, in Caderno de Resumos do XXV Congresso Internacional de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito. Frankfurt: Universidade Goethe, 2011, p. 87-89. Por outro lado, sobre o posicionamento que considera inadequado afirmar a existência de normas que não sejam aplicadas na vida real, cf. PECES BARBA, Gregório. Derechos Fundamentales, apud PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución, cit., p. 61: “Toda norma de direito positivo realmente existente necessita dos tribunais de justiça para que seu titular possa acudir a demanda de proteção em caso de desconhecimento por um terceiro. Os direitos fundamentais não são exceção a essa regra. Se um direito fundamental não pode ser alegado, pretendendo-se sua proteção, pode-se dizer que ele não existe.” 24 “Na realidade, porém, fato e valor, fato e fim estão um em relação com outro, em dependência ou implicação recíproca, sem se resolverem um no outro. Nenhuma expressão de beleza é toda a beleza. Uma estátua ou um quadro, por mais belos que sejam não exaurem as infinitas possibilidades do belo. Assim, no mundo jurídico, nenhuma sentença é a Justiça, mas um momento de Justiça. Se o valor e o fato se mantêm distintos, exigindo-se reciprocamente, em condicionalidade recíproca, podemos dizer que há entre eles um nexo ou laço de polaridade e de implicação. Como, por outro lado, cada esforço humano de realização de valores é sempre uma tentativa, nunca uma conclusão, nasce dos dois elementos um processo, que denominamos ‘processo dialético de implicação e polaridade’, ou, mais amplamente, ‘processo dialético de complementaridade’, peculiar à região ôntica que denominamos cultura.” Cf. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 571.

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saber por que certos valores são declarados como universais; por que certos fatos sociais são declarados evidentes e por que a autoridade decide num sentido e não em outro. Lassalle afirmou, em sua famosa conferência de 1862, que há fatores reais e efetivos de poder que constroem a constituição na vida real de modo que este estado de coisas é o que legitima a declaração de valores, a identificação dos fatos sociais e a positivação das normas jurídicas25. Ihering afirmou, em sua palestra de 1872, que não há direito sem luta26, e que tal luta se dá por interesses conflitantes. Na conformação de forças, o resultado da luta acaba determinando o modo como se vive daquele momento em diante. Conceitos são elaborados para descrever esse estado de coisas e também para estabelecer um padrão de comportamento conforme essa nova realidade social. Entendemos que o fundamento dos direitos fundamentais pode ser perquirido neste sentido.

4. Direitos fundamentais indicam, ao mesmo tempo, direito e ciência do direito A expressão direitos fundamentais indica que se trata de direitos que fundamentam27, dão alicerce a todo um ordenamento jurídico e também a uma visão de mundo. Ela indica tanto o objeto de uma ciência (o próprio direito) quanto a ciência pela qual se estuda esse objeto (a teoria dos direitos fundamentais). Essa expressão encerra, ao mesmo tempo, um ponto de partida jurídico (texto normativo, prescritivo, positivado com alto grau de hierarquia em relação aos demais textos do sistema jurídico) e um pressuposto teórico (princípio lógico ou histórico, de caráter descritivo)28. O

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LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2001, p. 42 e seguintes. 26 IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo Direito. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2001, p. 25. 27 Conforme PEREZ LUÑO: “Os direitos fundamentais se apresentam na normativa constitucional como um conjunto de valores objetivos básicos (a doutrina alemã os qualifica, por isso, de Grundwert) e, ao mesmo tempo, como o marco de proteção das situações jurídicas subjetivas. Em sua significação axiológica objetiva, os direitos fundamentais representam o resultado do acordo básico das diferentes forças sociais, realizado a partir das relações de tensão e dos conseguintes esforços de cooperação encaminhados ao atingimento de metas comuns. Por isso, corresponde aos direitos fundamentais um importante legitimador das formas constitucionais do Estado de Direito, já que constituem os pressupostos de consenso sobre o qual se deve edificar qualquer sociedade democrática. Em outros termos, sua função é de sistematizar o conteúdo axiológico objetivo do ordenamento democrático a que a maioria dos cidadãos prestam seu consentimento e condicionam seu dever de obediência ao direito.” Cf. PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los Derechos Fundamentales, cit. p. 20-21. 28 A teoria dos direitos fundamentais é, de fato, uma descrição de certas prerrogativas do indivíduo perante o Estado do qual é membro, que devem ser protegidas por este último. Sobre os direitos fundamentais serem tuteláveis pelo Estado em favor dos indivíduos, ressalte-se o desenvolvimento teórico alemão nesse sentido, em especial a partir da construção clássica de Georg Jellinek a partir da qual se definiu a categoria dos direitos públicos subjetivos, que conferiu à teoria dos direitos fundamentais um rigoroso suporte fundado no plano da estrita positividade. Cf. PEREZ LUÑO, Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución, cit., p. 57-58.

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pressuposto é sempre um ponto de partida fictício, um dado levado em conta para construção da teoria. A teoria só faz sentido se seu pressuposto é levado a sério29. Como a teoria depende de seu pressuposto para fazer sentido, ela não possui qualquer substrato passível de comprová-lo. O pressuposto é simplesmente declarado como fundamento teórico30. Daí porque toda a teoria dos direitos fundamentais é embasada em conceitos como liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana: pois não é possível desenvolver a teoria se não se partir, desde o início, do pressuposto pelo qual todos são livres, iguais e dignos. O ponto de partida jurídico, por sua vez, é normativo. Ele não depende de nenhuma relação lógica necessária com a vida real ou mesmo com o desenvolvimento de uma teoria. Ele é positivado com base na vontade da autoridade estatal31, também sem preocupação de sua real demonstração. Normas são positivadas com o fim último de 29

Nos exatos termos do pós-kantiano Hans Vaihinger, pensador alemão que desenvolveu sua filosofia do como se (As If, Als Ob) para demonstrar a importância da criação de ficções para o desenvolvimento prático do homem no seu processo de conhecimento do mundo. Esse autor demonstra, em sua obra principal, que as aplicações das invenções ficcionais sempre foram imprescindíveis para a criação de modelos de pensamento nos mais variados campos do saber, desde a matemática até o direito. Ele define as ficções como modelos do pensamento que não existem no mundo e que são contraditórias tanto à realidade quanto a si próprias mas que, não obstante, tais artifícios são necessários para resolução de problemas práticos que, sem seu uso, tornam-se problemas sem solução. Ficções são construídas, criadas pelo intelecto humano, e não identificadas a partir da observação da natureza. Ficções são construtos mentais, invenções que substituem a realidade; são pressupostos utilizados teoricamente como a causa de um efeito ou a natureza de um elemento, necessários para o desenvolvimento de uma teoria. Quando o desenvolvimento técnico permite a descoberta do elemento até então desconhecido, a ficção, esta invenção é descartada. Cf. VAIHINGER, Hans. The Philosophy of ‘As if’ 2ª Ed. reimp.. Trad. C.K. Ogden. Londres: Bradford, 1952, p. 17, 87-88 e 159-163. 30 Por exemplos: a teoria dos arquétipos de Platão não demonstra a existência do topos uranos, mas pressupõe sua existência para que seja possível seu desenvolvimento. A teoria kantiana depende do pressuposto ideal dos imperativos categóricos, mas não os demonstra. As teorias contratualistas dependem da ficção de que os homens teriam concordado com certas regras para viverem em sociedade. Aceitam-se certos direitos fundamentais para que eles organizem a compreensão de um sistema normativo. Nenhuma delas parte de fatos comprovados, não obstante todas têm elevada importância teórica para o desenvolvimento do pensamento ocidental. 31 No âmbito da sociologia do Direito, isto se dá, em regra, segundo o monismo jurídico, que confunde direito com direito estatal: as normas jurídicas são positivadas por autoridades de qualquer dos três poderes constituídos. Nesse sentido, normas constituem direitos, já que nesta concepção não há direitos se não os determinados pelo Estado. Por outro lado, ainda no âmbito realista sociológico, segundo o pluralismo jurídico, o direito se apresenta muito mais rico, por força da contribuição normativa dos grupos sociais infra e supraestatais. Neste sentido, o direito estatal seria complementado por normas que não se originaram do Estado. Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Notas sobre a História Jurídico-Social de Pasárgada, in SOUTO, Claudio. FALCÃO, Joaquim. Sociologia e Direito: Textos Básicos para a Disciplina de Sociologia Jurídica. 2ª edição. São Paulo: Pioneira, 1999, p. 87-95 e, também, LÉVYBRUHL, Henri. Sociologia do Direito. 2ª edição. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.24-29. Já no conflito entre direito natural e direito positivo, no âmbito daquele, os direitos naturais (ou direitos humanos) são preexistentes à constituição do Estado e devem ser declarados pelo direito positivo. Ou seja, em termos jusnaturalistas, as autoridades públicas têm o dever de reconhecer as normas do direito natural e de positivar o direito conforme as exigências jusnaturais. No âmbito do direito positivo, porém, direito só tem essa característica após sua constituição por meio de norma posta por autoridade estatal. Cf., por todos, BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. 2ª edição. Trad. Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008, em especial p. 189-192.

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resolver problemas práticos, e normas são válidas, em regra, independentemente de serem consideradas justas ou conforme uma teoria de direitos fundamentais32. Ao se falar, aqui, de princípios, fala-se de uma modalidade de norma jurídica, que não fundamenta qualquer teoria, mas a forma como as demais normas devem ser aplicadas. O pressuposto teórico, no mundo do ser, possui a mesma função exercida pelo ponto de partida jurídico no mundo do dever ser. Tem-se, com os direitos fundamentais, um ponto de partida cuja origem não é discutida. No âmbito da teoria, todas as considerações e desenvolvimentos são feitos presumindo-se a veracidade de seu ponto de partida33. No âmbito do direito, eles são aplicados por serem válidos. A ciência do direito e o direito ou, neste caso, a teoria dos direitos fundamentais e os direitos fundamentais, são respectivamente a ciência e seu objeto de estudo. A teoria assume a existência de certos direitos positivados como base para organizar a descrição de seu objeto, e essa descrição serve para informar os limites e conteúdos dos direitos a serem aplicados. Tais limites e conteúdos, contudo, somente se tornam norma quando aplicados pela autoridade competente, seja ela o legislador, o juiz ou o administrador público. Ainda que uma norma seja aplicada de forma contrária aos termos da teoria, em princípio essa norma será válida e, confirmada sua validade, é a teoria que precisará ser reformulada, pois sua função é descrever seu objeto, e não contestá-lo34. Ao contestar, deixa-se de fazer ciência (dizer o que e como o objeto é) para se fazer política (dizer o que e como o objeto deveria ser)35.

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A validade das normas jurídicas, porém, acaba sofrendo o limite de sua eficácia. Até mesmo Kelsen reconhece que normas que deixam de ser aplicadas por um longo período perdem sua qualidade de norma. Em sentido um tanto diverso, mas ainda sobre esse tema, cabe remissão à chamada fórmula de Radbruch, segundo a qual uma norma intoleravelmente injusta não é direito: isto é, a completa falta de legitimidade de uma norma não lhe retira apenas a eficácia, mas também sua validade. 33 No âmbito da concepção sociológica do direito, este é entendido como um fato. A própria constituição é vista não como norma, mas como uma descrição da realidade social: “...a constituição é primordialmente uma forma de ser e não de dever ser.” Cf. GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional Comparado. Reimpr.. Madri: Alianza, 2000, p. 46. A propósito, nos termos dessa concepção, há uma dupla oposição à compreensão do direito na história e à do direito segundo a racionalidade. O direito e a constituição não são entendidos na decorrência das relações históricas, mas no âmbito das condições atuais da vida em sociedade: “...a constituição não é resultado do passado, senão imanência das situações e estruturas sociais do presente, que para uma grande parte do pensamento do século XIX –e não somente para Marx– se identificam com situações e relações econômicas... a constituição não se sustenta em uma norma transcendente, a sociedade possui sua própria ‘legalidade’, rebelde à pura normatividade e impossível de ser dominada por ela, o ser de hoje, e não o de ontem, possui sua própria estrutura, da qual emerge o dever ser e a ela este deve se adaptar.” Cf. GARCÍA-PELAYO, Manuel, ibid., p. 46. 34 Cabe aqui a máxima atribuída a Kirchmann, procurador do Rei da Prússia, em palestra proferida no ano de 1847: Basta uma penada do legislador para que bibliotecas inteiras se tornem inúteis. 35 A propósito, a questão ideológica da teoria é relevante tema a ser tratado na pesquisa sobre direitos fundamentais, já que os interesses político-econômicos e a visão de mundo que tais interesses

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5. Justificação dos direitos fundamentais Apresentam-se duas justificativas de proteção dos direitos fundamentais. A primeira, de natureza formal, pela qual é a própria positivação que lhes confere validade. Ou seja, em termos claramente kelsenianos, o fundamento do direito seria o próprio direito. Devem-se respeitar as normas porque elas são postas pela autoridade competente (competência que lhe foi atribuída pelo sistema normativo) e porque pertencem ao ordenamento jurídico. Ainda que se diga que o alicerce dos direitos fundamentais seja a dignidade da pessoa humana, esta só é formalmente protegida porque está positivada como norma constitucional36. O que retoma a tautologia apresentada acima: protege-se a dignidade não porque isto é o justo ou o correto, mas porque há norma jurídica que impõe tal proteção. Tem-se a vantagem de não se discutir a justiça da tutela, pois ela deverá ser aplicada (mesmo àqueles que não concordem com tal proteção); por outro lado, tem-se a desvantagem de a aplicação se dar nos estritos limites definidos pela norma jurídica, ainda que não seja da forma mais adequada ao caso concreto. Pela segunda justificativa, de natureza material, os direitos fundamentais são válidos por conta de seu conteúdo de justiça. O caráter principiológico dos direitos fundamentais serve para organizar a estrutura do sistema jurídico como um todo, de modo que as regras somente devem ser compreendidas no sentido determinado por tal caráter. Nesta situação, tais direitos se apresentam como um padrão ético a ser seguido, pelo qual se apontam as razões pelas quais uma conduta deva ser realizada ou reprimida (e em que medida ela deve ocorrer ou ser refreada). Porém, como é impossível conferir valor de verdade (juízo de fato) a conteúdos de justiça37 (juízo de valor), a própria utilização desse padrão (em vez de outro), e a aplicação desse padrão em certa medida (e não em outra) não dependem de lógica ou conhecimento, mas de vontade. Ao fim e ao cabo, esse padrão ético acaba sendo

determinam direcionam, em última instância, o entendimento sobre quais direitos são ou não fundamentais. Nos Estados de matriz liberal, direitos fundamentais seriam basicamente os relacionados à liberdade individual do ser humano, enquanto que, nos Estados de matriz social, vinculados a uma concepção de igualdade material e de solidariedade, dá-se margem a outra gama de direitos fundamentais, de natureza coletiva. 36 Cf. Constituição de 1988, art. 1º, III. No caso brasileiro, a Constituição de 1988 projeta a consolidação de um Estado Democrático de Direito voltado para a materialização de direitos cujo fundamento é a dignidade humana e cujo objetivo é o bem comum. Tais conteúdos, porém, não são definidos no texto normativo, sendo passíveis de preenchimento pelo intérprete. 37 Kelsen foi o primeiro jurista a apresentar crítica imanente à Jurisprudência dos Conceitos, teoria normativa do início da era Moderna, pela qual as normas seriam derivadas de conceitos lógico-racionais: não há relação lógica entre normas (mundo do dever ser) e conceitos (mundo do ser). Normas não têm a ver com razão, mas com vontade. Normas não são efeitos naturais, mas consequências de causas intencionalmente determinadas. Cf. KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. 4ª. edição. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.113-115.

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levado em conta, no campo jurídico, apenas porque foi formalmente positivado como norma jurídica38. Ao se definir um padrão como o correto, o justo, o adequado, todos os demais padrões possíveis passam a ser entendidos, em relação àquele, como incorretos, injustos, nãoconformes. Ilícitos, enfim. Ao se decidir pela fundamentalidade de alguns direitos, outros são deixados de lado. Não há, contudo, nenhuma explicação lógica para imposição de um padrão em vez de outro. Tal imposição somente pode ser justificada por meio de argumentos pautados em valores e em interesses. Resta saber, assim, por que tal padrão foi definido como fundamental e porque tais direitos –e não outros– foram escolhidos pelo legislador e pelo juiz como fundamentais.

6. Como se fundamentam os direitos fundamentais? Comparato afirma que a ética é verdadeiramente o que determina a validade do direito. Baseia seu entendimento na constatação rousseauniana de que nenhum senhor consegue manter-se senhor usando apenas a força, precisando se valer, para manter as condições de dominação, de princípios éticos39. O que esse autor deixa de tratar, contudo, é o fato de que princípios éticos não são universais, tampouco eternos. Comparato até afirma que a raiz do homem é o próprio homem, que ele é a medida de todas as coisas e que tudo no mundo tem valor na medida em que tal valor é atribuído às coisas pelo homem40. O único problema é que não existe nenhum homem ideal ou abstrato. Levando-se essa consideração ao extremo, haverá tantas raízes e medidas quantos homens concretos e singulares existirem. Essas raízes e medidas, na verdade, dependem de uma série de relações históricas e concretas para se formarem e consolidarem41. E na medida em que se formam e se consolidam, se tornam objetivamente apreensíveis.

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A título de exemplo, veja-se a diferença existente na aplicação de direitos de primeira dimensão e de segunda dimensão. Como os primeiros estão positivados e a estrutura estatal está organizada visando à sua proteção, são aplicados; como não há leis específicas para a aplicação dos segundos, os teóricos são muitas vezes reticentes em considerar tais direitos fundamentais (cf. ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 2001, p. 491, e BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 4ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 106). 39 Cf. COMPARATO, Fabio Konder. Fundamento dos Direitos Humanos. In Instituto de Estudos Avançados da USP. 1989, p. 4-6 (texto disponível em meio eletrônico no site http://www.iea.usp.br/textos/, acesso em 8 de agosto de 2011). Cf., ainda, Sarlet, que também aponta a dignidade da pessoa humana como o motivo pelo qual os direitos fundamentais devem ser positivados e integrarem o ordenamento jurídico: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. 40 COMPARATO, Fabio Konder. Fundamento dos Direitos Humanos, ibid.. 41 Cf., a este propósito, CAFFÉ ALVES, Alaôr. Fundamentos do Direito e Meio Ambiente, in PHILIPPI JR., Arlindo; CAFFÉ ALVES, Alaôr (coords.). Curso interdisciplinar de Direito Ambiental. Barueri: Manole, 2005.

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Douzinas42 afirma que a ideia de humanidade era estranha aos gregos antigos, que só conheciam atenienses e espartanos, mas não seres humanos. Aliás, que a ideia de humanidade foi construída nos tempos do império romano justamente para distinguir os romanos (humanos) dos demais. Quando se afirma, como Comparato, que princípios éticos fundamentam o direito, dáse a impressão que tanto o princípio é universal, aplicável indistintamente a toda e qualquer situação, como que o direito decorreria naturalmente da aplicação desse princípio. Ao se afirmar que direitos fundamentais têm seu fundamento na dignidade da pessoa humana, afirma-se que todo e qualquer ser humano, por ter essa dignidade, tem direitos fundamentais. O que não é verdade nem mesmo na época dos césares, quanto mais na atualidade. Não queremos com isso dizer que os serem humanos não devam ter direitos fundamentais. Ao contrário, concordamos que devem. Mas muitos, certamente a grande maioria, não os têm. Da afirmação que um direito é válido não decorre a realidade de sua aplicação. Da afirmação que um princípio ético é válido não decorre a conduta no sentido por ele determinado. Princípios éticos devem ser cumpridos. Normas jurídicas também. Também não queremos discutir se o direito deve decorrer ou não da moral, se deve estar sempre baseado em princípios éticos. O ponto, aqui, está no fato que a dignidade da pessoa humana é um princípio que permite inúmeros desenvolvimentos. Desse princípio é possível extrair uma série de direitos fundamentais que podem ser perfeitamente incompatíveis entre si: a dignidade da pessoa humana é o fundamento do direito à vida, mas também do direito do paciente terminal à ortotanásia43 e do

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DOUZINAS, Costas. Who counts as human? In Jornal The Guardian de 1º de abril de 2009. (texto disponível em meio eletrônico na página de internet http://www.guardian.co.uk/commentisfree /libertycentral/2009/apr/01/deconstructing-human-rights-equality, acesso em 14 de outubro de 2011). 43 Sobre o tema, cf. a Resolução CFM nº 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina, que regulamenta o procedimento: “Art. 1º. É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.” Disponível na página da internet http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Legislacao&id=357. Acesso em 15 de dezembro de 2011.

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direito da grávida de feto anencéfalo à interrupção da gravidez44; fundamenta o direito à liberdade de expressão e de imprensa, mas também o da inviolabilidade da intimidade; enfim, pode o mesmo valor fundamentar tanto o interesse do autor quanto o do réu no âmbito de uma mesma discussão. O padrão de comportamento descrito pela teoria dos direitos fundamentais confere prevalência a direitos que decorrem de uma dignidade humana ideal e abstrata, formal e indistinta a todos os homens, como se todos tivessem os mesmos interesses e as mesmas necessidades, na mesma medida45. No entanto, na feliz expressão de GarciaPelayo, todo e qualquer direito “é uma variável histórica cujo objetivo depende dos fins vitais da classe politicamente ativa em uma época, e em seu conteúdo concreto se encerram os obstáculos encontrados para a implantação de tais objetivos”46. Parece-nos que assiste razão a Ihering47, pois a força e a eficácia de um direito fundamental não residem no seu valor propriamente dito, mas na capacidade de luta de quem o exige. Por outro lado, os direitos fundamentais apresentam-se como forte barreira contramajoritária, evitando-se o aviltamento de minorias pela ação política

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Cf., a este respeito, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal (Relator Ministro Marco Aurélio). Embora não haja propriamente partes nesse processo constitucional, o resultado do julgamento determinará a situação de inúmeros processos judiciais cujo tema se refere à vida humana como o bem jurídico protegido. Cabe a transcrição de ementa do processo constitucional: “ADPF - ADEQUAÇÃO - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ FETO ANENCÉFALO - POLÍTICA JUDICIÁRIA - MACROPROCESSO. Tanto quanto possível, há de ser dada sequência a processo objetivo, chegando-se, de imediato, a pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na Lei Fundamental - como o são os da dignidade da pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do crime de aborto, adequada surge a arguição de descumprimento de preceito fundamental.” Disponível no portal de internet do STF, http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=54&processo=54. Acesso em 15 de dezembro de 2011. 45 Contudo, a dignidade de certos humanos singularmente considerados muitas vezes não serve à fundamentação de direitos: não há normas jurídicas que expressamente garantam medicamentos ou escola a quem deles precise, concretizando respectivamente os direitos à saúde e à educação. 46 GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional Comparado. cit, p. 152. O autor, logo a seguir, complementa a afirmação com os seguintes exemplos: “Deste modo, as primeiras formulações de direitos individuais respondem, em geral, à implantação vital da burguesia e sua expressão e particularização concreta em direitos específicos é função das oposições que tal implantação encontrava na situação política e social da época: foi a intervenção mercantilista que provocou os direitos de propriedade e liberdade econômica; a intolerância religiosa, o que deu lugar à liberdade de consciência e de culto; a censura, o que engendrou a liberdade de pensamento e de sua expressão, os chacets du Roy, o que motivou o conjunto de direitos de liberdade e segurança pessoal. Nas primeiras constituições das Américas do Sul e do Norte era frequente a afirmação do direito à intangibilidade do corpo humano, como reação às penas de mutilação; teve que acontecer o nazismo para que uma constituição europeia, a de Bonn, viesse a afirmar, em seu artigo 2º, o direito de toda pessoa à integridade corporal.” Em seguida, conclui: “Com isto fica claro que os direitos individuais possuem um conteúdo variável, condicionado pela defesa da personalidade humana frente aos poderes e métodos que em cada situação a ameacem.” 47 IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo direito, loc. cit..

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dos grupos que dominam o processo legislativo ou a administração pública.48 Ou seja, ainda que haja capacidade de luta por certos grupos majoritários, minorias podem se valer dos direitos fundamentais e lograr êxito na defesa de sua posição. Reconhecemos a natureza principiológica das normas definidoras de direitos fundamentais e concordamos com a solução teórica, desenvolvida em especial por Dworkin49 e Alexy50, para a ponderação e aplicação de princípios colidentes. Parecenos, contudo, existir um limite intransponível para essa teoria: ao definir os direitos fundamentais como normas principiológicas, ao lhes conferir igual dignidade normativa (e em geral, igual dignidade constitucional), entende-se que um direito qualquer, tornado eficaz nos dias de hoje (em detrimento de outro), pode ter sua sorte mudada em dias futuros, dando-se prevalência a outro direito, anteriormente ineficaz (por conta da prevalência do primeiro. Os princípios são entendidos sempre caso a caso, nunca de modo amplo. Na prática, porém, parece que é o atual estado de forças sociais que impõe a eficácia de um direito fundamental em detrimento da eficácia de outro. Certos valores, que expressam certos interesses, delimitados pela existência de certas necessidades, são impostos em maior ou menor medida pelos fatores reais de poder de Lassalle51. Ou seja, embora a lógica permita que um direito seja eficaz hoje, mas amanhã não, a prática demonstra que os direitos eficazes são sempre os conformados à estrutura social. A relação dialética entre a constituição material (i.e., a conformação social de forças ou os fatores reais e efetivos de poder) e a constituição formal (aqui incluído o catálogo de direitos fundamentais) pode ser identificada na história recente do mundo ocidental.

7. Concepção dialética da história As coisas e as pessoas não são apenas a expressão real de conceitos abstratos sem qualquer relação com outras coisas ou pessoas. Elas só podem ser compreendidas de modo palpável se imersas em suas relações históricas, dentro de seu tempo e de seu

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Sobre a característica contramajoritária dos direitos fundamentais, cf. por todos CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Reimpr.. Trad. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: SAFe, 1999, p. 91 e ss.. Sobre a força normativa desses princípios na forma de vontade de constituição, capaz de refrear imposições de grupos sociais mais fortes, cf. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. cit., p. 19-20. Sobre as normas –ou o aspecto normativo– da constituição também fazer parte da constituição e, como tal, servir para a compreensão da constituição real (isto é, em sua totalidade), cf. HELLER, Hermann, Teoria do Estado. Trad. Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1968. 49 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. 18ª edição. Cambridge: Harvard University Press, 2001. 50 ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Op cit. 51 LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Cit..

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lugar. Só aí elas têm sentido concreto e podem ser entendidas como elas mesmas, e não como abstrações ou conceitos pseudoconcretos52. A história não se faz a partir da compreensão de uma ideia abstrata ou pseudoconcreta, mas da compreensão da necessidade material de preservação do homem. Necessidades humanas são satisfeitas pela distribuição social dos bens produzidos, segundo um modo de produção singular e específico, formado a partir do embate entre forças produtivas e relações sociais de produção, que evoluem na medida em que novas formas de produção são desenvolvidas, criando novas necessidades além daquelas impostas originalmente pelo mundo natural. Não é possível sobreviver sem que haja trabalho, isto é, a relação fundamental entre homem e natureza53. Natureza esta que se torna menos rude na medida em que o homem, ao longo de sua história, desenvolve técnicas de produção que permitem satisfação de necessidades materiais. Esse trabalho não é realizado senão coletivamente, pois o homem não tem condições de, isoladamente, produzir as condições de sua própria sobrevivência54. A interação constante entre a evolução das forças produtivas e as relações de produção permite compreender a superação dialética de um modo de produção por outro, de um momento histórico por outro. Essa interação permite entender os motivos concretos que causaram acontecimentos fundamentais como, por exemplo, a Revolução Francesa. São justamente as interações entre as relações de produção e a evolução das capacidades produtivas que permitem compreender a vida social e as causas pelas quais ocorre a superação dialética de um modo de produção por outro, em especial a superação do feudalismo pelo capitalismo55, mas também de todos os historicamente 52

Sobre pseudoconcreticidade, cf. KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Trad. Célia Neves e Alderico Toríbio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p. 9-20. A realidade (tanto na dimensão social quanto em sua acepção mais ampla) só é compreendida, materialmente, a partir da existência física do homem. Não há, no âmbito desta concepção, ideia sem que alguém previamente exista para pensá-la. Não há pensamento sem um ser pensante, sem alguém que realize, a partir de sua atividade metabólica, a partir das condições materiais de existência de seu corpo e de sua integração a uma comunidade social, a atividade de pensar. A existência concreta de um ser pensante, de carne e osso, é condição pela qual a ideia pode existir. O ser humano, como produto e produtor das relações sociais, é a condição de possibilidade do pensamento. Aliás, não um homem apenas, mas um conjunto de homens, agrupados em sociedade. 53 Cf. MASTRODI, Josué. Crítica Dialético-Realista à ideia de Autopoiese no Direito. Tese de Doutorado defendida perante o Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008, p. 176. 54 Até mesmo autores como Paul-Eugène Charbonneau acabam por concordar com a assertiva: “Em sua luta dialética contra a Natureza, o homem é levado por suas necessidades. Ora, estas lhes impõem a troca, porque sozinho não dispõe de tudo aquilo de que tem necessidade. Ora, a troca cria a economia. Esta preside, pois, à evolução histórica e forma o homem de acordo com as circunstâncias que ele estabelece”. CHARBONNEAU, Paul-Eugène. Marxismo e Socialismo Real. São Paulo: Loyola, 1984, p. 34. 55 Segundo García-Pelayo, “...os modernos direitos individuais têm como fundamento, por uma parte, a destruição das bases que sustentavam o complexo dos direitos medievais, e, por outra, o nascimento de novos supostos de índole ideal e social. Como tese ou como antítese, isto se verificou durante a época

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anteriores. O modo de produção, por causa de um aumento significativo (quantitativo) de sua potencialidade produtiva, em nível superior à capacidade organizacional das relações de produção que a comportavam, sofre uma alteração qualitativa, transformando-se em novo modo de produção, em uma nova estrutura cuja racionalidade interna possa comportar a nova situação social. Sobre os bens produzidos pelo grupo social, estes englobam todos os bens de consumo coletados, plantados, manufaturados, industrializados. Não há, é claro, apenas bens materiais necessários à satisfação de condições biológicas, mas estes são primordiais. Se há bens de caráter ideal, como a necessidade de rituais para com deuses ou a criação de peças teatrais ou de pinturas, esculturas, arquiteturas, eles são condicionados pelo desenvolvimento material e histórico da sociedade, na medida em que estas novas necessidades são culturalmente criadas. Essas novas necessidades, artificialmente criadas (resultado da superação de necessidades naturais), são impostas segundo relações sociais estruturais56 e não por força da natureza: são absolutista. Não podemos nos deter, por não ser nosso objeto, nos detalhes da destruição da ordem concreta que servia de base para o complexo das liberdades medievais. Basta indicar os progressos da técnica, ante todo o aspecto das comunicações, que reduzem e ampliam a compreensão do espaço, dando lugar a horizontes mais amplos e ao desenraizamento dos homens das pequenas comunidades em que desenvolvia sua vida.” GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional Comparado, cit., p. 146. 56 Conforme afirma Caffé Alves, essas relações estruturais são determinantes para a organização social de qualquer sociedade. Em que pese ser extensa, entendemos por bem transcrever suas considerações a este respeito: “As relações intersubjetivas ou interpessoais, relações diretas, são relações importantíssimas, inclusive para o equilíbrio emocional dos homens, para manter as condições psicológicas de saúde mental. Mas é aí que está a questão! Elas não são as relações fundamentais para a manutenção e a reprodução da vida material da sociedade; não são estruturadoras do sistema social e econômico. Não se obtém a colaboração dos homens para a produção da vida material da sociedade mediante o amor, a amizade ou o coleguismo. É preciso que haja mesmo a troca de bens, por exemplo, a troca de salário por força de trabalho. Dentro da generalidade produtiva da sociedade, nenhum empresário consegue a força de trabalho apenas por amizade. Assim, existem relações básicas mais significativas ou relevantes para a garantia da existência e subsistência dos seres humanos em sociedade. Numa dimensão cultural complexa, pode-se notar que as relações intersubjetivas são, em última instância, dependentes das relações estruturais. Porém, que relações são as de caráter estrutural? Em primeiro lugar, são relações sociais, como as relações intersubjetivas, porque são precisamente relações entre os seres humanos. São relações mediadas, quer dizer, são relações intermediadas por coisas. Essas coisas devem ser objetos ou instrumentos produtivos. As relações mais importantes entre os homens com o objetivo de manter e ampliar as condições materiais de sua vida social são as relações mediadas por bens de produção, por meios destinados a produzir bens e serviços, por instrumentos de produção. Os instrumentos de produção são fundamentais para a compreensão das relações estruturais dos seres humanos no plano social. Em face da preocupação com a dimensão espiritual, temos que cuidar, antes de tudo, da dimensão material de nossa vida, do abrigo, da subsistência, da sobrevivência. Estamos todos vestidos e alimentados, nos transportamos até aqui, temos casa, geladeiras e automóveis, e muitas outras coisas e bens indispensáveis à nossa vida individual e comunitária dos tempos modernos. Como conseguimos tudo isso? Caiu do céu? Não! Isso vem dos processos produtivos sociais, ou seja, da utilização diuturna dos meios de produção e das atividades produtivas dos homens em sociedade, da extração de matériasprimas, das terras, das máquinas, das usinas, do dinheiro etc., compreendendo necessariamente procedimentos, ações, trocas e articulações muito complexas e extensas, envolvendo pouco menos que o planeta inteiro. Aí pode-se compreender como os bens de produção são importantíssimos, fundamentais. Os seres humanos não estabelecem relações com o mundo natural, e com eles mesmos,

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impostas por um grupo social em relação a outro. Não obstante, são necessidades igualmente vitais e que precisam ser satisfeitas. Se a sociedade atual é afirmada, pelos pós-modernos, como complexa ou hipercomplexa; se os interesses sociais são pluralistas; se há um emaranhado de ideologias em conflito, isto pode ser compreendido segundo uma concepção dialética da história. Todos esses pluralismos e complexidades podem ser entendidos como expressões decorrentes da visão de mundo de vários grupos sociais, cada qual identificando os interesses mais fundamentais segundo as necessidades singulares desses mesmos grupos. O capitalismo dos séculos XX e XXI, por conta do avanço das forças produtivas, decorrente do avanço tecnológico em praticamente todas as áreas do conhecimento,57 tem causado alterações substanciais nas relações sociais de produção. Estas relações, por sua vez, que organizavam e condicionavam a produção de forma otimizada, visando à racionalidade do modo de produção como um todo, precisam ser modificadas para manter a racionalidade da organização daquele conteúdo (as forças produtivas). Num sentido muito próximo a esta concepção, o sociólogo do direito Lévy- Bruhl afirma que o direito muda porque os grupos sociais se modificam: “Com efeito, se o direito emana do grupo social, não poderia ter mais estabilidade que esse mesmo grupo... Como o direito, sendo a expressão da vontade de um grupo, poderia ser imutável, enquanto o grupo modifica-se constantemente?”58 Devido à evolução das forças produtivas, novos bens, antes inexistentes, passam a servir à satisfação de novas necessidades humanas, criadas ao longo do processo produtivo. Novas formas (novas relações de produção) são desenvolvidas para dar conta, no modo de produção, desse novo conteúdo social. Este conteúdo, embora contido na racionalidade dessa forma, não é estático; ao contrário, encontra-se em constante movimento, sempre visando à lógica social interna da produção dos bens que satisfaçam as necessidades dos seres humanos, haja vista que a produção é a condição de possibilidade da existência da vida humana. Seu desenvolvimento causa novos meios de produção, mais rápidos, mais eficientes, menos custosos. Essas modificações alteram substancialmente a forma por meio das quais os homens se relacionam com a produção59.

senão por meio de bens de produção e que, nos dias que correm, estão extremamente sofisticados em seu potencial tecnológico.” Cf. CAFFÉ ALVES, Alaôr. Fundamentos do Direito e Meio Ambiente. In PHILIPPI JR., Arlindo; CAFFÉ ALVES, Alaôr (coords.). Curso interdisciplinar de Direito Ambiental. Barueri: Manole, 2005, p. 322-323. As ênfases não estão no original. 57 Referimo-nos ao desenvolvimento de meios de produção cada vez mais rápidos e baratos, de meios de comunicação cada vez mais instantâneos, de sistemas de informação cada vez mais precisos e integrados, tudo isso permitindo ganhos econômicos de escala. 58 LÉVY-BRUHL, Henri. Sociologia do Direito, cit., p. 31. 59 À guisa de exemplo: no século XVIII, a possibilidade de produção em escala industrial acarretou a possibilidade de criação de riqueza de uma forma inimaginável antes da invenção da máquina a vapor.

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As forças produtivas dessa nova época não possuíam qualquer relação racional com as relações sociais de produção do feudalismo. Novas relações de produção acabaram por se estabelecer visando à estruturalidade desse novo modo de produção. As relações sociais de produção antigas, formas baseadas fundamentalmente na tradição e nos privilégios estamentais, deram lugar às formas modernas fundamentadas no direito positivo e no individualismo liberal. O avanço das forças produtivas a partir da revolução industrial causou transformações institucionais e culturais que, ao contrário das épocas históricas anteriores, passaram a ocorrer em velocidades altíssimas. Tais transformações causaram profundo impacto no estilo de vida das pessoas e também nas suas regras de convivência60.

8. Sobre o fundamento material dos direitos fundamentais Todos os fenômenos sociais, enquanto fenômenos considerados abstratos, destacados do fluxo histórico, podem ser apresentados como algo separado da realidade social. É o que ocorre, por exemplo, no âmbito das teorias racionalistas, pelas quais os direitos são compreendidos como objetos evidentes, autônomos, universais, a-históricos61:

Fábricas foram construídas; pessoas, antes servos da gleba ou membros de corporações de ofício, foram arregimentadas como operários, tanto para as linhas de produção de tecido quanto para a produção de novas máquinas a vapor. 60 A concentração de pessoas num espaço geográfico diminuto (as modernas cidades) causou a necessidade de normas de convivência mais estritas, e também a necessidade da organização de todo um sistema urbano para satisfação de certas necessidades materiais mínimas, como redes de fornecimento de água e de esgotamento sanitário; sistemas de distribuição de energia elétrica; sistemas viários; entrepostos para comércio de alimentos; serviços mais ostensivos de segurança pública, prontosocorros etc.. Claro que na Antiguidade já havia cidades e já havia, nelas, sistemas de organização das relações urbanas. Mas note-se que a cidade antiga e a cidade moderna têm qualidades absolutamente distintas por conta da quantidade de pessoas e de problemas próprios de cada tempo e lugar. Não havia milhões de pessoas vivendo ao mesmo tempo num espaço de poucos quilômetros quadrados, não havia edifícios verticais, não havia produção em escala industrial. A descrição compreende uma complexidade muito maior em razão de necessidades culturais e do desenvolvimento material de cada tempo e lugar. 61 “Os autores das primeiras tábuas de direitos consideraram que estese era pura emanação da razão, com origem e validez superior a toda experiência.” GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional Comparado, cit., p. 152. Algo que se mantém em muitas áreas do direito, inclusive no âmbito da teoria dos direitos fundamentais, em especial por força das correntes doutrinárias que buscam legitimar direitos em alguma base metafísica. Vários direitos humanos são, até hoje, definidos na forma de conceitos abstratos e declarados como universais e autoevidentes, quando, por outro lado, podem ser mais bem compreendidos dentro do contexto social e histórico em que tais conceitos foram construídos. Exemplos não faltam. No lado liberal, o direito à propriedade privada era evidente para os revolucionários franceses, mas não para os partidários do antigo regime. No lado social, o direito do empregado a condições salubres de trabalho também era evidente para ele, mas não para seus empregadores. Mais modernamente, o direito à preservação do meio ambiente não é tão evidente ao industrial. Em que pese o desenvolvimento, ao longo do século XX e início do século XXI, de inúmeras escolas e doutrinas jurídicas, ainda é forte a influência da Jurisprudência dos Conceitos e da Escola da Exegese, pelas quais conceitos jurídicos devem ser aplicados à realidade, no sentido de a realidade ter de se adequar ao conceito. Conceitos se referem à realidade e a descrevem, mas não são a própria realidade. Conceitos podem ser atualizados e readequados à compreensão do objeto a que se referem. Porém, no âmbito das ciências sociais e da ciência do direito, o conceito, ao não sofrer qualquer atualização,

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No entanto, ao se perceber a historicidade inerente a eles, pelo simples fato de não terem surgido ex nihilo, mas como efeito de alguma causa histórica, é possível colocálos em relação com o fluxo de seu tempo e perceber que todos eles decorrem, direta ou indiretamente, da relação dialética entre forças produtivas e relações sociais de produção62. Em termos mais simples, os direitos são afirmados historicamente. A este respeito, cabe comentar a obra de Comparato63, em que este autor desenvolve a compreensão dos direitos humanos pela análise de documentos históricos pelos quais, em cada tempo e lugar, certos direitos humanos foram reconhecidos, desde a estipulação da Magna Carta, na Inglaterra de 1215, até os tratados internacionais recentes, como o da Convenção sobre a Diversidade Biológica de 1992. Em tal livro, Comparato faz acurada exposição dos direitos declarados e o significado dessas declarações. Não obstante, sua ênfase está na descrição dos direitos e não propriamente nas causas que levaram a tais declarações. Aliás, a causa de tais afirmações, segundo Comparato, seria a “consciência ética coletiva”64. Parece-nos, contudo, que não foi a consciência coletiva, por exemplo, que levou o Rei João sem Terra a se submeter aos nobres ingleses e reconhecer-lhes direitos por meio da Magna Carta, mas sim toda uma conformação de forças baseada em interesses materiais e

conserva como válidas as condições históricas do tempo em que esse mesmo conceito foi estipulado. Como há interesses sociais e necessidades sociais em jogo, convém a certos grupos que os conceitos jurídicos sejam mantidos, da mesma forma que convém a outros grupos a imediata atualização desses mesmos conceitos jurídicos. 62 Essa relação pode ser perfeitamente exemplificada por meio da preocupação com o problema ambiental, que surgiu da constatação da degradação ecológica decorrente da produção industrial desenfreada em busca da privatização do lucro e da socialização dos efluentes; ou pela análise do movimento dos direitos humanos, que serve às forças produtivas do capitalismo na medida em que transforma as relações servis e escravagistas em relações de emprego, permitindo aos antigos servos o ingresso no exército industrial de reserva e no mercado consumidor, ambos (exército de reserva e mercado) fundamentais para a produção, distribuição, reinvestimento e acumulação do capital. Atualmente, o movimento dos direitos humanos serve às forças produtivas de países como EUA e membros da União Europeia, para exortar os países em desenvolvimento a assegurarem direitos trabalhistas aos cidadãos destes últimos e, com isto, aumentar seu custo de produção e retirar a competitividade de seus produtos no mercado mundial. A preocupação com os direitos do consumidor segue a mesma lógica deste último argumento, haja vista que o aumento da qualidade dos produtos provoca elevação de custos de produção. Devido à relativa falta de desenvolvimento de tecnologias que permitam a produção de forma não-poluente, em alta escala e a baixo custo de implementação, os países centrais ainda não exortam a concretização de um direito fundamental ao meio ambiente. No entanto, quando as forças produtivas desses países atingirem essa capacidade de produzir sem poluir, certamente o direito ambiental será apresentado como a maior bandeira cívica da humanidade. Não há dúvida da necessidade de implementação de tecnologias que preservem o meio ambiente; a ênfase aqui reside na consideração que os EUA, se pudessem manter sua produção elevada sem poluir, não só teriam assinado o Protocolo de Kyoto como exigido a mesma atitude de todos os demais países do globo. Não por uma súbita tomada de consciência ecológica, mas por uma evidente estratégia de dominação econômica. Cf., sobre este tema, CHANG, Ha-Joon. Chutando a Escada: A Estratégia do Desenvolvimento em Perspectiva Histórica. Trad. Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo: UNESP, 2004. 63 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. 64 Ibid., p. 47.

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necessidades concretas dos nobres. Após a luta pelo poder (seja na vertente política, seja na militar, seja na econômica), o resultado acaba se cristalizando na forma de descrições conceituais, que passam a dar corpo à nova organização social. As revoluções liberais francesa (política) e inglesa (econômica), que inauguram a Era Moderna, alteraram profundamente as relações de poder no âmbito da sociedade. O termo revolução é empregado justamente por conta da reviravolta social ocorrida, pela qual o grupo antes hegemônico é deposto pelo novo grupo dominante. Com a deposição, os valores que fundamentam os interesses desse novo grupo dominante passam a ser apresentados como os “valores verdadeiros” da sociedade. A declaração de direitos do homem e do cidadão de 1789, base de praticamente todas as declarações de direitos, reflete claramente os valores pelos quais os interesses do grupo social predominante seriam mantidos, tomando-se por exemplos: o direito de ir e vir (sem necessidade de pagar pedágio aos senhores feudais), o direito de fazer apenas o que estiver previsto em lei (evitando-se o arbítrio, por exemplo, de tributações confiscatórias), e o direito de propriedade (todos passariam a poder adquirir bens e a mantê-los). Ainda que, em termos abstratos, essas declarações favoreçam universalmente a todos os homens e cidadãos, elas são singularmente benéficas aos reais detentores de renda e patrimônio.

9. Ocultação das relações sociais estruturais As relações jurídicas refletem e determinam situações sociais. Elas decorrem da prática da vida social e cristalizam a conduta esperada. Pelas normas jurídicas se estabelecem os parâmetros pelos quais se espera que a sociedade se organize e projete sua vida futura. Como os grupos sociais não são imutáveis, sempre há novos interesses e necessidades que modificam os projetos sociais. Em certas circunstâncias, o novo projeto social é entendido como ilícito; em outras, o novo projeto é de tal ordem importante para a nova realidade que acaba por determinar a alteração do quadro normativo; isto é, embora fosse ilegal, altera-se a lei para permitir sua plena existência. No primeiro caso, o direito era mais forte que os novos interesses sociais e estes sucumbiram; no segundo caso, o direito foi alterado para que se adequasse a uma nova realidade muito mais forte que aquela cristalizada pela normatização anterior. É impossível prever o resultado desse embate, pois tal resultado não depende de lógica, mas da necessidade objetiva, concretamente verificada em situações singulares, de grupos sociais fazerem valer seus interesses no espaço social, dentro da práxis histórica65. Não obstante, é perfeitamente possível compreender essa situação a 65

Nas palavras de Perez-Luño, “Será a praxis concreta dos homens, que são quem ao fim sofrem ou se beneficiam dos direitos fundamentais, e quem com seus comportamentos contribuem para a formação, em cada situação histórica, da pauta orientadora de sua significação” PEREZ-LUÑO, Antonio Enrique.

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partir da relação dialética entre a evolução das forças produtivas (desenvolvimento social, conteúdo) e das relações sociais de produção (estrutura normativa da sociedade, forma). É justamente esse processo que faz com que a sociedade se transforme ao longo da história. Mas não se deve considerar que apenas o conteúdo material altere a forma ou vice-versa. A relação é recíproca entre os polos dialéticos, uma alteração causando a possibilidade de nova alteração. A busca pela satisfação desses interesses materiais acaba por direcionar as relações sociais numa série de conflitos, haja vista a existência de vários grupos sociais com interesses divergentes. Tais interesses divergem por conta da posição desses grupos na estrutura social e na divisão social do trabalho. Embora os homens sejam, essencial e logicamente, todos iguais, esse pressuposto não reflete a prática das relações sociais, em que interesses divergentes opõem os homens em grupos muitas vezes com interesses opostos. Nos conhecidos termos de Lassalle, há a grande burguesia e os banqueiros de um lado66 e, de outro, trabalhadores. A realidade social é formada pela necessidade de satisfação de necessidades, e esta satisfação depende de recursos materiais escassos. A produção de recursos não é capaz de satisfazer as necessidades de todos os homens ao mesmo tempo, o que gera disputa pela obtenção desses recursos. Isto significa que há interesses pessoais e sociais em jogo, os quais impedem a possibilidade de se construir qualquer verdade a partir de consensos67. Por conta desses conflitos materiais que comprometem consensos, está claro que relações sociais não são relações de igualdade entre os homens, mas de dominação. Novamente segundo Lassalle, o rei e seus canhões têm muito mais poder de negociação do que o povo, muito embora, em certas situações específicas, o povo possa se organizar e vencer os canhões68. Em termos econômicos, os banqueiros e os industriais não estão em posição social de horizontalidade em relação ao trabalhador, mas em polos altamente verticalizados69.

Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución, cit., p. 59. Compreendemos o termo práxis na sua concepção dialética, como a expressão da atividade humana no âmbito da realidade social. 66 LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Cit., p. 44-47. 67 Este é o ponto que nos faz discordar das teorias sociais e jurídicas de caráter comunicativo. Até concordamos com o pressuposto pelo qual a verdade deve ser construída de forma racional e visando à busca do consenso, no entanto, essa busca fica sobremodo prejudicada por haver interesses sobre o mesmo recurso material em conflito. Quando há conflito, há muito menos interesse na construção da verdade que na obtenção do objeto em disputa. 68 LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Cit., p. 47-48. 69 Seja porque o empregador pode escolher outro candidato ao emprego, ou porque o empregado está com a família faminta ou possui dívidas que precisam ser saldadas. De igual modo, o fornecedor de produtos industriais não se encontra em relação horizontal com seus consumidores. Em termos lógicos, é perfeitamente possível a existência de um contrato de fornecimento no qual o fornecedor não se responsabilize por danos que seu produto possa causar ao consumidor.

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Porém, as chamadas relações jurídicas são estabelecidas a partir do pressuposto de igualdade entre os homens. Nos dois polos da relação jurídica há sujeitos de direito livres e iguais, com capacidade de realizarem os negócios que bem entenderem. Em termos lógicos, é perfeitamente possível, por exemplo, que o trabalhador aceite, por contrato, se submeter a trabalho insalubre de mais de 10 horas jornada, sem descanso semanal. Essa concepção de caráter racionalista oculta a situação prática, constatável real e historicamente, em que o empregado não possuía condições materiais de negociar melhores cláusulas de seu contrato de trabalho70. Enfim, há várias situações da vida real que incidem sobre a decisão de se submeter a um contrato em condições inadequadas. É inegável a contribuição da teoria dos direitos fundamentais que, ao longo das últimas décadas do século XIX e de todo o século XX, desenvolveu a compreensão de que os empregados devem ter sua condição de hipossuficiência tutelada, que podem ser representados por sindicatos visando à negociação de melhores condições de trabalho, que podem ter direitos garantidos constitucionalmente. Tal consciência, porém, não se estabeleceu sem luta por tais direitos que, até o início do século XX, sequer eram entendidos como direitos fundamentais71. Em termos realistas, são justamente essas lutas que determinam a consolidação da chamada consciência social ou dos valores básicos de uma sociedade. Por tais lutas, garante-se desde a manutenção do poder econômico, político e ideológico do grupo social até então dominante até a revolução dos valores sociais por conta da mudança do poder pois, ao haver alternância de poder na sociedade pela elevação de novo grupo social dominante, os valores deste passam a ser os condutores da estrutura social e da conformação da nova consciência social72. Veja-se o caso dos direitos sociais dos trabalhadores. Estes direitos só podem ser compreendidos dentro do contexto histórico do Ocidente dos séculos XIX e XX, numa 70

Ou, no exemplo do consumidor, a situação em que este precisa do produto para satisfazer uma necessidade emergencial que o impede de negociar com o fornecedor alguma divisão razoável de responsabilidades em caso de danos. 71 Não obstante, o fato de o empregado ainda ser juridicamente reconhecido como hipossuficiente e assim protegido pelo direito denota que a relação social entre patrão e empregado ainda é de dominação: enquanto no mundo do ser a relação social é de dominação; no mundo do direito, a relação jurídica deve ser de igualdade. 72 As normas de conduta só fazem real sentido se compreendidas no âmbito do padrão social vigente, construído em sua maior parte pelos interesses do grupo social predominante e que, em certo momento, teve positivadas, como leis gerais e abstratas, certas diretrizes universais cuja finalidade é assegurar seus interesses particulares. Eis a explicação de porque somente os direitos abstratos à liberdade são adequadamente protegidos pelo sistema jurídico positivo do Estado de Direito: ele não foi originalmente criado para promover direitos sociais, mas apenas para proteger direitos individuais. Sobre este tema, cf. MASTRODI, Josué. Direitos Sociais Fundamentais, cit., em especial p. 8-26, em que se distinguem duas matrizes de pensamento e de compreensão da realidade, a liberal e a social, cada uma delas estruturando o direito conforme sua visão de mundo, estruturas incompatíveis uma com a outra, cuja incompatibilidade em grande medida impede, nos sistemas jurídicos estruturados segundo uma matriz, a tutela dos direitos compreendidos na outra.

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época em que os proprietários das indústrias contratavam empregados para realizar o trabalho produtivo, e determinavam praticamente todas as condições do contrato de trabalho, já que os trabalhadores não possuíam qualquer poder de negociação em relação aos donos do capital. Como resultado, os empregados se submetiam a condições de emprego extremamente árduas. No entanto, em certas circunstâncias historicamente identificadas, a classe trabalhadora obteve ganhos tanto de natureza civil quanto econômica, por meio do exercício de pressão política, seja por meio de realização de greves, seja pela votação de leis que representavam seus interesses singulares73. Enfim, ainda que o direito se apresente como o resultado de um grande consenso social, pelo qual todos os indivíduos concordaram com as linhas gerais de convivência, essa paz normativa não reflete a realidade dessas relações sociais. Por meio do direito simplesmente não se identificam os intermináveis processos históricos de luta por melhores condições de vida no âmbito da sociedade. Essas lutas não acontecem entre indivíduos isoladamente uns contra os outros, tampouco ocorrem na forma de duelos ou conflitos armados. Trata-se de conflitos entre grupos sociais identificados pela posição social que ocupam na sociedade como um todo74. Pelo direito, resolvem-se os conflitos individuais como se estes não fossem consequência da forma como a sociedade está estruturada. Os conflitos sociais permanecem ocultos. Eles são os grandes responsáveis pelos conflitos individuais, mas o direito continua a resolver estes sem muita preocupação com alguma solução para aqueles. 73

São as condições materiais da realidade social que acabam por determinar avanços ou recuos em certos direitos, positivados pela ordem jurídica. Direitos conquistados pela classe trabalhadora em certa época, como férias, licença-maternidade e décimo terceiro salário, têm sido identificados por grupos políticos como luxo ou privilégio, um empeço ao desenvolvimento econômico do país. Direitos recentemente declarados, como o de participação nos lucros e resultados das empresas por trabalhadores, demoram a ser regulamentados ou postos em prática, e ainda assim de modo não muito adequado aos interesses dos trabalhadores, já que sua implementação está sempre condicionada ao poder de direção do proprietário da empresa. Não faltam propostas de flexibilização dos direitos trabalhistas sob o argumento de que, com menos direitos, os empregos ficariam mais garantidos, porque tal hipótese, se posta em prática, desoneraria o custo da produção. 74 Lassalle identificou, na Prússia de seu tempo, 5 posições ou status, cada qual com seus próprios membros que compartilham não só a visão de mundo, mas o modo como entendem que a sociedade deva funcionar (identidade de valores, de interesses e das formas de satisfação das necessidades sociais). Na ordem apresentada em seu texto, os 5 fragmentos da constituição material prussiana são: o rei; os aristocratas; a grande burguesia; os banqueiros e, por último, a pequena burguesia e a classe trabalhadora. Loc. cit.. Num sentido muito próximo, Caffé Alves explica que a posição social das pessoas na estrutura social condiciona seu acesso aos bens necessários à satisfação de suas necessidades materiais. Por conta dessa posição social, as pessoas acabam por entender o mundo de um modo ou de outro. Em geral, as pessoas que pertencem às classes hegemônicas têm alta probabilidade de considerar a realidade social como uma estrutura boa, o que pode não ocorrer em relação às pessoas das classes subalternadas. Dessa divergência podem surgir conflitos entre as pessoas, “não quanto simplesmente às suas ações, mas também quanto à concepção que têm do próprio mundo.” Caffé Alves, Alaôr. As Raízes Sociais da Filosofia do Direito: Uma Visão Crítica. In CAFFÉ ALVES, Alaôr [et al]. O que é a Filosofia do Direito? Barueri: Manole, 2004, p. 84.

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10. Da necessidade de consenso social Do ponto de vista dos membros do grupo social hegemônico, que têm seus interesses satisfeitos em boa medida na sociedade em que vive, o sistema social é justo. Do ponto de vista dos grupos subalternados, porém, perversa é a estrutura social (em especial nas esferas econômica, política e jurídica) que impede a distribuição de bens. Não se trata, de forma alguma, de um conflito do bem contra o mal, mas ainda assim é um conflito, evidenciado pela existência de partes em polos materiais opostos, visando a satisfazer cada qual seus interesses e necessidades. Ainda que as partes em conflito tenham o mesmo interesse e a mesma necessidade, há luta porque o bem da vida, objeto da disputa, é suficiente para a satisfação de apenas um dos grupos envolvidos. Tais necessidades e interesses são a base material dos projetos de vida social75. Cada grupo social tem sua visão de mundo, própria de seu projeto de vida. Os membros de um grupo social compartilham esse modo de compreender a realidade, de produzir as condições de sua sobrevivência; compartilham uma mesma tábua de valores, concordam com a licitude de certos atos e com a ilicitude de outros. A visão de mundo é organizada na forma de princípios e de valores, que também estabelece normas para determinar as condutas devidas. Porém, sem um mínimo de consenso entre as distintas posições dos grupos que compõem a sociedade, esta corre o risco de desagregação. A coesão social é importante, senão imprescindível, para a realização das condições necessárias à produção e, com isto, satisfazer as necessidades, em maior ou menor medida, de todos os grupos sociais76. A ideologia tem papel fundamental na organização de um modo de produção, como o capitalista, em que há desigualdade na apropriação e distribuição dos excedentes de produção. A trama ideológica retroalimenta a compreensão da estrutura social, dando relevância a certos valores e princípios (extraídos das relações sociais) como se esses valores e princípios fossem, eles próprios, os determinantes da estrutura social77.

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Nos aspectos ontológico e epistemológico, esse projeto reflete uma visão de mundo, um modo pelo qual se entende e se descreve a realidade social. De igual modo, nos aspectos axiológico e deontológico, cada grupo social confere certo valor positivo às condutas que permitem a realização de seus projetos, e certo valor negativo às condutas que os impedem. As condutas passam a ser legitimadas justamente por sua conformação ao projeto social. Certas condutas devem ser realizadas porque adequadas tanto ao valor positivo quanto à racionalidade do projeto desenvolvido no âmbito de um grupo social. Tais condutas passam a ser prescritas como as devidas, justamente para permitir o desenvolvimento social nos termos do projeto idealizado, já que a realização do projeto permite a satisfação dos interesses e necessidades do grupo social em questão. 76 CAFFÉ ALVES, Alaôr. Estado e Ideologia: Aparência e Realidade. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.169. 77 Não é outra a posição de CAFFÉ ALVES, Alaôr. Estado e Ideologia: Aparência e Realidade, cit. p. 173. De todo modo, não existe imposição pura e simples de uma visão de mundo sobre todas as outras. Como a relação entre elas ocorre de forma dialética, o resultado do conflito acaba por levar em conta a visão do grupo dominante em maior medida do que o do grupo dominado. Este se submete, mas certos valores, certos interesses essenciais deste último são mantidos ao final. Em termos analíticos e

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A cristalização de uma dada compreensão da realidade social decorre da prática reiterada de certas formas de organização social. Em outras palavras, certa visão de mundo acaba se naturalizando na medida em que as pessoas organizam sua produção (sua práxis produtiva, sua vida social) sempre de uma determinada e mesma maneira. Aquelas práticas se tornam cada vez mais reais e concretas para o grupo ou classe social, base a partir da qual seus membros traçam e desenvolvem seu modo de compreender a realidade.78 Assim, em termos materiais e históricos, um grupo social acaba, por conta da conformação das forças sociais, impondo sua visão de mundo sobre a visão de mundo dos demais grupos, de um jeito tal que sua forma particular de compreender a realidade acaba sendo universalizada como o modo de a sociedade como um todo compreender essa mesma realidade.79 Deve ficar claro que não se trata apenas da mera aceitação de argumentos de lado a lado. Não se trata de uma simples discussão, de um afável debate político. As pessoas, profundamente divididas em grupos sociais, têm interesses antagônicos, já que estão em disputa pelo produto social, ou seja, em luta pelos meios materiais de garantia de sobrevivência orgânica de seus membros. Isto quer dizer que o embate não é só teórico (embora também seja teórico), e de forma alguma apenas metafórico, mas predominantemente prático, dimensão que não se resume à simples constatação ou percepção empírica dos fatos sociais, mas ao substrato material e concreto em que nascemos e nos constituímos, vivemos, nos alimentamos, nos organizamos e tomamos consciência de nossa realidade etc.. Nesse sentido, deve-se perceber a presença indelével de relações de poder no âmbito da sociedade, tanto aquelas em que certas posições sociais são impostas por coerção quanto aquelas em que certas posições sociais são dadas como se a pessoa ou grupo dominado considerasse tratar de uma situação natural de igualdade80. A universalização de uma visão de mundo e o estabelecimento de certos valores abstratos são fatores de consenso desenvolvidos em termos ideológicos. Ao se apelar para símbolos e conceitos abstratos com os quais os dominados podem concordar,

racionalistas, é possível entender essa relação na forma de uma ponderação de interesses. No entanto, a questão não se resolve no âmbito da racionalidade, mas da prática das relações sociais. 78 É justamente este o entendimento de Caffé Alves, que afirma, ainda, que as relações sociais que concretamente se realizam em condição de desigualdade, em qualquer período histórico, dependem, para sua naturalização ou neutralização, de um processo de abstração e formalização, necessário para ocultar sua desigualdade. Ibid., p. 180. 79 A imposição de uma visão de mundo universal é importante como referência unificadora, que impede a desagregação do tecido social, pois sem a ideologia como componente interno das relações de produção, estas não teriam condições materiais mínimas de ocorrer. 80 Cf., a respeito, CAFFÉ ALVES, Alaôr, Estado e Ideologia, cit., p. 171-172.

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consigna-se legitimidade às práticas sociais81. O Estado moderno, embora detenha o monopólio da violência física, funda-se menos no exercício da coerção e mais em ideais gerais e abstratos de organização da sociedade segundo certos interesses afirmados como comuns a todas as pessoas, independentemente de sua classe ou de outras particularidades. Os elementos mais fortes de consenso desenvolvidos no âmbito da dogmática constitucional são, hoje, os direitos fundamentais.

11. Direitos fundamentais como fator de consenso Ressalte-se que os direitos fundamentais não são ideológicos no sentido de falsa consciência ou de falseamento da realidade. Eles refletem uma realidade social desenvolvida a partir de um processo histórico de lutas sociais: a racionalização dos interesses e necessidades da burguesia revolucionária consolidaram os direitos individuais de modo a estruturar o Estado moderno; a racionalização dos interesses e necessidades da classe trabalhadora desafiou o entendimento liberal dos direitos individuais e os relativizou diante da evidente desigualdade social. Necessidades e interesses difusos decorrentes do desenvolvimento de uma sociedade industrial e de massa têm imposto modificações na compreensão dos direitos e causado o desenvolvimento de novos direitos fundamentais. Entendemos que não é adequado compreender os direitos fundamentais apenas em seu aspecto jurídico-normativo (forma de direito positivo) ou em sua dimensão valorativa (conteúdo de justiça) pois, se negarmos a processualidade histórica que os desenvolveu e consolidou, se deixarmos de lado as relações sociais de dominação sobre as quais eles foram gerados, ficarão ocultos os fatores reais de poder da sociedade, i.e., os motivos materiais que, em última instância, condicionam a conformação histórica das forças sociais e a organização de sociedade nos termos dessa mesma conformação. Utiliza-se a acepção desses fatores reais e efetivos de poder nos termos de Lassalle82, que os considera como o substrato material de qualquer Constituição jurídica. Este 81

“Na verdade, a legitimidade é dada pela capacidade, no exercício do poder político, de mobilizar fatores consensuais de tal sorte a fazer acreditar, por parte daqueles a quem são endereçados os atos de comando, que os detentores do poder têm efetivo direito a exercê-lo. Ao se engendrar nos dominados a crença de que os dominadores têm direito a dominar, cria-se também a ideia correlata do dever de obediência, um dever quase moral, não-sentido como uma obrigação heterogênea. A força, em princípio, é quase nula, porque os submetidos ao poder não se sentem forçados a obedecer, visto estarem de acordo em seguir o dirigente; parece que o condutor e os conduzidos querem o mesmo objetivo, havendo, portanto, interesses compartilhados.” Ibid., p. 189. 82 “Se, pois, a Constituição é a lei fundamental de um país, será –e aqui já começamos, senhores, a entrever um pouco de luz– alguma coisa que logo temos de definir ou desvendar ou, como provisoriamente vimos, uma força ativa que faz, por um império de necessidade, com que todas as demais leis e instituições jurídicas vigentes no país sejam o que realmente são, de tal modo que, a partir desse instante, não possam se promulgar, nesse pais, ainda que se quisesse, outras quaisquer. Assim sendo, senhores, é que existe em um país –ao perguntar isso, já começa a se lançar luz sobre o que perseguimos– algo, alguma força ativa e informadora, que influencia de tal modo todas as leis

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autor, ao utilizar tal expressão, tinha em mente uma complexidade social e de valores muito mais abrangente do que a simples possibilidade de coerção física. No entanto, era justamente a possibilidade (capacidade efetiva) de mobilização de cada um dos grupos sociais de sua época (o rei com seus exércitos, os banqueiros com seu dinheiro; os burgueses com suas indústrias; o povo com a força de sua massa etc.) de lutar por seus interesses que, ao final, resulta numa conformação de forças que direciona os sentidos possíveis de compreensão da realidade social e suas formas de relacionamento. Essa posição é acertada: a Constituição (e o ordenamento jurídico como um todo) não passa de uma folha de papel se não representar a conformação histórica dos interesses dos grupos e classes sociais83. Em contraposição a Lassalle e seus fatores reais de poder, Hesse, na Alemanha de 1959, defendeu a força normativa da Constituição num sentido em que esta não devesse ser compreendida simplesmente como uma folha de papel, mas como a consolidação de forças e a compreensão de uma realidade normativa pela qual se possa refrear o poder. Hesse apresenta sua obra claramente preocupado em dissociar a Constituição de uma mera justificadora das relações de poder dominantes, pois esta deveria, segundo ele, estar a serviço de uma ordem estatal justa84. Numa posição baseada em um ideal de justiça, Hesse busca ao mesmo tempo uma norma com conteúdo de realidade e uma realidade cujas relações de poder se submetam às promulgadas nesse país que as obrigue a ser necessariamente, até certo ponto, o que são e como são, sem poderem ser de outro modo?” Sim, existem sem dúvida, e esta incógnita que estamos investigando apóia-se, simplesmente, nos fatores reais do poder que regem uma determinada sociedade. Os fatores reais do poder que regulam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em apreço, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são. Vou esclarecer isto com um exemplo. Naturalmente, este exemplo, como vou expô-lo, não pode realmente acontecer. Porém, embora este exemplo possa dar-se de outra forma, não interessa sabermos se o fato pode ou não acontecer, mas sim o que o exemplo nos possa ensinar se este chegasse a ser realidade. Não ignoram os meus ouvintes que na Prússia somente têm força de lei os textos publicados na Coleção legislativa. Esta Coleção imprime-se numa tipografia concessionária instalada em Berlim. Os originais das leis guardam-se nos arquivos do Estado, e em outros arquivos, bibliotecas e depósitos, guardam-se as coleções legislativas impressas. Vamos supor, por um momento, que um grande incêndio irrompeu e que nele queimaram-se todos os arquivos do Estado, todas as bibliotecas públicas, que o sinistro destruísse também a tipografia concessionária onde se imprimia a Coleção legislativa e que ainda, por uma triste coincidência –estamos no terreno das suposições– igual desastre se desse em todas as cidades do país, desaparecendo inclusive todas as bibliotecas particulares onde existissem coleções, de tal maneira que em toda a Prússia não fosse possível achar um único exemplar das leis do país. Suponhamos isto. Suponhamos mais que o país, por causa deste sinistro, ficasse sem nenhuma das leis que o governavam e que por força das circunstâncias fosse necessário decretar novas leis. Julgai que neste caso o legislador, completamente livre, poderia fazer leis a capricho de acordo com o seu modo de pensar?” LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Cit., p. 41. 83 “Os problemas constitucionais não são, primordialmente, problemas de direito, mas do poder, a verdadeira Constituição de um país somente reside nos fatores reais e efetivos do poder que regem nesse país; e as Constituições escritas não têm valor nem são duradouras mais do que quando dão expressão fiel aos fatores do poder vigentes na realidade social: daí os critérios fundamentais que vocês devem considerar” Op. aut. cit., p. 71. 84 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. cit., p. 11.

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normas jurídicas85. Ele atinge seu objetivo ao pontuar, acertadamente, que as condições históricas de realização da constituição é algo que não se confunde com a pretensão de eficácia da constituição86. Àquelas condições históricas denominou constituição real e a estas, constituição jurídica. Em seguida, pontua sobre uma relação de coordenação entre ambas, numa relação de condicionamento mútuo87. Em termos kelsenianos, haveria o mundo do ser (as condições reais de poder, a constituição real); e o mundo do dever-ser (a constituição jurídica). Não estariam, porém, segundo Hesse, separados, mas em interação, em uma relação de coordenação: a constituição real conferindo força vital à constituição jurídica88; e esta conferindo àquela organização segundo uma certa racionalidade e certa vontade de concretizar essa ordem. A esta força deu o nome de vontade de constituição89. Essa força normativa se estabelece ainda mais na estrutura estatal quando o conteúdo constitucional é formado por alguns princípios fundamentais que permitam consenso social e ponderação de interesses, visando a acomodar interesses sociais contrários. Mais que conteúdos normativos, essa vontade de constituição se estabelece na práxis constitucional, pois somente na prática é possível interpretar e desenvolver soluções para conflitos havidos na realidade social90. A vontade de constituição de Hesse se apresenta como a elaboração de um fator de consenso que permite, dentro da estrutura jurídica, a acomodação de interesses sociais divergentes. Ainda que haja fatores reais e efetivos de poder capazes de causar alteração institucional, Hesse sugere o respeito à constituição jurídica, a partir da qual tais conflitos devem ser resolvidos. O autor não retira a importância da realidade material para a identificação dos sentidos normativos, mas considera que é no sentido da constituição jurídica que os fatores de poder devem ser organizados, ponderandoos de modo a manter íntegra a organização social tal como ela se encontra. No âmbito da sociedade capitalista, é possível identificar a interação entre o poder de dominação, de caráter econômico, em termos similares aos fatores reais de poder de Lassalle, e o poder de direção, de caráter nitidamente político91, ao qual relacionamos a

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Op. aut. cit., p. 14. Ibid., p. 15. 87 ibid., loc. cit.. 88 Ibid., p. 16-18. 89 Ibid., p. 19. A vontade de constituição de Hesse é definida por três vertentes: na compreensão de que é necessário uma ordem inquebrantável para proteger o Estado contra o arbítrio; na compreensão de que a ordem não pode ser legitimada apenas pelos fatos, havendo necessidade de constante processo de legitimação, e na consciência de que tal ordem somente pode acontecer se houver vontade das pessoas nesse sentido. Ibid., p. 19-20. 90 Ibid., p. 21-22. 91 Sobre a relação entre poder de dominação e poder de direção, este se apresenta como a forma legítima que determina os interesses daquele e, ao mesmo tempo, que os oculta sob o manto dessa aparente legitimidade: “O poder de dominação realizado e expresso sob a forma predominante de poder de direção da sociedade é o que, no discurso de Gramsci, se denomina hegemonia; assim, o poder 86

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vontade de constituição de Hesse. Por conta desse destaque, a proteção jurídica aos direitos fundamentais é dada como algo essencial para a organização social porque refletiria um princípio político de interesse comum, baseado na liberdade e dignidade dos homens92. Inegável que os direitos fundamentais são necessários à proteção do ser humano. Por isso mesmo eles são um importantíssimo fator de consenso social. No entanto, em que pese ser facilmente aceito que os direitos fundamentais devem ser protegidos, a definição concreta de quais direitos serão protegidos, dos termos em que serão tutelados e quais as pessoas que serão realmente beneficiadas em cada situação específica está muito mais relacionada aos fatores reais de poder, à constituição material e ao poder de dominação econômico e social que à vontade de constituição93. Em outras palavras: ainda que os direitos fundamentais e a teoria dos direitos fundamentais exerçam um papel importantíssimo na emancipação do ser humano; na elevação das condições de vida do homem por meio da organização de uma estrutura estatal de proteção da dignidade; ainda que os direitos fundamentais possuam força normativa e pretensão de eficácia; ainda que eles sejam determinantes da atuação do Poder Legislativo e da Administração Pública; de eles serem tuteláveis pelo Poder Judiciário etc., resta o fato de essa estrutura de organização do Estado e de proteção dos indivíduos não servir à maioria dos seres humanos. Não negamos que, em inúmeras situações, indivíduos têm se utilizado do Estado para, em casos concretos, garantir a eficácia de direitos fundamentais. Tampouco negamos a importância da hermenêutica constitucional no sentido de identificar a extensão em que os direitos fundamentais devem ser protegidos. No entanto, é preciso deixar claro que os fatores de poder da constituição real também são fragmentos da constituição jurídica, de modo que os direitos fundamentais contidos no texto constitucional também servem aos indivíduos pertencentes aos grupos hegemônicos, e estes também compõem a vontade política de preservação de direitos fundamentais.

12. Fundamento dos direitos fundamentais No âmbito das teorias idealistas, os direitos fundamentais são um topos, um lugar comum geralmente aceito para organização da vida social. A partir deles, é possível

hegemônico é exatamente o poder dominador capaz de manifestar-se e legitimar-se como poder consensual ou de direção”.CAFFÉ ALVES, Alaôr. Estado e Ideologia, cit. p. 192. 92 Os direitos fundamentais também são importantes para a integração do tecido social, condição sem a qual a produção econômica se esfacela, mas esta característica é mantida oculta pois, como a produção se realiza sob relações sociais de dominação, tal constatação eliminaria a possibilidade de construção de consensos. 93 É assim, por exemplo, com o direito à propriedade. Há um consenso no sentido de que a propriedade privada deve ser sempre protegida. O fato de que a imensa maioria das pessoas não é e jamais terá condições concretas de ser proprietária é ocultado sob a abstração de que todos são livres para buscar sua felicidade, comprando tantos bens materiais quantos puderem.

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criar consensos para viabilizar a vida em sociedade. A partir de sua dignidade, cada um possuiria a liberdade de exercer todos os direitos fundamentais que o sistema jurídico proporciona, em igualdade de condições com todos os demais. Por outro lado, ao se buscar um alicerce desses direitos na realidade histórica das sociedades ocidentais, encontra-se o fato das relações verticalizadas de dominação de um homem sobre o outro; encontram-se, na prática da vida real, homens concretos e singulares que não possuem nenhuma das qualidades daquele Homem universal das declarações de direitos. Seriam duas teorias igualmente válidas para descrever a mesma realidade, porém a teoria de base idealista não possui qualquer explicação para a impossibilidade prática de realização de direitos pela maioria das pessoas, exatamente a maioria que se encontra subordinada à relação social de dominação. Na vida real, apenas têm direitos os homens que pertencem ao topo da pirâmide social e, embora os demais homens devam ter tais direitos, o sistema jurídico é incapaz de prover tais direitos a todos eles. O sistema jurídico, embora baseado em direitos fundamentais, é incapaz de conceder dignidade a quem não tem acesso a educação, saúde e transporte público, justamente porque sua estrutura não confere condições de promover os respectivos direitos à educação, à saúde e ao transporte94. Isso não significa que grupos sociais não possam utilizar da bandeira da dignidade e dos direitos fundamentais para exigir do Estado a concretização de direitos como à educação, à saúde e à moradia, ainda mais pelo fato de tais direitos terem sido expressamente positivados como direitos fundamentais na Constituição.95 No entanto, para promover tais direitos seria preciso usar de recursos sociais escassos, que já são utilizados para a realização de outros direitos que, vistos como direitos adquiridos, devem ser preservados. Trata-se de um conflito social, econômico e político para o qual o sistema normativo não tem qualquer solução. Os direitos fundamentais, que hoje organizam a própria compreensão de Constituição96, não são apenas conceitos ideais, tampouco estão baseados somente em valores. Eles não existem apenas porque são validamente positivados. Eles são ao 94

O Estado de Direito não foi feito para isso, muito embora as lutas por direitos sociais empreendidas por grupos de interesses têm conseguido que Estados como o brasileiro promovam a universalização de serviços públicos visando a concretização desses direitos. O mesmo pode ser dito sobre direitos fundamentais descobertos pelos juristas mais recentemente, como o direito ao meio ambiente. No entanto, o sistema jurídico é muito eficiente em prover defesa ao direito à propriedade, fundamental não apenas como direito, mas como mecanismo de organização do processo produtivo. 95 É o caso do Brasil, que os tem disposto no artigo 6º da Constituição de 1988, dentro do Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais: “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. 96 Em conjunto com o constitucionalismo e o Estado de Direito. Cf. PEREZ-LUÑO, Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución, cit., nota 1 deste trabalho.

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mesmo tempo resultado e o reflexo de todo um intrincado processo histórico de lutas sociais pela preservação de interesses e necessidades. A razão pode identificar e definir um direito, mas somente o processo de luta pelo direito pode expressar sua real dimensão. Em que pese sua aparência de consenso, os direitos fundamentais somente se constroem em meio a conflitos havidos entre grupos sociais com interesses antagônicos. Eles são o resultado da conformação das forças sociais de cada tempo e lugar. São essas mesmas relações sociais e históricas que determinam os projetos de construção social e, a partir deles, a definição, por uma visão de mundo comum, tanto os valores que comporão a chamada consciência jurídica quanto os textos normativos que restarão positivados. A extensão e os limites de um direito fundamental dependem, essencialmente, da capacidade de luta do grupo social interessado em sua preservação ou conquista. Seu sentido normativo será determinado, em sua maior parte, pelos fatores reais e efetivos de poder beneficiados por tal positivação. É justamente por isso que os direitos fundamentais mais adequados à produção industrial e à intermediação bancária possuem concreção muito maior que os direitos fundamentais de natureza social. Num conflito entre relações sociais, não há que se falar em proporcionalidade de direitos, já que o conflito social não se resolve em termos racionais ou jurídicos, mas em termos de poder e de dominação. Não obstante, conflitos sociais, ao serem resolvidos na forma de relações jurídicas, acabam por sofrer marcante influência da constituição jurídica e da vontade de constituição e, desse modo, têm sido resolvidos por meio de ponderação de interesses e proporcionalidade de direitos. Mesmo assim, a solução jurídica não é dada sem marcante influência dos fatores reais de poder interessados na controvérsia, pela identificação do sentido que cada qual considera mais adequado para o direito fundamental em jogo.

13. À guisa de conclusão Os direitos humanos são uma bandeira de inclusão social, pela qual busca-se atribuir mesma dignidade e consideração a toda e qualquer pessoa, pelo simples fato de ela também ser um ser humano. A exemplo dos direitos naturais dos períodos históricos anteriores, direitos humanos não possuem qualquer força normativa coercitiva, haja vista serem declarações de caráter ético-moral e não jurídico. A vertente jurídica dos direitos humanos convencionou-se denominar de direitos fundamentais, e expressam em cada ordenamento jurídico a positivação dos direitos humanos em sentido e extensão conforme prescritos nos textos normativos de cada Estado. Direitos fundamentais são apresentados ora como objeto de uma teoria que os descreve como parâmetros de interpretação de todo o sistema normativo e, nesse

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sentido, direitos fundamentais não são na prática muito diferentes dos direitos humanos. No entanto, quando efetivamente positivados como texto constitucional, no ponto hierarquicamente mais alto do ordenamento jurídico, seu conteúdo normativo deve obrigatoriamente determinar o sentido de todas as demais normas do sistema. Se esses direitos são fundamentais porque fundamentam o sistema normativo, cabe a pergunta sobre o que de fato os fundamenta. Em geral, os teóricos do direito costumam firmar seu alicerce na liberdade, na igualdade e, ainda com mais ênfase, na dignidade da pessoa humana. Curiosamente, esse fundamento também é positivado na Constituição, de modo que se cria a situação em que os direitos fundamentais se fundamentam num direito fundamental. Como se trata, em termos lógicos, de uma tautologia, e em termos práticos, de um sem sentido, mantém-se a pergunta: em que se fundamentam a liberdade, a igualdade e a dignidade da pessoa? Mas, até antes disso, o que significa liberdade, igualdade e dignidade? Trata-se de valores sociais, de juízos de valor e não de fatos naturais. Não se encontram valores na natureza, eles decorrem de interesses humanos e sociais: são os homens que atribuem valores às coisas. Isso significa, num primeiro momento, que os direitos fundamentais são normas jurídicas constitucionais que imprimem no ordenamento jurídico o sentido de preservação de certos bens e situações entendidos como valiosos. Porém, tais valores não são universalmente declaráveis, tampouco genericamente definíveis. Nem podem, pois o ato de atribuir de valor é algo subjetivo e contextualizado. Lícito, portanto, que cada pessoa atribua seu valor às coisas, o que tira qualquer objetividade e universalidade da definição do fundamento dos direitos fundamentais. Historicamente, tais valores foram apresentados como universais e evidentes, aplicáveis a toda e qualquer pessoa. Não houve eleição, nem constatação lógica da verdade desses valores. Eles foram definidos por conta de certa conformação de forças sociais. Tais valores universais, embora em termos genéricos pudessem perfeitamente beneficiar qualquer um, em verdade beneficiavam concretamente ao grupo social hegemônico. Tais valores tem sido determinantes para que os sistemas jurídiconormativo e econômico-produtivo funcionem a contento. Atualmente, a luta pela concretização de direitos fundamentais abre verdadeiras fissuras no sistema social, já que faz sentido lutar por direitos como educação, saúde e meio ambiente, formas lícitas de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana, pois aceitar a promoção de tais direitos significa conceder dignidade a praticamente todos os seres humanos. No entanto, o sistema social se estabelece sobre certa estrutura econômica que impede a realização desses direitos, o que demonstra que os direitos fundamentais não têm fundamento na dignidade da pessoa,

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tampouco na liberdade ou na igualdade, mas nas relações políticas e econômicas conformadas historicamente no âmbito de cada sociedade concreta. Nesse sentido, uma definição realista de direitos fundamentais deve tornar evidentes as relações sociais de dominação que a concepção idealista costuma ocultar: a aparente organização igualitária do sistema jurídico esconde a verticalização das relações econômicas e sociais, muito embora, pelos direitos fundamentais já estabelecidos, possa-se lutar pela redução dessas desigualdades. Ou seja, ainda que os direitos fundamentais tenham por fundamento uma realidade social marcada por sua estrutura de dominação, é possível utilizar o conteúdo normativo desses direitos para conferir eficácia a relações jurídicas em sentido contrário ao das relações sociais estruturais

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