Sobre o tempo da escolha do modelo de vida no Mito de Er de Platão

August 6, 2017 | Autor: L. Ouro Oliveira | Categoria: Mitologia, Platão, Filosofia antiga
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Sumário

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\ \ iinliiilc do Poder como arte: uma introdução \ l l c n r , o l lcmii|iie Vieira da Costa ............................................................................ 11 i »in açiW e Siniultaneidade: a concepção de tempo em Bergson e sua relação < "iii .1 u-oria da relatividade de Einstein l i.iincl SiqiK-iia Pereira ............................................................................................. 17 V\ primeiras leituras de Schopenhauer no Brasil l >;milo Dilate de Carvalho ......................................................................................... 25

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e a questão da finitude Imunda Leite..........................................................................................................33 l . i n.inilci Pessoa e a restituição do falso ( íahriel Cid de Garcia .............................................................................................. 40 Dioniso, deus de mulheres João Luiz Rayol Fontoura ........................................................................................ 49 l) m estudo acerca do sentimento de respeito na Crítica da Razão Prática Larissa Cristiane Tomczak ...................................................................................... 56

Revista Itaca. PPGF-UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. Cetúlio Nascimento Braga Júnior, João Luiz Farah Rayol Fontoura, Nathalie Barbosa de La Cadena, Rachel Martins, Renato Nunes Bittencourt (org.) ISSN: 1519-9002 1. Filosofia. 2. Textos acadêmicos

A entonação da significação do niilismo em Nietzsche e Graciliano Ramos Leonardo Mees ........................................................................................................ 65 Sobre o Tempo da Escolha do Modelo de Vida no Mito de Er de Platão Lethicia Ouro A. M. Oliveira ................................................................................. 74 O Conceito Pós-subjetivista de Pessoa em Jürgen Habermas Marcos André de Barros ......................................................................................... 83 Uma introdução à leitura da Segunda consideração intempestiva de Friedrich Nietzsche Marcos Sinésio Pereira Fernandes ........................................................................... 91 Demócrito: o racionalismo como representação artística do mundo segundo Nietzsche Maria Cristina dos Santos de Souza ..................................................................... ...98 Algumas Facetas do Poder sob a ótica de Michel Foucault Maria Paula Ferreira Curto

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Sobre o Tempo da Escolha do Modelo de Vida no Mito de Er de Platão Lethicia Ouro A. M. Oliveira Mestre em Filosofia PPGF-UFRJ O Mito de Er, que finaliza a República de Platão, conta o destino das almas após a morte. Primeiramente, elas recebem as recompensas pelas vidas que levaram, depois são levadas para o alto, para que contemplem a estrutura do céu, e, por fim, devem escolher um dentre os modelos de vida [bion paradeígtnata] (PLATÃO. Rep. 617d4, 618a2) apresentados por um profeta. Esse modelo as acompanhará no próximo "período que trará a morte aos mortais".(Ibid 617d) Segundo o mito, a escolha é feita da seguinte maneira: o profeta tira as sortes [kléroi] do colo de Láquesis e as joga em frente às almas, que apanham a sua para conhecer a ordem em que devem escolher seu modelo de vida. Conhecendo sua ordem, são então expostos os modelos, em maior número que o número de almas. As almas podem ver os modelos de vida, isto é, se se será rico ou pobre, forte ou fraco, se se terá facilidade ou dificuldade de aprender, etc., e não a disposição do caráter da alma, pois esse mudará de acordo com a escolha feita.2 Feita a escolha, as almas são levadas ao fuso que a tornava irreversível, assim como as conseqüências ou recompensas que cada escolha traz. Nesse texto pretendemos mostrar por que a escolha do modelo de vida descrita no Mito de Er diz respeito à vida em sua totalidade, e, assim, a todo tempo de vida. Não pretendemos

investigar se tal escolha ocorreu como um evento de um passado anterior ao nosso nascimento. Tendo ela ocorrido ou não, ela certamente concerne a todo tempo de vida. Isso mostraremos a seguir, por meio de uma leitura do próprio mito e dos comentários de Sócrates sobre ele. No Mito de Er, o passado ou as coisas que foram [tá gegonóta], o presente ou as coisas que são [tá ónta] e o futuro ou as coisas que serão [tá méllonta] são partes que compõem uma mesma canção, e partes que são cantadas simultaneamente. As filhas da Necessidade, as Moirai, cantam o tempo: Láquesis canta o passado, Clothó canta o presente e Átropos canta o futuro.1 Elas cantam em harmonia [harmonia], isto é, segundo o significado do termo grego, em acordocom o canto das oito Sereias, que, em cima de cada uma das esferas astrais" que compõem a estrutura do céu como descrita no mito, cantam emitindo um único som \phonen mían] de uma única nota [héna tónori]? Sócrates diz que o canto de todas as Sereias forma unia harmonia sin-fônica [hamonían sytnphonein]4, quer dizer, atentando para o significado de symphonía, uma harmonia em que há junção de sons - uma verdadeira harmonia grega, a de oitava." O som do intervalo de oitava6 caracteriza-se pelo soar conjunto de uma mesma nota, uma oitava acima ou abaixo. Ouvimos o som de um intervalo de oitava quando, por exemplo, tocamos uma tecla do dó no piano junto com a próxima tecla de um outro dó que encontramos na continuação do instrumento. Esse intervalo passa por todas as notas musicais. Ele

Os tradutores da Republica aos quais tivemos acesso traduzem kléros por sorte (cf. as traduções de C. A. Nunes, J. Guinsburg, G. Leroux, R. Baccou e A. L. Prado, sendo que a última também utiliza quinhão) ou lote (como optaram M. H. R. Pereira, S. Halliwell e P. Shorey). Segundo o dicionário Bailly, um kléros era originalmente um objeto de que se serve para tirar a sorte. Os kléroi eram pequenos pedaços de madeira colocados dentro de um casco, posteriormente um vaso, onde eram agitados para depois serem tirados. Cf. esse uso de kléros em HOMERO. Iliada. canto 3, v. 316. É nesse sentido que o termo é usado no Mito de Er. Encontramo-lo no mito somente em duas passagens. Na primeira, as sortes são tiradas do colo de Láquesis (PLATÃO. Rep. 617d4) e, na segunda, são jogadas pelo profeta para que as almas apanhem a sua (ibid. 617e7). Depois de tirada a sorte, sabe-se o lote [lákhon] que cabe a cada alma. A sorte diz o lote, como confirma o dicionário Bailly ao expor o significado, tanto de kléros, quanto de lákhon. Cf. BAILLY, Anatole. Lê Grand Bailly: Dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette, 2000. O lote diz a ordem em que cada alma deve escolher sua vida. Temos então que a sorte dá o lote, que determina a ordem da escolha que, por sua vez, determina o destino, moiran (PLATÃO. Rep. 620e4) de cada alma. 2 Cf. Ibid. 618b2-4.

'Ibid. 617c4,5. Cada uma das esferas é chamada de kyklon, círculo (PLATÃO. Rep. 617a7), periphorá, movimento circular (ibid. 616c5,7), ou sphondylon, contrapeso (ibid. 616dl,3,7), quando é feita a comparação do céu com um fuso. 'íbid. 617b6. 4 Cf. Ibid. 617b5-cl. Em português podemos usar sinfônico, o termo similar ao grego, pois o primeiro sentido de sinfonia é o grego: "entre os gregos a consonância que para eles só era produzida pelos intervalos de oitava, quinta e quarta justas." É certo que a sinfonia é também o "trecho musical que precede uma ópera" e "composição para orquestra", mas esses sentidos não excluem o primeiro, o que pretendemos significar com o termo na tradução. Cf. HOUAISS, Instituto Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, l. reimp. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. O hífen chama atenção à formação do termo desde o grego: syn, junto + phoné, som. 5 Que o termo harmonia refere-se particularmente à harmonia de oitava, cf. BAILLY, loc. cit. Que esta é a leitura mais coerente da passagem, cf. HALLIWELL, S. Plato: Republic 10. ed. bilíngüe. Warminster, Wilshire: Aris & Philips Ltd., 1993. p. 182. 6 Com a expressão som do intervalo de oitava queremos dizer a sensação auditiva provocada pela vibração da mesma nota com uma diferença de oitava em altura, simultaneamente ou uma nota subseqüente à outra.

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também engloba todos os outros intervalos, que se encontram dentro dele.1 Nós temos sete notas musicais, dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, e a oitava nota é novamente o dó. No mito, temos oito esferas astrais e oito Sereias; o número de esferas coincide com o número de notas, o que possibilita a "harmonia das esferas". Essa harmonia aparece no som do intervalo de oitava, que, como dissemos, caracteriza-se pela repetição da mesma nota, com uma oitava de diferença. Aristóteles diz que nesse som as notas soam como uma única nota.3 Ele ainda suspeita que a harmonia de oitava é a mais bonita de todas porque os intervalos [lógoi] pelos quais é composta contém números [hóroi] inteiros, números que são um todo [hólon].4 O som do intervalo de oitava pode ser emitido ao se bater em um vaso completamente vazio e em outro, idêntico ao primeiro, completamente cheio. O vaso completamente vazio é a possibilidade para estar 1/4 cheio, o que produz o som do intervalo de quarta, ou 1/3 cheio, o que produz aquele do intervalo de quinta. Completamente vazio, o vaso é possibilidade para todo outro som; completamente cheio, o vaso esgota essas possibilidades que só podem ser novamente atualizadas ou repetidas quando se desocupa o vaso, quando ele estiver novamente vazio. Pois cheio, ele esgota e atualiza todas as suas possibilidades. O vaso completamente vazio fala de todas as possibilidades e o vaso completamente cheio fala de todas as atualizações. Quer dizer, falamos do todo. Em música, no que diz respeito ao som dos intervalos, ele é o de oitava. É em harmonia com o som do intervalo de oitava das Sereias que as filhas da Necessidade cantam o passado, o presente e o futuro. Passado, presente e futuro, enquanto cantos, juntam-se ao mesmo som, o som das Sereias, o som daquela única nota. Quer dizer, no mito, os cantos estão em harmonia, isto é, concordam com o mesmo. Ora, as três partes do tempo, passado, presente e futuro, são determinadas em um só, em um mesmo momento, o momento da escolha do próximo modelo de vida. Segundo diz o mito, a escolha que determina passado, presente e futuro acontece antes de nascermos. Sendo assim, concluiríamos que ela é impossível de ser feita em vida. Ora, em vida já nascemos e já temos um Referimo-nos aos intervalos simples. É certo que nossa nomeclatura não é igual à grega. O dó (1536), por exemplo, é provável substituto do ut (1527), criado, assim como as outras nomeclaturas das notas que usamos, pelo italiano Guido d'Arezzo (f 1050). Cf. HOUAISS, loc. cit. dó. 3 Cf. ARISTÓTELES. Problems: Books I-XXI. Translation W. S. Hett. Cambridge: Harvard University Press, 1993 (LOEB). Problem XIX, 919a8,9. 4 Ibid. 920a28,29. 5

Cf. RJVAUD, A. Ètudes Platoniciennes: II. - Platon et Ia musique. In: Revue d 'histoire de Ia philosophie, 1929. p. 21.

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passado determinado anteriormente. Contudo, segundo Sócrates, não temos razão nessa primeira compreensão. Em três passagens ele interpreta a história de forma diferente. Na primeira delas, Sócrates diz a Gláucon: É aí que está, segundo parece, meu caro Gláucon, o grande perigo para o homem, e por esse motivo se deve ter o máximo cuidado em que cada um de nós ponha de parte os outros estudos para buscar e se aplicar a este a ver se é capaz de saber e descobrir quem lhe dará a possibilidade e o conhecimento para distinguir uma vida honoràvel de uma sofredora e de escolher sempre, em toda a parte. tanto quanto possível, a melhor. (PLATÃO. Rep. 618b6-c6) O grande perigo para o homem está na escolha do modelo de vida, dentre a diversidade dos modelos que lhe são apresentados. Por isso ele deve buscar e se aplicar no estudo que o torna capaz de discernir a vida honoràvel da sofredora. E isso ele deve fazer para escolher sempre e por toda a parte a melhor. Quer dizer, a escolha de vida desenhada no mito, que é irreversível, é a escolha que é feita sempre, e se é feita sempre, é certamente feita em vida. Na segunda passagem que aponta que a escolha do modelo de vida é feita em vida, Sócrates diz que Em conclusão de tudo isso (a alma) será capaz de distinguir e escolher, tendo em vista a natureza da alma, dentre a vida pior e a melhor, chamando pior à que levaria a alma a tornar-se mais injusta, e melhor à que a leva a ser mais justa. A tudo o mais ela não atenderá. Vimos, efetivamente, que, quer na vida temporal, quer no fim da vida, é essa a melhor escolha. (PLATÃO. Rep. 618d5-e4) Segundo disse Sócrates, a escolha é feita durante a, e no fim da, vida. Vale notar que o verbo teleutáo encontra-se no aoristo, aspecto que indica que a ação ou paixão é pontual, está fora do tempo contínuo, que continua. Isto indica que teleutésanti, comumente traduzido por após a morte\ não significa uma continuação temporal, mas algo que acontece de modo pontual. Sendo assim, a escolha se dá nos dois âmbitos: da vida considerada no tempo que passa e da vida considerada como um todo. Temos, então, mais uma passagem que afirma o mesmo que afirmamos anteriormente. A ' Cf, por exemplo, as traduções de C. A. Nunes, M. H. R. Pereira, A. L. Prado, J. Guinsburg, G. Leroux e R. Baccou. Já P. Shorey traduz por "... this is the best choice, both for life and death.", opção mais próxima da nossa leitura.

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escolha do modelo de vida feita pelas almas no Mito de Er é a escolha feita sempre em vida. Uma última passagem volta a afirmar o que defendemos. Após Sócrates dizer a Gláucon que a escolha é o grande perigo para o homem, que é preciso sempre e por toda a parte encontrar a melhor vida possível, e que quer em vida quer no fim da vida ele deve fazer essa escolha, ainda acrescenta: ... deve-se saber sempre escolher o modelo intermédio dessas tais vidas, evitando o excesso de ambos os lados, quer nesta vida, até onde for possível, quer em todas as que vierem depois. (Cf. PLATÃO. Rep. 619a5-7). Temos então que a escolha é feita sempre e em toda a parte, feita durante e no fim da vida, e, por fim, nesta vida, até onde for possível. Nossa tese é a tese de Sócrates, mas não basta defendê-la sem compreendêla. É preciso refletir sobre o que quer dizer Sócrates quando afirma que a escolha do modelo de vida ocorre em vida. Como dissemos, a escolha é feita em vida e sempre. A escolha é feita por toda a parte porque é feita, por um lado, segundo conta o mito, pelas almas antes de nascerem, no qual temos passado, presente e futuro, isto é, a totalidade da vida sendo escolhida, e, por outro lado, em vida, na Terra, enquanto a escolha da totalidade da vida é refeita sempre durante a vida. Assim, a escolha da totalidade é sempre refeita em cada vida feita. Temos então que a escolha do modelo de vida acontece antes de nascermos, e, em vida, quando escolhemos algo, reafirmamos nossa escolha, mantemos a mesma escolha. Essa é a primeira maneira de se compreender como a escolha do modelo de vida diz respeito à vida temporal. A segunda maneira, talvez mais importante, é a possibilidade de se fazer a escolha de outro modelo de vida na vida temporal e biológica. Em vida, essa escolha sempre já foi feita. Sempre nos encontramos em certa situação, com um passado dado, e um destino a ser feito, seja lá como seja feito. Mas isso não pode excluir a possibilidade dessa escolha mudar. Por que Sócrates diria que a escolha do modelo de vida é feita sempre, em vida, em toda a parte, se ela estivesse fadada a ser sempre a mesma durante toda a vida? Só faz sentido afirmar que essa escolha é feita em vida se ela puder mudar. Para Sócrates, há a possibilidade de uma mudança do modelo de vida, que pode ocorrer em vida, no tempo, ou melhor, já que a escolha é de passado, presente e futuro, no tempo enquanto ele pode ser suspendido para o nascimento de um outro tempo. Para que essa mudança ocorra é preciso que haja primeiro a morte, o fim. Mas isso soa bastante estranho... como é que em vida há morte e nascimento, como é que em vida há novo tempo, novo passado, presente e futuro? 78

Encontramos uma via para compreender essa possibilidade: a própria filosofia, tal como é apresentada em outro diálogo de Platão, no Fédon, que diz respeito à morte e assim, à possibilidade de um novo passado, presente e futuro. Tendo em vista a possibilidade apontada por Sócrates, interpretando o Mito de Er, de se escolher um outro modelo de vida em vida, podemos compreender por que no Fédon Sócrates insiste em afirmar que a filosofia é o exercício da morte.1 A morte possibilita a mudança do modelo de vida; morte é outro nome para mudança. No Mito de Er, não é desde a morte que a alma muda seu modelo de vida pela escolha feita? Será que no Fédon, quando Sócrates diz que a filosofia é o exercício para a morte, ele não quer dizer que ela é o exercício para uma mudança, que é, segundo é caracterizada a morte no diálogo, tornar-se virtuoso pela inteligência \phronesis\l~ Parece-me que essa é uma leitura possível, e que responde ao problema que nos apareceu do comentário de Sócrates do episódio da escolha do modelo de vida no Mito de Er. Vejamos agora como essa possibilidade interpretativa se desdobra com os outros elementos do mito. Segundo contou Er, para que haja nascimento, para haver princípio de passado, presente e futuro, é preciso que se esqueça de tudo.3 É preciso ir à planície do Esquecimento, onde há calor e sufocação terríveis4 e beber das águas que não podem ser contidas, não podem ser guardadas em nenhum vaso5, somente escorrem. Para nascer é preciso esquecer-se de tudo, deixar que tudo escorra e não seja guardado. Somente desde esquecimento é possível o nascimento. No mito, depois das almas se esquecerem, há um trovão e um tremor de terra, e de repente, subitamente [eksapínes], elas partem para cima [ano], para o nascimento [génesin], cintilando como estrelas [áittontas hósper astéras].

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Me/éte thanátou. Id. Fédon, 81al. A morte, no Fédon, sendo a libertação da alma da prisão que é o corpo (cf. ibid. 67d8), é a volta ao estado inicial de nossa alma, antes de juntar-se ao corpo. Nesse estado, a alma é inteligente (cf. ibid. 76c8) e virtuosa. Pois "... pelo contrário, talvez haja uma única moeda adequada, capaz de assegurar a validade de todas essas trocas - a inteligência. Sim, talvez só por ela [e com ela] se possa de verdade [comprar e vender] coragem, temperança, justiça, numa palavra, a autêntica virtude, que é a que vem acompanhada de inteligência..." Ibid. 69a9-b5. Tradução de Maria Teresa Schiappa de Azevedo ligeiramente modificada. 3 "Enquanto se bebe, esquece-se tudo." Rep. 621bl. 4 "Quando as restantes passaram, todas se encaminharam para a planura do Letes, através de um calor e uma sufocação terríveis." Ibid. 621a3. 5 "Quando já entardecia, acamparam junto do Rio Âmeles, cuja água nenhum vaso pode conservar." Ibid. 621a6. 6 Ibid. 621b3,4. 2

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O esquecimento, necessário para o nascimento no Mito de Er, pode ser remetido à teoria do conhecimento platônica. Voltemos ao Fédon. Ele é um dos diálogos nos quais Sócrates defende que o conhecimento ou aprendizado [máthesis] não é nada mais que a lembrança [anámnesis].1 Esse conhecimento diz respeito "ao que é"2, às formas. Segundo Sócrates, no Fédon, quando nossa alma conhece, quando ela se encontra próxima do que é, ela mesma é mais semelhante a ela mesma, isto é, ela é mais ela mesma: Ao invés, quando (a alma) indaga por si e em si, refugiando-se além, no que é puro e sempre existe, imortal e idêntico a si mesmo, fica, em razão de seu parentesco, para sempre ligada a ele, precisamente quando passa a existir em si e por si, e tal lhe é permitido; e é então que cessam seus errores e, fixando-se nessa realidade, salvaguarda para sempre a sua identidade, porque tal é também a natureza das coisas a que se apega. Ora este estado de alma não designamos nós por inteligência? (PLATÃO. Fédon 79dl-8) Quando conhece, quando está junto "do que é", a própria alma é mais ela mesma. Ou seja, conhecer e ser se encontram juntos. Para que Sócrates possa dizer que é possível escolher um modelo de vida durante a própria vida, é preciso que nela haja esquecimento, já que este é necessário para o nascimento, segundo o mito. O esquecimento antes do nascimento em vida pode corresponder ao processo de reminiscência, ao esquecimento antes da memória, isto é, do conhecimento e ser3, já que no Fédon os dois são identificados. O vir a ser, o nascer, concomitante à memória, só é possível desde um anterior esquecimento. A vida feita em vida, feita quando se filosofa, é a vida feita juntamente com o conhecimento, a memória, que diz respeito sempre a algo antes esquecido, mas algo que se encontra de alguma forma latente - léthes? O morrer-nascer em vida, o fim-começo do tempo, de passado, presente e futuro, essa experiência que Sócrates afirma ser possível, desdobra-se no próprio pensamento platônico, naquilo que concerne a todos os diálogos e que diz respeito à própria filosofia, enquanto aquilo que nos torna capazes de escolher um modelo de 'Cf. Id.Fófon72e5. to hò ésti. Ibid. 75clO-dl. 3 A ligação da memória no Mito de Er com a reminiscência filosófica, é feita por BARACCHI, Claudia. Of Myth, Life, and War in Plato's Republic. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 2002. Un-ending, p. 224. 4 A tradução de léthes por latência encontramos em ibid., p. 218. 2

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vida, passado, presente e futuro, início de tempo, no qual haja a lembrança - sempre desde esquecimento e perda - daquilo que dá ser, forma, à vida. O nascimento em vida, se ao primeiro momento parece falar de algo tão estranho, de algo tão impossível como parece ser a perda de tudo e concomitante encontro com tudo, acaba se mostrando como a fala sempre própria à filosofia, segundo Platão. Pelo visto, baseando-nos na interpretação de Sócrates, podemos afirmar que não é somente possível que a escolha do modelo de vida seja feita em vida; isso ocorre necessariamente sempre e em toda parte. Se a escolha é a mesma, temos a retomada de um mesmo modelo; se a escolha é outra, temos uma morte em vida, uma mudança, como é feita pelo homem que se ocupa com a filosofia, tal como definida no Fédon. O argumento é simples, já que nossa interpretação se apoia na que o próprio Sócrates faz do mito que conta. Se passado, presente e futuro são partes de uma mesma música que emite um mesmo som de uma só nota, como soa a harmonia de oitava que cantam as Sereias, se são partes cantadas simultaneamente, essas três partes do tempo são desenhadas como o mesmo, como, poderíamos dizer, um mesmo instante, o instante da escolha. O maior perigo para o homem está em cada momento, está em todo lugar, em toda parte. Ele corre sempre o perigo de escolher ou não a vida que leva sua alma à justiça. Essa escolha, se no mito parece acontecer somente no fim ou princípio da vida, segundo Sócrates, ocorre sempre e em toda parte, isto é, é sempre refeita em todo instante de vida. Ela pode ser a mesma escolha e ela pode ser, em raros casos, outra escolha, como ocorre quando o homem se ocupa com a filosofia: ele muda seu modelo de vida, suspende o tempo para o princípio de uma vida com forma e lembrança.

Bibliografia

O Conceito Pós-subjetivista de Pessoa em Jiirgen Habermas

ARISTÓTELES. Problems: Books I-XXI. Translation W. S. Hett. Cambridge: Harvard University Press, 1993 (LOEB). BAILLY, Anatole. Lê Grand Bailly: Dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette, 2000. BARACCHI, Claudia. Of Myth, Life, and War in Plato's Republic. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 2002. HALLIWELL, S. Plato: Republic 10. ed. bilíngüe. Warminster, Wilshire: Aris& Philips Ltd., 1993. HOMERO. Iliada. Tradução Haroldo de Campos, ed. bilíngüe, vol. l, 2. São Paulo: Arx, 2002. . Iliada. Tradução Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. HOUAISS, Instituto Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. MATTÉI, J-F. Pitágoras e os pitagóricos. Tradução Constança M. César. São Paulo: Paulus, 2000. PLATÃO. A República. Tradução Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000. . A República. Tradução M. H. Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. . A República. Tradução A. L. de Almeida Prado. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. _. A República. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2006. . La Republique. Traduction Georges Leroux. 2. ed. Paris: Flammarion, 2004. . La Republique. Traduction Robert Baccou. Paris: Librarie Garnier Frères, 1950. . Republic. Translation Paul Shorey. Cambridge: Harvard University Press, 2003 (LOEB). . Fédon. Tradução Maria Teresa Schiappa de Azevedo. 2a ed. Coimbra: Livraria Minerva, 1998. _. Phaedo. Translation H. N. Fowler. ed. bilíngüe. Cambridge: Harvard University Press, 1982 (LOEB). RIVAUD, A. É tudes Platoniciennes: II. - Platon et Ia musique. In: Revue d 'histoire de Ia philosophie, 1929.

Marcos André de Barras Doutorando em Filosofia do PPGF-UFRJ Este texto tem origem em uma pergunta importante para a viabilidade da Ética do Discurso de J. Habermas, a qual atinge o âmago desta teoria por acarretar problemas à sua pretensão aplicativa e à sua consistência. A pergunta é a seguinte: Existe na Ética Comunicativa de J. Habermas um conceito de pessoa capaz de fazê-la sensível e apropriada às questões vivenciais não-formalizadas? Justificando o impacto da pergunta: 1. Se a Ética do Discurso se auto-apresenta como uma ética formalista (não-substantiva / procedimental), deontológica (centrada na validade moral do dever) e cognitivista (validade normativa = verdade) 1 , então as exigências de separação entre o "geral" e o "particular", interessando apenas o primeiro à abstração essencial aos juízos válidos, responsáveis pela falta de um eficiente conceito de pessoa, poderiam fazer da Ética Comunicativa uma ética insensível a muitos problemas humanos, uma vez que estes problemas se situam no âmbito particular das formas ou estilos de vida individuais ou de grupos minoritários/específicos, ou ainda de certos estados específicos da condição humana no mundo (ex: a condição inconsciente do enfermo ou do ser humano pré-nascido). 2. Se a pretensão da Ética Comunicativa é contribuir para a estruturação de uma vida emancipada para a sociedade, e por isso seu interesse aplicativo é radical, chegando a mesma a assumir sua efetivação através do "direito" e da "atividade política deliberativa", então torna-se fundamental a mesma garantir seu vigor aplicativo e para tanto necessita de meios empíricos que a façam sensível às situações reais, mesmo antes destas sofrerem processos exaustivos de formalização teórica. Neste sentido um "conceito de pessoa" é essencial como sensor capaz de captar cognitivamente as demandas éticas das vivências de uma sociedade pluralista, na qual a técnica multiplicou muito o poder humano de autoexperimentação (automanipulação) gerou tensões e faz aflorar, a todo instante, dilemas e conflitos morais. I - A Estrutura da Ética do Discurso e a Questão da Pessoa. Como o próprio Habermas propala seu pensamento é assumidamente pós-metafísico, como tal não pode ser encaixado numa linha de continuidade do conceito metafísico de pessoa, todavia sua concepção não se limita a um simples psicologismo. Ver. HABERMAS, J. Comentários à ética do discurso, p. 15.

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