Sobre Repetição e a Forma de Habitar

July 19, 2017 | Autor: Diogo Barretto | Categoria: Architecture, Jacques Lacan, Sigmund Freud, Subjectivity
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ESCOLA BRASILEIRA DE PSICÁNALISE CURSO DE FORMAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA 2008-2009 Ensaio final do ano Autor: Diogo Cardoso Barretto Sobre Repetição e a Forma de Habitar Este texto nasceu a partir de uma pesquisa realizada pelo NusArq – Núcleo de Estudos da Subjetividade em Arquitetura, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco, especificamente de um subprojeto conduzido por mim, chamado Sobre Edifícios Altos e a Configuração Espacial Urbana. Não se trata de apresentar os resultados ou explicar a metodologia da pesquisa, se não que pinçar dados específicos ou janelas da pesquisa, para exemplificar como o gozo e a repetição estão presentes na nossa forma de morar e, conseqüentemente, na forma de arquitetos projetarem e na forma da cidade. Para tanto escolheu-se a forma de ensaio, uma vez que os dados apresentados aqui não tem a pretensão de serem conclusivos, se não que apenas almejam ser uma ilustração do reflexo dos processos de repetição subjetiva na configuração espacial de uma casa. A princípio, essa ilustração mostra como o mecanismo se aplica também a outros programas, que não só ao habitacional, e também a diferentes culturas, mas o espaço aqui disponível apenas permite abordar um exemplo específico. Para iniciarmos, tento localizar no marco teórico da produção Freudiana e Lacaniana que conceitos da repetição nos interessam aqui, repito que por se tratar de um ensaio não me preocupei com o rigor de trazer citações bibliográficas, se não que apenas esquematizar os conceitos relevantes. O conceito de repetição está ligado ao conceito de trauma e às noções de culpa e fracasso e, para Freud, a repetição está além do princípio do prazer, funcionando de forma radicalmente diferente deste. Segundo o dicionário de Psicanálise de Chemama e Vandermersch, a repetição é o ato do sujeito de repetir em suas representações, suas condutas, seus atos, situações em que vive e gestos determinadas atitudes sem que, na maioria das vezes ele se dê conta e sem que parta dele como um projeto deliberado. Para Lacan a repetição é da ordem simbólica em geral e da cadeia significante em particular. A operação de repetição é repouso para o funcionamento da cadeia significante, na qual os significantes constantemente retornam para que o sujeito possa se reconhecer como tal.

Nesse ponto, devo sair da teoria psicanalítica e pisar no campo da teoria da arquitetura para explicar o conceito de gesto aquitetônico, o gesto que tem valor funcional e estético e que determina as formas gerais que um projeto vai assumir quando construído. Para o filósofo Evaldo Coutinho o trabalho do arquiteto é fazer com que sua intuição artística vença as acidentalidades da interpretação e do meio permeável semiótico, no caso da arquitetura o espaço, para que possa tornar-se objeto artístico palpável. Essa intuição do artista/arquiteto não pode ser dissociada do próprio sujeito que projeta, que está imerso na cadeia significante e entregue em maior ou menor grau ao imperativo gozoso do grande outro, o cliente – disfarçado sob a denominação genérica de “mercado”. Isso ainda mais em projetos residenciais, de natureza tão individual e subjetiva. Mas não é só o arquiteto que está sujeito a esse imperativo do grande outro, também o cliente é sujeito, e algo o faz repetir na sua forma de morar. Retomo o conceito lacaniano de que a repetição é o artifício do simbólico para que o sujeito possa se reconhecer, e o lar é fundamental para o reconhecimento do sujeito, basta lembrar-nos de nós mesmos em um hotel, numa cidade estranha. Por tanto repetir no lar é reconhecer-se, é estar mergulhado no seu simbólico e tentar, da forma possível, afastar a angústia. Partamos para um exemplo concreto, o edifício de apartamentos na nossa cultura. O tipo é uma torre isolada no terreno, garagem em bloco horizontal, equipamentos, churrasqueira, academia, piscina, etc. Para dar contraste a isso, vejamos a forma de morar na Europa ou na Argentina – entre muito exemplos de formas diferentes que poderia dar, a cidade mulçumana e seu espaço de circulação residual, a cidade norte americana e seus subúrbios – o tipo europeu é do volume horizontal, baixo e longo, que se interconecta com outros edifícios, formando uma rua corredor. Na Europa, o edifício cria o espaço público, e não o espaço público/urbano é o espaço onde o volume do edifício está inserido, como na nossa cultura. Não convém analisar as razões de alhures para isso, uma vez que a ilustração da configuração européia serve apenas como contraste, como estratagema para facilitar o entendimento do particular da nossa configuração, do nosso tipo residencial. Mas a articulação entre a noção de repetição, de como ela é o suporte para o reconhecimento do sujeito no simbólico e as razões particulares da nossa forma de morar ainda se fazem necessárias para ilustrar esse argumento. Por que os brasileiros, os venezuelanos, os panamenhos, os mexicanos ou mesmo os habitantes de Miami – e essas localizações geográfica são importantes – optaram pela torre isolada em lugar de qualquer outra configuração para habitar?

O que todas essas culturas têm em comum? Só me ocorre o caribe e a cultura da cana-de-açúcar, com suas influências nas vizinhanças – veja como o nosso tipo habitacional se repete com relativa similaridade na Venezuela e países do Caribe açucareiro e começa a se deformar no México e Miami. Mas o que a cana-de-açúcar pode ter haver com isso? Voltando a se centrar no Brasil, retomo a noção de privativismo de Gilberto Freire para explicar o conceito de espaçobloco, espaço fechado em si e que da as costas à rua “suja, feia e lugar de escravos e pobres”. O senhor de engenho, o senhor de terras – e isso se repete também nos paises canavieiros do caribe – vivia isolado em suas Casas Grandes e, mesmo quando na cidade, em seus sobrados urbanos auto-suficientes, verdadeiras escolas, escritórios e espaços de reunião, além de simplesmente locais de repouso. A rua se inscreveu na cadeia simbólica da nossa cultura como algo não desejável, algo a se evitar. E a desculpa consciente que damos a nós mesmos é que nos protegemos assim de uma violência urbana causada pelas diferenças sociais do país – fosse essa afirmação verdadeira, uma cidade russa, turca ou sul-africana não seria muito diferente das nossas. Morar em espaços bloco é uma forma que o sujeito pertencente a cultura brasileira tem de se reconhecer. O imperativo gozoso do superego aqui é isole-se, proteja-se do diferente, sujo, pobre e – em nossos dias cada vez mais – violento espaço público, da rua. Tenha seu próprio espaço-bloco, com área livre, piscina, comodidades e evite ao máximo sair à rua. Mas e a culpa e o fracasso que desencadeiam a repetição para Freud? Isso tem haver com o trauma do espaço público, lugar por excelência do confronto com o diferente. Esse trauma gerado pelo confronto com o outro resulta numa posição defensiva que em nossa cultura herdeira do patriarcado açucareiro, do espaçobloco, resultou em espaços guetos de iguais, os condomínios que não permitem permeabilidade com o espaço público fechando-se em seu próprio universo de muros e grades. O fracasso inerente a relação com o outro, carregado de seus próprios desejos e afetos, leva o sujeito a repetir continuamente a atitude de isolamento no seu próprio espaço. A repetição aparece no hábito de morar de qualquer sujeito mergulhado no simbólico, é suporte de uma cadeia de significantes própria, e deriva do imperativo do grande outro da cultura, é uma forma que o sujeito encontra para se reconhecer. O trauma resultante do confronto com o outro no espaço público, lugar de confronto com o diferente, leva o sujeito a repetir, tentando, inutilmente, encontrar uma forma de lidar com ele e anulá-lo.

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