Sobre \"Uma Teoria da Justiça\" de John Rawls

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Índice


Índice 1

Prefácio 2

Introdução 4

Por que ler "Uma Teoria da Justiça" de John Rawls? 4

A questão do Direito e da Justiça 7

O que é Direito 7
1. Direito como justo 10
2. Direito como objetivação do justo no tempo - Direito Positivo 11
3. Direito como ciência 15
4. O Direito como instrumento decisório 16

O que é a Justiça 18

A Teoria da Justiça de John Rawls 28

Uma breve apresentação 29
O papel da Justiça 29
O objeto da Justiça 31
A idéia principal da teoria da justiça 33
Os princípios da justiça. 43

Uma teoria de Filosofia do Direito ou de Filosofia Política? 46
A justiça como objeto da Filosofia do Direito e da Filosofia Política.
46

É possível identificar o papel reservado para o Direito em "Uma Teoria da
Justiça" de John Rawls? 49

O neojusnaturalismo de Rawls 51

O Direito em "Uma Teoria da Justiça". 54

Dever e obrigação. 54

Obrigações e deveres naturais. 56

Justiça formal 57

A Constituição. 60

O Dever de obedecer à regra injusta, a Desobediência civil e a objeção de
consciência. 61

Conclusão - O Direito em Rawls 66

Bibliografia 70


















Prefácio






Conheci John Rawls através do livro "A Reconstrução dos Direitos
Humanos, um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt" da Companhia das
Letras de autoria do professor Celso Lafer, antes de começar a cumprir os
créditos do curso de mestrado em Filosofia do Direito da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo.

Voltei a encontrá-lo poucos anos depois, em companhia do professor
Tércio Sampaio Ferraz Jr, na disciplina "O Direito e as Formas de Justiça"
ministrada por este último já no curso de mestrado. Naquele semestre o
livro "Uma Teoria da Justiça", com tradução de Vamireh Chacon, publicado
pela Editora Universidade de Brasília, seria objeto de leitura dos alunos
da pós-graduação.

Também encontrei Rawls no livro de Álvaro de Vita, "Justiça Liberal
- Argumentos liberais contra o neoliberalismo", da Editora Paz e Terra.
Neste autor encontrei, inclusive, o que me pareceu ser o mesmo entusiasmo
que sentira diante dos dois princípios da justiça propostos por Rawls.

Até então eu ainda tinha a pretensão de defender uma tese de
mestrado sobre as correlações necessárias entre Justiça, Direito e
Democracia. Felizmente, para mim e para quem me lê agora, minha atenção
acabou sendo capturada pelo trabalho de Rawls.

Seus dois princípios de justiça social, de cunho eminentemente
igualitarista, envoltos em uma teoria neocontratualista, eram simples e
contundentes. Tocaram-me na alma, onde guardava meus princípios morais
básicos de tal forma, que desde a primeira leitura de "Uma Teoria da
Justiça", a teoria, em si, me pareceu desnecessária e redundante.

Essa é a graça do trabalho de Rawls, todo o seu esforço para dar
uma completude à sua teoria da justiça, todo seu esforço metodológico,
quiçá epistemológico, acaba sendo desnecessário para aqueles que
experimentam essa verdadeira sensação de revelação face aos dois princípios
propostos, e, no entanto, quanta munição, quanto pano para mangas, tem
oferecido aos seus críticos.

Rawls, ao publicar "Uma teoria da Justiça" em 1971, recolheu e
aprofundou seus trabalhos que vinham desde 1957, com a publicação de
"Justice as Fairness" (Journal of Philosophy - Outubro, republicado no ano
seguinte em Philosophical Review –Abril). E mesmo depois de publicado
aquele livro, seu trabalho foi constantemente revisto por ele para fazer
frente às inúmeras críticas que recebeu. Seu último livro, "Political
Liberalism" (publicado em português pela Martins Fontes recentemente),
retoma sua teoria da justiça para novas adequações. Nem por isso se lhe
poderá acusar de incoerência. A revisão de nossas teorias morais,
elaboradas a partir de princípios morais, digamos imanentes em nossas
personalidades, para a adequação e revisão de suas possíveis
incongruências, faz parte do método que Rawls denomina equilíbrio reflexivo
e que, juntamente com o princípio do contrato social seriam utilizados para
justificar a validade de sua teoria.

Entre os críticos de sua teoria, estão grandes nomes da Filosofia
Política deste século, Ronald Dworkin, Michael Walzer, Michael Sandel e
Robert Novick. Este fato já demonstra a importância da teoria de Rawls.

Por isso, este trabalho não consistirá em uma crítica à teoria da
justiça de Rawls, mas buscará antes, uma releitura do seu livro, buscando
identificar o papel que o autor reserva ao Direito em sua teoria.

Esta é uma perspectiva típica de quem é advogado por formação e
profissão, embuído daquele senso comum dos juristas, do qual fala Warat, e
com preocupações filosóficas.

Sou devedor confesso de vários autores em quem busco inspiração e
esclarecimentos, de quem utilizo conceitos e reproduzo passagens,
especialmente dos professores Celso Lafer e Tércio Sampaio de quem fui, sou
e continuarei sendo, aluno.

Não posso deixar de prestar meus agradecimentos também à minha
esposa, Regina Mara Massarente e meu filho, Rodrigo Massarente Favacho,
pela compreensão de minha ausência nas horas que estudo e trabalho
exigiram. Agradeço também aos meus pais, que me cercaram de conselhos e
dicas de metodologia do estudo científico e aos amigos que me ajudaram a
insistir na apresentação deste trabalho, especialmente a Rita Amaral,
antropóloga, que sempre teve a palavra exata de estímulo na hora certa.








Introdução






Por que ler "Uma Teoria da Justiça" de John Rawls?




"Uma Teoria da Justiça" de John Rawls, como demonstra Celso Lafer,
não é obra do acaso pois ela responde às necessidades práticas de uma
reflexão sobre as insuficiências do positivismo jurídico que marca tão
profundamente a experiência jurídica contemporânea[1]. É um "esforço de
reflexão que busca transcender, criticamente e por razões inspiradas pela
praxis do Direito, aos dados formais através dos quais se exprime o Direito
Positivo".

Este esforço coincide com a reação aos excessos praticados pelos
estados totalitários que escandalizaram os juristas e filósofos, provocando-
lhes o recurso "aos princípios gerais do direito, comuns a todos os povos
civilizados"[2], em prol de uma deontologia jurídica, como argumento para
ser contraposto ao Direito Positivo que legalizava e, por que não,
legitimava aqueles excessos.

Só que agora, não mais se irá apelar para um direito fundamentado
na natureza do homem, prefere-se fazer referência ora à natureza das
coisas, ora a princípios fundamentais de nossa civilização. Invocar-se-ão
igualmente os tópicos jurídicos, ou seja, considerações de toda espécie que
forneçam boas razões para redigir e interpretar os textos legais de modo
que sejam levados em conta.

Neste cenário, retoma--se, mais do que nunca, o grande desafio da
justiça substancial: a justificação das diferenças na distribuição dos
recursos naturais e dos poderes político e econômico. Com isso, o
utilitarismo volta para a pauta dos jurisfilósofos.

O Utilitarismo foi a teoria proposta para responder àquele desafio
ainda no século XIX, e tornou-se, com algumas adaptações, praticamente
hegemônica no século XX. Seus argumentos enquanto teoria da Justiça
aplicada à distribuição dos bens, todavia, são notoriamente incapazes de
justificar as diferenças especialmente pelo prisma dos menos favorecidos.
Este foi o problema que Rawls procurou enfrentar.

Tendo como pano de fundo o impasse na teoria ética anglo-americana
existente nos anos 50, o embate entre o utilitarismo e o intuicionismo,
como construir uma concepção abstrata de justiça que pudesse desempenhar o
papel social da justiça entendido como a base da obrigação social,
complementada por formas de argumentação publicamente reconhecidas como
válidas quando se trata de solucionar conflitos de justiça, adotada
inicialmente como um modus vivendi prudencial, mas que, se durar o
suficiente para mostrar seus efeitos benéficos para a cooperação social,
possa educar os indivíduos a cada vez mais se aperceberem como pessoas
morais, isto é, como pessoas dotadas de um senso de justiça e por isso
mesmo capazes de participar de uma sociedade concebida como um sistema
eqüitativo de cooperação social de tal forma que as pessoas passem a apoiar
as instituições sociais por razões primariamente morais? E, ainda, se
possível construir tal modelo abstrato, como justificá-lo de tal forma que
seu apelo de natureza intersubjetiva seja irresistível a todos e a cada um
dos envolvidos naquela sociedade?

Diante de tal impasse, Rawls teria se proposto a buscar um conceito
de racionalidade apriorístico que pudesse ser adotado tanto por
utilitaristas quanto por intuicionistas. É a partir desta perspectiva que
Rawls irá construir sua teoria sobre os pilares dos dois princípios que
apresenta: o primeiro, exigindo, em breves palavras, o mais extensivo
sistema de igualdade nas liberdades básicas e sobrepondo-se, em ordem
léxica, ao segundo, que exige que as desigualdades existam em benefício
daqueles menos favorecidos e vinculadas a posições e cargos abertos a
todos.

O sucesso , ou pelo menos a repercussão da obra de Rawls, observa
Bobbio, reside precisamente no esforço de inserir, na dinâmica do
contratualismo e de seus procedimentos, a justiça como fairness, eqüidade.
Com efeito, os dois princípios básicos de Rawls buscam estabelecer, nas
estruturas da sociedade, um equilíbrio apropriado entre pretensões opostas,
através da eliminação das distorções arbitrárias e das desigualdades dos
pontos de partida. Neste sentido, para Rawls o respeito às regras do jogo,
característico da legitimidade racional-legal, vai além da legitimação pelo
procedimento e da justiça como legalidade, pois tudo se vê continuamente
submetido ao escrutínio material da fairness[3]

Desta forma o estudo da obra de Rawls é importante para o
jurisfilósofo que, na perspectiva de uma deontologia do Direito, queira uma
proposta alternativa ao utilitarismo para uma justiça distributiva e ao
positivismo para uma filosofia do Direito.








A questão do Direito e da Justiça




Para a correta interpretação da teoria de Rawls e para que possamos
justificar a conclusão proposta por este trabalho quanto ao papel do
Direito naquela teoria, precisamos fazer um breve apanhado dos conceitos de
Direito e de Justiça, não nos esquecendo que estes conceitos já foram
unívocos e hoje se encontram bem distintos.

Nossa proposta não é esgotar o assunto ou dar-lhe a abrangência dos
manuais de introdução ao estudo do Direito. Limitaremo-nos a expor algumas
definições razoavelmente pacíficas, seguindo uma linha com vistas ao que
será apresentado como conclusão deste trabalho, na sua última parte.


O que é Direito


"O direito é um dos fenômenos mais notáveis da vida humana.
Compreendê-lo é compreender uma parte de nós mesmos. É saber em
parte porque obedecemos, porque mandamos, porque nos indignamos,
porque aspiramos mudar em nome de ideais, porque em nome de ideais
conservamos as coisas como estão. Ser livre é estar no direito e,
no entanto, o direito também nos oprime e nos tira a liberdade. Por
isso, compreender o direito não é um empreendimento que se reduz
facilmente a conceituações lógicas e racionalmente
sistematizadas... "Por tudo isso, o direito é um mistério, o
mistério do princípio e do fim da sociabilidade humana"[4].




Desde que um homem surge, posto diante de outro homem, põe-se o
Direito, como uma delimitação garantidora de atividades ou de poderes a
ambos atribuídos. Através da História, obedecendo a idéias diversas, o
homem vem realizando o Direito, vivendo regras jurídicas, em uma
experiência incessante e às vezes trágicas[5]. Por isso, o Direito é um
produto cultural, resultante do confronto entre as forças sociais, e sua
legitimidade decorre da coerência entre as normas de Direito Positivo e os
valores ideológicos maiores do grupo social. Apenas quando tal coerência se
realize, aquelas normas funcionarão como instrumento de organização social.
Não se realizando essa coerência, as mesmas normas não serão, senão,
expressão da ideologia de uma classe ou grupo social, atuando como
mecanismo de dominação social e de justificação do exercício do poder por
aquele grupo ou classe"[6].

Miguel Reale conceitua o Direito como "realidade histórico-cultural
tridimensional de natureza bilateral atributiva, ou, se quisermos
discriminar no conceito a natureza dos três elementos ou fatores examinado,
'na realidade histórico-cultural ordenada de forma bilateral atributiva
segundo valores de convivência', o que significa que a Jurisprudência tem
por objetivo fatos ordenados valorativamente em um processo normativo de
atributividade."[7]. "Deve ser concebido, no entanto, como atualização
crescente da Justiça, dos valores todos cuja realização possibilite a
afirmação de cada homem segundo sua virtude pessoal"[8]. Trata-se, como se
vê, de uma realidade espiritual (não natural, nem puramente psíquica, ou
técnico-normativa etc.), na qual e pela qual se concretizam historicamente
valores, ordenando-se as relações intersubjetivas consoante exigência
complementares dos indivíduos e do todo social. A integração de três
elementos na experiência jurídica (o axiológico, o fático e o técnico-
formal) revela-nos a precariedade de qualquer compreensão do Direito
isoladamente como fato, como valor ou como norma, e, de maneira especial, o
equívoco de uma compreensão do Direito como pura forma, suscetível de
albergar, com total indiferença, as infinitas e conflitantes possibilidades
dos interesses humanos[9]. Como conclui o grande filósofo brasileiro: "Só
uma apreciação de cunho axiológico, que leve em conta o caráter objetivo da
instância de valoração das relações sociais, poderá situar o Direito no
plano da conduta ética, e, ao mesmo tempo, reconhecer sua autonomia
ôntica"[10].

Ocorre que o conhecimento do Direito, como algo diferenciado dele,
é uma conquista tardia da cultura humana. Conforme explica Tércio Sampaio
Ferraz Jr. na sociedade grega primitiva o Direito - diké em grego, que
nomeava a deusa da Justiça - era o poder de estabelecer o equilíbrio
social, poder este dominado pelo elemento organizador, fundado,
principalmente, no princípio do parentesco. Nesta ordem, o estabelecimento
do que é de cada um, conforme a sua posição nas relações de parentesco
constitui uma forma maniqueísta de garantir uma rígida distribuição social
uma vez que o contraventor é imediatamente expulso da comunidade[11]. Com o
incremento do comércio e o surgimento dos mercados incipientes, exige-se
que o direito se manifeste através de fórmulas prescritivas de validade
permanente, que não se prendem necessariamente a relações de parentesco,
mas que reconhecem certas possibilidades de escolha, participação da vida
da cidade[12].

O Direito, como ordem, perde o seu caráter maniqueísta, isto é,
supera-se a visão primitiva do Direito como o bem, em oposição ao
antijurídico que se identifica com o mal. O tratamento dado ao
comportamento desviante encaminha-se agora para procedimentos decisórios
regulados, surgindo as formas de jurisdição. Essa progressiva
procedimentalização do Direito provoca, assim, o aparecimento de um grupo
especializado, com um papel social peculiar: os juristas, que desenvolvem
uma linguagem própria, com critérios seus, formas probatórias,
justificações independentes. Começa, com isso, uma separação entre o
exercício político, econômico, religioso do poder e o exercício do poder
argumentativo: nasce e se desenvolve a arte de conhecer, elaborar e
trabalhar o Direito. Assumindo o direito a forma de um programa decisório
em que são formuladas as condições para a decisão correta, surge a
possibilidade de o direito-objeto separar-se da sua interpretação, do seu
saber, das figuras teóricas e doutrinárias que propõem técnicas de
persuasão, de hermenêutica, que começam a distinguir entre lei, costumes,
folkways, moral, religião, etc.

Se tomarmos a palavra Direito e desdobrarmos as camadas de seu
conteúdo, verificaremos que ela se apresenta com quatro acepções
fundamentais, que assinalam quatro facetas de uma única realidade
indecomponível: o Direito como justo, o Direito como objetivação do justo
no tempo (ordenamento jurídico) o Direito como ciência e o Direito como
técnica de decisão de conflitos.


Direito como justo


Em primeiro lugar, o Direito é percebido como justo, ou seja, como
um sistema de valores subordinado ao valor de Justiça, valor que consiste
em servir aos demais valores na coexistência social, pois é próprio do
Direito criar as condições indispensáveis para que os indivíduos e grupos
possam realizar plenamente suas aspirações ou tendências no sentido do bem,
do belo, do útil, do verdadeiro ou do santo.

O Direito, à diferença da Moral, da Estética, não tem por fim um
valor específico que determine por si mesmo a ação humana, sem implicar a
vigência conseqüente de outros valores. O Direito tem como destino realizar
a Justiça, não em si, mas como condição de realização ordenada dos demais
valores, o que levou Miguel Reale a apontá-la como o 'valor
franciscano[13]', cuja valia consiste em permitir que os demais valores
jurídicos valham, com base no valor da pessoa humana, valor-fonte de todos
os valores.

Essa correlação essencial entre Direito e Justiça, entre o que o
homem vai realizando como jurídico e o que ele, através da história, se
propõe como justo que deve ser alcançado, exclui qualquer concepção formal
da Justiça.

Por ser perene atualização do justo, o Direito é condição primeira
de toda a cultura, e nisso reside a dignidade da Jurisprudência, podendo-se
conjeturar que a justiça implica "constante coordenação racional das
relações intersubjetivas, para que cada homem possa realizar livremente
seus valores potenciais visando a atingir a plenitude de seu ser pessoal,
em sintonia com os da coletividade"[14]


2. Direito como objetivação do justo no tempo - Direito Positivo




Em segundo lugar, tem-se o Direito como forma mais concreta, como
fato social, como "a objetivação do justo no tempo". Esta visão do Direito
dá ênfase ao Direito positivado, ao ordenamento jurídico, como determinação
do justo.

Como nos ensina Tércio Sampaio Ferraz Jr.[15], a partir do século
XIX o Direito passou a ser marcado pelo fenômeno da positivação, o qual se
caracteriza pela importância crescente da legislação escrita em relação à
costumeira, pelo aparecimento das grandes codificações, pela idéia de que
as normas jurídicas têm validade quando postas por decisão de autoridade
competente, por elas podendo ser mudadas no âmbito da mesma competência.
Esta idéia representou uma transformação importante no Direito Ocidental.
Antes do século XIX, o Direito era sobretudo ditado por princípios que a
tradição consagrava. O que sempre fora Direito era visto como pedra angular
do que devia continuar sendo o Direito. Se alguém queria propor uma mudança
tinha de se justificar, pois a própria mudança era vista como inferior à
permanência. Vivia-se, assim, numa sociedade relativamente estável, com
valores estáveis capazes de controlar, no seu grau de abstração, a pequena
complexidade social. As crises que culminaram na Revolução Francesa
acabaram por inverter esta posição. Numa sociedade tornada complexa, formas
difusas de controle são substituídas por instrumentos de atuação mais
rápida e efetiva. O predomínio progressivo do Direito Positivo, aquele que
era posto por decisão, começa a alastrar-se na medida em que era
instrumento ágil, o qual podia ser modificado ao sabor das necessidades e
das mudanças dos valores sociais. Em contraposição à flexibilidade então
dada pelo Direito Positivo, entra em cena o princípio da legalidade capaz
de dar certos parâmetros aos sistemas jurídicos dos Estados modernos então
em formação. A legalidade, num mundo em que a crença em princípios
abstratos, como, por exemplo, o Direito Natural, se desgastava, tornou-se,
então, a pedra angular que dava ao Direito e ao Estado aquele mínimo de
segurança e de certeza, numa situação em que a mudança passava a ser
superior à permanência.

Daí dizer-se, como o faz Bobbio[16], que entre os múltiplos
significados da palavra Direito, o mais estreitamente ligado à teoria do
Estado ou da Política é o do Direito como ordenamento normativo. Esse
significado abrange o conjunto de normas de conduta e de organização,
constituindo uma unidade e tendo por conteúdo a regulamentação das relações
fundamentais para a convivência e sobrevivência do grupo social, tais como
as relações familiares, as relações econômicas, as relações superiores de
poder, também chamadas de relações políticas, e ainda a regulamentação dos
modos e das formas através das quais o grupo social reage à violação das
normas de primeiro grau ou a institucionalização da sanção. Essas normas
têm como escopo mínimo o impedimento de ações que possam levar à destruição
da sociedade, a solução dos conflitos que a ameaçam e que tornariam
impossível a própria sobrevivência do grupo se não fossem resolvidos, tendo
também como objetivo a consecução e a manutenção da ordem e da paz social.
Se se juntar a isto, conforme ensina a tendência principal da teoria do
Direito, que o caráter específico do ordenamento normativo do Direito em
relação às outras formas de ordenamentos normativos, tais como a moral
social, os costumes, os jogos, os desportos e outros, consiste no fato de
que o Direito recorre, em última instância, à força física para obter a
respeito das normas, para tornar eficaz, como se diz, o ordenamento em seu
conjunto, a conexão entre Direito entendido como ordenamento normativo
coativo e política torna-se tão estreita, que têm nas mãos o poder
dominante em uma determinada sociedade, exercem o próprio domínio.

Desta conexão se tornou consciente a filosofia política e jurídica
que acompanha o nascimento do Estado moderno, que lhe interpreta e reflete
o espírito. Isso é patente desde Hobbes, através de Locke, Rousseau, Kant,
Hegel, Marx e até Max Weber e Kelsen, de modo a fazer aparecer a estrutura
jurídica e o poder político, o ordenamento e a força coativa, o momento da
organização do poder coativo e a importância do poder, que se serve da
organização da força para alcançar seus próprios fins. Enfim, Direito e
Estado nas acepções mais comuns dos termos como duas faces da mesma
medalha.

Este processo de convergência entre estruturas jurídicas e poder
político teve como conseqüência a redução do Direito ao Direito estatal (no
sentido de que não existe outro ordenamento jurídico além daquele que se
identifica com o ordenamento jurídico coativo do Estado) e, ao mesmo tempo,
a redução do Estado a um Estado jurídico (no sentido de que não existe o
Estado, senão como ordenamento jurídico). Com duas fórmulas simples e
simplificantes: a partir do momento em que nasce o Estado moderno como
Estado centralizador, unitário, unificante, que tende à monopolização
simultânea da produção jurídica (através da subordinação de todas as fontes
de produção do Direito, até aquela que é a própria do poder estatal
organizado, isto é, a lei) e do aparelho de coação (através da
transformação dos juizes em funcionários da coroa e da formação de
exércitos nacionais), pode-se dizer que não existe outro Direito além do
estatal e não existe outro Estado além do jurídico[17].

Tal processo é claro na passagem do estado de natureza para o
Estado Moderno em Hobbes, Locke e Rousseau. Se para Hobbes e Rousseau, no
estado de natureza não há que se falar em direito, seja porque para o
primeiro prevaleça a leis do mais forte e para o segundo, a natureza humana
seria isenta de vícios e paixões, para Locke o estado de natureza seria o
estado das relações jurídicas privadas, e a passagem para o Estado Moderno
seria acompanhada da passagem para o Direito Público.

Se considerarmos, enfim, os dois maiores teóricos do Estado Moderno
deste último século, Max Weber e Hans Kelsen, a tendência em identificar o
Direito, entendido como ordenamento coativo, com o qual o Estado, entendido
como aparelho através do qual os detentores do poder legítimo exercem seu
domínio, chega às suas extremas conseqüências. Para Weber, o grande Estado
moderno é o Estado em que a legitimidade do poder depende de sua
legalidade, isto é, do fato de que o poder se apresenta como derivado de um
ordenamento normativo constituído e aceito e se exerce segundo normas
preestabelecidas. À grande dicotomia a-histórica da filosofia política
jusnaturalista, entre sociedade natural e sociedade civil, Weber substitui
a dicotomia historicamente fundada entre poder tradicional e poder legal, à
qual, em termos jurídicos, corresponde a distinção não mais entre Direito
Privado ou Natural e Direito Público ou Positivo, e menos ainda entre não-
Direito e Direito, mas entre Direito consuetudinário, próprio da sociedade
patriarcal, e Direito legislativo próprio do Estado de Direito, onde,
aliás, o Direito legislativo representa, a respeito do Direito
consuetudinário, um Direito mais perfeito, mais "racional", não
diversamente do Direito público-positivo em relação ao Direito privado-
natural. Para Kelsen, o Estado não é nada fora do ordenamento jurídico.
Desde o momento em que o Estado é a organização da força monopolizada e
esta organização se exprime através de um ordenamento coativo - o
ordenamento específico normativo que é o Direito - Direito e Estado são
unum er idem e, aquilo a que se chama habitualmente poder político não é
mais do que poder que torna real um ordenamento normativo e faz deste
ordenamento um ordenamento efetivo e não imaginário. Weber e Kelsen
interpretam no fundo o mesmo fenômeno da convergência do Estado e do
Direito, embora olhando-o de dois pontos de vista diferentes. Weber, a
partir de um ponto de vista da juridificação do Estado, ou seja, do poder
estatal, que se racionaliza através de uma complexa estrutura normativa
articulada e hierárquica; Kelsen, a partir da estatização do Direito, ou
seja do sistema normativo que se realiza através do exercício do máximo
poder, que é o poder que se utiliza da força monopolizada[18].

Nesse processo de desenvolvimento do Estado Moderno assiste-se,
também, à redução de todas as fontes tradicionais do Direito à fonte única
da lei. Enquanto o Direito, em sentido estrito, a cada vez se torna mais
Direito estatal, o Direito estatal, em sentido estrito, se torna cada vez
mais Direito legislativo. Em síntese: ao processo de juridificação do
Estado se associa um processo de legificação do Direito. As manifestações
históricas mais relevantes deste processo são, de um lado, as Constituições
escritas que acompanham os grandes acontecimentos dos fins do século XVIII
- Revolução Americana e Revolução Francesa - e, de outro, as grandes
codificações.


3. Direito como ciência



A terceira acepção da palavra Direito equivale a Direito como
ciência de normas, ou seja, como compreensão racional, unitária e lógica,
do fato social que denominamos também Direito, e que os romanos chamam de
Jurisprudência, expressão feliz que devia ter sido conservada em seu
sentido pleno.[19]

O estudo do Direito como ciência não nos interessa para este
trabalho, por isso permito-me remeter à excelente obra do prof. Tércio
Sampaio Ferraz Jr., "A Ciência do Direito"[20].


4. O Direito como instrumento decisório




A primeira metade do século XX acentua as preocupações
metodológicas já presentes no século anterior. O início do século é
dominado por corrente que ou leva às preocupações do pandectismo ao seu
máximo aperfeiçoamento - por exemplo, na obra de Kelsen - ou a insistir
numa concepção renovada do saber jurídico, ligando-o à realidade empírica.
O jurista aparece como o teórico do Direito que procura uma ordenação dos
fenômenos a partir de conceitos gerais obtidos, para uns, mediante
processos de abstração lógica e, para outros, pelo reconhecimento de
institutos historicamente moldados e tradicionalmente mantidos.

É possível notar-se, neste momento, a preocupação de constituir
séries conceituais - como direito subjetivo, direito de propriedade,
direito das coisas, direito real limitado, direito de utilização das coisas
alheias, hipotecas etc. A característica deste tipo de teorização é a
preocupação com a completude, manifesta nas elaborações de tratados, onde
se atribui aos diferentes conceitos e à sua subdivisão em subconceitos uma
forma sistemática, o que deve permitir um processo seguro de subsunção de
conceitos menos amplos a conceitos mais amplos. A ciência dogmática do
direito constrói-se, assim , como um processo de subsunção dominada por um
esquematismo binário, que reduz os objetos jurídicos a duas possibilidades:
ou se trata disso ou se trata daquilo, construindo-se enormes redes
paralelas de seções. A busca, para cada ente jurídico, de sua natureza - e
esta é a preocupação com a natureza jurídica dos institutos, dos regimes
jurídicos etc. - pressupõe uma atividade teórica desse tipo, na qual os
fenômenos ou são de direito público ou de direito privado, um direito
qualquer ou é real ou é pessoal, assim como uma sociedade ou é comercial ou
é civil, sendo as eventuais incongruências ou tratadas como exceções
(natureza híbrida) ou contornadas por ficções.

Neste quadro, a ciência dogmática do direito, na tradição que nos
vem do século XIX, prevalecentemente liberal, na sua ideologia, e
encarando, por conseqüência, o direito como regras dadas (pelo Estado,
protetor e repressor), tende a assumir o papel de conservadora daquelas
regras, que, então, são por ela sistematizadas e interpretadas. Esta
postura teórica é denominada por Norberto Bobbio de teoria estrutural do
direito. Nela prevalece um enfoque que tende a privilegiar as questões
formais, como o problema mencionado da "natureza jurídica" dos institutos,
da coerência do ordenamento jurídico, do estabelecimento de regras de
interpretação, da conceituação analítica de noções básicas como obrigação,
responsabilidade, relação jurídica, sanção como retribuição negativa (pena,
castigo), sentido de ato lícito e ilícito, direito subjetivo etc. O enfoque
estrutural, em suma, é um enfoque a posteriori, que toma o direito dado e
procura as condições de sua aplicação.

Podemos dizer, neste sentido, que a ciência dogmática do direito
costuma encarar seu objeto, o direito posto e dado previamente, como um,
conjunto compacto de normas, instituições e decisões que lhe compete
sistematizar, interpretar e direcionar, tendo em vista uma tarefa prática
de solução de possíveis conflitos atomizados que ocorram socialmente. O
jurista contemporâneo preocupa-se, assim, com o direito que ele postula ser
um todo coerente, relativamente preciso nas suas determinações, orientado
para uma ordem finalista, que protege a todos indistintamente.[21].

Mas, como ensina Tércio Ferraz[22] O Direito continua resultando de
uma série de fatores causais, muito mais importantes até que a decisão,
como valores socialmente prevalecentes, interesses de fato dominantes,
injunções econômicas, políticas, etc. Ele não nasce da pena do legislador.
No entanto, a decisão do legislador, que não o produz, tem a função
importante de escolher uma possibilidade de regulamentação do comportamento
em detrimento de outras que, apesar disso, não desaparecem do horizonte da
experiência jurídica, mas ficam presentes, à disposição, toda vez que uma
mudança se faça oportuna. Esta situação modifica o status teórico da
Dogmática Jurídica. Esta não se preocupa com a determinação daquilo que
materialmente sempre foi Direito, com a finalidade de descrever aquilo que
pode ser o Direito (o que seria uma relação causal). Mas se ocupa com a
oportunidade de certas decisões tendo em vista aquilo que deve ser Direito
(relações de imputação). Neste sentido, seu problema não é primordialmente
uma questão de verdade, porém de decidibilidade. Ao envolver uma questão de
decidibilidade, a Dogmática Jurídica manifesta-se como pensamento
tecnológico. Este possui algumas características do pensamento científico
strictu sensu, na medida em que parte das mesmas premissas que este. No
entanto, seus problemas têm uma relevância prática - possibilitar decisões
- que exige uma interrupção na possibilidade de indagação das ciências em
geral (o que lhe daria uma característica zetética), no sentido de que a
tecnologia fixa seus pontos de partida e problematiza apenas a sua
aplicabilidade na solução dos conflitos. Portanto, conclui o professor
Tércio, "os enunciados dogmáticos, caracteristicamente, põem-se a serviço
da problemática da realizabilidade de modelos de comportamento, como são as
normas jurídicas, e das conseqüências da sua realização para a vida social,
e que também lhes dá um certo sentido crítico. Neste sentido, as doutrinas
jurídicas aparecem como verdadeiros sistemas tecnológicos que são, por sua
vez, base para uma certa racionalização da ação"[23].

Para finalizar, citamos, mais uma vez, a lição precisa de Miguel
Reale:

"Sendo o Direito um bem cultural, nele há sempre uma exigência
axiológica, atualizando-se na condicionalidade histórica, de
maneira que a objetividade do vínculo jurídico está sempre ligada
às circunstâncias de cada sociedade, aos processos de opção ou de
preferência entre os múltiplos caminhos que, como vimos, se
entreabrem no momento de qualquer realização de valores. Põe-se,
assim, no âmago da experiência jurídica a problemática do Poder,
que procura assegurar por todos os modos, inclusive pela força
física, a realização do Direito"[24].

"Temos, assim, de maneira geral, a sociedade como condição do
Direito, a Justiça como fim último, a bilateralidade atributiva
como forma ordenatória específica, e o Poder como garantia de sua
atualização"[25].





O que é a Justiça


Para o jurisfilósofo a questão anterior, 'O que é Direito?', não
pode prescindir da análise da questão 'O que é Justiça?'.

No entanto, como conceituar Justiça, algo que se sente, mas que
dificilmente se define?

Quem afirma algo como justo, expressa com isto sua concordância, e
quem afirma algo como injusto expressa sua recusa; em ambos os casos,
pressupõe que sua afirmação não significa uma pura sensação de agrado ou
desagrado, mas, muito antes, um julgamento objetivo na medida em que reside
na coisa. "Justo" ou "injusto" são predicados de um juízo de valor objetivo
com que expressamos algo como de acordo com a justiça (legítimo) ou bom e
correto, respectivamente (ilegítimo), ou falso, ruim, talvez até mau;
"justo" serve ao apoio e à legitimação de uma coisa objetiva ou considerada
como objetiva; "injusto" serve à recusa objetiva ou ao menos pensada como
objetiva. O objeto que avaliamos como justo ou injusto é a práxis humana em
seus diversos aspectos: a ação, os sujeitos, as regras, os sistemas de
regras de ação e as instituições em cujo âmbito se desenrola todo o
comportamento humano. Nisto se aceita como evidente que este objeto pode
ser assim e também de outro modo, e que ele depende da vontade mediata e
imediatamente no seu modo próprio de ser de sujeitos imputáveis[26]. "Quem
pergunta por uma definição de justiça, busca, via de regra, um conceito
normativo no sentido de um critério para o justo e o injusto. Para
determinar um tal conceito, pode-se partir primeiramente das opiniões
correntes. Este procedimento empírico no sentido amplo esbarra contudo, na
dificuldade de que as opiniões sobre o que é justo e injusto divergem
muito"[27].

Sabemos o que é Justiça, intuitivamente, quando nos vemos em face
da sua negação, ou seja, quando sofremos ou presenciamos uma injustiça, ou
como John Rawls diz em seu livro "Uma Teoria da Justiça": "As questões de
Justiça surgem quando são apresentadas reivindicações contrastantes sobre
planejamento de uma atividade e se admite previamente que cada um
defenderá, enquanto isso lhe for possível, o que ele considera ser seu
direito" (Rawls, A Theory...pág. 172). Assim, também por intuição sabemos
que o conceito de Justiça está estreitamente ligado não apenas ao conceito
de bem, mas, ainda, ao de Direito, no sentido de direito legal e moral.

Mas como definir o que é Justiça de tal maneira que todos tenhamos
a medida exata do que é justo e possamos pautar nossos caminhos, nossas
condutas por esta medida? E em que ponto Justiça e Direito estão
relacionados?

Várias são as acepções do que é a Justiça na história e a cada uma
delas corresponde uma visão do Direito.

Já para os Pitagóricos ou Itálicos - os quais podem ser
considerados os iniciadores da Filosofia do Direito - a Justiça consiste
essencialmente numa igualdade. Esta concepção, que para eles teve o valor
como que de uma descoberta, constitui de fato uma aquisição nunca mais
perdida e, ao mesmo tempo, um ponto de partida para as especulações
sucessivas. Na verdade, a igualdade é relação que se aplica a todas as
espécies de realidade cognoscível; é um instrumento lógico do pensamento,
uma categoria" [28].

Muitos gregos, inclusive os grandes trágicos e alguns filósofos pré-
socráticos, consideraram a Justiça num sentido bastante geral: algo é justo
quando a sua existência não interfere na ordem a que pertence. Nesse
sentido, a Justiça assemelha-se muito à ordem ou à medida. Toda realidade,
inclusive os seres humanos, deve ser governada pela Justiça. O jus é o que
diz a Deusa Justitia (correspondente, com algumas diferenças, à Deusa grega
Dikê que gera o Direito declarando-o - díkaion)[29]

Os sofistas, realizando que conceito de justo era algo variável,
estabeleceram a diferenciação entre o que é "por natureza" e o que é "por
convenção". A tendência entre os sofistas foi considerar que a Justiça é
"por convenção", ou seja, que algo é justo quando se acorda que é justo, e,
é injusto quando se acorda que é injusto.

Esta dicotomia da Justiça entre algo pressuposto e algo posto,
resume a questão que os jurisfilósofos travam até nossos dias.

Platão, que se interessou pela Justiça como virtude e como
fundamento da constituição da cidade-estado, bem como da estabilidade e da
ordem social, em oposição aos sofistas declarou no Górgias que a Justiça é
condição da felicidade. Em particular, Platão opõe-se à concepção do
sofista Trasímacos, o qual afirmava que o que se chama de 'Justiça' é um
modo de servir a seus próprios interesses que são interesses do que tem ou
dos que têm o poder. Pela boca de Sócrates, Platão trata de desmontar os
argumentos de Trasímacos no Livro II da República. Platão trata de fazer
ver que o homem justo é feliz. Isto poderia levar a pensar que, se se quer
ser feliz é preciso ser justo, o que equivaleria a subordinar a Justiça à
felicidade. A Justiça é, entretanto, uma virtude tão elevada que, levando
as coisas a um extremo, caberia inclusive sustentar que cumpre ser justo,
aconteça o que acontecer, mesmo que o exercício da Justiça venha a produzir
a infelicidade. Fiat iustitia, perit mundus, "faça-se Justiça, ainda que
pereça o mundo". Platão parece retroceder ante essa possível conseqüência
extrema. Para ele, numa sociedade justa, há Justiça para todos. Se a
sociedade justa é uma sociedade feliz, então todos os membros da sociedade
serão justos e felizes. Sua Justiça e sua felicidade são a Justiça e a
felicidade da comunidade inteira, da cidade-estado em conjunto. Neste
sentido, não se pode dizer que, para Platão, a Justiça seja uma das coisas
que têm más conseqüências. Por isso, é uma das coisas ou bens que são
desejáveis por si mesmos e por seus resultados.

Aristóteles identificava a Justiça, em seu sentido mais amplo, como
"completa virtude e como excelência no verdadeiro sentido da palavra"
(Ética, 1.130a). O mesmo Aristóteles, entretanto, estava mais interessado
em considerar o tipo de Justiça "que é parte da virtude" (ibid.). Neste
sentido mais restrito e mais comum, falamos de justo e injusto "quando nos
ocupamos não da conduta de um determinado indivíduo mas do modo como
tratamos classes de indivíduos quando temos que distribuir entre eles ônus
ou benefícios... Justo ou injusto são formas mais específicas de crítica
moral do que o são bom e mau ou moralmente bom e moralmente mau" (H. L. A.
Hart, Il concetto di diritto, p. 154)[30].

"Aristóteles, na acerba polêmica travada com os Pitagóricos, parte
precisamente da definição por eles proposta com o fim de tentar aperfeiçoá-
la e distingue várias espécies de igualdade, segundo os tipos da proporção
aritmética e da proporção geométrica. Na verdade, na vastíssima obra
aristotélica as considerações sobre a Justiça são tantas, e de tal modo se
entrelaçam no emaranhado de distinções sem conta (que deveriam dar ensejo
às distinções ainda numerosas excogitadas pelos Escolásticos), que nenhuma
doutrina sobre a matéria pode, ainda em nossos dias, prescindir dos
elementos outrora meditados pelo Estagirita... A parte mais elaborada de
sua doutrina, relativa às várias espécies de proporções ou igualdades
(donde a distinção da Justiça em distributiva, corretiva ou comutativa,
etc.), é, na verdade, a parte menos essencial, e a menos idônea para
alcançar a definição conceitual"[31].

Na Política, Aristóteles aceita grande parte das idéias de Platão
no que se refere à Justiça. Pensa, como Platão, que a função primordial da
Justiça encontra-se no âmbito do Estado. Mas introduz várias noções que
exerceram grande influência. Divide a Justiça em "Justiça distributiva",
que consiste na "distribuição de honrarias, fortunas e todas as demais
coisas que cumpre repartir entre os que participam da constituição (já que
em tais coisas é possível que cada um tenha uma participação desigual ou
igual à de outro)"; e "Justiça comutativa" ("corretiva" ou "retificativa"),
que "regula as relações tanto voluntárias quanto involuntárias de uns
cidadãos com outros" (Ética a Nicômaco, V, 1130 b 30).

Enquanto nas concepções gregas clássicas a Justiça é uma virtude,
no sentido de agir em conformidade com a ordem natural e constitui o
elemento fundamental da organização da sociedade, nas concepções cristãs a
ordem natural é representada pela vontade/razão divina e é realizada na
caridade e na misericórdia. Para Santo Agostinho por exemplo, o essencial é
amar. Depois de amar, pode-se fazer "o que quiser", pois não há perigo que
seja injusto o que se fizer.

Mas o primado da caridade não significa que os autores medievais
prescindiram da noção de Justiça, como se esta tivesse ficado inteiramente
absorvida na misericórdia. Santo Tomás, por exemplo, considerou a Justiça
como um modo de regulamentação fundamental das relações humanas. Seguindo
Aristóteles, São Tomás fala de três classes de Justiça: a comutativa,
baseada na troca e reguladora das relações entre os membros de uma
comunidade; a distributiva, que estabelece a participação dos membros de
uma comunidade nesta e regula as relações entre a comunidade e seu membros;
e a legal ou geral, que estabelece as leis a que se tem de obedecer e
regula as relações entre os membros e a comunidade.

Até este momento, a Justiça e o Direito se confundem. Dizer o
Direito é, também, dizer o que é justo. A justiça e o Direito determinam o
bem e o mal, a boa e má conduta, de acordo com a ética e a moral.

Com a erosão do paradigma do Direito Natural pelo historicismo e
cientificismo dos séculos XVII e XVIII, deu-se passagem às concepções
formalistas do Direito que causaram a ruptura entre Justiça e Direito.
Justiça e Direito não mais sinônimos. Dizer o direito passa a significar,
dizer o quid sit juris, ou seja, o que está de acordo com as leis.

Neste sentido, a antítese "Direito positivo-direito natural" que
opõe o respeito à lei ao respeito à justiça, concebida de outro modo que a
de conformidade à lei, data apenas do século XIX[32].

Anteriormente, não se havia cogitado em que os fatos de dizer o
Direito e de administrar a Justiça não fossem sinônimos.

É verdade que a aplicação pura e simples da lei podia ter
conseqüências iníquas, ou inaceitáveis, mas cada uma das tradições de que
se formou a civilização do Ocidente soubera encontrar um modo de sair do
embaraço[33].

Foi o positivismo jurídico, durante o século que separa Austin de
Kelsen, que não só descartou qualquer possibilidade de Direito Natural, mas
mesmo que a lei possa ser confrontada com o problema da Justiça. Os
juristas têm como única preocupação a legalidade, dizem o que é ou não é
conforme ao Direito. Quanto à Justiça, por certo ela é uma categoria
importante, mas não se relaciona com o Direito Positivo: diz respeito à
moral e à religião.

O positivismo descarta o Direito Natural como uma incursão indevida
da idéia de Justiça no funcionamento do Direito com o intuito de limitar o
poder do legislador. Para o positivismo jurídico, a Justiça conforme ao
Direito é a Justiça tal como foi precisada pelo legislador.

A Justiça é concebida, então, como um ingrediente dentro do caráter
formal de ditas leis. Pode-se chamar a isso de "concepção formal (ou
positiva) da Justiça", cuja preocupação se centrará na legitimidade das
leis.

A justiça formal, contudo, não resolve a questão mais tormentosa da
Justiça, qual seja, a da distribuição dos recursos naturais entre as
pessoas (o que chamaremos, em contraposição à justiça formal, de justiça
substancial), como aponta Otified Höffe: "se tivermos presente a
multiplicidade dos problemas que julgamos de acordo com os pontos de vista
da justiça, então chama atenção que o relativismo jurídico-ético só
conceitua em parte: a justiça de fato controvertida em questões de
distribuição."[34]..

A distribuição dos recursos naturais, por ser desigual, sempre
capturou a atenção dos estudiosos da Justiça.

Juntamente com a questão da distribuição dos recursos naturais,
surge a questão da distribuição do poder econômico e do poder político.
Justificar ou condenar a desigualdade é especialmente importante para
aqueles filósofos que tomam o igualitarismo como base para seus conceitos
de Justiça. Como outra face da mesma moeda, podemos afirmar que existe uma
presunção em favor do igualitarismo quando se trata de distribuição de
bens. De fato, distribuir desigualmente bens entre as pessoas, sem um
forte argumento que explique e legitime a diferença do tratamento, é um
paradigma da injustiça.

Muitos critérios foram propostos para uma distribuição justa dos
bens: de acordo com a contribuição de cada pessoa, de acordo com o esforço,
de acordo com a necessidade, de acordo com os méritos da pessoa e assim por
diante.

Mas é possível identificar quais os critérios da justiça
substancial?

O cognitivismo diz que sim.

Para os cognitivistas intuicionistas pode ser demonstrada a verdade
de determinados princípios morais de uma maneira geral e da Justiça
substancial em especial com base na intuição, quer moral (Platão), quer
religiosa (Santo Agostinho), quer ainda racional (Santo Tomás de Aquino). A
maior parte dos teóricos do direito natural são intuicionistas do terceiro
tipo. Neles encontramos dois exemplos modernos de intuicionismo aplicado à
Justiça. Del Vecchio afirma que "a idéia e o sentimento" da Justiça (cap.
VII) podem ser "concluídos por dedução a partir de uma consideração
transcendental da própria natureza humana" (cap. VIII), a qual, por sua
vez, implica a "nossa fé na existência de outras pessoas" (alteridade)
(cap. VII) uma fé que "brota de uma íntima necessidade do espírito... e não
é tema ligado à representação empírica deste ou daquele indivíduo" (ibid).

Os naturalistas defendem que as normas de Justiça substancial podem
derivar de generalizações empíricas ou teleológicas (Aristóteles) ou
definições descritivas de termos éticos (Bentham).

Alguns não-cognitivistas como Hobbes negam que "justo" e "injusto"
tenham qualquer significado, salvo quando são usados como sinônimos de
"legal" e de "ilegal". Todavia, a maior parte dos não-cognitivistas não
considera sem significado falar de leis justas e injustas, mas defende que
tais termos de valor não têm nenhum significado descritivo mas apenas
emotivo. Por conseqüência, a expressão de um juízo intrínseco de valor como
"o sufrágio universal é justo" exprime o compromisso moral de quem o
declara, mas não faz afirmação nem verdadeira nem falsa. Hume é o
representante clássico deste ponto de vista metaético e como exemplos
modernos pode ser citado Hans Kelsen.

Rawls pode ser considerado como um tipo de intuicionista de
tendência racional combinado com um renascimento da teoria do contrato
social, por acreditar que se possa verificar, mediante certos artifícios
metodológicos (v.g. a posição original e o véu de ignorância), critérios
racionais de justiça substancial, apriorísticos.








A Teoria da Justiça de John Rawls




John Rawls nasceu em Baltimore, nos Estados Unidos da América, em
21 de fevereiro de 1921 e durante muitos anos lecionou nas Universidades de
Princeton e Cornell, no Massachusetts Institute of Technology e, a partir
de 1959, na conceituada Harvard University.

O livro "A Theory of Justice"de John Rawls, de 1971 é o resultado
da compilação de vários de seus artigos anteriormente publicados: "Justice
as Fairness" (1958), "Distributive Justice: Some Addenda" (1968),
"Constitutional Liberty" (1963), "Distributive Justice" (1967), "The
Justification of Civil Disobedience" (1969).e "The Sense of Justice"
(1963), principalmente, e está dividido em três partes: Teoria,
Instituições e Objetivos. Rawls assim justifica a divisão da sua obra: "as
três partes da exposição desta teoria tem como intuito formar um todo
unificado, cada uma apoiando a outra mais ou menos deste modo"[35]. A
primeira parte apresenta os elementos essenciais da estrutura teórica, e
argumenta a favor dos princípios da justiça com base em estipulações
razoáveis concernentes à escolha dessas concepções. Na segunda parte, são
examinados os tipos de instituições prescritos pela justiça e os tipos de
deveres e obrigações que ela impõe aos indivíduos. Aqui Rawls inclui a
discussão sobre a desobediência civil e a objeção de consciência. Por fim,
Rawls pretende, na terceira parte, examinar se a justiça como eqüidade é
uma concepção viável.

Para a apresentação da teoria da justiça de Rawls nos reportaremos,
por enquanto, à primeira parte de seu livro. Deixaremos a segunda e a
última partes para serem apreciadas adiante, quando nos concentrarmos na
questão do papel do Direito na teoria da justiça de Rawls.


Uma breve apresentação


O papel da Justiça


Para Rawls, a justiça é a primeira virtude das instituições
sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento, de tal sorte que,
se uma teoria deve ser rejeitada ou revisada se não é verdadeira, da mesma
forma leis e instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam,
devem ser reformadas ou abolidas se são injustas (Rawls, pág. 3).

Posta esta premissa, Rawls afirma que cada pessoa possui uma
inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade
como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda de
liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros.
Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que
um total de vantagens maior desfrutadas por muitos. Portanto, numa
sociedade justa as liberdades de igual cidadania são tidas por invioláveis;
os direitos assegurados pela justiça não são objetos de barganha política
ou de cálculo dos interesses sociais. Uma injustiça só poderá ser tolerada
quando for necessária para evitar uma injustiça ainda maior (Rawls, pág.
4).

Segundo Rawls, estas duas proposições parecem expressar nossa
convicção intuitiva sobre a primazia da justiça. Assim, Rawls pretende, a
partir destas duas premissas elaborar uma teoria à luz da qual elas possam
ser interpretadas e avaliadas.

Para tanto, Rawls parte da verificação do papel dos princípios da
justiça.

Rawls identifica, então, dois papéis básicos para os princípios da
justiça: estabelecer direitos e deveres para tornar a cooperação social
possível e servir de vínculo de convivência, através do qual os membros de
uma determinada sociedade reconhecem e têm reconhecidos direitos,
mutuamente.

Segundo o Autor, a sociedade é um empreendimento cooperativo
visando vantagens mútuas, mas marcada por um conflito bem como por uma
identidade de interesses. Há uma identidade de interesses porque a
cooperação social possibilita que todos tenham uma vida melhor da que teria
qualquer um dos membros se cada um dependesse de seus próprios esforços. Há
um conflito de interesses porque as pessoas não são indiferentes no que se
refere a como os benefícios maiores produzidos pela colaboração mútua são
distribuídos, pois para perseguir seus fins cada um prefere uma
participação maior a uma menor. Destarte, exige-se um conjunto de
princípios para escolher entre várias formas de ordenação social que
determinam essa divisão de vantagens e para selar um acordo sobre as partes
distributivas adequadas. Esses princípios são os princípios da justiça
social: eles fornecem um modo de atribuir direito e deveres nas
instituições básicas da sociedade e definem a distribuição apropriada dos
benefícios e encargos da cooperação social, por outras palavras, esses
princípios determinam quais semelhanças e diferenças entre as pessoas são
relevantes na determinação de direitos e deveres e especificam qual divisão
de vantagens é apropriada (Rawls, pág. 4 e 6).

Atribuídos os direitos e deveres nas instituições básicas da
sociedade e definida a distribuição dos benefícios e encargos da cooperação
social, há de se estabelecer, ainda, os vínculos de convivência cívica
entre os cooperantes, vale dizer, um ponto de vista comum a partir do qual
suas reivindicações podem ser julgadas. Este vínculo é o princípio público
de justiça. Rawls afirma que uma sociedade bem ordenada não é apenas aquela
que está planejada para promover o bem de seus membros, mas é aquela também
efetivamente regulada por esta concepção pública de justiça que 1) todos
aceitam e sabem que os outros a aceitam e, 2) as instituições sociais
básicas geralmente satisfazem, e geralmente se sabe que satisfazem.

Assim, conclui Rawls, parece natural pensar no conceito de justiça
como sendo distinto das várias concepções de justiça e como sendo
especificado pelo papel que esses diferentes conjuntos de princípios, essas
diferentes concepções, têm em comum. Ou seja, a concepção de que é justo
ter critérios de distribuição de benefícios e encargos é diferente da
concepção do que é justo de acordo com determinado critério distributivo.

Rawls, inclusive adverte: "não podemos, em geral, avaliar uma
concepção da justiça unicamente por seu papel distributivo, por mais útil
que ela seja na identificação do conceito de justiça. Precisamos levar em
conta suas conexões mais amplas; pois embora a justiça tenha uma certa
prioridade, sendo a virtude mais importante das instituições, ainda é
verdade que, em condições iguais, uma concepção da justiça é preferível a
outra quando suas conseqüências mais amplas são mais desejáveis" (Rawls,
pág. 7).


O objeto da Justiça


Como lembra Rawls, muitas espécies diferentes de coisas são
consideradas justas e injustas: não apenas as leis, as instituições e os
sistemas sociais, mas também determinadas ações de muitas espécies,
incluindo decisões, julgamentos e imputações. Mas o que importa para o
Autor é a questão da justiça social. Para ele, o objeto primário da justiça
é a estrutura básica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual
as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres
fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação
social.

Por instituições mais importante Rawls quer dizer a constituição
política e os principais acordos econômicos e sociais. A estrutura básica é
o objeto primário da justiça porque seus efeitos são profundos e estão
presentes desde o começo. A noção intuitiva é a de que esta estrutura
contém várias posições sociais e que homens nascidos em condições
diferentes têm expectativas de vida diferentes, determinadas, em parte,
pelo sistema político bem como pelas circunstâncias econômicas e sociais.
Assim as instituições da sociedade favorecem certos pontos de partida mais
que outros. Essas são desigualdades especialmente profundas. Não apenas são
difusas, mas afetam desde o início as possibilidades de vida dos seres
humanos; contudo, não podem ser justificadas mediante um apelo às noções de
mérito ou valor. É a essas desigualdades, supostamente inevitáveis na
estrutura básica de qualquer sociedade, que os princípios da justiça social
devem ser aplicados em primeiro lugar. Esses princípios, então, regulam a
escolha de uma constituição política e os elementos principais do sistema
econômico e social. A justiça de um esquema social depende essencialmente
de como se atribuem direitos e deveres fundamentais e das oportunidades
econômicas e condições sociais que existem nos vários setores da sociedade
(Rawls, A Theory..., pág. 07).

Rawls avisa que esses princípios podem não funcionar para regras e
práticas de associações privadas ou para aquelas de grupos sociais menos
abrangentes. Podem ser irrelevantes para os diversos usos informalmente
consagrados e comportamentos do dia-a-dia; podem não elucidar a justiça, ou
melhor talvez, a eqüidade de organizações de cooperação voluntária ou
procedimentos para obter entendimentos contratuais. As condições para o
direito internacional talvez exija princípios diferentes descobertos de um
modo um pouco diferente. Mas Rawls se dá por satisfeito se for possível
formular uma concepção razoável da justiça para a estrutura básica da
sociedade concebida (em princípio) como um sistema fechado, isolado de
outras sociedades (A Theory..., pág. 9).

Rawls lembra que o ponto que se deve ter em mente é que a concepção
da justiça para a estrutura básica tem valor intrínseco. Não deveria ser
descartada só porque seus princípios não são satisfatórios em todos os
casos. Deve-se considerar, então, que uma concepção de justiça social
fornece primeiramente um padrão pelo qual se devem avaliar aspectos
distributivos da estrutura básica da sociedade. Este padrão, porém, não
deve ser confundido com os princípios que definem outras virtudes, pois a
estrutura básica e as organizações sociais em geral podem ser eficientes ou
ineficientes, liberais ou não liberais, e muitas outras coisas, bem como
justas ou injustas. Uma concepção completa, definidora de princípios para
todas as virtudes da estrutura básica, juntamente com seus respectivos
pesos quando conflitantes entre elas, é mais que uma concepção da justiça;
é um ideal social. Os princípios da justiça são apenas uma parte, embora
talvez a mais importante, de uma tal concepção.

Assim, o objeto de "Uma Teoria da Justiça", segundo seu autor, não
é o equilíbrio adequado entre reivindicações concorrentes, mas sim uma
concepção de justiça como um conjunto de princípios correlacionados com a
identificação das causas principais que determinam esse equilíbrio. Rawls
considera que o conceito de justiça se define pela atuação de seus
princípios na atribuição de direito e deveres e na definição da divisão
apropriada de vantagens sociais. Uma concepção da justiça, nos diz, é uma
interpretação dessa atuação.

O primeiro objeto dos princípios da justiça social é a estrutura
básica da sociedade, a ordenação das principais instituições sociais em um
esquema de cooperação. Vimos que esses princípios devem orientar a
atribuição de direitos e deveres nessas instituições e determinar a
distribuição adequada dos benefícios e encargos da vida social. Os
princípios da justiça para instituições não devem ser confundidos com os
princípios que se aplicam aos indivíduos e às suas ações em circunstâncias
particulares. Esses dois tipos de princípios se aplicam a diferentes
sujeitos e devem ser discutidos separadamente.

E o que Rawls entende por instituições?

Instituições, para ele, são um sistema público de regras que define
cargos e posições com seus direitos e deveres, poderes e imunidades, etc.
Essas regras especificam certas formas de ação como permissíveis, outras
como proibidas; criam também certas penalidades e defesas, e assim por
diante, quando ocorrem violações. Pode-se consider uma instituição de dois
modos: primeiro, como um objeto abstrato, ou seja, como uma forma possível
de conduta expressa por um sistema de regras; segundo, como a realização
das ações especificadas por essas regras no pensamento e na conduta de
certas pessoas em uma dada época e lugar. Há uma ambigüidade, portanto,
quanto ao que é justo ou injusto: a instituição como realização concreta ou
a instituição como um objeto abstrato. Parece melhor dizer que justa ou
injusta é a instituição concreta e administrada efetiva e imparcialmente. A
instituição como um objeto abstrato é justa ou injusta na medida em que
qualquer realização concreta dela poderia ser justa ou injusta.


A idéia principal da teoria da justiça


Rawls apresenta sua teoria como uma concepção da justiça que
generaliza e leva a um plano superior de abstração a conhecida teoria do
contrato social como se lê em Locke, Rousseau e Kant, mas cujo objetivo não
é introduzir uma sociedade particular ou estabelecer uma forma particular
de governo, mas definir princípios de justiça norteadores para a estrutura
básica da sociedade. Para Rawls, são esses princípios que pessoas livres e
racionais, preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitariam
numa posição inicial de igualdade como definidores dos termos fundamentais
de sua associação. Esses princípios devem regular todos os outros acordos
subseqüentes; especificam os tipos de cooperação social que podem assumir e
as formas de governo que se podem estabelecer. A maneira de considerar os
princípios da justiça, Rawls chama de fairness o que traduziremos por
eqüidade.

Rawls diz que devemos imaginar que aqueles que se comprometem na
cooperação social escolhem juntos, numa ação conjunta, os princípios que
devem atribuir os direitos e deveres básicos e determinar a divisão de
benefícios sociais. Os homens devem decidir de antemão como devem regular
suas reivindicações mútuas e qual deve ser a carta constitucional de
fundação de sua sociedade. Como cada pessoa deve decidir com o uso da razão
o que constitui o seu bem, isto é, o sistema de finalidades que, de acordo
com sua razão, ela deve buscar, assim um grupo de pessoas deve decidir de
uma vez por todas tudo aquilo que entre elas se deve considerar justo e
injusto. A escolha que homens racionais fariam nessa situação hipotética de
liberdade eqüitativa, pressupondo por ora que esse problema de escolha tem
uma solução, determina os princípios da justiça.

Na justiça como eqüidade, segundo Rawls, a posição original de
igualdade corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do
contrato social. Essa posição original não é, obviamente, concebida como
uma situação história real, muito menos como uma condição primitiva da
cultura. É entendida como uma situação puramente hipotética caracterizada
de modo a conduzir a uma certa concepção de justiça. Entre as
características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém
conhece seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou o status social
e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades
naturais, sua inteligência, força e coisas semelhantes. É o que Rawls vai
denominar o véu de ignorância sob o qual os princípios da justiça são
escolhidos, o que garante, para ele, que ninguém é favorecido ou
desfavorecido na escolha dos princípios pelo resultado do acaso natural ou
pela contingência de circunstâncias sociais.

A justiça como eqüidade começa, assim, com uma escolha das mais
genéricas dentre todas as escolhas que as pessoas podem fazer em conjunto,
especificamente, a escolha dos primeiros princípios de uma concepção da
justiça que deve regular todas as subseqüentes críticas e reformas das
instituições.

Esta escolha segundo Rawls, corresponderia a um juízo do tipo
maximum minimorum, ou maximin, pelo qual as pessoas, desconhecendo sua
verdadeira situação, escolheriam, dentro de um princípio conservador, vale
dizer, avesso a riscos, entre as várias composições da estrutura social
básica, aquela que reservasse, para a sua posição social mais desvantajosa,
comparativamente com as outras composições de estrutura social básica
possíveis, as melhores condições. É a escolha da melhor entre as piores
situações à quais as pessoas estariam eventualmente sujeitas a encontrarem-
se quando levantado o véu da ignorância lançado sobre elas na posição
original.

Por outro lado, os princípios de justiça consistem numa aproximação
dos nossos juízos ponderados, dentro da técnica que Rawls chama de
reflexive equilibrium.

Por trás do método do equilíbrio reflexivo proposto por Rawls
estaria uma idéia, tão simples quanto persuasiva, que Robert Paul Wolf
aclamará como uma das mais adoráveis idéias na história da teoria social e
política. Se procuramos princípios que orientem a distribuição de recursos
sociais escassos, isso é, algo que não pode ser encontrado no próprio
âmbito distributivo, em que nossa convicções morais são vacilantes, essa
orientação deverá ser procurada em uma dimensão da vida comum em que nossas
convicções sejam mais firmes. Essa dimensão é a das práticas democráticas e
das idéias e valores que fundamentam essas práticas, sobretudo a idéia de
que a atribuição de direitos civis e políticos iguais aos indivíduos nada
tem a ver com concepções de mérito e sim com a noção de um valor intrínseco
igual a todos os seres humanos. É nessa idéia de uma igualdade humana
fundamental do ponto de visa moral, central ao ideal democrático, que
devemos procurar orientação para conceber princípios que se apliquem a
conflitos distributivos. São nossas intuições e convicções morais muito
mais firmes, que justificam a adoção da democracia no plano político, que
podem orientar a concepção de princípios de justiça social. O método do
equilíbrio reflexivo nada mais é do que uma forma de estender o alcance
dessas intuições e convicções para a reflexão prática que se aplica ao
âmbito de problemas distributivos.

Dworkin também presta reverência à metodologia do equilíbrio
reflexivo utilizado por Rawls[36]:

The technique (of equilibrium) assumes that Rawls's readers have a
sense, which we draw upon in our daily life, that certain
particular political arrangements or decision, like conventional
trials, are just and other, like slavery, are unjust. It assumes,
moreover, that we are each able to arrange these immediate
intuitions or convictions in an order that designates some of them
as more certain than others. Most people, for example, think that
is more plainly unjust for the state to execute innocent citizens
of its own than to kill innocent foreign civilians in war. They
might be prepared to abandon their position on foreign civilians in
war, on the basis of some argument, but would be much more
reluctant to abandon their view on executing innocent countrymen.
It is the task of moral philosophy, according to the technique of
equilibrium, to provide a structure of principles that supports the
immediate convictions about which we are more or less secure, with
two goals in mind. First, this structure of principles must explain
the convictions by showing the underlying assumptions they reflect;
second it must provide guidance in those cases about which we have
either no convictions or weak or contradictory convictions. But the
process is not simply one of finding principles that accommodate
our more-or-less settled judgements. These principles must support,
and not merely account for, our judgements, and this means that the
principles must have independent appeal to our moral sense. It
might be that no coherent set of principles could be found that has
independent appeal and that supports the full set of our immediate
convictions. If that does happen, we must compromise, giving way on
both sides. We might relax, though we could not abandon, our
initial sense of what might be acceptable principle. We might come
to accept, for example, after further reflection, some principle
that seemed to us initially unattractive. On the other hand, we
must also be ready to modify or adjust, or even to give up
entirely, immediate convictions that cannot be accommodated by any
principle that meets our relaxed standards; in adjusting the
immediate convictions we will use our initial sense of which seem
to us more and which less certain, though in principle no immediate
conviction can be taken as immune from reinspection or abandonment
if that should prove necessary. We can expect to proceed back and
forth between our immediate judgements and the structure of
explanatory principles in this way, tinkering first with one side
and the other, until we arrive at what Rawls calls the state of
reflective equilibrium in which we are satisfied, or as much
satisfied as we can reasonably expect.




Escolhidos os princípios, poderemos dizer que a justiça das
instituições será estabelecida procedimentalmente, isto é, nossa situação
social será justa se for tal que, por essa seqüência de consensos
hipotéticos, nos tivermos vinculado por um sistema de regras que a definem.

A aplicação desses princípios se dá em uma seqüência de quatro
etapas, segundo Rawls, cada etapa representando uma posição adequada para
sucessivamente irem sendo analisadas as questões de justiça.

E quais são essas questões de justiça? São três, explica Rawls:
apreciar a justiça da legislação e da política social; decidir sobre as
soluções constitucionais que, de um modo justo, podem conciliar as opiniões
contrárias quanto à justiça e determinar os fundamentos e limites do dever
e da obrigação políticos.

A primeira etapa, portanto, é a elaboração dos princípios em si. A
partir dos princípios erigidos, temos a segunda etapa que é a da elaboração
de uma convenção constituinte, na qual as partes decidem sobre a justiça
das diversas formas políticas e escolhem uma Constituição, a qual, por sua
vez, deve determinar, na terceira etapa, um sistema que contenha a
estrutura e funções do poder político e dos direitos fundamentais,
respeitados sempre os princípios de justiça adotados na posição original. A
quarta etapa é a da aplicação das regras a casos particulares por parte de
juizes e administradores e o da observância delas pelos cidadãos em geral.

Rawls acredita que a justiça não detém um conceito metafísico ou
ontológico[37], mas sim político, resultante de acordo das diferenças
sociais, culturais, religiosas e econômicas, existentes numa sociedade de
estrutura democrática. A concepção particular de justiça é submissa aos
anseios de justiça da sociedade em geral, exteriorizada por meio de órgãos
legitimados para tanto, pela Constituição do Estado. Nesse contexto, a
norma injusta deve ser cumprida, embora esteja sujeita a todos os métodos
de hermenêutica jurídica, inclusive à luz da Constituição vigente, que é
presumivelmente justa.

A Justiça como eqüidade é pensada para aplicação ao que Rawls chama
de instituições da estrutura básica de uma democracia constitucional
moderna. A estrutura básica, como já vimos, designa as principais
instituições políticas, sociais e econômicas dessa sociedade, e o modo pelo
qual elas se combinam num sistema de cooperação social. O fundamental é
que, do ponto de vista político, nenhuma concepção moral pode fornecer uma
base publicamente reconhecida para uma concepção de justiça num Estado
democrático moderno. A concepção política de justiça dá espaço a uma
diversidade de doutrinas e à pluralidade de concepções conflitantes e, na
verdade, incomensuráveis.

Neste ponto vê-se que Rawls não ignora o pluralismo jurídico que
marca as sociedades modernas[38].

A Justiça como eqüidade tem como fundamento básico, primeiramente,
a observância de dois princípios: o da liberdade e o da igualdade. No
segundo plano, tais princípios são superiores a todos os demais aplicáveis
aos cidadãos, como pessoas livres e iguais. Entretanto, o ponto nodal é
saber o que significa conceber os cidadãos como pessoas livres e iguais. Em
síntese, a realização dos valores de liberdade e igualdade na estrutura
básica da sociedade incide sempre que os cidadãos são considerados
detentores das capacidades de personalidade que os habilitam a participar
da sociedade, vista como um sistema de cooperação justa para o benefício
mútuo.

A concepção política de justiça é apresentada não como uma
concepção da justiça verdadeira, mas como uma concepção que pode servir de
base a um acordo político informado e voluntário entre cidadãos, visto como
pessoas livres e iguais.

A idéia fundamental de justiça política é a da sociedade como um
sistema de cooperação entre pessoas livres e iguais. Não raramente, os
cidadãos não vêem a ordem social como uma ordem natural fixa, ou como uma
hierarquia institucional, sob o fundamento de valores religiosos ou
aristocráticos. A moralidade pessoal, ou a dos membros de uma associação,
nem sempre coincidem com a ordem social. Porém, no contexto político, tais
diversidades individuais devem ser afastadas.

São três os elementos de cooperação social, segundo Rawls: a
cooperação é guiada por normas e procedimentos reconhecidos e aceitos pelos
que cooperam; a idéia de cooperação social requer a idéia de vantagem
racional, ou bem, de cada participante; a eqüidade da cooperação social
parte da idéia de reciprocidade, de maneira que os benefícios produzidos
pelos esforços de todos sejam eqüitativamente adquiridos e divididos de uma
geração para a subseqüente.

Os participantes da cooperação social são considerados cidadãos.
Que, além de possuírem duas capacidades morais - as capacidades de senso de
justiça e de concepção do bem - também têm uma concepção particular do bem
que tentam obter. O senso de justiça é a capacidade de entender e agir a
partir da concepção pública de justiça que caracteriza os termos da
cooperação social. A capacidade de concepção do bem é a de formar, revisar
e racionalmente perseguir uma concepção da vantagem racional ou do bem. Nos
negócios particulares ou na vida privada de associações, os cidadãos
freqüentemente têm concepções distintas da concepção política de justiça.
São afeições e lealdades das quais dificilmente os cidadãos se separam para
avaliá-las do ponto de vista racional. A concepção de pessoas como dotadas
dessas duas capacidades morais é inerente à cultura pública de uma
sociedade democrática.

A questão da posição originária diz respeito à especificidade dos
princípios apropriados à realização da igualdade e liberdade de sociedade
na qual impera o sistema de cooperação entre pessoas livres e iguais. É a
melhor maneira para elaborar uma concepção política de justiça para a
estrutura básica da sociedade. Inicialmente, os cidadãos são livres ao se
conceberem como detentores da capacidade moral de terem um conceito do bem.
Em um segundo momento, os cidadãos percebem-se livres, sempre que se
consideram como fontes auto-suscitantes de reivindicações válidas. Por
último, os cidadãos são tidos como livres quando capazes de assumir a
responsabilidade por seus fins e isso afeta a maneira pela qual suas
reivindicações são avaliadas.

A concepção política de justiça, embora moral, não é um ideal de
moral para a condução da vida, mas para ser aplicado à estrutura básica da
sociedade. É a única doutrina compatível com o liberalismo do Estado
democrático, no qual existem concepções conflitantes. Daí, a possibilidade
e, talvez, necessidade de impor restrições a indivíduos e associações,
contudo sempre em prol da justiça política. A autonomia e a individualidade
absoluta não são apropriadas para uma concepção de política de justiça. A
sustentação das instituições democráticas é incompatível com o liberalismo
(individualidade e autonomia) irrestrito..

Na justiça como eqüidade, a unidade social e a lealdade dos
cidadãos, com respeito a suas instituições comuns, não estão calcadas na
idéia de que todas as pessoas sustentam a mesma concepção do bem, mas na de
que aceitam publicamente uma concepção política de justiça para regular a
estrutura básica da sociedade. O conceito de justiça é independente do
conceito de bem e anterior a ele. A interface é o consenso no qual
doutrinas diferentes e mesmo conflitantes sustentam a base publicamente
partilhada dos arranjos políticos.

Platão e Aristóteles, bem como a tradição cristã, tal como
representada por Agostinho e Tomás de Aquino, estão entre os que reconhecem
apenas um bem racional. Tais perspectivas teleológicas tendem a afirmar que
as instituições são justas à medida que promovem aquele bem. Aliás, a
filosofia moral, a teologia e a metafísica perseguem uma concepção racional
de justiça. O liberalismo, ao contrário, supõe que há muitas concepções
conflitantes e incomensuráveis do bem, sendo cada uma compatível com a
racionalidade das pessoas, desde que observados os princípios apropriados
de justiça. É o liberalismo uma cultura democrática livre.

Em seu artigo, "Justice as Fairness: Political not Metaphysical",
publicado em 1985 na revista Philosophy and Public Affairs, Rawls,
respondendo a crítica formulada por Michael Sandel[39] reitera que sua
teoria não o leva á analisar a verdade de alguma proposição metafísica,
especialmente com relação a uma teoria das pessoas (envolvidas na posição
original). Para Rawls, é contrário às finalidades da justiça como eqüidade,
requerer um alinhamento com proposições filosóficas e religiosas que têm
muito pouca ou nenhuma chance de serem aceitas universalmente. Ao
contrário, justiça como eqüidade deve estabelecer uma ordem política dentro
da qual várias posições metafísicas possam co-existir. Tudo que esta teoria
requer é um consenso hegemônico ("overlapping consensus") de alguns credos
filosóficos os quais seriam suficientes para manter as práticas sociais
envolvidas na solução de disputas dentro de uma sociedade liberal-
democrata, e estabelecer condições para a cooperação política e o respeito
mútuo. Este consenso requerido é pragmático e direcionado a definir as
formas de cooperação social voluntárias de nossa sociedade que sejam
mutuamente benéficas. Tal consenso, afirma Rawls, deixa lugar para uma
análise neutra sobre a verdade de qualquer uma das teorias metafísicas
existentes dentro da sociedade e a teoria da justiça seria, portanto,
praticamente independente das outras partes da filosofia.

Como aponta Álvaro de Vita, "Uma Teoria da Justiça" admite duas
leituras possíveis, num paralelismo aos dois tipos de liberalismo político
que identifica como Hobbesiano e Rawlsiano.

A primeira interpretação daria ênfase à situação contratual e
adotaria uma forma de justificativa própria ao liberalismo Hobbesiano.
Segundo essa primeira leitura teríamos que os indivíduos egoístas
racionais, deliberando por trás do véu da ignorância acerca dos princípios
com os quais deveriam se comprometer de antemão, princípios esses que, uma
vez retirado o véu, seriam aplicados às instituições básicas de sociedade
quaisquer que seus valores, ideais, posições sociais, talentos e
preferências se revelassem ser, decidiriam por uma escolha prudente. É o
que na teoria da escolha racional se chama de decisão "maximin". Nessa
linha, a adoção e a justificação de princípios primeiros de justiça para a
estrutura básica da sociedade são entendidas como parte da teoria da
escolha racional..

A segunda interpretação põe de lado a justificação de princípios
primeiros de justiça segundo os critérios do conceito padrão de
racionalidade da teoria econômica e apoia sua plausibilidade em idéias
intuitivas presentes na tradição e na cultura políticas de uma democracia.
O que o argumento perde em rigor dedutivo e apelo epistemológico, ele ganha
em contextualização histórica e cultural e em apelo prático. Rawls estaria
substituindo "indivíduos egoístas racionais" por "pessoas morais livres e
iguais" e "deliberação segundo uma racionalidade estritamente instrumental"
por "deliberação razoável". Rawls não quer apoiar a justificação de sua
teoria em instituições morais vistas como verdades auto-evidentes. O que
deve contar como razões de ordem moral, no que diz respeito às demandas
conflitantes que os cidadãos fazem uns aos outros tendo por objeto recursos
escassos da sociedade não é algo dado de antemão; essas razões são aquelas
estabelecidas pela concepção pública da justiça e só podem ser invocadas
uma vez que uma concepção desse tipo tenha sido adotada para regular as
instituições básicas da sociedade. Para escapar do apriorismo moral, Rawls
criou uma modalidade mais complexa do que o intuicionismo de relação entre
construção, teoria e julgamentos morais particulares que denominou de
"método do equilíbrio reflexivo".

Por esta razão, independentemente da maior ou menor consistência
lógica da teoria construída por Rawls, especialmente pelo uso do conceito
de jogo de barganha aliado ao recurso do véu de ignorância, do princípio do
maximum minimorum para a escolha racional das regras e da técnica do
equilíbrio reflexivo, a essência da sua idéia serve como um sopro de ar
fresco sobre as várias teorias da Justiça, especialmente as de cunho
utilitarista e não deve ser ignorada pelos estudiosos do Direito.


Os princípios da justiça.


Rawls apresenta, então, a formulação dos dois princípios sobre os
quais entende haveria um consenso na posição original:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente
sistema de liberdades básicas iguais, que seja compatível com um sistema de
liberdades para as outras.

Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas
de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para
todos dentro dos limites do razoável; e, (b) vinculadas a posições e cargos
acessíveis a todos.

Tais princípios seriam escolhidos, como já se falou anteriormente,
por pessoas racionais, egoístas (ou pelo menos desinteressadas nos
interesses da outras pessoas), que por desconhecerem suas condições
pessoais (em virtude do véu da ignorância), agiriam cautelosamente,
buscando evitar riscos e maximizar o melhor entre os piores resultados
possíveis.

Independentemente da metodologia de Rawls (a posição original, o
véu da ignorância, a escolha cautelosa sob a ótica do maximin), os
princípios de justiça propostos por ele constituem premissas morais de
grande apelo.

Tratam-se de princípios de eqüidade e coincidem com a noção de
alteridade proposta por Del Vecchio para a definição de um paradigma de
Justiça.

Falamos em eqüidade porque os princípios de Rawls afirmam que as
pessoas têm exatamente o mesmo valor, independentemente de cargos e
posições, talentos e habilidades, formação e educação e que esta igualdade,
refletida nas liberdades clássicas (tanto as liberdades dos antigos de
participação política, quanto as liberdades dos modernos de garantias
individuais, na esteira da divisão proposta por Benjamin Constant), só
podem ser diminuídas ou reprimidas em benefício da própria igualdade e
liberdades.

Falamos em alteridade porque os princípios igualitários de Rawls
implicam no reconhecimento pelos membros da comunidade dos mesmos direitos
e liberdades que reclamam para si próprios, para os demais membros da mesma
comunidade, encontrando nessa relação bilateral, os limites para os
direitos e liberdades de cada um.

Os princípios propostos por Rawls devem ser observados na ordem em
que formulados, e seguindo-se uma classificação léxica, vale dizer, só se
passará ao segundo princípio se devidamente observado o primeiro princípio.

Este é o núcleo de toda a teoria de Rawls. São estes paradigmas, na
verdade que motivarão o intrincado teorema criado por ele.

Pode-se dizer, sem medo de errar, que todo o arcabouço metodológico
e, por que não, epistemológico, de "Uma Teoria da Justiça" nada mais é do
que a tentativa de justificação, em uma linguagem científica, dos
princípios intuídos por Rawls como basilares para qualquer teoria da
Justiça.

Tal esforço metodológico de Rawls, impele-o a buscar uma completude
para a sua teoria, que o próprio tema torna improvável, se não impossível,
e o coloca como alvo das críticas dos seus contemporâneos. Mas Rawls, como
um ouriço, utilizando-me da metáfora introduzida por Isaiah Berlin, não se
furta a retomar as premissas de sua teoria e reelaborá-las em novos livros
e artigos.

No próprio "Uma Teoria da Justiça", após a primeira apresentação
dos postulados dos seus princípios da justiça, Rawls, tendo apresentado uma
teoria sobre o bem e sobre as pessoas participantes da posição original, e
após fazer a defesa da prioridade da igual liberdade e do princípio da
diferença, reformula aquelas propostas iniciais, completando-as da seguinte
forma:




Primeiro Princípio:

Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema
total de liberdades básicas iguais, que seja compatível com um sistema
semelhante de liberdade para todos.




Segundo Princípio:

As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal
modo que, ao mesmo tempo:

a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos,
obedecendo às restrições do princípio da poupança justa; e,

b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em
condições de igualdade eqüitativa de oportunidades.




Primeira Regra de Prioridade (A Prioridade da Liberdade)

Os princípios da justiça devem ser classificadas em ordem lexical e
portanto as liberdades básicas só podem ser restringidas em nome da
liberdade.

Existem dois casos:

a) uma redução da liberdade deve fortalecer o sistema total das
liberdades partilhadas por todos;

b) uma liberdade desigual deve ser aceitável para aqueles que têm
liberdade menor.




Segunda Regra de Prioridade (A Prioridade da Justiça sobre a
Eficiência e sobre o Bem-Estar)

O segundo princípio da justiça e lexicalmente anterior ao princípio
da eficiência e ao princípio da maximização da soma de vantagens; e a
igualdade eqüitativa de oportunidades é anterior ao princípio da diferença.

Existem dois casos:

a) uma desigualdade de oportunidades deve aumentar as
oportunidades daqueles que têm uma oportunidade menor;

b) uma taxa excessiva de poupança deve, avaliados todos os
fatores, tudo é somado, mitigar as dificuldades dos que
carregam esse fardo.

Estes princípios, mesmo com a sutil transformação que sofreram no
último livro de Rawls "Political Liberalism", mantém-se válidos em sua
teoria como um todo e formam a base deste trabalho, bem como dos principais
trabalhos dos críticos de "Uma Teoria da Justiça".





Uma teoria de Filosofia do Direito ou de Filosofia Política?


A justiça como objeto da Filosofia do Direito e da Filosofia
Política.


A teoria de Rawls é uma teoria da moral, uma teoria ética, centrada
na questão da justiça distributiva, sob o prisma das instituições político-
sociais básicas (especialmente a Constituição do Estado Democrático).

Em princípio a tomaríamos, então, unicamente por uma filosofia
política. Ainda mais porque não há preocupação centrípeta com a definição
do papel do Direito na teoria da justiça de Rawls. O Autor limita-se a
manifestar-se sobre as regras das instituições básicas da sociedade, com
destaque na Constituição, sobre a questão da obediência às leis injustas em
uma sociedade razoavelmente justa e sobre a questão da desobediência das
leis injustas.

Todavia, assim como no novo paradigma da Filosofia do Direito (que
substituiu o antigo paradigma do direito natural e que serve de resposta
aos excessos do positivismo jurídico) não se pode prescindir da questão da
Filosofia da Justiça, não só dentro de uma deontologia jurídica (termo
cunhado por Bentham) mas em todos os seus campos ontognosológicos, também a
Filosofia Política, cuidando da questão da legitimidade da autoridade e do
compromisso com as leis, não pode prescindir das mesmas indagações sobre o
que é Justiça.

Nesta esteira, não há porque se fazer uma distinção ontológica
entre as duas Filosofias (note-se que evito propositalmente o termo ciência
neste caso), a Política e a do Direito.

Reporto-me, mais uma vez, às lições de Celso Lafer:




"O vínculo entre a Teoria da Justiça e a Filosofia Política já se
encontra explicitado em Aristóteles. Na Política, depois de
observar que a justiça consiste numa certa igualdade, e lembrar que
esta opinião está de acordo com as distinções de ordem filosófica
por ele estabelecidas na Ética, Aristóteles afirma que o justo é
uma coisa e uma relação entre pessoas. Conseqüentemente, para
pessoas iguais, a coisa deve ser igual. A seguir indaga: pessoas
iguais ou desiguais em que? Este problema, diz Aristóteles, suscita
a necessidade de pesquisas teóricas sobre a política. Na Ética a
Nicômaco, ao tratar da Justiça distributiva, Aristóteles observa
que a justiça na distribuição deve ser baseada no mérito, mas o
critério de mérito varia de acordo com as formas de governo. Para
os democratas, o mérito reside na condição livre, para os adeptos
da oligarquia na riqueza, na nobreza ou na praça, e para os
defensores da aristocracia na virtude. Existem, portanto, vários
critérios possíveis de igualdade, cuja escolha Aristóteles vincula
às formas de governo. Por isso, a Filosofia do Direito na
perspectiva da Teoria da Justiça, na lição aristotélica, pode
também ser encarada como Filosofia Política na acepção de propostas
de organizar a sociedade com base numa escolha de critérios de
justiça, através da opção por uma forma de governo. A referência a
uma acepção da Filosofia Política, e não à Filosofia Política,
explica-se porque esta, como a Filosofia do Direito, não é uma
disciplina cujo objeto seja inequívoco. De fato, a Filosofia
Política pode ser encarada como metodologia, isto é, como reflexão
crítico científica sobre a política; pode também ser vista como
esforço de individualizar a categoria do político, diferenciando-o,
por exemplo, do econômico ou do social. Pode, no entanto, ser vista
tanto como a tentativa de determinação do estado ótimo - a busca do
optimo statu reipublicae - quanto como a análise dos critérios da
legitimidade do poder que esclarecem o fundamento da obrigação
política - o porquê se obedece à autoridade, e o que legitima a
distinção entre governantes e governados, por força da escolha de
um princípio de justiça. Nestas duas últimas acepções, a Filosofia
Política está vinculada à teoria da Justiça, e ambas integram a
Filosofia do Direito, encarada como deontologia - que Reale
considera o campo da 'indagação do fundamento da ordem jurídica e
da razão de obrigatoriedade das normas de Direito, da legitimidade
da obediência às leis, o que quer dizer indagação dos fundamentos
ou dos pressupostos éticos do Direito e do Estado."[40].








É possível identificar o papel reservado para o Direito em "Uma
Teoria da Justiça" de John Rawls?

Vimos as várias concepções do Direito. Não nos ativemos à questão
da sua fundamentação, particularmente, limitando-nos aos aspectos que
deverão ser explorados nesta parte do trabalho. Para aqueles que desejem
estudar a questão dos fundamentos do Direito, mais uma vez remeto à leitura
de um livro do professor Miguel Reale. O livro chama-se "Os Fundamentos do
Direito".

O que nos interessa, primordialmente, são os possíveis papéis que o
Direito pode desempenhar.

Falar-se em papéis desempenhados pelo Direito é tomar o Direito
pelo seu aspecto pragmático e analisá-lo sob um prisma teleológico.

Em outras palavras, parte-se de uma indagação semelhante àquela
feita à Persifal em sua busca pelo Santo Graal: "A que ou a quem serve o
Direito?".

Já reconhecemos anteriormente o papel decisório do Direito, vale
dizer, do papel na solução dos conflitos interpessoais.

A solução dos conflitos, embora possa ser identificada como o fim
imediato do Direito, e, destarte, o seu papel na sociedade humana, não
impede uma digressão maior, em busca dos seus fins mediatos, vale dizer, os
fins aos quais se busca através da solução daqueles conflitos de interesses
entre as pessoas sujeitas àquele determinado ordenamento jurídico.

Nesta perspectiva, o papel do Direito não se esgota no seu aspecto
decisório, pois o próprio ato de por fim a conflitos pode estar servindo a
um determinado propósito, vale dizer, poderá estar servindo para a
realização da justiça (ou de uma justiça), poderá estar servindo como
instrumento de pacificação social, de coordenação da sociedade no sentido
de um fim (Bem-estar, Bem-comum, Eficiência, Utilidade, o que for), ou
poderá estar servindo a um determinado interesse particular de um grupo ou
classe, como forma de dominação ou de distribuição não eqüitativa de
vantagens.

Para cada fim apontado o aplicador e o operador do Direito guiam-
se por diferentes axiomas.

Para a realização da Justiça o operador do direito deverá buscar
os imperativos categóricos de uma justiça transcendental, seja no Direito
Natural, seja nos dogmas religiosos, seja nos princípios morais da razão
prática, seja nos princípios da teoria da justiça de Rawls.

Para a pacificação e coordenação social, o Direito servirá às
decisões eminentemente políticas tiradas a partir da Ideologia (no sentido
fraco que fala Bobbio) dominante na sociedade naquele determinado momento.

Finalmente, como técnica de dominação, o Direito servirá a uma
ideologia (no sentido forte, ou, mais precisamente, no sentido marxista),
como uma superestrutura garantidora da dominação social por uma determinada
classe.

Um último registro que gostaria de fazer quanto ao papel do
Direito, remete-nos à sua característica de referibilidade para as condutas
dos membros da sociedade ao qual ele se aplica.

Esta referibilidade está tanto no papel de agente legitimador dos
atos de poder (atos adminsitrativos e legislativos), quanto dos atos
individuais de cada membro da sociedade. Também está na definição dos
limites das expectativas que cada membro da sociedade pode criar em relação
aos seus governantes, bem como aos demais membros, quanto ao respeito dos
seus direitos e atos previamente legitimados pelo Direito.

Esta referibilidade é a pedra angular da segurança e estabilidade
das instituições da comunidade.

Especialmente nas sociedades modernas em que o mito (na concepção
de Joseph Campbell e Jung), os ritos de passagens perderam seus valores de
identificação dos membros de uma comunidade com esta mesma comunidade, num
mundo em que a globalização massifica ícones culturais e até a linguagem,
não é de se espantar que, a despeito do pluralismo jurídico, o Direito,
como expressão dos princípios de justiça da comunidade a que serve, revele-
se como espelho, como identidade desta comunidade.

Deixamos claro, com estas ponderações, o encaminhamento que estamos
dando a este trabalho e a conclusão que buscamos, no que se refere ao papel
do Direito na Teoria da Justiça de John Rawls.

Não podemos deixar, porém, de apreciar a posição de Rawls na
dicotomia Direito Natural X Direito Positivo.

Não que Rawls tenha feito de sua teoria uma trincheira para a
defesa de uma linha partidária em relação a um ou outro conceito de
Direito, mas seu trabalho, inegavelmente deixa transparecer sua herança
jurídica, a qual, entendemos, também é determinante para a definição do
papel do Direito em sua obra.





O neojusnaturalismo de Rawls




Rawls é, em certa medida, um neojusnaturalista.

Esta afirmação o coloca dentro de uma linha que aborda o Direito
sob certas premissas básicas próprias, à qual denominamos de Direito
Natural, já visto anteriormente.

Para justificar esta afirmação permitam-me retomar um pouco a
descrição das características desta escola (se é que podemos assim
denominar uma linha de pensamento que abriga tantos autores com trabalhos e
conclusões tão diferentes), para, em seguida, apontar os conceitos da
Teoria de Rawls que o incluem nesta mesma corrente da Filosofia do Direito.


Como nos ensina Celso Lafer[41]:

"É certo que o termo Direito Natural abrange uma elaboração
doutrinária sobre o Direito que, no decorrer de sua vigência
multissecular, apresentou - e apresenta - vertentes de reflexões
muito variadas e diferenciadas, que não permitem atribuir-lhe
univocidade. Existem, no entanto, algumas notas que permitem
identificar, no termo Direito Natural, um paradigma de pensamento.
Entre estas notas, que determinam o que uma doutrina do Direito
Natural normalmente considera merecedor de estudo, podem ser
destacadas: a) a idéia de imutabilidade - que presume princípios
que, por uma razão ou outra, escapam à história e, por isso, podem
ser vistos como intemporais; b) a idéia de universalidade destes
princípios metatemporais, 'diffusa in omnes', nas palavras de
Cícero; c) e aos quais os homens têm acesso através da razão, da
intuição, ou da revelação. Por isso, os princípios do Direito
Natural são dados, e não postos por convenção. Daí, d) a idéia de
que a função primordial do Direito não é o de comandar, mas sim
qualificar como boa e justa ou má e injusta uma conduta, pois, para
retomar o texto clássico de Cícero, a 'vera lex'- "ratio naturae
congruens' - por estar difundida entre todos, por ser 'constans' e
'sempiterna', 'vocet ad officium jubendo, vetendo a fraude
deterreat'. Essa qualificação promove uma contínua vinculação entre
norma e valor e, portanto, uma permanente aproximação entre Direito
e Moral".




Na mesma esteira, diz Gustav Radbruch: "desde o seu alvorecer até
princípios do século XIX pode dizer-se que toda a Filosofia do Direito foi
a doutrina do Direito Natural. Esta designação abrange, certamente,
manifestações das mais variadas índole. O direito natural da antigüidade,
por exemplo, girava em torno da antítese: natureza - normas; o da Idade-
Média, em torno da antítese direito divino - direito humano; o dos tempos
modernos, em torno da antítese: direito positivo - razão individual. Em
todos o caso, ele caracteriza-se em todas estas modalidades por certos
traços fundamentais também distintos e que são os seguintes: 1º Todas estas
concepções do Direito Natural nos fornecem certos "juízos de valor"
jurídico com um determinado conteúdo - 2º esses "juízos de valor" jurídico
têm sempre como fonte, ou a Natureza, ou a Revelação, ou a Razão,
universais e imutáveis - 3º Tais juízos são acessíveis ao conhecimento
racional - 4º Tais juízos, uma vez fixados, devem preferir às leis
positivas que lhes forem contrárias; o direito natural deve sempre
prevalecer sobe o direito positivo."[42].

O Direito Natural assume, assim, a função de controle em relação ao
Direito Positivo, constituindo-se em verdadeiro dever-ser deste último.

Direitos inatos, estado de natureza e contrato social foram os
conceitos que, embora utilizados com acepções variadas, permitiram a
elaboração de uma doutrina do Direito e do Estado a partir da concepção
individualista de sociedade e da história, que marca o aparecimento do
mundo moderno. São esses conceitos os que caracterizam o jusnaturalismo dos
séculos XVII e XVIII, que encontrou o seu apogeu na Ilustração[43].

Assim, Rawls é jusnaturalista na medida em que é racional, acredita
na existência de critérios razoáveis apriorísticos para estabelecimento do
justo e do injusto e utiliza-se do instituto do contrato social para
fundamentar os princípios que propõe.

Todavia, ao falarmos em jusnaturalismo não podemos nos esquecer que
o conceito de direito natural, como paradigma do direito, sofreu grave
erosão pelo cientificismo, por um lado, e pelo historicismo, por outro, no
século XIX, dando lugar ao novo paradigma da Filosofia do Direito, como nos
ensina Celso Lafer[44]. Trata-se de um novo paradigma de pensamento que foi
sendo elaborado no correr dos séculos XIX e XX e que exprime a percepção da
relevância de novos fatos e problemas que não mais se inseriam
adequadamente no paradigma do Direito Natural.

Neste ponto, não há como imaginar que o jusnaturalismo que estamos
atribuindo a Rawls não tenha sofrido os efeitos destas mudanças.

Rawls como jurista norte-americano do século XX, sem dúvida foi
influenciado pela escola racionalista norte-americana, mas também por
Herbert L. A. Hart e H. Sidgwick.

Perelman aponta, inclusive, que Rawls presta uma homenagem a
Sidgwick, cujo tratado, que se tornou clássico The Methods of Ethics,
considera a obra mais notável da teoria moral dos tempos modernos.

Como informa Parelman[45], no último estado de suas idéias, tal
como as expôs em suas Dewey Lectures, Rawls afirma que seu propósito é
análogo ao de Sidgwick:

"The aim of political philosophy, when it presents itself in the
public culture of democratic society, is to articulate and to make
explicit those shared notions and principles thought to be already
latent in common sense; or, as it is often the case, if common
sense is hesitant, and doesn't know what to think, to propose to it
certain conceptions and principles congenial to its most essential
convictions and historical tradition."






O Direito em "Uma Teoria da Justiça".


Dever e obrigação.


Rawls aponta para a teoria do Direito como eqüidade, contendo as
obrigações e os deveres naturais, por um lado, e as permissões, por outro.

Para Rawls, uma teoria completa do Direito tem de abordar, além dos
princípios aplicáveis às instituições, vale dizer, à estrutura básica da
sociedade, outros princípios, aplicáveis agora aos indivíduos[46]. Desta
forma, além do consenso sobre os princípios aplicáveis às Instituições,
também deve haver um consenso sobre os princípios aplicáveis às relações
inter-individuais.

A idéia intuitiva seria a de que o conceito de alguma coisa estar
certa, de acordo com o Direito, poderia ser substituída pela noção de que
tal coisa está de acordo com os princípios que, na posição original, seriam
escolhidos para serem aplicáveis a essa mesma coisa.

Rawls também aplica o princípio da eqüidade para as relações inter-
individuais. Ele acredita poder usar este princípio para diferenciar as
obrigações dos deveres naturais. Tal princípio determina que uma pessoa
deve fazer sua parte, tal qual definida pelas regras de uma instituição
quando duas condições estiverem presentes: a primeira, que tal instituição
seja justa, ou seja, que satisfaça os dois princípios da justiça e,
segundo, que a pessoa tenha voluntariamente aceitado os benefícios do
acordo social ou então tenha obtido alguma vantagem que tal acordo
proporcionou. Essas determinações são as obrigações.

Há várias características das obrigações que as distinguem dos
deveres morais. Em primeiro lugar, elas decorrem do nossos atos voluntários
que correspondem a compromissos expressos ou tácitos, tirados sob as regras
de uma determinada instituição. Em segundo lugar, as obrigações são
normalmente devidas por indivíduos definidos, a saber: aqueles que estão
cooperando entre si para manter a instituição ou acordo em questão.

Agora, em contraste com as obrigações nós temos os chamados deveres
naturais. É característica desses deveres naturais que eles nos sejam
aplicáveis sem o nosso ato voluntário de submissão. Também é característica
desses deveres naturais que não guardem relação com as instituições ou
práticas sociais e seu conteúdo não seja por elas definidos. Assim, nós
teríamos o dever natural de não sermos cruéis e de ajudar ao outro,
tenhamos ou não nos comprometido a fazê-lo.

Além do mais, os deveres naturais têm como outra característica o
fato de que se aplicam entre as pessoas independentemente do relação
institucional que possam ter. Em outras palavras, não se aplicam apenas às
pessoas definidas por terem uma relação entre si sob as regras de uma
determinada instituição, mas às pessoas em geral.

Assim, se a estrutura básica da sociedade é justa, ou tão justa
quanto se poderia razoavelmente esperar que fosse sob as circunstâncias
existentes, todo mundo tem o dever natural de fazer sua parte. Todos e cada
um, estão sujeitos a essas instituições independentemente de seus atos
voluntários. Assim, mesmo que os princípios dos deveres naturais sejam
derivados de uma posição contratualista, eles não pressupõem um ato de
consentimento, expresso ou tácito, ou qualquer outro ato voluntário para
serem aplicáveis.

Junto com a maioria das demais teorias éticas, a justiça como
eqüidade assegura que as obrigações e os deveres naturais surgem apenas em
virtude de princípios éticos. Esses princípios são aqueles que seriam
escolhidos na posição original. Juntamente com os fatos e circunstâncias
relevantes à mão, esse é o critério para determinar nossas obrigações e
deveres, e apontar o que conta como razão moral.

Em contraste, os deveres derivados das instituições ou práticas
sociais podem ser levantados das regras existentes e das formas como estas
regras devam ser interpretadas. Se esses deveres estão conectados com
deveres morais ou com obrigações é uma questão em separado.

Podemos dizer que os deveres são deveres prima facie (other things
equal) que poderão ou não se igualar com as obrigações (other things
considered).


Obrigações e deveres naturais.


Para Rawls, as partes na posição original devem escolher não apenas
o conceito de Justiça, que se aplica às Instituições, mas, também, os
princípios que se aplicam aos indivíduos, porque eles são uma parte
essencial da concepção do Direito uma vez que definem nossos laços
institucionais e as maneiras pelas quais nós nos obrigamos uns perante os
outros. A idéia, que lhe parece intuitiva, é a de que o conceito de algo
estar de acordo com o Direito pode ser substituído pelo conceito de algo
estar de acordo com os princípios que, naquela posição original, seriam
escolhidos para serem aplicados a algo daquela espécie.

Assim, ele entende que o mesmo princípio da eqüidade, aplicável ao
conceito de Justiça aplica-se ao conceito de Direito.

Aplicado o princípio da eqüidade ao Direito que regula as relações
individuais teríamos estabelecido que uma pessoa deve fazer sua parte tal
qual definida pelas regras de uma instituição quando duas condições forem
encontradas: 1) a instituição ser justa, ou seja, satisfazer aos dois
princípio da Justiça e, 2) a pessoa ter voluntariamente aceitado os
benefícios do arranjo estabelecido pela Instituição ou tirado proveito das
oportunidades que tal arranjo institucional oferece aos seus interesses.

A esses deveres, Rawls dá o nome de obrigações.

Rawls distingue as obrigações dos deveres morais dizendo que as
obrigações surgem como um resultado de nossos atos voluntários, esses atos
podem ser um comprometimento expresso ou tácito com os arranjos
institucionais sob os quais nos encontramos ou simples aceite dos seus
benefícios. Ademais o conteúdo das obrigações é sempre definida por uma
Instituição ou prática cujas regras especificam o que cada pessoa deve
fazer, ou como cada pessoa deve agir. E, finalmente, as obrigações são
geralmente impostas a indivíduos definidos, nominalmente, aqueles que estão
cooperando uns com os outros para manter aquela determinada Instituição.

Ao lado das obrigações (deveres advindos da aplicação do princípio
da eqüidade ao Direito) Rawls estabelece a existência dos deveres naturais.

A característica dos deveres naturais é a de que eles se aplicam a
nós sem se importar com nossos atos voluntários. Ainda, eles não têm
necessariamente uma conexão com Instituições ou práticas sociais. Seus
conteúdos não são, como regra geral, definidos pelas regras desses arranjos
institucionais. Os deveres naturais, têm, ainda, uma outra característica:
eles se estabelecem entre as pessoas independentemente da existência de
qualquer relação institucional entre elas.

Do ponto de vista da Justiça como Eqüidade, um dever natural
fundamental é o dever de justiça. Esse dever nos obriga a dar apoio e a nos
comprometermos com as Instituições justas que existam e que se apliquem a
nós. Também, nos constrange a outros arranjos justos ainda não
estabelecidos, pelo menos quando isso possa ser feito sem muito custo para
nós mesmos. Assim, se a estrutura básica da sociedade é justa, ou tão justa
quanto pudéssemos esperar que fosse, dentro das circunstâncias, todo mundo
tem um dever natural de fazer sua parte no sistema existente.

A pergunta que se faz é: Qual a origem do dever natural?

Não há dúvida que para Rawls a origem está no acordo hipotético
realizado na posição original: "The principles that hold for individuals,
just as the principles for institutions, are those that would be
acknowledge in the original position. These principles are understood as
the outcome of a hypothetical agreement." (A Theory..., pág. 115).


Justiça formal


A regular e imparcial administração de regras públicas (que
constituem uma instituição) é chamada por Rawls de justiça formal.

Quando a justiça formal é aplicada ao sistema legal[47], ou seja,
quando temos a administração regular e imparcial, e nesse sentido justa,
das leis, nós temos uma justiça formal do sistema legal ou o que Rawls
chama de "justiça como regularidade", que traduz um império da lei, um
ordenamento jurídico (rule of law, no original).

Da mesma forma, quanto mais o sistema legal preencher os requisitos
da justiça formal, mais justo será esse sistema. Todavia, como esse
conceito de justiça só garante a administração regular e imparcial das
regras, não importa quais sejam essas regras, também é compatível com a
injustiça, no sentido substancial. Assim, a justiça formal impõe algumas
restrições sobre a estrutura básica social que, embora sejam fracas, não
podem ser negligenciadas.

E quais são os preceitos de justiça formal associados ao império da
lei?

Comecemos com o preceito do dever significa poder, vale dizer, de
que aquilo que a lei determina como um dever tem uma execução possível,
pode ser feito ou realizado. A lei não pode criar obrigações inexeqüíveis
porque a impossibilidade de sua realização é uma defesa admissível.

O império da lei também implica em que casos similares sejam
tratados de forma similar. O critério para identificação de situações
semelhantes é dado por meio das próprias regras jurídicas e dos princípios
utilizados na respectiva interpretação. Como tal critério limita e impõe às
autoridades administrativas e judiciárias a justificação das distinções das
situações, é tido como limitador da discricionariedade daqueles.

O preceito do nullum crimem sine lege, e as exigências que esse
preceito implica, decorrem também da idéia de sistema jurídico. As leis
devem ser previamente conhecidas e objeto de interpretação restrita, sob
pena de haver normas para atingir sujeitos concretos.

Por último o preceito do due process: os juízes devem ser
independentes e imparciais e ninguém pode ser juiz em causa própria; os
julgamentos devem decorrer de forma eqüitativa e em público, mas não devem
estar sujeitos à pressão da opinião pública.

Para Rawls, então, a conexão do império da lei com liberdade está
razoavelmente clara. Sendo liberdade o complexo de direitos e deveres
definidos pelas Instituições, as várias liberdades especificam coisas que
nós podemos escolher para fazer, se quisermos, e em relação às quais,
quando a natureza da liberdade assim o tornar apropriado, as outras pessoas
têm o dever de não interferir.

O princípio da legalidade, portanto, teria uma firme fundamentação,
no acordo de pessoas racionais em estabelecer para elas próprias, a maior
liberdade igual para todos possível. Para serem confiantes na posse e no
exercício dessa liberdade, os cidadãos de uma sociedade bem organizada
normalmente quererão a manutenção do império da lei.

Por outro lado, mesmo numa sociedade bem organizada os poderes
coercitivos do governo são até algum ponto necessários para a estabilidade
da cooperação social. Enforçando o sistema público de penalidades, o
governo remove a base para a desconfiança de que os outros não estariam
cumprindo com suas partes das obrigações. Assim, apenas por esta razão uma
soberania coercitiva é presumivelmente sempre necessária. A existência de
uma máquina penal serve para a segurança dos homens uns contra os outros.
Esta proposição é assumidamente Hobbesiana. O estabelecimento de uma
agência coercitiva só é racional se suas desvantagens são menores do que a
perda de liberdade em decorrência da instabilidade. Dessa forma, o melhor
arranjo possível é aquele que garanta a maior liberdade possível ao mesmo
tempo que minimize os riscos da instabilidade social. Para Rawls está claro
que, comparativamente, os perigos para a liberdade são menores quando a lei
é imparcial e regularmente administrada de acordo com o princípio da
legalidade.

Dentro deste conceito, Rawls entende que um certo número de sanções
é necessário, mesmo para uma teoria ideal sobre justiça. E Rawls faz
derivar a justificação das sanções, não de um princípio retributivo ou
denunciatório, mas do próprio princípio de liberdade ou do princípio da
responsabilidade, uma vez que a teoria do Direito em Rawls apoia-se no
compromisso entre as partes.






A Constituição.


Rawls admite que sua teoria da justiça acaba por pressupor os
modelos de uma democracia constitucional.

Como vimos, Rawls entende que a elaboração de uma constituição deve
respeitar sempre os princípios de justiça já adotados na posição original

Constituição justa é aquela que consiste num processo justo,
construído de modo a permitir um resultado justo, vale dizer, uma atividade
política submetida à Constituição adequada aos princípios de justiça.

A Constituição é um processo justo, que satisfaz as exigências da
igual liberdade, devendo ser concebida de modo a que, de todos os sistemas
justos e aplicáveis, seja ela a que tem maior possibilidade de conduzir a
um sistema de legislação justo e efetivo.

Para que se tenha um processo político ideal, é indispensável que a
Constituição garanta as liberdades de consciência e de pensamento, as
liberdades pessoais e a igualdade de direitos políticos.

Todo processo político pode causar resultados indesejáveis,
elaborando normas injustas. Não há sistema que obste a elaboração de leis
injustas. Entretanto, há sistemas que têm uma tendência mais pronunciada a
isso. Portanto, é de igual importância saber escolher a melhor estrutura de
processo político.

A justiça das leis e das medidas políticas é analisada a partir de
tal perspectiva. As leis devem respeitar os princípios de justiça e os
limites constitucionais.

O princípio da igual liberdade para todos constitui o padrão
primário para convenção constituinte. As exigências principais são as de
que as liberdades fundamentais da pessoa e a liberdade de consciência e de
pensamento sejam protegidas e que o processo político, no seu conjunto,
constitua um processo justo. O segundo princípio, que intervém na etapa
legislativa, obriga que as políticas econômicas e sociais se orientem para
a maximização das expectativas, a longo prazo, dos menos favorecidos,
respeitando as condições de igualdade de oportunidades e mantendo as
liberdades iguais para todos.

O Princípio da igual liberdade, quando aplicado ao processo
político definido pela Constituição, será referido como princípio da
(igual) participação, que exige que todos os cidadãos tenham um direito
igual a tomar parte do processo constitucional que produz a legislação, à
qual devem obedecer e determinar o seu resultado. A fundamentação do
princípio da participação está substanciada na idéia de que, se o Estado
deve exercer uma autoridade final e coercitiva sobre um certo território e
se, desta forma, afeta as perspectivas de vida dos homens, então o processo
constitucional deve preservar a representação igual presente na posição
original, na medida em que tal seja praticável.

O princípio da participação é compatível com a possibilidade de a
Constituição circunscrever os poderes do Legislativo quanto a numerosos
aspectos, não obstante a maioria do eleitorado possa sempre atingir os seus
objetivos, até mesmo mediante alteração institucional. A falta de
unanimidade nas deliberações políticas, nos diz Rawls, faz parte do
contexto de aplicação da justiça, de modo que a inexistência de oposição
sacrifica a democracia.


O Dever de obedecer à regra injusta, a Desobediência civil e a
objeção de consciência.


Diz Rawls que é evidente que não há nenhuma dificuldade em explicar
porque devemos obedecer às leis justas estabelecidas na vigência de uma
constituição justa. Neste caso, os princípios do direito natural e o
princípio da eqüidade estabelecem os deveres e obrigações necessários, tal
qual já apontado anteriormente. Como já dito, os cidadãos em geral têm um
compromisso com o dever de justiça, e aqueles que assumiram cargos e
ofícios destacados, ou que se beneficiaram com certas oportunidades para
promover os seus interesses, têm, em conseqüência a obrigação de prestar a
contribuição determinada pelo princípio da eqüidade. A verdadeira questão,
nos diz Rawls, está em saber em que circunstâncias e em que medida somos
obrigados a obedecer a ordenações injustas.

A injustiça da lei, por si só, segundo o Autor, não é uma razão
suficiente para não aderir a ela, tal como a sua validade formal não é
razão suficiente para acatá-la. Sempre que a estrutura básica da sociedade
for razoavelmente justa, conforme a avaliação permitida pelas
circunstâncias concretas, devemos reconhecer as leis injustas como
obrigatórias, desde que não excedam certos limites de injustiça. A
justificativa da não obediência, portanto, depende do grau de injustiça das
leis e instituições combatidas.

Como adverte Rawls, as leis injustas não estão todas no mesmo nível
de igualdade, e o mesmo vale para políticas e instituições.

A injustiça pode surgir de duas formas: as estruturas podem afastar-
se dos padrões publicamente admitidos, que são mais ou menos justos; ou
essas estruturas podem estar de acordo com a concepção de justiça da
sociedade ou da classe dominante, mas essa concepção pode não ser razoável
e, em muitos casos, claramente injusta.

Quando as leis e as políticas se afastam dos padrões publicamente
reconhecidos, é presumível que, até certo ponto, se possa apelar ao senso
de justiça da sociedade. Se, no entanto, não houver violação da concepção
dominante da justiça, então o caso será muito diferente. O curso da ação a
seguir depende muito do grau de razoabilidade da doutrina aceita e dos
meios que estão disponíveis para mudá-la.

Em princípio, como vimos, em uma sociedade razoavelmente justa, em
razão do dever natural de apoiar as suas instituições, subsiste o dever de
obedecer às leis injustas desde que esta não exceda a certo limite de
injustiça.

Pelo princípio da eqüidade, as partes, na posição original,
escolhem os princípios de justiça que guiam a elaboração de uma
constituição justa.

Uma constituição justa é definida como aquela que é aceita por
delegados, presentes na convenção constituinte, racionais e orientados
pelos dois princípios da justiça. As leis e medidas políticas justas são
aquelas adotadas por legisladores racionais na fase legislativa, os quais
respeitam os limites impostos por uma constituição justa e tendem
conscientemente a guiar-se pelos princípios da justiça. Todavia, na fase
constituinte, as partes empenhadas nos princípios da justiça devem fazer
concessões às outras para que o regime constitucional funcione. Neste
momento, será inevitável que as suas opiniões sobre a justiça entrem em
conflito. As regras da maioria, compatível com os dois princípios da
justiça, geram sempre imperfeições no resultado da elaboração de leis. A
aceitação dessas duras conseqüências é simplesmente o reconhecimento dos
limites impostos pelas circunstâncias da vida e a disposição de trabalhar
no contexto de uma democracia constitucional. Em vista disso, temos um
dever natural de civilidade de não invocar as falhas das ordenações sociais
como desculpa fácil para não obedecê-las, nem tampouco explorar as
inevitáveis lacunas nas regras para promover nossos interesses. O dever de
civilidade impõe a devida aceitação dos defeitos de instituições e uma
certa moderação em beneficiar-se delas. Sem algum tipo de reconhecimento
desse dever natural, crença ou confiança mútuas, tendem a fracassar. Assim,
pelo menos num estado de quase-justiça, há normalmente um dever (e para
alguns também, a obrigação) de obedecer a leis injustas, desde que não
ultrapassem certos limites de injustiça, como já dito anteriormente.

Partindo destas ponderações, Rawls analisa a recurso da
desobediência civil e da objeção de consciência.

Segundo o Autor, o problema da desobediência civil se apresenta
apenas no âmbito de um estado democrático, mais ou menos justo, para
aqueles cidadãos que reconhecem e aceitam a legitimidade da constituição.
Trata-se de um problema de deveres conflitantes: o dever de obedecer a leis
estabelecidas por uma maioria do legislativo versus o direito de defender
as liberdades pessoais e do dever de se opor à injustiça. Essa questão,
ressalta Rawls, envolve a natureza e os limites da regra da maioria e, por
esse motivo, o problema da desobediência civil é um teste crucial para
qualquer teoria da base moral da democracia.

Uma teoria constitucional da desobediência civil tem três partes.
Primeiro, ela define essa espécie de dissensão e a distingue de outras
formas de oposição à autoridade democrática. A teoria especifica o lugar da
desobediência civil entre estas outras possibilidades de oposição . Em
seguida, ela apresenta as razões da desobediência civil e as condições em
que tal ação se justifica num regime democrático razoavelmente justo.
Finalmente, a teoria deve explicar o papel da desobediência civil dentro de
um sistema constitucional e dar a conhecer a adequação desse modo de
protesto no seio de uma sociedade livre.

A desobediência civil é definida por Rawls como um ato político,
não-violento, decidido com o objetivo de instigar, provocar uma mudança nas
leis ou na política. Trata-se de apelação de que os princípios da
cooperação entre homens livres e iguais não estão a ser respeitados.

A desobediência civil não requer, necessariamente, que o ato de
desobediência viole a lei que é objeto de contestação. Admite-se a
desobediência direta ou indireta. Por exemplo, leis relativas à política
externa não podem ser cumpridas ou descumpridas pelos dissidentes
nacionais. Nesse caso, o descumprimento se dará em outra lei interna.

A desobediência civil não é justificada por princípios de
personalidade moral ou doutrinas religiosas. É fundamentada apenas na
concepção de justiça partilhada que subjaz à ordem política. A violação
persistente e deliberada dos princípios básicos da concepção de justiça
durante um período de tempo extenso, em especial a lesão das liberdades
fundamentais, convida à submissão ou à resistência. Na desobediência, a
minoria força a maioria a decidir se quer que os seus atos sejam assim
interpretados ou se, tendo em vista o senso comum da justiça, deseja
reconhecer as suas exigências legítimas.

A desobediência civil foi definida por Rawls de tal modo a se
situar entre o protesto jurídico e a provocação intencional de processos
exemplares, por um lado, e a recusa de consciência e as várias formas de
resistência, por outro lado. Nessa gama de possibilidades, ela representa
aquela forma de dissensão situada nos limites da fidelidade à lei.

Os atos de desobediência civil restringem-se às infrações sérias ao
princípio da justiça, ao princípio da igualdade e às violações evidentes da
segunda parte do princípio da igualdade de oportunidades e deve ser
precedida de apelos à maioria política, embora Rawls afaste a necessidade
de exaurimento das vias ordinárias de contestação.

Rawls faz uma última advertência com relação à justificação da
desobediência civil que é a questão de sua eficácia versus o risco
institucional que pode acarretar.

Encerrando suas proposições sobre a desobediência civil, Rawls
parte para a análise do seu papel na sociedade democrática razoavelmente
justa.

Rawls destaca, então que, numa sociedade quase justa, sujeitas a
injustiças, aqueles que são vítimas de injustiças sérias não estão
obrigados à submissão. Na realidade, a desobediência civil é um dos
mecanismos estabilizadores de um sistema constitucional, embora por
definição seja um mecanismo ilegal. Ao lado de eleições livres e regulares
e um Poder Judiciário independente, competente para interpretar a
Constituição, a desobediência civil, quando utilizada de forma ponderada,
ajuda a manter e fortalecer as instituições justas.

O fato de os cidadãos responderem à violação das liberdades
fundamentais mediante recurso à desobediência civil significa o reforço
dessas liberdades. A desobediência civil é uma forma de introdução, dentro
dos limites da fidelidade ao Direito, de um mecanismo de último recurso que
mantenha a estabilidade de uma Constituição justa. Embora ilegal, diz
Rawls, é altamente moral.





Conclusão - O Direito em Rawls




A preocupação com a explicitação do papel do Direito em Rawls é
fruto, como já foi dito no prefácio, de uma formação jurídica tipicamente
positivista, que ainda domina as faculdades de Direito no Brasil.

Esta formação é amplificada pelo nossos sistema jurídico latino.

Para Rawls, no entanto, a questão não adquire a mesma intensidade e
relevo com que nos atinge, porque o Autor está inserido no sistema da
common law.

Neste sistema há uma maior ambigüidade entre Direito e Jurisdição
tendo esta última, inclusive, um significado muito mais próximo de sua
origem etimológica de dizer o Direito (jus dicere). Isto se dá porque no
sistema da common law as decisões judiciais estão vinculadas aos
Precedentes e estes foram formados em julgamentos tirados a partir dos
princípios Constitucionais, ou de princípios de Direito e Justiça, como bem
demonstra Dworkin[48]. Nesse sistema o Direito confunde-se com as decisões
proferidas pelos Tribunais, tendo, por essa razão, florescido com tanta
força nos Estados Unidos da América, as escolas realistas do Direito.

Assim, para o jurista norte-americano que é John Rawls, a questão
dos princípios informadores do Direito, os princípios da Justiça, são
inegavelmente mais relevantes do que o estudo do Direito em si. O Direito
seria, em princípio, a aplicação dos pressupostos de justiça aos casos
concretos, pelos tribunais.

No entanto, a obra de Rawls revela um perfil do Direito um pouco
mais preciso do que aquele mencionado no parágrafo anterior.

De fato, iremos identificar três momentos do Direito para Rawls:

O Direito como justiça formal – Justiça como regularidade;

O Direito como justiça substancial – aplicação dos princípios
da justiça às instituições sociais básicas; e,

O Direito como instrumento de estabilidade do consenso
social.

A justiça formal, a regular e imparcial administração de regras
públicas (que constituem uma Instituição), é uma justiça procedimental que
reconhece o ordenamento jurídico como conjunto de leis vinculantes em razão
da sua origem em uma Constituição razoavelmente justa

A legalidade, que em Rawls admite e até obriga ao respeito à lei
injusta, não se confunde, todavia, com o positivismo jurídico. Na justiça
como eqüidade o fundamento da legalidade não é o simples critério
procedimental. As leis devem ser fruto da atividade de legisladores
conscientes, não apenas dos limites impostos pela Constituição, mas também
dos princípios de justiça adotados e reconhecidos pela Assembléia
Constituinte, como os mesmos valores que seriam escolhidos na Posição
Original. De tal sorte que, a despeito do dever natural de obediência às
leis razoavelmente injustas, como forma de apoio às instituições sociais
razoavelmente justas, a injustiça de uma lei, face àqueles princípios
adotados, justificará que a ela se faça oposição ou se pregue desobediência
civil.

Como justiça substancial, o Direito para Rawls é a transcrição dos
princípios de justiça adotados na posição original nos estatutos das
instituições básicas da sociedade, especialmente a Constituição, aliado ao
dever natural de apoio a essas instituições, ao dever de oposição à
injustiça e ao direito de reclamar o reconhecimento da aplicação dos
princípios de justiça para a defesa dos interesses individuais.

O Direito, neste caso, é a própria realização dos princípios da
Justiça de Rawls e, por isso, é o que mais revela sua herança
neojusnaturalista.

Mas o que me interessa, como já afirmado anteriormente, é o direito
como instrumento de estabilidade do consenso social.

Penso que aqui reside toda a novidade trazida pela teoria de Rawls.

De fato, Rawls está preocupado com a estabilidade do consenso
social. Esta preocupação aflora na sua crítica ao utilitarismo quando
afirma que o argumento utilitarista carrega em si a semente de sua própria
rejeição. Isto porque, questiona Rawls: como se poderá justificar ao membro
mais desfavorecido da comunidade, que sua má-sorte justifica-se pelo maior
benefício aos outros membros da mesma comunidade?

Rawls percebe que, para que a cooperação social seja estável é
preciso o comprometimento de todos e cada um da sociedade. Tal overlapping
consensus, não ocorrerá se não houver justificativa racional para o
convencimento do membro mais desfavorecido pelo esquema social adotado pela
sociedade, especialmente quando falamos em distribuição de bens, poderes e
encargos entre seus membos.

Esta constatação de Rawls, ao meu ver, traz uma alteração do
paradigma de análise da sociedade, semelhante à alteração ex parte
principis para ex parte populis na justificativa das formas de governo
ocorrida com o advento do Estado Moderno.

Estabelece-se o novo paradigma que chamaria de "a perspectiva do
menos favorecido".

Note-se que, não estamos falando de excluídos. A existência destes
faz supor que a sociedade que os excluiu sequer chegou aquele patamar de
progresso mínimo (cultural e econômico), que Rawls pressupôs como condição
para o sucesso de sua Teoria da Justiça.

Assim, a perspectiva do menos favorecido deve ser o farol a
determinar a adoção dos princípios da Justiça como Eqüidade (e alteridade).

Adotados estes princípios, o Direito passa a ter o papel de serví-
los, e, assim, servir à estabilidade da cooperação social.

E como o fará?

Por certo, implementando políticas sociais de distribuição de
rendas, de poupança (para as futuras gerações) e atuando na solução de
conflitos de interesses, privilegiando aqueles mais adequados aos
princípios da justiça como eqüidade.

Para que possa ser um instrumento decisório (de conflitos de
interesses públicos, privados ou entre públicos e privados) o Direito há de
ser reconhecido e respeitado. O mesmo grau de compromisso que reclamam os
princípios da justiça, aplicados às instituições básicas da sociedade,
exige o Direito como instrumentalização da justiça como eqüidade.

Assim, ao Direito haverá de corresponder uma certa dogmaticidade
tal qual apresentada pelo professor Tércio Sampaio Ferraz Jr. em sua obra,
"A Função Social da Dogmática Jurídica".

Desta forma, se, juntos com Rawls, encontrássemo-nos, como
Persifal, diante da Voz que nos indagasse: "A quem serve o Direito",
poderíamos responder:

- À Justiça como forma eqüitativa de distribuição de bens,
benefícios e encargos e à Paz Social, que se garante pelo compromisso de
todos e cada um com as Instituições sociais justas, pela perspectiva do
menos favorecido.












Bibliografia


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Editora Campus – 1992
Bobbio, Norberto; Matteucci, Nicola e Pasquino, Gianfranco – Dicionário de
Política, Editora UnB – 6ª ed. –
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[1] Lafer, Celso, A Reconstrução... pág. 73, 74
[2] Perelman, id ibidem
[3] Lafer, Celso, A Reconstrução... pág. 73
[4] Tércio Sampaio Ferraz Jr, Introdução..., pág. 21
[5] Miguel Reale, O Direito e a problemática de seu conhecimento in
Horizontes...., pág, 256
[6] Grau, Eros Roberto, Direito, Conceitos e Normas Jurídicas, Ed. RT,
1988, pág. 37
[7] Reale, Filosofia... pág. 699
[8] Reale, Filosofia... pág. 700
[9] Reale, Filosofia... pág. 699
[10] Reale, Filosofia... pág. 700
[11] Tércio, Introdução..., pág. 54
[12] Tércio..., Introdução..., pág. 55
[13] Reale, Miguel, Horizontes..., pág. 288 - "A Justiça não vale por si,
mas em razão de outros valores. Nem da própria Vida se poderá dizer que
valha em razão de outros valores, embora seja condição para que o homem
possa fruir dos valores do verdadeiro ou do belo: a Vida também vale por si
mesma, e é de tão radical valia que por ela, em geral, se sacrificam todos
os bens. Nenhum valor mais urgente do que a Vida, pois que se impõe de
maneira irrefragável, desmentindo o fiat justitia, pereat mundus: só é
próprio dos heróis e dos santos, só é próprio das comunidades dominadas
pela objetividade transpessoal de seus ideais, realizar o valor ético de
sacrificar a Vida para o triunfo de uma nobre causa. Com o justo dá-se um
fato diverso: realizar o justo outra cousa não é senão permitir a
realização de valores distintos. Daí dizermos que a justiça é o valor
franciscano, aquele que vale em razão de outrem, cuja glória e virtude
consiste em fazer os outros venturosos, perfeitos em seu valer próprio na
harmonia do todo coletivo".
[14] Reale, Filosofia... pág. 713
[15] Função Social da Dogmática Jurídica, São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 1980, pág. 199
[16] Bobbio, Matteucci e Pasquino, Dicionário... pág. 349
[17] idem ibdem
[18] Bobbio, Matteucci, Pasquino, Dicionário..., pág. 350 e 351
[19] Miguel Reale, opus. cit., pág. 256, 257 e 258
[20] Ferraz Jr., Tércio Sampaio - 2ª ed. - São Paulo, ed. Atlas, 1980.
Neste livro o autor afirma que a Ciência Jurídica adquiriu, por
contingências históricas, um caráter tecnológico notável, que acabou
fazendo do problema da decidibilidade de conflitos (legislativos,
administrativos, judiciais etc.) o centro do pensar jurídico. Saber
tecnológico, a Ciência do Direito tem por objetivo criar condições a tomada
de decisões. Para alcançá-lo, ela se vale de três modelos teóricos: a
teoria da norma, a teoria da interpretação e a teoria da decisão. O
primeiro vincula-se a um enfoque sistematizador e classificatório de normas
e conceitos, produzindo um saber em que predomina o caráter organizatório
de matérias e questões. O segundo preocupa-se menos com a organização,
muito mais com o sentido das normas, tendo em vista a elaboração de regras
e Cânones interpretativos. O terceiro constitui uma teoria da decisão
strictu sensu, elaborando-se como uma tecnologia de controle de
comportamentos por meio de atos normativos.
[21] Tércio Sampaio Ferraz Jr., Introdução... págs. 82 e 83
[22] Tércio Sampaio Ferraz Jr., A Função Social....pág. 87
[23] apud pág. 90
[24] Reale, Filosofia... pág. 702
[25] Reale, Filosofia... pág. 703
[26] Höffe, Otfried - Justiça Política, fundamentação de uma filosofia
crítica do direito e do estado - trad. Ernildo Stein; Petrópolis, ed.
Vozes, 1991, pág. 36
[27] idem ibden
[28] Del Vecchio, A Justiça, pág. 223
[29] Lafer, Celso, A Reconstrução dos Direitos Humanos, um diálogo com o
pensamento de Hannah Arendt - 1ª reimpressão, São Paulo: Companhia das
Letras, 1991, pág.63.
[30] citado por Bobbio, Matteucci e Pasquino, Dicionário..., pág. 661
[31] Del Vecchio, A Justiça, pág. 224
[32] Perelman, Chaïm - Ética e Direito; trad. Maria Ermantina Galvão, São
Paulo, Martins Fontes, 1996, § 26, págs. 386/392.
[33] Assim é que, para Aristóteles, se "a lei estabelece uma regra
universal e se sobrevem em seguida um caso particular que escapa a essa
regra universal é então legítimo - na medida em que a disposição adotada
pelo legislador é insuficiente e errônea por causa de seu caráter absoluto
- trazer um corretivo para sanar essa omissão, editando o que o próprio
legislador editaria se lá estivesse e o que teria prescrito na lei se
tivesse conhecido do caso em questão". Vemos assim que, quando numa
situação fora do comum, a lei se mostra inaplicável, cabe preencher a
lacuna presumida mediante o recurso à eqüidade, pondo-se no lugar do
legislador razoável. Quando o texto da lei romana não permitia decidir de
uma forma eqüitativa, porque não se aplicava aos estrangeiros, por exemplo,
o pretor assimilava, por meio de uma ficção, o estrangeiro ao cidadão
romano e fornecia um preceito conveniente que permitia paliar a
insuficiência da lei. Em direito talmúdico, a situação era mais delicada,
pois se supunha que a lei aplicável, sendo de origem divina, era perfeita.
Ora, segundo essa legislação, o juiz deveria inclinar-se diante do
depoimento de duas testemunhas cujas afirmações fossem concordantes, apesar
do interrogatório ao qual as submetia. Quando, não obstante, ele tinha a
convicção de que estava enganado e para não pronunciar uma sentença iníqua,
era aconselhado ao juiz desqualificar-se, fundamentando-se nas palavras da
Escritura: "Das palavras enganadoras tu te afastará"(Êxodo, XXIII, 7).
Como, em tais circunstâncias, nenhum outro rabino aceitaria retomar o
processo, evitava-se a iniqüidade, mas cometendo uma denegação de
jurisdição generalizada. Na tradição cristã, tal como é atestada por Santo
Agostinho e Santo Tomás, em caso de conflito entre o direito positivo e o
direito natural, era o direito positivo que a doutrina descartava. Para
Santo Agostinho, na ausência de justiça, não pode haver direito (A Cidade
de Deus, XIX, 21) e o que não é justo parece não ser, de modo algum, uma
lei (Do livre arbítrio, I, 5). Para Santo Tomás, na medida em que uma lei
humana se opõe ao direito natural, já não se trata de uma lei, mas de uma
corrupção da lei (Suma teológica, I secundae, Q. 95, art. 2º). É verdade
que, para Hobbes, a lei civil e a lei natural não podem contradizer-se.
Pois, embora ele admita um princípio de justiça que consiste em dar a cada
qual o que lhe é devido, apenas a lei civil determina o que é devido a cada
qual; de sorte que nada pode ser considerado injusto senão o que viola uma
ou outra lei (Leviatã, II, cap. 26). Essa concepção firmou-se apenas no
século XIX. O ponto de vista que se impôs durante os séculos que viram o
triunfo do racionalismo foi o de Montesquieu, tal como expresso no início
de sua grande obra, O espírito das leis: "Dizer que não há nada de justo ou
injusto senão o que ordenam ou proíbem as leis positivas é dizer que, antes
que se houvesse traçado o círculo, nem todos os raios eram iguais. Cumpre,
pois, reconhecer relações de eqüidade anteriores à lei positiva que as
estabelece". Em virtude da doutrina da separação dos poderes, que proíbe
aos juizes qualquer papel na formulação das leis, estes serão apenas a boca
que pronuncia as palavras da lei"(O espírito das leis, 1ª parte, L. XI,
cap. 6). Os juizes não têm de opor ao legislador a concepção de justiça
deles: suas sentenças serão 'um texto preciso da lei" - cf. Perelman,
op.cit.
A ideologia de Rousseau confirmou a primazia do legislador. Como o direito
não é mais do que a expressão da vontade do Soberano, ou seja, da vontade
geral, esta é "sempre reta, pelo menos enquanto não se refere a interesses
particulares"(O contrato social, L. II, cap. VI) e a lei só pode ser justa.
[34] Höffe, op. cit - Ao contrário, em outras esferas encontramos princípio
de ação, cuja justiça ninguém põe seriamente em dúvida. Princípios
incontroversos existem, por exemplo, para a justiça de troca. (...) Também
em questões de procedimentos, existem princípios de cuja justiça quase
ninguém duvida; pense-se apenas no mandamento de, num caso de conflito,
ouvir o outro lado (audiatur et altera pars) e a proibição de ser juiz em
causa própria (nemo judez in sua causa). Tais princípios de procedimento
são considerados justos pelo fato de servirem a um princípio de justiça que
tampouco é controvertida, a imparcialidade (eqüidade)
[35] Rawls, "A Theory...", pág. 579
[36] Dworkin, Ronald, Taking Rights Seriously
[37] Cf. Rawls, "Justiça como Eqüidade: uma concepção política, não
metafísica"
[38] Lafer, Celso, A Reconstrução..., pág. 71: De fato, o pluralismo tem
como núcleo de verdade a afirmação de Santi-Romano de que as relações
sociais que interessam ao Direito Público não se esgotam no indivíduo, de
um lado, e no Estado e nas comunidades territoriais, de outro, pois existem
organizações sociais derivadas de vínculos diversos dos de base
territorial. A aceitação de uma pluralidade de ordenamentos numa sociedade
pode ser encarada como um processo de progressiva liberalização do
indivíduo e dos grupos da opressão do Estado, pois o pluralismo registra e
legitima a existência de grupos entre o Estado e o indivíduo. (...) O
reconhecimento pelo pluralismo - enquanto resposta à crise de legitimidade
do poder estatal que positiva a legalidade -, de uma ampla e plural margem
de normas jurídicas derivadas de uma sociabilidade não-estatal pressupõe,
no entanto, normalmente, a integração das mesmas pelo Estado. É por essa
razão que Reale, admitindo uma graduação da positividade jurídica para
lidar com o pluralismo, considera o Estado o lugar geométrico da
positividade jurídica. Não é pacífica, no entanto, nas sociedades
contemporâneas, a aceitação da permanência da legitimidade do Estado como
lugar geométrico da positividade jurídica. É por isso e pelos problemas
práticos que suscita no dia-a-dia do Direito que os jurisfilósofos foram
incluindo no campo da deontologia considerações de conteúdo. Cf. Walzer,
Michael - Spheres of Justice - a defense of pluralism and equality, Basic
Books, 1983, pág 5: Justice is a human construction, and it is doubtful
that it can be made in only one way. At any rate, I shall begin doubting,
and more than doubting, this standard philosophical assumption. The
questions posed by the theory of distributive justice admit of a range of
answers, and there is room within the range for cultural diversity and
political choice. It's not only a matter of implementing some singular
principle or set of principles in different historical settings. No one
would deny that there is a range of morally permissible implementations. I
want to argue for more than this: that the principles of justice are
themselves pluralistic in form; that different social goods ought to be
distributed for different reasons, in accordance with different procedures,
by different agents; and that all these differences derive from different
understandings of the social goods themselves - the inevitable product of
historical and cultural particularism.
[39] Sandel. Michael J., Liberalism and the Limits of Justice, pág. 43:
"The conditions of the original position cannot be immune from actual human
circumstances that just any assumptions producing attractive principles of
justice would do. Unless the premises of such principles bear some
resemblance to the condition of creatures discernibly human, the success of
the equilibrium is, to that extent, undermined. If we could match our
convictions about justice only by appealing to premises that struck us as
eccentric our outlandish or metaphysically extreme, we would rightly be led
to question the convictions those principles happened to fit.
[40] Lafer, Celso, A Reconstrução... pág. 65
[41] Lafer, Celso, A Reconstrução... pág. 36
[42] Gustav Radbruch, Filosofia..., pág. 61 e 62
[43] Lafer, Celso, A Reconstrução... pág. 38
[44] Lafer, Celso, A Reconstrução... pág. 40
[45] Perelman, Ética e Direito... pág. 239
[46] Rawls, A Theory..., pág. 110 - "Therefore, to establish a complete
conception of right, the parties in the original position are to choose in
a definite order not only a conception of justice but also principles to go
with each major concept falling under the concept of right".
[47] Rawls, A Theory..., pág. 235/ 6: O sistema legal, ou o ordenamento
positivo, é uma ordem coercitiva de regras públicas direcionadas para
pessoas racionais com a intenção de regular suas condutas e proporcionar
bases para uma cooperação social. Quando essas regras são justas,
estabelecem-se as bases para legítimas expectativas quanto ao comportamento
de cada um dentro da sociedade. O que distingue o sistema legal de outras
regras ou ordenamentos é o seu escopo abrangente e seus poderes
regulamentares em relação a essas regras e ordenamentos. Além disso, o
sistema legal, também admite, através dos órgãos que cria e estabelece, o
uso de formas mais extremas de coerção, que são vedados aos outros sistemas
de normas e ordenamentos. Da mesma forma, identifica o sistema legal, o
fato de ser aplicado sobre um território bem definido, o largo espectro das
atividades que regula e a natureza fundamental dos interesses para a
segurança dos quais foi desenhado.
[48] Dworkin, Ronald, Talking Rights Seriously
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