Sobreviver e sonhar: reflexões sobre cultura e \"pacificação\" no Complexo do Alemão.

October 2, 2017 | Autor: Adriana Facina | Categoria: Slums, Favelas, and Shanty-towns, Police Pacification Units, Complexo Do Alemão
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Sobreviver e sonhar: reflexões sobre cultura e “pacificação” no Complexo do Alemão1 Adriana Facina (antropóloga, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ) A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo. Eduardo Galeano

Num texto crítico pioneiro, publicado em meio à euforia midiática em torno da invasão militar do Complexo do Alemão ocorrida ao final de 2010, Vera Malaguti destaca a relação entre a esplendorização da segurança com as necessidades de controle dos corpos, no contexto do capitalismo videofinanceiro2. Apresentadas como novidades, as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), de acordo com a socióloga, são parte de uma longa história, remontando às “pacificações” promovidas pela metrópole no empreendimento colonial. Controle de populações, opressão com os de baixo, domesticação de corpos para torná-los rentáveis, massacres em série. Eis a militarização da vida, agora em versão glamourizada por uma mídia com um estética à la Tropa de Elite. (BATISTA, 2011) Um dos argumentos dos defensores das UPPs é que a presença da ocupação militar permite um florescimento cultural das favelas “pacificadas”, trazendo novas iniciativas e investimentos nesse setor. Shows, eventos, projetos sócio-culturais, ONGs, equipamentos públicos passam a integrar o cotidiano de um território que antes era representado nos meios de comunicação e na indústria do entretenimento quase que exclusivamente como lugar da violência armada e da barbárie. Nessa argumentação, as UPPs se tornam uma espécie de marco zero cultural em favelas como Santa Marta ou o Complexo do Alemão. Uma matéria do RJ TV no morro                                                                                                                 1

Dedico este artigo a Vera Malaguti e a Nilo Batista, combatentes incansáveis da criminalização da pobreza e fornecedores de argumentos preciosos para todos aqueles que 2 O capitalismo videofinanceiro ao qual se refere Vera Malaguti Batista é um conceito criado por Gilberto Felisberto Vasconcellos, inspirado na Escola de Frankfurt, e que busca compreender a “fusão do banco com a TV”.

 

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Santa Marta, realizada logo após a implementação da primeira UPP em 2008, mostrava crianças soltando pipa e afirmava que aquela atividade tradicional das brincadeiras infantis só era possível ali por causa da presença da polícia militar. Qualquer morador da cidade do Rio de Janeiro sabe que, se há locais na cidade nos quais soltar pipa ainda é prática disseminada, esses locais são as favelas. E isso independe da existência de ocupações militarizadas empreendidas pelo Estado. Os eventos que se tornaram rotina no Complexo do Alemão após a implementação de diversas UPPs naquele território também são sempre apresentados na televisão, sobretudo nos programas da TV Globo, como resultado da pacificação, como se nada ocorresse ali antes disso. A novela Salve Jorge, veiculada por esta emissora no horário nobre entre outubro de 2012 e maio de 2013, tinha como cenário um Complexo do Alemão “pacificado” e folclórico, com suas brigas de vizinhas e moças permanentemente tomando sol nas lajes de suas casas. Frequentemente as falas dos personagens favelados se referiam à ocupação armada como um benefício que teria transformado para melhor sua realidade, criando uma nova época na história daquele lugar, um recomeço. Essas representações invisibilizam iniciativas que existem há décadas nessas favelas: pré-vestibulares populares, veículos de comunicação comunitária, coletivos de grafiteiros, oficinas de audiovisual, artistas e grupos culturais diversos. Elas também obscurecem práticas culturais que são parte da constituição desses territórios como regiões significativas da cidade, com padrões de interação sociais e de sociabilidade específicos, muitas vezes erigidos sob o signo da resistência (contra remoções, racismo, desigualdades sociais etc). Mais ainda, tais discursos do marco zero cultural também caminham junto com a criminalização e a deslegitimação de práticas culturais populares, vistas como barbárie e desordem. O caso mais explícito é o da proibição dos bailes funk, principal forma de lazer da juventude popular das favelas do Rio de Janeiro, nos locais em que são implementadas as UPPs. Em 12 de novembro de 2012, durante meu trabalho de campo com artistas e agentes culturais no Complexo do Alemão, perguntei ao MC Raphael Calazans sobre o que ele destacaria de específico da vida cultural do Alemão. Nascido e criado no Complexo, negro, estudante de Serviço Social na UFRJ, o jovem MC respondeu: Não existiria o Complexo do Alemão se não fosse a cultura. E a cultura não só a cultura artística do grafite, do rap, do pagode, do samba. Não, eu acho que é

 

3   uma cultura da sobrevivência. Por exemplo, o gatonet. O gatonet nada mais é do que uma cultura de universalizar o acesso à internet. O gato luz nada mais é do que uma cultura da sobrevivência para universalizar o acesso à luz. Cultura da favela, do Complexo do Alemão principalmente, ela sempre veio da solidariedade. Então é assim: se você que mora embaixo do morro tem uma internet, o cara que mora aqui no pico da Grota tem que ter. Então pega os fiozinhos, vai engatando até chegar lá. Se você mora no pé do morro e tem saneamento básico, mano, puxa um caninho lá da puta que o pariu e vem emendando, fazendo gato, passando perrengue. Então essa cultura, que é o que acho mais importante, foda, incrível, essa cultura da sobrevivência fundada numa solidariedade, uma identidade de irmandade mesmo, que eu acho assim que é a mais... que poucas pessoas valorizam isso e quando valorizam é para legalizar: “vamo botar TV por assinatura, vamos acabar com os gatonets...” Quando isso é uma cultura que o morro criou. Lan houses, né, que foram criadas na própria favela para dar acesso à internet, mototáxi... Então a primeira cultura que a gente tem é uma cultura da sobrevivência. A gente tem uma realidade difícil, então, como vamos superar ela? Uma das formas de superar é construir uma cultura local. Fora isso, a parte mais tradicional da cultura, isso daqui, cara, é um celeiro de artistas. Artistas tanto do grafite, do pagode, do samba. Você tem a quadra da Imperatriz aqui na Pedra do Sapo, lá do início – isso eu sei por causa que os meus avós iam, foram uns dos fundadores de lá – e era o encontro dos neguinhos com cachaça e violão, fazendo música, fazendo samba. Não tinha luz no Complexo do Alemão, era tudo roça. Aí começou dali. Cada beco daqui tem uma certa identidade. Assim, mais do que expressões artísticas específicas, a cultura envolveria

modos de vida permeados de solidariedade e de estratégias para garantir direitos e acessos aos benefícios da modernidade, como luz elétrica, água encanada, internet e TV a cabo. A criação artística não pode ser separada disso, pois ela é gerada pelos mesmos valores e elabora simbolicamente práticas cotidianas do chão dos becos que se tornam matéria-prima da criatividade. Segundo o MC, é desse ponto de partida que se pode compreender o grafite, o samba, o funk etc. Sua formulação é muito próxima a de Homi Bhabha, intelectual indiano que se dedicou a pensar cultura e pós-colonialismo. Vejamos o que diz Bhabha:

 

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Nesse sentido salutar, toda uma gama de teorias críticas contemporâneas sugere que é com aqueles que sofreram o sentenciamento da história – subjugação, dominação, diáspora, deslocamento – que aprendemos nossas lições mais duradouras de vida e pensamento. Há mesmo uma convicção crescente de que a experiência afetiva da marginalidade social – como ela emerge em formas culturais não-canônicas – transforma nossas estratégias críticas. Ela nos força a encarar o conceito de cultura exteriormente aos objets d’art ou para além da canonização da “ideia” de estética, a lidar com a cultura como produção irregular e incompleta de sentido e valor, frequentemente composta de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato da sobrevivência social. A cultura se adianta para criar uma textualidade simbólica, para dar ao cotidiano alienante uma aura de individualidade, uma promessa de prazer. A transmissão de culturas de sobrevivência não ocorre no organizado musée imaginaire das culturas nacionais com seus apelos pela continuidade de um “passado” autêntico e um “presente” vivo – seja essa escala de valor preservada nas tradições “nacionais” organicistas do romantismo

ou

dentro

das

proporções

mais

universais

do

classicismo.”(BHABBA, 1998: p.240-241)

O que existe de comum entre as experiências culturais produzidas e vividas nas favelas cariocas e as dos povos que foram subjugados mais diretamente ao colonialismo imperialista? Responder a essa questão significa refletirmos sobre os sentidos da cultura. O processo de subalternização de povos, classes sociais, etnias, gêneros

sempre

envolve

elaborações

culturais

que

permitem

hierarquizar

simbolicamente formas de vida, produções estéticas e valores éticos. O Outro é constituído por ausência: selvagens, bárbaros, incivilizados, sem cultura ou portadores de culturas inferiores. Caberia aos civilizados disseminarem seus modelos de interação social e de produção de cultural para o resto da humanidade, num processo de enquadramento permeado de violência simbólica. Dessa maneira, as crianças argelinas, no período da dominação francesa, viam sua língua ser considerada como língua estrangeira ao mesmo tempo em que eram convocadas a amar a França como sua pátria. Cerceadas nas possibilidades de auto-expressão em sua língua materna, o

 

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árabe, e com sua história apagada nos bancos escolares, elas eram preparadas para aceitar a superioridade francesa e a buscar um lugar subalterno no arranjo imperialista. Pacificar, termo frequentemente utilizado nos empreendimentos colonialistas, era civilizar nos moldes europeus. Como relata Marc Ferro, “Crianças, amai a França, vossa nova pátria”, dizia o professor. Em Argel, em 1939, comemoravam-se os 150 anos da Revolução Francesa: jovens árabes e mourescos desfilavam, os primeiros portanto o traje dos sans-culottes, os segundos, com a fronte cingida por uma coroa tricolor. (FERRO, 1996: 148) A experiência dos múltiplos deslocamentos culturais pode ser a conexão entre a sensibilidade pós-colonialista e os modos de sentir os processos de subalternização vividos pelas populações pobres e negras das periferias brasileiras. Construída sob a pena de três séculos de escravidão, é impossível pensar a sociedade brasileira sem levar em conta sua formação diaspórica. Deslocamentos, desenraizamentos, fluidez são parte da experiência da diáspora que fazem com que Paul Gilroy encontre no mar, na travessia do Atlântico, a metáfora que a sintetiza. Assim são criadas culturas transnacionais, com identidades em fluxo que foram capazes de gerar um idioma comum que supera as fronteiras entre países e continentes. O idioma da diáspora é inscrito no corpo e sua linguagem principal é a música. No dizer de Gilroy, (...) a música, o dom relutante que supostamente compensava os escravos, não só por seu exílio dos legados ambíguos da razão prática, mas também por sua total exclusão da sociedade política moderna, tem sido refinada e desenvolvida de sorte que ela propicia um modo melhorado de comunicação para além do insignificante poder das palavras – faladas ou escritas (GILROY, 2001: 164). Transnacional, mas ao mesmo tempo em constante processo de moldagem e remoldagem em contextos históricos e territoriais específicos, a música da diáspora negra é prática cultural cuja continuidade é fluxo e não uma essência cristalizada. Seguindo Paul Gilroy, Les Back a caracteriza como outernacional. Em seus termos, In the language of

black vernacular cultures, the music has gone

outernational, simultaneously inside and beyond the nations through which it

 

6   passes. In this way contemporary musical cultures are fuelled by the creative tension between tradition and improvisation. (BACK, 1996: 185) Ao permitir o compartilhamento de experiências comuns, incluindo o racismo

e a opressão de classe, a música diaspórica fundamenta identidades e organiza utopias de libertação. Sua “oralidade cinética”, no dizer de Gilroy, compõem uma linguagem que fala mais ao corpo do que a uma razão formal. E assim se perpetuam histórias e memórias que estão fora das narrativas oficiais da modernidade. E essas podem ser compartilhadas até mesmo com aqueles que não sofreram diretamente a experiência do racismo, mas que se identificam e na identificação se solidarizam na luta pela sua superação. É o caso dos adolescentes brancos de uma região periférica de Londres, estudados por Les Back, que, ao compartilharem com seus colegas negros de uma cultura musical diaspórica, reconstróem suas identidades étnicas e, com isso, elaboram um olhar crítico para as desigualdades raciais presentes em sua sociedade. (BACK, 1996) A música negra é prova viva de que, por mais avassaladores e violentos (simbolicamente e de fato) que sejam esses processos de dominação, as resistências são múltiplas e impedem que a subordinação seja absoluta. Do mesmo modo que a cultura serve para submeter e exercer a violência simbólica, para marcar distinções sociais, como diria o sociólogo Pierre Bourdieu, ela também permite a construção de memórias e identidades outras, demarcando diferenças como afirmações positivas de dissidências políticas, subjetivas, existenciais, culturais. A cultura surge como recurso acionado para produção de contra-hegemonias emancipatórias, permitindo colocar em perspectiva, relativizar e se contrapor ao discurso hegemônico, com seus valores cristalizados e suas naturalizações. As favelas cariocas sempre foram palcos de múltiplas intervenções do Estado que buscavam, seja pelo meio explícito das remoções, seja por mecanismos mais sutis de aculturação, desfavelizar a cidade. Como os povos colonizados, a favela também era e é vista como lugar da barbárie, da ausência de tudo, incluindo cultura, como incivilidade. Seja nas representações midiáticas criminalizantes que equacionam favela = lugar do crime, lugares onde não se deve ir. Seja nos discurso de ONGs e afins que buscam “levar a cultura para a favela”, geralmente relacionando cultura a formas artísticas canônicas e tratadas de maneira desterritorializada. É o balé na favela domando os corpos produzidos nas infinitas belezas da diáspora negra. É o

 

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violino na favela enquadrando musicalidades deslegitimadas. É o tambor na favela como promessa de acesso a uma vida de artista entendida no sentido mais burguês e conformista do termo. O que falta aí é a percepção da favela como produtora de culturas. Culturas essas expropriadas pelas elites sem que se dê nada em troca, como diz Veríssimo Júnior, diretor do Grupo Teatro da Laje, atuante há mais de dez anos na Vila Cruzeiro. Esprema-se até o bagaço, jogue-se fora e colham-se novos frutos que não foram plantados por quem colhe. A lógica é essa. De volta à entrevista de Raphael Calazans, o MC define o PAC (Programa de Aceleração ao Crescimento) como marco na história recente do Complexo do Alemão. Viabilizadas por sinistras negociações entre poderes oficiais e extra-oficiais, as obras de infra-estrutura consumiram 1 bilhão de reais dos cofres públicos. A face cultural dessas intervenções estatais misturavam a promoção de shows em parceria com o Afroreggae com a destruição de obras artísticas e lugares de memória dessas favelas. Em setembro de 2007, por exemplo, com patrocínio da TIM, a ONG promoveu um show de Marisa Monte no Complexo do Alemão, dentro do projeto Conexões Urbanas. O evento, muito noticiado na imprensa na ocasião, ocorreu poucos meses após a Chacina do Pan, quando no mínimo 19 pessoas foram mortas por forças militares do Estado em um só dia. (FORTES, 2008) Segundo notícia da Folha de S. Paulo: No local do show havia várias faixas anunciando a presença do governador do Rio, Sérgio Cabral, que acabou sendo representado pelo vice-governador Luiz Fernando Pezão. Essa segunda etapa do Conexões Urbanas está associada às obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Pezão anunciou um investimento de R$ 480 milhões para obras no complexo. José Junior, coordenador do Afroreggae, disse que "é a primeira vez que o movimento tem relação de intimidade com o governo estadual". Nos últimos três dias a Força Nacional de Segurança passou a fazer o policiamento inclusive à noite, no lugar da Polícia Militar, para reduzir a tensão e permitir o show.3 Ao mesmo tempo em que esses e outros eventos eram promovidos, as obras do PAC destruíam uma galeria de grafite a céu aberto, a da Avenida Central no Morro                                                                                                                 3

Ver, por exemplo, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0110200737.htm, visitado em 30/10/2013.

 

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do Alemão. Feita por artistas locais e por outros vindos de fora a convite dos grafiteiros do Alemão, a galeria da Avenida Central era motivo de orgulho de seus moradores. Com a derrubada das casas e de muros para a ampliação da rua, os grafites foram eliminados. Num estranho arranjo, um grafiteiro de São Paulo, Eduardo Kobra, foi convidado a elaborar os grafites que enfeitam algumas das estações do teleférico, principal obra do PAC no Complexo do Alemão. Perguntei a David Amen, um dos mais respeitados artistas do grafite do local, se ele havia sido convidado a pintar suas obras no teleférico e ele me respondeu que não e que desconhecia o como teria se dado a escolha do Studio Kobra para realizar tal empreitada. Qual a lógica de uma intervenção pública que destrói as obras de artistas do território, realizadas autonomamente, e põe em seu lugar, com a mesma linguagem (o grafite), obras de um artista de fora realizada sob encomenda e patrocínio do Estado? Penso que, simbolicamente, é a mesma lógica subjacente à escolha do nome da escola pública construída como parte do PAC na Avenida Itararé, uma das principais vias de acesso ao Complexo. O Colégio Estadual Jornalista Tim Lopes homenageia o jornalista assassinado por bandidos moradores do território. Fartamente divulgada na mídia, a versão de que Tim Lopes teria sido capturado por comerciantes varejistas de drogas ilícitas ao investigar uma denúncia de exploração de menores em um baile funk na Vila Cruzeiro gerou uma onda de criminalização do gênero. Essa versão é contestada pela APAFUNK (Associação dos Profissionais e Amigos do Funk), cujas lideranças afirmam ser impossível uma investigação de baile funk ser realizada às 20h, já que essas festas só começam depois da meia-noite, e pelo inspetor que foi afastado do caso, Daniel Gomes.4 Fato é que Tim Lopes foi torturado e morto com requintes de crueldade e é isso que as crianças e jovens que estudam nessa escola são obrigados a lembrar todos os dias. Nas entrelinhas do discurso, podemos ler a permanente memória desse crime como parte de um cotidiano escolar que percebe no destino dessas crianças e jovens moradores do Complexo do Alemão a “semente do mal”. Nem sempre as armas precisam estar a mostra para a militarização da vida se fazer presente. Afinal, pacificar é fazer a guerra por outros meios, é garantir a conquista do território ocupando também corações e mentes. “Conquista sublimada”, como afirma Antonio Carlos de Souza Lima, a pacificação das favelas hoje tem fortes vinculações                                                                                                                 4

A versão do inspetor sobre http://www.professordanielgomes.com

o

caso

Tim

Lopes

pode

ser

lida

aqui:

 

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históricas com as ações do Estado brasileiro, em seu processo de formação, instituintes de um poder tutelar sobre as populações indígenas, tal como estudado pelo autor. Neste caso, a pacificação pelas armas precisa da pacificação da cultura para se perpetuar: A conquista implica em fixação de parte do povo conquistador nos territórios adquiridos pela guerra. Este processo se amplia após a vitória militar, configurando um maior afluxo de população originária das unidades sociais invasoras. Tal envolve o desdobramento da organização militar conquistadora em uma dada forma de administração, para gerir a exploração sistemática do butim, e a transmissão de alguns dos elementos culturais e valores principais do invasor, capazes de, por sua presença, definirem o pertencimento dos ocupantes daqueles territórios a uma totalidade social mais inclusiva e com maior dependência funcional entre suas partes, signos e valores cuja introdução/cotidianização/reprodução seria realizada através de instituições concebidas para esse fim. (LIMA, 1995: 53) Há semelhanças significativas com a lógica que orienta uma ocupação territorial armada, as UPPs, a colocar policiais para agirem como árbitros culturais, definindo o que pode e o que não pode ser manifestado. Quase sempre o que pode não tem relação com as culturas próprias das favelas, aquelas que articulam resistência e reexistência. Sob suspeita, as populações criminalizadas vêm suas expressões culturais tornarem-se crime ou serem vistas como “inadequadas” aos novos e civilizados tempos. Ao invés do funk, a música erudita a tocar, no único e mesmo CD repetido à exaustão, nas estações do teleférico. É a festa de rua que termina sob ordens policiais, é a dispersão das rodas de bate-papo nos becos. “Circulando, circulando” dizem os policiais, impedindo assim que circulem experiências, informações e sociabilidades comuns. A rua é esvaziada justamente num território da cidade na qual ela ainda possui um significado público, na contramão do processo de privatização que afeta fortemente a vida urbana no Rio de Janeiro nas suas regiões mais abastadas. Mas essas práticas culturais sobrevivem. Sobrevivem porque, enquanto culturas de sobrevivência, aprenderam a fazer da dificuldade e do sofrimento as matérias da criação. Sobrevivem porque ressignificam a vida, dão a força e a energia para se continuar. Sobrevivem porque portam vozes imemoriais tornadas

 

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contemporâneas que produzem outras versões sobre o que é o mundo e sobre o que ele deveria ser. É o grafite que volta a ocupar os muros que sobraram, é baile funk que volta a ocupar a rua da favela, é o passinho na quebradeira desafiando no corpo as iniciativas de domesticação e instituindo o orgulho dance (“eu sei, você não sabe”, “quero ver fazer igual”- frases que ouvi certa vez de bailarinos de passinho no Morro da Providência, me contando como desafiavam com sua dança os policiais da UPP), é o rap do MC Calazans desafinando o coro dos contentes ao cantar “Polícia passa e fica a dor”. Nessa letra, há todo um desvelamento da história que se dá por meio da torção do significado hegemônico do termo “pacificação”, conectando os sofrimentos de hoje com os do passado. Na longa duração, a polícia que passa e deixa dor traz um cortejo de massacres, formado por corpos indígenas, africanos e favelados, resumindo o processo de formação do Estado brasileiro: Paz sem voz não é paz, é medo Paz sem voz não é paz, é gueto Favelado merece respeito Não tapa na cara e porrada nos peito A gente não quer só polícia A gente quer comida, diversão e arte A gente não quer só polícia A gente quer comida, diversão e liberdade Cadê o baile? Baile acabo! E us morador? Tapa levo É os homi...de 12 na mão Se questionar..vai pro camburão Policia passa e fica a dor Policia passa e deixa dor Policia Passa e fica a dor Hoje no complexo um neguin chorou

 

11   Pois seu pai, foi e não voltou A mãe tá triste e orou ao senhor: A policia passou, mas a dor ficou Cantar funk, é uma oração Prá que a paz não venha de caveirão Que sobre isso, não venha mais cantar Favela de dor, mas não pára de criar Diaspóricas, as culturas das favelas são narrativas que portam a memória de

lutas, de experiências compartilhadas que se perpetuam na história por meio das poesias, das músicas, das formas de interação social, da arquitetura e em tantos outros lugares onde a criatividade enfrenta o mundo tal como ele é e ensaia o mundo como vir-a-ser. Mais uma vez, fico com a fala do MC Calazans: A arte não sai do nada, ela precisa ser provocada. Aqui na favela ela é provocada por uma série de razões. A mais forte que eu vejo é a razão de dar traços artísticos a uma realidade que é muito dura, de sobrevivência mesmo. Eu acho assim, na favela a gente tem muito claro que viver e morrer é uma linha tênue que separa as coisas. (..) Viver e morrer aqui é muito... sabe? É o tempo inteiro esse confrontamento. Como que eu vou inventar arte do nada vivendo nisso? Como que a minha arte vai sair de uma abstração que eu tive vendo a favela da Grota, o teleférico e aí do nada sai? Impossível, impossível. Eu não consigo entender uma parada dessas. Essa criatividade resistente da cultura de sobrevivência se contrapõe a uma cultura civilizadora e domesticadora. A chegada das UPPs potencializa a cultura como esforço civilizatório e abre caminho não somente para grandes ONGs que trabalham como braço do Estado, mas também para que a própria polícia militar possa fazer esse “trabalho cultural”, militarizando ainda mais os territórios ocupados. A UPP se apresenta, sobretudo, na mídia corporativa, como oportunidade de levar “cultura” como complemento à pacificação armada. É explicitado desse modo um confronto entre projetos políticos e estéticos que gera conflitos permanentes. Cerceamentos da liberdade de criação e fruição estética, de sociabilidades

 

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características do território, subsunção da formação artística a uma pedagogia preventiva ao crime que legitima uma imensa gama de projetos sociais. Como em toda conquista há butim, desbravar essas fronteiras simbólicas é garantir a pacificação como empreendimento econômico. Nas palavras de Souza Lima, A dimensão econômica da conquista deve ser destacada, diferenciando-a nos planos político, social e imaginário de seu momento seguinte: a guerra de conquista dá lucros a seus participantes quer na qualidade de integrantes da organização militar realizadora da conquista enquanto tarefa guerreira, quer na de parte da administração que a empreende de modo mais lato, inclusive sob as suas diversas formas de delegação a grupos privados. (LIMA, 1995: 50) Recentemente pude acompanhar um desses episódios de confronto de projetos políticos e estéticos no território do Complexo do Alemão. Era dia 09 de novembro de 2013, um sábado de sol, quando cheguei ao Morro do Alemão para participar do evento Circulando – Diálogo e Comunicação na Favela por Direitos. O Circulando é um dos maiores acontecimentos do Complexo do Alemão e é organizado pelo Instituto Raízes em Movimento e entidades parceiras. Com mais de 10 anos de existência e formado por moradores do Complexo, o Raízes atua amplamente no território muito antes da chegada das UPPs. Durante o evento circulam por ali pessoas da favela e de fora dela, crianças, jovens, velhos, artistas, ativistas, professores. As atividades envolvem cinema, debates, poesia, música, exposições fotográficas, grafite. É um dia de diversão, discussão política e fruição artística. A Avenida Central, palco do Circulando, foi uma das áreas mais afetadas pela intervenção do PAC. A memória das remoções e da destruição de casas e, com elas, das histórias de famílias que moravam ali, estão nas ruínas que foram deixadas para trás. Valas negras foram abertas, entulhos de obras inacabadas acumulam lixos e ratos. Para os que foram removidos, acumulam-se também dores e sofrimentos. Para quem ficou, acumulam-se indignação e medo de um futuro incerto. Afinal, quem poderá dizer que não haverá mais remoções? Como vimos, um dos marcos do PAC naquele local foi a destruição dos muros grafitados que formavam uma galeria a céu aberto, com obras de artistas do Alemão e do mundo inteiro. Enquanto os muros grafitados eram derrubados, nas estações do teleférico que estavam sendo construídas as paredes eram cobertas pelos grafites do

 

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Studio Kobra, de São Paulo. Grandiosos, esses painéis foram confeccionados sem que se considerasse a ampla atividade dos artistas do próprio Complexo e retratam cenas e histórias daquele lugar. E foi exatamente a intensa atividade de grafiteiros daquele sábado que chamou minha atenção. A precariedade material e de direitos faz com que a vida seja sempre improviso, que se esteja sempre pronto a recomeçar do zero. A cultura de sobrevivência de que falam Calazans e Bhabba. E foi o que vi ali. Muitos artistas refazendo o caminho de arte da avenida Central, decorando casas, colorindo muros, ressignificando o território como a dizer: “vocês entram, destróem, removem, mas a gente volta e faz tudo de novo.” Lembrei da música do Zé Keti, Opinião, criada para protestar contra as remoções da década de 1960, mas que traz à memória a longa história da luta dos favelados pelo direito à cidade : Podem me prender Podem me bater Podem até deixar-me sem comer Que eu não mudo de opinião Daqui do morro Eu não saio não Se não tem água Eu furo um poço Se não tem carne Eu compro um osso E ponho na sopa E deixa andar Fale de mim quem quiser falar Aqui eu não pago aluguel Se eu morrer amanhã, seu doutor Estou pertinho do céu

Mas um grafite entre todos foi especial. Uma escada no meio do caminho, no meio do nada, levava ao segundo andar de uma casa que não existia mais. Deixada

 

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ali, espécie de “símbolo do descaso”, no dizer de alguns moradores, era também uma afronta e uma ameaça. Bem construída, mostrava um grande investimento de recursos e esforços de uma família removida. Não era uma casa de quem chegou ontem. Era uma casa construída e melhorada por anos de trabalho de uma família. A escada mostrava isso. Quando cheguei, o artista plástico Mario Bands, morador da região, varria aquela escada de modo caprichoso, detalhista, sem deixar nenhuma poeirinha para trás. A cena era surreal: uma escada sem uso sendo varrida com tanta dedicação. Em seguida, começaram a vir as cores, as formas, os desenhos geométricos, as gotas de tintas escorrendo pelos degraus, dando movimento e beleza ao “símbolo do descaso”. Aos poucos, novos sentidos foram sendo criados. Resistência e reexistência tecendo outras memórias, entrelaçando a dor dos que foram removidos, com a invenção de um futuro melhor e mais esperançoso. O “símbolo do descaso” foi se transformando num monumento da memória e da utopia. Os que passavam riam, fotografavam, se admiravam. Reviviam a casa e homenageavam com sua admiração os que não moravam mais ali. Por várias semanas, a escada se tornou um point de visitação e muitas fotografias foram tiradas ali, com as pessoas subindo seus degraus e posando para as lentes, compartilhando essas imagens nas redes sociais. A escada, que antes dava em lugar algum, se abria agora para o céu, amplo de horizontes e de sonhos, parecendo indestrutíveis como as tintas dos grafiteiros do Alemão. Pouco tempo depois, no dia 04 de dezembro, entro no Facebook e fico sabendo por Helcimar Lopes, agente cultural e integrante do Instituto Raízes em Movimento, que a escada havia sido destruída. Nos comentários da foto da destruição da escada, postada por Helcimar, algumas falas indignadas de moradores. Enumerei alguns desses comentários abaixo: 1. Na hora que tinham mesmo que derrubar ninguém o fez.. Depois que virou obra de arte passou a incomodar... 2. Eu não acrdito nisso como podem depois de tanto tempo q essa arte ficou nesse msm lugar ninguem reclamou e agr vinheram destruir ? fala serio né ! 3. caraca isso foi uma sacanagem!! pocha eu tinha comentado com um amigo no sábado que eu achava muito show essa obra de art!!

 

15   4. Lembram da Escada? Sim, aquela escada que depois da maravilhosa obra do PAC (Aquela que mal começou, não serviu pra nada e não foi concluída) ficou conhecida como símbolo do descaso. Durante o evento Circulando, o grande artista Mario Bands, realizou um belíssimo trabalho de intervenção artística, tornando aquele esqueleto, um monumento. Mas tudo o que é bom (e bonito) para o povo, incomoda aqueles que não são daqui (e não fazem questão alguma de se importar com a nossa gente) e isso foi o que sobrou da Escada. Fiquei de verdade emocionada quando vi as fotos que o Helcimar fez... Mas uma vez essa gente tenta calar a nossa voz... Mas, esta ação, (porque não chamar de vandalismo?) mostra como a voz do povo, até aquelas que vem em silêncio, em forma de arte, é capaz de trazer à tona coisas que estavam esquecidas. Mario Bands, sua arte incomodou e por isso veio ao chão, mas tenha certeza que mais do que nunca está eternizada por todos aqueles que entenderam a proposta do seu trabalho e por cada morador que por ali passava e via aquela que se tornou bela! Avante!! De modo rápido, os tratores, não se sabe a mando de quem, destruíram a

escada e retiraram seus escombros, ao contrário das ruínas das casas removidas que lá permanecem. A rapidez foi tanta que Helcimar mal conseguiu guardar um pequeno pedaço da escada derrubada para recordação, a pedido do Mario Bands. Uma moradora removida pelo PAC também relatou, durante minha pesquisa, que havia guardado um pedaço da parede de sua casa que foi posta abaixo. Esses gestos me lembraram os palestinos expulsos de suas casas que guardam há decadas chaves e pedaços de paredes. Qual o sentido dessa derrubada de uma escada que estava há anos naquele local? A tática de terra arrasada, de fato ou simbolicamente, frequentemente integra estratégias de ocupações militares e projetos civilizadores variados. A história assim o demonstra. Em permanente ameaça e frequentemente destruídas, as manifestações culturais divergentes, resistentes, contra-hegemônicas são obrigadas a inventar as formas de sua permanência. Como um rio que muda, mas permanece o mesmo em seu

 

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fluxo constante, a cultura de sobrevivência que caracteriza as favelas depende de criatividade e persistência, de uma continuidade resistente. Como lembra Galeano na epígrafe deste artigo, a memória não perde o que merece ser salvo. E o que merece ser salvo não pode, felizmente, ser decidido nos gabinetes onde é tramada a guerra aos pobres.

Referências bibliográficas:

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