Sociabilidades e mobilidade

July 21, 2017 | Autor: C. De Marchiori B... | Categoria: Arquitetura e Urbanismo, Sociología, Antropología, Diversidade Cultural, Mobilidade Urbana
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SOCIABILIDADES 1 E MOBILIDADE URBANA Christina Maria De Marchiori Borges

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Resumo Este artigo analisa as relações de dois campos de conhecimento, normalmente distanciados nas abordagens acadêmicas. Um deles é o das Ciências Sociais e, o outro ao urbanismo e mobilidade urbana. Desta feita, pretende analisar as relações entre valores, hábitos, atitudes e comportamentos coletivos do homemque são objetos de estudo das Ciências Sociais- e a mobilidade urbana, enquanto processo de deslocamento do homem nas cidades. As relações entre os dois campos são maiores e mais abrangentes do que se possa vislumbrar à primeira vista. Essas relações vêm ocorrendo com características diferentes desde a Antiguidade até a atualidade. Os séculos XX e XXI revelam novas sociabilidades caracterizadas pelo individualismo e, por decorrência, incentivam o uso do automóvel e da vida em locais fechados e controlados, sobretudo em cidades da África, América Latina, dos EUA e da Ásia, onde os locais coletivos, representados pelo uso da rua e dos transportes públicos, ameaçam a entrar em declínio. Entretanto, é nos transportes coletivos e nas ruas- que são espaços naturais de convivência humana, que o ser humano realiza a sua dimensão coletiva, exercita a sua alteridade e pode educar-se para aceitar a diversidade humana. Palavras- chave: sociabilidade, mobilidade, transportes coletivos, segregação, diversidade.

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O conceito de sociabilidade foi cunhado por George Simmel e se refere a contatos vividos no contexto da cidade, que ocorrem como jogos, cuja regra básica é a de que todos os envolvidos se aceitem como iguais entre si em uma situação dada. A sociabilidade básica pode acontecer por meio de uma conversação entre pessoas desconhecidas e, também, por demonstrações de amabilidades fugazes e recíprocas, sem outra finalidade além daquela da interação em si mesma, mas que criam um vínculo social entre as pessoas. Nada possui significado fixo, posto emergir da interação entre as pessoas nas mais variadas situações. 2

Pesquisadora, socióloga, pós-graduada pela Fundação Escola de Sociologia e Política de SP, Especialista em Gestão de RH pela FGV/SP e Mestre em Antropologia pela PUC/SP. Desenvolve estudos e pesquisas sobre mobilidade urbana e coordena a unidade de pesquisa da Diretoria de Planejamento de Transporte da SPTrans. O presente artigo foi publicado originalmente na revista virtual “Ponto de Vista”, do site da Associação Nacional de Transportes Públicos- ANTP, em 2014.

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Cidade e mobilidade

As relações recíprocas entre valores, hábitos, atitudes, representações e comportamentos coletivos do homem, apreendidos pelas Ciências Sociais e a mobilidade urbana, entendida como um processo com dispositivos que promovem o deslocamento do homem na cidade, em suas ruas, calçadas, edificações, veículos, modos de transportes são muito maiores e profundas do que se possa deduzir a primeira vista. Os ideais iluministas de igualdade entre os homens e de liberdade individual, inclusive a de ir e vir fizeram ressurgir no século XVIII, as ruas e os espaços abertos nas cidades. As ruas e espaços públicos, notórios na Grécia e em Roma que promoviam os contatos e sociabilidades entre os homens, desapareceram na Idade Média. Nesse período, as ruas se transformaram e os caminhos tortuosos, alinhados aos muros de pedras dos burgos que foram planejados para não se comunicarem entre si e nem facilitar os contatos humanos. A malha urbana de Paris, entre os anos 1000 a 1200, por exemplo, era formada por um labirinto de becos, vielas e cortiços, onde as moradias abriam suas portas e janelas diretamente para esses caminhos, obstruindo o trânsito dos passantes. As ideias de liberdade, de que tudo respira e necessita de ar, modelam o corpo e o comportamento do homem do século XVIII, que começa a circular na cidade e ter os seus hábitos de vida e higiene modificados. As roupas se tornam mais leves em 1730; os banhos, proibidos e banidos pela Igreja na Idade Média voltam à moda; o papel higiênico é criado em 1750 e a limpeza urbana, em 1740. Há a construção de grandes vias retas e largas que ligam o centro da cidade aos distritos de Paris. Tudo conspira para que o homem tenha mobilidade e o seu corpo esteja preparado para os contatos mais próximos com outros homens. As pessoas passam a se encontrar nas calçadas e a viver grande parte de suas vidas, circulando em ambientes externos. O metrô de Londres, o mais antigo do mundo, inaugurado em 1848, representa uma revolução social, nas palavras de Sennett (2010), pois obrigou desconhecidos de diferentes classes sociais, a sentarem-se juntos em um deslocamento para dentro e para fora da cidade. O metrô, pela mobilidade que 2

trouxe, propiciou que os trabalhadores deixassem de viver amontoados em cômodos úmidos de áreas degradadas, próximas ao local de trabalho e se deslocassem, indo morar em áreas novas da cidade, em casas próprias, mais ao norte do centro de Londres. Casas essas, com vários cômodos e banheiro externo, significaram uma grande mudança nos hábitos de moradia e de higiene; os banheiros começaram a ser edificados do lado de fora da casa, no fundo do terreno e dotados também de pia e banheira. Antes, as famílias dormiam e faziam as refeições todas juntas no mesmo cômodo, próximas dos odores de urina e fezes. O metrô permitiu, ainda, a facilitação ao consumo de massa no centro da cidade, em lojas de departamentos, onde as pessoas iam comprar suprimentos necessários para a subsistência. No século XIX, com a intensificação do trabalho fabril, as cidades assistem a um grande crescimento e presenciam acúmulo de pessoas que vivem em condições inadequadas e realizam maiores deslocamentos entre trabalho e moradia. A cidade, se por um lado, facilita o anonimato das pessoas, por outro, impõe indiferença ao outro, racionalidade e velocidade. Já no século XX, sobretudo na segunda metade, as sociabilidades adquirem novos contornos e significados sob o impacto das transformações decorrentes da globalização, produzindo e reproduzindo novas formas de contatos, cujas bases encontram-se na ascensão do capitalismo industrial a partir do século XIX. A perda da dimensão coletiva da existência social é o que Sennett (1999) chama de “tirania da intimidade” e expressa o novo tipo de sociabilidade do homem moderno, já que, para ele, vivemos uma modernidade ainda não concluída. Sociabilidade essa que acontece menos nas ruas e espaços coletivos e, mais em espaços fechados. A ascensão da hiperexposição da vida íntima nas relações interpessoais tornou-se um novo espaço de socialização. Essa condição promove o homem moderno a um ser narcísico e insatisfeito, voltado somente para si mesmo, para a sua auto-gratificação e o seu prazer. Tal condição relega a sua vida cognitiva ao empobrecimento e sua existência a um estado de mal-estar crônico. Para Augé (2010), a vida das ruas está ameaçada, pois o enclausuramento e urbanização do mundo são paradoxos e constituem-se em desafios contemporâneos 3

a serem superados. A urbanização vem, crescentemente, se apresentando sob dois aspectos contraditórios e indissociáveis: de um lado, se revela como o “mundocidade”, que são as cidades construídas pelos mesmos arquitetos em qualquer parte do mundo, onde estão presentes as mesmas empresas globais, os mesmos produtos e marcas etc. Tudo no “mundo-cidade” traduz a ideologia da globalização. De outro lado, a urbanização expressa também a “cidade-mundo”, onde se localizam todos os conflitos e contradições do planeta, havendo distanciamento extremo entre ricos e pobres e grande diversidade religiosa e étnica. Na “cidade-mundo” se pratica o enclausuramento do espaço por parte da população mais rica para suas moradias e, grande parte da população mais pobre, fixa residência nos “arrabaldes da miséria”. As distâncias geográficas entre as áreas centrais e as periféricas, por sua vez, criam a necessidade da mobilidade que, para os mais pobres, representa um “destino ou uma fatalidade” (Augé, 2010, pag.72). Formam-se fronteiras no entorno desses casulos mais abastados, que operam interdições e provocam exclusões sócio-espaciais. Em algumas das grandes cidades da África, América Latina, dos EUA e da Ásia há essa lógica e o seu planejamento urbano incentiva o uso do transporte individual, sobretudo o do automóvel. Tomando como exemplo São Paulo, uma cidade que valoriza o automóvel, Caldeira (2000) aponta que o crime, o medo da violência e o desrespeito aos direitos dos cidadãos, combinados com transformações urbanas produziram um novo padrão de uso do espaço urbano e de segregação espacial, sobretudo nas duas últimas décadas do século XX, quando, paradoxalmente, ao lado da consolidação democrática, cresceram a criminalidade e a violência. Estes dois fatores contribuíram para disseminação do medo na população e da adoção de estratégias de proteção, sendo a construção de muros em residências o seu aspecto mais notório. Nesse período, a taxa de crescimento populacional diminuiu, revertendo tendências demográficas que haviam marcado a cidade nos últimos cem anos, coincidindo com a crise econômica no país. A dinâmica econômica mudou e o perfil industrial de São Paulo declinou, cedendo espaço a atividades terciárias, sobretudo as de serviços que se articulam em cadeia global com locais remotos do planeta. 4

Os mais ricos tenderam a se afastar das regiões centrais da cidade em direção aos municípios do noroeste da região metropolitana, antes ocupados por pessoas pobres, vindo a se configurar em um novo tipo de habitação, o enclave fortificado, como reação ao medo. Em conformidade com Caldeira (2000), o enclave fortificado é representado por condomínios fechados, murados, com finalidades residenciais e comerciais, com entradas vigiadas por modernos sistemas de segurança durante as vinte e quatro horas do dia. Os acessos e saídas são minuciosamente controlados, bem como toda a movimentação das áreas internas. Os enclaves são autônomos e a sua vida parece independer da vida da cidade: no interior desses empreendimentos costuma haver todo o tipo de serviços, comércio e opções de lazer, de forma a evitar o contato com o exterior e fixar o morador no próprio local. Os ambientes dos enclaves são socialmente homogêneos e revelam-se como opostos à ideia de cidade. Os enclaves, isolando os diferentes e agregando os iguais, promovem uma elaboração simbólica nos indivíduos que transforma isolamento e restrição em símbolos de status e prestígio. São voltados ao uso coletivo restrito e, embora de natureza privada, enaltecem esse aspecto, ao mesmo tempo em que desvalorizam o que é público e aberto. O conceito de enclave, rapidamente, ultrapassou os condomínios e se expandiu por toda a cidade, aos prédios de apartamentos, shoppings centers, escolas, hospitais, sendo também adotado por moradores dos bairros mais pobres. Em resumo, a adesão maciça à lógica do enclave transformou São Paulo em uma cidade de muros onde se evita os contatos com pessoas diferentes, o que vem provocando mudanças no uso do espaço público e nas relações sociais. As estratégias de segurança adotadas pelos cidadãos mudaram a paisagem urbana, o uso da rua, dos transportes públicos e os padrões de circulação urbana. O símbolo da experiência da cidade, de encontro com estranhos e anônimos revela-se comprometido frente à realidade de uma cidade de muros, que parece ressuscitar a mesma ideologia das construções medievais. À diferença dos transportes individuais, os transportes coletivos- cada vez mais desvalorizados pela classe média- são espaços de contatos. Segundo Augé (1987), a viagem de metrô, por si só, se constitui em um exercício de “leitura e 5

cartografia” que pode ser feito pelo viajante ao tentar imaginar a vida amorosa, familiar e profissional dos outros usuários, possibilitando uma grande experiência de alteridade, ao supor que outros possuam histórias parecidas com as suas. A viagem fornece, ainda, um exercício de diversidade e aceitação da diferença por colocar em confronto pessoas de várias etnias, faixas etárias, vestimentas e costumes distintos. As ruas e as calçadas, por sua vez, são os órgãos mais vitais de uma cidade porque nelas as pessoas circulam e estabelecem contatos humanos, de acordo com Jacobs (2011). Elas são os espaços naturais da vida social do homem. Tanto melhor será a sociedade, quanto melhores forem suas calçadas. Quanto maior a presença de crianças, de pessoas de todas as idades, etnias e classes sociais nas ruas, mais segurança

haverá,

mais

oportunidades

terão

para

desenvolver

laços

de

solidariedade e de uma dimensão de vida coletiva. As ruas e calçadas transitáveis podem indicar, também, que determinada localidade oferece uma vida e mobilidade adequadas aos seus habitantes e que seus moradores estão mais próximos de alcançar as promessas da modernidade, iniciada há a cerca de duzentos anos atrás e, ainda, inconclusa.

Referências: AUGÉ, Marc. Por uma Antropologia da Mobilidade. Maceió/São Paulo: EDUFAL/UNESP, 2010. AUGÉ, Marc. Un etnologue dans le métro. Paris: Hachette, 1987. CALDEIRA, T. P. R. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2000. JACOBS, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011. SENNETT, Richard. Carne e Pedra. Rio de Janeiro: Editora BestBolso, 2010. ________________ O Declínio do Homem Público: As tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. SIMMEL, G. A Metrópole e a Vida mental. In VELHO, O. G. (org.) O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Guanabara, 1973.

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