Sociedade Civil. Entre Miragem e Oportunidade

August 19, 2017 | Autor: Antonio Martins | Categoria: Political Philosophy
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SOCIEDADE CIVIL

Entre Miragem e Oportunidade

UNIDADE DE INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO LINGUAGEM, INTERPRETAÇÃO E FILOSOFIA

SOCIEDADE CIVIL Entre Miragem e Oportunidade coordenação

António Manuel Martins

FACULDADE DE LETRAS COIMBRA | 2003

Apoio da

ÍNDICE GERAL Apresentação ........................................................................................

A. Castanheira Neves – Nota Introdutória ...........................................

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Maria Lúcia Amaral – Sociedade Civil e Constituição ou Do uso da noção de sociedade civil .................................................................... 15 Carlos Zorrinho – Sociedade Civil e Mercado ..................................... 29

António Casimiro Ferreira  – A sociedade civil e o Diálogo social perante os desafios da globalização no mundo do trabalho .............. 37

Acílio da Silva Estanqueiro Rocha – Sociabilidade e Tolerância em Locke .................................................................................................. 43 Alexandre Franco de Sá – A sociedade civil em Rousseau ................. 83

Christopher J. Berry – The Scottish Enlightenment and the idea of civil society ................................................................................................ 99

Maximiliano Hernández Marcos – Kant entre tradición y moder­nidad: hacia una nueva visión republicana de la sociedad civil .......... 117 Edmundo Balsemão Pires – Entre o facto da separação e a exigência da unidade: a sociedade civil hegeliana ............................................ 145

Cirilo Flórez Miguel – Teoría marxista de la sociedade civil .............. 191

José Barata-Moura – Nota sobre a categoria bürgerliche Gesellschaft em Karl Marx ..................................................................................... 213 António Manuel Martins –  A sociedade civil na «Política» de Aristóteles.....................................................................................................

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Francisco Bertelloni – El tránsito de la sociedade a la politicidad en la Summa Theologiae de Tomás de Aquino .................................. 253 Luis Alberto De Boni – A sociedade civil em Guilherme de Ockham ... 269 José Antônio de C. R. de Souza – A composição e a organização da sociedade civil segundo Marsílio de Pádua (1280-1342) .................. 297

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APRESENTAÇÃO Reúnem-se neste volume a maior parte das comunicações apresen­ tadas no Seminário Internacional Sociedade Civil, entre miragem e opor­ tu­nidade, realizado nos dias 23 e 24 de Abril de 2001, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Organizado pela Unidade I & D Linguagem, Interpretação e Filosofia – LIF constituiu um marco importante no desenvolvimento de um projecto de investigação sobre a Sociedade Civil. O objectivo central era compreender como o núcleo filosófico originário dos conceitos políticos na Filosofia Prática (entre os quais se conta o conceito de Sociedade Civil) se foi progressivamente alargando a outros domínios, o que implica por parte do filósofo da política uma grande atenção não só à genealogia das noções que usa no seu vocabulário, como ainda às suas transformações nas Ciências Sociais, na própria linguagem jornalística e no uso quotidiano. É por isso que a exploração do tema da Sociedade Civil implica não só a tradicional análise do conceito em textos filosóficos, como ainda um trabalho de semântica transdisciplinar. Os trabalhos desenvolveram-se em duas vertentes: uma mais sistemá­ tica e outra de carácter histórico-crítico. Mas, perguntará alguém, porquê escolher exactamente o tema da socie­­dade civil para tema deste colóquio? A resposta passa, sem dúvida, pelo facto contingente da escolha dos investigadores mais directamente respon­sáveis por esta linha de investigação em função de interesses seus mais imediatos. Mas o facto de ter recebido tão bom acolhimento por parte de um conjunto tão diversificado de personalidades mostra que não foi uma escolha completamente desfasada do espírito do tempo. O conceito de sociedade civil esteve ausente da discussão política e da própria filosofia política durante muito tempo. Começou a ser nova­

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mente usado a partir dos anos 60 com a agudização de tensões políticas na América Latina, no Leste europeu, na Ásia e um pouco por todo o lado, sempre que o Estado e o Mercado não funcionaram de forma satisfatória. A evolução político social das últimas décadas do séc. XX levou mesmo à formação do conceito de sociedade civil global. Para muitos, esta será a única forma correcta de fazer face aos desafios da globalização/ mundialização, processo complexo que começou há séculos embora se tenha acelerado de modo impressionante nos últimos anos graças, entre outras coisas, aos enormes progressos no campo das telecomunicações e transportes. A exploração da problemática mais directamente ligada à noção de sociedade civil global não estava prevista nos objectivos mais imediatos deste grupo de trabalho. Não excluímos esta problemática do nosso horizonte de investigação. Porém, alguns de nós, pelo menos, não estão convencidos de que só faz sentido falar de sociedade civil no quadro de uma sociedade civil global. Pelo contrário, a sociedade civil enquanto dimensão outra do mercado e do Estado deve permitir uma atenção ao particular, ao especial, ao diferente, ao pequeno, ao momento presente. No confronto com o Estado e com o mercado a sociedade civil será sempre fraca. O que não significa que não tenha um enorme potencial de resistência. Resta-me agradecer todo o apoio dado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia para o financiamento do projecto de investigação e para a realização do Seminário Internacional e publicação das actas. Finalmente, uma palavra de agradecimento a todos os que colabo­ raram neste Seminário, aos membros da Comissão Organizadora e, de entre eles, seja-me permitido destacar o inestimável contributo do doutor Edmundo Balsemão Pires. António Manuel Martins

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NOTA INTRODUTÓRIA Ao iniciarmos os trabalhos deste Seminário Internacional sobre Socie­ dade Civil, com o Primeiro Painel sob o tema geral Sociedade Civil e Cida­dania, permitam-me duas brevíssimas palavras de introdução – que julgo caberem também à minha função de moderador. E antes delas, congratulemo-nos por esta iniciativa, pela sua actua­lidade e importância – pois convoca-nos ela a reflectir, decerto por pers­pectivas diversas, sobre uma temática e também uma problemática em que são muitas as ambiguidades, senão os equívocos, e marcadas as dife­renciações que vão do mais utópico optimismo ao mais melancólico e realístico pessi­mismo. Sobre uma temática e uma problemática em que se compromete reflexivamente o nosso presente e o próximo futuro da nossa condição políticosocial, cívica e cultural – ou, numa palavra mais inte­grante, o des­tino do nosso encontro neste tempo que também é o nosso e num espaço que se alarga ao global. É por isso devido um louvor à Comis­são Organi­zadora do Seminário – e particularmente ao seu principal impulsionador, Prof. Doutor António Manuel Martins. Ao que acres­cento um vivo agradeci­ mento pelo convite, e pela honra que ele significa, para ser moderador deste mesmo primeiro painel. E só tenho de lamentar que circunstâncias pessoais me tenham impedido de corresponder à solicitação, que igualmente muito honrosamente me foi feita, para uma participação mais de fundo, que me permitisse ser também eu autor de uma comunicação. “Sociedade Civil” é uma categoria restaurada – a sua primeira actua­ lidade teve-a a partir dos meados do séc. XVIII. Mas de uma restauração que implica uma profunda mutação, não só de referência semântica, mas sobretudo de sentido e também, e muito, do que se lhe possa assacar de projecto humano. Se nasceu como uma categoria filosófico-política da modernidade depois que se romperam as pré-modernas e integrantes unida­des legitimadoras, isso se explica por ter sido também na moder­ nidade que o Estado avultou, se destacou protagonista no horizonte histó­

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rico humano e justamente como um correlato distintivo de sociedade civil recordem-se as expressas observações de Hegel, em adenda ao § 182 das suas Grundlinien der Philosophie des Rechts: “a sociedade civil é a diferença que se vem colocar entre a família e o Estado, mesmo se a sua formação é posterior à do Estado, que deve precedê-la como uma realidade independente para que ela possa subsistir. De resto, a criação da sociedade civil pertence ao mundo moderno......”. Mas hoje dir-se-á, e atrevo-me a mais um abuso da expressão, que é ela uma categoria pós- -moderna. Já não é um correlato dialéctico do Estado – essa figura central da modernidade –, pensa-se mesmo para além do Estado ou indepen­dentemente dele. E de uma outra e muito mais vincada actualidade – que vai a par de uma bem diferente problematicidade. Se o Times Literary Supplement de 5 de Dezembro de 1999, pôde considerar que “a expressão se está a tornar a mais vulgar de Lineu dos anos noventa” e John Keane, com a sua extensa e profunda bibliografia sobre o tema, nos diz também que ele “passou a ocupar o centro do pensamento político con­tem­porâneo”, não tem isso nada a ver decerto com a “sociedade civil” do contratualismo moderno, que de Hobbes a Rousseau e a Kant nela via o termo institucional do poder político que se ambicionava superador do “estado da natureza” e pela qual o homem selvagem e desamparado ascendia a “cidadão” – à cidadania da titularidade de direitos e com a ambicionada garantia da segurança e da liberdade. Era essa a sociedade civil constituída pelo Liviatão, segundo Hobbes, mas também o civil governement de Locke, assim como a L’État civil de Rousseau e o status civilis (civitas) em Kant. Ora não é essa a sociedade civil, nem essa a cidadania que a epígrafe deste painel intenciona e leva associadas. Ali, a diferença, a distância e a tensão perante o Estado, o poder político centralizado nas suas instituições de domínio não eram pensadas – o cidadão, le citoyen, era simplesmente o sujeito-súbdito do poder político, do Estado. As coisas só começaram a ser diferentes, ainda que incipien­temente com Ferguson – que vinculava a sociedade civil à “sociedade civilizada” – e certamente com A. Smith, ao autonomizá-la na estrutu­ração económico-social – mediante embora um determinalismo mecani­cista que ia então com um certo iluminismo cientista – pela “mão invisí­vel” do mercado, mas sem poder esquecer-se também, e num manifesto anticontratualismo, a dimensão específica do direito, enquanto jurispru­dência de emergência historico-culturalmente social que se afastava do prescritivismo político-autoritário do Estado. O que permitiu a diferen­ciação da bürgerliche Gesellschaft hegeliana – com

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os sus conhecidos três momentos, o sistema das necessidades, a protecção da propriedade pela administração da justiça, o cuidado dos interesses mediante a polícia e a organizações associativas –, posto que fosse ela uma entidade mediadora na génese evolutiva do Estado e com a deficiência da particularidade, ou de diversas particularidades e outras tantas divisões, que não atingia e estava mesmo destinada a ser superada pelo universal ético estadual. Afinal simplesmente a sociedade burguesa e o cidadão apenas der Bürger, tão-só le bourgeois (como se sabe, a expressão em francês é do próprio Hegel). Na mesma linha, ainda que radicalizada no entendimento da “sociedade civil” como expressão sócio-económica de um sistema de produção – que se designaria capitalista –, em que emergia a divisão de classes e a luta entre elas, foi a versão, igualmente bem se sabe, de Marx. De todo o modo, e como quer que fosse, o pólo de referência passou a ser o Estado – porque só ele poderia atingir a universalidade ética da ideia política, porque só tomando-o revolucionariamente de assalto se poderia pôr o seu aparelho específico de domínio ao serviço da superação da sociedade classicista e vencer a sua injustiça, porque só ele chamaria a si, legislativo-administrativamente, uma intenção política de reforma dos quadros institucionais, de conformação da economia com objectivos sociais e que viria a culminar no segundo e terceiro terços do séc. XX no geral impulso interventor do Estado Providência. Pelo que verdadei­ramente mais do que de um unilateral protagonismo na história a favor do Estado, se poderia falar de uma particular convergência entre ele e a sociedade. O Estado tornou-se Estado Social e tudo tendia a um projecto de última e utópica identificação num Estado económico-social – a própria dinâmica económica e social da sociedade a ser assumida pelo Estado. Razões todas estas – e são apenas algumas das muitas que seriam certamente invocáveis – para que tudo, e sem que houvesse nisso para­doxo ou aparente contradição, o que não fosse perspectivado pelo Estado ou pretendesse prescindir dele seria secundário e negligenciável. O pró­prio direito era só o direito do Estado – e não apenas no Estado hegeliano, também no Estado representativo e com separação dos poderes se poderia continuar a dizer, como Locke, que “the legislative is supreme power”: o direito era, ou continuava a ser, ainda quando de sentido promocional, exclusivamente a lei. Pelo que para a “sociedade civil”, enquanto reali­ dade humano-social distinta do Estado, que lhe fosse diferente ou oposta, não haveria verdadeiro lugar, nem sentido. Excluo neste momento aquela

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outra perspectiva em que pelas doutrina social da Igreja Católica o princípio da subsidiariedade sempre lhe reconheceu outro significado e um bem demarcado lugar próprio. Questão decerto não minimizável mas a exigir outra oportunidade. Só que a partir da década de 70 as coisas alteraram-se em termos profundos: o colapso dos últimos Estados totalitários, o reencontro dos Estados do Leste com a sua história e a sua cultura próprias, a crise, senão o fracasso do Estado Providência com a sua tendencial confusão com a socie­dade, etc. – e, porque não também dizê-lo, a morte das ideologias, a crítica pós-moderna das “grandes narrativas”, o anúncio, aceitável ou não, do “fim da história” ou pelo menos de projectos mobilizadores de um universal futuro que fosse além de uma generalizada aspiração aos direitos do homem – mas também essa contabilizando mais fracassos do que êxitos tiveram, tudo conjugado, como resultado a crise mortal do Estado, a que assistimos, e fizeram com que os homens se voltassem para as con­dições sócio-concretas da sua existência real, para a particular autonomia das suas especificidades culturais, e procurassem apoio para a realização da sua própria humanidade e remédio para os problemas da sua coexistência social, por um lado, na reflexividade dialógico-comunicativa sobre si próprios habitantes de um certo tempo e de um certo espaço, por outro lado, pela participativa associação em solidariedades institucio­nalizadas que fomentassem. A pátria do homem não estaria afinal num mítico mediato longínquo tal como a solução dos seus problemas teria de abandonar a ilusão de dons paternais. Assim surgiu um outro, e o actual, sentido de “sociedade civil” – é a tautológica sociedade de “civis”, em que o cives é por natureza o “cidadão” que se assume autónomo e respon­sável pela sociedade em que coexiste e convive. Sociedade de auto-res­ponsabilidade e autoreferência, de auto-poiésis cultural e auto-institu­cional, de autoregulação da economia com um núcleo no mercado mas sem se reduzir, mesmo economicamente, a ele e não só pelas “exter­nalidades” a considerar – repetimos John Kerne, em referência a Karl Polanyi (The Origins of Our Time): “onde não há mercados, as sociedades civis não conseguem sobreviver, mas a regra contrária também se aplica: onde não há sociedade civil, não pode haver mercados”. Não será mesmo esta actual sociedade civil base para uma outra, uma nova recompreensão do direito centrada já não na lex mas no judicio – como sempre se verificou nas comunidades verdadeiramente autónomas, assim na Roma clássica e

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na Inglaterra pela hegemonia da common law? Todavia, este mundo da sociedade civil, assim compreendida, como mundo de virtude e de liberdade e que não poderá constituir-se e desen­ volver-se sem liberdade e virtude, não estará demasiado idealizado como uma espécie de contra-imagem idealizada das instituições do Estado, digamo-lo no irónico comentário de John Krane a Gellner, a encar­nação da virtude social, por oposição ao vício político? Dependerá do que quisermos afinal pensar com a “sociedade civil”: se não se pretender simplesmente uma “interpretação empírico-analítica” e sociológica, propomo-nos definir programaticamente com ela uma “estratégia”, em termos mesmo de caber aí a discussão liberalismo/comunitarismo, ou o seu relevo é de um “tipo ideal” de sentido ético-normativo? A sociedade civil será afinal uma realidade, um programa (programa alternativo) ou uma filosofia? E a ambiguidade pode ser mais grave – não só semântica e intencio­nal, mas possivelmente ético-político-humana. A vita activa tão enaltecida por Hanah Arendt nos gregos estará garantida nas actuais sociedades civis e para serem elas possíveis como tais, ou vai invariavelmente degra­dada pelo consumismo hipertrofiado num fundo de economicismo, e economicismo corrupto, simultaneamente factor e consequencia do lúdico materialismo que campeia a dissolver todas as referências que convoquem e comprometam, e não menos por uma comunicação-infor­mação dos media estupidificante e manipuladora que destrói as condições para a assumida auto-identificação do ser que cada um de nós é? Se a sociedade civil, no sentido que possa ser hoje o seu, não prescinde de homens reflexivos capazes de discutirem os problemas e de se solida­rizarem para os resolverem, de homens que sejam também capazes de compreender criticamente as instituições que constituem e em que participem, e de aí se transcenderem axiologicamente, etc., será isso pensável num contexto de um individualismo crasso e em sociedades de massas uniformizadas alvarmente nas emoções e nas necessidades? Depois, mesmo abstraindo nós do que acaba de dizer-se, as sociedades civis não correrão o risco, pela sua própria ou natural fragmentaridade, pelos seus dispersos e porventura conflituantes pólos de convergência, e sobretudo quando com isso concorram divergências ético-histórico-cul­ turais e religiosas não raro matriz de nacionalismos agressivos – não correrão o risco de se converterem afinal em “sociedades incivis”? De novo John Keane dá-nos exemplos impressivos e trágicos dessa experiência na recente história das sociedades dos Balcãs. Mais ainda – não se sabe

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mesmo que nem sempre é claro o diálogo entre “sociedade civil” e democracia? Etc., etc. Por tudo o que me parece bem avisada a alguma perplexidade que vai já implícita quando, ao subordinar-se este Seminário ao tema da Socie­ dade Civil, logo se acrescentou como que uma também advertência, um segundo mote: “entre miragem e oportunidade”. Palavras estas minhas que, porventura abusando, me atrevi a dizer com um só objectivo: chamar introdutoriamente a atenção para a com­ plexidade de sentido da nossa temática. É para nos prevenirmos também da tentação de vermos na “sociedade civil” menos um problema do que uma referência em moda, se não mesmo um slogan. Reproduzo a este propósito uma observação que não é minha: “há sinais de que os sentidos da expressão ‘sociedade civil’ estão a multiplicar-se a um ponto tal que, como uma frase publicitária que chama a atenção, ela se arrisca implodir devido ao excesso de uso. Há certamente um crescente acordo acerca da importância da sociedade civil, mas há igualmente um crescente desa­ cordo acerca do seu sentido exacto”. As intervenções que vamos ouvir serão certamente concludentes esclarecimentos superadores das nossas dúvidas e por elas ficaremos também a saber, quanto à sociedade civil, tema do nosso tempo, se afinal e em que termos haveremos de pôr nela a nossa esperança – se é ela, na verdade, uma “miragem” ou uma “oportunidade”. Pois se a nossa condi­ ção sempre é a de Sísifo, hoje sobretudo vamos sabendo, como no verso de Helberto Helder, que “nas suas casas profundas Deus aguarda que se demonstre o teorema perfeito e terrível”. A. Castanheira Neves

(Universidade de Coimbra)

Sociedade civil e Constituição Ou Do uso jurídico da noção de sociedade civil I – Da Constituição ao Estado e do Estado à Constituição: três fases de desenvolvimento da ciência do direito constitucional na Europa Continental a)  Direito do Estado; teoria da Constituição; interpretação da Constituição. 1. Na Europa continental, a ciência do direito constitucional nasceu do movimento revolucionário das constituições escritas de finais de 1700, fruto da ilustração burguesa e do programa doutrinário do consti­tucio­ nalismo. Parece hoje certo, no entanto, que as diversas fases por que passou o seu crescimento – ao longo de dois séculos – implicam formas muito diferentes de relacionamento com a própria ideia de Constituição. Passada a desordem da(s) revoluções, o primeiro grande período durante o qual se constroem, com alguma solidez metódica, os quadros concei­ tuais relativos à nova ordem (pós-revolucionária) do direito público é o período do chamado “direito do Estado” (Staatsrecht)) em cuja designa­ ção, note-se, nem sequer aparece o termo constituição. Este período dura enquanto dura também a cultura jurídica de matriz positivista. Tem o seu centro de irradiação na Alemanha, vai até princípios de 1900, e é o período adequado à construção da legalidade (no domínio do direito público) e à sedimentação dos grandes movimentos codificadores (no domínio do direito privado). As “grandes questões” que tinham sido agi­ tadas pelos movimentos revolucionários, e que se poderiam sumariar em dois temas – as declarações de direitos e o seu primado sobre a lei; o poder constituinnte e o seu primado sobre os poderes constituídos – fi­

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cam, então, como que “englutidas” na necessidade de solidificação, pósrevolu­cionária, das instituições estaduais, ainda mesmo assim dilaceradas pela permanência do princípio monárquico. A palavra-chave de todo este período não é a palavra Constituição, entretanto posta em parêntesis. A palavra- -chave é a palavra Estado. 1 Da Constituição se voltará a falar já no sec. XX, durante o tempo fecundo que rodeou as duas grandes guerras. O epicentro da discussão é novamente a Alemanha, e o seu grande tema a teoria da Constituição. Que coisa é afinal uma Constituição? A contestação que o princípio do século faz à herança positivista de 1800; o concomitante renascer da convicção da autonomia metódica das chamadas “ciências do espírito” ou do “mundo da cultura”; o desfazamento crescente entre os novos proble­mas que se punham aos juristas e os velhos instrumentos de que estes dispunham para os resolver; particularmente, o desfazamento crescente entre a nova ordem constitucional, a da República de Weimar, e os problemas que ela punha, e o esgotamento perante eles das forças exan­gues do velho Staatsrecht – tudo isto contribui para que, nas primeiras décadas de 1900, se abra a propósito da compreensão do conceito de Constituição uma querela de métodos2. Do desenvolvimento dessa querela, protagonizada por Carl Schmitt, Rudolf Smend, Hans Kelsen, Her­mann Heller, e outros, saíram (e o resumo é obviamente esquemático) três grandes troncos de enquadra­ mento teórico do fenómeno constitucional. Um – o de Schmitt – recondu­ zia fundamentalmente tal fenómeno a uma teoria do poder constituinte; 1 Sobre todo este período – cujos grandes cultores serão sobretudo Laband, Jellinek e Gerber, e que ficou designado, na história da metodologia jurídica, por período do positivismo jurídico-estadual (“staatsrechtlicher positivismus”) – a obra clássica é a de Wal­ ter Wilhelm, Zur juristischen Methodenlehre im 19. Jahrhundert, Vittorio Kloster­mann, Fankfurt a.M., 1958. Por último, vejam-se as belíssimas sínteses histórico-filosó­ficas de Maurizio Fioravanti, em Stato e Costituzione, G. Giappichelli Ed., Torino, 1993 (passim), e em Costituzione, Il Mulino, Bologna, 1999, p. 134 e ss. 2 Sobre este debate – decisivo para a evolução dos quadros conceituais do direito constitucional na Europa – vejam-se Alfredo Gallego Anabitarte, “La discussion sobre el metodo en Derecho Publico durante La Republica de Weimar (Ciencias del espíritu y método jurídico)”, em Revista española de Derecho Constitcuional, n.º 46, (1996), pp. 11- -60; Peter Badura, “Verfassung und Verfassungsgesetz”, em Festschrift fuer Ulrich Scheuner, Berlin, 1975, pp. 19-39. Sobre o enquadramento deste debate no contexto mais geral da discussão sobre os métodos jurídicos no princípio do século, Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, trad. de José Lamego, Ed. Fundação Calouste Gul­ benkian, 3.ª ed., p. 113 e ss.

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outro – o de Kelsen – reconduzia fundamen­talmente tal fenómeno a uma teoria da compatibilidade formal entre nor­mas de graus hierárquicos dife­ rentes; outro – o de Smend – reconduzia fundamentalmente tal fenómeno a uma teoria da interpretação das normas constitucionais não-formais, ou a uma teoria da interpretação do direito constitucional substancial3. Creio que o decurso do século viveu, em grande parte, da fecundidade destes três grandes modelos teóricos; e que, de todos eles, o que se mostrou mais perene foi justamente o de Smend, ou da teoria da interpretação do direito constitucional material4. Depois de 1945, com as constituições do pós-guerra (com a Lei Fun­ damental de Bona de 1949; com a Constituição italiana de 1947), a ciência do direito constitucional na Europa inicia a sua terceira fase. A palavra “constituição” está aí no centro das suas construções. Mas o que a seu propósito se pergunta já não é que coisa é uma Constituição, mas que coisa quer dizer cada (nova) constituição estadual-nacional. O período anterior, dedicado à teoria, dá lugar a um novo período, necessariamente dedicado à sedimentação dogmática e à interpretação. As razões que explicam a necessidade da mudança são hoje bem claras. Todas estas constituições do pós-guerra consumam, no interior dos seus próprios or­ denamentos, essa espécie de “revolução jurídica” sem precedentes que se traduz na chamada positivização dos direitos humanos 5: todas elas convertem em direito posto, susceptível de ser aplicados pelos tribunais, os princípios reitores das “antigas” declarações de direitos de 1700, aggiornati às exigências da segunda metade de 1900 6. Para aplicar este novo direito, e para o tornar cogente face aos actos do poder político, todas elas instituem também “mecanismos” de um novo tipo de justiça – frequent­ emente confiada a uma instituição de tipo novo, chamada Tribunal Con­ Desenvolvi esta ideia – segundo a qual terão resultado, do debate sobre a teoria da Constituição, as três grandes tendências referidas no texto – em Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 260- -274. Veja-se sobretudo p. 263, e bibliografia aí citada. 4 Ibidem. 5 Quanto ao sentido exacto da expressão – e quanto às repercussões que teve este processo de positivização na evolução da ciência do direito constitucional na Europa – remeto para a excelente obra de Antonio Pérez Luño, Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion, Tecnos Madrid, 1995, 5.ª ed, passim. 6 Por todos, G. Bongiovanni, “Diritti inviolabili e libertà”, em Le Basi filosofiche del Costituzionalismo, Barbera (org.), Ed. Laterza, 1997, pp. 67-91 7 Para uma excelente introdução à questão – e para as repercussões decorrentes da 3

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stitucional – que, a ritmos diferentes e com graus de dificuldade variáveis de Estado para Estado, se vai tornando gradualmente operativa a partir da década de 50 7. O funcionamento quotidiano desta justiça de nova feição reclama da ciência uma tarefa enorme: é agora necessário que ela diga como é que se interpretam expressões tão vagas quanto as de “dignidade da pessoa humana”, “estado de direito”, “livre desenvolvi­mento da per­ sonalidade” ou “igualdade”, expressões essas entretanto trans­formadas em parâmetros de valoração das acções dos Estados. A tudo isto acresce uma convicção que é inicialmente difusa – mas que se vai gene­ralizando ao longo da segunda metade do século – relativa à impor­tância estratégica que necessariamente terá o êxito desta tarefa de inter­pretação. De algum modo (pensa-se) a construção da paz nas sociedades cada vez mais plurais da segunda metade do século depende da capaci­dade que nelas se tiver de encontrar um idem sentire, um mínimo ético comum que possa unir as diferentes mundividências societárias. Ora os “direitos” – ou melhor, a interpretação razoável ou adequada que em cada momento e a propósito de cada controvérsia deles se fizer – contêm esse mínimo ético comum 8: a ciência do direito constitucional, cada vez mais transformada em ciên­ cia da interpretação e da argumentação, sente-se portanto co-responsável pela manutenção da paz no interior dos Estados da Europa da segunda metade do século XX. Como se sabe, durante todo este período, a paz de que se fala é uma paz (europeia) ocidental. A transformação da ciência do direito consti­ tucional numa ciência dogmática, quase que funcionalmente mobilizada para a interpretação dos textos constitucionais positivos, não anula ob­ viamente a questão teórica, relativa ao ser (e não simplesmente ao existir) dos fenómenos constitucionais. A questão teórica permanece, mas é como que “incluída” na questão da interpretação 9. E se tal acontece é porque, introdução deste novo tipo de justiça na evolução do dieito constitucional positivo – vejase Gustavo Zagrebelsky, La Giustizia Costituzionale, ed. Il Mulino, 1988. 8 É impossível fazer o recenseamento da literatura jurídica que subscreve esta orien­ tação. Suponho que a obra de Gustavo Zagrebelsky, Il Diritto Mite, Einaudi, Turim, 3.ª ed. 1995, pode ser apresentada como uma magnífica síntese. 9 A inclusão da questão da teoria na questão da interpretação foi liminarmente re­ sumida por Ralf Dreier: “Diz-me que métodos de interpretação escolhes e dir-te-ei que teoria da Constituição perfilhas”. Ralf Dreier, “Zur Problematik und Situation der Ver­ fassungsinterpretation”, em Dreier/Schwegmann (orgs), Probleme der Verfassungsin­ terpretation, Nomos Verlag, Baden-Baden, 1976, pp. 13-47 (14-5). O facto não é de espantar. A questão da interpretação foi sempre a questão central da metodologia do

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em última análise, ela pode ser sempre respondida por referência a um outro – radicalmente outro – modo de ser da constituição, que é aquele que se vive no universo constitucional próprio da Europa de Leste até 1989. b)  Uma nova fase: matérias constitucionais em busca de uma forma e formas constitucionais em busca de matérias 2. A hipótese de que parto neste artigo, e que me parece visível a olho nu, é a de que, a partir desta data (1989) se terá iniciado uma nova e quarta fase. Não me parece possível, nem sequer interessante, procurar já a palavra ou a expressão que a poderá identificar. Parece-me seguro que, para efeitos explicativos, se podem nomear (e portanto ordenar) as três fases que a antecederam através de palavras ou expressões-chave. Se – como atrás disse – para a primeira fase, a de oitocentos, a palavrachave é a palavra Estado e não a palavra constituição, para a segunda fase a expressão-chave será a de (fase da) teoria da constituição do Estado e para a terceira a de (fase da ) da interpretação da constituição do Estado. Significa isto que, durante estes dois últimos períodos, a ciência europeia do direito constitucional se ocupou, de modos diferentes, de duas coisas ao mesmo tempo: do Estado (de cada Estado nacional) e da(s) sua(s) dife­ rentes constituições. Se há na verdade algum novum que, a partir de 1989, lhe exija redobrados esforços, tal deverá necessariamente rela­cionar-se com o diferente lugar que dora­vante merece o tratamento do tema Estado. Voltarei ao assunto. Mais impor­tantes me parecem agora, de imediato, as reflexões novas que se impõem quanto ao tema da Cons­tituição. 3. Durante as duas primeiras fases, a dicotomia entre forma e matéria da Constituição surgiu sempre como ideia recorrente. A distinção entre Direito. No modo do interpretar reflecte-se “a concepção fundamental do Direito de cada época e pressupõe (-se) o contexto cultural que vai no horizonte significativo dos juristas” (Castanheira Neves, “Interpretação Jurídica” em Enciclopédia Polis, 3, p. 651). No domínio do Direito Cons­titucional, tão apto a espelhar o contexto cultural que vai no horizonte significativo dos juristas, a questão da interpretação assume uma dificuldade metodológica e dogmática particular. A bilbliografia sobre a questão é por isso imensa. Quanto ao seu significado para a ciência do Direito, veja-se Larenz, Metodologia, cit., pp. 510 e ss. 10 Quanto a esta “acusação” – que terá determinado o destino subsequente das de­ clarações de direitos, consideradas durante o sec. XIX como textos meta-jurídicos e não

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o conceito de “constituição em sentido formal” e “constituição em sen­ tido material” correspondia, com efeito, a uma das categorias conceituais mais seguras da ciência do direito antes de 1945. E tal sucedia por causa de uma “acusação” que desde muito cedo se começou a fazer ao ideário das revoluções de finais de 1700 10 . Tais revoluções – dizia-se – só tin­ ham con­se­guido produzir textos constitucionais que em última análise se resumiam a formas em busca de uma matéria que neles se não encon­ trava. A matéria da Constituição (dizia-se ainda) é a ordem fundamental efecti­vamente vigente numa determinada comunidade política; ora, nas comu­nidades políticas que à altura integravam os Estados da Europa, a ordem fundamental efectivamente vigente não era aquela que os textos diziam que era. A acusação fazia todo o sentido justamente quanto aos textos mais importantes saídos das revoluções de finais de 1700, e que eram as declarações de direitos. As intenções revolucionárias tinhamse concen­trado sobretudo nelas; mas a evolução pós -revolucionária do direito público europeu tinha-as remetido para o lugar juridicamente não opera­tivo das “meras proclamações”, ou das (como então se dizia) “nor­ mas programáticas”, que não vinculavam os poderes do Estado. Daí que mui­tas vezes se distinguisse – sobretudo durante o período crítico de Weimar – entre lei constitucional e Constituição: a segunda ordenava efectiva­mente mas não “valia” juridicamente; a primeira pretendia “valer” juridi­camente mas não ordenava efectivamente 11. A dicotomia entre forma e matéria da Constituição fazia assim, então, todo o sentido, e por isso se confundia com um quadro conceitual seguro da ciência do direito consti­ tucional das duas primeiras fases – quer da fase do Staatsrecht, quer da fase teórica ou do período entre guerras. Depois de 1945 a dicotomia foi gradualmente deixando de se usar jurídicos – ver Maurizio Fioravanti, Appunti di Storia delle Costituzione Moderne, le libertà fondamentali, G. Giappichelli Editore, Torino, 2.ª ed., 1995, pp. 118 e ss; Carla Faralli, “Stato”, em Le Basi Filosofiche del costituzionalismo, Barbera (org.), cit., pp. 167- -92 (186 e ss). 11 Peter Badura, Verfassung und Verfassungsgesetz, ob cit. supra, nota 2. Para uma excelente explicação retrospectiva das razões desta necessária contraposição entre “cons­ tituição em sentido formal” e “constituição em sentido material”, Gustavo Zagrebelsky, Manuale di diritto costituzionale, Il sistema delle fonti di Diritto, Torino (reimp), 1992, pp. 11 e ss. 12 Sobre este reencontro – e numa síntese particularmente feliz – Ignacio de Otto y Pardo, Derecho Constitucional. Sistema de fuentes, Barcelona, 1987, 17 e ss.

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porque foi, também gradualmente, deixando de fazer sentido. Os textos formais, devidamente interpretados e aplicados pela justiça constitucional, foram-se transformando durante a segnda metade do século XX em textos juridicamente operativos, sobretudo através da interpretação e aplicação judicial das normas constitucionais respeitantes aos direitos das pessoas. Sabia-se agora (ou foi-se sabendo gradualmente, a partir da década de 50), o que é que neste domínio os enunciados queriam dizer, como é que os tribunais efectivamente os aplicavam, como é que deles se extraíam limi­tes efectivos para o exercício do poder político, legislativo e adminis­ trativo. A chamada constituição em sentido formal tinha-se finalmente (re) encontrado com a constituição em sentido material 12. O que parece acontecer, depois de 1989, é a revivescência do desen­ contro. Agora, há por um lado – e isto é coisa verdadeiramente nova – não uma forma à procura de uma matéria, mas uma matéria em busca de uma forma. Refiro-me ao que sucede, pelo menos, no espaço integrado da União Europeia, que tem já (e suponho que não há ninguém que o con­teste) uma constituição material, fragmentária e portanto, neste sen­ tido, informe 13. Depois, noutros lugares, voltou a haver formas em busca de matérias, exactamente do mesmo modo por que as havia a oeste do continente europeu antes da “fase dogmática” iniciada depois da segunda grande guerra. Refiro-me a todas as Constituições das novas democracias do Leste da Europa, que acolheram no seus textos uma linguagem comum relativa ao “estado de Direito” e à garantia das “liberdades fundamentais”, mas que têm pela frente exactamente a mesma tarefa que se impôs às suas congéneres ocidentais depois de 1945 – a de encontrar o modo através do qual se pode ir operando a gradual conversão da linguagem em direito, ou, o que é o mesmo, dos textos em normas 14. O reconhecimento deste movimento duplo que se desencadeia no es­ paço europeu depois de 1989, e onde evoluem em compasso tanto novas matérias (constitucionais) em busca de uma forma quanto novas forA literatura já existente sobre o tema é imensa. Entre nós, vejam-se Francisco Lucas Pires, Introdução ao Direito Constitucional Europeu, Almedina, Coimbra, 1997; J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coim­ bra, 4.ª ed., 235 e ss; Miguel Poiares Maduro, “A crise existencial do constitucionalismo europeu”, em Colectânea de Estudos em Homenagem a Francisco Lucas Pires, ed. Uni­ versidade Autónoma de Lisboa, 1999, pp. 201-215. 14 Por último, Peter Haeberle, El Estado constitucional, ed. Universidad Nacional Autonoma de México, México, 2001, passim. 13

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mas (constitucionais) em busca de matérias, fornece o indice seguro de que estaremos neste momento, de facto, a entrar numa fase diferente daquelas que atrás ficaram descritas. Só que, agora, a “fase” é nossa con­ temporânea, pelo que distamos muito pouco dela. O problema é, pois, o de saber com que grau de exactidão a poderemos olhar. II – Transições constitucionais e transformação de linguagem: a)  Termos antigos que se voltam a usar

4. A segunda hipótese de que parto neste artigo é a seguinte. Todas as épocas de transição constitucional são também épocas de trans­for­ mação de linguagem 15. As três “fases”, já identificadas, por que passou a ciência do direito constitucional na Europa duraram enquanto duraram os ciclos constitucionais a que corresponderam. A fase do direito do Es­ tado começou com a transição constitucional da revolução para a pósrevolução, e acabou com a transição constitucional do Estado do sec. XIX para o universo do sec. XX; a fase “ontológica”, ou “essencialista”, da teoria da Constituição acompanhou, ao fim e ao cabo, o trânsito consti­ tu­cional do fim da Europa dos Impérios; a “fase dogmática”, ou “inter­ pretativa”, acompanhou (rectius: acompanha) o processo complexo de transformação de um universo juridica e mundividencialmente monista num universo juridica e mundividen­cialmente plural. Se tomarmos como boa a ideia segundo a qual a todos estes ciclos históricos correspondem outros tantos ciclos de linguagem – que evoluíram do seguinte modo: da linguagem da Constituição para a lin­guagem do Estado, da linguagem do Estado para a linguagem da teoria da Constituição, e desta para a linguagem da interpretação da Constituição – então, poderemos também partir da hipótese segundo a qual os momentos críticos da transição serão também aqueles em que, de modo decisivo, se “fixa” o início de uma nova15 linguagem.16 . Quanto a este ponto, sigo Conceptual Change and the Constitution, Terence Ball/ J.C.A. Pocock (orgs), University Press of Kansas, 1988. 16 Neste sentido, ver particularmente o exercício de Gerald Stourzh, “Constitution: Changing Meanings of the Term from the Early Seventeeenth to the Late Eighteenth Century”, em Conceptual Change and the Constitution, cit., pp. 35-54. 17 Ibidem. 18 Para uma visão comparada, Hofmann/Marko/Merli/Wiederin (orgs.), Rechtssaa­ tlichkeit in Europa, C.F. Mueller, Heidelberg, 1996 19 Hofmann/Marko/Merli/Wiederin, cit; Haeberle, El Estado Constitucional, ob. cit.

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Este processo de fixação de uma nova linguagem pode decorrer de diferentes maneiras. Pode tanto traduzir-se no surgimento de termos no­ vos que se formam para designar coisas novas, quanto na reutilização de termos antigos que são “recuperados” a fim de receberem transformações ou precisões de sentido 17. Suponho – e esta é a concretização essencial da hipótese de que parto, e que acima descrevi em termos gerais – que, no processo de mutação que estamos agora a viver, há pelo menos dois termos velhos que começam a ser recuperados. Um é o termo constitucionalismo; outra, a expressão sociedade civil. Este processo de recuperação tem que ser justificado por alguma necessidade objectiva. Se, em ambos os casos, se trata de expres­sões antigas que agora se voltam a usar, importa compreender por que razão se voltam elas a usar. Por que razão são hoje elas – novamente – necessárias? Esta é, segundo creio, a primeira pergunta à qual interessa procurar responder. Mas, para além de saber por que é que os termos se voltam a usar, importa também saber com que sentido hoje se utilizam: com o sentido antigo, ou com um sentido novo, corrigido, precisado ou transformado? As duas questões tendem a estar relacionadas, dado que as transformações de sentido serão sempre, em princípio, condicionadas pelas próprias necessidades da re-utilização. b)  Constitucionalismo 5. De constitucionalismo se falava durante o período “genético” de formação da ciência do direito constitucional na Europa, em finais de 1700. De constitucionalismo se volta a falar agora. A razão por que tal sucede pode ser encontrada na simples leitura dos textos das diferentes constituições escritas que foram sendo adoptados no continente europeu, ao longo da segunda metade do século XX, a partir da década de 40 18. A uniformidade da linguagem que neles agora se encontra é impressio­ nante. Todos estes textos se referem a coisas como “poder constituinte”, “separação de poderes” “primado do legislativo”, “princípio da maioria”, (nota 14). 20 É com base, aliás, no reconhecimento textual da existência deste jus commune europaeum que o art. 7.º do TUE (Tratado da União Europeia) prevê a aplicação de sanções àqueles Estados-membros que violarem de forma grave e persistente estes princípios de direito constitucional comum. 21 A expressão é de Maurizio Fioravanti, em Appunti di storia delle costituzione

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“liberdades e direitos fundamentais, “democracia”, “estado de direito”19 ; e todos eles são relativos, evidentemente, a constituições estaduais na­ cionais. Mas noutro lugar, e a propósito de uma diferente realidade, rea­ parece a mesma linguagem. Refiro-me ao artigo 6.º do Tratado da União Europeia, nos termos do qual “os princípios da liberdade, da demo­cracia, do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamen­tais, bem como do Estado de Direito” são princípios nos quais assenta a União, sendo em particular os direitos fundamentais (“tal como decorrem das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros”) princípios gerais do próprio direito comunitário 20. Nesta linguagem comum ecoa uma certa tradição de pensamento; e essa é a tradição do constitu­cio­nalismo, que sempre sustentou como bom o princípio do governo limitado para fins de garantia 21. O movimento actual que atravessa o continente europeu, e onde evoluem em compasso novas matérias constitucionais em busca de uma forma e novas formas constitucionais em busca de maté­ria,é assim um movimento que, aparentemente, se dá ao som dos prin­cípios programáticos do ideário consittucionalista. É por isso que a refe­rên­ cia a este ideiário é uma referência antiga que agora se volta a usar. No entanto – e visto que a forma como o Direito se relaciona com a linguagem tem especificidades que se não encontram noutros domínios moderne, cit,p. 96. 22 Para os juristas, as palavras não são apenas apenas um meio de entendimento de objectos exteriores a elas mesmas. São, mais do que isso, meios de ligação entre dois níveis diferentes de textualidade. O Direito realiza-se quando se constroí a “ponte” que liga dois textos de natureza diversa: aquele que contém a proposição normativa, ou a “proposição de dever-ser”, e aquele outro que contém a descrição da situação do ser através da qual se apresenta o problema, ou o caso, que tem que ser juridicamente resolvido. Ao Direito as palavras servem, portanto, para construir esta correspondência entre o ser e o dever ser. Elas vão e vêm do discurso mais concreto que descreve o que acontece para o discurso mais abstracto que propõe o que deve acontecer. O caminho que seguem nunca é linear: não se parte de um campo para chegar a outro. É antes – como dizia Karl Engish – um “ir-e-vir do olhar”, uma constante andança entre uma coisa e outra, entre a situação do ser e a proposição do dever-ser e vice versa. Toda a actividade dos juristas, “teóricos” ou práticos, se faz nesta andança; toda a sua linguagem é usada nesta constante migração. Fritiof Haft, “Recht und Sprache” , em Kaufmann Rechtstheorie, p. ?? 23 Mais uma vez, a expressão é de M. Fioravanti, em Appunti, cit., p. 96. Veja-se a recensão crítica de Ana Cristina Nogueira da Silva a esta obra em Themis, Ano I, n.º 1, 2000, p. 244. 24 Gustavo Zagrebelsky, Società-Stato-Costituzione, G. Giappichelli Editore, Torino, 1988, passim.

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do saber ou das actividades humanas 22 – a mera verificação da existência de uma uniformidade linguística satisfaz muito pouco as exigências dos juristas. À ciência do direito interessa saber como, e em que medida, os textos se convertem em normas; como, e em que medida, a uniformidade da linguagem pode corresponder a uma comunidade de direito; que den­ sidade e extensão pode ter, ou vir a ter, tal comunidade. Assim posto, o problema (colocado pela necessária re-utilização do termo “constitucionalismo”) é, obviamente, um problema enorme. Tanto mais que se sabe que o ideário constitucionalista sempre teve pontos obs­ curos 23, e que as suas obscuridades se situaram sempre, e sobretudo, no ponto cardial da relação entre o Estado e a sociedade. c) Sociedade civil 6. A separação entre Estado e sociedade forma uma das categorias centrais do direito constitucional moderno. A razão profunda que pode explicar a permanência desta categoria encontra-se em última análise na matriz anti-aristotélica em que assenta toda a construção da estadualidade moderna. Se, nesta construção, a esfera da política (ou seja, a esfera do Estado) é concebida como um quid derivado das vontades individuais – sendo a um tempo tão “artificial” quanto distinto delas – é lógico que se possam distinguir sempre, com nitidez, dois domínios diferentes de rela­ ções: o domínio da sociedade civil, composto pelas relações horizon­tais entrre os indivíduos, e o domínio da sociedade política, composto pelas relações “artificais” entre os indivíduos e o poder 24. A verdade, porém, é que esta separação teve duas declinações histó­ ricas completamente diferentes, desde o início do constitucionalismo até hoje. Uma foi aquela que lhe foi dada pelas características próprias da tradição constitucional norte-americana; outra, a que decorreu da tradi­ ção constitucional do continente Europeu. Maurizio Fioravanti sintetiza as diferenças de modo luminoso. Desde as suas primeiras decla­rações de direitos – diz – o constitucionalismo norte-americano aparece marcado Appunti, cit., p. 96. Como recorda Fioravanti, ob. cit., p. 55, a palavra “lei” aparece nove vezes na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. 27 Ob. cit., p. 96. 28 Creio que a obra seminal deste entendimento de sociedade civil (que me parece específico do iluminismo escocês) é a de Adam Ferguson, Essay on the History of Civil 25

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por um ethos de raíz historicisto-antropocêntrica: o que ele pretende é assegurar a constituição de um espaço social que seja efectivamente autónomo em relação ao poder político, espaço esse que permita que as leis imanentes da sociedade produzam livremente os seus efeitos auto-reguladores25 . Por isso mesmo, na América, o ideal do gov­ erno limitado para efeitos de garantia foi sempre vivido de “baixo para cima”, da sociedade para o Estado. Na Europa, pelo contrário, tal ideal foi vivido “de cima para baixo”, do Estado para a sociedade, o que gerou um constitucionalismo marcado por um ethos essencialmente político e estatocêntrico. As primeiras declarações de direitos, resultantes da revo­ lução francesa, deixam-no já antever: aqui, em solo europeu continental, há-de ser ao Estado nascido da revolução, e ao direito que dele emanar, que caberá a tarefa (entre todas esclarecida) de corrigir radical­mente uma sociedade corrompida, de forma a reordená-la através do ideal moral de uma vontade jurídica virtuosa 26. Por isso mesmo – continua Fioravanti – cada uma destas tradições sofreu, por causa dos seus diferentes (mas ambos) dilacerados espíritos, diferentes pontos obscuros. É evidente que o ponto obscuro do constitucionalismo americano residiu sempre, e reside ainda, nas suas incapacidades para responder aos problemas de futuro. Confiantes nas capacidades de auto-regulação política do livre jogo de interesses sociais, os “revolucionários americanos realizaram uma Con­ stituição que é mais teatro de competição entre os indivíduos e forças sociais e políticas e não um projecto comum para o futuro.”27 Creio que a repercussão contemporânea deste ponto obscuro do constitucionalismo americano está hoje bem patente nos debates dilacerados que opõem libe­ rais e republicanos, e que buscam a resposta à pergunta já colocada por Publius nos Federalist Papers, ainda e sempre não encontrada: de que depende a virtude de uma república? Da virtude das suas instituições ou da virtude dos seus cidadãos? Os pontos obscuros do constitucionalismo europeu, de matriz política e estatocêntrica (que pretendeu rectificar a sociedade por intermédio da virtude do direito e do Estado), decorreram por seu turno da sua inca­ pacidade para dar resposta a uma pergunta de fundo: como conciliar a Society, primeiro publicada em Edimburgo em 1767. 29 Guiei-me, quanto à discussão sobre a Amizade dos Livros VIII e XIX da Ética a Nicómaco, pela interpretação que lhe dá Carnes Lord, em “Aristoteles”, History of Political Philosophy, Léo Strauss/Joseph Cropsey (orgs), The University of Chicago Press, Chicago/London, 3.ª ed. 1987, p. 127 e ss.

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virtude (do Direito e do Estado) com a própria essência do programa constitucionalista? Ou perguntando de outro modo: se o Direito e o Estado devem ser virtuosos, como podem eles ser submetidos aos princípios do governo limitado para efeitos de garantia? 7.  Suponho – e esta é a minha última hipótese – que é justamente esta (imensa) obscuridade do constitucionalismo de tradição europeia que agora ressurge, no exacto momento em que os textos constitucio­ nais adoptam, em todo o continente – e pela primeira vez na história – a lingua­gem uniforme do ideal do governo limitado para efeitos de garan­ tia. Trata-se, evidentemente, de um paradoxo; mas é por causa dele que sentimos a necessidade de voltar a usar a expressão “sociedade civil”. O sentido com que a usamos é que é diferente, porque aggiornato às nossas necessidades presentes. A “sociedade civil” de que hoje tanto se fala – e no domínio do direito fala-se dela a propósito de coisas tão diferentes como o são as autoridades administrativas independentes, as organizações não governamentais ou as redes de ligação entre autoridades judiciais nacionais – não é necessaria­ mente definida por oposição ao seu contrário. Não é “civil” por integrar o privado por oposição ao público, ou o individual (cives ou Burger) por oposição ao Estatal. Suponho antes que é civil por referência a si mesma, no sentido fergusoniano do termo: civil porque civilizada por alguma disposição moral comum 28. A ideia pode parecer demasiado evanescente, mas de algum modo ela remonta à ideia antiga de Amizade em Aristó­ teles 29. Resta saber como é que nós, modernos, a podemos viver, e de que modo sentimos necessidade dela. A questão é imensa, e não tenho para ela resposta. Mas permito-me sugerir a seguinte possibilidade: talvez tenhamos necessidade de uma “civilidade”, ou seja, de uma disposição moral comum, que seja o resul­ tado de quatro amizades individuais necessárias. Primeira: a amizade do indivíduo perante a participação cívica e perante a orientação pelo interesse 30 A expressão é de Robert D. Putnam, em Making Democracy Work, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, 1993, onde – pp. 87 e ss – se desenham estes “quatro elementos “ como indicadores (?) de “civilidade”.

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público; segunda, a amizade do indivíduo face ao outro indivíduo, através da generalização de relações interpessoais de igualdade e de reciprocidade; terceira, a amizade do indivíduo face ao Direito – quer público quer privado – cultivada através da ideia de confiança; quarta: a amizade do indivíduo face a práticas generalizadas de associativismo. Todas estas quatro amiza­ des, a serem cultivadas, podem vir a forjar a tal disposição moral comum de que necessitamos, e que formam o espírito daquela sociedade que é “civil”. Todas estas quatro amizades, se não forem cultivadas, poderão dege­nerar no seu contrário. A amizade individual pela participação cívica pode degenerar no seu oposto, ao qual se pode chamar o “familismo amoral”30 – a convicção generalizada segundo a qual o interesse próprio bem orien­tado consiste apenas na prossecução de benefícios materiais imediatos para a família nuclear. A amizade do indivíduo face a outro indivíduo, através da generalização de relações interpessoais de igualdade e de reciprocidade, a não ser cultivada, pode degnerar no seu contrário: a generalização de relações crescentes de interdependências privadas, onde campeiam o poder (e portanto, a irresponsabilidade) absoluta de uns face à impotência (e, portanto, também, à irresponsabilidade) absoluta de outros. A amizade do indivíduo face ao Direito, através da ideia de confiança, a não ser cultivada, pode degenerar no seu contrário: na cre­ sente suspeição perante regras precárias, contraditórias, de futuro impre­ visível. Finalmente, a amizade do indivíduo face à prática associativa, a não ser cultivada, pode degenerar no seu contrário. Tocqueville viu a degenerescência deste contrário há bastante tempo: redunda ele no isola­ mento que é propício à vitória dos despotismos. Creio que, quando os juristas falam agora muito de “sociedade civil”, é da necessidade do cultivo destas quatro amizades de que falam. E falam – e falamos todos – porque sentimos que delas precisamos, que delas va­ mos continuar a precisar. Resta saber que quota-parte de responsa­bilidade pode caber à disciplina do Direito nestas tarefas de cultivo. Maria Lúcia Amaral

(Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa)

Sociedade Civil e Mercado O tema que me é proposto para reflexão, sociedade civil e mercado, é um tema complexo e aliciante. Da sociedade civil tenho sobretudo uma visão fundada na participação cívica e política desenvolvida num quadro não institucional. Sobre o mercado a minha análise é determinada pela aborda­gem técnica, académica e científica. Arrisco por isso uma aborda­ gem distan­ciada cruzando experiências académicas e cívicas, consciente do risco de me colocar num registo atípico, mas espero, útil e comple­ mentar ao debate. O nosso tempo, volátil, simbólico, fluido e fugaz, é particularmente vulnerável a duas perversões de raciocínio. A primeira fundamenta-se na ilusão da neutralidade dos conceitos. Sociedade civil e mercado são dois exemplos de conceitos que usados e abusados á exaustão, tendem a perder conteúdo e a ser arremessados como bengalas discursivas ou op­ erativas pretensamente anódinas. Não menos vezes são referencia- dos por mero contraponto aos poderes públicos e ao Estado, quer num registo de com­plementaridade quer num registo de alternativa e subs­tituição. A segunda relaciona-se directamente com o grande perigo da socie­ dade da informação – não o propalado perigo de os computadores virem um dia a pensar como os homens, mas o risco já hoje evidente dos homens se resignarem a pensar como os computadores, numa deriva brusca da sociedade digital para o pensamento digital, dicotómico, tecnocrático e cas­trante da diversidade fecunda. Tentaremos pois que este pequeno texto seja também em certa medida um repto contra a ilusão da neutralidade conceptual e o triunfo do pensa­ mento digital, neste alvor do terceiro milénio. Mercado – Dinâmicas e tendências

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A relação de troca sempre foi um fenómeno estruturante da vida em sociedade. Mais ou menos sofisticado e abrangente, o mercado sempre existiu como um espaço público privilegiado e controlado por regras sociais, económicas ou políticas. A revolução industrial, a massificação das produções e dos consumos e o desenvolvimento dos sistemas de transporte, geraram novas dimensões de complexidade na estrutura e no comportamento do mercado. Num primeiro momento, o desenvolvimento de novas estruturas empre­sariais descentrou o mercado, colocando a oferta como motor da dinamica de consumo e determinando o processo de escolha a partir das técnicas de difusão e distribuição. O aumento exponencial da capacidade de oferta e da sua mobilidade deu origem, em meados do século XX a uma primeira revolução estrutural na textura do mercado, passando a procura a determinar a sua dinâmica e as técnicas de vendas e de “marketing” a condicionar fortemente os processos de escolha. Na transição do milénio, o desenvolvimento dos espaços reticulares e de comunicação interactiva e sem fronteiras, criou conduções para uma segunda revolução estrutural e para um regresso ao sistema sem centro e desenvolvido a partir da coexistência de sub-sistemas viáveis. Sociedade de mercado – Mitos e realidades O conceito ainda difuso de sociedade de mercado, tem vindo a cons­ tituir o epicentro do que resta de debate ideológico entre a esquerda e a direita. Sobretudo á esquerda, é grande a tentação para estabelecer e demarcar a fronteira ideológica a partir da ideia que a esquerda e a dire­ ita modernas aceitam a economia de mercado, mas a esquerda recusa a sociedade de mercado. Num registo mais burilado, é também em torno da sociedade de mer­ cado que se definem tonalidades alternativas no mesmo campo ideológico. Por exemplo, a distinção entre a praxis governamental de Blair e Jospin, ou entre o trabalhismo inglês e o socialismo gaulês, é por vezes feita dizendo que o primeiro aceita as políticas sociais desde que não preju­ diquem o mercado e o segundo aceita o mercado desde que não prejudique

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as politicas sociais. Vivendo na fronteira entre a sociedade da informação e a sociedade do conhecimento, num tempo em que a economia da informação é tam­bém ela cada vez mais uma economia do conhecimento, não é possível con­ tinuar a discorrer sobre o mercado, esquecendo que o principal bem transacionável é o saber e a principal fonte do valor é o cérebro humano. A economia emergente, após incursões recentes pelos modelos mate­ máticos ou pelas técnicas da ilusão comunicacional, recentra-se cada vez mais nas pessoas e menos nas mercadorias. Se redesenharmos e incorporarmos uma dimensão social no mercado, fazendo do reforço do equilíbrio e da coesão da sociedade um investi­ mento reprodutivo e não uma mera despesa funcional, então o conceito de sociedade de mercado deixa de ser relevante ou pelo menos perde parte da sua carga pejorativa. Relevante e perigosa é a afirmação paralela de práticas de politica de mercado, castradoras do papel vanguardista das ideias e da capacidade transformadora dos governos, colocando a politica ao serviço da opinião dominante e transformando-a em simulacro caricatural fortemente penali­ zador da credibilidade da democracia representativa. Mercado Social – Uma visão de futuro No mercado do conhecimento, o indivíduo é o principal repositório genético do valor, ao mesmo tempo que corporiza os novos capitais rele­ vantes – O capital intelectual e o capital social que o permite repro­duzir. A mão invisível, que muitos esboçaram moldando as combinações de trabalho e capital capazes de conjugar a procura e a oferta económica, é hoje um cérebro ou um metacérebro, igualmente invisível e com uma crescente componente virtual. Neste contexto, uma evidência marca toda a reflexão necessária sobre o mercado e sobre a sociedade civil do futuro. Perante a desconstrução profunda de todas as narrativas tradicionais, operada pela emergência da socie­dade da informação e da economia do conhecimento, uma âncora de refe­rên­cia prevalece, desafiando a elaboração das novas concepções – o indivíduo.

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Nos últimos anos do século XX, evoluímos dum contexto em que os indivíduos apenas podiam sobreviver se encaixados num sistema ou num anti sistema viável pré-desenhado, para um quadro novo, em que indiví­duos, em determinadas circunstâncias, se podem organizar formal ou infor­malmente, induzindo a partir da base a formulação de sistemas viáveis. Não falta contudo, quem compreendendo este novo nó górdio da mecânica social se apreste a fornecer referências prontas a usar, criando modelos de mercado ou de dinâmica social oficiais, confluindo na cartilha do pensamento único. As sociedades modernas confrontam-se assim com um novo problema de libertação. Libertação pela aprendizagem e pelo conhecimento, pilares essenciais para permitir a cada indivíduo derrotar os modelos de alienação genérica, traçados pela matriz dos interesses. A liberdade e a igualdade são os pilares e os valores centrais de qual­ quer visão equitativa da sociedade. Na alquimia destes valores se trava­ ram e travam os grandes combates ideológicos. Em torno deles se estru­ turará também o novo mercado social. A liberdade sem igualdade conduz à tirania do mais forte e à erosão da dignidade, enquanto a igualdade sem liberdade configura uma tirania igualitarista de captura da identidade e da personalidade. Os requisitos para se ser livre e igual no acesso ás oportunidades, são hoje diferentes e mais complexos. De facto, ninguém pode ambicionar ser igual, mesmo igual à partida nos direitos e nos deveres, se não tiver igual possibilidade de acesso aos instrumentos de descodificação e interpretação dos dados essenciais à vida em sociedade, no quadro da nova matriz social baseada em informação e em conhecimento. Da mesma forma, ninguém pode ambicionar ser livre, se não tiver a capacidade necessária para controlar a manipulação inconsciente, resul­ tante da dependência que todos temos cada vez mais do processamento alheio da informação relevante e do fornecimento sistemático de des­ crições do real, prontas para o consumo fácil e acrítico. Com base nesta nova leitura dos valores essenciais, é nossa convicção profunda de que qualquer acção consistente de reforço da equidade, tem que passar por uma reconstrução progressiva da matriz e do mercado social,­ mediante uma acção continuada sobre o futuro, através da for­ mação, da qualificação e do acesso ao conhecimento.

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A dinâmica social prevalecente nas últimas décadas, resultante de enormes ganhos na capacidade reivindicativa dos indivíduos nas socie­ dades democráticas ocidentais, em particular na sua matriz europeia, foi cons­truída no pressuposto de que os cidadãos têm o dever intrínseco de se prepararem para desempenhar uma função útil e reconhecida pela socie­dade, e que esta em contrapartida, assume também o dever de criar tantas funções úteis quantas as disponibilidades existentes para as preencher. Esta dicotomia forte, consubstanciada numa fórmula em que cada individuo ao nascer tem o dever partilhado com a família de se formar para a vida em sociedade e o direito a que essa sociedade lhe proporcione uma actividade remunerada que garanta a sua sobrevivência e realização, tem vindo a ser progressivamente mitigada com medidas parciais como a escolaridade obrigatória gratuita e os programas formativos oferecidos ao longo da vida de um lado e pelo mercado social de emprego e a pro­tecção social ao desemprego do outro. Esta mitigação forçada, para afirmar uma equidade mínima entre os indivíduos, é sinal de que o modelo se aproxima do esgotamento e que se torna necessário repensar os seus pressupostos à luz da nova sociedade baseada em informação e na economia do conhecimento. O dever de formação no quadro da família ou da comunidade é desde logo um poderoso reprodutor das desigualdades sociais de partida, con­ siderando as diferentes condições proporcionadas à aprendizagem, mesmo tendo em conta os mecanismos de regulação e compensação ao dispor do Estado, de forma directa ou através do incentivo a instituições particulares para isso vocacionadas. Por outro lado, este modelo tem consequências perversas no processo formativo ou de investimento no capital intelectual e social a cargo das empresas. De facto, se o capital essencial na nova economia são as pessoas e as suas qualificações, é normal que as organizações procurem restringir a mobilidade desse capital, tornando-o dependente do quadro envolvente e limitando a liberdade e a flexibilidade na alocação dos recursos. Cada vez mais, a autodeterminação e a posse plena dos direitos sobre as qualificações adquiridas pelos cidadãos ao longo da vida, constitui uma condição suplementar de liberdade e de adaptabilidade e mobilidade, sendo também uma condição para a transparência e a fluidez do novo mercado social.

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Para além disso, uma aprendizagem plena e não condicionada pela necessidade de controlo institucional do capital humano, aumenta o poten­ cial de captação de conhecimento e de percepção da realidade por parte das diferentes comunidades, aumentando em consequência o seu valor competitivo e a sua capacidade de auto-mobilização, modernização e transformação. Torna-se por isso relevante reflectir sobre os fundamentos dum mo­ delo alternativo, mais adequado às circunstâncias da sociedade em que vivemos, ou seja, sobre a viabilidade duma nova carta de direitos e de­ veres, fundadora dum novo mercado social, com o indivíduo no centro do processo de criação e regulação dos fluxos de riqueza. Uma carta de direitos e deveres que atribua a cada cidadão ao nascer o direito inalienável à formação ao longo da vida e ao acesso às compe­tências e aos meios necessários à plena integração na sociedade infor­macional e na economia do conhecimento, e que em contrapartida, dele exija o dever de gerar riqueza, encontrando uma função social re­ conhecida e útil onde aplicar as qualificações adquiridas e os saberes relevantes. Regulação, sociedade civil e mercado – da miragem à oportudade

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De forma difusa, a sociedade civil enquanto conceito multifacetado tem estado no centro do debate político mais recente. Não falta quem faça da libertação da sociedade civil um programa de acção. A cidadania é vista muita vezes como algo que só é verdadeiro quando praticado fora da tutela reguladora do Estado. Outros consideram-na a chave conceptual da relação virtuosa entre politica e sociedade civil. Em última análise, sobrevêm a tentação de contrapor Estado e Socie­ dade Civil, separando em consequência os dois “mercados” e ensandui­ chando entre eles o exercício democrático. O reforço da democracia no contexto social emergente da sociedade da informação e do conhecimento implica a nosso ver o desenvolvimento de parcerias contratualizadas entre o Estado e as agências da sociedade civil, como forma de concretização das escolhas prévias dos cidadãos manifestadas através do voto explícito ou implícito.

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Sendo assim, o sistema polariza-se num triângulo interactivo e inter­ dependente, no qual o desenvolvimento saudável da dinâmica da socie­dade civil implica um forte índice de confiança e transparência na relação com o Estado regulador e com o mercado, ambos assumidos como inter­me­ diadores da vontade democrática e da liberdade de escolha dos ci­ dadãos. O papel crescente da Sociedade civil no discurso e como objecto da acção política constitui assim uma miragem ou uma oportunidade? Sem excesso de voluntarismo, somos tentados a acreditar que sendo ainda sobretudo uma miragem ou uma ilusão participativa, pode e deve tornar-se numa oportunidade e num contributo para ajudar a resolver alguns dos paradoxos da sociedade emergente, designadamente aqueles que resultam de fórmulas discursivas consagradas do tipo “Menos Estado – Melhor Estado”. Seria tentador apostar na sociedade civil como uma “terceira via” en­ tre o Estado e o Mercado. Essa visão é quanto a nós ilusória e inope­rante. A sociedade civil deve ser antes um terceiro pólo, mediador e potenciador das relações entre os dois primeiros, e em última análise sujeito principal do mercado social e objecto último da sua dinâmica. Uma dinâmica marcada por fenómenos de regresso às origens e resis­ tên­cia. Regresso às origens, com o mercado de novo determinado por nódu­ los viáveis de oferta e procura desenhados à escala global e com o indivíduo recuperado como fonte de valor e base determinante duma sociedade civil simultaneamente local e mundial. Resistência normal do Estado em se adaptar à mudança e em assimilar as novas relações de poder. Estado que constitui por isso, hoje por hoje, o elo fraco da cadeia no potenciar das relações entre mercado e sociedade civil e o objecto mais urgente de reforma e modernização. Porque regular (governar?) é antes de mais promover a democracia e a dignidade do homem no contexto do novo mercado social. Ou dito de outra forma, promover a cidadania activa, terreno fér­ til para uma sociedade civil dinâmica e geradora de equidade, justiça e condições de realização mínimas para todos os seres humanos. E é por tudo isto que a reforma do Estado e a aposta na formação ao longo da vida, mais do que a propalada e consequente libertação da sociedade civil, constituem as oportunidades de mercado por excelência, para a acção política transformadora, no alvor do século XXI.

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Coimbra, 23 de Abril de 2001. Carlos Zorrinho

(Departamento de Gestão de Empresas da Universidade de Évora)

A SOCIEDADE CIVIL E O DIÁLOGO SOCIAL PERANTE OS DESAFIOS DA GLOBALIZAÇÃO NO MUNDO DO TRABALHO A intervenção que preparei procura identificar algumas das conse­ quências a que a sociedade civil na esfera produtiva tem estado sujeita, face ao actual processo de mudança nos sistemas de relações laborais e na normatividade laboral. Procurarei demostrar, que no quadro deste processo simultaneamente de transformação e de crise para o mundo do trabalho, aquela que pode­ mos identificar como sendo uma característica nuclear das relações de trabalho, a saber: o diálogo social e as diferentes formas de negociação socio-laboral, enfrentam um profundo desafio que se encontra associado à crescente globalização da vida económica, social e política. O Diálogo Social tem um papel decisivo na construção de um “novo contrato para a solidariedade”, enquanto elemento de um modelo de regu­ lação do trabalho ou de governação à escala global. Contudo as soluções para o diálogo social à escala global não são replicáveis e há que atender às experiências e especificidades nacionais. É neste contexto que o Diálogo Social ao ser por excelência um es­ paço de partilha, de consensualização e de comunicação pode contribuir para a democratização da vida laboral desde que se evitem os excessos de corporativização na organização dos interesses. Tal realização só é pos­ sível se o diálogo social for entendido como forma de aprofundamento da democracia participativa e dos direitos de cidadania necessitando do contributo responsável e cívico de todos os actores sociais. 1.  Da relação do estado e a Sociedade Civil no mundo do trabalho A oposição ou dicotomia Estado/Sociedade Civil impregna a nossa maneira de pensar a sociedade. Não sendo assim de surpreender que ela

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influencie, também, a nossa maneira de pensar o mundo do trabalho. No entanto, a literatura das Ciências Sociais, versando o tema da relação entre o Estado e a Sociedade Civil, tem desenvolvido um conjunto de críticas ao que tem sido designado por ortodoxia conceptual desta dicotomia (Santos, 2000). Esta é uma questão que não irei discutir neste momento. Gostaria, porém, de deixar a ideia de que apesar da dificuldade em encontrar alternativas conceptuais à distinção, elas devem ser procuradas. Desde logo, porque não existem fronteiras permanentes entre o Estado e a Sociedade Civil, variando estas em função de circunstancialismos con­tex­ tuais. Do ponto de vista metodológico, creio que seria proveitoso insistir na hipótese da articulação reflexiva, dualidade e hibridismo teórico-sub­ stantivo, em vez de defender a dicotomização e contraposição analítica entre estas duas dimensões constitutivas das sociedades. Só para dar um exemplo, o processo de regulação das relações labo­ rais, procurando dar resposta aos problemas emergentes das questões operária, social e do emprego, evidencia a complexidade das articulações e combinações existentes entre os sistemas de relações laborais, os pro­ cessos de juridificação das relações de trabalho, os sistemas de segurança e protecção social, as políticas sociais e as políticas de emprego, nomea­ damente através das diferentes combinações que foram sendo experi­ mentadas entre os princípios de regulação sócio-política do estado, do mercado, da comunidade e da associação. 2.  A Sociedade Civil sob pressão Voltemos ao objectivo central desta comunicação. Que efeitos têm os processos de globalização sobre a Sociedade Civil, no domínio laboral? A resposta é a de que a globalização tem colocado sob pressão a Sociedade Civil de formas muito diferentes, mas todas elas de uma certa gravidade. Alguns dados poderão ilustrar esta ideia: •  Em 1998, 1 200 milhões de pessoas viviam com um rendimento inferior a 1 dólar por dia, e 1 600 milhões de pessoas viviam com 2 dólares por dia; •  Segundo dados da OIT (Organização Internacional do Trabalho), em 1998 cerca de 1 000 milhões de trabalhadores (um terço da força de trabalho mundial) permaneciam desempregados ou subempregados;

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•  De acordo com outras estimativas da OIT existem entre 200 a 400 milhões de crianças trabalhadoras em todo o mundo; •  Dos 150 milhões de desempregados recenseados a nível mundial, 75% não beneficiam de qualquer tipo de protecção no desemprego; •  Segundo dados da OIT, de 1995, há 250 milhões de crianças traba­ lhadoras com idades compreendidas entre os 5 e os 14 anos, 120 milhões das quais trabalhando a tempo inteiro, estimando-se que 80 milhões trabalham nas piores formas de trabalho infantil 1 e cerca de 70% das crianças trabalhadoras realizam trabalho não pago; •  Cerca de 60 milhões de jovens, com idades compreendidas entre os 15 e os 24 anos, procuram trabalho em vão; •  Em 1995 mais de 73 milhões de crianças, com idades compreen­ didas entre os 10 e os 14 anos, exerciam uma actividade económica; •  De acordo com o último relatório da OCDE, “Perspectivas de Em­ prego para 2002” a expansão do trabalho precário “foi dramática em vários países” e “fornece um teste importante para as conse­quências sociais da desregulamentação”. Observa que o trabalho precário está associado a salários mais baixos, mesmo para empre­gos com as mesmas características, e 1/4 dos trabalhadores pre­cários estão desempregados precários estão desempregados dois anos mais tarde; •  Ainda segundo dados da OCDE os movimentos sindicais dos 18 países membros da organização sofreram uma erosão estimada em 5 milhões de membros; •  A queda da taxa de sindicalização ocorre na quase totalidade dos A OIT adoptou em 1999 a Convenção acerca da proibição e eliminação imediata das piores formas de trabalho infantil, o Art. 3 inclui os seguintes aspectos: a) todas as formas de escravatura ou práticas análogas à escravatura e o trabalho forçado ou obri­ gatório, incluindo o recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para utilizá-los em conflitos armados; b) a utilização ou o recrutamento ou oferta de crianças para a prosti­ tuição, produção de pornografia ou actuações pornográficas; c) a utilização ou recruta­ mento ou a oferta de crianças para a realização de actividades ilícitas, em particular a produção ou tráfico de estupefacientes; e d) o trabalho que, pela sua natureza ou pelas condições em que é levado a cabo, é provável que prejudique a saúde, segurança ou a moralidade das crianças. Mas mesmo assim, e segundo estimativas da OIT para o ano 2000, 5,7 milhões de crianças fazem trabalho forçado ou em condições de servidão; 300 mil são obrigadas a participar em conflitos armados; 1,8 milhões trabalham na prostituição ou pornografia; e 600 mil noutras actividades ilícitas. Por fim, resta referir a bárbara realidade que constitui o tráfico de crianças (1,2 milhões de crianças). 1

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países da UE; •  A atipicidade do trabalho suscita indícios de trajectórias sociais precarizantes ou de exclusão. Estes são apenas alguns dos muitos exemplos que escolhi para ilustrar a ideia de que os processos de globalização estão associados ao aumento da exclusão social e ao crescimento das desigualdades entre pessoas e Estados. Assim se a noção de Sociedade Civil é encarada como o lado dinâ­ mico da cidadania, englobando direitos e obrigações, cuja tradução prática se capta ao nível da sociedade civil com o conceito de grau de efectivi­ dade normativa, então o estado de anomia laboral resultante da ausência de identidade entre as expectativas, aspirações e motivações garantidas pelo trabalho e as reais oportunidades de satisfação que a estrutura social oferece aos indivíduos resultará, necessariamente, no enfraquecimento da própria sociedade civil. 3. Que Sociedade Civil face à Globalização Coloca-se então a questão de saber qual a sociedade civil que deseja­ mos promover e de que modo as aspirações de equidade, justiça social e democraticidade com ela se combinam. Do meu ponto de vista, faz sentido discutir a noção de Sociedade Civil Global, ou de Sociedade Civil Mundial (Wapner, 1997). Sem prejuízo de desconsiderar a multidimensionalidade dos elementos que constituem esta problemática, sugiro dois temas para a discussão: a importância do diá­logo social e o aprofundamento da democracia deliberativa. A questão do diálogo social tem sido uma constante ao longo da história das relações laborais e do direito do trabalho. Em certo sentido, podemos mesmo considerar que a história dos modernos sistemas de re­ lações laborais e do direito do trabalho tem sido a história das várias tentativas de construção de um sistema de diálogo e de comunicação entre­ os parceiros sociais. No entanto é fundamental que o diálogo social e a concertação sejam palcos de “discussão e de luta pela qualidade e pela dignidade da vida” (Santos, 1998). Deste ponto de vista e em meu enten­ der o diálogo social enfrenta um duplo desafio (Ferreira, 2001). Primeiro, o de se tornar cada vez mais um diálogo social cosmopol­

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ita, isto é, como forma de produção de globalização utilizando as possi­ bilidades de interacção transnacional criadas pelo sistema mundial para a defesa de interesses entendidos como comuns (Santos, 2001), de entre os quais destacaria a noção de “trabalho decente”. Esta expressão enqua­ dra-se num conjunto de medidas levadas a cabo recentemente pela OIT, de que se pode referir pela sua relevância a identificação dos “core labour standards” plasmados na declaração relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho e seu acompanhamento (1999). No essencial advoga “que cada mulher e cada homem possam aceder a um trabalho decente e produtivo em condições de liberdade, de equidade, de segurança e de dignidade”. Não se trata apenas de criar mais empregos, mas sim de criar empregos com uma qualidade aceitável. Não deve ocorrer um divórcio entre o volume de emprego e a sua qualidade. O segundo desafio é a defesa do alargamento dos quatro “core labour standarts” ou “parâmetros mínimos de trabalho” defendidos pela OIT, confi­gurando-se desde logo como um conjunto de partida comum desses interesses. A defesa dos “core labour standards” é indissociável da dimen­ são social da globalização e marca um ponto de viragem na discussão sobre os padrões mínimos de trabalhadores à escala global Em meu entender, os valores, bens e recursos sociais e humanos po­ dem ser classificados como património comum da humanidade conce­ bidos como algo que apenas faz sentido enquanto reportado ao globo na sua totalidade, como algo que compromete todos e que tem de ser gerido por fideicomissos da comunidade internacional em nome das gerações presentes e futuras (Santos, 2001). Se se pode afirmar que existem múltiplas formas de construir e apro­ fundar a Sociedade Civil a nível global, a questão central é a de que deste processo resulte um aprofundamento da democracia à escala planetária. Gostaria de concluir referindo ainda três ideias envolvidas na perspectiva que utilizo no estudo das transformações impostas pelos processos de globalização. A primeira ideia prende-se com a possibilidade de definir parâmetros para elaborar um contrato de trabalho à escala global, a se­ gunda com o aprofundamento dos direitos humanos dos traba­lhadores, já existentes (core labour standards), a terceira ideia é a do incremento da responsabilidade social das empresas desde que esta não seja uma ex­ pressão de um qualquer filantropismo, e por fim consolidar e apro­fundar as instituições e agências de regulação transnacional já existentes, como

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é o caso da OIT. No que a este último ponto diz respeito e no âmbito de uma Sociedade Civil Global, os problemas do mundo do trabalho reque­ rem uma regulação global, e apesar da existência de outras alterna­tivas, a OIT é a única instituição com carácter tripartido, quer como meto­dologia de tomada de decisões, quer como modelo institucional. Assim a OIT, desde que reformada, poderá ser uma factor de demo­ cratização de processos de globalização, na medida em que contempla uma dimensão social e pugna pela efectividade e aplicação dos direitos humanos do trabalho. António Casimiro Ferreira

(Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Centro de Estudos Sociais)

Referências Bibliográficas Ferreira, António Casimiro (2001), “Para uma concepção decente e democrática do trabalho e das seus direitos: (Re)pensar o direito das relações laborais”, in Santos, Boaventura de Sousa (org.), Globalização: fatalidade ou utopia. Porto: Afontamento. OCDE (2002), OECD Employment OutlooK: 2002, retirado de http://www.oecd. org/oecd Santos, Boaventura de Sousa (1998), Reinventar a Democracia. Lisboa: Gravida. Santos, Boaventura de Sousa (2000), A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da experiência, Vol.1. Porto: Edições Afrontamento. Santos, Boaventura de Sousa (2001), Globalização: fatalidade ou utopia. Porto: Afrontamento. Wapner, Paul (1997), “Governance in global civil society”, in Young, O. (ed.), Global Governance: Lesson from the envirommental Experience. Cambridge, MA: MIT Press.

SOCIABILIDADE E TOLERÂNCIA EM LOCKE John Locke é uma figura emblemática da modernidade inglesa, em­ bora as suas grandes obras tenham sido publicadas ainda no século XVII; não se poderá compreender, por isso mesmo, as suas ideias se isso for negligenciado, pois não é raro vê-lo identificado com o espírito do século XVIII, que é largamente tributário das grandes orientações por ele giza­ das; trata-se ainda de um pensador empenhado, como o ilustra a partici­ pação nos grandes debates do tempo. Além disso, a sua actividade inte­ lectual fez dele um mestre em múltiplas disciplinas: epistemologia, teoria política, religião, moral, medicina, psicologia, educação, economia1; não há domínio do pensamento em que ele não se tenha manifestado com fulgência. I.  Problemática da sociedade civil O uso e abuso da expressão “sociedade civil”, tornou-a algo confusa e indeterminada; nas palavras de Keane, “tão espantosa é a popularização da expressão que pode mesmo dizer-se que a linguagem da sociedade civil está actualmente a sofrer uma “globalização” vertical e horizontal. Ela é usada por indivíduos, grupos e organizações de todos os cantos do mundo. Há mesmo quem fale de uma emergente “sociedade civil global”2. Desde o âmbito da linguagem científica – que faz dela um uso sistemático –, ao debate político actual, o recurso ao conceito pretende preservar e apro­ fundar o sistema de relações políticas dos regimes democráticos. Daí que Walzer afirme: “Hoje, a vida boa só pode viver-se no seio da sociedade

 1 A. Morvan, J.-F. Gournay, F. Lessay, Histoire des Idées dans les Îles Britanniques, Paris, P.U.F., p. 119.  2 John Keane, A Sociedade Civil, Lisboa, Ed. Temas e Debates, 2001, pp. 45-46.  3 Michael Walzer, “Democracia y Sociedad Civil” [em Dissent, Primavera 1991],

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civil, no âmbito da fragmentaridade e do conflito, mas também das solida­ rie­dades concretas e autênticas; isto é: de pessoas associando-se livre­ mente e comunicando-se entre si, criando e recreando grupos, não com vista a formar associações de nenhum tipo em particular (família, tribo, nação, religião, comuna, irmandade, grupo de interesses ou movimento ideológico), mas pelo mero prazer de exercer a sociabilidade; porque so­ mos sociáveis por natureza e o éramos antes de nos tornarmos em seres políticos”3. Neste sentido, a sociedade civil caracteriza-se pela defesa do direito à vida, à convivência, à coesão social, à qualidade de vida, aos direitos humanos, pela acção colectiva, pela subsidiariedade. Deste modo, a sociedade civil do final do século XX e do início do século XXI exige o desenvolvimento duma concepção mais ampla e fundamentada dos temas e problemas da acção colectiva; como tal, sig­ nifica, em cada caso, a necessidade duma ciência do particular, e não já somente do universal; todavia, no quadro internacional, a sua diluci­dação significa também uma ciência do universal: então, em síntese, a análise da sociedade civil converge com a problemática de pensar ao mesmo tempo o particular e o universal. A coesão social já não é nem imediata nem natural; com efeito, a problemática constitutiva da socie­dade civil está conexa com a necessidade e função do Estado4. Daí que, em torno ao conceito de sociedade civil, proliferem múltiplos dualismos: indivíduo e sociedade, vida e normatividade, sociedade civil e Estado, representação e participação; por isso, a sociedade civil funda-se em pro­cessos con­ tratuais espontâneos, em acordos livres, isto é, desde a ética cívica, aos direitos humanos, às instituições, à (possibilidade) de resistên­cia civil, pela necessidade irresistível de pactuar entre os humanos. Durante os séculos XVII e XVIII, a expressão “sociedade civil” inse­ ria-se numa polémica particular, de cunho histórico-intelectual, em que um caminho levava à afirmação das monarquias absolutas, onde sociedade civil é inexistente ou objecto de dominação, e o outro, à consolidação dos governos constitucionais, onde sociedade civil desafiava a dominação do Estado. Assim, na concepção de sociedade civil, de Locke a Ferguson, tr. esp. in Rafael del Águila, Fernando Vallespín y Otros, La Democracia en sus Textos, Madrid, Alianza, 1998, pp. 383-384.  4 Cf. Carlos E. Maldonado, Filosofía de la Sociedad Civil, Madrid, Siglo del Hombre, 2002, p. 27 ss.  5  V. Pérez Díaz, La Primacía de la Sociedad Civil, Madrid, Alianza, 1993, p. 95. Para evitar confusões, é importante que fique clara a diferença entre sociedade civil

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actuava uma combinação de ideias, instituições e grupos sociais, que se reforçavam umas às outras: um governo limitado, uma tradição de con­ tenção dos poderes do monarca, um núcleo amplo de indivíduos e grupos capazes de combinar a sua implicação no mercado com a sua participação na esfera pública5. O sábio e justo Locke – como Voltaire gostava de lhe chamar -, fala reiteradamente de sociedade política e de sociedade civil e utiliza-as como sinónimos. Para o filósofo, “sociedade civil” é uma comunidade fundada por indivíduos que decidiram estabelecer relações permanentes e civili­zadas, com o fim de alcançar os seus legítimos interesses. Uma das consequências destas relações é o governo, que é entendido como uma instituição que tem como única tarefa a manutenção da boa ordem, para o desenvolvimento, sem intromissões, da sociedade civil. Conforme adverte Taylor, “(…) a distinção entre sociedade civil e Estado é impor­ tante para a tradição ocidental, não só por todas as suas raízes em épocas longínquas, mas especialmente porque foi central nas diferentes formas de pensamento anti-absolutista. Com efeito, deve a sua existência e im­ portância ao desenvolvimento no Ocidente do absolutismo reformador ocidental, do “bem ordenado Estado policial” dos séculos XVII e XVIII e não tinha sentido no contexto da polis ou no governo medieval, nem tão pouco o teve em múltiplos governos tradicionais não ocidentais. Poderse-ia dizer que apareceu como um instrumento necessário de defesa frente às específicas ameaças à liberdade implícita na tradição ocidental. Porém, precisamente na medida em que o Estado moderno se segue movendo todavia pela vocação de mobilizar e reorganizar as vidas de seus súbditos, a distinção parecerá ter garantida uma importância continuada” 6. (sociedade política) e o governo. A filosofia política de Locke implica «uma dissolução da velha fórmula societas civilis sive politicus sive res publica (…). Em Locke, a de­ nominada sociedade civil ou política como resultado do contrato social parecia seguir a tradição política e com isso prosseguir o caminho do Hobbes jóvem. À primeira vista, a sua concepção inclui uma aparente identificação do corpo político com o governo; não obstante, na realidade Locke busca diferenciar entre “governo” e “sociedade”. L. Cohen e A. Arato, Civil Society and Political Theory, The MIT Press, Cambridge, Massachu­ setts, 1994, pp. 87-88. D. Colas, Le Glaive et la Fléau: Généalogie du Fanatisme et de la Société Civil, Paris, Grasset, 1992, p. 223 ss. S. Giner, Ensayos Civiles, Barcelona, Península, 1987, p. 39. Cf. ainda, M.I. Wences Simon, En torno al Origen del Concepto Moderno de Sociedad Civil, Madrid, Dykinson, 1998, pp. 11-13. 6 Charles Taylor, “Invocar la Sociedad Civil” (1990), Argumentos Filosóficos, Bar­ celona, Paidós, 1997, pp. 291-292. 7 M. Riedel, «El Concepto de Sociedad Civil en Hegel y el Problema de su Origen

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A fórmula clássica, civitas sive societas civilis sive res publica, que vincula politicamente o Estado com a sociedade civil, mantém-se vigente “desde Aristóteles até Alberto Magno, Tomás de Aquino e Melanchton, e inclusive Bodin até Hobbes, Espinosa, Locke e Kant”7; no pensamento britânico empirista, quer na vertente jusnaturalista, a que pertence John Locke, como na análise histórico-social que dela fará Adam Ferguson (em Ensaio sobre a história da sociedade civil), verifica-se uma nova modu­lação, segundo duas vias diferenciadoras. Convém, contudo, clarificar: em Locke, “sociedade civil” apresenta-se como sinónimo de um tipo específico de associação política, caracterizada pelo império da lei, pelo governo limitado e uma cidadania activa, isto é, de um Estado liberal8. Esta significação foi decisiva: “A sociedade civil pode definir-se como aquela esfera historicamente constituída de direitos individuais, liberdades e associações voluntárias, cuja autonomia e com­ petição mútua na prossecução de seus interesses e intenções privadas, ficam garantidas por uma instituição pública, chamada Estado, a qual se abstém de intervir politicamente na vida interna do mencionado âmbito de actividades humanas”; daí que “qualquer sociedade civil assim cons­tituída possui, pelos menos, cinco rasgos distintos: individualismo, priva­cidade, mercado, pluralismo e classe. Cada um põe um problema de exis­tência à Histórico», Estudios sobre la Filosofía del Derecho de Hegel, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, p. 201. 8 Este tipo de Estado que se construiu ao longo do século XVII em Inglaterra, em con­ traste com o Estado que ainda imperava na maior parte da Europa continental, tornando-se assim na terra mãe do liberalismo. Durante este período, os homens começam a reivindicar a sua liberdade religiosa, intelectual, política e económica, isto é, abre-se o caminho duma sociedade teocêntrica para uma sociedade antropocêntrica e individualista; supera-se ao Estado absoluto e dá-se um passo para um novo tipo de poder político, o Estado liberal. Em Inglaterra, inicia-se um processo de combinação de ideias em que se proclama um governo limitado; em concreto, a afirmação de um governo parlamentar, a oposição ao absolutismo monárquico e o impulso para a liberdade de associação e para a propriedade. Locke foi um dos máximos expoentes das ideias políticas liberais; ele teorizou os aspectos da política inglesa do seu tempo e, como explica Gray, «incorporou na sua concepção de sociedade civil, a sociedade dos homens livres, iguais sob o domínio da lei, reunidos não por um objectivo comum, mas partilhando o respeito pelos direitos de cada um». J. Gray, O Liberalismo (1986), Lisboa, Estampa, 1988, p. 31. 9 Salvador Giner (1985), Ensayos Civiles, op. cit., p. 56. 10 Quando Locke publica, em 1689, anonimamente, Two Treatises of Government, apresenta-nos um pensamento já amadurecido, que, após Two Tracts of Government,

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sociedade civil, isto é, cada rasgo gera correntes que enfraquecem e que, portanto, debilitam a própria sociedade civil”9. A defesa das premissas liberais dá conta, por um lado, da ruptura entre a filosofia política de Locke e a dos filósofos precedentes e, por outro, é premo­nitória de uma nova concepção. Neste, como noutros domínios da filoso­fia, uma das primeiras vias de esclarecimento é a do recurso aos clássicos. II. A situação original: a humanidade como comunidade pré-política Em matéria de filosofia e teoria política, as referências incidem em Dois Tratados sobre o Governo10, inscrevendo-se a estrutura do II Tra­ tado, Ensaio sobre a verdadeira origem, extensão e fim do governo civil11, no denominado paradigma contratualista, que se baseia na dualidade “estado de natureza” e “estado de sociedade” (sociedade civil), com as redigidos em 1660-1662, evoluiu já consideravelmente. Se em Two Tracts, Locke partia da obediência como um dos primeiros deveres, na medida em que o magistrado ou o governo tinham o poder de regular as questões religiosas, em Two Treatises, pulsam já explicitamente as bases filosóficas da defesa do parlamentarismo, fundada numa verdadeira separação entre­ o político e o religioso, que culminará na Epistola de Tolerantia (1689).  11 John Locke, Two Treatises of Government, ed. Peter Laslett, L.II, Cambridge University Press, 1988, p. 265. Doravante, esta obra será referenciada por esta edição, com a sigla TTG (indicando-se o Livro, capítulo, parágrafo e paginação da edição); salvo indicação em contrário, respeitam-se os itálicos da edição de Peter Laslett. Em Two Treatises of Government (1689), o nosso interesse recai sobre o II Tratado, “An Essay concerning the true original, extent, and end of Civil Government” - subtítulo introduzido por Locke aquando da impressão do livro, em 1689. Nesta obra, apresenta uma fundamentação sobre a natureza do poder político, reunindo uma argumentação coerente orientada para esse escopo, em contraste com o I Tratado, onde Locke rejeita o abso­lutismo e a arbitrariedade do poder político; enquanto neste refuta a monarquia absoluta, defendida por Robert Filmer em Patriarcha or the Natural Power of Kings (re­ digido por volta de 1637 e publicado em 1680), no II, mais prospectivo, encontramos os alicerces da sociedade civil fundada no consenso de todos (e não numa pretensa herança divina ou de um “título de propriedade” adâmico, donde derivaria o poder), portanto um género de tratado precursor do liberalismo, onde não falta a justificação do “imperativo de “resistência civil”. Se é frequente considerar Two Treatises of Government como uma defesa e panegírico da Gloriosa Revolução inglesa de 1688, a que Locke deu alguma base quando confia, no prefácio, que a obra “seja suficiente para consolidar o trono do nosso grande restau­ rador, o nosso actual rei Guilherme”, “para confirmar o seu título, com o consentimento do povo, sem o qual nenhum governo alcança a legitimidade” (TTG, “The Preface”, p. 137), a verdade é que a composição do livro é anterior à revolução, que, segundo Laslett,

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seguin­tes vertentes: o estado de natureza como um estádio pré-político; a sociedade civil, erigida por um projecto racional dos humanos e, por­tanto, uma sociedade; a passagem de um estado a outro mediante uma acção voluntária com a natureza dum contrato. Ao contrário de Hobbes 12, em Locke o estado de natureza é, num primeiro momento, uma condição de paz: “E nisto temos a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra que, muito embora certas pessoas tenham confundido [clara alusão a Hobbes], estão tão distantes um do outro como um estado de paz, boa vontade, assistência mútua e pre­servação está de um estado de inimizade, malícia, violência e destrui­ ção mútua. Quando os homens vivem juntos conforme à razão, sem um superior comum na terra, com autoridade para julgar entre eles, tal é propriamente o estado de natureza”13. A condição pacífica possibilita estava já concluído, no essencial, em 1683, sendo o prefácio (ou parte dele) escrito em Agosto de 1689 (após a preparação do livro para a tipografia), bem como, pelo menos, os §§ 219-220. Sobre a controvérsia da redacção dos Dois Tratados sobre o Governo, cf. Peter Las­ lett, “Addendum to Introduction (1987)”, em Two Treatises of Government, Peter Laslett (ed.), op. cit., pp. 123-126. Segundo Laslett, a obra foi escrita em 1679-1680, embora com correcções e adições ulteriores, pelo que sustém que se trata de um tratado de teoria política e não de uma mera análise do regime instaurado pela “revolução gloriosa” de Guilherme de Orange. Cf. igualmente Richard Ashcraft, Locke’s Two Treatises of Government (Londres, Unwin Hyman, 1987), onde defende que o I TRatado foi escrito em 1680-81 e o II em 1681-82, nenhum deles, portanto, em 1679. 12 É claro que Locke rejeitava o absolutismo de Hobbes, tal como o de Filmer; o próprio vocábulo “Leviatã” surge no “Segundo Tratado”, e há argumentação em Locke que é feita por contraposição a Hobbes. No entanto, foi Filmer, não Hobbes, quem mais determinou a argumentação lockeana: “Quando escreveu os Dois Tratados, portanto, o Leviatã era uma influência, uma constante gravitacional exercida por um grande corpo ainda que a uma grande distância. Não obstante, uma influência positiva nos seus efei­ tos, muito diversa da influência de Filmer, que, embora negativa na sua direccção, era uma questão em grande plano e documentada” (Cf. Peter Laslett, “Introduction”, op. cit., p. 74-75). Se a liberdade e igualdade seriam concerteza consideradas por Locke, tornava-se necessário partir daí, pois Filmer havia-as negado contra Hobbes, entre outros; alguns dos argumentos foram expendidos por Locke, visando directamente Filmer, pela sua repercussão, relacionando-se indirectamente com a obra de Hobbes, embora a ela se opusesse no que concerne ao seu pensamento político e constitucional (cf. ib., pp. 67-79).  13 TTG, L.II, III, 19, p. 280. O estado de natureza em Locke, com a sua sociabilidade imanente e as relações de dependência humana entre os indivíduos, incorpora, em certo sentido, a posição aristotélica (cf. Peter Laslett, “Introduction”, op. cit., p. 100, nota).  14 TTG, L.II, II, 6, p. 271. Cf. A. Morvan, op. cit., pp. 122-123.

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que exista uma certa tendência para a reciprocidade, já que os homens pos­suem o dom da palavra e da linguagem – meios por excelência de comu­nicação com outrem –, o que, necessariamente, coloca os humanos numa situação de sociabilidade e de convivência. O originário estado de natureza é, pois, uma condição de paz e de comu­nicabilidade. “O estado natural tem uma lei natural para o governar, a qual obriga a todos; e a razão que constitui essa lei, ensina a todos os homens que a consultarem, que sendo todos iguais e independentes, nin­ guém deveria ofender a outro na sua vida, saúde, liberdade ou posses” 14. Assim, o estado de natureza é um estado de solidariedade, paz e intercâm­ bio, onde reinam a liberdade e igualdade; havendo discernimento, neces­ sa­riamente esse sentimento de pertença à comunidade pode traduzir-se em sociabilidade. Então, os homens são já membros duma comunidade e mantêm relações sociais naturais: “Tendo Deus feito o homem uma cria­ tura tal, que ele mesmo não achou bom que o homem estivesse só, pô-lo na necessidade, conveniência e inclinação de se juntar em sociedade, e deu-lhe inteligência e linguagem para continuar a gozá-la”15. Dele fazem parte as instituições familiares, as relações de trabalho, a instituição da propriedade, a circulação dos bens, o comércio, etc. Neste estado origi­ nário, ninguém se submete à vontade e autoridade de outrem e todos os indivíduos têm os mesmos direitos, que são inalienáveis. De notar, que “a lei de natureza, que é lei da razão”16, revela-se como conceito axial na economia global do pensamento lockeano; é por ela que cada homem se esforça por se conservar a si mesmo e à humanidade, e dela decorrem os direitos do indivíduo e o seu dever moral de preservar a  15 TTG, L.II, VII, 77, pp. 318-319. Afirma também no Ensaio sobre o Entendimento Humano: “Deus, ao criar o homem para ser uma criatura sociável [sociable creature], não somente lhe inspirou o desejo e lhe incutiu a necessidade de viver com os da sua espécie, como, além disso, lhe deu a faculdade de falar, para que a linguagem fosse o grande instrumento e o elo de união da sociedade” (John Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690), Lisboa, F.C.G., 1999, III, I, § 1, p. 541).  16 TTG, L.I, IX, 101, p. 215; o itálico é nosso. É por esta, partindo da experiência, que o homem pode chegar ao conhecimento da lei natural – saber não inato –, prefigurando já o Ensaio sobre o Entendimento Humano, em que o conhecimento parte da percepção sensível, que faculta a matéria à razão que, por sua vez, ordena a sensação. Ora, é a lei natural que prescreve como observar esta lei é contribuir ao bem de todos. Segundo Peter Laslett, todos nós possuímos uma “virtude política natural”, quer por uma natural disposição favorável para com os outros, quer porque, quando cooperamos

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comunidade: “Para entender correctamente o poder político e derivá-lo da sua origem, devemos considerar o estado em que todos os homens natural­ mente estão, o qual é um estado de perfeita liberdade para regular-lhes as acções e dispor de suas posses e pessoas conforme acharem conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem”17. O ser humano é, pois, pelo destino que Deus lhe atribuíu, um ser-para-a-moral: essa a razão para que Locke nunca separe a política da moral; esta propensão para a reciprocidade e sociabilidade própria do estado de natureza, antecede a formação da socie­ dade civil, o que contrasta com a percepção hobbesiana, na qual prevalece uma visão individualista, sem qualquer referência a um contexto social. Liberdade e igualdade são atributos desta condição natural. Por liber­ dade entende-se o direito natural que todos os seres humanos têm de conduzir-se como melhor lhes pareça, dispondo de seus bens para sua con­ veniência, sempre dentro dos limites da lei natural; “contudo, embora este seja um estado de liberdade, não é um estado de licenciosidade; embora o homem nesse estado tenha uma liberdade incontrolável para dispor de sua pessoa ou posses, não tem liberdade para destruir-se a si mesmo, ou a qualquer criatura, a menos que um uso mais nobre que a mera preservação desta o exija”18. A liberdade funda-se na natureza racio­nal do homem e concebe-se como um direito natural; certamente, no estado de natureza rege o poder da lei natural, isto é, da razão e duma liberdade em que se e discutimos em conjunto, a tendência do que fazemos e dizemos será inevitavelmente na via do politicamente eficaz e dos bons resultados para todos (cf. “Introduction”, op. cit., pp. 110-111). Enfatizando tal característica da natureza humana, aproxima-se de Hooker (recorrendo, contra os seus adversários, a este autor, que gozava de grande autoridade e era respeitado); assim, Locke não é propriamente um pensador do individualismo, que privilegie os direitos sobre os deveres, mas funda uma teoria da democracia do con­ senso, onde naturalismo e intelectualismo vão a par, favorecendo a predisposição para a benevolência, a racionalidade e o útil. Nessa sua interpretação, Laslett atenua as tensões da obra de Locke, dando unidade e coerência aos argumentos de Locke, que se perde quando o labor interpretativo insiste na malha conceptual que articula a obra deste Whig constitucionalista.  17 TTG, L.II, II, 4, p. 269. Cf. Simone Goyard-Fabre, John Locke et la Raison Raisonnable, Paris, Vrin, 1986, p. 181.  18 TTG, L.II, II, 6, pp. 270-271. Afirma mais adiante: “A liberdade natural do homem consiste em estar livre de qualquer poder superior na Terra e em não estar submetido à von­ tade ou à autoridade legislativa do homem, tendo somente a lei da natureza como regra. A liberdade do homem, em sociedade, consiste em não estar submetido a nenhum outro poder legislativo senão àquele estabelecido no corpo político mediante consentimento, nem sob

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respeita a liberdade dos outros. A igualdade, segundo postulado do estado de natureza, pressupõe que este é “um estado também de igualdade, em que todo o poder e juris­ dição são recíprocos, ninguém tendo mais que qualquer outro” 19 . Numa pri­meira dimensão, este princípio configura-se num sentido estritamente for­mal, isto é jurídico-político: pressupõe que todo o poder e jurisdição têm um carácter correlativo, isto é, ninguém se submete à vontade ou à autoridade de outro homem; quer dizer, não existindo ainda uma institui­ ção a quem se atribua o exercício da jurisdição e do poder político, este está disseminado por todos os indivíduos. No entanto, numa outra dimen­ são, em termos materiais, a igualdade sofre variações; se é verdade que, a nível formal, todos os indivíduos têm uma mesma natureza humana (nas­cem, crescem, subsistem e morrem da mesma maneira), também é verdade que existe uma desigualdade originária, baseada no substracto biológico ou fisiológico, nas contingências temporais e contextuais que fazem os indivíduos diferentes, que se manifestará socialmente desigua­ litária (bens e património). Locke não esclarece devidamente acerca dessa desigualdade social originária, o que afinal indicia já a existência dum antagonismo e duma tensão próprias do estado de natureza, donde surgirá a sociedade civil, que Adam Ferguson, nome destacado da denominada Ilustração escocesa, retomará num novo enquadramento, onde o conflito será factor de construção social20. Em definitivo, o assunto da desigual­ dade material não é mais que a expressão de outro postulado do estado de natureza: o da propriedade. A propriedade é uma das aportações essenciais do pensamento de Locke – elemento crucial para a passagem do estado de natureza à socie­

o domínio de qualquer vontade, ou sob a restrição de qualquer lei, senão o que esse poder legislativo promulgar, de acordo com a confiança posta nele” (TTG, L.II, V, 22, p. 283).  19 TTG, L.II, II, 4; tr., p. 269. Note-se a relevância histórica deste princípio de igual­ dade formal como alternativa ao sistema do antigo regime. Cf. María I.Wences Simon, op. cit., pp. 20-22.  20 A alusão, no texto, a Adam Ferguson, tem a ver com a obra An Essay on the History of Civil Society (1773), ed. de Duncan Forbes, University Press Edinburgh, 1966, uma das primeiras onde se utiliza, num enfoque histórico-sociológico, a expressão “so­ ciedade civil”.  21 Cf. TTG, L.I, VII, 75-77, pp. 197-199.  22 TTG, L.II, V, 27, pp. 287-288. Leo Strauss, fazendo ruir a aparente unidade do pensamento de Locke (defendida por Peter Laslett), procura mostrar dimensões não con­ ciliáveis. A teoria da propriedade mostra o hedonismo lockeano; a satisfação de necessi­ dades não é mais impulsionada segundo as exigências duma vida boa, mas evitando a dor: a dor que mitiga a dor é o trabalho, e este está na “na posse das coisas que produzem os

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dade civil –, entendida de um modo amplo, como ideosofema que engloba a vida, os bens e a liberdade, indo, portanto, mais além do significado mera­mente económico; todavia, nem sempre Locke utilizará a noção de propriedade neste sentido amplo. Como tal, é um direito subjectivo que o homem possui por natureza, antes de instituir a sociedade civil, e que busca garantir mediante a fundação desta. Já no Primeiro Tratado, refutando Filmer, Locke introduziu a noção de propriedade21, que, no Segundo Tratado, decorre do imperativo de conservação dos indivíduos e do respeito pelo bem comum. Ora, se a huma­nidade recebeu a terra em comum, importa dar conta da origem da propriedade privada; se Locke explica que o fundamento irredutível da propriedade é a propriedade de si-mesmo, isto é, da sua pessoa e do tra­balho despendido, por esta via se explica a passagem do colectivo ao privado: “Embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade na sua própria pessoa. A esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, pode dizer-se, são propriamente dele. Qualquer coisa que ele então retire do estado com que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele com o seu trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em sua propriedade. Sendo por ele retirada do estado comum em que a natureza a colocou, a ela juntou, com esse tra­balho, algo que a exclui do direito comum dos demais homens. Por ser esse trabalho propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum outro homem pode ter direito àquilo que está unido, pelo menos enquanto houver bastante e igualmente de boa qualidade deixada em comum para os demais”22 . A razão ensina, pois, que os humanos têm o direito de se conservarem, quer dizer, de dispor do necessário para a sua subsistência. A harmoniosa utilização da terra possibilita que o homem se aproprie de alguns dos seus frutos; tal apropriação tem a sua origem no trabalho e encontra-se limitada pela capacidade de consumo. maiores prazeres”, pelo que “o hedonismo se torna utilitarismo ou hedonismo político” (Leo Strauss, Droit Naturel et Histoire, Paris, Plon, 1954, pp. 259-261). Há, pois, um suposto hedonista que permite analisar as condutas humanas ob­ serváveis, o mesmo que pode encontrar-se em Hobbes, Hume, Smith e Bentham. Locke escreve: “O bem e o mal, como foi demonstrado (…), nada mais são do que prazer e dor, ou aquilo que nos proporciona ou que produz em nós prazer ou dor. O bem e o mal morais são, assim, apenas a conformidade ou a inconformidade das nossas acções voluntárias em

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O mesmo ocorre com a terra: “Mas, sendo agora a principal questão da propriedade não os frutos da terra e os animais que sobre ela subsis­ tem, e sim a própria terra, como aquilo que engloba e consigo leva tudo o resto, penso ser evidente que, também neste caso, a propriedade é adqui­rida como no caso anterior. A extensão de terra que um homem pode arar, plantar, melhorar e cultivar e os produtos dela que é capaz de usar constituem sua propriedade”. E continua, mostrando que é o trabalho que confere valor às coisas, além de constituir uma das obrigações dos huma­nos no estado de natureza: “Mediante o seu trabalho, ele, por assim dizer, delimita para si parte do bem comum. (…) Quando deu o mundo em comum para toda a humanidade, Deus ordenou também que o homem traba­lhasse, e a penúria da sua condição assim o exigia. Deus e a própria razão ordenaram-lhe que dominasse a terra, isto é, que a melhorasse para benefício da vida, e que, dessa forma, depusesse sobre ela algo que lhe pertencesse, o seu trabalho. Aquele que, em obediência a essa ordem de Deus, dominou, arou e semeou qualquer parte dela, acrescentou-lhe com isso algo que era de sua propriedade, ao que os demais não tinham qualquer título, nem poderiam tomar-lhe sem causar-lhe injúria”23. A aquisição da propriedade é, pois, conforme à lei natural, decor­ rendo das obrigações morais do ser humano; quer dizer: não se trata so­ mente da própria preservação, mas do bem-estar da colectividade, como impe­rativo da lei natural, comum a todos os humanos: “De modo que relação a uma lei, pela qual o bem ou o mal nos são traçados, a partir da vontade e do poder do legislador. Esse bem e mal, prazer ou dor, atendendo ao nosso cumprimento ou quebra do decreto do legislador, é o que chamamos recompensa e castigo” (John Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano, op. cit., L.II, c.28, § 5, p. 466). No entanto, o su­ posto lockeano de que as paixões hedonistas, enquanto dão identidade à natureza humana, são criações de Deus, infere-se que as condutas humanas seguem leis divino-naturais e promovem os interesses comuns da humanidade. Assim, o intuito de preservação do in­ divíduo identifica-se com o mesmo intuito de todos os homens, que move à convivência harmónica com os demais.  23 TTG, L.II, V, 32, pp. 290-291. E ainda: “Nem essa apropriação de qualquer parcela de terra, mediante a melhoria desta, seria prejudicial a qualquer outro homem, uma vez que restaria ainda bastante e de boa qualidade, e mais do que poderiam usar os que ainda não possuíam um lote. De modo que, na verdade, nunca houve menos para os outros pelo facto de ter ele delimitado parte para si, pois aquele que deixa para outro tanto quanto este possa usar faz como se não houvesse tomado absolutamente nada. Ninguém poderia julgar-se prejudicado pelo facto de outro homem beber, mesmo que tenha tomado um bom gole, se houvesse todo um rio da mesma água sobrando para saciar a sua sede. E o caso da terra e da água, quando há bastante de ambos, é perfeitamente o mesmo” (TTG,

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Deus, ao ordenar o cultivo, deu com isso autorização para a apropriação. E a condição da vida humana, que requer trabalho e materiais com os quais trabalhar, introduz necessariamente a propriedade privada”24. Tal acumulação de propriedade pelo trabalho não é sem limites: “Porém, se eles perecessem na posse dele sem serem devidamente usados; se os frutos ou a caça apodrecessem antes que pudesse consumi-los, ele estaria ofen­dendo as leis comuns da natureza, e tornava-se passível de punição; teria usurpado a parte de seu vizinho, pois não tinha nenhum direito, L.II, V, 33, p. 291).  24 TTG, L.II, V, 35, p. 292. Fundando a propriedade na lei natural, Locke pretende ultrapassar a dificuldade que outras análises da época suscitavam, em especial desde Grócio: se o direito de propriedade advém das leis positivas e não da lei natural, ela pode ser posta em questão em qualquer momento. Para Grócio, por exemplo, a propriedade era de início colectiva, partilhada depois por comum acordo, donde derivava a propriedade privada; ora, tal perspectiva seria, para Locke, compatível com o absolutismo (um monarca absoluto poderia garantir a propriedade), ademais que, em Locke, a propriedade serve também de garantia à liberdade dos indivíduos. John Dunn interpreta o pensamento político de Locke em torno da lei natural e do destino do homem: é sempre a lei natural que fornece as condições morais a partir das quais se cria a comunidade política legítima, aquela onde homens iguais podem desem­ penhar os seus deveres para com Deus. Desde logo, a refutação da política bíblica de Filmer no Primeiro Tratado tem a mesma função que a crítica das ideias inatas no Livro 1 do Ensaio sobre o Entendimento Humano; se há uma política revelada, não há ciência política possível; do mesmo modo, se há ideias inatas, uma epistemologia das origens do nosso conhecimento torna-se inútil. O primado da lei natural distingue radicalmente Locke de Hobbes: “o problema tratado por Hobbes é o da construção da sociedade política a partir dum vazio ético. Locke nunca abordou esse problema nos Dois tratados porque a sua premissa central é precisamente a inexistência de um tal vazio» (John Dunn, The Political Thought of John Locke, Cambridge University Press, 1969, p. 79). Contra Macpherson, mas também contra os que vêem em Locke o pensador do lib­ eralismo utilitarista, Dunn sustenta que a sociedade civil lockeana é sobretudo destinada a permitir aos homens realizar a vocação à qual Deus chama. Daí uma sociedade que reúne estranhamente permissividade individualista e severidade moral, porque ela não está voltada para os fins terrestres colectivos mas para a realização por cada um da sua vocação. Esta confiança na lei moral e no indivíduo que a efectua radica na ideia puritana duma vocação ou de um destino do homem: este está no mundo para aí realizar, com os seus talentos pessoais, a tarefa que Deus lhe fixou. O meio privilegiado desta realização é o trabalho; o maior vício é a preguiça ou o nada fazer. Recorrendo a uma interpretação contextualista, “a teoria social e política lockeana deve ser vista como a constituição de valores sociais calvinistas, na ausência duma fonte terrestre de autoridade teológica e em resposta a uma série de desafios particulares” (ib., p. 259). Segundo Peter Laslett, “de certa forma, é através da teoria da propriedade que os homens podem passar do mundo abstracto da liberdade e igualdade, baseado nas suas

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além daqueles ditados por seu uso, a qualquer deles, para que pudessem propor­cionar-lhes as conveniências da vida”25. Se cada um tem o dever de fazer frutificar a terra e de a melhorar com o seu trabalho, não deve adquirir bens que venham a estragar-se ou delimitar terras que deixe ao abandono; isso seria contrário à lei natural que prevê que cada um tenha unicamente aquilo de que necessite. Algo de similar recorda a sua epistemologia: o conhecimento – e o mesmo pode dizer-se do “assentimento” – não é a mera posse dum con­ junto de proposições verdadeiras, ou provavelmente verdadeiras, mas o resul­tado duma aquisição ou conquista subjectiva. Neste sentido, Locke defende a razão ilustrada, a qual não se apoia num corpo estabelecido de verdades, mas que é fundamentalmente uma técnica de controlo com base nos dados de que cada um dispõe num determinado momento; o conhe­cimento é o resultado da experiência e do esforço pessoal que se baseia na percepção e entendimento das ideias presentes à consciência da pessoa individual. O mesmo ocorre no domínio do assentimento: o que é apreen­dido pelo entendimento, seja como verdadeiro ou como provável, é o resultado da experiência pessoal, do uso por cada pessoa das suas facul­ dades perceptivas exteriores (sensação) ou interiores (reflexão). É por isso que o nível intelectual de cada pessoa é distinto, dependente da própria experiência e capacidades: a única fonte do verdadeiro conhecimento é, afinal, o trabalho pessoal de busca racional; como nota Leo Strauss, todo o conhecimento depende do trabalho e é trabalho. Neste sentido, o Ensaio sobre o Entendimento Humano constitui uma teoria da aquisição ou da apropriação semelhante à teoria da propriedade26. O conhecimento é, pois, adquirido, e essa aquisição só pode produzir-se através do esforço que suporte a aplicação das nossas capacidades relações com Deus e a lei natural, para o mundo concreto da liberdade política garantida por acordos políticos” (“Introduction, op. cit., p. 103).  25 TTG, L.II, V, 37, p. 295. Cf. A. John Simmons, The Lockean Theory of Rights, Princepton (New Jersey), Princepton University Press, 1992, pp. 278-298. 26 José Ignacio Solar Cayón, La Teoría da la Tolerancia en John Locke, Universidad Carlos III de Madrid, Dykinson, 1996, pp. 245. Cf. também David C. Snyder, “Locke on Natural Law and Property Rights” (1986), John Locke: Critical Assessments, ed. Richard­ Ashcraft, vol. III, Londres/Nova Iorque, Routledge, 1991, pp. 362-384. Por isso, no Ensaio, encontramos a determinação de qual é o alcance do nosso con­ hecimento; só assim se podem evitar quer o cepticismo quer a anomia do pensamento tradicional. Antes de propor a sua própria teoria do conhecimento, Locke inicia a sua tarefa

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III. Tensões e antagonismos no “estado de natureza” Na obra de Locke, o conceito de estado de natureza tem várias modu­ lações. É, em primeiro lugar, uma tese sobre a condição moral de todos os indivíduos; depois, uma referência histórica, exemplificada, como em Hobbes, com os povos primitivos da América e concebida como uma condição empiricamente observável das relações humanas pré-políticas; finalmente, uma construção analítica de tipo hipotético e condicional 27. Pode, pois, dizer-se que os elementos deste conceito são em parte pres­ criptivos, descritivos e analíticos. O elemento mais específico da concepção de Locke de estado de natureza, é, como dissemos, a existência de direitos naturais (vida, liber­ dade, propriedade): os humanos possuem direitos e deveres, ínsitos à natureza racional, decorrentes da lei natural, fazendo parte das obri­gações morais do homem28. Locke crê nos direitos naturais como regras da razão dadas por Deus aos homens para que orientem as suas acções com vista à segurança mútua. Constituem, pois, um referencial da con­dição moral desenvolvendo uma estratégia de demolição cujo destinatário principal foi o inatismo. Por outro lado, se da experiência, mediante a sensação e a reflexão, provêm as “ideias simples”, e destas as “ideias complexas” (em torno das ideias de substância, de modo, de relação), sendo “o poder do homem e o seu modo de operação que é sensivelmente o mesmo nos mundo material e intelectual” (Ensaio, L.II, cap. XII, § 1, op. cit., p. 201202), então ninguém deve estranhar que Locke analize, no II Tratado, o efeito que produz o trabalho humano na terra e nas coisas da natureza, pois “é o trabalho que confere a maior parte do valor à terra, sem o qual dificilmente valeria alguma coisa” (TTG, L.II, V, 43, p. 298). Cf. José M. Lasalle Ruiz, John Locke y los Fundamentos Modernos de la Propriedad, Universidad Carlos III de Madrid, Dykinson, 2001, p. 306 ss. J. Colman, John Locke’s Moral Philosophy, Edinburgh University Press, 1983, p. 51. 27 TTG, L.II, VIII, 102, pp. 334-335. Cf. Josep M. Colomer, “Ilustración y Liberal­ ismo en Gran Brataña”, em Fernando Vallespín (ed.), História de la Teoría Política, t. 3, Madrid, Alianza Editorial, 1995, p. 20 ss.  28 Cf. Richard Ashcraft, La Politique Révolutionnaire et les Deux traités du gou­ vernement de John Locke (1986), tr. de J.-F. Baillon, Paris, P.U.F., 1995, p. 277 ss. Segundo observa John Dunn, quem trabalha de modo estrénuo segundo a sua vocação na sua passagem neste mundo observa a lei da razão». Cf. John Dunn, The Political Thought of John Locke, Cambridge University Press, 1969, p. 253. Ashcraft, criticando Dunn, e buscando uma metodologia que percorra as diversas áreas do saber e os diversos actores sociais, sustém que Locke não é um simples moral­

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dos indivíduos, cujo sentido é a preservação da espécie humana. Os in­ divíduos são titulares dessas prerrogativas que não derivam da sociedade civil (política); a esta condição moral, a sociedade (mediante o contrato) nada mais acrescenta que a tutela pela lei positiva que vem garantir o exercício desses direitos originários, que estão expostos à vio­lência. Nesta concepção jusnaturalista-liberal, a sociedade não é um fim, isto é, não é a condição indispensável para que os indivíduos sejam verdadeiramente humanos, mas tão somente um simples meio; se, para Locke, o estado de natureza é já um estado moral dado, em que o homem alcançou a sua humanidade, em Rousseau, a natureza do homem não se realiza por completo a nível natural, mas carece duma ordem moral, possi­bilitada pela sociedade. Não obstante a existência pacífica, de liberdade e igualdade no estado de natureza, os indivíduos não as podem usufruir plenamente porque se encontram expostos à incerteza e às transgressões de outros indivíduos; efectivamente, nem todos respeitam os preceitos da lei natural. Deste modo, o estado de natureza é, num primeiro momento, um estado pací­ fico, mas tende, pela condição real em que os homens se encontram, para a guerra: “Quando homens vivem juntos segundo a razão e sem um superior comum sobre a Terra com autoridade para julgar entre eles, é pro­priamente o estado de natureza. Todavia, a força, ou um desígnio decla­rado de força sobre a pessoa de outrem, quando não haja um superior ista, mas um filósofo empenhado, entre a dissidência política e religiosa da Inglaterra da Restauração, próximo da tendência mais radical dos whigs. A filosofia da lei natural não é uma mera construção teórica, mas a via para analisar e criticar a sociedade da segunda metade do século XVII, que Locke empreendeu com os Dois Tratados do Governo obra profundamente subversiva, por isso publicado anonimamente. “É tempo, em minha opinião, de tomar a sério a linguagem dos Dois Tratados, e reconhecer por ela que a obra não se dirige primeiramente à aristocracia e à classe possuidora, mas aos mercadores, comer­ciantes, artesãos e pequenos cavalheiros independentes das cidades, que constituem o fundamento social duma teoria política radical – incluindo aí a de Locke - na Inglaterra do século XVII” (Richard Ashcraft, op. cit., p. 614).  29 TTG, L.II, III, 19, p. 280.  30 TTG, L.II, VI, 61, p. 308. Cf. M. I. Wences Simon, op. cit., p. 25 ss. Cf. também A. John Simmons, op. cit., p. 68 ss.  31 TTG, L.II, II, 10, p. 273. 32 TTG, L.II, III, 17; p. 279. Este estado de natureza não poderia contudo ser posto sob o signo da perfeição; um certo número de passagens-chave do TTG (L.II, 123-127, pp. 350-352) mostram ao contrário que ele se traduz por um sentimento de insegurança ou de frustação, como o atesta a reiteração do termo want (que denota “falta”, “carência”).

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comum sobre a Terra a quem apelar em busca de auxílio, é o estado de guerra”29. Os direitos naturais são, pois, uma condição da paz e da segu­ rança entre os homens: o estado de natureza define-se a partir do suposto que “nascemos livres, assim como nascemos racionais”30. Se os homens se comportassem sempre como tais, existiria um estado de natureza pacífico (positivo), o que é contrariado pelas possibilidade de passagem à condição natural de guerra (negativo). Em definitivo, a paz e a garantia da propriedade são possíveis no estado de natureza porque, em Locke, ao contrário de Hobbes, opera a lei natural. A paz permite o desenvolvimento das actividades produtivas pelo que este estado de natureza é, num primeiro momento, um estado de pro­gresso; então, por um lado, se se verifica uma certa solidariedade social, o que confere um carácter especial à ideia de sociedade civil (seg­ undo Locke), por outro, é sempre iminente uma situação de beligerância, porque há também quem trilhe vias dissonantes com a lei natural. Para que não se infrinjam os direitos e se observe a lei natural, tem, cada um, individualmente, na situação original, o poder de executar a lei natural, portanto o direito de punir os transgressores (por furto, usurpação ou violência na sua pessoa), proporcionalmente ao acto de transgressão: “aquele que recebeu algum dano tem, além do direito de punição comum a todos os demais homens, um direito particular de exigir uma reparação junto de quem a causou”31. Ora, sendo cada indivíduo juiz de sua própria causa, não está isento de ser parcial na aplicação da justiça, atraído pelo interesse ou amor próprio, movido pela paixão ou instigado pela vingança, infringindo os direitos naturais. Segundo palavras de Locke, o homem que busca submeter o outro ao seu poder, fá-lo para o obrigar a fazer algo que vai contra o direito de liberdade: “aquele que, no estado de na­ tureza, arre­bata a liberdade que cabe a qualquer um nesse estado, deve necessaria­mente supor-se como imbuído do desígnio de arrebatar tudo mais, porque essa liberdade é o fundamento de tudo o resto” 32. Segundo Macpherson, a partir dos dois postulados – que os homens têm direito a conservar a sua vida e que o trabalho de um homem é sua pro­­ priedade – justifica Locke a apropriação individual do produto da terra origi­ 33 Cf. C.B. Macpherson, La Teoría Política del Individualismo Posesivo: de Hobbes a Locke (1962), tr. de J.-R. Capella, Barcelona, Editorial Fontanella, 1970, p. 174. Neste estudo de filosofia política de Hobbes e Locke, que alcançou grande projecção, o autor observa que este tipo de existência pacífica não poderia continuar quando a população aumenta e se expande o desenvolvimento económico. As consequências disto são previ­

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nalmente entregue à humanidade em comum33. Locke afirma: “E assim como os diferentes graus de esforço eram susceptíveis de dar aos homens posses em proporções diferentes, assim também essa inven­ção da moeda deu-lhes a oportunidade de continuar a aumentá-las”34. Segundo Macpher­ son, com o surgimento da moeda, o direito de proprie­dade separa-se do trabalho que está na sua origem; a partir do momento em que ela permite representar e conservar quantidades de trabalho, o proprietário legítimo já não é necessariamente o trabalhador; basta que o intercâmbio seja livre para que a propriedade conserve o seu valor e continue, portanto, a rep­ resentar a quantidade de trabalho incorporada; se, inicialmente, trabalho e proprie­dade estavam unidos, com o surgimento da moeda qualquer um pode pos­suir e conservar a propriedade e o tra­ba­lho que ela representa, sem a trabalhar ou produzir. Simplesmente ao tomar para si, conserva-lhe síveis: maior pressão sobre os recursos disponíveis, escassez económica, acumulação de propriedade e capital pelos mais habilidosos, distribuição desigual da riqueza e, como tal, mais conflitos e discórdias. Contudo, Locke considera que o dinheiro é a mola impulsio­ nadora da actividade e do desenvolvimento económico. “A introdução da moeda por consentimento tácito eliminou as anteriores limitações naturais da apropriação justa, e ao fazê-lo invalidou a disposição natural segundo a qual todo o mundo podia possuir tanto quanto fora capaz de utilizar” (C.B. Macpherson, op. cit., p. 177). Na sequência de Macpherson, cf. também David McNally, Political Economy and the rise of Capitalism (Berkeley, University of California Press, 1988), que situa Locke no quadro da emergência do capitalismo, da transformação do comércio e da economia agrária, em que o papel principal é reservado ao proprietário de terras. 34 TTG, L.II, V, 48, p. 301. Mas qual a razão que leva um homem a aumentar cada vez mais as suas posses, para além do que necessita para o seu sustento e para as conve­ niências da vida? A esta questão, Macpherson responde que a razão parece ser comercial e económica, pois Locke era um mercantilista e, como tal, considerava o dinheiro como o elemento propulsor do comércio e do desenvolvimento económico. “E basta remetermonos aos tratados económicos de Locke para ver que era um mercantilista para quem a acumulação de ouro era um objectivo apropriado duma política mercantil, não como fim em si mesma, mas porque vivificava e incrementava o comércio”. C.B. Macpherson, op. cit., 178. Alude-se ao escrito John Locke, Some Considerations of the Lowering of Interest and Raising the Value of Money (1691), em Works, ed. 1759, vol. II, pp. 22-23. 35 C.B. Macpherson, op. cit., p. 189. Segundo a reconstrução de James Tully, no intuito de desvelar os fundamentos te­ ológicos do pensamento de Locke, contra Peter Laslett e com John Dunn, há uma cor­ relação entre Dois tratados sobre o governo e o Ensaio sobre o entendimento humano; tal como Yolton, que mostrou que a propriedade é apresentada como o exemplo tipo de análise segundo o Ensaio, aplicado, no caso, aos conceitos morais. Cf. James Tully, Locke: Droit Naturel et Propriété (1982) tr. fr. de Chaïm J. Hutner, Paris, P.U.F., 1992, pp. 29 ss. Cf. também James Tully, An Approach to Political Philosophy: Locke in Contexts, Cambridge University Press, 1993. Cf. ainda John W. Yolton, Locke and the Compass of Human Understanding, Cambridge University Press, 1970, pp. 181-195.

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o valor e poderá vender sem produzir. “Assim, enquanto que ninguém tem o direito natural de alienar a própria vida, que é propriedade de Deus, ou de tirar arbi­trariamente a outro a vida e a pro­prie­dade, fica-lhe, contudo, um direito natural de alienar a sua proprie­dade”35. Locke começa com uma justifi­cação estritamente individualista e moral do direito de proprie­ dade e termina com uma justificação colectiva e utilitarista: a justificação final do direito de propriedade está na sua utilidade económica. O problema de fundo é que no estado de natureza não há juiz impar­ cial nem leis conhecidas e estabelecidas, capazes de dirimir as contro­ Para Tully, por direito natural, aos homens foi dada uma propriedade em comum; os direitos são, de início, inclusivos (direitos de conservação e das possibilidades de subsis­tência), como é o direito à vida; donde o primeiro sentido de “propriedade”, ligado à necessidade de subsistir pelo uso partilhado do mundo. Se para Grócio e Pufendorf, a propriedade é exclusivamente propriedade privada fundada na posse efectiva ou na apropriação (expressando o direito em dominar o mundo), para Locke ela exprime so­ mente o direito de usar como imperativo de sobrevivência: trata-se menos de um direito a possuir que de um direito ao que é devido. Assim, para Tully, a propriedade começa por ser indivisa – um direito de uso limitado às coisas indispensáveis; a apropriação pelo trabalho não constitui ainda o advento da propriedade privada: é uma apropriação limitada e condicional; mais ainda: segundo Tully, Locke não teria mesmo nunca mostrado que a propriedade privada é natural. O modelo da relação do indivíduo com a propriedade é o da relação do artista com a sua obra, que é análoga à relação de Deus com as criaturas. Contra Macpherson, Tully alega que nenhum dos conceitos do capitalismo estão presentes em Locke: as relações de trabalho não equivalem às verificadas entre patrão e assalariados, o trabalho não é uma mercadoria, o que se retribui com o salário mais não é que um serviço; o valor das coisas reside no seu uso, e a utilidade para a vida é o critério do valor natural. Com a moeda e a indústria ocorre a acumulação das posses; é então que devem abandonar o estado de natureza pela sociedade civil: o direito vai então organizar a propriedade privada, que deverá ser conforme à lei natural; o governo torna-se então necessário para constituir uma nova ordem de relações sociais que vai fazer entrar de novo as acções humanas na linha das intenções divinas”. Note-se que sta interpretação atribui especial relevância aos textos sobre a lei natural e a propriedade, incidindo especialmente sobre o que vem antes do governo.  36 TTG, L.II, II, 13, pp. 275-276.  37 TTG, L.II, V, 25, p. 285. Na situação original, em que todos eram proprietários da terra, resulta admissível que existam condições de abundância de víveres silvestres, poucos homens, muito espaço; contudo, a realidade mostra que as provisões escasseavam, os homens reproduziam-se rapidamente e os espaços vazios eram cada vez mais difíceis de encontrar; além disso, nem tudo o que o ser humano produz com o seu trabalho corre­ sponde a uma necessidade básica: os homens iniciaram assim um processo de acumulação de certos produtos e muitos deles não têm capacidade para os consumir, dando lugar à troca: “É certo que, no princípio, antes que o desejo de ter mais que o necessário houvesse alterado o valor intrínseco das coisas, que depende apenas da utilidade destas para a vida humana; ou antes que [os homens] tivessem concordado que um pedacinho de metal am-

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vérsias e reverter a crescente insegurança: “(…) não é razoável que os homens sejam juízes em causa própria, porque o amor próprio os fará agir com parcialidade em favor de si mesmos e de seus amigos; e, por outro lado, o mau génio, a paixão e a vingança fá-los-ão ir longe demais na punição dos outros, seguindo-se daí tão somente confusão e desordem. Deus certamente estabeleceu o governo para conter a parcialidade e a violência dos homens”36. Daí, que Locke distinga historicamente dois estádios: o primeiro, as­ sociado a um modelo de sociedade baseado nas relações humanas sim­ ples, em que a conservação individual se situa a nível de subsistência, iden­tificando-se com a preservação da espécie humana segundo um uso comum dos bens; aí, a propriedade não é mais que a posse dos bens básicos, que se exerce através da amizade e da cooperação entre os ho­ mens, conforme à “razão natural – que nos diz que os homens, uma vez nascidos, têm direito à sua preservação e, portanto, à comida e bebida e a tudo quanto a natureza lhes fornece para a sua subsistência”37. O seg­ undo estádio corresponde já a um modelo de sociedade mais com­plexo, onde, em consequência, a conservação está ameaçada, pejada de motivos de conflito e de desigualdade, contrariando os preceitos da lei natural e desen­ca­deando controvérsias sobre o exercício do direito de propriedade. Como observa Vallespín, mais que uma abstracção fundada em princí­ pios antropológicos, forma parte de um irreversível processo histórico arelo que se conserva sem desgaste ou decomposição, valeria um pedaço grande de carne ou um grande monte de cereais; embora os homens tivessem o direito de se apropriar, mediante o seu trabalho, e cada um para si, de tantas coisas da natureza quantas pudessem usar, isso não poderia ser muito, nem em prejuízo de terceiros, se restasse ainda a mesma abundância para aqueles que usassem do mesmo esforço” (TTG, L.II, V, 37, p. 294).  38 O que o autor quer enfatizar é que a introdução da moeda e a consequente pos­ sibilidade de acumular terras e riquezas anula a igualdade de possibilidades na hora de apropriação, de que resulta uma situação de constante erosão e de desigualdade. Recordese novamente que Locke entende a propriedade tanto no sentido amplo (vida, liberdade e bens) como no restrito (posses materiais ou bens móveis e imóveis). Cf. F. Vallespín, “Contrato social y orden burgues”, Revista de Estudios Políticos, nº 38, Março- -Abril 1984, p. 172.  39 Cf. Raymond Polin, La Politique Morale de John Locke, Paris, P.U.F., 1960, pp. 134-135.  40 TTG, L.II, IX, 130, p. 353.  41 TTG, L.II, II, 14, pp. 276-277. Esclarece ainda a questão, nos seguintes termos: “Todos aqueles que, portanto, abandonam o estado de natureza para se unirem numa comunidade, deve entender-se que entregaram todo o poder necessário aos fins para que

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vin­culado de maneira íntima à dinâmica dos direitos de propriedade 38 . Abre- -se assim a necessidade de um “pacto social” ou contrato. IV. A lei natural e a emergência da sociedade civil Caracterizar um indivíduo por direitos e obrigações é necessariamente situá-lo e defini-lo por relação com outros indivíduos; na medida em que esses direitos são naturais, o indivíduo, tal como Locke o concebe, é natu­ralmente um ser social; conforme o mostra a experiência empírica, a vida do homem isolado está exposta aos maiores perigos: a presença dos outros é tida como uma experiência necessária; ademais, não somente os huma­nos se sentem inclinados para os outros, como podem beneficiar do auxí­lio e solidariedade que os outros lhe podem facultar. A sociabilidade deve assim ser definida, em termos lockeanos, como uma imperativo; e a sociedade resultará do encontro ou da reunião mais ou menos temporária de seres humanos inclinados para a vida social 39; tal como o indivíduo, a sociedade civil comportará ao mesmo tempo uma existência natural e uma existência artificial; esta resultará, tal como o pró­prio indivíduo, duma obrigação inscrita na natureza humana, susceptí­ vel de ser ou não livremente aceite conforme a avaliação razoável que dela fazem; por outras palavras, nem o indivíduo nem a sociedade existem para Locke em virtude de um determinismo natural suficiente. Todavia, a sociedade civil não é somente criada para garantir inte­ resses individuais; ordena-se a uma mais plena coesão social e a um maior e melhor desenvolvimento político e económico; em suma, o escopo da sociedade civil é, simultaneamente, a justiça e a equidade: “pois encon­ trando-se agora num novo estado - onde há-de usufruir muitas vantagens se uniram em sociedade, à maioria da comunidade, a menos que tenham expressamente concordado em qualquer número superior à maioria. E isso ocorre simplesmente pela concordância em unir-se numa sociedade política, em que consiste todo o pacto [Compact] que existe, ou deve existir, entre os indivíduos que ingressem ou constituam uma república [Common-wealth]. Portanto, o que inicia e de facto constitui uma sociedade política não é outra coisa mais que o consentimento de qualquer número de homens livres capazes de uma maioria no sentido de se unirem e incorporarem numa tal sociedade. E é isso, e apenas isso, que dá ou pode dar origem a qualquer governo legítimo no mundo” (TTG, L.II, VII, 99, p. 333). Cf. também Wences Simon, op. cit., p. 19 ss. Josep M. Colomer, op. cit., pp. 24-25. Bernard Gilson, Locke: Philosophie Générale et Politique, Paris, Vrin,

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provenientes do trabalho, da ajuda e associação com outros na mesma comunidade, bem como de protecção com toda a sua força –, deverá igual­ mente abdicar da liberdade natural de se prover a si mesmo, na proporção em que o exijam o bem, a prosperidade e a segurança da socie­dade, o que não é apenas necessário mas também justo, uma vez que os demais membros da sociedade procedem do mesmo modo”40 . No entanto, para que a sociedade civil promova a liberdade e a paz, requerem-se três condições básicas: que se celebre o pacto social que dá origem à sociedade civil e fundamenta o poder político; que, uma vez na sociedade civil, se garanta o direito à propriedade; que se renuncie ao poder pessoal de julgar, transferindo-o para o poder público. Na ver­ dade, somente superando o estado de natureza pode garantir-se a vida, a liberdade e os bens, isto é, tudo o que Locke inclui no termo genérico de propriedade; quer dizer, conformada a organização política, é possível estabelecer, mediante o consenso, uma lei fixa e conhecida, instituir um juiz imparcial com autoridade para dissipar as disputas, conforme à lei, instaurando-a e assegurando-a. Quanto à primeira condição – a passagem do estado de natureza à so­ ciedade civil –, só pode efectuar-se mediante o contrato, ou pacto social,­ como preferia chamar-lhe Locke, isto é, por consentimento, que supõe a aceitação do poder decisório da maioria, que é o único princípio válido de legitimação: “não é qualquer pacto que põe fim ao estado de natureza entre os homens, mas apenas o acordo, mutuamente e em con­junto, de constituir uma comunidade e formar um corpo político”41. A partir das relações sociais naturais, os homens têm, pois, a capacidade de erigir – mediante o contrato – as posteriores estruturas sociais. “A única maneira pela qual uma pessoa qualquer renuncia à sua liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil é concordando com outros homens em juntar-se e unir-se numa comunidade, para viverem confor­tável, segura 2000, pp. 146-147.  42 TTG, L.II, VIII, 95, pp. 530-531. Neste ponto, é bem explícito: “Ninguém duvida que o consentimento expresso de qualquer homem, ao ingressar numa sociedade, torna-o membro perfeito dessa mesma sociedade, súbdito do respectivo governo. A dificuldade está no que deve considerar-se consentimento tácito, e até que ponto este obriga, isto é, até que ponto deve considerar-se alguém como tendo consentido, e por isso mesmo tendo-se submetido a algum governo, nos casos em que não o haja expressado de alguma maneira. E a isto respondo que todo o homem que tenha alguma posse ou usufrua de qualquer parte dos domínios de um governo dá, com isso, o seu consentimento tácito e está obrigado às

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e pacificamente uns com os outros, gozando de modo seguro de suas pro­ priedades contra aqueles que dela não fazem parte (…). Quando qual­quer número de homens consentiu desse modo em formar uma comuni­dade ou governo, são, por esse acto nela incorporados e formam um corpo político, no qual a maioria tem o direito de agir e deliberar por todos”42. Como noutros autores da tradição contratualista, ainda que com menos clareza que nalguns deles, na teoria de Locke podem distinguir-se dois pactos, ou pelo menos dois aspectos do pacto; o primeiro é o que funda a associação civil dos indivíduos ou sociedade civil; o segundo, o que legitima a existência de um Estado ou autoridade política. A doutrina do moderno direito natural é também, neste aspecto, tribu­ tária de Locke: só é legítima uma sociedade que seja o resultado do contrato social: o que torna um governo legítimo é o consentimento deli­ berado e livre dos homens; o consenso é o único fundamento da obrigação política. Locke afasta, desse modo, qualquer pacto de submis­são entre governados e governantes; institui um elo mais dum depósito confiado aos governantes, surgido do pacto original, sob a condição (expressa ou tácita) que é exercida para o bem público. Esta relação fiduciária 43, procura tornar claro não somente que todas as acções dos governantes encontram como limite o fim do governo, que é o bem dos governados, como ainda leis desse governo, durante esse usufruto, como qualquer outro que viva sob o mesmo governo (…)” (TTG, L.II, VIII, 117, pp. 347-348). O consentimento expresso explica a origem da sociedade política e do contrato, bem como os direitos e deveres dos indivíduos ligados pela novel instituição política; o consentimento tácito justifica que um indivíduo integre um sistema; se pelo primeiro, um indivíduo dela se torna membro, pelo segundo, está obrigado a respeitar as leis da sociedade. 43 Peter Laslett, “Introduction”, in John Locke, TTG, op. cit., p. 112 ss. O conceito de “encargo confiado” (trust) é bastante característico de Locke; o termo “contrato” (contract) ocorre, no máximo, cerca de dez vezes, e raramente aplicado a questões políticas; é o “pacto” (compact), ou o simples “acordo” (agreement) que cria uma comunidade (TTG, L.II, 14, 97, 99, etc.), ou o poder político (TTG, L.I, 94, 113; TTG, L.II, 95, 102, 173, etc.), ou mesmo a lei (TTG, L.II, 35). Ora, pacto e acordo são termos mais genéricos do que contrato; o vocábulo trust é bem mais frequente que “contrato” ou “pacto”; ao insistir na confiança depositada nos diversos poderes políticos do Estado, na constituição, Locke faz uma importante distinção, porventura duas: separa o processo do pacto, que cria uma co­ munidade, do processo subsequente, pelo qual a comunidade confia o poder político a um governo (embora podendo ocorrer ao mesmo tempo, trata-se de dois processos distintos). Com isso, o seu sistema inclui-se entre aqueles que distinguem o “contrato de sociedade” do “contrato de governo”, embora o segundo não seja em absoluto um contrato; e talvez seja esse um dos seus objectivos: acentuar que a relação entre governo e governados não

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enfatizar a natureza deste autêntico fideicomisso, isto é, desta relação de confiança. A segunda condição básica com vista à sociedade civil é a manuten­ ção dos direitos humanos; estes não desaparecem com o pacto, nem são anulados pelo poder do Estado, mas subsistem precisamente para garantir a liberdade: o fim da comunidade política é a protecção dos direitos. É de salientar que a ideia dos direitos naturais aparece estreitamente conec­tada com a teoria do contrato social; por esta teoria se explica a “origem” da sociedade e do poder político através da passagem do estado de natureza à sociedade civil (política), ao mesmo tempo que se trata duma nova legitimação ou fundamentação dessa mesma sociedade civil (política), baseada, por sua vez, na ideia de consenso”44. Qualquer cidadão, a partir do momento em que desiste de alguns dos seus direitos naturais (nomea­ damente o direito de fazer justiça por si) e ingressa, por contrato, na sociedade civil, tem que assumir as suas responsabilidades e os seus deveres como membro dessa sociedade. Na verdade, para que a garantia dos direitos naturais seja possível, requer-se “uma lei estabelecida, fixa, é contratual, pois confiança não é apenas contrato (ib., pp. 113-114). 44 E. Fernández García, Teoría de la Justicia y Derechos Humanos, Madrid, Ed. Debate, 1984, pp. 91-92. Cf. Wences Simon, op. cit., pp. 28-29. Locke é, nisto, um continua­dor do jusnaturalismo (que toma da versão medieval tardia de Richard Hooker), com um conteúdo racionalista mas associado a um criacionismo divino; como analista, baseia-se na hipótese de condutas individuais movidas pelo próprio interesse (na mod­ erna linha explicativa que vai de Hobbes ao utilitarismo) e num conceito de poder como relação entre indivíduos que torna inevitável o conflito mas ao mesmo tempo permite a cooperação (cf. Colomer, op. cit., p. 14). 45 Cf. TTG, L.II, IX, 124, p. 351. 46 TTG, L.II, IX, 123, p. 350. 47 D. Colas, La Glaive et la Fléau, op. cit., p. 228. 48 C.B. Macpherson, op. cit., p. 173. Macpherson, no seu livro, contrasta a explicação do estado de natureza com a do direito de propriedade e assinala que o autor dos Dois Tratados sobre o Governo apresenta uma série de contradições. Assim, para Locke, o termo propriedade tem dois sentidos: a propriedade para cuja defesa os homens se submetem à sociedade civil, que se formula às vezes como a vida, a liberdade e bens, e às vezes tratase claramente de bens e de terra. O resultado final disso é que os homens que carecem de bens, isto é, os homens sem propriedade no sentido corrente, encontram- -se justamente ao mesmo tempo dentro e fora da sociedade civil. Quando a propriedade para cuja protecção os homens ingressam na sociedade civil se considera como a vida, a liberdade e os bens, todos os homens (excepto os escravos) podem ser membros da sociedade civil; quando se trata somente dos bens e de terra, unicamente podem ser membros da sociedade civil

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conhecida, recebida e aceite mediante o consentimento comum, como padrão do justo e injusto e medida comum para resolver todas as contro­ vérsias entre os homens45. A liberdade natural convertida em liberdade civil é o limite a esse poder. No entanto, a instituição básica e imprescindível para a conservação é o direito de propriedade: “e não é sem razão que ele procura e quer unir-se em sociedade com outros que já estão unidos, ou que tencionam unir-se, para a mútua preservação de suas vidas, liberdades e bens, a que dou o nome genérico de propriedade”46. A essência da sociedade civil não reside na propriedade, mas antes no direito de propriedade; se cada um é juiz estamos em estado de natureza; ao invés, os que estão unidos num só corpo, que têm uma lei e um sistema judicial comum e dispõem de uma autoridade encontram-se na sociedade civil, e só aí se garante o direito de propriedade47. Segundo Macpherson, “o assombroso feito de Locke consistiu em fundamentar o direito de propriedade no direito natural e na lei natural, e em eliminar logo todos os limites do direito natural em prol do direito de propriedade”48. No entanto, Bobbio e Bovero reiteram que é a pro­ priedade, como condição de liberdade, que protege a sociedade civil: “o objectivo pelo qual os indivíduos instituem o estado civil é principal­mente a tutela da propriedade, que é entre outras coisas a garantia da tutela de outro bem supremo que é a liberdade pessoal” 49. Para Colas, Locke é importante na genealogia deste conceito principalmente pelo lugar que os possuidores. Segundo Macpherson, Locke apresenta aqui uma incoerência e manifesta que esta ambiguidade procura ser resolvida pelo filósofo, assinalando que todos – tives­ sem ou não propriedade – são membros da sociedade civil, ficando incluídos por ter um interesse em conservar as respectivas vida e liberdade; ao mesmo tempo, somente quem tinha terra podia ser membro de pleno direito por duas razões: somente eles tinham um interesse pleno na conservação da propriedade e eram plenamente capazes daquela via racional - a submissão voluntária à lei da razão –, que é a base necessária da participação plena na sociedade civil. A classe trabalhadora, ao carecer de terras, fica submetida à sociedade civil mas não é membro pleno dela (cf. ib., p. 212). Macpherson opina que Locke é um individualista incongruente, já que a individualidade de uns se alcança à custa da negação da individualidade de outros; do seu ponto de vista, o individualismo é um colectivismo no qual impera a supremacia da sociedade civil sobre qualquer indivíduo, a defesa do direito de propriedade mais que a dos direitos do indivíduo frente ao Estado. Em conclusão, segundo esta interpretação da teoria da propriedade, o filósofo passa da afirmação de uns direitos naturais iguais à de uns direitos naturais diferentes. O ponto em debate é a concepção que se tenha do estado de natureza, ou antes todos os indivíduos

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concede à propriedade na organização social50. Deste modo, no estado de natureza, a propriedade existe – é um dado da natureza; na sociedade civil ela conserva-se. A natureza instaura a propriedade, a sociedade restaura-a; é pela propriedade que a natureza se supera a si mesma em socie­dade. Há primeiramente um dado que é um direito (natureza), vem depois um dever de preservar essa dado (sociedade). Em terceiro lugar, o homem ao entrar em sociedade conserva todos os seus direitos, excepto um: o de fazer justiça por suas mãos; isso daria lugar a uma série de conflitos que se resolvem mediante a emergência da são igualmente racionais com o que se compreende a necessidade do contrato, ou então, no estado de natureza existe uma diferença fundamental que separa irremediavelmente os proprietários dos pobres assalariados ou desempregados. Cf. este ponto de vista com o de John Dunn (The Political Thought of John Locke, Canbridge University Press, 1984) e de Raymond Polin (La Politique Moral de John Locke, P.U.F.,1960); o primeiro classifica de marxismo a análise de Macpherson e imputa-lhe não reproduzir com veracidade as resoluções e considerações das teses de Locke. Tão pouco Polin compartinha a percepção de Macpherson e afirma que quando este fala da existência de dois tipos de classes – a dos proprietários e a dos operários não proprietários - não se apoia em nenhum texto, já que a palavra “classe” não aparece nas obras de Locke. 49 N. Bobbio e M. Bovero, Sociedad y Estado en la Filosofía Moderna, op. cit., p. 106. Cf. Ruth W. Grant, John Locke’s Liberalism (Chicago University Press, 1987), para quem a teoria política de Locke contém o fundamento da doutrina liberal, incluindo a defesa do sistema parlamentar, considerada “como um exemplo de teoria política liberal”, pelo que “será estudada para determinar se apresenta uma solução adequada aos problemas com os quais as teorias liberais são confrontadas” (ib., p. 11). 50 Cf. D. Colas, Le Glaive et la Fléau, op. cit., p. 227. Cf. Simone Goyard-Fabre, op. cit., p. 141 ss.  51 Ernest Gellner, Condições de liberdade: Sociedade Civil e os seus Rivais, Lisboa, Gradiva, 1995, pp. 91, 95. 52 TTG, L.II, XI, 136, p. 358. 53 TTG, L.II, XI, 138 e 141, pp. 360, 362. Cf. Frederick Pollock, “Locke’s Theory of the State” (1904), in John Locke: Critical Assessments, ed. de Richard Ashcraft, vol. III, Londres/Nova Iorque, Routledge, 1991, pp. 8-11. 54 TTG, L.II, XII, 144, pp. 364-365. E, nesta lógica, considera ainda o “poder fed­ erativo”: “Este contém, portanto, o poder de guerra e paz, de firmar ligas e promover alianças, e todas as transacções com todas as pessoas e comunidades políticas externas, podendo chamar-se federativo, se assim quiserem. Sendo entendida a questão, o nome é-me indiferente” (TTG, L.II, XI, 146, p. 358). Assim, o poder federativo manifesta a vocação ética e a significação metafísica da autoridade civil; a justiça que a autoridade pública deve promover, procede do respeito pela lei natural tanto na vida externa do Es­ tado como na vida interna. Este poder, que ultrapassa as fronteiras do Estado, exprime a obrigação ao princípio universal de justiça, que, nas prescrições da lei natural, se impõe

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sociedade civil, que tem como função “moderar os conflitos, com fre­quên­ cia violentos, gerados entre indivíduos que vivem juntos na terra”, isto é, actuar como juíz nas controvérsias entre os homens. Para Locke, a socie­ dade civil é uma comunidade fundada por indivíduos que deci­diram esta­ belecer relações permanentes e civilizadas com o fim de alcan­çar legíti­ mos interesses. Neste sentido, mantém actualidade a proposta lockeana: a sociedade civil, como refere Gellner, “é um conjunto de diver­sas insti­ tuições não-governamentais suficientemente fortes para contra­balançarem o Estado e que, embora não evitem que o Estado desempenhe o seu papel de manutenção da paz e de arbitragem de interesses rele­van­tes, pode ape­ sar disso evitar que ele domine e atomize o resto da socie­dade”; por isso mesmo, “permite a um número razoável de pessoas acredi­tarem que se encontram no topo da escada, porque há muitas escadas independentes, e cada pessoa pode pensar que a escada em que se encontra bem colocada é aquela que realmente importa”51. Importa, contudo, inquirir sobre a organização da sociedade civil, onde, mais uma vez, é o critério da “ra­ zoabilidade” que sobredetermina o edifício teórico de Locke. V. A organização da sociedade civil: um equilíbrio razoável A/ Paradigma do poder soberano: controlo, separação, resistência A definição, por Locke, dos limites do exercício do poder político é congruente com a sua estrénua defesa dos valores próprios do estado de natureza; depois, da natureza do pacto resulta a natureza da sociedade civil; o fim desta, é a defesa da liberdade natural, transmutada em liberdade cívica, pela emergência da sociedade civil, mediante o pacto, que tipifica os limites de exercício do poder. Na sociedade civil, as vidas e bens (propriedade em sentido amplo) estão salvaguardadas, pela erecção de um poder soberano com autori­ dade para exigir obediência; esse poder soberano, denominado por Locke de supremo – poder legislativo –, está limitado pelos direitos naturais; a natureza e relevância deste poder radica na garantia da liberdade dos cidadãos ante o arbítrio do governo, desde logo circunscrita pelos pos­ como uma obrigação moral à natureza razoável do homem; não é possível aos homens razoáveis que consentem na vida civil de razoavelmente agir contra a lei natural. Cf.

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tulados da lei natural. Daí decorre um segundo limite: “o poder legis­ lativo, ou o poder supremo, não pode assumir para si mesmo o poder de governar por meio de decretos arbitrários extemporâneos, mas está obrigado a dispensar justiça e a decidir acerca dos direitos dos súbditos por meio de leis promulgadas e fixas e de juízes conhecidos e auto­ rizados52. Se juntarmos o limite, segundo o qual “o poder soberano não pode tomar de qualquer homem nenhuma parte de sua propriedade sem o seu próprio consentimento”, bem como o impedimento do “legislativo transmitir o poder de fazer leis para outras mãos, pois, não sendo ele senão um poder delegado pelo povo, aqueles que o detêm não podem transmiti-lo a outros”53, configura-se uma matriz de princípios, restritivos ao exercício do poder soberano. A separação dos poderes, proposta por Locke, assenta no pressuposto de que um poder diferente, que não seja o legislativo, dirija a execução das leis; por esta razão o poder legislativo e o poder executivo devem estar separados; primeiro é supremo, porque tende a conservar a socie­ dade, o segundo é-lhe subordinado: “porém, como as leis, elaboradas uma vez e em tempo breve, têm força constante e duradoura e requerem uma per­pétua execução ou assistência, é necessário haver um poder permanente, que acompanhe a execução das leis que são elaboradas e estão em vigor. Daí que o poder legislativo e executivo estejam com frequência sepa­rados”54. A terceira característica do poder soberano é que se lhe pode opor re­ sistência, em caso de atentar-se contra os direitos naturais. Com este tema sensível, Locke atinge o ápex da sociedade civil, assumindo integral­mente a lógica dos Dois Tratados sobre o Governo: delegado o poder soberano, se o governo violar as leis estabelecidas, o povo conserva o direito de retirar a esse governo a confiança e a delegação que lhe fora acordada: “Digo que o uso da força sobre o povo, sem autoridade e contrariamente

Simone Goyard-Fabre, “Réflexions sur le pouvoir fédératif dans le “constitutionnalisme” de John Locke”, em Cahiers de Philosophie Politique et Juridique [“La Pensée Libérale de John Locke”], Université de Caen, nº 5, 1984, p. 141. Locke denomina-o “federativo”, evocando o termo latino “foedus”, no sentido de tratado em geral e de tratado de aliança, sem considerar em particular o tratado constitutivo duma federação; o poder federativo presta-se menos bem que o poder executivo para a aplicação de leis pré-existentes; os dois referem-se a objectos distintos e são diferentes por essência. Bernard Gilson, op. cit., p. 142. 55 TTG, L.II, XIII, 155, p. 370. 56 TTG, L.II, XVIII, 199, p. 398.

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à confiança que lhe foi confiado, coloca aquele que assim age em estado de guerra com o povo, que tem o direito de reinstaurar o legislativo no exercício do seu poder. Pois, tendo instituído um legislativo com a intenção que este exerça o poder de elaborar leis, (…) se alguma força impedir esse poder de fazer o que é tão necessário para a sociedade e de que depende a segurança e a preservação do povo, este tem o direito a removê-la pela força”55. O caso é particularmente claro se houver usur­ pação do poder ou tirania: “assim como a usurpação é o exercício de um poder a que outro tem direito, a tirania é o exercício do poder para além do direito, a que ninguém pode ter direito”56. Da natureza do governo e sua finalidade, que é preservar o bem comum, decorre naturalmente que resta opor-se-lhe, se ultrapassar o âmbito das suas atribuições. A dissolução de um governo mediante legítima resistência significa um retorno à situação pré-política de solidariedade natural entre os indivíduos; é fundamental esta aclaração, porque Locke distingue entre dissolução do governo57 e dissolução da sociedade civil58; esta apenas é dissolvida quan­ do há ruptura do acordo que uniu os homens entre si e ocorre geralmente nos casos de conquista, quando o governo pode ser dissolvido sem que a sociedade civil seja afectada. Pode haver, pois, ruptura do pacto esta­ belecido com o povo, ruptura da confiança que está na base da dele­gação de soberania, apropriação pelo poder (legislativo ou executivo) dos bens dos indivíduos59, corrupção dos representantes do povo; em todos estes casos a sociedade pode decidir delegar o seu poder numa outra instância 57 Nesta, quando a execução das leis cessa por completo, “o governo visivelmente cessa e o povo degenera numa multidão confusa, sem ordem ou conexão. Aí onde não há mais administração de justiça para garantir os direitos dos homens, nem reste qualquer poder dentro da comunidade para dirigir a força que deve prover às necessidades do público, concerteza não existirá mais governo” (TTG, L.II, XIX, 219, p. 411). 58 “Nestes e outros casos semelhantes, quando o governo é dissolvido, o povo tem a liberdade em cuidar de si mesmo, instituindo um novo legislativo, diferente do outro pela mudança das pessoas ou da forma, ou de ambas, conforme julgar mais conveniente à sua segurança e bem. Pois a sociedade não pode nunca, por culpa de outrem, perder o direito natural e originário de preservar-se, o que somente pode conseguir mediante um legislativo estabelecido e uma execução justa e imparcial das leis por ele elaboradas” (TTG, L.II, XIX, 220, p. 411). 59 “Respondo que esta doutrina de um poder do povo de prover novamente à própria segurança por meio de um novo legislativo, quando os seus legisladores agirem contra­ riamente à confiança neles depositada, violando a propriedade alheia, é a melhor defesa

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legislativa. Note-se que o direito de resistência na sociedade civil é conforme à lei natural, porquanto a preservação do indivíduo, da sua liberdade e pro­ priedade, é garantida contra todas as tentativas dum poder arbitrário ou absoluto. “Todo aquele que usa a força sem direito, como o faz na socie­ dade todo aquele que age sem lei, coloca-se em estado de guerra com aqueles contra os quais a usar e, nesse estado, todos os antigos vínculos são rompidos, todos os demais direitos cessam e cada qual tem o direito de defender-se e resistir ao agressor”60. Locke, ao atribuir o fundamento legítimo do poder ao consentimento do povo e não à força, posiciona-se claramente contra o absolutismo a delineia uma nova configuração de poder liberal. Segundo Walzer, “nenhum Estado pode manter-se indefini­ damente à margem da sociedade civil; não pode sobreviver sustentando-se somente na engrenagem de sua maquinaria coactiva. Quando já só pode abrir fogo está, literalmente, perdido. A criação e reprodução de lealdade, civismo, competência política e confiança nas autoridades nunca pode levar-se a cabo de forma unilateral por parte do Estado. Todo o esforço nesta direcção (um esforço de tipo totalitário) está condenado ao fracasso. No entanto, é um fracasso que comporta imensos custos, o que explica o atractivo que exerce a “antipolítica” actual (por. ex., a defesa do laissezfaire como formação social dominante), que, frequentemente, vai a par com o elogio da sociedade civil”61. contra a rebelião e o meio mais provável de a evitar” (TTG, L.II, XIX, 226, p. 415). 60 TTG, L.II, XIX, 232, p. 419.  61 Michael Walzer, op. cit., p. 389.  62 Alguns autores, como N. Tenzer, negam-se a aceitar o apelativo de sociedade ainda que com o atributo de imperfeita, para nomear o estado de natureza. Para este autor francês, a esfera que Locke define como livre e fora de toda a competência política, “é uma esfera individual e nunca social. Não se trata duma sociedade, mas duma multiplicidade de zonas individuais, independentes ou não umas das outras. Ainda que no centro dessa esfera existam relações sociais livres - de carácter mercantil ou amoroso - não é suficiente para atribuir-lhe o qualificativo de sociedade”. N. Tenzer, Philosophie Politique, Paris, P.U.F., 1994, p. 330.  63 TTG, L.II, VII, 78, p. 319.  64 “(…) Os homens podem fazer entre si outros pactos e promessas e, mesmo assim, continuar no estado de natureza. As promessas e acordos de troca, etc., entre dois homens numa ilha deserta, mencionados por Garcilaso de la Vega, na sua História do Peru, ou en­ tre um suiço e um índio nas florestas da América, obriga-os mutuamente, embora estejam perfeitamente num estado de natureza, em referência um para o outro. Porque a verdade e o cumprimento da palavra dada pertencem aos homens como homens e não como membros

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A ideia de sociedade civil adquire, em consequência, uma conotação nova, na medida em que o filósofo empirista enfatiza um ideário que até então não estava presente (ou era negado): a passagem da pluralidade de poderes naturais à unidade do poder político, da situação que permite a todos a condição de juízes parciais ao reconhecimento de um juiz impar­ cial, da lei natural a uma lei positiva e a convicção de que a liber­dade nada é sem os direitos sobre a propriedade, impregnou sobremaneira o devir das ideias políticas e do liberalismo. B/ A sociedade civil como superação duma sociabilidade imperfeita A sociedade civil não surge como a negação absoluta do estado de natureza, mas como uma progressão relativa ao que alguns autores cha­ mam “sociabilidade imperfeita”62: verdadeiramente, já aí ocorre uma certa solidariedade social de carácter “natural”, que Locke referencia diversa­ mente e de vários modos. Em primeiro lugar, Locke assinala que o lugar patriarcal é a origem e a maneira mais elementar de solidariedade natural: “a sociedade conjugal é formada por um pacto voluntário entre homem e mulher; e embora consista principalmente na comunhão e direito ao corpo um de outro, como é necessário para o fim primário, a procriação, traz consigo apoio e assistência mútuos, e também uma comunhão de interesses, necessária não só para unir os seus cuidados e afecto, mas também para a progénie comum, que tem direito a ser alimentada e mantida por eles, até ser capaz de prover às próprias necessidades”63. Esta cooperação gera sentimentos de respeito, lealdade e honorabilidade, que desenvolvem a assistência e o bem-estar mútuo entre os seus membros. Em segundo lugar, como anteriormente já referimos, o homem tem uma tendência natural para exercer a troca económica e isso dá lugar a da sociedade”. TTG, L.II, II, 14, p. 277. Cf. também Wences Simon, op. cit., pp. 38-39.  65 José F. Fernández Santillán, Locke y Kant: Ensayos de Filosofía Política, apres. de M. Bovero, México, Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 25.  66 Cf. Norberto Bobbio, Locke e il Diritto Naturale, Turim, Giappichelli, 1963, p. 258. Cf. também M.I. Wences Simon, op. cit., p. 26 ss. 67 Charles Taylor, op. cit., p. 280. 68 Norberto Bobbio, op. cit., pp. 215-216.  69 N. Bobbio, Estudios sobre Historia de la Filosofía, Madrid, Ed. Debate, 1985, p. 343.  70 Os primeiros escritos, conhecidos de Locke, sobre as questões relativas à política

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uma determinada reciprocidade64. Locke supera, pois, a visão hobbesiana, adstrita a um estrito individualismo, sem referência a um contexto social; para Locke, uma solidariedade social pulsa “naturalmente” nos humanos, pelo que a sociedade civil não é a negação omnímoda da condição natu­ ral, antes a sua progressão: se é verdade que devemos definir o estado de natureza para compreender o que é a sociedade civil, é somente porque esta é a perfeição daquela. Em comparação com outros pensadores, Locke leva a cabo uma vari­ ante: “aqui aparece uma subsequente distinção entre as filosofias políticas de Hobbes e de Locke: como vimos, o primeiro move-se num esquema dual, o segundo num sistema triádico. Hobbes mantém uma estrita lógica oposicional: guerra-paz, estado de natureza-sociedade civil, anarquiaordem. A desagregação efectuada por Locke da pluralidade natural entre o momento de paz e o momento de guerra permite a aparição da ordem triádica: estado de natureza pacífico, estado de natureza belicoso, socie­ dade civil. (…) O primeiro sistema filosófico compreende duas fases, afirmação, negação; o segundo compõe-se de três, afirmação, negação e negação da negação, isto é, uma nova afirmação. Esta terceira fase não é simplesmente a negação da anterior, mas envolve a superação e con­ servação de elementos das duas etapas preliminares. Conservam-se os elementos positivos, os direitos humanos fundamentais, e supera-se o elemento negativo, a falta de um juiz imparcial”65 . Esta, para o “sage Locke” – como lhe chamava Rousseau – não é, ad­ verte Bobbio, uma supressão-superação, como sucede em Hobbes, mas uma conservação-aperfeiçoamento do estado de natureza66, numa tenta­ tiva de recuperar a harmonia social, a convivência pacífica, onde coex­ istam liberdade, igualdade, direito à propriedade, solidariedade social. A sociabi­lidade imperfeita do estado de natureza é retomada e majorada na e à religião, datam de 1660, com Two Tracts on Government. A Epístola de Tolerantia, redigida por Locke em latim, em 1685, foi publicada (1689) anonimamente na Holanda (em Gouda); até na Holanda, os agentes de Carlos II persegui­ am Locke, que se disfarçou, em Amerterdão (com o nome de Dr. Van der Linden); apesar de perseguido, relacionou-se com Jean Leclerc, editor dum periódico literário (intitulado Biblioteca Universal e Histórica), contribuindo com vários artigos. Depois, em Inglat­ erra, foi traduzida por William Popple (1690), ao mesmo tempo traduzida e publicada em França, tendo ainda publicado, no mesmo ano, em inglês, A Second Letter Concerning Toleration e depois (Third) Letter on Toleration (polémicas com Jonas Proast).

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socie­dade civil; a instituição de leis, por intermédio do pacto estabelecido entre os indivíduos, garante e preserva a vida, liberdade e propriedade dos indivíduos, como vivifica a dignificação dos sujeitos e a criação de condições que possibilitem o desenvolvimento nos indivíduos de suas capacidades, originando a criação duma verdadeira sociedade civil – uma sociedade de cidadãos; dalgum modo, como se, na constituição da socie­ dade, se outorgasse ao indivíduo uma certa qualificação moral que o torna diferente e não meramente egoísta. Ao contrário de Hobbes, para quem o homem natural desaparece uma vez constituído o cidadão, para Locke o cidadão é um homem protegido. O dado mais significativo desta tese é que Locke se afasta de Hobbes ao apresentar o estado de natureza não como um âmbito de guerra perpé­ tua mas antes como uma esfera de convivência pacífica, onde existem a liberdade e a igualdade e no qual se verifica uma certa solidariedade social de carácter “natural”, que indicia a existência de uma sociabilidade imperfeita e que é aperfeiçoada a nível da sociedade civil. Charles Taylor expressa esta ideia quando, num escrito sobre socie­ dade civil, observa: “Locke utiliza, sem dúvida, o termo sociedade civil num sentido tradicional, isto é, relacionado com a sociedade política. Desta maneira prepara o caminho para a emergência, um século mais tarde, de uma nova e discrepante acepção da sociedade civil, ainda que de duas maneiras diferentes e inclusivamente antitéticas. Uma desenvolve-se a partir da noção embrionária de Locke da humanidade como uma comunidade pré-política. A concepção de Locke relativamente ao estado de natureza não tem o sentido devastador que tem em Hobbes. Este es­ tado carece de segurança e é esse o motivo pelo qual os homens se vêem obrigados a estabelecer o governo. Porém, por outro lado, é o necessário ideal para um grande progresso (que se chamou depois civilização), um desenvolvimento económico e a acumulação de propriedades. Esta ideia surgiu e desenvolveu-se durante o século XVIII dentro do âmbito de uma vida social e humana, na qual o valioso surge num reino pré-político ou político que posteriormente passa a ser protegido pela autoridade política, mas de nenhuma maneira submetido à sua direcção»67 . Portanto, Locke Michael Walzer, op. cit., pp. 387-388. John Locke, Epistola de tolerantia (1689), ed. bilingue (trad., introd. e notas de A. Waismann, pról. de R. Klibansky), Montreal, Mario Casalini, 1962. Cf. trad. port., Carta sobre a Tolerância (pref. de R. Klibansky, introd. de R. Polin), Lisboa, Edições 70. No texto latino, que seguimos, lê-se: “breviter respondeo, hoc mihi videri praecipuum verae 71 72

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não apresenta o estado de natureza como uma condição a-social de dis­ puta constante, mas como uma - ainda que incipiente - forma de estado social e solidário. Referindo-se ao sistema triádico de Locke, Norberto Bobbio escreve: “o processo histórico de acordo com Locke pode reconstruir-se da seguinte maneira: 1) estado de natureza, no qual nascem os direitos fundamentais do homem, como a liberdade, a igualdade e (…) a pro­priedade (tese); 2) estado de natureza real (que é equiparado com o estado despótico), onde os direitos naturais não são garantidos (ou antes, estão garantidos so­ mente ao déspota) (antítese); 3) estado civil em que o estado de natureza não é cancelado mas retomado (síntese)”68. Não só o estado de natureza persiste na sociedade civil, como todos os direitos que o indivíduo possui no primeiro serão garantidos na sociedade civil. Assim, entre sociedade e natureza não existe relação de oposição, mas de progressão: a sociedade civil não o oposto, mas é melhor que o estado de natureza; se a natureza é o lugar onde a propriedade se inventa – o que torna o seu princípio incontestável –, a sociedade civil é o lugar onde ela se conserva; impotente na natureza, onde ela apenas existe, é imperiosa na sociedade civil, onde se torna real pelo direito positivo. Locke, ao atribuir o fundamento legítimo do poder ao consentimento do povo e não à força, posiciona-se claramente contra o absolutismo a de­ lineia uma forma de poder liberal. A origem contratual do poder legí­timo, a primazia do legislativo, o princípio da divisão dos poderes, o princípio da soberania popular e a necessidade de uma constituição ou lei funda­ mental, fazem de Locke um dos pioneiros da democracia moderna. Estas razões são de um grande alcance: ao invés de anteriores pensa­ dores jusnaturalistas, Locke não apresenta o estado pré-estatal como um estado a-social; trata-se duma – ainda que incipiente – forma de estado social e solidário, que se caracteriza pelo predomínio de relações sociais reguladas por leis naturais. É Bobbio que afirma: “Tudo o que Locke encontra no estado de natureza, isto é, antes do Estado – as instituições familiares, as relações de trabalho, a instituição da propriedade, a circula­ ção de bens, o comércio, etc. – mostra que, ainda que ele chame socie­tas civilis ao Estado, a imagem que tem da fase pré-estatal da humanidade é bastante mais antecipadora da bürgerliche Gesellschaft [sociedade civil]

ecclesiae criterium”. ET, 3/89 (a primeira referência reporta-se à ed. bilingue, a segunda à trad. portuguesa).  73 ET, 10/92.

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de Hegel que continuadora do status naturae de Hobbes-Espinosa”69. Apesar de Locke ter rompido com a escolástica e referenciado a condição pré-estatal como uma situação de incipiente sociabilidade, não chegou a erigir uma teoria da sociedade civil desde os seus próprios princípios estruturais, como mais tarde fará Ferguson; porém, dotou de fundo e con­ teúdo moderno, conceitos e formas tradicionais, delineando uma imagem plausível dos homens como seres naturalmente sociáveis, isto é, de “ego­ istas sociáveis”, cuja “sociabilidade insociável” ou “imperfeita” outorga à sociedade civil uma nova conotação. A significação distinta de sociedade civil estriba, pois, nas suas premissas liberais: estabelecendo os homens vínculos sociais desde que se encontrem na condição natural, Locke é, pois, mais o predecessor da “sociedade civil” de Hegel que o continuador da guerra de todos contra todos própria do estado de natureza de Hobbes. V. Tolerância: a política razoável da sociedade civil A Epístola sobre a tolerância70 prolonga e transforma a reflexão já feita vinte anos antes com o Ensaio sobre a tolerância (1667), que rev­ elava já uma ruptura com as suas posições em 1660; se, então, Locke sustentava que os súbditos deviam obediência, mesmo em matéria de religião, no Ensaio de 1667, afirma os limites do poder do monarca, na medida em que este não deveria interferir nas questões individuais; assim, um indivíduo pode seguir as suas crenças e agir em consonância, mesmo que sejam contrárias às leis do monarca. Segundo Walzer, “a sociedade civil, tal e como a conhecemos hoje, teve a sua origem nas lutas pela liberdade religiosa”; por outro lado, “o es­ tabelecimento desta [tolerância] acabaria com qualquer motivo de queixa e com os tumultos baseados em problemas de consciência”; com efeito, “não é difícil imaginarmos queixas e tumultos carentes de funda­mento, Há que ter em conta que Locke foi o homem de confiança de um dos mais importantes políticos da Inglaterra do século XVII, Anthony A.C. Shaftesbury, defensor da tolerância religiosa, das liberdades civis individuais e do poder legislativo do parlamento, porta-voz da oposição e fundador da partido whig. Shaftesbury era ainda um destacado proprietário de terras e comerciante com as colónias, que concebia a laboriosidade agrícola e a liber­ dade de comércio como factores de bem-estar que requeriam a redução da regulação dos poderes públicos sobre a actividade económica. Não terá sido dispiciendo o trabalho conjunto, redigindo informações, discursos, leis submetidas a deliberação parlamentar,

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mas Locke acreditava (e em larga medida tinha razão) que a tolarância limaria muitas asperezas no caso do conflito religioso. A socie­dade civil não é mais que esse lugar em que os riscos não são tão altos, ao menos em princípio, a coacção só se usa para manter a paz e em cujo seio todas as associações são iguais perante a lei”71. Para além da resis­tên­cia passiva, justifica-se a desobediência do súbditos, pois a força jamais ligará uma crença a uma religião a que não se adere, do mesmo modo que divisa os perigos vários provenientes duma uniformidade religiosa que seja imposta pela força. Assim, a Epístola sobre a tolerância não só retoma como amplifica as conclusões do Ensaio, definindo a tolerância como “o principal critério da verdadeira Igreja”72; mas vai mais longe: a tolerância, conforme ao Evan­gelho e à verdadeira razão da humanidade, postula uma verdadeira separação entre Igreja e Estado. Em consequência, o problema da sal­ vação de cada um não entra absolutamente no conjunto das competências transferidas pelos homens à sociedade civil; neste domínio, os humanos deverão agir segundo a sua consciência e obedecer antes a Deus, e so­ mente em seguida às leis: o elo directo entre Deus e o homem está fora da jurisdição da sociedade civil, fora da influência de qualquer governo; neste sentido, há uma convergência entre a Epístola com os Dois Tratados sobre o Governo. Na Epístola, Locke retoma a lógica dos Dois Tratados, articulando a análise acerca da natureza da autoridade política, os seus meios e os seus fins, com uma reflexão sobre a natureza da crença religiosa, em que esta é vista, na sua essência, como uma questão do foro da consciência individual. A sociedade civil e a sociedade religiosa são diametralmente cuidando da correspondência do político Shaftesbury, assistindo às suas intervenções e tornando-se o tutor do seu neto.  74 ET, 16/94.  75 ET, 30/99-100.  76 Cf. Jean-Fabien Spitz,”Introduction”, in John Locke, Lettre sur la Tolérance et Autres Textes, tr. de Jean le Clerc, intr., bibl. cronol. e notas por Jean-Fabien Spitz, Paris, Flammarion, 1992, pp. 11-14. Cf. Patrick Thierry, La Tolérance: Société Démocratique, Opinions, Vices et Vertus, Paris, PUF, 1997. Cf. também John Locke, A “Letter concerning Toleration” in focus, ed. de John Horton e Susan Mendus Londres, Routledge, 1991, que inclui os estudos de J.W. Gough, Maurice Cranston, Jeremy Waldron, P.J. Kelly, Susan Mendus e Peter Nicholson.  77 Jean-Fabien Spitz, “Introduction”, op. cit., p. 12.

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distintas: se “o Estado é uma sociedade de homens constituída unicamente para conservar e promover os seus bens civis”, referindo-se “à vida, liber­ dade, saúde e integridade do corpo e à posse dos bens externos, como as terras, dinheiro, os móveis, etc.”73, a igreja é “uma sociedade livre de homens que se reúnem voluntariamente para adorar publicamente a Deus da maneira que julguem ser agradável à divindade para a salvação de suas almas”, caracterizando-se por ser “uma sociedade livre e voluntária”74; é, pois, “absolutamente distinta e separada do Estado e dos assuntos civis” e “os respectivos limites são fixos e imutáveis [fixi et immobiles sunt utrique limites]”; assim, “quem confunde duas sociedades tão diferentes pela sua origem, pelo seu fim, pelo seu objecto, mistura as coisas mais diametralmente opostas, o céu e a terra”75. A Epístola, em cada passo percorrido, perfaz um novo lance no afã de articulação entre os dois escritos, num crescendo lógico e harmonioso, de modo que os Dois Tratados requerem a Epístola como remate con­gruente, e a Epístola postula o trajecto dos Dois Tratados como o reper­tório das premissas filosóficas em que se funda. A acção do governo é sem efeito sobre a crença religiosa: esta não é resultado da vontade de um qualquer indivíduo e não pode ser delegada. É mister advertir que o poder do mag­ istrado repouse sobre a força e não na persuasão do espírito - autêntico apanágio da verdadeira religião; podem as leis forçar os huma­nos a aderir ou a mudar de religião, esta não poderá, contudo, ser a religião imposta ou resultar do mero factor de aderir-se à religião que preva­lece no país em que se nasce; em suma, não é o factor do acaso que aqui importa. Note-se que a Epístola sobre a Tolerância não se apresenta como um manifesto filosófico acerca da liberdade de pensamento, menos ainda acer­ Jean-Fabien Spitz, “Introduction”, op. cit., p. 15 Works of John Locke, VI, Londres, 1823, p. 62.  80 ET, 12/92-93.  81 Jean-Fabien Spitz, “Introduction”, op. cit., p. 60.  82 ET, 44/105.  83 Cf. José I. Solar Cayón, op. cit., 212.  84 ET, 54-56/108-109.  85 ET, 78/116.  86 Voltaire, Traité sur la Tolérance (1763), Paris, Gallimard, 1961, p. 580.  87 ET, 94/122.  88 Jean-Pierre Cléro, “Tolérance et Politique chez John Locke”, em Cahiers de Philo­ sophie Politique et Juridique [“La pensée libérale de John Locke”], Université de Caen, nº 5, 1984, pp. 35-36.  78  79

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ca dos direitos humanos; nela não encontramos nem uma funda­mentação filosófica do direito universal à liberdade religiosa, nem uma justificação alargada da liberdade de pensamento como um dos direitos fundamentais da pessoa humana76. Com efeito, Locke nega explicita­mente que, numa sociedade civil, a tolerância possa ser acordada quer aos ateus quer aos cristãos. Além disso, Locke não parte dos direitos impres­críptíveis dos in­ divíduos para erigir em torno deles uma barreira filosófica intransponível à autoridade política, mas precisamente de um movimento contrário: parte de uma definição funcional da autoridade política para mostrar que dada a sua missão e os seus meios, ela está condenada ao fracasso quando tenta impor aos indivíduos uma forma particular de crença e de culto”77. Locke não parte da liberdade de consciência como fundamento da sua teoria religiosa (como o fez Pierre Bayle, para quem a liberdade de consciência é o fundamento de toda a teoria da liberdade), mas da “defi­ nição de autoridade [política], para concluir que o constrangimento das consciências não pode ser objecto da sua acção”78; a função que compete à autoridade política refere-se à salvaguarda dos interesses temporais dos indivíduos: a vida, a liberdade e a propriedade dos bens. No início da Segunda Epístola sobre a Tolerância (1690), Locke propõe uma definição elucidativa da tolerância, que se baseia na impos­ sibilidade material de constranger as consciências pela força: “a força é imprópria para converter qualquer homem a uma religião; a tolerância não é mais do que a supressão desta força”79. Deste modo, o apelo à tolerân­ cia repousa na constatação de um facto: é impossível modificar a crença íntima de um indivíduo, fazendo apelo aos meios de coerção exterior de que dispõe a autoridade política; todavia, embora impossibilitado de for­ çar as consciências a acreditar naquilo em que sinceramente não acredi­ tam, poderia ela constranger os indivíduos a conformar-se exteriormente com o culto estabelecido; tal procedimento seria uma tarefa condenada

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ao fracasso, porque contraditória e contraproducente, uma vez que não só não leva à salvação das almas como constitui ainda para isso um obs­ táculo: “seja o que for que professeis apenas com os lábios, seja qual for o culto exterior que pratiqueis, se não estiverdes persuadidos, do fundo do coração, de que essa é a verdade e que agrada a Deus, isso não só não contribui para a salvação, mas, pelo contrário, constitui um obstáculo”80. Assume de novo o argumento liberal: não compete à autoridade polí­ tica regulamentar a conduta dos indivíduos em actos que não afectam os interesses temporais dos outros; tal como não se ordena aos homens como cuidarem da saúde ou de suas posses, pois não se lhes prescrevem os meios para tal, não se compreenderia porque poderia impor os meios da sua salvação, quando as vias que eles mesmos escolhem em nada lesam os direitos temporais de terceiros. A questão da condenação ou salvação eterna é uma questão estritamente individual; não afectando em nada as opções religiosas de cada um os interesses temporais dos outros, não há lugar à regulamentação das condutas dos crentes81. Mesmo que se suponha ser a religião do magistrado a única que per­mite obter a salvação, aí também haveria que salvaguardar as con­ vicções interiores, incompatível com qualquer acção coerciva. Locke sustém firmemente: “mas, o que é fulcral e põe fim à discussão, ainda que a opinião do magistrado seja mais importante e o caminho que me manda seguir seja o verdadeiro caminho evangélico, se eu, no fundo do coração, não estiver persuadido, não será para mim um caminho salutar”82. Das três áreas que constituem o âmbito de competência próprio da sociedade eclesiástica – credenda, cultus religiosus e moralia – só nas duas últimas é possível o conflito, pois desenvolvem-se no mundo exterior das condu­ tas”83 . É sobre­tudo no campo do que Locke denomina opiniões práticas e das acções morais que delas derivam, que os maiores problemas poderão surgir; estas condutas morais pertencem quer à jurisdição do magistrado quer da igreja. E tal como nos Dois Tratados, também em matéria de liberdade reli­ giosa o dever de resistência é justificado, quando o magistrado não res­ peita os limites das suas atribuições; essa resistência não é em si uma re­ belião contra a sociedade civil, mas uma reacção legítima, para preservar

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a liberdade inalienável dos indivíduos frente à rebelião do magistrado que extravasou o exercício do seu múnus político. Neste contexto, a análise de Locke sobre a tolerância constitui uma defesa filosófica, cujos pressupos­ tos os Dois Tratados sobre o Governo clari­ficam, que contraria o espírito dominante dos regimes que se sucediam; mais ainda: os textos sobre a tolerância (em especial o Ensaio e a Epís­tola), atacam de modo muito argumentado a Igreja de Inglaterra e a sua interferência nas questões do Estado e a pressão uniformista que exercia. Daqui decorre a separação da Igreja do Estado; o que as leis duma sociedade civil autorizam não pode ser interdito por uma Igreja; o que as leis da sociedade civil autorizam na vida ordinária das gentes não lhes deve ser interdito na prática religiosa84 . Não pode aí haver, além disso, nenhuma preeminência duma Igreja sobre uma outra; é portanto igual­ mente vão querer impor uma religião. Por outro lado, “o magistrado não deve tolerar nenhum dogma oposto e contrário à sociedade humana ou aos bons costumes necessários à conservação da sociedade civil”85. De todos estes argumentos, Locke deduz a necessidade da tolerância, e vê na intolerância, que ele combate decididamente, a causa de todas as guerras. No século XVIII, Voltaire presta ainda homenagem, no seu Tratado da Tolerância, ao “sábio Locke”, disso tornando-se eco: “Essa tolerância nunca excitou guerra civil; a intolerância cobriu a terra de massacres” 86. Ora, ao contrário, é a diversidade das crenças e das igrejas que garante a paz: “Não foi a diversidade das opiniões, que não se pode evitar, mas a recusa da tolerância, que poderia ter sido concedida aos que defendem diversas opiniões, que originou e produziu a maior parte das lutas e guer­ ras de religião no mundo cristão”87 . Neste contexto, a coerência dos propósitos entre a Epístola e os Dois Tratados sobre o Governo é portanto total; trata-se de circunscrever o ex­ ercício do poder político e de fazer do indivíduo o garante da legitimi­dade da sociedade civil. A tolerância vista como noção moral fundamental não tem apenas o sentido restritivo de “não proibir”, mas adquire um sentido verdadeiramente positivo; é com uma força similar à de Kant que é afir­ mado o valor absoluto da pessoa: “cada homem tem uma proprie­dade em

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sua própria pessoa”; a tolerância é antes de mais um dever prestado à sua própria pessoa, na medida em que ninguém tem o direito em alienar a sua própria liberdade; esse dever implica o mesmo reconhe­cimento dum destino individual para a pessoa do outro. A reflexão sobre a tolerância culmina, neste sentido, a actividade crítica de Locke: é o ponto arquimé­ dico do confronto de juízos e valores, em número indeter­minado, muitas vezes contraditórios entre si, os quais importa avaliar sobre as possibili­ dades de conciliação na sua expressão prática88. A defesa de Locke em favor da liberdade de consciência participa de um discurso, ainda actual, que, contra a perseguição (religiosa, política), reivindica, graças à lei natural, a liberdade e a igualdade total de cada um perante o poder; é esta defesa que associou e continua a associar o nome de Locke à liberdade e à resistência a todas as tiranias, tanto políticas como religiosas, e que caracteriza alguns dos fundamentos em que as­ senta a cosmovisão e a matriz democrática que singulariza as sociedades civis ocidentais. Acílio da Silva Estanqueiro Rocha (Instituto de Letras e Ciências Humanas Universidade do Minho)

A SOCIEDADE CIVIL EM ROUSSEAU O conceito de sociedade civil possui um conteúdo essencialmente polémico. Com efeito, como seu pano de fundo, encontra-se a contenda entre dois pólos intimamente relacionados: o pólo da sociedade civil e dos cidadãos que lhe pertencem como membros, por um lado; o pólo do Estado e do poder político presente nessa mesma sociedade, por outro. Este carácter contencioso da relação entre sociedade civil e Estado, entre­ cidadãos e poder político, transparece numa dupla perspectiva. Por um lado, considerando a relação sob a perspectiva da referência da sociedade civil ao Estado, a contenda emerge na exigência democrática da partici­pação da sociedade civil na determinação da estrutura do Estado e das magistraturas que o compõem, ou seja, na exigência de que o poder político, longe de surgir como invulnerável e absoluto, seja permeável aos movimentos e às correntes que constituem a sociedade civil na multi­ plicidade que lhe é intrínseca. Por outro lado, considerando esta mesma relação sob a perspectiva da referência do Estado à sociedade civil, a contenda manifesta-se na exigência liberal da não intervenção do Estado no âmbito desta, ou seja, na exigência de que a sociedade civil surja como um espaço de liberdade, como uma esfera diante de cuja consistência o Estado, enquanto expressão do poder político, não pode deixar de con­ servar uma prudente neutralidade. O conceito de sociedade civil refere-se assim implicitamente a dois princípios políticos fundamentais. Por um lado, à democracia, enquanto princípio da determinação do Estado pela sociedade civil. Por outro lado, ao liberalismo, enquanto princípio da não determinação da sociedade civil pelo Estado. E dir-se-ia que, à partida, democracia e liberalismo se apro­ fundam concomitantemente, de tal modo que ambos não são senão dois aspectos de um mesmo e único processo. Quanto mais o Estado for deter­ minado pela sociedade civil, menos esta o será por aquele. A cidadãos

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cada vez mais intervenientes na esfera política própria do Estado, na sua organização e nas magistraturas que o compõem, parece corresponder uma sociedade civil cada vez mais auto-suficiente e activa, cada vez mais rica, plural e complexa. A um Estado cada vez mais neutro e tolerante, cada vez mais aberto a uma sociedade civil em si mesma plural e multi­cultural, parecem corresponder cidadãos cada vez mais criticamente eman­cipados e politicamente participantes. Por outras palavras, o projecto democrático de uma cultura republicana da cidadania, assente na forma­ção de um tipo humano caracterizado pela sua emancipação crítica, pela sua responsabilização e pelo seu envolvimento deliberativo nos processos de decisão política, parece encontrar o seu necessário complemento no projecto liberal de uma cultura da tolerância, baseado num modelo de homem aberto à coabitação com a diferença, e adepto da neutralidade do poder político face a esta mesma diferença. Democracia e liberalismo surgem assim, à partida, como as duas faces de uma mesma cabeça de Jano. É da concepção de uma essencial correspondência entre democracia e liberalismo que se alimenta aquilo a que poderíamos chamar a doutrina política hoje dominante nas sociedades ocidentais – o liberalismo político. Contudo, é esta mesma correspondência que hoje não pode deixar de ser questionada, sobretudo tendo em conta a presente situação histórica das sociedades europeia e norte-americana 1. São hoje evidentes as dificul­ dades das sociedades ocidentais na compatibilização entre uma cultura democrática da cidadania e uma cultura liberal da neutralidade e da tole­ rância. O liberalismo político forjou um tipo de homem que, longe de ser politicamente activo e participante, encontra o fundamento da sua liber­dade privada numa pura e simples desistência de participação na vida pública. E uma tal desistência, longe de ser um fenómeno transitório, acidental e, nessa medida, negligenciável, surge como um dado essencial na identidade do homem liberal. Tal homem é, numa palavra, determinado na sua essência como politicamente inimputável. Fechando-se na intran­sigência da afirmação dos seus princípios privados, a sua liberdade assenta em transferir para uma instância exterior a si não apenas a responsa­bilidade de decisões públicas, mas sobretudo a culpabilidade e a No caso dos Estados Unidos da América, para a caracterização da dificuldade de harmonizar a neutralidade liberal com uma cultura cívica democrática, veja-se, por exemplo: Michael SANDEL, Democracy’s Discontent. America in search of a public Philosophy, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1996. 2 Rafael del ÁGUILA, La senda del mal. Política y razón de Estado, Madrid, Taurus, 1

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transi­gência que tal responsabilidade arrasta consigo. Os decisores políticos liberais são assim as vítimas expiatórias exigíveis pela irresponsabilidade daqueles a que Rafael del Águila, numa expressão feliz, chamou “cida­dãos impecáveis” 2. É a sua absoluta responsabilidade – tal como a de Édipo numa Tebas dizimada pela peste, segundo a análise de René Girard 3 – que assegura a ausência de responsabilização pública e, com ela, o carácter imaculado da liberdade e felicidade privadas de cada um dos seus concidadãos. A liberdade do homem liberal consiste cada vez mais mani­festamente na liberdade de não participar, na liberdade de perma­ necer incólume e acrítico na afirmação da sua vida, dos seus valores e da sua mundividência privados, na liberdade de não transigir com os custos ineren­tes à exigência de deliberação e de escolha políticas. Assim, se o presente homem liberal se afasta cada vez mais do paradigma de homem democrático, na sua virtude cívica e republicana, na sua participação da esfera política, a articulação entre democracia e liberalismo, o pressuposto fundamental do pensamento político hoje dominante no Ocidente, não pode deixar de ser repensado. E é justamente para repensar esta arti­ culação que o pensamento político de Jean-Jacques Rousseau, sobretudo nas perplexidades que suscita, aparece como um guia privilegiado. Na aurora do projecto revolucionário do iluminismo, o pensamento político de Rousseau é sobretudo expressão daquilo a que poderíamos chamar, de acordo com o enquadramento esboçado, o princípio da demo­ cracia. Por outras palavras, o pensamento político de Rousseau manifesta, antes de mais, a exigência da cidadania, de uma cultura da virtude cívica e republicana. No seu Discurso sobre as ciências e as artes, de 1750, é justamente esta virtude que aparece como o fim em referência ao qual o mérito das ciências, das artes e do progresso humano pode ser julgado. A virtude é aqui a «ciência sublime das almas simples», a «verdadeira filosofia» 4. Trata-se então, por meio dessa virtude, de exigir que os cida­dãos que compõem a sociedade civil, assumindo o poder político, deter­minem o Estado enquanto expressão desse mesmo poder. Melhor dizendo: trata-se de exigir que a sociedade civil, constituída por um povo 2000, p. 11 ss. 3 Cf. René GIRARD, La violence et le sacré, Paris, Grasset, 1996, p. 127. 4 Jean-Jacques ROUSSEAU, Discours sur les sciences et les arts, Oeuvres complètes, II, Paris, Seuil, 1971, p. 68. 5 Cf. ARISTÓTELES, Política, I, 1253a7

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composto por cidadãos virtuosos, se assuma ela mesma como o próprio Estado. E uma tal exigência tem lugar no pensamento político de Rousseau sobre­tudo através de uma crítica radical à filosofia política de Thomas Hobbes. Esta incide em dois aspectos fundamentais, cuja análise se torna impres­cindível para a tematização do significado da sociedade civil em Rous­seau. Em primeiro lugar, Rousseau contesta a perspectiva hobbesiana da natureza humana, o conceito hobbesiano de estado natural, contrapondo-lhe um outro que permita uma nova abordagem da relação entre estado natural e estado civil. Em segundo lugar, no seguimento desta nova abor­dagem, Rousseau rejeita a configuração hobbesiana do estado civil, contestando a sua defesa da monarquia absoluta como o melhor modo desta configuração. Interessa então abordar estes dois aspectos da crítica de Rousseau à filosofia política de Hobbes, vendo de que modo se con­figura a partir dela o esboço de uma sociedade civil democrática. No que toca à concepção do estado natural do homem, dir-se-ia que Rousseau pretende ser mais hobbesiano do que o próprio Hobbes. Se a filosofia política clássica, particularmente a filosofia política aristotélica, determinara o homem como um “animal político” 5, ou seja, se Aristóteles determinara a politicidade como natural no homem, o pensamento político moderno – e particularmente o pensamento político hobbesiano – inau­gurase com a contestação a esta determinação aristotélica da natureza humana. No seu De Cive, Hobbes contrapõe-se explicitamente à caracte­rização do homem por Aristóteles: «A maioria dos que anteriormente escreveram sobre as questões públicas assumem ou procuram provar ou simplesmente afir­mam que o homem é um animal nascido para a socie­dade; na frase grega: zoon politikon. […] Este axioma, embora muito geralmente aceite, é, no entanto, falso; o erro procede de uma visão super­ficial da natureza huma­na» 6. Na sua referência a um estado natural, Rousseau herda a caracte­rização da natureza humana por Hobbes como essencialmente pré-política e pré-social. E é com base na herança desta caracterização hobbesiana do homem que Rousseau contesta a análise por Hobbes da sua natureza, assim como o conceito de estado natural que lhe serve de fundamento. 6 Thomas HOBBES, De Cive, I, 1 (On the Citizen, trad. Richard Tuck, Cambridge, University Press, 1998, pp. 21-22). 7 Thomas HOBBES, Leviathan, Cap. XIV (ed. Richard Tuck, Cambridge, Cambridge University Press, 1996, p. 91).

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Para Hobbes, contestar a determinação aristotélica da natureza humana como política, significava recusar qualquer espontaneidade natural à harmonização entre os desejos e interesses dos homens. Dizer que os homens não eram por natureza políticos, correspondia, para Hobbes, a afirmar que a política, a fonte desta mesma harmonização, era uma cons­ trução artificial, o resultado calculado de uma razão livre que, deli­berando sobre as suas várias possibilidades, escolhia por fim o bem possí­vel ou, o que é o mesmo, o mal menor. Consequentemente, correspondia a afir­mar que os homens estavam por natureza num permanente conflito, num bellum omnium contra omnes, de acordo com a conhecida formu­lação do Leviathan7, carecendo de um poder exterior e imenso, cuja existência, apesar de todos os inconvenientes inerentes à manifestação de um poder com este carácter absoluto, tinha a vantagem inestimável de, através do terror, conseguir harmonizar as vontades de todos os homens 8. Para Rousseau, pelo contrário, recusar a natureza política do homem, implica, antes de mais, contestar a naturalidade da sua existência social. Implica ver no homem natural um ente solitário, cujas relações com os seus semelhantes, longe de serem naturais, não são por natureza senão aciden­tais e esporádicas. Segundo Rousseau, se Hobbes tivesse levado a sério a sua contestação à determinação aristotélica do homem como zoon politikon, não lhe teria sido possível assinalar no estado natural da huma­nidade o conflito e a guerra, assim como a miséria que lhes é intrín­seca. A caracterização do estado natural como um estado de guerra e de conflito não deriva senão, segundo Rousseau, de uma pura e simples contradição. E a contradição hobbesiana assenta no facto de Hobbes se referir ao homem natural ou pré-social marcando-o com uma característica que requer necessariamente a socialização. Assim, por um lado, Hobbes recusa, com a determinação aristotélica da natureza humana, o seu carác­ter social ou político. Mas, por outro lado, caracteriza esta mesma natu­reza através do conflito e da guerra, ou seja, através de uma característica que não dispensa, como sua condição de possibilidade, o carácter social ou político cuja naturalidade pretendia justamente refutar. Idem, Cap. XVII, p. 120. Jean-Jacques ROUSSEAU, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, Ouevres complètes, II, p. 223. 10 Idem, p. 225. 8 9

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É sobretudo em 1754, no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, que Rousseau elabora o seu esboço do homem no estado natural. E é justamente neste texto que se refere a Hobbes explicitamente, criticando-o segundo os seus próprios princípios: «Raciocinando com base nos princípios que estabelece, esse autor [Hobbes] devia dizer que, sendo o estado de natureza aquele onde o cuidado da nossa conservação é o menos prejudicial à conservação do outro, esse estado seria, por consequência, o mais próprio à paz, e o mais conveniente ao género humano» 9. Essencialmente contraposto ao homem belicoso de Hobbes, o homem natural de Rousseau não se interessa senão por si. É-lhe inerente um sentimento de repúdio pelo sofrimento, do qual retira a máxima de tentar satisfazer o que a felicidade própria lhe exige com o menor mal possível para todos os entes capazes de sofrimento: «Faz o teu bem com o menor mal possível para o outro» 10. Mas, apesar de tal máxima, apesar de a piedade ser «um sentimento natural, mode­ rando em cada indivíduo a actividade do amor de si-mesmo» 11, um tal homem não é nem amigo nem inimigo dos seus semelhantes. A sua exis­ tência solitária nas vastas florestas, de onde recolhe os frutos da terra, e os contactos meramente ocasionais com os outros homens, não lhe permi­ tem sequer o desenvolvimento de uma linguagem que possibilite uma comu­nicação complexa, capaz de prover o conhecimento acumulado, a previsão e a prudência, assim como o progresso científico. Um tal homem, «errando nas florestas, sem indústria, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e sem ligações, sem qualquer necessidade dos seus semelhantes, assim como sem qualquer desejo de os prejudicar, talvez mesmo sem reconhecer individualmente nenhum deles, o homem selvagem, sujeito a poucas paixões, e bastando-se a si mesmo» 12, caracteriza-se por conservar a inocência e o egoísmo inócuo de uma primeira infância. Especialmente relevante é, neste contexto, o tratamento dado por Rousseau ao tema da linguagem. Esta resume-se, neste estado natural do homem, ao «grito da natureza» 13, arrancado «por uma espécie de inIdem, p. 224. Idem, p. 226. 13 Idem, p. 221. 14 Idem, p. 221. 15 Leo STRAUSS, Natural Right and History, Chicago, Chicago University Press, 1965, p. 271. 11

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stinto nas ocasiões urgentes, para implorar socorro nos grandes perigos ou consolo nos males violentos» 14. E se a linguagem no estado natural se restringe a tais momentos excepcionais, tal quer dizer que ela é, no quotidiano, inexistente. Por outras palavras, se o homem natural não é o “animal político” aristotélico, tal quer dizer para Rousseau, não que ele seja por natureza o inimigo de qualquer outro homem, mas que ele não pode ser determinado por relações de comunicação com os seus seme­ lhantes, ou seja, que ele não pode ser caracterizado enquanto homem pela posse da língua, da linguagem ou da razão que a esta mesma comunicação está subjacente. Por outras palavras ainda, para Rousseau, recusar o homem como zoon politikon implica igualmente rejeitar a mais fundamental determinação aristotélica do homem como zoon logon ekhon. E esta recusa de especificar aristotelicamente o homem como vivente que tem o lógos ou, segundo a expressão latina, como animal rationale tem duas consequências fundamentais – uma explícita, outra implícita –, conse­ quências essas que constituem os alicerces da consideração por Rousseau da sociedade civil. Por um lado, tal como Rousseau assume explicitamente, na medida em que não é a razão ou a linguagem que pode determinar a natureza do homem enquanto tal, é apenas a sua não determinação, a sua existência livre de quaisquer vínculos, que o pode especificar. O homem é então, para Rousseau, o ente que surge, na sua essência, como não determinado por qualquer lei heteronomicamente imposta e, nessa medida, como essen­ cialmente livre. Ele é, no seu estado natural e, consequentemente, na sua natureza, o depositário de uma essencial liberdade, de uma liber­dade caracterizada negativamente como uma não determinação pela necessidade natural. Por outro lado, na medida em que o homem não é especificado como falante ou racional, Rousseau admite implicitamente que este não é propriamente humano. No seu estado natural, o homem é antes, para utilizar aliás uma formulação de Leo Strauss, um subhumano 15. Noutros termos, mais esclarecedores, dir-se-ia que não há aqui uma substância humana, um núcleo de humanidade, um critério fixo capaz de separar o que é humano do que o não é. O homem é então essencialmente o que 16 Cf. Jean-Jacques ROUSSEAU, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, Oeuvres complètes II, p. 218. 17 Idem, p.218. 18 Cf. Carl SCHMITT, Verfassungslehre, Berlim, Duncker & Humblot, 1993,

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dele for feito. E a sua disponibilidade para a transformação, a sua vulnerabilidade a uma manipulação de carácter técnico, constitui a sua essencial condição. É por esta razão que, para Rousseau, a liberdade natural do homem, a não determinação deste por qualquer necessidade natural, encontra a sua mais imediata manifestação fenoménica numa essencial perfectibilidade deste mesmo homem 16. E ser perfectível é então não apenas ter «a faculdade de se aperfeiçoar» 17, tal como explicitamente afirma Rousseau, mas sobre­tudo não ter quaisquer limites na mudança que corresponde ao aper­fei­çoamento, ou seja, não ser por natureza senão totalmente transformável. É com base na sua caracterização do homem no estado natural que Rousseau contesta a Hobbes não apenas a defesa da monarquia absoluta como o melhor modo de configuração do estado civil, mas sobretudo – e é o que aqui importa – o fundamento desta mesma defesa. Uma tal defesa assenta em Hobbes naquilo a que poderíamos chamar, de acordo com uma formulação de Carl Schmitt 18, o princípio da representação. Segundo tal princípio, uma colectividade, uma multidão não existe como sujeito, na unidade de vontade que ao sujeito é intrínseca, senão através da sua representação por um outro sujeito – o príncipe ou, mais genericamente, o governo – cuja unidade o constitui como seu represen­tante. A representação distingue-se então essencialmente de uma mera delegação através do seu carácter absoluto. Na delegação, aquele que é representado surge imediatamente como um sujeito, o qual delega num outro sujeito – o representante enquanto comissário ou delegado – a sua representação. A delegação é então essencialmente limitada, na medida em que surge circunscrita pelos limites da comissão do delegado. Na representação, pelo contrário, aquele que é representado não existe como unidade, ou seja, como sujeito de vontade, senão no e através do sujeito representante. E é nesta medida que este surge como soberano. Deste modo, ao contrário da delegação, a representação soberana é essencial­mente ilimitada ou absoluta, não porque corresponda a um exercício despótico ou violento do poder, mas porque não é senão pela repre­sentação que o representado se pp. 204 ss. 19 Para a caracterização do tema da representação política, ver: Carl SCHMITT, Verfassungslehre, Berlim, Duncker & Humblot, 1993; Römischer Katholizismus und politische Form, Estugarda, Klett-Cotta, 1984 (Catolicismo Romano e Forma Política, trad. Alexandre Franco de Sá, Lisboa, Hugin, 1998); Gerhard LEIBHOLZ, Das Wesen der Repräsentation und der Gestaltwandel der Demokratie im 20. Jahrhundert, Berlim,

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constitui como sujeito 19. Na represen­tação, o príncipe ou o governo são formalmente anteriores aos seus governados, na medida em que é o poder constituinte da sua representação que transforma a multidão representada num sujeito uno detentor de uma vontade. Torna-se então clara a defesa hobbesiana da monarquia absoluta como o melhor modo de configurar o estado civil. Se é na vontade do repre­ sentante que a multidão representada encontra a sua própria vontade, se é a unidade do representante que constitui a multidão representada como uma unidade, então o melhor modo de configurar o estado civil é aquele em que o representante, mais do que ter a representação como uma sua característica acidental ou uma sua actividade entre outras, é na sua essên­ cia pessoal identificado como representante. A melhor configuração do estado civil é então aquela onde surge uma pura “pessoa pública”, uma pessoa cuja essência consiste em representar e, nessa medida, em cons­ tituir, uma pessoa cujo interesse privado se confunde com o interesse público do corpo político que constitui. Assim, segundo Hobbes, se só na monarquia «o interesse pessoal é o mesmo que o interesse público» 20, a melhor configuração do estado civil é aquela em que o princípio da representação permite a uma única pessoa declarar, como Luís XIV de França, «o Estado sou eu», constituindo pela unidade da sua vontade a vontade da multidão, que através dela se torna unidade, ou seja, unindo o seu interesse pessoal com o interesse do Estado por ele constituído. É diante do princípio hobbesiano da representação que a crítica de Rousseau se ergue como a tentativa de encontrar uma configuração alternativa para o estado civil do homem. E esta tentativa alimenta-se do esboço do estado natural do homem traçado por Rousseau, ou seja, das duas consequências – quer a explícita, quer a implícita – que, relativamente à natureza humana, dele se podem retirar. Na medida em que, para Rousseau, o homem surge como essen­ Duncker & Humblot, 1966; Giuseppe DUSO, La rappresentanza: Un problema di filosofia politica, Milão, Franco Angeli, 1988. 20 Cf. Thomas HOBBES, Leviathan, Cap. XIX, p.131. 21 Jean-Jacques ROUSSEAU, Du contrat social, I, 1, Ouevres comlètes, II, p. 518. 22 Cf. nota 18. 23 Jean-Jacques ROUSSEAU, Du contrat social, I, 6, Ouevres complètes, pp. 522-523. 24 Cf. Jean-Jacques ROUSSEAU, Du contrat social, III, 1, idem, p. 539.

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cialmente livre, toda a actividade política não pode deixar de se exercer em função desta mesma liberdade. A configuração hobbesiana do estado civil através do princípio da representação, a qual exigia a deposição da soberania nas mãos de um único homem instituído como o representante de todos os outros, é então explicitamente recusada como um atentado à essencial liberdade do homem, como o furto de uma liberdade inalienável. E uma história política que consistisse na história do emprego do princípio da representação seria, para Rousseau, uma história da alienação da liber­dade humana. É esta história que justifica a conhecida afirmação amar­gurada que inicia as reflexões do Contrato Social: «O homem nasceu livre, e por todo o lado está a ferros» 21. A incompatibilidade entre o princípio da representação e a liberdade humana exige assim a Rousseau a emergência de um outro princípio político, alternativo ao da repre­sentação, capaz de se compatibilizar com esta mesma liberdade. A um tal princípio – ao qual poderemos chamar, também de acordo com a sugestão de Carl Schmitt, um princípio de identidade 22 – estará reservada a criação de uma sociedade civil democrática, ou seja, a criação de uma sociedade civil assente na determinação do Estado por esta mesma sociedade civil. Segundo o princípio democrático da identidade, apresentado como uma alternativa ao princípio da representação, a sociedade civil e o Estado são idênticos. Para Hobbes, mediante o emprego do princípio da repre­ sentação, dir-se-ia que a sociedade civil surge como uma pura multidão, como uma totalidade desarticulada de tendências e vontades particulares, como uma complexio oppositorum incapaz de se constituir, por si só, como uma unidade ou, o que é o mesmo, como o sujeito político de uma vontade. Ela é então, na multiplicidade que lhe é intrínseca, essencial­mente distinta da unidade própria do Estado. Para Rousseau, pelo con­trário, a sociedade civil, longe de ser uma pura multidão, é já uma unidade na multiplicidade, um sujeito político cuja vontade é capaz de, identi­ficando-se-lhe, determinar a vontade desse mesmo Estado. Rousseau escre­ve-o aliás explicitamente, no Contrato Social, ao reconhecer que Estado e corpo político, povo e soberano são termos convertíveis, alu­dindo apenas a diversas funções de uma mesma e única realidade23. Jean-Jacques ROUSSEAU, Du contrat social, III, 10, idem, p. 554. Jean-Jacques ROUSSEAU, Du contrat social, III, 4, idem, p. 545. 27 Jean-Jacques ROUSSEAU, Du contrat social (Manuscrit de Genève), I, 4, idem, 25 26

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Assim, tendo em conta que sociedade civil e Estado são uma e a mesma coisa, ou seja, tendo em conta que a sociedade civil é o sujeito político de uma vontade, a determinação democrática do Estado pela sociedade civil expressa-se na subordinação do poder político ou, o que é o mesmo, do governo a essa mesma vontade. O poder político do governo, o poder do príncipe, longe de ser soberano, não é, para Rousseau, senão um poder delegado, limitado à mera execução de uma vontade soberana que lhe é exterior 24. Por outras palavras, o poder político próprio do governo, que para Hobbes surgia como representante soberano, ou seja, como cons­ tituinte da própria sociedade civil na unidade da sua vontade, não é aqui senão o braço executante de uma vontade que não lhe pertence. E se o governo tem naturalmente a tendência para exceder o carácter meramente executivo do seu poder enquanto delegado desta vontade, tentando arran­ car à sociedade civil ou ao povo a sua inalienável soberania, sendo esse «o vício inerente e inevitável que, desde o nascimento do corpo político, tende sem descanso a destruí-lo» 25, também este mesmo povo tem a legitimidade democrática da resistência e da revolta, sempre que se faça a tentativa de o privar da soberania. Contudo, Rousseau não poderia propor uma alternativa política ao emprego do princípio da representação sem se interrogar sobre a viabi­ lidade dessa alternativa. Segundo o princípio democrático da identidade, o povo é imediatamente soberano. Tal quer dizer que uma multidão, na multiplicidade que a constitui, é imediatamente unidade. Ou, dito de outro modo, que a sociedade civil é por si mesma Estado, ou seja, o sujeito político de uma “vontade pública”, de uma vontade única ou vontade geral, sem precisar para isso da mediação de uma vontade pessoal que a represente. E, diante da exigência desta identidade, surge necessariamente a pergunta: será possível que a multidão se torne, exclusivamente a partir de si mesma, numa unidade? Será possível que a sociedade civil, a qual não pode deixar de ser uma multiplicidade, surja imediatamente como o sujeito uno de uma vontade? A resposta de Rousseau alude à consequência implícita no seu esboço da natureza humana: se o homem p. 399

Jean-Jacques ROUSSEAU, Jean-Jacques ROUSSEAU, 30 Jean-Jacques ROUSSEAU, 31 Jean-Jacques ROUSSEAU, 28 29

Du contrat social, II, 7, idem, p. 531. Du contrat social, II, 7, idem, p. 531. “Article «Économie Politique»”, idem, p. 281. Du contrat social, II, 7, idem, p.531.

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é, na sua natureza, essencialmente perfectível e, nessa medida, essencialmente transformável, se as possibilidades do homem não são limitadas pela determinação de uma essência prévia à própria perfectibilidade, tal quer dizer que, para um poder que esteja à altura dela, a criação de uma tal sociedade civil é possível. E é possível justamente porque o homem nada é, na sua natureza, senão um campo indeterminado de possibilidades, aberto às mais imprevistas experiências políticas. A sua natureza depende não de si mesma e de um qualquer princípio essencial que lhe seja intrín­seco, capaz de resistir contra a sua violação, mas do poder cuja força consiga configurar tecnicamente esta mesma natureza. Ela é o recurso fundamental de uma obra política que, exercendo-se em nome da liberdade, vê no homem uma pura matéria disponível para a intervenção técnica do seu poder, uma matéria cuja transformação não conhece como limites senão o poder da força que sobre ela actua. É por esta razão que, quando a democracia é considerada por Rousseau como inadequada para a mera natureza humana, quando se pode ler, no Contrato Social, que «se houvesse um povo de deuses, ele governar-se-ia democraticamente» e que «um governo tão perfeito não convém aos homens»  26, tal não quer dizer que Rousseau recuse a democracia como utópica, mas que, pelo contrário, ele projecta uma transmutação radical do homem e da sua natureza. A pergunta pela possibilidade da democracia, ou seja, a pergunta pela possibilidade de a sociedade civil se constituir a si mesma como sujeito político, converte-se assim na pergunta pelo poder capaz de obrar uma tal transmutação radical do homem, uma segunda criação da sua natureza. Na primeira versão do Contrato Social, no chamado Manuscrito de Genebra, situado entre os anos de 1756 e 1760, Rousseau parte do princípio da identidade como se se tratasse de um facto inquestionado. A sociedade civil surge aqui imediatamente identificada com o Estado e, nessa medida, com um sujeito cuja posse de uma determinada vontade é incontestável: «Creio poder pôr como uma máxima incontestável que só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado segundo o fim da sua instituição, que é o bem comum: pois se a oposição dos interesses particulares tornou neces­ sário o estabelecimento das sociedades civis, foi o acordo desses mesmos interesses que as tornou possíveis» 27. Na versão definitiva dessa obra, de 1762, este acordo entre os diversos interesses presentes na sociedade 32 33

Cf. Jean-Jacques ROUSSEAU, Du contrat social, IV, 7 e 8, idem, p. 572 ss. Jean-Jacques ROUSSEAU, “Article «Économie Politique»”, idem, p. 279.

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civil não pode já ser afirmado como um princípio ou uma máxima incon­ testável. Consequentemente, o princípio da identidade não pode já deixar de ser questionado na sua possibilidade, através da referência a um poder capaz de o garantir. É um tal poder que aparece então esboçado sob a figura inquietante do legislador. O legislador de que fala o Contrato Social aparece como o símbolo de um poder ilimitado. Trata-se de «um homem extraordinário no Es­tado», cujo carácter ímpar o faz aparecer como uma figura divina. Como escreve Rousseau: «Para descobrir as melhores regras de sociedade que convêm às nações, seria precisa uma inteligência superior que visse todas as paixões dos homens e que não experimentasse nenhuma delas; que não tivesse nenhuma relação com a nossa natureza, e que a conhecesse a fundo; cuja felicidade fosse independente de nós, e que contudo quisesse ocupar-se da nossa; enfim, que, tratando no progresso dos tempos de uma glória longínqua, pudesse trabalhar num século e fruir num outro. Seriam precisos deuses para dar leis aos homens» 28. Esse «homem extraor­dinário», essa «inteligência superior» que cumpre o que só aos deuses é exigível, é definitivamente caracterizado por uma capacidade: ele «deve sentir-se em estado de mudar, por assim dizer, a natureza humana» 29. E esta capacidade, longe de poder ser tomada num sentido meramente metafórico, não é nada menos do que a condição de possibilidade do aparecimento de uma sociedade civil democrática. Assim, se ao monarca hobbesiano cabia representar a sociedade civil como uma unidade, na multiplicidade que lhe é intrínseca, fazendo assim reinar a unidade numa sociedade cuja natureza plural é prévia e permanece subjacente à própria representação, o legislador de Rousseau tem antes o poder superior de criar essa mesma sociedade civil enquanto unidade. E se o poder do primeiro surge como um poder solitário diante do povo por ele repre­sentado, se ele é, nessa medida, um poder absoluto diante desse mesmo povo, o poder do segundo surge como um poder que esgota todo e qualquer poder, como um poder que põe teticamente o seu objecto, criando o próprio homem sobre quem impera, ou seja, como um poder que se manifesta como poder total. É porventura numa passagem do seu artigo Economia Política, publicado 34 35

Jean-Jacques ROUSSEAU, “Article «Économie Politique»”, idem, p. 279. Jean-Jacques ROUSSEAU, “Article «Économie Politique»”, idem, p. 279.

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no V Tomo da Enciclopédia em 1755, que Rousseau mais claramente caracteriza este poder total enquanto poder de transformação, manipulação, mobilização ou apropriação do homem: «Se é bom saber empregar os homens tais como são, é ainda muito melhor torná-los tais como temos necessidade que sejam; a mais absoluta autori­dade é aquela que penetra até ao interior do homem, e não se exerce menos sobre a sua vontade do que sobre as suas acções» 30. O poder de «alterar a constituição do homem» 31, penetrando no seu interior, traduz-se assim num programa pragmático de acção política. Face ao homem individual, mediante o recurso à uniformidade de uma religião civil e a uma censura rigorosa 32, trata-se de o despojar da sua indivi­ dualidade, criando um pensamento, uma vontade e mesmo um sentimento únicos. Diante da sociedade civil, por seu lado, esse poder traduz-se numa absoluta homogeneização social. Rousseau não ignora que a sociedade civil encerra em si uma pluralidade de associações humanas. No seu artigo Economia Política, esta aparece como «composta por outras sociedades mais pequenas, de diferentes espécies, das quais cada uma tem os seus interesses e as suas máximas» 33. As sociedades mais pequenas, os corpos sociais intermédios são eles mesmos unidades, cujas respectivas vontades são gerais relativamente às dos indivíduos que as integram e particulares relativamente à da sociedade civil. E estas vontades têm um efeito perturbador na determinação da vontade geral própria da sociedade civil. Se dentro da sociedade civil há sociedades mais pequenas cujas vontades valem como vontade geral para os indivíduos que as integram, tal quer dizer que esses indivíduos estarão divididos entre duas vontades gerais coexistentes. É assim que um indivíduo «pode ser padre devoto, ou um bravo soldado, ou um patrício zeloso, e mau cidadão» 34. Deste modo, face à pluralidade das associações que compõem a sociedade civil, Rousseau não pode deixar de defender que a missão do governo, não enquanto representante, mas enquanto executor do poder total que cria a sociedade civil, consiste na subordinação de todas as vontades possíveis à vontade geral dessa mesma sociedade: «A primeira e a mais importante máxima

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do governo legítimo ou popular, ou seja, daquele que tem por objecto o bem do povo, é então a de seguir em tudo a vontade geral»  35. É através deste programa político de acção, assente na conformação do homem a um modelo uniforme, e na subordinação de todos os corpos sociais intermédios a um único pensamento e a uma única vontade, que se pode ver na base da democracia, enquanto princípio da determinação do Estado pela sociedade civil, a exclusão do liberalismo, enquanto princípio da não determinação da sociedade civil pelo Estado. Um tal princípio é excluído pela democracia de Rousseau não porque haja nela um poder político exterior a coagir a sociedade civil e os cidadãos que lhe pertencem, mas porque a sociedade civil, identificada com o Estado segundo o princípio da identidade, é já o poder que determina politi­ camente a totalidade da vida dos cidadãos e a totalidade da sua própria vida enquanto sociedade. Nesta exclusão do liberalismo pela democracia, vemos Rousseau antecipar as nossas dificuldades contemporâneas na sua articulação. E esta antecipação denuncia que na origem das nossas magistraturas e institui­ ções políticas contemporâneas está o mesmo princípio de que partiu o pensamento político de Rousseau, ou seja, o desaparecimento daquilo a que chamámos o princípio da representação. Para uma análise atenta, é aliás este desaparecimento que nas actuais instituições políticas ocidentais se consuma. O que hoje maximamente caracteriza tais instituições é justamente que estas surjam apenas como emanações de processos de natureza económica e técnica, cuja condução está entregue apenas à regularidade mecânica de leis imanentes. Por outras palavras, a caracte­rística que especifica as nossas sociedades civis ocidentais consiste no facto de o poder político nelas existente se furtar à responsabilidade de sobrepor uma vontade política representativa a processos cujo curso está, na falta dessa vontade, entregue a um desenvolvimento imanente e mecânico, automático e, nessa medida, fatal. Mas é tendo em conta que nas nossas sociedades civis contem­porâneas se consuma o princípio do pensamento político de Rousseau, ou seja, o desaparecimento do princípio da representação, que surge uma questão maximamente inquietante. Diante da incapacidade contemporânea de representar, poder-se-ia perguntar se a sociedade civil democrática de

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Rousseau, na homogeneidade própria do seu “pensamento único” e da sua “vontade geral”, assim como no poder total que essa homogeneidade implica, não estará presente na estrutura das nossas sociedades civis ocidentais. A sugestão parece ser imediatamente refutada através da referência à multiculturalidade, ao carácter essencialmente plural, indeter­minado e tolerante destas mesmas sociedades. Contudo, para uma análise mais atenta e menos ofuscada pela violência das aparências imediatas, uma tal sugestão não pode deixar de ter um regresso perturbador. Talvez a multiculturalidade e a pluralidade características das nossas sociedades contemporâneas esteja assente no predomínio de um pensamento único escondido atrás de uma variedade aparente de possibilidades de escolha e de modos de vida. Talvez o carácter relativo e privado de todas as perspectivas éticas e religiosas, assim como o empenho na reivindicação de uma diversidade de modos de vida privados, esconda uma total homo­ geneidade na vida pública, uma homogeneidade assente na desis­tência dessa mesma vida. Talvez o homem liberal contemporâneo, na sua total liberdade privada, e na desistência de participação pública que a acom­ panha, esconda a emergência do homem democrático de Rousseau – um homem cuja liberdade assenta em tomar como seu o que pelo pensamento único é pensado, ou seja, em reduzir a sua vontade a uma manifestação precária e transitória de uma “vontade geral”, de uma representação única do bem e da felicidade. Um homem cuja liberdade consiste, enfim, em não conhecer o poder total que o determina. Alexandre Franco de Sá (Universidade de Coimbra)

THE SCOTTISH ENLIGHTENMENT AND THE IDEA OF CIVIL SOCIETY It is characteristic of academic endeavour that certain terms or concepts become fashionable or, perhaps less pejoratively, seem to harmonise with particular felicity to contemporary concerns. In the study of politics ‘civic culture’ would be an example and ‘globalisation’ is perhaps the current ‘hot’ topic (it was the theme of the International Political Science Association’s 2000 meeting in Quebec). ‘Civil society’ too has been strongly in vogue. Perhaps because of this there is a plethora definitions. Sympto­matically, if tritely, Helmut Anheier, the Director of a Centre for Civil Society launched at the LSE in February 2000, declared ‘civil society’ to be a ‘contested concept’.1 For current purposes I will select with inevitable arbitrariness the following definition: civil society is a ‘structure of the self-organisation of society, located outside but not disconnected from the institutional framework of the state’.2 This ‘self-organisation’ can be taken to include families, voluntary organisations (including churches), social movements and economic institutions but to include the first and, especially, the last of these might well be challenged. Many of the current writings on civil society are informed by developments in Eastern Europe in the last quarter-century or so and within these discussions the term itself is said to have undergone a ‘revival’. This locution indicates an awareness that the term itself is not new and that awareness in its turn has sparked enquiries into earlier usage and its his1 H.

p. 16.

Anheier, ‘Can Culture, Market and State Relate?’, LSE Magazine, summer 2000,

2 J. Frentzel-Zagorska quoted in C.Bryant, ‘Civic Nation, Civil Society, Civil Religion’ in J. Hall, ed., Civil Society: Theory, History, Comparison (Cambridge: Polity Press, 1995) p. 144. 3 M. Riedel, ‘Tradition und Revolution in Hegels “Philosophie des Rechts”’ Zeits­

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tory. These enquiries too have not gone uncontested. Within these debates Hegel typically looms large. In an influential analysis of Hegel’s idea of civil society, Manfried Riedel is concerned to identify how Hegel himself has transformed an older concept.3 In outline and freely glossed, Rie­del­argues that traditional political thought, whether in its classical Aristotelian guise or in its ‘modern’ natural law form, regarded the terms societas civilis or koinonia politike as identical to civitas or polis. That is, though this is to speak sweepingly, civil society was synonymous with the state. These synonyms stand in contrast to the societas domestica or oikos. Hegel’s Strukturwandeln was to turn this dichotomy into a trichotomy – family, civil society, state. On this conception the family from being an economic household became a sentimental institution based on love and its previous economic role was displaced into the realm of civil society (bürgerliche Gesellschaft). This realm was presented as a ‘system of needs’, orientated around the activity of labour, and as the sphere of particular socio-legal relationships. Crucially for Hegel it is non-political and is thus conceptually distinguishable from the state, which retains the original political focus on the public good or the universal. In sustaining this interpretation Riedel emphasises that the term ‘civil society’ freely used in the eighteenth century, and despite going through a gradual process of change, retained its synonymity with the ‘state’. In his account he declares, in passing, that Ferguson’s History of Civil Society still adopted the traditional political understanding of the term. Although Riedel indulges in no discussion of Ferguson other scholars have discussed his book as a contribution to the eventual articulation chrift für Philosophische Forschung, 16, 1962, 203-30; this is reprinted with other cognate studies­in his Studien zu Hegels Rechtphilosophie (Frankfurt-a-M: Suhrkamp, 1972). See also in his long essay Gesellschaft, bürgerliche in Geschichtliche Grundbegriffe vol. 2 eds, O.Brunner et al, (Stuttgart: Klett Verlag, 1995). 4 Cf. E.Gellner, Conditions of Liberty:Civil Society and its Rivals (Harmondsworth: Penguin Books, 19940 Ch.8; J.Varty,’Civic or Commercial? Adam Ferguson’s concept of Civil Society’, in R. Fine & S. Rai ,eds., Civil Society:Democratic Perspectives (London: Frank Cass, 1997) 29-48; J. Keane, ‘Despotism and Democracy’ in J. Keane, ed., Civil Society and the State: New European Perspectives ( London:Verso, 1988) 35-71, esp. 39- -44; J. Ehrenberg, Civil Society: The Critical History of an Idea (New York: New York University Press, 1999) 91-96; F. Oz-Salzburger, ‘Civil Society in the Scottish En- lightenment’ in S.Kaviraj & S. Khilnani, eds, Civil Society: History and Possibilities (Cambridge: Cambridge University Press, 2001) 58-83. 5 Cf. J. Cohen & A. Arato, Civil Society and Political Theory (Cambridge, MA.:MIT

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of an idea of civil society.4  Though Ferguson has been singled out he is also lumped in with other members of the Scottish Enlightenment, notably Smith and Hume, as together representing an approach toward a recognisably ‘modern’­idea of civil society.5  There are, perhaps, two independent reasons why Ferguson and the Scots should have been noted in this context. The first is as ‘spin-off’ from the salience attributed to Hegel since it is known that he was familiar with the Scots’ writings and his treatment of the ‘system of needs’ in the Philosophy of Right owes much to the Wealth of Nations. Secondly, the Scots, as a group with Ferguson prominent, have been identified as one of the key apostles of what Comte would christen ‘sociology’.6  There are, of course, a number of pitfalls that accompany exercises in intellectual genealogy such as this. A relevant example might be the attribution of a link between the idea of civil society as articulated by East European intellectuals in their critique of ‘totalitarianism’ and the presence of the term ‘civil society’ within the Enlightenment discourse that criticised ‘absolutism’.7  However, to conclude that no link is theoretically cogent is pre-emptory. Hence rather than reject in principle the appropriateness of citing the Scots as contributing to the conceptual development of the idea of a civil society I here investigate it. I will subject the Scots to a more intensive examination than they usually receive in these citations. I will do so by paying attention to what the Scots said and then, more speculatively, engage in what I shall call ‘conceptual cartography’ to locate within their writings some ‘space’ that could be filled by an idea of ‘civil society’. I will leave ‘open’ the value of that exercise. More precisely, my initial and chief focus is on Ferguson because he is the Scot most singled out in this context. By analysing the vocabulary he employs I examine the meaning of civil society in Ferguson’s book and the extent to which his meaning and argument is similar to that articulated Press, 1992) esp.p.90; and several contributors (V. Perez-Diaz, C.Bryant, A.Seligman) to J. Hall, ed., Civil Society: Theory, History, Comparison. Oz-Salzberger distinguishes Fer­guson from Hume and Smith, ‘Civil Society in Scottish Enlightenment’ p. 61. 6 Cf. C.J. Berry, Social Theory of the Scottish Enlightenment (Edinburgh: Edinburgh U.P., 1997) Ch. 8 for a discussion of this identification. 7 Even as sophisticated a scholar as Charles Taylor seems to endorse such a linkage, see ‘Invoking Civil Society’ in his Philosophical Arguments (Cambridge. MA: Harvard U.P. 1995) pp. 204-24, p. 213. 8 A. Ferguson, An Essay on the History of Civil Society (1767), ed. D. Forbes

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by his fellow Scots. I then consider what, in the particular cases of Hume and Smith, they might provide in the way of a conception of civil society. I conclude by returning to a consideration of the value of invoking their arguments in the light of the definition of civil society adopted above. I It is clearly too glib to assume that because Ferguson wrote a book with ‘civil society’ in the title that he therefore has something relevant to say about the idea as currently understood. At the risk of erring in the opposite direction I will proceed pedantically. I will gradually widen the focus of the pedantry but start with his employment of the actual term ‘civil society’. Despite the book’s title that term occurs infrequently. A number of these occasional references lend support to Riedel’s observation. For example, in Section 2 of Part 1, Ferguson comments that those who regard the ‘provision of wealth’ as the ‘principal idol’ of their mind would ‘if not restrained by the laws of civil society’ resort to violence.8  Another passage this time from the book’s concluding Section (6,6) seems to echo Locke’s distinction between a civil or political or legitimate society and absolute government. Ferguson remarks that while it is the ‘highest refinement of a despotical government to rule by simple commands’, in a ‘free constitution’ its members treat each other with mutual respect and ‘every point to be carried in civil society required the talents of wisdom, persuasion as well as power’ (275). This last citation echoes a usage earlier in the book where he declares that mankind ‘exercise their best talents’ when ‘conducting the affairs of civil society’ (155 cf. 270). These ‘affairs’ are political and we shall shortly expand on a key association­here. I want first to pick up another of his uses of the term. In the one place, where he repeats the phrase in his title, he writes that if we are to pursue that ‘history’ then we cannot deal with nations that occupy­ those regions where ‘situation or climate’ appear to have restrained­ (Edinburgh:­ Edinburgh U.P., 1966 ) p.12 cf. 94, 148. (All future references to the Essay will be to this edition and placed in parentheses in the text.) 9 D. Forbes ‘Introduction’ to his 1966 edition of Ferguson’s Essay (n8) pp. xix-xx. Hume in a letter to Smith (April 1759) refers to Ferguson’s Treatise on Refinement, which

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‘national­pursuits’ or to be ‘inferior in the powers of mind’ (121). This alludes­to the observation made earlier in that Section that ‘the torrid zone...has furnished few materials for history’ and ‘nowhere matured the more important projects of political wisdom, nor inspired the virtues which are connected with freedom and required in the conduct of civil affairs’ (110). This last quotation again indicates that the context is ‘political’. However, this context is broadened to plot civil society onto a temporal graph. It is this more expansive sense that underwrites perhaps the commonest interpretation of Ferguson’s meaning, as initially articulated by Duncan Forbes, namely that the history of civil society is a history of civilisation in a general sense.9 In broad support for that interpretation we find Ferguson claiming that rude and corrupt states have yet to ‘learn the most important lesson of civil society’. It is here where we come to the above-mentioned key association.­ This ‘lesson’ is identified as the ability to combine military obedience with the maintenance of freedom in ‘political deliberations’ (148 cf 94). Ferguson holds that in ‘every period of civil society’ the ‘military spirit’ languishes when there is prolonged peace (213). The civil//political is for Ferguson intimately linked to the martial. This linkage comes in a distinctly preferred form. It is, he declares, ‘happy for civil society’ that while experience has taught that the conduct of armies requires absolute and undivided command it has also taught that a ‘national force’ is ‘best formed where the meanest citizen may consider himself upon occasion as destined to command as well as to obey’ (149). The ‘art of war’ is in fact ‘brought to perfection’ when it is grafted on to ‘the advantages of civil society’; when, that is, the ‘most celebrated warriors were also citizens’ (155). This last point is a pervasive theme throughout the Essay as it argues for an active citizenry (of which a militia is a vital supportive constituent) and against political passivity. There is a contemporary polemic here against some of his fellow Scots (Hume and Smith especially) – to which is a probable reference to a draft of the Essay - The Letters of David Hume J. Greig, ed., (Oxford: Clarendon Press, 1932) I, 304. Hume had a cool opinion of the Essay when it did appear, see Letters II, 12. 10 Cf. E. Gellner, Conditions of Liberty p. 63. 11 Cf. C. Montesquieu, De l’Esprit des Lois Bk. 20 Chs. 1,2. For comment see A. Hirschman, The Passions and the Interests (Princeton: Princeton U.P., 1977) and C. Berry,

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we shall return – but which at couple of points is explicitly linked to his employment of the term ‘civil society’ itself. In a footnote he declaims that ‘our notion of civil society is frequently false’ when we ‘we consider commotion and action as contrary to its nature’ and, in so doing, forget the nature of ‘our subject and find the order of slaves, not that of free men’ (268-9n). And to a similar effect he judges that the ‘boasted improvements of civil society’ in providing security of both person and property are (or can be) devices to ‘terminate the agitations of a free people’ or ‘lay the political spirit at rest’ and ‘chain up the active virtues’ (221). What this examination of those infrequent occasions when Ferguson actually uses the term ‘civil society’ reveals is it carries political (military) associations and even when this is given a temporal or historical gloss political developments remain vital. Of course to restrict this examination merely to actual usage of the term is overly austere; we may miss the general or larger picture by confining ourselves to particulars. We can, accordingly, widen our focus while still analysing the language and terminology he employs. Since the fulcrum of the modern concept is the division between ‘society’ and ‘state’ we can appropriately turn the focus on to Ferguson’s use of these terms. The first point to note is that he uses the term ‘society’ without qualification as when he writes ‘a people are cultivated or unimproved in their talents in proportion as those talents are employed in the practice of arts and in the affairs of society’ (136). In this, and many other cases, the term seems inclusive and familiar to current usage. Also striking is the frequent, and unaffected, way Ferguson uses the term ‘state’; this is not a feature of earlier (British) thought. In Locke, for example, ‘state’ is used infrequently in a ‘political’ sense and Hobbes was self-conscious of its novelty when in the Introduction to Leviathan he referred to that ‘great Leviathan called a commonwealth or state, in Latin civitas’. Ferguson, however, uses the term pretty much as we would. Within a dozen pages he employs it as a synonym for government (‘the state is merely a combination of departments...’[56]), as interchangeably with ‘nation’ to refer to a political entity (‘great and powerful states are able to overcome and subdue the weak’ [59]) and as a genus of political organisation (‘monarchies are generally found where the state is enlarged in population’ [69]). However, what we do not find in any use of either term is its employment as a counterpoint one to the other. Certainly ‘state’

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is never juxtaposed to ‘society’ let alone to ‘civil society’. My final series of remarks on Ferguson’s language refer to his adjectival employment of ‘civil’. Aside from its occasional qualification of ‘society’, ‘civil’ is also used, inter alia, to qualify ‘policy’ (139), ‘government’­ (151, 181), ‘establishments’ (231-2), ‘institutions’ (237, 267), ‘debates’ (211), ‘arts’ (215, 243, 279),‘virtues’ (275), ‘order’ (220), ‘wisdom’ (155, 242) and ‘war’, ‘contention’, ‘discord’, ‘disorder’ and ‘dis­sen­sions’ (212, 225, 22, 56, 197). If we take a more synoptic look at these references­we discover perhaps two significant, though importantly related, contexts. The first of these confirms the martial context which, as we have seen, was present when he used the particular phrase ‘civil society’. In ‘times of refinement’, he says, the departments of civil government and war are ‘severed’ (151 cf. 181, 232). He is alarmed by this severance. His alarm is that the extensive division of labour, which is clearly associated with refinement, has the effect of compartmentalising society so that none of its separate elements is ‘animated with the spirit of society itself’ (218). He allows that the specialisation of the clothier and tanner gives us better clothes and shoes but – and this is the nub and is the aspect of his argument upon which Gellner directs most of his attention10 – to ‘separate the arts which form the citizen and the statesman, the arts of policy and war, is an attempt to dismember the human character’(230). At the heart of human character for Ferguson is the conviction that, in general, ‘man is not made for repose’ (210) but, more specifically in addition, this natural activity is most properly exercised on the public stage; it is a ‘corruption’ to ‘deprive the citizen of occasions to act as a member of the public’ (214). For Ferguson a definitive marker of such public activity is military involvement but if, through refinement, that becomes a specialised profession rather than a commitment to be expected of all citizens (as in a militia) then the alarm bells should ring. We can link this with the point noted earlier where Ferguson regards as ‘false’ that idea of civil society which identifies it with inactive quietude. Here we can see where Ferguson deviates most obviously from the position of Hume and Smith. This, it should be stressed, is a ‘deviation’ not a total opposition. Ferguson accepts that civil societies are not rude and the regular government enjoyed by commercial societies is an Social Theory of the Scottish Enlightenment Ch.6.

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improvement on earlier manifestations of rule. However, he sees dangers even within the operation of the rule of law, the key modern principle. Liberty he declares is ‘never in greater danger than it is when we measure­ national felicity...by mere tranquillity, which may attend on the most equitable a­dministration’ (270). Individual citizens allow the ‘administration’ to get on with its public task of enforcing the general rules of justice while they get on with their own private business. And from their individual perspective, the less the administration interferes in the ‘commercial and lucrative arts’ the better. This, however, privileges ‘peace’ and adopts that ‘false’ idea of civil society as orderly and ‘commotion-less’. In the second related context Ferguson links ‘civil’ with ‘commercial’; indeed, the title of Part 4 is ‘Of the Consequences that result from the Advancement of Civil and Commercial Arts’. But the linkage is not confined to that Part. Hence, talking of ‘polished nations’, he asks rhetorically whether ‘national spirit’, vigorous in earlier less refined times, will suffice to ‘carry on the project of civil and commercial arts’ (215). The next sentence continues in the same vein to ask whether the ‘business of civil society’ be accomplished thus removing the need for further exertion. Ferguson’s anxiety about the effects of quietude is again evident. This is not isolated example. Elsewhere he remarks on the ‘collision of fierce and daring spirits’ that ‘sometimes precede the dawn of civil and commercial improvements’ (243 cf.279). This association of ‘civil’ with ‘commerce’ is part and parcel of the general notion of ‘le doux commerce’ that Montesquieu, perhaps above others, put into intellectual circulation and which was prominent in the works of the Scottish Enlightenment.11  Ferguson uses the term ‘civility’ twice, both times in this general context. It is a characteristic of ‘modern Europe’, as opposed to ‘ancient nations’, that they ‘carry the civilities of peace into the practice of war’ (198 cf. 270 where it is linked with ‘moderation’). In fact, he proceeds to identify saving rather than destroying the vanquished as the criterion ( the ‘principal characteristic’) whereby ‘modern nations’ are called ‘civilised or polished’ (200). J. Keane, ‘Despotism and Democracy’ p.42. J. Varty, ‘Civic or Commercial’ p. 38. Cf. Ehrenberg who argues that Ferguson based civil society on moral sentiments (the love of mankind) and that he feared moral ties could not withstand the pressure of markets, Civil Society p. 96. 12 13

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Piecing together the resultant conceptual quilt may well reveal what John Keane rather preciously calls the ‘dialectic between civil society and political despotism’.12 Ferguson does think a civil society is a free society­and does associate liberty with the limits imposed on magistrates and the protection of law (161) and considers those features absent in unpolished, non-commercial eras. However, the commercial nations can become ‘unworthy of the freedom they possess’ (221) as their citizens devote their attention to the ‘improvement of fortune’ (253) and ‘separate pursuits of pleasure’ (222) to such an extent that they are too busy to engage the ‘political­spirit’ (221). Such engagement – ‘the resolve of men to be free’ (263) – is, for Ferguson, the essence of liberty. A liberal society needs not passive citizens, going quietly about their commercial business, but those ‘willing to sustain in their own persons the burden of government and of national defence’ (266). This is familiar republican rhetoric and John Varty in his interpretation of Ferguson fastens upon the associated critique of commerce to hold that Ferguson is developing a model of citizenship as an alternative to the ‘market’. Varty recognises that Ferguson is not a civic humanist who anathematises everything about the age of commerce but sees in this alternative an attempt at a ‘new foundation’ and locates in this his significance for contemporary theorists of civil society.13 There does, however, seem a large gap between what Ferguson actually says and what civil society has come to signify so that, despite the interpretative efforts of Varty, Gellner, Ehrenberg and Keane, Riedel’s implicit dismissal of any novelty on Ferguson’s part seems to stand. (At best Riedel says the traditional concept possessed a faded (abgeblaßter) form in Ferguson.14) Despite this if we extend our focus once more there is one significant element in his theory that indicates that Ferguson’s idea of ‘civil society’ cannot be a mere synonym for political community, certainly as understood in the natural law/contractarian tradition. If we take Locke as a paradigm then for him ‘civil society’ only makes sense in contradistinction to the State of Nature. It is, as the title M. Riedel, ‘Tradition und Revolution in Hegels “Philosophie des Rechts”’ p. 220. J. Locke, Second Treatise on Government (1689) § 97. 16 D. Hume, A Treatise of Human Nature (1739/40) ed. L. Selby-Bigge (Oxford: Clarendon Press, 1888) p.493. 17 F. Oz-Salzburger, Translating the Enlightenment:Scottish Civic Discourse in Eighteenth­Century Germany (Oxford: Clarendon Press, 1995) pp. 145, 148. This view 14 15

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of Chapter 7 of the Second Treatise, makes explicit a direct synonym of ‘political society’. The transition from the pre-civil State of Nature to the civil condition was effected by individuals agreeing by mutual consent to an original compact that establishes a body politic. 15 Ferguson opens the Essay with a full-blooded attack on the idea of a State of Nature. This ‘idea’ is merely that; it is the fruit of ‘hypothesis’ or ‘conjecture’ or ‘imagi­nation’­or ‘poetry’. To these Ferguson juxtaposes respectively ‘reality’,­ ‘facts’, ‘reason’ and ‘science’ and it is this latter list that ‘must be admitted as the foundation of all our reasoning relative to man’ (2). We must turn to the evidence and that uniformly returns the same verdict, ‘mankind are to be taken in groupes as they always subsisted’ (4 cf. 3, 16). This was a commonplace among the Scots. Hume had dismissed the State of Nature as ‘fictitious’16 and devastated the idea of an original contract in his Essay of that title (1748). Ferguson does, however, bring out a significant­ implication of the dismissal. In the Essay’s opening section, he comments that ‘all situations are equally natural’. This means, as he goes on to illustrate, that the ‘State of Nature’ is ‘here and it matters not whether we are understood to speak in the island of Great Britain, at the Cape of Good Hope, or the Straits of Magellan’ (8). It equally follows, we can add, it matters not whether it is seventh or seventeenth century Britain and so on. Since the ‘natural condition’ of humans is life in society then that is the premise from which enquiry should proceed. Because ‘art itself is natural to man’ (6) then there is no meaningful contrast between the ‘natural condition of mankind’ (the State of Nature) and their artificial (made by a Contract) civil, political existence. This does more than establish that ‘society’ is not conterminous with political community, because Locke could be interpreted similarly, it also permits, in principle, the possibility that a concept of ‘civil society’ can be developed that is distinct from the state. This is only a theoretical possibility (a conceptual space). Our examination of Ferguson has revealed that he does distinguish ‘civil society’ from other forms of social expe­rience­ (undeveloped ones) but it also seems clear that he does not approach­the is repeated­ verbatim in her ‘Civil Society and the Scottish Enlightenment’ p. 76. 18 Cf. C.J. Berry, The Idea of Luxury (Cambridge: Cambridge U.P., 1994) Ch. 6. 19 Cf. D. Hume, ‘[man] has the most ardent desire for society, and is fitted for it by

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current meaning that distinguishes the civil from the political. As Fania Oz-Salzburger justifiably argues Ferguson’s ‘civil society’ is ‘first and foremost a civic concept’ and a ‘misnomer for anything other than a republican or a “mixed” government with republican components’. 17 We have already referred to Ferguson’s implicit critique of the ‘modernism’­of Hume and Smith on the grounds that the positions they represent are flawed precisely because they underplay or downgrade the importance of political activity. Ferguson is not tilting at windmills here – both Hume and Smith vindicate commercial society with its liberty derived­ from law, its refinement (Hume defends ‘luxury’ against the humanist onslaught, as Smith similarly defends opulence 18), its reliance on justice rather than courage and, in Smith’s case, a clear preference for standing armies over citizen militias. These factors create putatively in their writings a conceptual space that is occupied by what moderns call ‘civil society’. This ‘space’ is obtained in virtue of the combination of two arguments:­ first, that humans are to be understood ab initio as social 19 and, second, that the political sphere is restricted to the specific but limited­tri-partite role of, in Smith’s formulation, protecting society from external foes, executing the ‘exact administration of justice’ and providing­ public­ works.20 It is this combination that makes (theoretically) their arguments more congenial than Ferguson’s to current usage. II the most advantages. We can form no wish which has not a reference to society’ Treatise p.363; ‘Man born in a family is compelled to maintain society, from necessity, from natural inclination and from habit’ ‘Of the Origin of Government’, Essays p. 37. The whole argument of Smith’s Moral Sentiments is premised on human sociality; see, for example, the powerful rhetorical passage on society as a ‘mirror’, Part 3 Ch.1. This, of course, was a central feature of the Scottish Enlightenment in general, with Ferguson prominent. Cf. Berry Social Theory of the Scottish Enlightenment Ch. 2. 20 Cf. A. Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations eds. R. Campbell & A. Skinner (Indianapolis: Liberty Press, 1981) p. 687. 21 For example, Cohen and Arato stress that civil society should be ‘properly differentiated from the economy’ Civil Society and Political Theory p.vii. Ehrenberg identifies Smith as the first articulator of ‘a specifically bourgeois conception of civil society’ but also, later, characterises civil society as distinct from both ‘state authority’ and the ‘imperatives of the market’, Civil Society pp. 96, 235.

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This I should stress is schematic. If Hume and Smith’s writings were subject to the same analysis we have conducted on Ferguson’s Essay then we would not find in their use of the term ‘civil society’ any explicit approximation­of the current usage. In addition this schema can only claim to be an exercise in conceptual cartography. Nevertheless what I want to pursue in this section are some intimations of where in Hume and Smith we might find some support for this schematic supposition. What follows is restricted to a couple of examples of this putative support. Before outlining these examples I should acknowledge a particular pragmatic omission. I will not address Smith’s conception of the ‘economy’. It is true (if only in the way that caricatures are true) that the structural independence of the economy and market behaviour from the mercantilist project of ‘political economy’, and the advantages in all respects for the wealth of nations that flow from this independence, establishes the ‘liberal’ model of an autonomous sphere properly distinct from the state. This not only influenced Hegel’s conception of bürgerliche Gesellschaft but also helps explain the enthusiastic take-up of ‘civil society’ in eastern Europe. Nevertheless some contemporary scholars, especially perhaps those of the centre-Left in the ‘West’, contest this and argue that civil society is more than the (bourgeois) market and should be distinguished from it.21 While immunity from the contestation that surrounds the idea is too much to hope for, I employ less obviously contentious examples. This is, to repeat, a pragmatic decision since a thorough, less caricatured, account of Smith would take this discussion beyond the bounds of this synoptic paper. From Hume I want to take up, and briefly explore, an apparently casual turn of phrase. In his essay ‘Of Civil Liberty’ he comments ‘it may now be affirmed of civilised monarchies what was formerly said in praise of republics alone, that they are a government of laws not men’.22 By what criterion is that affirmation sustainable? Hume answers by declaring that 22 D. Hume, ‘Of Civil Liberty’ in Essays Moral Political and Literary ed. E.Miller, (Indianapolis: Liberty Press, 1987) p. 94. 23 Hume, ‘Of the Refinement of Arts’ in Essays p. 271. 24 Contrast revealingly a piece of fanciful etymology from Ferguson who explicitly links the origins of the term ‘polished’ (a synonym for ‘civilised’ [200]) to laws and government­ (205). 25 Cf. Hume’s comment, referring to the age of James I, ‘the increase in arts, pleasures and social commerce was just beginning to produce an inclination for the softer and the

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in these monarchies ‘property is there secure, industry encouraged, the arts flourish’. Because the weight falls on the qualifier ‘civilised’ rather than the substantive ‘monarchy’ two inferences that can be drawn from this example. The first is that a political framework is indeed necessary but that, with the exception of ‘absolute monarchy’, it need not adopt any specific form. This exception is ‘hurtful to commerce’ and thus to the civilisation that is its concomitant. This negative point aside, Hume has in effect dislodged Ferguson’s positive prescriptive linkage of civil society with a particular, participative concept of the political. Second, within this framework, yet independent of it, there will develop, because of the security provided, industry and arts. Hume treats as a definitive characteristic of ‘refined and luxurious ages’ the presence of an ‘indissoluble chain’ that links together ‘industry, knowledge and humanity’. The more civilised or refined a people become then the more productive, more informed and more sociable they become. This sociability is a product of the increased density of population as they ‘flock into cities’ where they indulge ‘their taste in conversation and living’ as ‘particular clubs and societies are everywhere formed’.23 (Hume is accurately reflecting a characteristic feature of urban life in eighteenth century Scotland.) For Hume there is a connection beyond the merely etymological 24 between city-dwelling, civility­and civilisation and, we can add, civil society.25 While Keane on the basis of a passage in Ferguson had striven to say that in it Ferguson had ‘come close to saying that the survival and progress of modern civil society­require(s) the development of independent social associations’ 26 more civilised life of the city’ History of England (London: Routledge, 1894) II,98. (Cf. reference to doux commerce in text above.) 26 Keane, ‘Despotism and Democracy’ p. 44. He is glossing the following from Ferguson, ‘The great object of policy...is, to secure to the family its means of subsistence and settlement; to protect the industrious in the pursuit of his occupation; to reconcile the restrictions of police, and the social affections of mankind, with their separate and interested­pursuit’ (144). 27 Smith Wealth of Nations p. 795. 28 The most notorious example of this is his comment that merchants and master manufacturers have ‘an interest’ in deceiving the public; but this is itself builds on the identification of three orders in society - labourers and landlords (country-gentlemen) as well as merchants (Ibid 264-6). Cf on similar principles the distinction between the porter and the philosopher (p. 28). Hume had distinguished between the priest and soldier on the

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it seems that Hume can provide a less strained (if still not self-evident) argument to support that conclusion. Smith too could be cited with his reference (even if it is two-edged) to religious sects that spring up within cities to provide a sense of belon­ ging­for deracinated individuals 27 or how different groups in society, such as most notoriously merchants, develop their own characteristic ways of behaving and set of standards.28 However, the passage from Smith that I have selected is his famous set-piece account of the decline of feudal nobility.29  What, inter alia, this account can be seen to establish is the importance, and autonomy, of non-political institutions. The ‘great proprietors’ held sway over their demesnes by using their surplus to maintain retainers and dependants whose only reciprocal offering was obedience. The king at this time was only another proprietor whose writ could only run over his own lands. Accordingly, ‘justice’ was meted out locally by those with the means to enforce it. The source of power/authority was not legal title but ‘the state of property and manners’. From this it follows that the causes for the collapse of feudal barons has to be changes at that level or in that sphere and not some political decree. Smith proceeds to identify that cause as the ‘silent and insensible operation of foreign commerce’. The proprietor exchanged for a ‘pair of diamond buckles’ the ‘price of the maintenance of a thousand men for a year’ and, in so doing, he bartered away the source of his power. Once the tenants­attain thereby their independence then these proprietors ‘were no longer capable of interrupting the regular exercise of justice’. This collapse of ‘local justice’ ushered in the age of commerce by providing the certainty and stability necessary for market exchanges and concomisame grounds –’ Of National Characters’ in Essays pp.198-9. For comment on the underlying argument see C.J.Berry ‘Smith and Science’ in K. Haakonssen, ed, The Cambridge Companion to Smith (Cambridge: Cambridge University Press, 2003). 29 Smith Wealth of Nations p. 413-20. Hume had adumbrated a similar argument in his History II, 53-4. 30 I have provided a more extensive account in ‘Adam Smith: Commerce, Liberty and Modernity’ in P.Gilmour, ed, Philosophers of the Enlightenment, Edinburgh: Edinburgh U.P., 1989 pp.113-32 and in Social Theory of the Scottish Enlightenment Ch. 6. 31 This is a central feature not only of Smith but the Scottish Enlightenment as a whole (Ferguson not excepted - see his critique of the tradition that would attribute to ‘Great Legislators’ institutions/constitutions that are properly accounted for by ‘the situa­ tion and genius of the people’ [124]). I have elaborated upon this in my Social Theory of

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tant intensification of the division of labour. This change is for Smith a ‘revolution of the greatest importance to the publick happiness’. For the purposes of this paper, the relevant moral to be drawn from this highly abbreviated 30 outline of Smith’s account is two-fold. Firstly it sees an autonomous dynamic in what can defensibly be called the ‘social’.­ There are forces at work – systems of ownership (property) and ways of behaving (manners) – that operate independently of political decision. Moreover these ‘forces’ are institutional rather than individual. Of course individual landlords and merchants interacted but neither had the ‘least intention to serve the publick’ nor did they have ‘knowledge or foresight of that revolution’. Social change (from the agriculture to the commercial age) is explicable by social causes.31 Secondly, this self-same ‘revolution’ also established a necessary role for the state. This is a recognisably ‘modern’ state; it is constituted by rules and offices and is not crucially dependent on the exercise of specific political ‘virtues’ and its chief tasks are to provide (via the three roles noted above) a stable framework within which individuals (and groups) can function.32 III My aim in these two examples has not been to make a case for regarding­Hume and Smith as harbingers of a notion of civil society like the one cited at the beginning of this paper. Leaving aside the intrinsic problems and textual/interpretative difficulties in tracing filiations of ideas, the aim was more modest. Hume, Smith and Ferguson, together the Scottish Enlightenment Ch.2 and in a forthcoming essay in the Cambridge Companion to the Scottish Enlightenment (2003). 32 Cf. J. Habermas who links the development of a civil society to the depersonalisation of public authority The Structural Transformation of the Public Sphere tr. T. Burger & F. Lawrence (Cambridge MA: MIT Press, 1992) p. 19. 33 Varty, ‘Civil or Commercial’ pp. 44-45. Cf. also Keane, ‘Despotism and Demo­ cracy’­p. 42. 34 Varty, ‘Civil or Commercial’ p. 44. 35 Gellner, Conditions of Liberty p. 61. 36 Keane, ‘Despotism and Democracy’ p. 43.

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with other Scots who I have not here discussed, can I think be justifiably have said to recognise the ‘social’ as an object of study. Humans are best understood as social, rather than as monadic individuals, or familial members or political animals even though in context they are also each of those. This sociality expresses itself in their institutions, which include, in addition to families, political/governmental arrangements as well as religion, ranks (class), patterns of ownership, customs and values. Moreover these interlock so that there is a internal coherence. On this basis a rude society will have little in the way of personal physical possessions, nothing to speak of in the form of governmental machinery, treat their enemies with deliberate cruelty, exhibit few status distinctions except the inferiority of women, will live in a world populated with a multiplicity of gods and will likely bedaub or even mutilate themselves. While in contrast a commercial society will treat as property abstractions like credit notes, will experience the rule of law, will behave humanely, and will be formally monotheistic in its beliefs, accurate and discerning in its moral judgements and manifest ‘good taste’ in its aesthetic evaluations. If it is granted that the Scots did grasp the idea of ‘society’ as a set of interlocking institutions, which I take to approximate Frentzel-Za­ gorska’s notion of ‘self-organisation’, then a contribution to a concept of ‘civil society’ (as now understood) could be upheld. This, however, is a weak claim; at best, it could constitute a necessary condition. If a particular relationship to the state (as ‘outside but not disconnected’ in Frentzel-Zagorska’s phrase) is deemed equally necessary then the case for the Scots is more problematic. I have suggested schematically that there is a ‘space’ within Hume and Smith’s model of commercial society for a conception of state/society relations that is not dissimilar (or potentially so) to something recognisable in current usage. Two final caveats are in order. First, the ‘contested’ nature of the notion­of civil society means that Humean/Smithian orientation could be judged to provide an overly ‘liberal’ understanding. Ferguson’s merits, as we have noted, have been thought by some to be valuable precisely because his republican bent demands more of citizens, and thus more politics, than the liberal model. My own analysis of Ferguson in effect reinforced that. However, his republicanism, with its reliance on martial (masculine) qualities of virtu, affords less conceptual space for the democracy­that the critics of the liberal idea of civil society champion (a

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point acknowledged by Varty 33) so on those grounds his account is less recognisably cognate to current usage – or a dominant stream therein – than that of Hume and Smith. The second caveat concerns those ‘grounds’ and hearkens back to the pitfalls that accompany attempts at invoking historical­precedents. While it is too hasty (and itself not free of its own problems) to dismiss as necessarily mistaken any conceptual link between the ideas of the Scots then and ‘us’ now, this analysis has refrained from attributing to any of these three an idea of ‘civil society’. It has even refrained­from claiming that they contain ‘critical insights’34 or ‘profound and important’ perceptions 35 or pose ‘with great clarity a thoroughly modern political dilemma’.36 All that it has done is identify a ‘conceptual space’. That is a purely formal notion and its lack of intellectual substance leaves open to debate the value of this exercise in conceptual cartography. Christopher J. Berry

(Department of Politics – University of Glasgow)

KANT ENTRE TRADICIÓN Y MODERNIDAD: HACIA UNA NUEVA VISIÓN REPUBLICANA DE LA SOCIEDAD CIVIL 1 En el pensamiento político de Kant no hay una concepción de la ‘sociedad­civil’ en los términos liberales en los que este concepto fue entendido­desde comienzos del siglo XIX. La historiografía kantiana ha tendido, sin embargo, a situar la teoría crítica del derecho y del Estado en línea de continuidad con una tradición liberal moderna cuyas bases habrían­sido establecidas por John Locke y desarrolladas por los filósofos morales de la Ilustración escocesa (D. Hume, A. Ferguson, A. Smith), bien conocidos por el pensador de Königsberg. No han faltado, empero, comentaristas que, conscientes de que algunas relevantes doctrinas jurídicopolíticas de la obra de Kant (‘soberanía popular’, ‘voluntad general’, etc.) no encajaban en el modelo propuesto, han matizado la interpretación usual haciendo del filósofo prusiano el punto de confluencia sintética entre el liberalismo de Locke y el pensamiento democrático de Rousseau. Esta posición tiene ciertamente la rentabilidad teórica y pedagógica de que puede dar cuenta de la evolución de la historia política contemporánea desde el liberalismo a la democracia con sólo remitirse a la obra de Kant. Pero sobre todo tiene la ventaja legitimadora de que permite combinar 1  A

lo largo de este ensayo emplearé las siguientes abreviaturas para referirme a las obras de Kant: AA= Kant’s gesammelte Schriften, hrsg. von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften, Berlin 1907 ss.; Anthropologie= Anthropologie in pragma­ tischer Hinsicht (1798, 1800); MdS= Metaphysik der Sitten (1797-98); Gemeinspruch= Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis (1793); Idee= Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht (1784); ZEF= Zum ewigen Frieden (1795); SF= Der Streit der Fakultäten (1798); WA= Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? (1784). En cuanto al modo de citación, incluyo primero la referencia a la página de la obra en su primera edición (A) y en la segunda (B), si la hubiere, seguida del volumen y página correspondiente a la edición de la Academia de Berlín (AA). 2  Por ‘temporalización’ (Verzeitlichung) se entiende la conversión del tiempo en

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una teoría democrática del Estado con una teoría liberal de la sociedad civil, como esfera privada de relaciones sociales extrañas al dominio político y basadas en la libertad e igualdad de los individuos, sujetos al mecanismo natural del mercado. En su empeño por legitimarse, allanando las diferencias,­como la única alternativa moderna al orden estamental, el liberalismo,­en convergencia a este respecto con la crítica marxista de la ideología, que aspiraba, en cambio, a deslegitimarlo, ha creído así ver en Kant un fiel compañero de viaje. Sin embargo, en los escritos de Kant la sociedad civil, lejos de presen­ tarse como un espacio apolítico de relaciones sociales entre particulares, es inseparable del Estado hasta el punto de que se constituye como tal comunidad de socios precisamente a partir del orden de dominio establecido por ellos. Con semejante concepción política de la sociedad civil Kant se situaba más bien en línea de continuidad con la tradición aristotélica, de la que asumía incluso el inveterado lema societas civilis sive res publica, con el cual hasta el siglo XVIII se había venido reconociendo la articulación política inherente a la vida social. Pero este planteamiento teórico republicano había perdurado a lo largo de tantos siglos, porque había sido capaz de dar cuenta también del orden de dominio sobre el que se fundó desde el Medievo la sociedad estamental, esa sociedad tradicional que había entrado en crisis en la época de la Ilustración, amenazada tanto por la progresiva sustracción de poder en favor del Estado­a la que la sometían las monarquías absolutas, como por las doctrinas­ iusnaturalistas e ilustradas que proclamaban la libertad e igualdad­natural de los hombres. Kant no podía ignorar estas tendencias estructurales del mundo social moderno. Por eso su reclamo del antiguo principio aristotélico sólo podía tener sentido, sin incurrir en la regresión o el anacronismo, si encerraba únicamente una propuesta política de fundar una nueva sociedad civil republicana sobre los supuestos iusnatu­ralistas de liberación burguesa de la sociedad civil estamental. Creo que esta perspectiva de construcción de un orden político republicano sobre cimientos jurídicos de emancipación liberal, es la idónea para comprender adecuadamente la teoría kantiana de la ‘sociedad civil’. Obviamente esta propuesta de ‘republicanismo moderno’ no podía formularse sin someter los conceptos en juego a una transformación semán­tica que los hiciera operativos para orientar los nuevos procesos históricos en la dirección emancipatoria que anunciaba la comprensión

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liberal burguesa del mundo y de la sociedad, sin renunciar, empero, a la sabiduría política acumulada desde antiguo en relación con la paz y la felicidad terrenal de los hombres. De ahí que, por un lado, el viejo concepto empírico-realista de República y, por ende, el de ‘sociedad civil’ correspondiente resulte movilizado, universalizado e idealizado normati­vamente por Kant al ser insertado en el marco proyectivo de la filosofía ilustrada de la historia, marcada por la idea de progreso jurídico; y que, por otro lado, el individualismo emancipador, característico del iusnatu­ralismo moderno, quede transfigurado moralmente mediante el reconocimiento de la sociabilidad natural del hombre y de su destino político con vistas al cumplimiento racional de sus aspiraciones naturales más profundas. De esta manera, en la concepción de Kant van unidas la tempora­lización 2 jurídico-normativa de la sociedad civil republicana y la politi­zación republicana de la sociedad civil burguesa, asentada en la idea de libertad natural del individuo. En las páginas siguientes vamos a ver primero­cómo Kant fundamenta este doble proceso en la filosofía de la historia, para pasar a examinar después propiamente la articulación sistemática interna del viejo concepto republicano de ‘sociedad civil’ en el marco categorial del iusnaturalismo moderno, tal como figura en la filosofía del derecho y en otros escritos de filosofía política. 1.  Temporalización histórica y normatización jurídica de la ‘sociedad­ civil’ en el contexto de la filosofía de la historia En su breve opúsculo Ideas para una historia universal en sentido cosmopolita (1784), Kant postula la instauración de la sociedad civil como meta última de la historia y la presenta al mismo tiempo como una consecuencia necesaria de la naturaleza humana. Esta doble consideración introduce en el concepto una ambivalencia que dificulta la percepción fuerza cualificadora de la historia, determinada sin duda por la idea de progreso, así como su incorporación a la semántica de los conceptos históricos, que devienen por ello meros conceptos de movimiento, esto es, nociones cuyo significado se carga de una dimensión temporal interior, fundamentalmente proyectiva. Según R. Koselleck, este fenómeno, que se inicia en el último tercio del siglo XVIII, representa el verdadero novum de la moder­nidad (cf. R. Koselleck, Futuro pasado, Barcelona: Paidós 1993, pp. 307, 324 ss.). 3 Cf. SF A 155, AA VII, 91, donde Kant se sirve de la distinción crítica entre Noumena y Phaenomena para subrayar la distancia entre la noción ‘normativa’ pura de

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clara de su conexión con los procesos históricos de la modernidad. Dicha­ ambivalencia estaría relacionada, en efecto, con dos modelos diferentes de ‘sociedad civil’, uno genuinamente normativo, el otro propiamente histó­rico,­que parecen solaparse en el texto, y cuyos conceptos respectivos habría que considerar, en cualquier caso, como ‘indicadores’ o al menos ‘factores’ de estructuras sociales bien distintas. A este respecto conviene, no obstante, hacer dos observaciones aclaratorias. La primera es que Kant usa el término ‘sociedad civil’ para referirse exclusivamente a aquel concepto ‘normativo’, bien en sí mismo considerado, como ideal regulativo puro, bien de manera subsidiaria, tal como puede hallarse en cualquiera de sus réplicas empíricas del pasado o del presente, en tanto que constituyen meras copias o ‘ejemplos en la experiencia’ de aquel ideal normativo 3. En cambio, el concepto ‘histórico’ aquí mencionado ha de rastrearse tras el uso kantiano de otros términos en los que la tradición historiográfica ha tendido a ver una acuñación lingüística indicativa de determinadas estructuras históricas asociadas posteriormente (así, en el siglo XIX) con la noción de ‘sociedad civil’. La segunda observación es que aquel concepto ‘normativo’ contiene la comprensión republicana de la societas civilis característica de Kant, mientras que este concepto ‘histórico’ disolvería el republicanismo kantiano en una visión liberal de la sociedad civil, típicamente burguesa. A continuación comenzamos discutiendo brevemente esta noción ‘histórica’, antes de analizar el sentido de aquella concepción ‘normativa’ en los textos kantianos de filosofía de la historia, especialmente en el mencionado ensayo de 1784. 1.  Sobre un presunto modelo ‘histórico’: ¿una sociedad civil de libre­ mercado o una sociedad política? Según cierta tradición historio­gráfica, parece desprenderse de los escritos de filosofía de la historia de Kant un concepto de ‘sociedad civil’ perfectamente asimilable al modelo­clásico del liberalismo burgués. Se trataría de aquella concepción apolítica de la sociedad civil con la que el filósofo crítico, aun sin nombrarla­ como tal, se habría hecho eco a finales del siglo XVIII de una incipiente esfera social burguesa separada del Estado moderno. El modo indirecto como esta sociedad civil (respublica noumenon) y sus diversas imágenes ‘empíricas’ (respublica phaenomenon). 4 Cf. Idee A 405, AA VIII, 27-28. El concepto kantiano de ‘libertad civil’ delimita, empero, un ámbito práctico más amplio que el de la mera libertad económica y comercial (laissez faire); se refiere a toda la esfera de acción relacionada con la felicidad y el biene-

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esfera social emergente se habría concretado en el pensamiento político kantiano, habría sido a través del concepto de insociable sociabilidad, complementado con la noción de libertad civil, entendida sobre todo como libertad comercial4 . Para esta línea de interpretación liberal de Kant la armonía social resultante del antagonismo de las inclinaciones naturales expresaría simplemente el ordre naturel producido por la propia autorregulación mercantil de los diversos intereses privados concurrentes. En consonancia con los filósofos de la Ilustración escocesa (particularmente con A. Smith), Kant no sólo habría concebido la sociedad civil como esfera autónoma, apolítica, del mercado libre, sino que además habría convertido el antagonismo de los intereses económicos en motor y garantía del progreso histórico 5. Contra esta interpretación liberal de Kant basada en su filosofía de la historia cabe hacer aquí algunas breves observaciones relacionadas tanto con la noción de ‘insociable sociabilidad’ como con el concepto de ‘sociedad civil’ ligado a ella. En primer lugar, el concepto kantiano de ‘insociable sociabilidad’ no se restringe al espacio de las relaciones socioeco­nómicas marcadas por la concurrencia hostil de los intereses de posesión y el afán de lucro; más bien abarca todo el ámbito de las inclinaciones naturales de la especie humana cuya satisfacción comporta relaciones­sociales de hostilidad entre los individuos, en la medida en que tienden a configurarse como relaciones de dominio de unos sobre otros. Su lugar natural en la estructura antropológica de la especie es lo que Kant llama la ‘disposición pragmática’ a «utilizar hábilmente a otros hombres» star del individuo, e incluye al menos la libertad de conciencia, la libertad de expresión y la libertad propiamente económica (laboral, comercial, contractual...) (cf. WA A 493, AA VIII, 41; y Gemeinspruch A 235, AA VIII, 290). 5  Entre los más representativos de esta interpretación cabe citar a J.Habermas, Historia y crítica de la opinión pública, Barcelona: G. Gili 1994, 5ªedic., p.142ss.; R. Saage, Eigentum, Staat und Gesellschaft bei I.Kant, Stuttgart/Berlin/Köln/Mainz: W. Kohlhammer 1973, p. 71 ss.; y P. Koslowski, Staat und Gesellschaft bei Kant, Tübingen: J.C.B. Mohr 1985, p. 17 ss. Merecería, en cambio, más atención un estudio de la posible relación de esta doctrina kantiana del ‘plan secreto de la naturaleza’, cifrado en el antagonismo de las inclinaciones, con la tradición estoica (cf. J. M. Seidler, The Role of Stoicism in Kant’s Moral Philosophy, Saint Louis 1981, pp. 485-605; R. Rodríguez Aramayo, Crítica de la razón ucrónica, Madrid: Tecnos 1992, p. 205 ss.). 6  Anthropologie A 316/B 314, AA VII, 322. Esta disposición pragmática se canaliza fundamentalmente a través de lo que Kant llama la «inclinación a tener la capacidad [Vermögen] de influir en general sobre los demás hombres» mediante la posesión de

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para nuestros propios propósitos de supuesta felicidad individual 6. Esta disposición conlleva una tendencia natural del ser humano a relacionarse­ con los demás miembros de su especie, de los que no puede prescindir para cumplir las propias intenciones egoístas, a la vez que, paralelamente, una tendencia contraria a aislarse e individualizarse para no ser utilizado­ y sometido por ellos. A este proceder de la naturaleza, según el cual el impulso del hombre a entrar en sociedad como única forma de desarrollo de sus inclinaciones naturales, va acompañado de una propensión paralela a la disgregación y al aislamiento ante la inevitable colisión de las voluntades egoístas, es a lo que se refiere la doctrina kantiana de la ‘insociable sociabilidad’. El texto de Ideas para una historia universal en sen­tido cosmopolita concreta este antagonismo social en las tres ‘pasiones’ derivadas de la inclinación a disponer de la capacidad de influir sobre los demás hombres: el ‘afán de honor’, el ‘afán de dominio’ y el ‘afán de posesión’ 7; y – lo que es más importante – destaca como efecto socializador de las mismas, en virtud del cual se favorece el desarrollo y perfeccionamiento de las disposiciones naturales del hombre, el surgi‘honores, poder y dinero’, como presunta forma de sometimiento de la voluntad de ésto, inclinación que tiende a cristalizar en las tres ‘pasiones’ siguientes: afán de honor, de poder y de riqueza (cf. Anthropologie A 235-36/B 234-35, AA VII, 271). 7 Cf. Idee A 392-93, AA VIII, 21; Anthropologie A 235-36/B 234-35, AA VII, 271. Acerca de estas pasiones como expresión de la insociable sociabilidad véase A. Philo­ nenko, La théorie kantienne de l’histoire, Paris: J. Vrin 1986, pp. 90-94; y K. Weyand, Kants Geschichtsphilosophie. Ihre Entwicklung und ihr Verhältnis zur Aufklä­rung, Köln: Universitäts-Verlag 1963, p. 83 ss. J. L. Villacañas, «Kant», en: V. Camps (ed.), Historia de la ética. 2. La ética moderna, Barcelona: Crítica 1992, p. 356 ss. ofrece una interpre­ tación diferente de la doctrina de la ‘insociable sociabilidad’, ciertamente plausible, pero desajus­tada al texto de Ideas.Según esta interpretación, la insociable sociabilidad no se refiere propiamente a las ‘pasiones’ (formas ilusorias y perversas de felicidad individual, en la medida en que conllevan una máxima de subordinación de la propia vida a una inclinación dominante en detrimento de las demás), sino más bien al ‘amor propio’ (Selbstliebe), esto es, al tipo de conducta guiada por una máxima prudencial de satis­facción­ armónica de todas las inclinaciones naturales (forma saludable de felicidad individual);­y lo que dicha doctrina significa es que los diversos proyectos de felicidad individual, basados en el ‘amor propio’, por lo mismo que sólo pueden llevarse a cabo bajo condiciones sociales de relación con los demás hombres, entran inevitablemente en conflicto entre sí, porque no son universalizables sino estrictamente individuales. Esta interpretación, aun no siendo contraria al sentido de la doctrina kantiana, no corresponde ni al texto ni al planteamiento de la misma en el opúsculo de 1784. En efecto, allí el planteamiento en el que se inserta dicha doctrina atiende al problema de la ‘felicidad general’­de la especie, no al de la ‘felicidad particular’ del individuo, y desde esa perspectiva es indiferente si

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miento de una cultura de la apariencia social que transforma al hombre natural en un «ser pulido, destinado a la concordia»  8. Semejante efecto cultural, por cuanto comporta una especie de ‘segunda naturaleza’, un orden de relaciones humanas reglado por la prudencia (buenos modales, cortesía, refinamiento, gusto...), define el estado de civilización de un pueblo o de una comunidad. En suma: Kant no comparte los supuestos antropológicos de la teoría liberal de la sociedad civil. El individualismo hobbesiano de los intereses egoístas (no exclusivamente posesivos, en este caso) tiene en su propia base sociable y en su potencia socializadora un contrapeso aristotélico 9. A su vez, la armonía resultante del antagonismo social no se resuelve propiamente en un bienestar público de índole técnico-económica sino más bien en progreso en la sociabilidad o civilización de la especie humana. En segundo lugar, forma parte del efecto socializador del antagonismo de los intereses egoístas la fundación de un orden político común, en el cual la diversidad de proyectos de felicidad individual sea armonizada bajo una voluntad general legisladora que garantice bajo coacción y mediante ciertas restricciones su compatibilidad. Ciertamente para Kant la sociedad civil es el producto civilizador más relevante de la insociabilidad humana, pero no entiende por ella una sociedad de libre mercado, separada del Estado (y ni siquiera una esfera autónoma de opinión pública), sino una sociedad articulada políticamente, bajo un poder coactivo común 10. El motivo es que la pluralidad de proyectos individuales de felicidad sólo puede ser armonizada socialmente por una autoridad pública­que restrinja la «voluntad propia y la obligue a obedecer a una voluntad­universalmente el egoísmo que mueve a los hombres es nocivo o saludable para ellos como individuos, con tal de que sea bueno para el desarrollo de la especie. Más aún: lo que Kant pretende subrayar al vincular en el texto la ‘insociable sociabilidad’ a las ‘pasiones’ humanas es que incluso el vicio, el proyecto de felicidad ilusorio o pernicioso para el individuo, tiene un efecto civilizador beneficioso para el perfeccionamiento de la especie. 8 Anthropologie A 319/B 317, AA VII, 323. 9 Sobre esta suerte de ‘aristotelismo hobbesiano’ de Kant cf. J.L. Villacañas, o.c., 358 y Res Publica. Los fundamentos normativos de la política, Madrid: Akal 1999, p. 35 ss. 10 La identidad o indistinción entre ‘Estado’ y ‘sociedad civil’ era un lugar común en Alemania, particularmente en Prusia, durante el siglo XVIII (cf. W. Conze, «Das Spannungsfeld von Staat und Gesellschaft im Vormärz», en: W. Conze (Hrsg.), Staat und Gesellschaft im deutschen Vormärz 1815-1848, Stuttgart: Klett 1962, pp.207-269). Sobre las diversas condiciones históricas que a lo largo del siglo XVIII contribuyeron a esta separación conceptual v. W. Conze, «Staat und Gesellschaft in der frührevolutionären Epoche

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válida» 11. En virtud de la resistencia antisocial de cada hombre las relaciones horizontales de una sociedad sólo pueden verificarse plenamente en una relación vertical de dominio. Así, el estado­de naturaleza social postula por sí mismo el paso al estado civil. Contra los supuestos liberales, el antagonismo de los intereses privados sólo genera­orden y progreso social si resulta canalizado a través de la institución estatal. En este sentido, el mecanismo de la naturaleza en un ser dotado de entendimiento como el hombre conduce por su propia dinámica prudencial a la fundación del Estado 12. Dicho de otro modo: la sociedad civil no es una institución antinatural sino el destino racional de la propia naturaleza humana, la consecuencia histórica de la insociable sociabilidad del hombre. Mas, en tercer lugar, con la instauración de un orden político común no hay todavía propiamente una ‘sociedad civil’, o ésta existe sólo de una manera muy imperfecta. En rigor la sociedad civil emerge únicamente allí donde la comunidad política se ha constituido como un orden jurídico perfecto. Ciertamente cualquier comunidad social articulada en torno a una autoridad legal que haya surgido incluso como ordenación neutrali­ zadora de las inclinaciones egoístas, esto es, una sociedad fundada en «un consenso forzado patológicamente» 13, representa un avance jurídico, porque tiene «apariencia moral», aun sin conformar en sí misma un «todo moral» 14, es decir, conlleva la afirmación de las tendencias universa­ lizadoras de la sociabilidad frente a los impulsos narcisistas y violentos de las inclinaciones insociables. Pero hay aquí un límite insuperable para el Deutschlands», Historische Zeitschrift 186 (1958), 1-34, y especialmente E. Angermann, «Das ‘Auseinandertreten von Staat und Gesellschaft’ im Denken des 18.Jahrhunderts», Zeitschrift für Politik. N.F. 10:2 (1963), 89-101. 11 Idee A 397, AA VIII, 23. Debido a su propensión insociable el hombre «necesita de un señor», esto es, de una autoridad coactiva, para permanecer en sociedad, sin interferir en la voluntad de otro. Cf. Reflexion zur Anthroplogie Nr. 1500, AA XV, 785-86; Anthropologie A 328-29/B 326-27, AA VII, 329. 12 Cf. Idee A 392, AA VIII, 20; ZEF A 60/B 61, AA VIII, 366. Aquí parece ser indiferente (Kant no lo especifica) que lo que mueva a la reflexión prudencial a fundar un orden coactivo común (Estado), sea el egoísmo del ‘amor propio’ o el de las ‘pasiones’, esto es, la felicidad individual bien o mal entendida. 13 Idee A 393, AA VIII, 21. 14 Cf. ZEF A 80/B 85 nota, AA VIII, 375-76. 15 Cf. J.L. Villacañas, Res Publica, p. 50 16 Idee A 394, AA VIII, 22. 17 Sobre esta temporalización histórica de las categorías iusnaturalistas y su efecto en

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mecanismo de la naturaleza que ésta sólo puede traspasarlo poniéndose en manos de la razón pura. Pues el antagonismo natural facilita, con su efecto socializador, el surgimiento de un orden jurídico (o al menos de apariencia jurídica) pero no lo crea por sí mismo. En este punto Kant va también más allá del orden liberal burgués, al reclamar la autotras­cen­dencia del individualismo egoísta en el derecho 15. Toda comunidad polí­tica, i­ncluso la fundada en torno a una autoridad meramente protectora del mercado libre, constituye una ‘sociedad civil’, pero sólo vica­ria­mente, en la medida en que marca un hito histórico o representa un paso irrenunciable hacia la comunidad política justa, la única ‘sociedad civil’ por antonomasia. 2.  Dinamización histórica de la ‘sociedad civil’ como meta de la ‘civilización’.­El quinto principio de Ideas para una historia universal en sentido cosmopolita propone como horizonte teleológico de la especie humana la «instauración de una sociedad civil que administre universalmente el derecho»16. No cabe duda de que con semejante proyección histórica la societas civilis pierde en Kant el carácter de hecho natural e inmutable­que tenía en la tradición aristotélica, y aparece, en consonancia con el iusnaturalismo moderno, como un producto de la razón y libertad­ humanas con el que se pone punto final al estado de naturaleza. Ahora bien, lo significativo aquí es que el tránsito a la sociedad civil no acaece como un acto real y definitivo sino como un proceso histórico infinito de perfeccionamiento, como una tarea constante, cuyo cumplimiento se entrega al porvenir de las generaciones venideras. Kant sustituye así el marco ‘estático’ de la concepción iusnaturalista moderna de la sociedad civil como orden o status civilis por el marco ‘dinámico’ de la teoría ilustrada del progreso histórico, dentro del cual societas civilis puede entenderse como culminación del devenir de la civilización, que afecta tanto a los individuos como sobre todo a los pueblos. Sociedad civil equivale, pues, en sentido riguroso a sociedad plenamente civilizada. Con esta dinamización histórica de la sociedad civil Kant se situaba en la estela de la filosofía moral escocesa – y particularmente de Adam Ferguson, An Essay on the History of Civil Society (1759) –, que había investigado los cambios estructurales producidos en la sociedad tradicional Alemania en la segunda mitad del siglo XVIII, cf. M. Riedel, «Gesellschaft, bürgerliche», en: O. Brunner/W. Conze/R. Koselleck (hrsg.), Geschichtliche Grundbe­griffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, Stuttgart: Klett-Cotta 1998 (4ª edic.), vol. 2, pp. 747-751.

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europea desde el siglo XVII en su tránsito hacia la sociedad liberal burguesa y los había interpretado como un progreso natural de la barbarie a la civilización. De hecho, este marco conceptual había ido consolidándose también desde mediados del siglo XVIII tanto entre los ilustrados franceses como incluso dentro la filosofía popular alemana 17. En la filosofía kantiana de la historia semejante marco categorial de la autocom­prensión burguesa experimenta, sin embargo, un cambio semántico notable, al menos en un doble sentido. Por un lado, Kant proyecta la sociedad civil sobre el horizonte de la historia como una idea regulativo-práctica que impone a toda la especie humana la tarea de una aproximación asintótica a la misma mediante un proceso constante de mejora de las relaciones sociales existentes, a través de una incesante civilización. De este modo, se evita la tentación de identificarla con una estructura histórica real como la incipiente ‘sociedad burguesa’, un simple momento, ciertamente significativo en el proceso civilizador, cuyos efectos perversos Kant no ignora tras su asimilación de la crítica rousseauniana. Mas, por otro lado, lejos de pensar la sociedad civil como una esfera autónoma con respecto al Estado y al poder, Kant la concibe como un orden eminentemente político en el que, sin embargo, las relaciones de dominio están reguladas por la idea del derecho y la justicia. De este modo, no sólo el proceso histórico de civilización de la especie humana tiene carácter político, sino que además sólo puede consumarse con la instaura­ción de un orden político justo, en el que los elementos desintegradores de la naturaleza humana y de su proceso civilizador resulten neutralizados­ y armonizados mediante leyes coactivas de la libertad común. Con esta comprensión política de la ‘sociedad civil’ y su proyección normativa como idea reguladora de la acción histórica Kant prolonga el espíritu del republicanismo antiguo en el horizonte de la civilización moderna. 3.  Idealización normativa: la ‘sociedad civil’ como orden jurídico. Una de las convicciones más firmes del pensamiento kantiano con respecto al ‘estado civil’ es que no todo orden político ni cualquier relación de dominio común garantiza un desarrollo autónomo y armónico de los 18 Cf. MdS. Primera Parte, AB 32-34, AA VI, 230-31. Cf. idem, &41, A 157/B 156, AA VI, 307: «Por tanto, aquella unión [civil] no es tanto una sociedad, sino que más bien la produce [macht]». 20 Cf. M. Riedel, «Gesellschaft, bürgerliche», Geschichtliche Grundbegriffe, vol. 2, p. 758. 21 Cf. Idee A 398 ss., AA VIII, 24-27. 19

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diversos proyectos de felicidad, sino sólo aquél que se ajusta a la idea del derecho. Pero ésta es un idea moral, que no resulta del mecanismo de la naturaleza sino de la propia libertad del hombre, y que se refiere precisamente a la compatibilidad de los arbitrios individuales según una ley universal 18. Esta idea exige, pues, que la relación social de dominio político se configure según leyes de libertad o, lo que es lo mismo, que la coacción legal común sea fruto de la libertad de todos los arbitrios reunidos en una voluntad común legisladora. Esta voluntad común con fuerza coactiva, soberana, fuente del derecho público que cristaliza en la ‘constitución política’, funda precisamente un orden social nuevo 19, una comunidad­de ‘ciudadanos’ basada en relaciones jurídicas de igualdad y reciprocidad, a la que Kant no en balde denomina societas civilis sive res publica. Con todo, el sentido del dicho aristotélico se halla aquí completamente alterado. Pues, por un lado, la sociedad civil no constituye ya una sociedad natural sino que es más bien el efecto de la institución política del Estado, y, en cuanto tal, no representa, por otro lado, más que el orden jurídico de actuación de la voluntad general 20. Por lo primero, como producto de la organización política, la sociedad civil sólo se da bajo una constitución republicana; por lo segundo, como comunidad regulada universalmente por el derecho, la sociedad civil es el único horizonte de la vida social en el que es posible el desarrollo pleno de todas las disposiciones naturales del hombre y, por ende, la realización de los múltiples proyectos de felicidad individual. Este es el punto en el que el orden de la naturaleza postula su autosuperación en un orden moral de la razón. Pues el orden jurídico es ciertamente una creación racional del hombre y, como tal, una tarea ética de la humanidad; pero no constituye un orden­ radicalmente extraño a la naturaleza misma sino más bien el telos (fin último) de su propio cumplimiento, en el cual ella se autotrasciende al consumarse. Es así como la felicidad de la especie viene a ser una consecuencia del esfuerzo moral por hacerse digno de ella. Ahora bien, esta idea racional pura de ‘sociedad civil’ como comuniCf. Anthropologie A 331-32/B 329-30, AA VII, 331; MdS. Primera Parte, & 62, A 229ss./B259ss., AA VI, 352-53 23 Cf. MdS. Primera Parte, &45, A 164-65/B 194-95, AA VI, 313; & 52, A 212-13/B 241-42, AA VI, 340-41; A 234-35/B 265, AA VI, 355; Anthropologie A 332/B 329-30, AA VII, 331; SF A 154-55, AA VII, 91. 24 La legitimidad jurídica provisional de cualquier institución histórica con respecto 22

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dad jurídica republicana, que es al mismo tiempo fin último de la historia natural del género humano, conlleva su extensión universal a las relaciones entre todos los Estados y los pueblos de la tierra hasta constituir una ‘sociedad civil cosmopolita’, esto es, una comunidad pacífica universal de toda la especie humana. Ello se debe no sólo a que el establecimiento efectivo de una determinada constitución republicana será inviable mientras persista una situación de guerra potencial entre los Estados, sino sobre todo a que el desarrollo pleno de todas las disposiciones naturales del hombre como tarea de la especie humana 21, así como la universalidad del derecho mismo, fundado en la idea de humanidad, exigen su cumplimiento en un orden jurídico cosmopolita sobre toda la Tierra, en una ‘sociedad civil universal’ constituida por ciudadanos del mundo 22. Por último, la idea de sociedad civil republicana junto con su proyección cosmopolita como ‘sociedad civil universal’, constituye para Kant un principio regulativo-práctico que sirve de norma para toda comunidad política existente así como para toda forma de Estado23 . Ello implica una relación de tensión insalvable con respecto a la realidad histórica, traspa­ sada constantemente por la ambivalencia de su provisionalidad jurí­dica  24.­ Pues, por un lado, toda constitución política efectiva, con independencia de su origen histórico, y toda forma de Estado (monarquía, democracia, aristocracia...), en cuanto meramente empírico-estatutaria, se hallan sujetas al deber de aproximarse o adecuarse a aquella idea de la constitución a la idea a priori del estado civil forma parte de la dinámica kantiana del derecho, desde la propiedad en el ‘estado de naturaleza’ (cf. MdS. Primera Parte, &9, AB 74ss., AA VI, 256-57) hasta el derecho de gentes entre los Estados (cf. MdS. Primera Parte, &61, A 226-27/B 256-57, AA VI, 350), pasando por las diversas formas políticas antiguas y modernas (cf. MdS. Primera Parte, &52, A 212/242, AA VI, 341), incluso si gobiernan conforme al espíritu republicano (cf. SF A 155-56, AA VII, 91). Esta doctrina de la ‘provisionalidad jurídica’ expresa tanto la idea de que no hay un grado cero del derecho, mientras los hombres, por naturaleza, se hallen en relaciones sociales, ni una imagen histórica perfecta que pueda servir de modelo jurídico, mientras los hombres mantengan, por naturaleza, sus tendencias insociables, sino una situación de ‘progreso jurídico’ constante (cf. J.L. Villacañas, Res Publica, pp.74-78), que saca a relucir la ‘temporalización histórica’ del derecho en Kant como estructura realizativa de su normatividad ideal. Sobre esta forma dinámica de realidad (o realización) del derecho y su conexión con el concepto kantiano de ‘ley permisiva’, véase M. Hernández Marcos, «Ley permisiva y realidad del derecho en Kant», en: R. Rodríguez Aramayo/F. Oncina (comp.), Ética y Antropología: un dilema kantiano, Granada: Comares 1999, pp. 143 ss. 25 Cf. J.L. Villacañas, Res Publica, p. 76-77.

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republicana mediante un progresivo reformismo de sus instituciones y principios, mediante un aumento creciente de su legalidad para poder entrar en un estado jurídico definitivo. En este sentido, ninguna sociedad vigente articulada en torno a un Estado constituye propiamente, en virtud de su indigencia jurídica, una ‘sociedad civil’. Mas, por otro lado, esta exigencia crítica de progreso jurídico inscrita en el ideal republicano tiene su contrapartida legitimadora en el deber de conservación jurídica de toda constitución política existente, puesto que aun en su provisionalidad e imperfección constituye por sí misma un orden legal en el que se vislumbra al menos, en contraste con el desorden salvaje del estado de naturaleza, la propia normatividad del derecho, como relación social no violenta 25. El mismo dinamismo jurídico-normativo que impone la transformación continua de las relaciones políticas vigentes, postula la preservación de éstas como una adquisición jurídica preferible al caos de la violencia natural. En este sentido, cualquier comunidad histórica de relaciones sociales articulada según leyes públicas constituye, en virtud de su potencial jurídico, una ‘sociedad civil’. De ahí que en consonancia con esta ambivalencia semántica determinada por la temporalización o dinamización histórica del concepto de ‘derecho’, la noción kantiana de ‘sociedad civil’ se mueva de continuo entre su sentido normativo-puro, originario y estricto, y su sentido empírico,­derivado y provisional, contrapartida fenoménica del ideal racional. -.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.Como breve balance de este apartado, podemos resumir la visión kantiana de la ‘sociedad civil’ en el contexto de la filosofía de la historia en tres tesis fundamentales: 1)  En primer lugar, Kant somete la ‘sociedad civil’ a un proceso de dinamización histórica al proyectarla como meta del progreso en la civi26 I. Kant, MdS. Primera Parte, &46, A 166/B 196, AA VI, 314. Existe cierta asimetría en los opúsculos kantianos en relación con estos tres principios. Pues, por un lado, el texto de Über den Gemeinspruch A 235 (AA VIII, 290), si bien mantiene el mismo orden y designación de los principios que la versión de la Doctrina del Derecho, introduce, sin embargo, un concepto de ‘libertad’ que por su alcance estrictamente privado no es equiparable al concepto político de ‘libertad legal’ contemplado en el &46 aquí citado. Por otro lado, la exposición de Zum ewigen Frieden AB 20 (AA VIII, 349-350), que introduce ya

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lización de la especie humana. Lejos de ser un hecho natural de la vida, la societas civilis constituye así el horizonte teleológico de la historia de la humanidad. 2)  En segundo lugar, Kant lleva a cabo una idealización normativa de la sociedad civil al concebirla como la comunidad jurídica perfecta, de alcance­universal (cosmopolita), que resulta de la constitución política republicana.­Como tal, impone a todo orden político positivo la tarea de su constante dinamización jurídica mediante una mejora progresiva de su legalidad, con el fin de aproximarse al ideal regulativo, al tiempo que lo legitima, aun en su imperfección, frente al estado de naturaleza social como una posesión jurídica irrenunciable, como un progreso en la civilización. Así, toda comunidad de relaciones sociales articulada en torno a un Estado merece, siquiera derivada y provisionalmente, el calificativo de ‘sociedad civil’. 3) En tercer lugar, la ‘sociedad civil’, como orden jurídico comunitario, constituye el único estado social en el que es posible una armonización de todos los proyectos individuales de felicidad y, por consiguiente, la realización plena del hombre. Precisamente por ello la sociedad civil perfectamente justa se presenta como el fin último de la historia natural del hombre y cada sociedad civil empíricamente constituida, como una conquista irrenunciable en el camino de perfeccionamiento de la especie. Es así como la naturaleza misma confluye aquí con la libertad racional para forzar a los hombres a entrar en una sociedad civil en la que ella mis­ ma, desde su propia inmanencia, resulta transfigurada en un todo moral. Una vez examinada la sociedad civil en su temporalización ‘histórica’, queda por analizar cómo se articula internamente en calidad de orden ‘jurídico-político’, según el ideal normativo de la razón. Esta perspectiva sistemática interna de la ‘sociedad civil’ como ‘comunidad política de derecho’ es el tema del siguiente apartado. 2.  La estructura jurídico-política de la ‘sociedad civil’. Los principios de ciudadanía El carácter político de la sociedad civil explica que la determinación jurídica de las relaciones sociales entre sus miembros dependa de las condiciones de participación en la soberanía del Estado. Así, los principios

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a priori que regulan la Constitución ideal o la formación de la voluntad general son al mismo tiempo los que determinan la atribución jurídica de ciudadanía y, por ende, la pertenencia a la ‘sociedad civil’. En un célebre­ pasaje de la Doctrina del Derecho Kant remite la condición de ciudadano­ a la posesión de tres atributos jurídicos fundamentales: la libertad política, la igualdad ante la ley y la autonomía civil: «Los miembros de una sociedad semejante (societas civilis), es decir, de un Estado, unidos con vistas a la legislación, se llaman ciudadanos (‘Staats­ bürger’, cives), y sus atributos jurídicos, inseparables de su esencia (como tal), son la libertad legal de no obedecer a otra ley sino sólo a aquélla­a la que uno ha dado su consentimiento, la igualdad civil de no reconocer a ningún superior en el pueblo con respecto a uno mismo más que a aquél, al que uno tiene la capacidad moral de obligar jurídicamente­del mismo modo que éste puede obligarle a él; en tercer lugar, el atributo­de la autonomía (‘Selbständigkeit’) civil, o sea, la posibilidad de agradecer su existencia y conservación no al arbitrio de otro en el pueblo sino a sus propios derechos y fuerzas (‘Kräften’) como miembro de la comunidad, por consiguiente, la personalidad civil, consistente en permitirse no ser representado por ningún otro en asuntos jurídicos» 26.

Teniendo en cuenta estos principios la mayoría de los intérpretes ha

el concepto político de ‘libertad’ tal como figura en la Doctrina del Derecho, pasa por alto el de ‘autonomía’ y se refiere, en cambio, a un supuesto principio de ‘dependencia’ de una legislación común (como súbditos), que se reduce en el fondo al principio de ‘igualdad’ ante la ley, incluido allí en tercer lugar. No podemos entrar aquí en los posibles motivos de estos cambios. Nuestra preferencia por el texto de la Doctrina del Derecho se basa en que éste ofrece la versión madura y más correcta de estos tres principios. La exposición de Über den Gemeinspruch, tomada como punto de referencia por otros autores (cf. M. Riedel, «Gesellschaft, bürgerliche», o.c., 760 ss.), cuenta, en cambio, con la desventaja -que es por eso virtud para los intérpretes liberales de Kant- de su proximidad cronológica, circunstancial y conceptual (al menos en lo concerniente al principio de ‘libertad’) a las Declaraciones iusnaturalistas de los revolucionarios franceses, cuyas deficiencias subrayará Kant pocos años después (cf. Reflexion 8078, AA XIX, 612-13; ZEF AB 20 nota, AA VIII, 350). 27 Entre los autores más representativos de esta interpretación cabe mencionar aquí a R.Saage, o.c., 147; I. Fetscher, «Immanuel Kant und die Französiche Revolution», en: Z. Batscha (Hrsg.), Materialien zu Kants Rechtsphilosophie, Frankfurt/M: Suhrkamp 1976, 284-85; W. Kersting, Wohlgeordnete Freiheit. Immanuel Kants Rechts- und Staats­ philosophie, Berlin/New York: W. de Gruyter 1984, 299-300; H. Schmidt, «Durch Reform zu Republik und Frieden? Zur Politischen Philosophie Immanuel Kants», Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie 71 (1985), 303-305; y M. Riedel, «Herrschaft und

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tendido a relacionar a Kant con el liberalismo político burgués, particularmente con las proclamas revolucionarias de la Declaración Francesa de derechos del hombre y del ciudadano y de las Constituciones liberales de 1791 y 1795 27, a pesar de que el principio de fraternité es aquí desplazado por el postulado de ‘autonomía’. Ante este extraño desplazamiento y la manera peculiar como el último concepto se formula en los escritos de Kant, no han faltado tampoco comentaristas inclinados a asociar la posición del filósofo con una defensa de la sociedad civil tradicional, articulada sobre la institución del pater familias o ‘señor de la casa’ 28, o al menos a subrayar el solapamiento en la concepción kantiana de estructuras morosas del antiguo orden estamental con elementos proyectivos de emancipación liberal con respecto al pasado feudal 29, un solapamiento que sería característico de la conceptualización teórica de una sociedad de tránsito, en la que conviven prácticas sociales y propuestas jurídicas a veces irreconciliables. Cabría pensar, sin embargo, que en el contexto histórico de esa sociedad de tránsito la propuesta kantiana, más que una solución de compromiso entre dos órdenes sociopolíticos incompatibles o una opción decidida por uno de ellos, significase un esfuerzo por integrar teóricamente la herencia política del mundo antiguo en el marco categorial de fundación Gesells­chaft. Zum Legitimationsproblem des Politischen in der Philosophie», en: M.Riedel (Hrsg.), Rehabilitierung der praktischen Philosophie, Freiburg: Rombach 1974, vol. 2, pp. 248-49, y «Gesellschaft, bürgerliche», o.c., 761, a pesar de reconocer algunos matices diferenciales no desdeñables entre Kant y las proclamas de revolucionarios franceses. 28 Así, sobre todo G.Bien, «Revolution, Bürgerbegriff und Freiheit», en: Z. Batscha (Hrsg.), o.c., 99-100; M. Riedel, «Herrschaft und Gesellschaft», o.c., 254-55; y, en parte, J. Abellán, «En torno al concepto de ciudadano en Kant. Comentario de una aporía», en: R.Rodríguez Aramayo/J. Muguerza/C. Roldán (eds.), La paz y el ideal cosmopolita de la Ilustración, Madrid: Tecnos 1996, 251-52. 29 Tal parece ser la posición final de M.Riedel, «Herrschaft und Gesellschaft», o.c., 255 ss., «Gesellschaft, bürgerliche», o.c., 762-63, y «Bürger, Staatsbürger, Bürgertum», en: O. Brunner/W.Conze/R. Koselleck (Hrsg.), Geschichtliche Grundbegriffe, vol. I (1972), 695-96. 30 Cf. el estudio clásico de O. Brunner, «Das ‘ganze Haus’ und die alteuropäische ‘Ökonomik’», en: O. Brunner, Neue Wege der Verfassungs- und Sozialgeschichte, Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht 1980 (3ª edic.), espec. p.108ss.; y M. Riedel, «Gesellschaft, bürgerliche», o.c., 740-41. 31 MdS. Primera Parte, AB 45, AA VI, 237-38. La caracterización kantiana en este lugar de la ‘libertad innata’ como «independencia del arbitrio constrictivo de otro» ha favorecido su asociación con el mundo espiritual de la burguesía liberal y su asimilación a la conocida ‘liberté indépendence’ de B. Constant (cf. Z. Batscha, «Bürgerliche Republik

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del nuevo orden. Esta perspectiva se habría abierto paso si los intérpretes, menos condicionados históricamente por la tendencia del liberalismo decimonónico a autopresentarse como la única alternativa política moderna al ancien régime, hubieran reparado en que los tres principios jurídicos de la ‘sociedad civil’ señalados por Kant corresponden a la idea racional de una república pura y que, por tanto, mediante ellos el filósofo ilustrado está planteando la necesidad de construir un orden republicano sobre las bases doctrinales de emancipación moderna del mundo feudal. Sólo que – como es obvio – la formulación de esta propuesta integra­dora requería una transmutación semántica de los conceptos implicados capaz de dar cuenta de lo que suponía la fundamentación jurídico- -normativa de una sociedad civil republicana dentro de las coordenadas emancipatorias del incipiente mundo burgués. A continuación se ofrecen los trazos fundamentales de esta transmutación semántica de los conceptos políticos de ‘libertad’ y de ‘autonomía’, tal como se bosqueja desde sus fundamentos en la doctrina kantiana del ‘derecho innato’ y del ‘derecho adquirido’ (privado) respectivamente, y se elabora después en el ‘derecho público’ en forma de principios de ciudadanía republicana. Finalmente se discute la interpretación más extendida entre los comentaristas sobre el principio de ‘autonomía civil’, sobre­el que se vertebra, sin duda, el sentido verdaderamente republicano de la ‘sociedad civil’ en la teoría constitucional pura de Kant. 4. Libertad republicana, ‘dominium’ liberal. La estrategia de transformación semántica coherente con la propuesta de republicanismo moderno­ exigía de Kant, en primer lugar, desligar el concepto republicano de ‘libertad’­de la posición social del dominium, que restringía la ciudadanía al ‘señor de la casa’ 30, para remitirlo a la condición universal de hombre como ser moral, que habilita a todo individuo como ciudadano, pero sin limitar esta libertad a la mera independencia defensiva del arbitrio de otro para configurar por cuenta propia el destino individual, sino extendiéndola a la posibilidad de configurar un destino común, concibiéndola,­ pues, a la manera republicana como competencia positiva para la interacción con und bürgerliche Revolution bei Immanuel Kant», en: Z.Batscha, Studien zur politischen Theorie des deutschen Frühliberalismus, Frankfurt/M: Suhrkamp 1981, p.48; H. Mandt, «Historisch-politische Traditionselemente im politischen Denken Kants», en: Z.Batscha (Hrsg.), Materialien zu Kants Rechtsphilosophie, Frankfurt/M: Suhrkamp 1976, 299-300). No puede olvidarse, sin embargo, que Kant, en el mismo texto, considera dicha libertad ya

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otros, como capacidad de autolegislación o autonomía moral del individuo (sui iuris). El principio jurídico de ‘libertad política’, así como el de ‘igualdad civil’ que va unido a él, tiene como presupuesto precisamente esta doble transformación semántica llevada a cabo por Kant, sobre la base de su teoría moral, mediante el reconocimiento de una ‘libertad e igualdad innata’ como «único derecho originario que corresponde a todo hombre en virtud de su humanidad» 31. Mas, en segundo lugar, era necesario superar el formalismo del concepto moderno de ‘libertad’ (e igualdad) innata como mera ‘capacidad’ jurídica acreditando su ‘realidad’ efectiva mediante algún tipo de domi­ nium o adquisición jurídica sobre la que se verificase materialmente en las relaciones sociales la condición de ser su ‘propio señor’. Ahora bien, dado que el dominium garante de la independencia jurídica tiene como presupuesto precisamente la libertad de toda persona moral (y no a la inversa), ya no puede ejercerse sobre los hombres sino únicamente sobre las ‘cosas’ de la naturaleza, ni canalizarse, por tanto, a través de la institución sometida a una ley universal de compatibilidad de los arbitrios individuales y, por ende, a un orden comunitario de derechos y deberes que tiene como fundamento la autonomía moral (cf. MdS. Primera Parte, AB 48, AA VI, 239). La liberté indépendence es aquí, pues, un derecho innato sólo como consecuencia de la liberté autonomie inherente a la condición moral de humanidad. De ahí que Kant incluya la cualidad de ‘ser su propio señor’ (sui iuris) como un momento constitutivo de la libertad innata de todo hombre en cuanto tal (cf. al respecto la atinada advertencia de W. Bartuschat, «Zur kantischen Begründung der Trias ‘Freiheit, Gleichheit, Selbständigkeit’ innerhalb der Rechtslehre», en: G. Landwehr (Hrsg.), Freiheit, Gleichheit, Selbständigkeit. Zur Aktualität der Rechtsphilosophie Kants für die Gerechtigkeit in der modernen Gesellschaft, Hamburg: Vandenhoeck u. Ruprecht 1999, pp.15-16, si bien este autor no capta el sentido republicano de esta equiparación kantiana). Sobre estas dos nociones de libertad en Kant, véase, a pesar de su inclinación por la liberté indépendence, el trabajo de N. Bobbio, «Deux notions de la liberté dans la pensée politique de Kant», en: E. Weil/M.Villey et autres, La philosophie politique de Kant, Paris: P.U.F. 1962, pp.105-118. 32 Cf. W. Kersting, Wohlgeordnete Freiheit, 253, 255. Sobre este concepto amplio de propiedad privada como posesión de una actividad laboral autónoma cuyos productos (opera) son susceptibles de venta y, por ende, garantes de la autosuficiencia económica del productor de los mismos, véase Über den Gemeinspruch A 245-46, AA VIII, 295; y MdS & 46, A 167/B 197, AA VI, 314-15. I. Fetscher, «Der bürgerliche Reformismus bei Kant», en: I.Fetscher, Herrschaft und Emanzipation, München 1976, p. 176 ss. ha subrayado los problemas y limitaciones sociológicas de esta delimitación kantiana de la sibisufficientia económica. 33 Esta ampliación del concepto ‘formal’ de derecho innato a la posibilidad de su concreción ‘real’ o material en la relación efectiva del hombre con la naturaleza y de los

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tradicional del ‘señor de la casa’ sino a través de la institución burguesa de la propiedad privada (del suelo, de un oficio, de un arte y ciencia o de un trabajo autónomo) 32. El principio jurídico de ‘autonomía civil’ tiene a su base justamente esta reformulación liberal de la noción republicana de autonomía, entendida como independencia económica, que Kant efectúa en su doctrina del ‘derecho privado’ al fundamentar la propiedad como un derecho ‘adquirido’, gracias al cual se realiza la capacidad jurídica innata del individuo por medio de su ampliación al uso racional de la naturaleza y las cosas, para permitir el desarrollo pleno de nuestras disposiciones naturales y, por ende, la felicidad del hombre como fin en sí 33. Kant asume, por tanto, del iusnaturalismo moderno los principios formales de ‘libertad’ e ‘igualdad’ como derechos fundamentales del hombre, pero los reinterpreta en términos republicanos, al concebir la libertad como autonomía en vez de como no interferencia del arbitrio ajeno. Al mismo tiempo recupera del republicanismo clásico el principio material de ‘autosuficiencia’ económica, al que estaba ligada la condición de hombre ‘libre’ y la virtus del individuo como ciudadano, pero lo redefine en términos liberales, al fundamentar la condición de ‘señor de sí’ en la propiedad móvil, susceptible de adquisición, en vez de en el dominium rígido del pater familias. La distinción kantiana entre un ‘derecho natural’ (libertad e igualdad) y un ‘derecho adquirido’ (propiedad), en la que se concreta sistemáticamente esta integración de las piezas nucleares de hombres entre sí es lo que establece el ‘postulado jurídico de la razón práctica’, intro­ ducido por Kant como una ‘ley permisiva’ al comienzo de su doctrina del Derecho Privado (cf. MdS. Primera Parte, &2, AB 56-58, AA VI, 246-47). Sobre este punto véase M. Hernández Marcos, «Ley permisiva y realidad del derecho en Kant», o.c., espec. 150 ss., y La crítica de la razón pura como proceso civil (tesis doctoral), Salamanca 1993, p. 137 ss.; R. Brandt, Eigentumstheorien von Grotius bis Kant, Stuttgart/Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog 1974, p. 187 ss.; y W. Kersting, Wohlgeordnete Freiheit, o.c., 120 ss. 34  W. Kersting ha hecho hincapié igualmente en que sólo este concepto ‘democrático’ de libertad puede considerarse como un principio constitucional. «En cuanto condición jurídica de una constitución estatal» -afirma Kersting- «al derecho de libertad no puede corresponderle una función de delimitación y defensa, ni puede representar para la actividad del Estado una norma de competencia negativa, sino que debe ser considerado como norma de competencia positiva para la actividad de los individuos, como derecho a la co-determinación de la voluntad legisladora» (Wohlgeordnete Freiheit, 239) [las cursivas son mías]. De ahí que la reivindicación kantiana de aquella libertad individual para la búsqueda de la propia felicidad como principio constitucional en Über den Gemeinspruch A 235-36 (AA VIII, 290), sólo sea explicable en el contexto de la crítica, allí efectuada, al paternalismo político, que se caracterizaba precisamente por su tendencia a transgredir el

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ambas cosmovisiones políticas, sometidas a las referidas transmutaciones semánticas, es, sin duda, el presupuesto básico para comprender los tres principios jurídicos de la ‘sociedad civil’ sobre los que Kant vertebra su propuesta de republicanismo moderno. En efecto, el horizonte emancipador abierto por la modernidad exige,­ por un lado, que la libertad política y la igualdad civil de todos los individuos sean las condiciones necesarias para que un pueblo articule jurídicamente su vida social en torno a un Estado. La primera, porque sólo un orden de dominio que descanse en la propia autodeterminación pública de los ciudadanos puede garantizar jurídicamente la autodeterminación privada de los individuos en la sociedad con respecto a su propia vida y felicidad individual. La advertencia kantiana de esta evidencia política explica probablemente la sustitución del concepto primitivo, ‘liberal’ de libertad civil, considerado como principio constitucional en En torno al tópico (1793), por el concepto ‘democrático’, genuinamente político de libertad legal o ‘libertad jurídica (externa) en Hacia la paz perpetua (1795) y en la Metafísica de las costumbres (1797) 34, mediante el cual se asegura a todos la posibilidad de participar en la soberanía. La segunda,­esto es, la igualdad civil, es asimismo una condición necesaria de la comunidad­ política, porque únicamente sobre la base de una sociedad de relaciones jurídicoprivadas entre iguales puede alzarse un Estado de hombres políticamente libres. En realidad, este principio se sigue del anterior, ya que la igual participación en el soberano lleva implícita la igualdad en el mínimo legal de libertad privada postulado por la razón jurídica (sobre este tema cf. M. Hernández Marcos, La crítica de la razón pura como proceso civil, p. 209 ss.). En sentido contrario, W. Bartuschat, o.c., 22-23 ha reclamado esta ‘libertad civil’ frente al Estado como un atributo constitutivo del ciudadano, basándose, sin duda, en una visión más jurídico-liberal que político-democrática de la ciudadanía. 35 Estos dos aspectos diferentes ligados al reconocimiento constitucional de una capacidad jurídicoprivada universal a través del principio de ‘igualdad civil’, pueden explicar acaso la distinción exclusiva de Zum ewigen Frieden AB 20-21 (AA VIII, 349-350) entre los dos principios siguientes: por un lado, el de «dependencia de todos con respecto a una única legislación común (como súbditos)», que se expresaría en el requisito de igualdad en la ‘aplicación’ de la ley y en la defensa de los propios derechos así como en la subsiguiente propuesta de una administración de justicia uniforme y común; y, por otro lado, el principio propiamente dicho de «igualdad [jurídica exterior] de todos los súbditos (en cuanto ciudadanos)», entendido como la facultad recíproca de coacción u obligación por medio de las leyes en sus relaciones jurídicoprivadas, principio que Kant tiende a relacionar prioritariamente con la eliminación de todo tipo de prerrogativas estamentales y, por ende, con la igualdad en la ‘adquisición’ de los derechos (cf. Über den

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sometimiento a la ley pública que emana de él, y, por ende, la igualdad­ de derechos o de capacidad jurídica en las relaciones sociales entre los ciudadanos mismos. Ello se traducía históricamente tanto en la exigencia general de una administración de justicia autónoma y uniforme para todos, garante de la igualdad en la ‘aplicación’ de la ley y en la protección del derecho de los individuos, como en la proclama particular de supresión de las barreras feudales y de los privilegios corporativos relacionados con la propiedad del suelo, de los oficios y de las funciones públicas, a fin de preservar la igualdad en la ‘adquisición’ de todo tipo de derechos 35. Por tanto, con aquella capacidad legislativa común y con esta capacidad jurídicoprivada universal Kant postulaba una ‘sociedad civil’ articulada políticamente por un Estado democrático de derecho (no despótico) y configurada internamente por la movilidad social de sus miembros dentro de un orden jurídico sin privilegios estamentales. Mas, por otro lado, la orientación terrenal de la eudaimonia heredada­ del mundo antiguo certifica la evidencia de que aquellas dos condiciones jurídico-formales no son requisitos suficientes para organizar una sociedad civil como escenario político de la perfección humana sobre la tierra,­de la realización plena del hombre como fin en sí. Es preciso además que el desarrollo de nuestras disposiciones naturales, el cumplimiento de cada proyecto individual de felicidad se garantice a través de una virtus o poder efectivo que asegure, entre otras cosas, el sustento material básico Gemeinspruch A 239-241, AA VIII, 292-93; MdS. Primera Parte, A 184-85/B 214-15, A 191-92/B 221-22, AA VI, 324-25, 329). W. Bartuschat, o.c., 15 considera este último como el concepto propiamente ‘civil’ de igualdad y lo vincula directamente al principio de ‘autonomía’, ya que sólo es posible contraer obligaciones recíprocas si los individuos que las contraen, son de hecho independientes entre sí. 36 Recuérdese que el ‘derecho’ no concierne a la legislación general de los meros deseos, esto es, de los apetitos impotentes, sino de los arbitrios de los hombres (cf. MdS. Primera Parte, AB 32, AA VI, 230), es decir, de los apetitos susceptibles de satisfacerse mediante la acción, y, por ende, debe fijar las condiciones de satisfacción de los mismos regulando (y, con ello, favoreciendo) de manera racional (universal y necesaria) las acciones que producen dicha satisfacción, y que han de consistir necesariamente en ‘adquisiciones’ relativas al mundo de las ‘cosas’ útiles, sea directamente (propiedad de un suelo, industria u oficio), sea indirectamente (intercambio contractual de productos y propiedades). Sólo como legislación general de los arbitrios o de las ‘acciones’ corres­ pondientes contribuye el derecho y, por ende, una sociedad civil regulada jurídicamente a la perfección o desarrollo de nuestras meras disposiciones e inclinaciones naturales de manera libre y racional. En este aspecto, aspirar a la felicidad de la especie humana (y esto para Kant es un deber) entraña implícitamente querer un orden común de relaciones

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de nuestra existencia, virtus que sólo puede ser adquirida a través del dominio de la naturaleza, convertida por ello en medio útil a disposición de los fines del hombre. De ahí que el principio de la autonomía civil se haga eco precisamente de ese fin eudemónico de la naturaleza humana que sólo puede cumplirse plenamente en una sociedad civil republicana, al exigir un orden sociopolítico de personas económicamente independientes, de sujetos libres productivos, cualificados realmente en su libertad por la adquisición de derechos sobre el mundo natural de las cosas mediante una propiedad, un oficio o un saber, como único ideal normativo para una felicidad universalizable 36. Constituye, así, la verdadera síntesis a priori de los principios constitucionales de libertad política e igualdad civil, ya que añade a la mera ‘capacidad’ formal para la (auto)legislación y para el establecimiento de relaciones de reciprocidad jurídica reconocida por éstos el requisito material de una ‘posesión’ o medio de vida real, en el que cristalice y se desarrolle aquella capacidad abstracta como una potencia concreta (Vermögen), en el que la posibilidad de ser dueño del propio sociales en el que se garantice el cumplimiento de todas aquellas disposiciones naturales, no la mera posibilidad de desarrollarlas. Por otra parte, desde un punto de vista histórico el requisito de Selbständigkeit como principio constitucional de la sociedad civil significaba que Kant, en consonancia con la tradición republicana, atribuía relevancia política a la esfera socioeconómica, en contraste con la tendencia a la despolitización de la misma en la Prusia dieciochesca, visible tanto en el gobierno de Federico II como sobre todo en la codificación de 1794 (Allgemeines Landrecht für die Preussischen Staaten), como consecuencia de la puesta en práctica de la doctrina de la soberanía absoluta del monarca (cf. D. Canale, La costituzione delle differenze. Giusnaturalismo e codificazione del diritto civile nella Prussia del ‘700, Torino: G. Giappichelli 2000, p. 239, 243 ss.). 37 A este carácter de ‘síntesis racional’ han apuntado J.Ebbinghaus, «Das Kantische System der Rechte des Menschen und Bürgers in seiner geschichtlichen und aktuellen Bedeutung», Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie 50 (1964), pp. 48-49 y A. Philo­nenko, Théorie et praxis dans la pensée morale et politique de Kant et de Fichte en 1793, Paris: J.Vrin 1976, p.37. W. Bartuschat, o.c., 13ss. ha desmontado recientemente la tesis del fallo sistemático restableciendo la unidad del principio de autonomía con los de libertad e igualdad y su carácter a priori, pero lo ha hecho a costa de desligar la Selbständigkeit de la ‘autosuficiencia económica’, considerándola, por un lado, como un momento no «aditivo», sino meramente «explicativo» de aquellos dos principios que se limitaría a formular la «libertad originaria bajo las condiciones empíricas de su exterio­rización» (p. 21), y concibiéndola, por otro lado, de una manera general y abstracta como la condición bajo la cual un sujeto puede comprender sus acciones como propias, esto es, como expresión de aquella libertad originaria (cf. p.14-15, 20-21). Ahora bien, al reconocer que la autonomía contiene la condición de facticidad o «existencia concreta» de la libertad

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destino se convierta en adueñamiento fáctico de sí; y además enlaza estas dos ideas sin basarse en una experiencia o ejemplo histórico previo, apoyándose sólo en el deber racional de perfección y felicidad de los hombres ligado a nuestra libertad, deber realizable únicamente en el marco de la sociedad civil. Este carácter sintético a priori de la Selbständigkeit, que incorpora al ideal normativo de la sociedad civil un principio de garantías materiales, que promueve, por tanto, un orden común de personas plenamente desarrolladas en sus facultades e inclinaciones naturales gracias al despliegue de las mismas mediante acciones efectivas sobre el mundo de las cosas y en la relación con los restantes hombres, ha sido usualmente olvidado por la mayoría de los intérpretes que se han ocupado de este tema en la filosofía de Kant, inclinados de consuno a ver en el criterio socioeconómico de la propiedad, que cualifica como persona civil y, por ende, como miembro legislador del Estado, un fallo sistemático en la teoría racional pura de la constitución republicana 37. Por la relevancia de este principio tanto como por su deficiente recepción histo­riográfica, conviene, pues, detenerse en una discusión más pormenorizada del mismo. 4.  Autonomía civil: ¿incongruencia metodológica o aplicación em-

e igualdad (cf. 14, 22), Bartuschat está admitiendo implícitamente su carácter ‘sintético a priori’, por más que no parezca dispuesto a aceptar que aquella realidad fáctica de la libertad originaria sólo puede adoptar la forma concreta del ‘dominio’ de la naturaleza (propiedad e intercambio de productos). Sin duda, la fundamentación propiamente especulativa de los tres atributos de ciudadanía a partir de la mera relación de tensión entre «derecho natural, fundado en la razón, y derecho positivo», ligado ineludiblemente a la exteriorización ‘determinada’ de aquél (cf. p.12, 19), le ha impedido ver la importancia y significado del ‘derecho adquirido’, como realización de la libertad originaria a través del uso legítimo de la naturaleza, en la fundamentación kantiana de la sociedad civil. Pero sólo a partir de ahí puede comprenderse por qué el principio de autonomía civil representa la ‘síntesis a priori’ de la libertad e igualdad en el ideal republicano de Kant, a saber, porque únicamente bajo las condiciones fácticas de una posesión o producción socioeco­nómica que acredite la (conciencia de) libertad efectiva de las propias acciones, se puede – como muy bien interpreta Bartuschat – abogar, de una parte, por una legislación pública para la actividad libre (no para los deseos u otros fines) de los miembros de la sociedad y, por ende, ser miembro legislador del Estado (‘libertad legal’), y cabe establecer, de otra parte, compromisos de auténtica reciprocidad jurídica con los demás ciudadanos (‘igualdad civil’). 38 Cf. al respecto A. Philonenko, Théorie et praxis, pp.63-64; M. Riedel, «Herrschaft und Gesellschaft», o.c., 249-252, y «Gesellschaft, bürgerliche», o.c., 762; H. Schmidt, o.c., 312; W. Kersting, o.c., 248, 251; J. Abellán, o.c., 252 ss. 39 Cf. nuestra nota 27.

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pírica perversa? Es casi un lugar común en la historiografía sobre Kant la denuncia del principio de ‘autonomía civil’ como una incongruencia metodológica en la construcción jurídico-trascendental de la ciudadanía política, consistente en la introducción subrepticia del factum empírico de la independencia económica como presunto fundamento racional a priori del orden republicano, con la consiguiente desvirtuación del valor normativo de los principios jurídicos puros de libertad e igualdad 38. Como consecuencia de ello, en vez de expedir la mera condición moral de ‘hombre’ la carta de ciudadanía política, se habilitaría como miembros de la sociedad civil exclusivamente a determinados sectores de la población en función de su poder socioeconómico, sean los patres familias de la sociedad tradicional (Bien, Riedel, Abellán) 39, sean los propietarios burgueses de la nueva sociedad de mercado (Habermas, Fetscher, Saage, Batscha, Koslowski) 40. De nuestra exposición precedente se sigue, no obstante, que esta interpretación se debe a una incapacidad histórica de los comentaristas, condicionada por la cosmovisión liberal o marxista, para percibir el sentido republicano de aquel principio jurídico así como el papel crucial del ‘derecho privado’, y especialmente de la teoría de la propiedad, en la construcción de una ‘sociedad civil’ en la que han de desarrollarse plenamente todas las disposiciones naturales del hombre. Pues por más que 40 Con diferentes matices coinciden en esta tesis J. Habermas, o.c., 142; I. Fetscher, «Immanuel Kant und die Französische Revolution», o.c., 277-78; R. Saage, o.c., 87, 89-92;­Z. Batscha, «Bürgerliche Republik und bürgerliche Revolution bei Immanuel Kant», o.c., 52-53 y «Einleitung», en: Z.Batscha (Hrsg.), Materialien zu Kants Rechtsphilosophie, Frankfurt/M: Suhrkamp 1976, p.17; y P. Koslowski, o.c., 15-16. 41 Cf. I.Kant, Über den Gemeinspruch, A 247, AA VIII, 296. 42 Cf. J.L. Villacañas, Racionalidad crítica. Introducción a la filosofía de Kant, Madrid: Tecnos 1986, p.221. 43 Über den Gemeinspruch, A 246 nota, AA VIII, 295. 44 MdS. Primera Parte, &46, A 166-67/B 196-97; AA VI, 314. Como es sabido, la nomenclatura ‘ciudadano activo/pasivo’ procede de Sieyès, quien la introdujo con motivo de la ley del 22 de diciembre de 1789 sobre sufragio censitario (cf. A. Soboul, La Revolución Francesa. Principios ideológicos y protagonistas colectivos, Barcelona: Crítica 1987, p.100). Kant la hace suya en la Doctrina del Derecho en sustitución de la distinción entre ciudadanos (‘Bürger’, ‘citoyen’) y socios protegidos (‘Schutzgenossen’, ‘bourgeois’), hecha en Über den Gemeinspruch A 244ss. (AA VIII, 294), la cual procedía aún del marco terminológico de la sociedad civil tradicional (cf. M.Riedel, «Bürger, Staatsbürger, Bürgertum», o.c., 696). 45 Cf. W. Kersting, o.c., 253, 255, quien atinadamente observa que el ‘ciudadano

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en la obtención real del estatus de autosuficiencia económica intervengan – como Kant reconoce – factores empíricos y contingencias históricas (el talento, el esfuerzo, la suerte, etc.) que hacen inexplicable desde el punto­ de vista de la razón pura el hecho constatable de la desigualdad social, por ejemplo, entre magnates de la propiedad y simples asalariados 41, el principio de ‘autonomía civil’ en sí considerado, como capacidad para mantenerse a sí mismo mediante la propia actividad, sin depender para ello del arbitrio de otro, no registra ningún factum histórico, ninguna institución socioeconómica del pasado o del presente. Al contrario, es un concepto puro práctico, cuya normatividad se desprende de la idea racional a priori del dominio o uso de la naturaleza como realización de la libertad­originaria de cara al logro de la perfección y felicidad de la especie­humana. Y como tal concepto normativo, implica al menos dos cosas. Primero: incluye su posible universalización a todo ser humano, dotado a priori de capacidad jurídica, aunque sea por la sencilla razón de que sólo en un orden social en el que todos los individuos sean autónomos, esto es, dispongan de una propiedad o de un oficio productivo para su propio sustento, será posible una felicidad igualmente universal. En este aspecto la sociedad civil republicana apunta hacia ese orden jurídico-ideal en el que todos los individuos se relacionen socialmente no sólo en condiciones de libertad e igualdad formales, respetándose y reconociéndose mutuamente entre sí como seres morales, sino también en condiciones materiales de autosuficiencia económica, como dueños reales de su propio destino, de tal modo que puedan acreditarse como ciudadanos efectivos (Staatsbürger, cives), esto es, como miembros activos libres de una comunidad con derecho a participar en el poder común (soberanía política) precisamente por contar con un poder adquirido (bienes, oficios, industria...) para realizarse como fines en sí (como seres morales). Segundo:­el principio jurídico de autonomía civil extiende un dictum de provisionalidad sobre toda sociedad civil real cuya constitución política no se base en la independencia económica de todos los individuos (así, por ejemplo, la sociedad estamental), o cuyas leyes no permitan la universalización de ésta (así, por ejemplo, la sociedad liberal burguesa, basada en la competencia) 42. No cabe duda, pues, del carácter racional puro y normativo de la autonomía civil. activo’ no es ya para Kant el ‘señor de la casa’ tradicional, sino el «propietario privado» de la nueva sociedad civil burguesa. Frente a G. Bien, M. Riedel y J. Abellán, quienes par-

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El problema no reside, por consiguiente, en la introducción y formulación de este principio republicano como criterio jurídico-normativo de la ‘sociedad civil’ perfecta. La incongruencia se deriva, en todo caso, del empeño kantiano por aplicar empíricamente el principio de autonomía civil y hacerlo operativo en su momento histórico. Pues al involucrar a su concepto puro en funciones descriptivas de la realidad social de su tiempo, Kant acaba incomprensiblemente confundiendo el ideal moral con su aplicación fenoménica al complejo mundo de finales del siglo XVIII, caracterizado por una pluralidad de situaciones sociales tan amplia que – como el propio filósofo reconoce – resulta difícil determinar empíricamente las condiciones fácticas que «ha de cumplir un hombre para pretender»­el rango jurídico de ser «su propio señor» 43. Pese a reconocer esta dificultad, Kant procede, sin embargo, a una aplicación empírica­del principio de autonomía civil que le obliga a introducir una distinción artifi­ciosa entre ciudadanos activos y pasivos, que no puede ocultar ciertamente la contradicción práctica de seguir considerando ‘ciudadanos’ (cives) a quienes se excluye de la condición política de miembro efectivo del Estado, con derecho a colaborar en la legislación44 , pero que sirve en todo caso para legitimar de facto la ciudadanía exclusiva de los artesanos y ‘propietarios burgueses’ (la burguesía de la posesión y la cultura) 45­, en consonancia con las constituciones liberales de los revolucionarios franceses. Kant podía así aparecer públicamente como legitimador del orden legal del liberalismo burgués triunfante en Francia y como un firme partidario del sufragio censitario. Pero esa legitimación era solamente ‘provisional’ y contemplaba a su vez la ciudadanía potencial de los notiendo de los ejemplos mencionados por Kant para discernir empíricamente en su tiempo entre ciudadanos activos y pasivos, remiten la Selbständigkeit a la ‘sociedad doméstica’, tratada precisamente en el capítulo sobre ‘derecho personal de carácter real’ de la Doctrina del Derecho de 1797 (MdS. Primera Parte, &&22-30), y la identifican con la institución tradicional del pater familias, cabe argüir, entre otras cosas, que en el análisis ofrecido por Kant en dicho capítulo de su doctrina del derecho privado la dependencia de los ‘sirvientes domésticos’ con respecto a la voluntad del dueño de la casa no es exactamente la de una ‘cosa’ con respecto a su propietario («dominus servi»), sino la que se deriva de un ‘contrato’ entre personas libres, que puede ser rescindido voluntariamente por cualquiera de las partes (cf. MdS. Primera Parte, &30, AB 116-17, AA VI, 283). No estamos, pues, en modo alguno ante la sociedad doméstica patrimonial sino más bien ante lo que cabría denominar una sociedad doméstica liberal, en la que la servidumbre es formalmente libre. De esta sociedad doméstica liberal forma parte, sin embargo, la consideración aún

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propietarios (sirvientes y asalariados), no sólo porque garantizaba a todos los ‘dependientes económicamente’ la protección jurídica de un orden legal común, sino sobre todo la posibilidad de adquirir la plena ciudadanía política, pasando de miembro pasivo a miembro activo del Estado 46, gracias al principio de igualdad de todos ante la ley, que desbloqueaba la fijación­estamental de los oficios, de las profesiones y de la propiedad de la tierra, y facilitaba formalmente el libre acceso a todos ellos en función del talento, el trabajo y la suerte. Incluso en su perversión empírica, confluyendo coyunturalmente con el modelo liberal de un Estado de propietarios burgueses, el principio de autonomía civil mantenía­su aliento normativo-republicano de superación racional del primitivo mundo burgués, precisamente porque dicho principio no se había formulado de espaldas a los supuestos liberales de libertad e igualdad formal sino justamente como ampliación material de éstos, en concordancia expresa con su pretensión de universalidad. Es así como el concepto normativo de sociedad civil en Kant contiene la primera propuesta occidental de reconciliación de la tradición republicana con el pensamiento democrático.

de las mujeres como ciudadanos ‘pasivos’, en tanto que dependientes de la voluntad del dueño de la casa, al igual que los niños, si bien éstos por motivos diferentes, a saber, por su ‘minoría de edad’ (natural o civil) (cf. MdS &26, AB 110, AA VI, 279; &29, AB 114, AA VI, 281-82; &46, A 167/B 197, AA VI, 314). 46 Cf. MdS. Primera Parte, &46, A 168/B 198, AA VI, 315.

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Salamanca, septiembre de 2001 Maximiliano Hernández Marcos (Universidade de Salamanca)

Entre o facto da separação e a exigência da unidade: a sociedade civil hegeliana 1.  Sentido geral de uma investigação sobre o tema da “sociedade­ civil” Um dos pontos de partida deste estudo consiste no ensaio de com­ preen­são da “sociedade civil” como conjunto de condições da revelação pública­da identidade do sujeito prático. Quase sempre o que se procura compreender na multiplicidade de formas e de conteúdos da chamada “socie­dade civil” são os processos mediantes os quais se gera a identida­ de do sujeito prático e, cumulativamente, a projecção imaginária da sua identificação em um ser da sociedade. Outro problema que é necessário colocar­é o de saber que estruturas da evolução social, resultantes de mo­ delos de diferenciação social, se tomam em conta na análise da “sociedade civil” do mundo moderno e contemporâneo. Estes dois pontos de ancora­ gem (subjectividade e sistema) das análises que seguem esta apresentação genérica nem sempre originam respostas coincidentes, relativamente à questão de saber o que esperar da “sociedade civil”. A chamada existência pública ou “esfera” pública designa o meio de intersecção e síntese dos fenómenos de construção da identidade do sujeito. Ela é, neste sentido, um meio simbólico. Trata-se de um meio que não corresponde nem a um facto físico nem a um fenómeno da vida psíquica e que entra na categoria dos factos sociais totais. É, portanto, qualquer coisa que possui uma existência objectiva e representa o meio de doação mais próprio da “vida prática” e das suas autodescrições. O meio simbólico da existência pública permite revelar a subjectividade prática, na sua identidade, como efeito cruzado de várias formas de vida desse sujeito, que correspondem a outras tantas modalidades da “visibilidade” da experiência de si desse sujeito, desde a experiência erótica, à experiên­ cia amorosa na vida familiar, à experiência não institucional do estranho

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e do semelhante, à experiência grupal e institucional da inclusão e da exclusão, até às esferas mais alargadas do saber de si na auto-narrativa e na troca de narrações do si, até chegar ao saber de si como cidadão, etc. Se me é permitido o termo, este meio simbólico é um nó de relações, que não retira a sua força expressiva ou a sua capacidade de revelar o sujeito prático de outra coisa que não da forma de um saber. Por esta razão, e de uma forma muito condensada, deveríamos dizer que o meio simbólico próprio da sociedade civil é uma realidade objectiva (um facto) cuja forma de existência é a de um saber de tipo particular. O que, hoje, levamos entendido por “sociedade civil” não se separa do processo da sua construção no mundo moderno e é esta forma moderna da “sociedade civil” que não surgiu sem a libertação do “espaço público”­da questão da sua verdade última ou da questão da adequação do seu ser objectivo ao seu criador transcendente. É por isso que as con­ dições de possibilidade da moderna sociedade civil são suportadas, em parte, pelas condições históricas do aparecimento e aprofundamento da chamada “secularização”,­das lutas religiosas e da privatização da cons­ ciência religiosa,­mesmo que o anterior condicionamento da moral pela religião tenha­deixado marcas profundas na própria autocompreensão da “secula­rização” 1. Independentemente da variedade das experiências históricas das dife­ rentes regiões do mundo sobre a sociedade civil, o que teoricamente sem­ pre exigiu o conceito de sociedade civil aos diferentes autores que foram estudando o seu alcance e as suas limitações e às sociedades e às políticas que nasceram sob a sua bandeira foi a ideia da realização de uma unidade contraditória, a efectivação de um paradoxo, que recua a J. J. Rousseau: a ideia de uma participação num todo do qual cada um não retirava mais do que as condições da sua independência. É por isso que a noção de sociedade civil está sempre atravessada por uma dupla face, em que cada um dos lados manifesta uma realidade que a outra desmente. Para usar os termos que a linguagem filosófica mais recuada consagrou trata-se, aqui, do paradoxo da unidade do indivíduo e da comunidade, que naturalmente se conjuga com o problema também 1 A.

B. SELIGMAN, The Idea of Civil Society, Princeton, New Jersey, 1992, “The Sources of Civil Society. Reason and the Individual”, pp. 59-99; IDEM, Innerworldly Individualism. Charismatic Community and its Institutionalization, New Brunswick, Lon­ don, 1994. 2 A. FERGUSON, An Essay on the History of Civil Society, Cambridge, 1995, espe­

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clássico da unidade da unidade e da pluralidade. Um por todos e todos por um ! Eis a fórmula da misteriosa volonté générale, com que, na modernidade, J. J. Rousseau julgou poder fundar a comunidade política e em que esta última, de facto, acabou por fundar o seu próprio imaginário. Independentemente das questões mais particulares sobre a sua própria genealogia histórica como conceito, a sociedade civil desenvolveu-se, por um lado, como reivindicação da liberdade, da autonomia e da negação de todo o despotismo. Por outro lado, na sua versão escocesa mais célebre, em A. Ferguson, a sociedade civil é expressão de interesses de pessoas vital­mente empenhadas na criação de um espaço de comunicação ma­ terial e cultural 2. E esta ideia de interesse já reflecte suficientemente o facto de aquilo em que se centra o essencial ser o de uma independência partilhada. Como fundamentar uma tal independência partilhada? Dos utilita­ristas a Kant e deste último à ficção rawlsiana da instituição política a própria noção do “civil” se confundiu, não poucas vezes, com a estratégia de um jogo do intelecto, no qual os jogadores pareciam recorrer à liberdade da imaginação para, fora dos possíveis que o mundo real lhes oferecia, tentar perceber qual o procedimento mais adequado para efectivar o paradoxo da independência partilhada: saber como conservar a máxima autonomia para si assegurando o mesmo grau de independência e liberdade para todos os demais. A sedução deste jogo está no cálculo que ele parece poder oferecer, na exactidão com que nos parece mostrar o caminho para a solução do para­doxo em que se baseia toda a vida civil. Todavia, este jogo do inte­ lecto está longe de nos oferecer a solução daquele paradoxo, apenas o desloca. Aquilo que inicialmente era a questão de saber em que residia a unidade da liberdade do indivíduo e da comunidade, rapidamente se transforma em questões particulares relativas aos direitos e deveres, ao que o indivíduo deve esperar da comunidade e vice-versa, ao problema da participação política numa sociedade aberta e democrática, mediante representantes eleitos, à questão da delimitação da esfera privada frente à esfera pública, às diferentes esferas da liberdade individual, até se chegar cialmente a parte IV – “Of Consequences that result from the Advancement of civil and commercial Arts”, pp. 172-193. 3  A mesma ideia de um fim/efeito não consciente das acções humanas está igual­ mente presente nas bases da concepção da História humana em A. Ferguson. Cf. IDEM,

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às questões referentes à igualdade económica e social. A vida civil pode ser reconstruída, toda ela, com base no pressuposto­ deste cálculo imaginário que, sem dúvida, opera em todos os níveis da existência económica, social, política e jurídica, à luz de um conceito abrangente de Justiça. Mas, a própria razão de ser deste cálculo reside na impossibilidade de dar uma solução ao seu problema. O cálculo da melhor sociedade possível, daquela que garantisse a chave de ouro da indepen­ dência partilhada, é qualquer coisa que depende da insolubilidade do seu paradoxo, ou seja, é também a razão de o cálculo ser sempre imperfeito, como um pesadelo de um geómetra, pois a conclusão de que não há ne­ nhuma sociedade perfeita está dada à partida como um quase-pressuposto. A “sociedade civil” é uma das muitas expressões do paradoxo da inde­pendência partilhada e, também, das suas soluções imaginárias e, provavelmente, nos dias de hoje, a expressão mais sintomática. A fórmula mais emblemática para definir o nosso paradoxo ocorre numa disciplina que hoje dirá pouco aos militantes dos direitos cívicos: na Economia Política. Com efeito, foi A. Smith quem celebrizou uma proposição mais ou menos espalhada nos teóricos escoceses da Econo­ mia Nacional e que lhe havia servido para exprimir o funcionamento do mercado. Trata-se da fórmula da “mão invisível”. Com ela se pretendia mostrar como no mercado a satisfação das necessidades de cada um se associava à satisfação das necessidades de todos os demais, sem que fosse necessário­estar consciente, em cada caso, da complementaridade efectiva entre elas 3. De um ponto de vista formal, este encontro e harmo­nização de cada um com todos os demais, no mercado, é o equivalente económico­ da proclamação política um por todos e todos por um! Mas, será que são materialmente compatíveis? No enunciado de A. Smith o que está em jogo é a atribuição do carácter­de lei, ao que, à partida, parece uma improbabilidade: que um mecanismo­totalmente anónimo como o mercado acabe por aproximar agentes económicos que se desconhecem. A. Smith vai atribuir um valor objectivo ao que os teóricos da instituição civil do jusnaturalismo conce­ biam como estratégia imaginária dos indivíduos à saída da sua precária o. c., p. 119. 4  J. C. BOUAL, «Une société civile européenne est possible» in J. C. BOUAL (ed.), Vers une société civile européenne, Saint-Étienne, 1999, pp. 13-51.

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condição natural. O que para o economista é uma lei objectiva, para o filósofo da vida civil será conquista da razão estratégica e dos seus jogos sobre mundos possíveis. Pois também este último, à luz dos seus pressup­ ostos, terá de recorrer a uma “mão invisível” para dar conta do mecanismo que une indivíduo e comunidade. Esta “mão invisível” política chamou-se contrato de instituição civil. O “civil” oposto ao simplesmente “natural”, ao “inculto” e “bruto” emergia, então, como um efeito resultante de uma imposição da natureza humana, que só não agia de uma forma completamente cega, como as leis do mercado, pelo facto de se ter determinado como uma norma da vontade e, assim, poder originar o livre consentimento da sua própria ordem e lei. Do ponto de vista político, com T. Hobbes, o paradoxo de base não fora solucionado, mas havia sido imaginariamente deslocado para os seus dois extremos: o do indivíduo inteiramente “natural” e o da comunidade intei­ramente sujeita à dominação política de um poder soberano ilimitado. Entre estes dois extremos existirá sempre a possibilidade de um cálculo, mas quem quer usufruir da paz e da segurança terá de optar pela domi­ nação política. Ao longo do fim do século XVI e nos séculos XVII e XVIII a justifi­ cação da vida civil a partir desta ideia de um cálculo estratégico da inde­ pendência partilhada consistiu em uma narrativa: o “civil” não possui o tempo da natureza, ele fez-se a partir de uma génese determinada, que pode ser descrita e contada. O “civil” e a “civilização” opõem-se aos costumes rudes dos primitivos, que não atravessaram ainda essa génese do homem europeu e em que este último acaba, também, por ir descobrir a liberdade e a independência antes da instituição da partilha. O que é significativo é que não há civilização sem uma mitologia da emergência da “civilização”. E isto pelas duas razões que se prendem com o duplo uso do mito, na medida em que este nos descobre a relação do primitivo com a sua natureza, da qual, todavia, o europeu se emancipara com terror, e na medida em que o processo da emancipação do europeu em relação à sua “natureza” (humana) só está disponível na forma das fábulas de instituição. Mas, nos quadros analíticos e no léxico em que o jusnaturalismo do século XVII consagrou o dualismo da existência “civil” dos homens e do “estado de natureza”, a noção moderna de “sociedade civil” só podia sur­gir como um terceiro nível, a situar entre o indivíduo e o poder so­ berano (“civil”).

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Embora não provenha directamente da estratégia analítica do Direito Natural moderno, a semântica da sociedade civil moderna teve de se cruzar com as dicotomias por ele lançadas na Filosofia Política. E, assim, desta enxertia resultam os três “movimentos” da sociedade civil: 1. dos indivíduos para o detentor da soberania política; 2. do soberano para os indivíduos; 3. da transversalidade; 3.1. da associação para o indivíduo; 3. 2. do indivíduo para a associação; 3.3. da associação para a associação. Esta complexidade semântica resultante de uma tricotomização de um espaço analítico dualista acompanhou as duas expressões históricas funda­ mentais da sociedade civil: a expressão mais tipicamente americana, que revelou a sociedade civil como auto-organização espontânea da sociedade de tipo associativo e que conduziu a formas mais ou menos bem sucedidas de auto-governo e à ideia de “federação”, valorizando-se os movi­mentos referidos na transversalidade (3); a expressão mais tipica­mente europeia, que encontra na sociedade civil, antes de tudo, uma rede de protesto rei­ vindicativo contra a “exclusão social”, as formas de miséria e pobreza, o desemprego, etc. Naturalmente, esta modalidade de experi­mentação da sociedade civil tende a supor do lado do Estado, do governo e do poder político em geral as grandes responsabilidades (quando não mesmo as únicas) na condução das políticas nacionais sensíveis. Não é um modelo que tenha nascido ou tenha por finalidade a obtenção de um governo espontâneo da sociedade pelo crescimento espontâneo das suas formas associativas. Enquanto o primeiro tipo de experiência histórica polariza a sociedade civil em torno do nó transversal, já o segundo modelo tende a privilegiar a relação vertical assinalada em 1. Hoje, a significação da sociedade civil vem novamente articular-se nesta dupla polarização e de tal modo que podemos reconhecer dois dis­ cursos e duas estratégias políticas associadas com ambas as orientações. Por um lado, encontramos na esquerda europeia, e na estratégia sindi­ cal que com ela andou longo tempo associada, uma tentação irresistível para subordinar à polarização vertical das lutas reivindicativas a base associativa e a própria organização transversal da sociedade civil. A pola­ rização vertical é preponderante e a ela se vêm subordinar as restantes formas da vida associativa. Esta última, aliás, não é um fim em si, mas um meio posto ao serviço da mobilização de um suporte ou de um entrave às políticas públicas do Estado. A esquerda europeia fundou, portanto, as suas principais estratégias políticas na relação clássica da Soberania

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Política, tal como havia sido estruturada no pensamento político dos sécu­ los XVII e XVIII e acompanhando, também, o crescimento da insti­tuição parlamentar e dos partidos políticos 4. Ao contrário, contra o que considerava ser um excesso de protago­ nismo do Estado e das estruturas políticas de cúpula, na época gerada pelo espírito do New Deal, uma parte significativa do pensamento conservador na segunda metade do século XX anunciou por diversas vezes a neces­ sidade de uma “libertação” da sociedade civil e das estruturas intermédias entre o Estado e o indivíduo colocando, por conseguinte, o essencial da sua estratégia na polarização transversal da sociedade civil e sustentando o discurso da ilimitada veneração da espontaneidade e da capacidade de auto-organização dos cidadãos. O modelo invocado foi o do mercado e da sua capacidade de gerar equilíbrios espontâneos. Aqui, as associações da sociedade civil são tomadas como um fim em si mesmo, mas a sua ordem espontânea é perspectivada, em última análise, como sendo seme­lhante aos fenómenos infra-políticos da circulação mercantil 5. Num modelo, situamo-nos perante uma sociedade civil que é a con­ dição da sociedade política e incorporando em si o ser ideal da política. No outro caso, a sociedade civil representa uma autosuficiência, uma indiferença essencial quanto ao Estado, ao mesmo tempo que pode ser entendida como a organização espontânea de livres proprietários. No pensamento político da modernidade a exploração mais conse­ quente do primeiro modelo pode identificar-se com a obra de J. J. Rous­ seau e o segundo modelo esteve inscrito no pensamento de J. Locke. No sentido desta última orientação, está bem presente na consciência do público o recurso no passado recente à ideia-slogan de “sociedade civil” como um instrumento destinado a revigorar o espírito de iniciativa individual (o económico-empresarial incluído) ou de algumas comuni­ dades contra a “sociedade política” ou Estado e o seu poder de travão da capacidade empreendedora de cada um. Um diagnóstico relativamente recente, em nada ingénuo politicamente, sobre o estado da democracia americana, levou alguns autores a atribuir à perda de significado da “so­ ciedade civil” e das suas estruturas de vida comunitária e associativa 5 Cf. M. NOVAK, The Fire of Invention. Civil Society and the future of Corporation, Lanhan – Boulder – New York – Oxford, 1997. 6 Um eco importante destas investigações e dos seus resultados está na recente obra de F. FUKUYAMA, The Great Disruption: Human Nature and the Reconstitution of Social Order, New York, 1999.

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fenómenos tão espalhados na cidade mundial como o suicídio entre os tee­ nagers, a diminuição da saúde mental, a progressão do crime, a diminui­ ção da confiança nas instituições e entre as pessoas ou a diminuição do interesse no cuidado pelos outros 6. Uma das expressões mais fortes da condição subalterna da cidadania e da vida cívica no chamado Estado Providência foi referida por D. E. Eberly, quando identificou o indivíduo das sociedades industrializadas modernas com um cliente de uma rede complexa de serviços de um autên­ tico Estado terapeuta 7. O indivíduo tende a sentir-se tanto mais “cidadão” quanto está consciente de poder reclamar desse Estado que se encarregue de si, que o tome como um caso da vasta “acção social”, que o medique, que o instrua e eduque, que o proteja, mediante o recurso sempre perma­ nente a autênticos terapeutas sociais profissionalizados. Os cidadãos assim reduzidos a clientes ou, na melhor das expressões, reduzidos a “utentes”, tendem a gerar com os políticos uma relação de estranha cumplicidade, que consiste em esperar que o político se comporte para com ele de tal modo que a anterior situação de quase-menoridade não cesse de se re­ produzir. O político, por seu lado, deve sempre colocar-se na posição de poder prometer que os cuidados da sócio-terapia não abandonarão o seu eleitor, ou seja, deve dar-lhe a esperança de que não advirá da sua acção qualquer auto-governo para os cidadãos. Partindo de um ensaio de síntese de diferentes estratégias analíticas presentes sobretudo nos autores alemães e uma “utopia da sociedade civ­ il”, J. L. Cohen e A. Arato propuseram, em obras de 1992 e do ano 2000 8, uma abordagem séria da associação entre sociedade civil e processo de demo­cratização, que teve em linha de conta as experiências de transição política dos países do Leste europeu. D. E. EBERLY, “Introduction. The Quest for a Civil Society” in D. E. EBERLY (ed.), Building a Community of Citizens. Civil Society in the 21 st. Century, Lanham – New York – London, 1994, p. xxix. No mesmo sentido já ia o conhecido manifesto, da década de 1970, pela renovação da sociedade civil americana de P. L. BERGER – R. J. NEUHAUS, To Enpower People. From State to Civil Society, Washington, D. C., 1996. 8 J. L. COHEN-A. ARATO, Civil Society and Political Theory, Cambridge (Mass.) – London, 19995; A. ARATO, Civil Society, Constitution and Legitimacy, Lanham – Boulder – New York – Oxford, 2000. 9 J. L. COHEN-A. ARATO, Civil Society and Political Theory, o. c., pp. 423 e ss; 451 e ss. 10 IDEM, Ibid., pp. 445-446. 11 IDEM, Ibid, p. 452 e pp. 469-471. 7

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Para ambos não parece ser possível separar a descrição teórica e o projecto político da “sociedade civil”, o que os leva a difíceis tentativas de pensar o projecto político no quadro analítico da teoria luhmanniana dos sistemas sociais. As apostas teórica e “utópica” vão de mãos dadas e se no primeiro caso várias vezes é considerada a perspectiva de N. Luhmann sobre a “diferenciação funcional”, e as suas consequências ana­líticas, como um dado adquirido, já no segundo aspecto regressam J. L. Cohen e A. Arato ao diagnóstico de J. Habermas relativo a uma “colo­nização do mundo da vida” e à distinção, tomada como obrigatória, entre­“sistema” e “vida”9 . O projecto político da “sociedade civil” e a sua aliança com a ideia da “democracia radical” (ou, em outra expressão, “democracia robusta”) radica na defesa do “mundo da vida” contra os perigos de uma dupla “colonização”: a colonização proveniente de um alastramento do meio simbólico do sistema económico e a colonização derivada do Estado providência, que historicamente resultou das lutas contra aquela primeira tendência, em nome de princípios de “solidariedade”, que a economia do primeiro liberalismo ignorara ou destruira 10. Assim, contra a invasão de uma “sociedade de mercado” e contra o paternalismo do Estado provi­ dência, o projecto de salvação do “mundo da vida” entende-se como exercício democrático autoreflexivo e autolimitado 11. A realização de um tal projecto político, que se pode definir medi­ ante a fórmula “descolonizar através da democratização”, encontra-se depen­dente do fortalecimento de um terceiro meio simbólico, ao lado do “poder” e do “dinheiro”, que é o da “solidariedade”. Mas, a principal difi­culdade reside em saber como introduzir “esferas públicas” nas insti­ tuições económicas e do estado providência, sem ir contra os mecanismos de autoregulação destes sistemas 12. É neste ponto que se deve situar uma via média entre os resultados a que chega a análise das sociedades complexas, inspirada na obra de N. Luhmann, e as exigências de “descolonização do mundo da vida” de J. IDEM, Ibid, p. 480. Cf. H. WILLKE, Atopia. Studien zur atopischen Gesellschaft, Frankfurt / M., 2001, pp. 7- 21. 14 J. L. COHEN-A. ARATO, Civil Society and Political Theory, o. c., p. 435. 15 IDEM, Ibid., pp. 480 e ss. 12

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Habermas. Situando a sua utopia autolimitada da sociedade civil entre os dois extremos utópicos da modernidade, referidos mais recentemente, também, por H. Willke 13, a utopia da liberdade negativa do mercado e a utopia da igualdade substantiva promovida pela estatização, J. L. Cohen e A. Arato posicionam a “ética da comunicação” como princípio regulativo de uma nova “sociedade civil” que não ambicione qualquer totalização da vida em comum, a qual seria aliada de uma desdiferenciação “primitivista” das sociedades complexas, mas que, não obstante, possa ser um correctivo adequado à invasão da esfera pública 14. Ao longo da argumentação dos autores o que se vai tornando proble­ mático é a capacidade de uma tal utopia se manter desvinculada do meio simbólico do “poder”. Ao fazerem referência à capacidade reflexiva dos sistemas parciais e à necessidade de uma “regulação da autoregulação”, a propósito da análise dos contributos de G. Teubner e sobretudo de H. Willke sobre a “lei reflexiva” 15, argumentam os dois autores no sentido da necessidade de uma base discursiva e comunicacional para suplementar o dispositivo analítico da teoria dos sistemas, exclusivamente assente na autopoiésis sistémica. Pensando que este recurso a uma base discursiva da “regulação da autoregulação” garantia à partida uma imunização da “ética da comuni­ cação” a respeito do meio simbólico do poder, logo a seguir consideram os mesmos autores, com apoio em T. Parsons e J. Habermas, que é pos­ sível encontrar na “influência” um “quase-medium”, a situar entre poder e dinheiro, responsável pela relativa eficácia da pressão dos discur­sos da “esfera pública” nos sistemas parciais autoregulados 16. O que fica por pensar e que é também assunto de reflexão de alguns movimentos sociais, há várias décadas, é saber se a “influência” da so­ ciedade civil nos sistemas parciais autoregulados não é necessariamente já fruto do meio simbólico do poder. Cabe a J. L. Cohen e A. Arato a difícil prova da exterioridade da noção de “influência” relativamente ao meio simbólico do poder, pois só desta forma se pode demonstrar o que IDEM, Ibid., pp. 486-487. A propósito do conceito de “opinião pública”, muitas vezes associado com o de “sociedade civil” e com este historicamente emparelhado, referia N. Luhmann uma mul­ tiplicidade de “elementos acoplados de uma forma frouxa” para constituir um medium simbólico mobilizável em diferentes sistemas de comunicação. N. LUHMANN, Die Politik der Gesellschaft, Frankfurt / M., 2000, p. 287: Öffentliche Meinung ist vielmehr 16 17

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carecia ainda de demonstração, a saber, que a “ética da comunicação” pode constituir um “suplemento” adequado e, sobretudo, “transcendente”, à total imanência da autoregulação dos sistemas sociais parciais. De qualquer modo, ao longo do presente estudo tentarei tornar mais evidente a ideia segundo a qual não parece muito viável o caminho de “descolonizar o mundo da vida” mediante imunizações. 2.  Quatro ideias post-hegelianas preliminares sobre a “sociedade civil” Se é possível dar uma resposta directa à questão de saber o que qualifi­ camos hoje com a designação “sociedade civil”, para além da sua clássica identificação com o “povo”, essa resposta reside na seguinte ideia que, neste estudo, servirá de ideia-guia principal. I.  A sociedade civil realiza o essencial do cruzamento entre uma determinada fase da evolução social das sociedades complexas e a função de designar o real do universo ético-político como um todo, por parte dos discursos de legitimação. Hoje, a “sociedade civil” mais do que representar um conceito de sig­ nificação unívoca nas Ciências Sociais divide-se entre o contexto de visibilidade de protestos políticos e o contexto de evidenciação públi­ ca do próprio sistema político o que, de certa forma, em muitos casos, equivale à mesma coisa. Muitas vezes, a noção vaga de “com­plexidade” da sociedade civil apenas esconde a dificuldade em determinar em um momento da evolução social os feixes de relações entre diferen- tes siste­ mas sociais e as concepções morais difusas sobre a “sociedade justa”. Quando o filósofo da política se coloca do lado da “sociedade civil” e julga ver-se a si mesmo na reconfortante posição de camarada de luta, arrisca-se a fazer o papel de “moralista” sem ter compreendido as bases evolutivas da moral e, por conseguinte, sem poder ser um crítico da moral. A expressão “sociedade civil” deverá entender-se no sentido da lose Kopplung de N. Luhmann 17, ou seja, como resíduo de acoplagens estru­ turais de sistemas sociais. Se compreendermos assim o terreno movediço que esta expressão refere, estaremos aptos a perceber que aquilo de que ela é o síntoma é da negação da estrutura social. Partamos, portanto, da

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definição abstracta de “sociedade civil” que a caracteriza como negação da estrutura. Isto leva-nos à segunda ideia fundamental do presente estudo. II. Como negação da estrutura, a “sociedade civil” surge, no dis­ curso político, como o Real dos discursos de legitimação. Ela é aquilo a que nos referimos quando designamos um “ser” da sociedade que deve poder significar, também, o sujeito da sociedade. O domínio caracterizado pela negação da estrutura não designa, to­ davia, a realidade de um sujeito da sociedade e da história estranho à estrutura da sociedade fixada pela evolução e que, como uma exterio­ ridade ou como uma transcendência, se revelaria, simultaneamente, como princípio de inteligibilidade das estruturas adquiridas pela evolução social­ e sua justificação moral. Daqui resulta, negativamente, a terceira ideia-guia. III.  A negação da estrutura refere um espaço imaginário dos dife­ rentes sistemas sociais, que se define como o resto mobilizável para sustentar a própria referência a um real por parte dos sistemas sociais, nas suas diferentes interacções. A ser verdadeira, esta afirmação implica que só possa esclarecer-se a expressão “sociedade civil” na dependência da evolução da própria estru­tura da sociedade. Entre a evolução social e o tipo de recurso às “poten­cialidades” da “sociedade civil” se gera um processo de influên­ cia recíproca. Se pudermos descobrir que situações evolutivas suscitam o recurso à “sociedade civil” como bandeira política e social também estaremos aptos a dar resposta à questão de saber como definir uma tal expressão. Mas, pelo menos uma aquisição da evolução social estará sempre em ein Medium eigener Art... “Medium” soll auch hier, wie am Falle von Macht erläutert, eine Menge von lose gekoppelten Elementen, von möglichen Kommunikation heiben, die von Fall zu Fall, aber immer nur temporär, zu festen Formen, zu bestimmten Aussagen gebunden wird, die sich alsbald wiederauflösen und dadurch das Medium reproduzieren.  18 J. LOCKE, Two Treatises on Government, Cambridge, 19882.  19 J. LOCKE, o. c., entre outros passos: § 89, p. 325; Cf. A. STEPHEN McGRADE (ed.), R. HOOKER, Of the Laws of ecclesiastic Polity, Cambridge, 1997, chap. 9.1-10.1, pp. 87 e ss. 20 Cf. J. GARBER, Spätabsolutismus und bürgerliche Gesellschaft, Frankfurt / M., 1992, “Politisch-soziale Partizipationstheorien im Übergang vom Ancien Régime zur

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jogo de antemão. Com efeito, a referência à “sociedade civil” como o “real” dos discursos de legitimação supõe a garantia prévia da separação entre sociedade e estado, pois é neste domínio intercalar entre as duas esferas que tem sentido, em determinadas circunstâncias históricas de crise ou em virtude das necessidades da manipulação ideológica, colocar a sociedade civil e as suas “exigências”, as suas particularidades e, por fim, o “ser” da sociedade, a sua “verdade”, em oposição à “ilusão” polí­ tica. E, não menos importante, no mesmo esquema a “sociedade civil” apre­sentou-se, também, como o dever-ser da “sociedade política”, como a sua moral. IV. A “utopia da sociedade civil” não pode hoje significar a ideia de uma fusão de sistemas parciais da sociedade, em nome de uma unidade do povo, da “sociedade”, da “humanidade”, de uma “transparência” comu­ nicativa de si a si dos cidadãos, etc. Todo o empenhamento político nestas direcções é um empenhamento contra as aquisições da evolução social e, por conseguinte, condenado a esvair-se. Em vez disso, os crentes na “utopia da sociedade civil” devem assumir as suas bandeiras políticas em primeiro lugar como “crenças” e, se querem que estas últimas sejam adequadas às formas modernas da diferenciação social, devem querer sig­ nificar a exigência de um sistema social diferenciado e fundamentado in­ ternamente pelos princípios da autonomia funcional e da “não inge­rência”, pois é da ingerência de sistemas parciais em outros (ex: economia na política), que resulta o que equivocadamente se chamou “colonização do mundo da vida”. É neste sentido que a “utopia da sociedade civil” pode ter importância em regiões do mundo que conservam estruturas pré-mo­dernas e que jogam no discurso da fusão das esferas o essencial da protecção pelas elites de interesses pouco claros. Contra todas as fusões primitiv­ istas, a “utopia da sociedade civil” é herdeira de uma certa faceta do iluminismo como crítica de toda a idolatrização do todo, mas não porque acredite em outras totalidades, mas sim pelo facto de, para ela, a política e a moral se deverem tornar em “artes da diferenciação” e não em funções da totalidade. A função de aplicação do princípio da “não inge­rên­cia” e da “arte da diferenciação” só pode pertencer ao sistema político, o que quer dizer que, neste aspecto, volta de novo a ter interesse a ideia hege­ liana de estado embora, provavelmente, com um sentido muito diferente. É neste enquadramento geral que se justifica agora o recurso à obra

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de Hegel, e em especial às lições de “Filosofia do Direito” da época da maturidade, pois Hegel é aquele autor que, na História do pensamento filosófico moderno, está colocado numa posição privilegiada para reflectir os avanços e hesitações da constituição do que chamamos “sociedade civil” moderna, entre as sociedades da época do Estado Absolutista e o mundo burguês que despontava. A tese do presente estudo reside na ideia de que Hegel reflectiu a “sociedade civil” da sua época de um ponto de vista evolutivo, de uma dupla maneira. Reflectiu-a simultaneamente: como teórico da separação entre sociedade e estado e como crítico do dualismo moral entre socie­ dade e estado. Por outro lado, há uma outra razão para reler atentamente a concepção de Hegel sobre a “sociedade civil”. Essa razão prende-se com a ideia que surgirá no final deste trabalho de um modo mais desenvolvido, embora sem incluir todas as suas implicações, e segundo a qual Hegel revelou nos Fundamentos da Filosofia do Direito a metafísica política da sociedade civil, revelou como a “sociedade civil” surge como o real dividido que só o Estado está em condições de mostrar na sua interna separação. A sepa­ração entre estado e sociedade civil serve para exprimir a própria socie­dade civil como separação e, portanto, como real pré-político. A diferença entre um real dividido e um real reconciliado estrutura a imaginação política sobre a sociedade civil e faz deste último conceito tudo o que ele possui de politicamente plástico e, por conseguinte, de politicamente mobilizável. Também os discursos de protesto político fun­ dados na “sociedade civil” como ideal se situam neste modelo dualista. 3.  A “Sociedade Civil” como síntoma da modernidade. A genea­ logia moderna da Sociedade na sua diferença frente ao Estado Os aspectos da evolução do conceito de “sociedade civil” que mais directamente influiram na concepção de Hegel nos Fundamentos da Filosofia do Direito podem condensar-se no tema da distinção / separação entre Sociedade (Sociedade Civil) e Estado. Importa, portanto, saber o que na evolução semântica da “sociedade civil” no século XVIII tornou tão decisivo o tema em causa. Nos autores do Direito Natural moderno do século XVII (T. Hobbes,

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S. von Pufendorf e J. Locke) e ainda na obra de C. Wolff o conceito de “civil” não se encontra polarizado pela sua oposição ao “estadual” ou ao espaço íntimo da família, mas a polarização de base reside na oposição entre “civil” e “natural”. Uma “sociedade civil” é em T. Hobbes como em S. von Pufendorf uma realidade instituída pela vontade dos homens que, por meio de um acto contratual, decidem abandonar a sua condição “natu­ ral”. Neste sentido, para os jusnaturalistas do século XVII e seus conti­ nuadores, a “sociedade civil” não é um espaço diferenciado do Estado mas com ele directamente identificado. No Segundo Tratado do Governo Civil 18 (cap. II, § 15), J. Locke, seguindo o modelo de R. Hooker, iden­ tificava directamente “estado civil” e “politick society” e no capítulo VII identificava sob o mesmo título geral “political or civil society”  19. Tam­ bém de acordo com a tradição aristotélico-tomista, retomada a partir de R. Hooker, parte J. Locke de uma noção abrangente de “sociedade” sob a qual coloca os laços familiares de homem / mulher e de pais / filhos, para seguidamente nela incluir a sociedade senhorial e, por fim, a “sociedade política” propriamente dita. O que distingue esta última frente à relação familiar e à relação feudal é precisamente a sua identidade perfeita com a “sociedade civil”: a sociedade civil = sociedade política é uma união em um único corpo de um conjunto de membros, que se reconhece num poder legislativo e judicial comum (cap. VII, § 87). A refe­rência de todos os seus membros a uma mesma instância de apelo em caso de conflito é a nota que distingue esta sociedade civil e política do estado de natureza. A esta nota acrescenta depois o mesmo autor a existência de um poder executivo, que se concretiza na forma de “governo civil”. Pode dizer-se, portanto, que só um critério de utilidade relativa permite distin­guir entre os diferentes níveis nesta noção uniforme de “sociedade”. A distinção entre uma “societas civilis” e uma “societas naturalis” ocorre igualmente nos pensadores alemães do Direito Natural moderno, de formação mais jurídica do que filosófica, sob influência dos escritos de S. von Pufendorf e, depois, de C. Wolff ao longo do século XVIII 20. Um eco da mesma distinção se encontra, ainda, no Fragment on Government (1776) de J. Bentham 21. Neste texto se revela até que ponto, nos finais bürgerlichen Gesellschaft (1750-1800)”, pp. 119-157, p. 125; H. CONRAD, Die geistigen Grundlagen des Allgemeinen Landrechts von 1794, Köln und Opladen, 1958; H. CON­RAD-G. KLEINHEYER, “Einleitung” in H. CONRAD-G. KLEINHEYER (Hrsg.), Vorträge über Recht und Staat von Carl Gottlieb Svarez (1746-1798), Köln und Opladen, 1960.

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do século XVIII, ainda não estava madura a ideia de uma inde­pendência entre sociedade política e sociedade civil. A oposição preferida e de refer­ ência desta obra é aquela que separa “sociedade natural” de “sociedade política”, continuando, portanto, a dicotomia dos autores do século XVII. A mesma polaridade se encontra em I. Kant. Se queremos encontrar indícios de um espírito novo em relação ao quadro dicotómico “sociedade civil” / “sociedade natural”, embora man­ tendo alguma continuidade com a concepção de J. Locke e de S. Pufen­ dorf de uma sociabilidade natural dos homens, devemos voltar a nossa atenção para a Revolução Americana. Nos debates relativos à natureza da Constituição Americana e do governo por ela legitimado que, ao longo dos anos de 1780, separou os chamados “federalistas” dos “anti-federalistas” encontramos um recurso significativo, sem ser massivo, à noção de sociedade civil. No caso dos autores “anti-federalistas”, o uso da expressão é mais habitual. O autor que, em 1787, se deu a conhecer com o pseudónimo “John De Witt” escreveu um conjunto de ensaios sobre os debates constitu­cionais, em que considerava como algo de indiscernível do espírito ame­ricano o florescimento de “associações civis” 22. Ao descrever a sociedade civil como uma benção (civil society is a blessing) o autor pretendia que a própria orientação educativa das crianças americanas era no sentido de a promover 23. Em articulação com o elogio do pendor associativo do espírito ameri­ cano está também presente a ideia de que qualquer governo deve ser submetido a um rigoroso exame dos seus títulos de legitimidade, o que corresponde a um exame da sua Constituição Política. A recusa de alguém 21 J. H. BURNS-H. L. A. HART (eds.), J. BENTHAM, A Fragment on Government, Cambridge, 1995, pp. 39-40. 22 “JOHN DE WITT”, “Essays I and II (October 22 and 27, 1787)”, in R. KETCHAM (ed.), The anti-federalist Papers and the constitutional convention Debates, New York, 1986, p. 190. 23 IDEM, Ibid., idem. 24 IDEM, Ibid., p. 194. 25 IDEM, Ibid., p. 195. 26 S. BRYAN, “CENTINEL”, “Number I (October 5, 1787)”, in R. KETCHAM (ed.), o. c., p. 228. 27 P. HENRY, “Speeches of Patrick Henry (June 5 and 7, 1788)”, in in R. KETCHAM (ed.), o. c., p. 205.  28 (...) But now, Sir, the American spirit, assisted by the ropes and chains of consoli-

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em formar um juízo próprio sobre a Constituição Política equivale, nas palavras do panfletista, a uma traição da sua própria autonomia de cidadão (Every citizen has an undoubted right to examine for himself)24 . Para o mesmo “John De Witt” esta capacidade de um exame autó­nomo dos princípios da vida constitucional do Estado e de um bom governo é a base do “espírito de amizade” que deve presidir à Convenção e às suas reuniões 25. Associativismo, autonomia da vontade e autonomia do jul­ gamento político, tais parecem ser os traços do culto que este panfletista devotava à sociedade civil. Num panfleto do mesmo ano de 1787, Samuel Bryan declarava que os princípios da Constituição de inspiração federativa deveriam ser caute­ losamente analisados à luz dos “grandes fins da sociedade civil” 26, que ele logo identificava com a felicidade e prosperidade da comunidade. O pro­gresso material e espiritual é, aqui, a ideia de base. Nos discursos de Patrick Henry, de 1788, as ideias de “povo”, “nação” ou “conjunto de cidadãos” só faziam sentido na medida em que estes ter­ mos singulares-colectivos remetiam para uma existência autónoma, e de certo modo fundadora, em relação ao governo o que, do ponto de vista prático, se reflectia na urgência de uma lista de direitos individuais e col­ ectivos, que o próprio governo teria obrigação de garantir, como qual­quer coisa de sagrado 27. A autonomia da comunidade aparece, assim, como o critério mais importante da existência de um governo moral e justo, na medida em que este é controlado e limitado. A sociedade civil é, pois, garantia da moralidade política. Quando salienta a necessidade da limitação dos poderes públicos, o anti-federalista Patrick Henry opõe o modelo republicano das sociedades autogovernadas de escala relativamente reduzida ao modelo imperial que, segundo ele, se estaria a tentar introduzir na América. Sobre este último modelo, dizia: um tal Governo é incompatível com o génio do republi­ canismo 28. Para este escrito, a comunidade modelar é representada pela dation, is about to convert this country to a powerful and mighty empire: If you make the citizens of this country agree to become the subjects of one great consolidated Empire of America, your Government will not have sufficient energy to keep them together: Such a Government is incompatible with the genius of republicanism: There will be no checks, no real balances (...) P. HENRY, “Speeches of Patrick Henry (June 5 and 7, 1788)”, in in R. KETCHAM (ed.), o. c., p. 208.  29 T. PAINE, “Common Sense”, in T. PAINE, Rights of Man. Common Sense and other political writings, Oxford-New York, 1998, p. 5.

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sua capacidade de gerar um auto-governo com base na maior proximidade possível dos seus membros. A sociedade civil é, então, capacidade de autogoverno e deliberação. O início de Common Sense (1776) de T. Paine contém uma distinção entre “sociedade” e “governo”, que o autor considerou como absolu­ta­ mente necessário manter e precisar. As duas noções não só devem consi­ derar-se como diferentes conceptualmente, mas têm diferentes origens 29. A clarificação das origens de ambos levou T. Paine a considerar na natureza humana duas fontes, à luz da sua ficção sobre o início de uma formação política a partir de um grupo primitivo de colonizadores: uma delas é como um impulso afirmativo da vida e origina a vida social dos homens, a sociedade, enquanto a outra é constituída pelos vícios dos ho­ mens. No desenvolvimento desta segunda fonte primitiva até à vida civil, o governo surge como a garantia da máxima restrição possível dos vícios e da segurança da existência comum, como se se tratasse de um remédio contra a ausência de sentido moral entre os homens 30. O que define sociedade é, em primeiro lugar, a promoção da felicidade comum, a qual será conseguida mediante a “união de todas as afinidades”. Ao contrário do governo, que pune e limita, a sociedade floresce e desen­volve-se com o intercâmbio de todos os seus elementos. O impulso no sentido da primeira associação derivou de uma necessidade de interajuda, inicialmente sentida por poucos, mas rapidamente alargada a grupos maiores. Interesse e interajuda são, portanto, as duas bases da sociedade, enquanto a segurança é a base do governo. No artigo sobre a Justiça Agrária (1797) desenvolve T. Paine esta noção da sociedade como intercâmbio dos seus membros a propósito da origem da propriedade privada que, na sua tese, é uma criação social e não uma emanação exclusiva do esforço individual 31. A prosperidade é IDEM, Ibid., p. 6. IDEM, “Agrarian Justice, opposed to agrarian Law, and to agrarian monopoly. Being a plan for meliorating the condition of man, by creating in every nation a national fund”, in o. c., pp. 409-433, p. 428. 32 Sobre o contexto da obra de A. de Tocqueville cf. S. KESSLER, Tocqueville’s Civil Religion. American Christianity and the Prospects for Freedom, New York, 1994. 33 R. KOSELLECK, Kritik und Krise. Eine Studie zur Pathogenese der bürgerlichen Welt, Frankfurt / M., 19927; IDEM, “Drei bürgerliche Welten? Theoriegeschichtliche Vorbemerkung zur vergleichenden Semantik der bürgerlichen Gesellschaft in Deutschland, England und Frankreich” in K. MICHALSKI (Hrsg.), Europa und die Civil Society. Cas­ telgandolfo – Gespräche, Stuttgart, 1991, pp. 118-129.  30 31

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como o recíproco do conceito de sociedade. As concepções presentes nos panfletistas americanos contribuiram para redimensionar a oposição geradora do sentido da moderna “sociedade civil”, pois esta última deixa progressivamente de estar no eixo que a opõe à “sociedade natural” para começar a estabelecer-se na nova oposição entre “sociedade” e “governo”. Esta nova configuração ajuda a preparar uma concepção do “espaço público” das sociedades modernas, o qual não é somente um domínio independente do “governo” e dotado, por isso, ao nível das associações e da vida cívica, que A. de Tocqueville celebrou 32, de uma capacidade de avaliação e crítica, mas ainda é esta configuração que origina a Sociedade dentro do Estado, a que se chama Parlamento. Para além da moldura da sua oposição à “sociedade natural” a evo­ lução semântica de “sociedade civil”, no caso europeu, não originou, directamente, por todo o lado, as mesmas consequências que a evolução americana. As teses de R. Koselleck sobre a formação do “mundo burguês” na Europa mostram a formação da semântica de “sociedade civil / sociedade burguesa” na dependência da crise do Estado Absolutista e da emergência dos fenómenos revolucionários e/ou de emancipação decorrentes da Revo­ lução Francesa 33. O próprio fenómeno do Estado Absolutista está inscrito num período de transição entre dois marcos críticos para a His­tória da Europa entre 1600 e 1800: as guerras religiosas e a Revolução Francesa. Em Kritik und Krise (1959) explorava R. Koselleck a evolução cru­ zada das bases filosóficas e semânticas do mundo moderno e das suas condições políticas e sociais. Do ponto de vista das suas condições políticas, o mundo público “burguês” foi sendo projectado já pelo Estado Absolutista, com base num processo de uniformização dos súbditos de tal forma que, tendo-se resol­ R. KOSELLECK, Kritik und Krise, o. c., p. 14. IDEM, Ibid., p. 29. 36 IDEM, Ibid., p. 31.  37 IDEM, Ibid., p. 41.  38 LESSING, Ernst und Falk. Gespräche für Freimaurer, cit. in R. KOSELLECK, o. c., p. 57.  39 R. KOSELLECK, o. c., p. 60.  40 Cf. I. HULL, Sexuality, State and Civil Society in Germany, 1700-1815, New York, 1996, p. 208. 41 IDEM, Ibid., p. 213; H. CONRAD / G. KLEINHEYER, “Einleitung”, art. cit. in loc. cit., XVI-XVII. 34 35

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vido o monarca a submeter de igual modo todos eles, criou com isso as condições do estabelecimento do poder político do Estado como única sede do poder, do mesmo modo que procedia à uniformização do corpo dos indivíduos administrados, naquilo que depois, como consequência de uma viragem não desejada pelo Absolutismo, se irá chamar “cidadania”34. Por outro lado, o afastamento da consciência moral dos fundamentos do poder político, começado por Maquiavel e consumado com T. Hobbes, que se lê na ideia Auctoritas non Veritas facit legem,é o principal resul­ tado da teorização da Política mais típica do Absolutismo. Na obra de T. Hobbes e na sua concepção da religião se encontra, simultaneamente, a ideia de uma “moral da razão” e a justificação da Soberania Absoluta do Estado em virtude de uma necessidade político-moral. Seguindo ainda R. Koselleck, a obra de T. Hobbes tinha conduzido a uma privatização da consciência moral individual através da exigência moral da conservação do poder de decidir em matéria religiosa nas mãos do detentor da Sobe­ rania: a privatização da moral obtém-se, portanto, através da “moral da razão” de Estado. A semântica do “público” e do “privado” e da inde­ pendência das respectivas esferas é bem evidente na obra de T. Hobbes. Ora, o fundamental reside na ideia de que é esta “privatização” da cons­ ciência moral que, por outro lado, está na origem do fenómeno da cria­ ção das sociedades secretas, dos clubes e das associações de discussão literária, muito típicas da época de crise do Estado Absolutista e da “dia­ léctica” entre desmistificação e mistificação, iluminismo e desmascara­ mento 35. A distinção entre consciência moral interior (princípio da ideia de “crítica”) e política pública (o objecto da “crise”) é paralela da diferença entre Homem livre (interior) e súbdito da Lei do Soberano (exterior). É neste dualismo que encontra a sua justificação a ideia comum que faz do século XVIII o século da “moralidade”36 , o que precisamente também motivou a Hegel o diagnóstico da modernidade como época da “cisão” (Entzweiung). Cada progresso de “l’Homme Moral” será um progresso no “Ilumi­ nismo” do espaço público, controlado ainda pelo monarca absoluto, num triângulo de relações constituído pelo ideal da “crítica”, pelo conceito da 42 Sobre este tema na sua articulação com a problemática hegeliana cf. R. GRA­ WERT, “Verfassungsfrage und Gesetzgebung in Preuben. Ein Vergleich der vormärzli­ chen Staatspraxis mit Hegels rechtsphilosophischem Konzept” in H. C. LUCAS / O.

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Humanidade e pela aspiração à completa ilustração. A metáfora da luz coloca em articulação todos estes aspectos37 . A franco-maçonaria foi a única sociedade secreta tolerada pelo Estado Absolutista e, por esta razão, foi ela a única a dispor, nessas circunstâncias políticas, da capacidade de fazer valer as suas finalidades como contrapoder do próprio Estado, mas sempre à luz da linguagem da moralidade. No ano de 1778 considerava Lessing que a franco-maçonaria se devia entender como qualquer coisa de co-natural à sociedade civil emergente, como parte da dialéctica entre Aufklärung e segredo, pois toda a luz nasceria primeiramente de um “foro” interior 38. Sem dúvida que a fase maçónica da autoreflexão moderna da socie­ dade civil manifesta ainda a necessidade de dar continuidade à ideia de um carácter não-público da moral ou, paradoxalmente, ao carácter não-ma­ni­ festo, secreto, da “sociedade”. O conceito de “segredo” e de um segredo da moral (e da moral como segredo) serve a R. Koselleck para caracterizar uma “privatização do social” paralela à “privatização da moral” 39. É com base nestes pressupostos que Crítica e Crise nos revela a sua tese mais geral: o mundo moderno, enquanto mundo burguês, nasceu de uma esfera interior “secreta” identificada com a consciência moral priva­tizada para se alargar para a dimensão das sociedades secretas e, partindo daqui, se lançar na exigência moral de uma sociedade iguali­ tária, originando, assim, a propriamente chamada “sociedade civil” e o “espaço público”. Nos princípios da fraternidade, igualdade e liberdade das “lojas” residia a promessa de uma vida melhor e, por conseguinte, nelas se contém a sociedade civil na forma da utopia político-moral, que é uma das suas dimensões. Na realidade, termos como Bürgertum aplicam-se com propriedade, na Alemanha, primeiramente a determinados tipos de associações geradas no seio dos grandes actores do Iluminismo alemão (a alta função pública e os burocratas de estado) que aparecem desde a década de 1720 pelo século fora. Os pontos urbanos de irradiação destas sociedades foram Ham­burgo e Leipzig e eram, sobretudo, sociedades de leitura e de dis­ PÖG­GELER (Hrsg.), Hegels Rechtsphilosophie im Zusammenhang der europäischen Ver­fassungsgeschichte, Stuttgart – Bad Cannstatt, 1986, pp. 257-310. 43 I. HULL, o. c., p. 214-215. 44 R. KOSELLECK, o. c., p. 90-91. 45 IDEM, Ibid., p. 97.

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cussão de publicações recentes. A partir de meados do século, entre 1750 e 1780 puderam surgir e multiplicar-se as sociedades maçónicas 40. Numa última etapa de consolidação final, servem estas sociedades um público já mais extenso, que não se limita ao número dos seus associados. De acordo com o estudo de I. Hull para o caso prussiano, as socieda­ des semi-secretas e secretas serviram como espaço associativo de conso­ lidação da imagem de classe da burocracia e para enfraquecer a ideia do funcionário servidor do Rei, a favor da imagem do funcionário servidor do Estado e da Lei. É bom exemplo disto o caso da “sociedade das quartasfeiras” 41. Com esta consolidação se gerou igualmente uma maior proximi­ dade entre a ideia de Staatsbürger e o burocrata, mesmo que as condições de admissão a cargos políticos dos funcionários estivesse ainda muito aquém do desejado tanto na Prússia como em outros locais. No entanto, se partirmos, como faz também I. Hull, no caso prussiano, das teses da “defensive Modernisierung” somos levados a acreditar que em­bora a par­ ticipação política parlamentar oficial seja inexistente, a parti­cipação real dos burocratas na “legislação de gabinete” é forte e corres­ponde ao único ímpeto reformista contemporâneo 42. A “societas civilis” é, nesta medida, uma emanação burocrática da sociedade política e identifica-se totalmente com esta última. “Sociedade civil” significa “socie­dade política”. De qualquer modo, é no ideal da burocracia do estado que muitos autores encontram o próprio ideal do Staatsbürger, antes de tudo pelo facto de só nesta camada social se oferecer a adequação entre grupo da sociedade civil e corpo político 43. Assim, quer na prática quer em teoria, o autêntico “cidadão do Estado” é o burocrata. Voltando à descrição de R. Koselleck. A emergência da forma mo­ derna da sociedade civil coincide com o trânsito da semântica da “críti­ ca” para a semântica da “crise”. Esta última aparece à luz do dia quando a opo­sição de fundo entre sociedade e estado, baseada no sollen, pressiona IDEM, Ibid., p. 135. G. W. F. HEGEL, Phänomenologie des Geistes, in G. W. Bd. 9, Hamburg, 1980, VI C. b. pp. 332-340. 48 Cf. IDEM, Grundlinien der Philosophie des Rechts, Hamburg, 1967, §§ 135 a 140, pp. 120-139. 49 IDEM, Phänomenologie des Geistes, o. c., pp. 324-332, 325. 50 IDEM, Ibid., p. 328. 51 IDEM, Ibid., idem. 52 IDEM, Ibid., p. 329. 53 IDEM, Ibid., p. 331.  46 47

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os aconteci­men­tos políticos e sociais no sentido do desaparecimento do Estado Absolutista. No processo de transformação da “crítica” em “crise” a autocom­ preensão da razão e da verdade acabam por se afirmar como os princípios estruturadores do “espaço público” e, por outro lado, o Estado não fica imune a esta influência, ao conceber-se cada vez mais à imagem da so­ ciedade de livre discussão dos “críticos” 44. Na fórmula “a crítica é a morte do Rei” condensava R. Koselleck o significado da invasão do espaço político estadual pelos princípios da République des Lettres e do seu modelo de submissão da realidade política a uma apreciação moral: o crítico era o “senhor dos senhores”  45. O efeito histórico será o da criação de uma era de dualismos, de que o mais importante foi o dualismo entre moral e política, que determinou a oposição entre sociedade e estado, entre povo e soberano. Só com J. J. Rousseau se dá, de facto, a transformação que conduz à redução do dualismo entre sociedade e estado, a favor do predomínio da primeira sobre o segundo: Die République des Lettres, in der jeder über jeden Souverän ist, okkupiert den Staat 46. Mas, no caso alemão, em vez de se caminhar pela via prática da Rev­ olução, no sentido da “ocupação” do Estado pela Sociedade, a Filo­sofia da História irá contribuir para “idealizar” a oposição entre os dois termos, reduzindo-a, pois, a um sollen, a um puro dever-ser. Antes de a Aufklärung se cumprir como pensamento utópico, ela aparece na culminação dos dualismos e separações da “crítica” como hipocrisia. A forma hipócrita da crise é a sua forma terminal. Segundo esta, as separações e dualismos que haviam sido fundamentais para posi­ cionar as armas da “crítica” contra o estado em nome da sociedade são as mesmas armas que levarão à dissolução dos dualismos e separações. Porém, presa desses mesmos dualismos, a Aufklärung não se libertará do seu próprio paradoxo: significar a unidade na separação. Analisemos, agora, esta dimensão da “hipocrisia” a partir da obra hegeliana, com o intuito de clarificar esta noção. Tal como foi realizado por R. Koselleck o diagnóstico da época mod­ 54 É esta dificuldade inerente à consciência da “visão moral do mundo” que está na base dos desenvolvimentos que a obra de Hegel dedica à “Verstellung”. IDEM, Ibid., p. 333. 55 IDEM, Ibid., p. 332. 56 IDEM, Ibid., p. 335.

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erna na transição do estado Absolutista para a “sociedade burguesa” coin­ cide em vários elementos com as páginas da Fenomenologia do Espírito sobre a Aufklärung e a sua modificação dialéctica na “Visão moral do Mundo” e na Verstellung (refiro-me especialmente às divisões VI. B. II – C. a. b. desta obra) 47. Se é correcto dizer, como fez R. Koselleck, que o século XVIII é o “século da moral”, esta identificação encontrava-se, também, na inter­ pretação hegeliana da moral de Kant e das suas consequências na qualifi­ cação da sua própria época, como época da cisão e dos dualismos 48. A novidade de Hegel consistiu em ter concebido uma forma de evitar os dualismos da semântica epocal da “crítica” sem enveredar pelo cami­ nho rousseauista da “ocupação” do estado. A crítica de Hegel à autocompreensão do seu mundo na forma do pen­ samento moral da Aufklärung constitui uma peça decisiva na apreciação crítica da “sociedade civil” como sede de puras exigências morais. Nas divisões da Fenomenologia do Espírito já referidas a caracte­ rística mais importante da “visão moral do mundo” reside na separação em si mesma da consciência moral entre aquilo que nela constitui a repre­ sentação do universo pulsional do sujeito moral e dos seus objectos, e que leva a subjectividade moral à representação da felicidade (Glückse­ligkeit), e a representação do seu dever puro 49. Para esta reconstrução teve Hegel em conta a concepção kantiana da moral. A harmonia entre o dever e a felicidade é qualquer coisa que aparece a esta “visão moral” como algo a fazer, como tarefa (Aufgabe) sempre “aberta” 50. Perante a representação da sua própria unidade como “tarefa”, a con­ sciência desta “visão moral” não coincide com o presente do seu “mundo ético”, mas com aquilo que ela postula. É por isso que uma tal “visão moral” não vive do seu presente mas daquilo que ela põe como seus “postulados” 51. Como consciência de postulados, a “visão moral” postula duas uni­ IDEM, Ibid., p. 340. (...) In den moralischen Handeln war so eben die gegenwärtige Harmonie der Moralität und der Sinnlichkeit aufgestellt, dib aber ist nun verstellt; sie ist jenseits des Bewubtseins in einer neblichten Ferne (...) Vielmehr ist ihm also nur dieser Zwischenzustand der Nichtvollendung das gültige (...) Allein der Zwischenzustand der unvollendeten Moralität, der sich als das wesentliche ergeben hat, zeigt offenbar, dab diese Wahrnehmung und 57

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dades: a da harmonia entre a moralidade e a natureza; a da harmonia entre­ a moralidade e a vontade sensível. Mas estes postulados e a harmonia que lhes corresponde devem en­ quadrar-se no modo de conceber a unidade própria da “visão moral”, ou seja, a harmonia postulada é, ela própria, não um ser real, mas uma tarefa, um “afazer”, não uma unidade em acto, mas uma unidade pensada 52. A fórmula dialéctica da “visão moral do mundo” revela como a con­ sciência moral só é “moral” quando a sua realidade se distingue do seu ser pensado e vem repousar inteiramente neste último. A realidade da “visão moral do mundo” é, portanto, a de um ser pensado na forma do dever prático, a que se opõe a realidade da sua volição sensível, do seu querer empírico efectivo 53. Na divisão VI. C. b. sobre Die Verstellung continuava Hegel o seu exame das propriedades da “visão moral”, com o intuito de mostrar como esta consciência moral estava instalada numa dissociação entre a sua própria representação do dever e a sua acção no mundo. A “visão moral do mundo” e a sua consciência partem de postulados morais e da dis­posição dos “conteúdos” destes postulados num “além”. Mas, por outro lado, a mesma consciência moral tem de se conceber como consciência que age neste mundo. A contradição entre a consciência moral voltada para os postulados e a consciência moral na sua relação com a acção efectiva está no facto de ela ter forçosamente de conceber a sua acção como força pre­ sentificadora, de um modo completamente diferente de uma permanente tensão com o “além” dos seus postulados 54. A separação entre postulados e acção faz com que um seja, sem re­ pouso, o outro do outro, faz com que um se suprima a si mesmo no outro. Embora um tenha a sua condição de possibilidade no outro, o modo do seu condicionamento recíproco é uma contradição 55. A agudização deste condicionamento recíproco contraditório surge quando a impossibilidade de conciliação é atribuída ao carácter demasiado elevado do Soberano Bem. É esta situação que Hegel caracteriza como a seynsollende Erfahrung nur eine Verstellung der Sache ist. (IDEM, Ibid., pp. 336-337). 59 IDEM, Ibid., p. 337. 60 R. KOSELLECK, o. c., pp. 155-157. 61 G. W. F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, o. c., § 140, pp. 125139. 62 Para a compreensão do cruzamento destes efeitos apoio-me em J. GARBER,

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Verstellung der Sache (o deslocamento da questão, da “coisa”) 56. A aná­ lise da Verstellung vai levar o filósofo nas últimas linhas desta divisão à condensação da Verstellung na hipocrisia, na Heuchelei 57. Como se opera esta passagem do “deslocamento” moral na hipocrisia, que esteve em causa, igualmente, na descrição de R. Koselleck, que nos serviu de ponto de partida? A meio da citada divisão da Fenomenologia do Espírito sobre Die Verstellung caracterizava o autor o que tornava possível o deslocamento no “estado intermédio” (Zwischenzustand) da consciência da visão moral do mundo entre o que é a realidade da sua acção e a sua representação da infinitude do dever moral diante de si 58. Este “estado intermédio” possibilita a oscilação da consciência moral entre os seus dois extremos (acção empírica e dever incondicionado) e revela a moralidade como qualquer coisa de irremediavelmente incum­ prido “entre” eles, o que justifica a referência a um Zwischenzustand der Nichtvollendung. No entanto, e segundo o que nos diz essa mesma consciência da “visão moral do mundo”, na sua convicção mais profunda, uma mora­ lidade incumprida é o equivalente à imoralidade 59. Assim, esta possibilidade permanente de a consciência moral, no seu estado de incumprimento, ter por conteúdo real a própria imoralidade, é o cerne do próprio “deslocamento”. A “visão moral do mundo” não pode dissociar-se desta não-coincidência dos seus dois momentos, pois está na sua essência não os poder manter unidos num determinado “presente vivo” e não poder nunca, por conseguinte, fazer aderir a felicidade e o dever, a matéria e a forma, a volição empiricamente condicionada e a “Spätaufklärerischer Konstitutionalismus und ökonomischer Frühliberalismus. Das Staats – und Industriebürgerkonzept der postabsolutistischen Staats –, Kameral – und Polizeiwis­ senschaft (Chr. D. Voss)” in IDEM, Spätabsolutismus und bürgerliche Gesellschaft, Frank­ furt / M., 1992, pp. 77-118. 63 Cf. IDEM, “Politisch- soziale Partizipationstheorien im Übergang vom Ancien Régime zur bürgerlichen Gesellschaft (1750-1800) in IDEM, o. c., p. 127. 64 IDEM, idid, in loc. cit., pp. 127-128. 65 Numa das formulações de Kant pode ler-se: Das Heil des Staats ist ganz anderes als des Volks. Jenes geht auf das Ganze in Ansehung ihrer subordination unter Gesetze und der Verwaltung der Gerechtigkeit, dieses auf die privatglückseligkeit eines jeden (cit. in. Z. BATSCHA (Hrsg.), Materialien zu Kants Rechtsphilosophie, Frankfurt / M., 1976, p. 40). 66 Neste mesmo sentido já ia a tese fundamental da dissertação de J. HABERMAS,

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representação do puro dever. O que significa que, consoante a perspec­ tiva em que se situar, o que ela é num não pode ser no outro ponto de vista. Para ela ser inteiramente moral, em si mesma, as suas acções serão sempre “imorais”. Finalmente, refugiada dentro de si mesma, as suas acções serão sempre a sua essência na forma do incumprimento. Sendo ela e não o sendo ao mesmo tempo, a consciência moral da “visão moral do mundo” gera a hipocrisia. Do mesmo modo, a crítica moral do Soberano em nome da “socie­ dade” não é ainda a crítica do estado enquanto tal, mas a crítica da sua aparência, a crítica do tirano. E como a separação entre a fonte “social” da crítica e o seu objecto “político” é feita em nome da Humanidade do Homem, quer dizer, do “Homem moral”, o resultado da exigência política da “sociedade” não se faz sentir directamente na realidade, ou então toda a sua concretização fica aquém da sua essência, mas permanece como “resto” e torna-se, por isso, em exigência utópica 60. A separação entre sociedade e estado na perspectiva dos “aufklärer” consiste, quanto ao essencial, no próprio “estado intermédio de incom­ pletude” da moralidade. Uma tal separação é a condição da “crítica” perma­nente e do seu constante deslize na direcção da hipocrisia. Hegel regressa ao tópico da hipocrisia (Heuchelei) no importante § 140 dos Fundamentos da Filosofia do Direito 61. Não é decisivo para o nosso objectivo aqui entrar em todos os porm­ enores relativos à construção neste § das diferentes “figuras” da hipocrisia. O que importa é que na finalidade deste § está a rejeição do ponto de vista da “consciência moral” para as análises e descrições da terceira parte dos Fundamentos da Filosofia do Direito relativa à eticidade. Ou seja, o ponto de vista da “visão moral do mundo” é inadequado para investigar a eticidade, em que se situa o âmbito daquilo que Hegel pretende des­crever, de novo, sob o título de “sociedade civil”. 4.  A complexidade da “Sociedade Civil” e a estratégia descritiva e normativa no sentido de a unificar. Há uma unidade da “Sociedade Strukturwandel der Öffentlichkeit. Untersuchungen zu einer Kategorie der bürgerlichen Gesellschaft, Frankfurt / M., Neuauflage 1990, pp. 142 e ss. 67 A obra de H. Medick mostra como as ideias de uma história civil da humanidade

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Civil”? No século XVIII assiste-se a um duplo uso do conceito de “moral”. Um dos modelos encontra-se na ideia de “visão moral de mundo”, de que fizemos a narrativa a partir de Crítica e Crise e da Fenomenologia do Espírito. Mas existe ainda um outro modelo, que é anterior e que se confundirá, ao longo do século, com a enorme influência da obra de C. Wolff. Trata-se de um modelo eudaimonista e imanente da moral, cujos princípios radicam, por um lado, na ideia da tendência dos indivíduos e organismos colectivos para a realização da perfeição própria num prin­ cípio de unidade e, por outro lado, na ideia da adesão desta tendência para a perfeição com a harmonia pré-estabelecida do todo social, da grande “casa” humana, por meio de virtudes individuais e cívicas e de um con­ ceito associativo e corporativo do Bem. A moral eudaimonista tanto ser­ viu de fundamento do Estado Absolutista de Bem-Estar como esteve na génese das tendências liberalizantes e utilitaristas, como a de J. Bentham ou dos teóricos da emancipação americana. Estes dois modelos da moral têm ambos a sua influência na construção da imagem da “sociedade civil” moderna e podem considerar-se como as suas duas bases, respectivamente crítico-utópica e imanente. Ora, a posição hegeliana na análise da “sociedade civil” não vai nem totalmente por um caminho nem totalmente pelo outro, pelo que a sua visão da separação entre sociedade e estado não possui nada que a possa relacionar com uma perspectiva moral, em geral, no sentido destas duas morais. Para compreender a sua atitude vai ser necessário mais um desvio. A conjugação entre a análise económica da sociedade e a divulgação das diferentes versões dos direitos do homem acabaram por ultrapassar a posição abstracta da “visão moral do mundo” na crítica do estado a partir da “sociedade” dos aufklärer e a tornar também falível a versão integrativa da sociedade e do estado da escola de C. Wolff, solidária do Estado Absolutista. Quatro fenómenos filosófica e historicamente decisivos estão em jogo na viragem para as últimas décadas do século XVIII: 1. a passagem para o direito das reivindicações morais; 2. a autocompreensão económica da sociedade; 3. a contratualização da esfera privada; 4. a burocratização e legalização da intervenção do estado e a diminuição da importância da

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definição do estado pela referência ao “bem comum”  62. Situando a noção moderna de “sociedade civil” nos pensadores alemães do século XVIII, na sequência de vários fenómenos cruzados de desmembramento e crise do modelo político e filosófico do “Estado de Bem-Estar” do Absolutismo, cujo figurino se pode identificar com as teses eudaimonistas contidas na obra de C. Wolff e parcialmente continuadas pelos autores da cameralística, pode assinalar-se uma viragem por volta de 1770 63. Esta última consiste no início da separação entre aqueles que formulam o conceito de estado a partir da ideia de um macro-sujeito pro­ motor do Bem Estar geral e aqueles que definem o estado como o cerne da lei geral e abstracta, pela qual o próprio Estado se tem de reger 64. As consequências irão no sentido de introduzir várias correcções no conceito aristotélico clássico de “casa” como modelo de “sociedade” (ou gemein Wesen), no qual C. Wolff incluía o próprio estado como uma sociedade de cúpula, na qual todas as outras se resolviam e para que tendiam na realização das suas respectivas “perfeições”. A obra de von Justi (que emerge por volta de 1760) pode ser consid­ erada como uma síntese entre as orientações eudaimonistas provenientes da escola de C. Wolff e a ideia de uma construção do Estado com base na ideia da lei geral e abstracta. Esta última ideia vai desaguar na concep­ ção kantiana do “Estado de Direito”, que o mesmo Kant considerou um conceito estranho à noção de uma promoção do Bem Estar de todos, na sua conhecida transformação do dito romano “salus rei­publicae suprema lex est” 65. O que pode ser concluído do exame dos autores deste período é a ideia de que nos seus textos se cruzam uma teoria geral do Estado, uma teoria da administração e uma concepção dos direitos do homem, que favorece o surgimento do clima propício para uma concepção da Liber­ dade civil. Nas condições históricas da “sociedade civil” moderna está e de sociedade civil nos quadros dos autores do iluminismo escocês havia sido preparada pela recepção dos autores do Direito Natural moderno, em particular da obra de S. von Pufendorf (H. MEDICK, Naturzustand und Naturgeschichte der bürgerliche Gesellschaft, Göttingen, 19812, pp. 296-305, especialmente p. 298); J. GARBER, “Vom “ius conatus” zum “Menschenrecht”. Deutsche Menschenrechtstheorien der Spätaufklärung” in IDEM, o. c., pp. 158-191, especialmente p. 158-159. Quanto à obra de I. Hull quero referir-me, em particular, às suas análises de concepções da cameralística alemã, que embora sejam hesitantes quanto a um conceito claro de sociedade civil distinto de outros sistemas, já concebem a existência civil dos homens como domínio de “expressão dos desejos dos

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forçosamente presente a ideia de uma separação entre estado e sociedade e esta pressu­põe um conjunto de critérios diferenciadores, que a evolução social incorpora nas instituições e na ideia de um espaço de “liberdade” exterior à influência do estado 66. As diferentes versões dos “direitos do homem” vão aprofundar a tendência para a separação e para vincar melhor esta independência de uma esfera livre da tutela estadual. Assim, a concepção de “direitos do homem” como direitos permanentes, e não somente como direitos usu­ fruidos num estado de natureza inteiramente “virtual”, assegura uma reserva jurídica a cada um que, ainda para usar a linguagem do Direito Natural moderno, se pode interpretar como libertas naturalis in status civilis. Nas exposições de H. Medick, J. Garber e I. Hull, que aqui acolho, as doutrinas do Direito Natural moderno devem considerar-se como as grandes responsáveis pela real separação entre estado e sociedade civ­ il, na medida em que fixaram o essencial de um conceito de liberdade e transportaram-no para o âmbito do que juridicamente o estado é ob­ rigado a respeitar 67. Para que esta obrigação jurídica do estado tivesse correspondência em alguma realidade se forjou a distinção entre o pro­ priamente “estadual” e o domínio do exercício livre das faculdades dos indivíduos. Mas não só. O mecanismo dualista da crítica moral do estado pela “sociedade” é transposto para o Direito e, graças a ele, adquire uma efectividade nova que tem por consequência a cristalização da separação real entre direito público e direito privado, entre estado e sociedade. Pode verificar-se uma forte influência dos teóricos alemães dos di­ indivíduos”, dotado de uma autonomia relativa frente ao estado. Nas categorias de “de­ sejo”, “materialismo”, “externalidade”, “diferenciação” e “dinamismo” mostrava I. Hull como os cameralistas preparavam a diferença entre estado e sociedade sem contudo a enunciarem com clareza. Cf. I. HULL, o. c., pp. 155-197. 68 J. GARBER, “Politisch- soziale Partizipationstheorien im Übergang vom Ancien Régime zur bürgerlichen Gesellschaft (1750-1800)” art. cit. in loc. cit., pp. 135 e ss. 69 IDEM, “Vom “ius conatus” zum “Menschenrecht”. Deutsche Menschenrechts­ theorien der Spätaufklärung” art. cit. in loc. cit., p. 166. 70 N. LUHMANN, Das Recht der Gesellschaft, Frankfurt / M., 1993, p. 266 e 459. 71 O. BRUNNER, Land und Herrschaft. Grundfragen der territorialen Verfassungs­ geschichte Südostdeutschlands im Mittelalter, München-Wien, 1943, pp. 124-134; 184-187.

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reitos do homem no sentido da separação entre estado e sociedade civil e, por conseguinte, no sentido da geração de uma bürgerliche Freiheit resistente a toda a influência quer do estado quer de privilégios corpo­ rativos, quer do monarca quer ainda de grupos profissionais ou territoriais. 1770, ano do nascimento de Hegel, corresponde à abertura da década do século XVIII que melhor irá enfatizar o ideal do chamado “espaço público” enquanto espaço público de uma liberdade civil contra o enraiza­ mento da noção de “coisa pública” na ideologia dos privilégios corpo­ rativos. Ora, esta tendência pressupõe uma ultrapassagem das reformas do Estado de inspiração absolutista. É de facto em redor da ultrapassagem do estado absolutista que se dá o essencial das divergências da literatura filosófica sobre a liberdade civil e os direitos dos cidadãos desde 1770. O texto de Kant da Metafísica dos Costumes e os seus diversos tex­ tos de significado sistemático menor sobre a problemática política e de Filosofia da História foram escritos precisamente a partir desta época e reflectiram as suas exigências. Existem duas teses basilares de Kant que nos fazem colocá-lo numa relação de dependência em relação ao velho espírito dos privilégios. A primeira é a diferença entre cidadão passivo e cidadão activo pelo critério da “autosuficiência”. A segunda é a tese jurídico-política e de Filosofia da História relativa a uma “evolutio juris” das constituições políticas empíricas no sentido da sua aproximação ao ideal do estado republicano 68. A tese que mais aproxima Kant das inovações políticas do seu tempo e particularmente do liberalismo incipiente reside na ideia de que o estado não deve, enquanto tal, visar o bem estar dos seus cidadãos, mas regu­ lar-se por normas jurídicas, ou seja, deve ser “Estado de Direito”. 72 E. BALSEMÃO PIRES, “Hegel’s concept of Entzweiung and Luhmann’s account of Ausdifferenzierung” (em curso de publicação). 73 G. W. F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, o. c., p. 164. 74 Die konkrete Person, welche sich als besondere Zweck ist, als ein Ganzes von Bedürfnissen und eine Vermischung von Naturnotwendigkeit und Willkür, ist das eine Prinzip der bürgerlichen Gesellschaft (IDEM, Ibid., p. 165). 75 Sobre todos estes “momentos” da sociedade civil leia-se E. BALSEMÃO PIRES, Povo, Eticidade e Razão. Contributos para o estudo da Filosofia Política de Hegel nos Fundamentos da Filosofia do Direito, na perspectiva da sua génese e recepção e à luz da reavaliação crítica do Direito Natural moderno, Coimbra, 1999, pp. 464-516.

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Independentemente das simpatias políticas pessoais de Kant, estas três teses não são harmonizáveis de um modo inequívoco com as exigências de uma “sociedade civil” e de “liberdades civis”. Embora em si não exista uma qualquer oposição frontal entre as doutrinas da escola de C. Wolff relativamente aos deveres do estado para com os indivíduos e os defensores da limitação do poder de estado me­ diante a observância dos direitos do homem, pois ambas as correntes se podem centrar na noção de utilidade, como aconteceu com a obra de J. Bentham, na Alemanha, muito rapidamente se modificou esta proble­ mática na suspeita de uma oposição entre indivíduo e sociedade. A even­ tual colisão dos direitos do indivíduo com os direitos da sociedade é qualquer coisa que diz directamente respeito às condições de possibilidade do livre desenvolvimento das faculdades dos indivíduos. Esta última questão deve ser relacionada com o tema da Bildung tal como nos surge nas Grundlinien de Hegel, pois o problema que aqui é determinante é o que se refere à inserção das faculdades individuais numa sociedade que conhece cada vez mais uma divisão especializada do trabalho, sem ter ainda quebrado por completo os laços corporativos da antiga sociedade de ordens. A ideia de “liberdade civil“ estabelece, antes de tudo, uma esfera de não-intervenção do estado que se definiu, do ponto de vista jurídico-eco­ nómico, como domínio dos contratos privados, para progressivamente se afirmar como uma esfera de direitos mais específicos, entre os quais se contam direitos associativos. As consequências da introdução destas ideias na sociedade por ordens, com apoio nas tendências económicas dos fisiocratas, são profundas. Po­ dem diferenciar-se, nestes efeitos históricos gerais, dois aspectos mais salientes: 1. a destruição progressiva da “societas civilis” do mundo do “ancien régime” dentro de uma nova realidade, que pode designar-se, grosso modo, por Vertragsgesellschaft; 2. a reivindicação de uma eman­ cipação do sector económico e do sector relativo à “opinião pública” dentro da nova condição privatística da “societas civilis”  69. Na segunda metade do século XVIII, identificam-se, com clareza, a confluência de duas importantes novidades de natureza jusfilosófica e 76 Foi a apreciação dúbia que Hegel fez do Morgadio na esfera da representação política do Estado, no § 307 das Grundlinien, que esteve na base das observações críti­ cas do seu amigo N. von Thaden e, depois, da crítica de K. Marx. Em ambos os casos

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económica: a discussão dos conceitos de liberdade natural e dos direitos do homem e a descoberta, pelos economistas, de mecanismos “naturaisracionais” de autoregulação da sociedade e da economia. Uma parte muito significativa da emancipação da nova sociedade civil diz respeito ao cru­ zamento destas duas tendências. Para usar a terminologia de N. Luhmann, trata-se aqui da “acoplagem” entre Economia e Direito, cujo principal traço de união reside no conceito de “contrato” e “liberdade contratual” 70. As teses que surgem na Economia da segunda metade do século XVIII, e de que Hegel foi um estudioso desde a estada em Berna, ao acentuarem a existência de fenómenos de autoregulação e autoharmo­ nização, tornam-se fundamentais no fortalecimento da ideia geral de que a esfera contratual-privada da nova “sociedade civil” pode funcionar racio­ nalmente e sem violência, sem a intervenção metareguladora do Estado. Com esta sociovisão se lançavam as bases da progressiva emanci­ pação da sociedade civil em relação à sua tutela estadual No entanto, a separação entre estado e sociedade, que ocorre contra o uniforme conceito de “casa”, traz consigo uma complexificação do próprio conceito de sociedade, que anteriormente não fora possível aperceber em todos os seus contornos. A sociedade civil manifesta doravante elementos de quatro fontes ao designar, simultaneamente: 1.  a dimensão deliberativa de um corpo moral e político; 2.  uma esfera de expressão de interesses pessoais e colectivos; 3.  um domínio de integração associativa suportado por princípios morais e políticos; 4.  o âmbito de realização do bem-estar material e espiritual dos seus membros, na suposição de um mercado de livre troca. Estes níveis agrupam-se em torno de três eixos semânticos mais im­ portantes, a saber; o eixo moral, o eixo jurídico-político e o eixo económi­ co.

censura-se Hegel pelo facto de haver misturado categorias jurídico-económicas e sociais do passado de uma sociedade organizada por “ordens” e em que a nobreza detinha privilé­ gios hereditários com a esfera “racional” do estado. Cf. Ein Brief von Thadens an Hegel 8/8/1821 in K. H. ILTING (Hrsg.), G. W. F. HEGEL, Vorlesungen über Rechtsphilosophie,

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5.  A Sociedade Civil como “mundo aparente do ético” e o Estado como Verdade. A “Filosofia do Direito” entre categorias lógicas e conteúdos de uma Filosofia Real Estes quatro níveis estão presentes nos §§ dos Fundamentos da Filosofia do Direito que Hegel dedicou às análises da “sociedade civil” (§§ 182 - 256). Dando aqui total crédito à tese de O. Brunner sobre o facto de somente no século XIX estar madura a distinção entre sociedade e estado 71, foi de facto Hegel o primeiro responsável pelo enunciado claro da separação, num sentido que pode considerar-se “moderno”, entre so­ ciedade civil e estado. O característico da noção de sociedade civil de Hegel reside no seu ponto de partida na complexidade social e no entrelaçamento dos três eixos semânticos que atravessam a realidade deste conceito. Nas análises destes §§ se pode encontrar uma dupla estratégia. Por um lado, uma abordagem do conteúdo da sociedade civil. Por outro lado, uma perspectiva lógico-metafísica dos conteúdos da sociedade civil e do seu significado na arquitectónica do “mundo ético”. Esta segunda abordagem pode ser sintetizada em uma única categoria, presente ao longo de toda a evolução de Hegel: a de Entzweiung. Em outro estudo explorei esta categoria 72. Ao lado deste termo e como efeito da sua irradiação semântica vemos caracterizada a “sociedade civil” várias vezes numa linguagem negativa ou privativa, por meio de expressões como Äussere- Not- e Verstandenstaat. A articulação que aqui temos pre­ sente é das mais problemáticas da obra de Hegel, pois ela refere-se ao significado do uso de determinações lógico-metafísicas no âmbito das Filosofias Reais. Esquematicamente, retenho aqui, de estudos anteriores, as seguintes notas sobre a Entzweiung. A Entzweiung é tomada como “aparência exterior” (äussere Erschei­ nung) ou seja, como diferença entre essência e aparência. A “sociedade civil” definida como Erscheinungswelt des Sitllichen (§ 181) 73 pertence Bd. 1, Stuttgart, Bad Cannstatt, 1973, pp. 396-397. 77 K. MARX, “Zur Kritik der hegelschen Rechtsphilosophie” in MEW, Bd. 1, Berlin, 1961, pp. 378-391, pp. 298-320. 78 Na sua narrativa sobre o surgimento da “diferenciação funcional” das sociedades modernas integra N. Luhmann algumas teorias filosóficas sobre a sociedade e a sua justifi­

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ao conjunto dos fenómenos que possuem esta propriedade ontológica. A análise do mecanismo económico gerador das crises de produção e consumo conduz Hegel nos §§ 243 a 245 à identificação do conteú­ do real da “sociedade civil” como Entzweiung, como total separação e desconhe­cimento entre as acções de produtores e as acções de con­ sumidores. A perspectiva sobre o tipo de homem promovido por esta “sociedade de mercado” suporta a tese mais funda de Hegel sobre a “sociedade civil”, que a define, assim como à “pessoa concreta”, no § 182, como eine Vermischung von Naturnotwendigkeit und Willkür 74. Este conceito-diagnóstico aponta para a realização nesta esfera do “mundo ético” de uma “eticidade relativa”, cujos elementos se situam entre o plano da animalidade do homem (satisfação das necessidades) e o plano de uma liberdade imperfeita (arbítrio). A abordagem dos conteúdos da “sociedade civil” leva Hegel sucessi­ vamente da descrição do sistema das necessidades humanas e das formas da sua satisfação, do trabalho e do mercado, às crises geradas pela regras de mercado do encontro de produtores e consumidores, à legislação e à administração pública e corporações 75. A disposição de algumas destas alíneas ainda mantém a ambição de uma passagem gradual de elementos da sociedade em elementos do estado e vice-versa, como se vê no entendimento do papel das corporações e da Polizei e como observaram, no seu tempo, N. von Thaden 76 e K. Marx 77. Por isso, embora a modernidade de Hegel seja patente na revelação da diferença entre estado e sociedade, ele continua preso da ambição da uni­ dade política da sociedade, que é uma ideia que, de acordo com a versão luhmanniana da teoria da sociedade, é típico da “Semântica da Velha Europa” e que não sabemos até que ponto está em recessão 78. Tanto na disposição dos conteúdos quanto, sobretudo, no uso da cat­ egoria ontológica de Entzweiung, a estratégia de Hegel revela, portanto, ambivalência.

cação moral e política. Da sua análise resultam interrogações, que os filósofos não podem ignorar, sobre a forma como a Filosofia reflectiu o mundo social em categorias que não podem desvincular-se de determinadas estruturas evolutivas desse mesmo mundo social, mas que não se podem considerar, contudo, como categorias adequadas às sociedades complexas em que vivemos. Pode falar-se, de certo modo, em um atraso da semântica da descrição filosófica em relação à semântica das sociedades complexas. Mas, o mais interes­ sante reside no facto de, partindo dos apontamentos recentemente editados sob o título Die Politik der Gesellschaft, N. Luhmann se encaminhar no sentido da prova de que também o sistema político, cujos elementos semânticos foram lançados no essencial no século

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Na arquitectónica da eticidade, a sociedade civil de Hegel ocupa um lugar de placa giratória entre uma esfera inteiramente despolitizada – a família –, a que o filósofo emprestou um código muito próprio – o amor – e a esfera política do Estado. Na sociedade civil vão cair todos aqueles elementos que tornam possível esta clara diferenciação da família face ao estado, e em que se pode encontrar um claro confronto com a tradição aristotélica, renovada por C. Wolff, da uniformização sob o mesmo termo de societas do espaço desde a família até ao estado. Mas, para, em primeiro lugar, desvincular a família da uniforme gemein Wesen política Hegel concebeu uma sociedade civil simultaneamente dotada de grande complexidade como da capacidade de estabelecer os canais desde o indivíduo até à comunidade, sem cair no tipo de exigências da criticada “visão moral do mundo” e também sem politizar essa mesma sociedade civil. Esta é a sua originalidade na sua época. XVIII, se encontrar também num relativo atraso em relação às exigências dos restantes sistemas sociais. A “Semântica da Velha Europa” não é só a semântica da Filosofia mas também, em parte, a própria semântica política. Sobre a “Semântica da Velha Europa” cf. N. LUHMANN, Die Gesellschaft der Gesellschaft, Bd. 2, Frankfurt / M., 1997, Kap. 5, IV-VIII, pp. 893-958. Sobre o sistema político e a questão do atraso relativo da sua semântica cf. IDEM, Die Politik der Gesellschaft, Frankfurt / M., 2000, 319. 79 Cf. G. W. F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, o. c., § 238, p. 198. 80 Im Rechte ist der Gegenstand die Person, im moralischen Standpunkte das Subjekt, in der Familie das Familienglied, in der bürgerlichen Gesellschaft überhaupt der Bürger (als Bourgeois) – hier auf dem Standpunkte der Bedürfnisse (...) ist es das Konkretum der Vorstellung, das man Mensch nennt; es ist also erst hier und auch eigentlich nur hier vom Menschen in diesem Sinne die Rede (IDEM, Grundlinien der Philosophie des Rechts, o. c., § 190, p. 171). 81 Todo o § 187 das Grundlinien ... mostrava já a necessidade do momento da “socie­ dade civil” no processo global da Bildung do Espírito Objectivo. Cf. IDEM, Ibid., § 187, pp. 167-169. A própria Entzweiung da “sociedade civil” é aqui tomada como momento indispensável na autoformação universal do Espírito. 82 A inserção dos indivíduos em classes da “sociedade civil” representa um primeiro momento da ligação entre a subjectividade da representação do “bem” e as dimensões objectivas a que esse bem está associado, na medida em que as classes exprimem a me­ diação entre a satisfação das necessidades mediante o trabalho, e a sua divisão social, e as condições objectivas da reprodução da sociedade. Cf. IDEM, Ibid., § 201, p. 175. 83 Cf. IDEM, Ibid., § 211, pp. 180-183, especialmente pp. 181-182; § 216, pp. 186-187. 84 Cf. IDEM, Ibid., § 217, p. 187. 85 Cf. IDEM, Ibid., § 218, pp. 188-189. 86 Assim concebia Hegel a indispensável mediação jurídica do conceito de bem, contra a sua estrita análise subjectiva ao nível do dever moral incondicionado: Indem Eigentum und Persönlichkeit in der bürgerliche Gesellschaft gesetzliche Anerkennung

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1.  A moral da sociedade civil A moral da sociedade civil terá de se conceber como uma moral eu­ daimonista do interesse, o que se relaciona com a própria definição da “sociedade civil” como eine Vermischung von Naturnotwendigkeit und Willkür. Agregando as teses wolffianas e da cameralística e as teses dos teorizadores escoceses (A. Ferguson e A. Smith, sobretudo), Hegel con­ cebe a finalidade da sociedade civil no “bem-estar” material e espiritual dos seus membros e na realização dos interesses particulares das classes, para que contribui não apenas o esforço individual mas a contribuição de todos e em que cada um se pode sempre rever como “filho” da sociedade civil 79. As exigências morais de bem-estar dos membros da sociedade civil devem corresponder ao entendimento do sujeito da sociedade civil que, ao contrário do Direito Abstracto, da Moralidade e da Família, é de um tipo universal: trata-se do Bürger no sentido do Bourgeois mas que, na perspectiva da satisfação das necessidades, coincide com o Homem em sentido universal (§ 190) 80. Na medida em que a satisfação das necessi­ dades do Homem abstracto tem de se realizar dentro de ocupações profis­ sionais determinadas, a moral deste Homem universal (sujeito da socie­ dade civil) transforma-se na moral corporativa ou, mais concretamente, ela torna-se honra (Ehre) corporativa, o que ainda se compreende no contexto da compreensão hegeliana da “formação” (Bildung) 81. Mas, pelo facto de a noção de “Bem” da sociedade civil ser, em si própria, uma noção atravessada pela particularidade do interesse naquilo que é um conceito universal (o do bem-estar) ela requer uma instância superior de correcção da diferença entre particularidade e universalidade 82. 2.  O direito da sociedade civil Hegel analisa o direito na forma da Lei e da Jusrisdição nos quadros und Gültigkeit haben, so ist das Verbrechen nicht mehr nur Verletzung eines subjektivUnendlichen, sondern der allgemeinen Sache, die eine in sich feste und starke Existenz hat (...) Das in einem Mitgliede der Gesellschaft die anderen alle verletzt sind, verändert die Natur des Verbrechens nicht nach seinem Begriffe, sondern nach der Seite der äuberen Existenz, die nun die Vorstellung und das Bewubtseins der bürgerlichen Gesellschaft, nicht nur das Dasein des unmittelbar Verletzten trifft (IDEM, Ibid., § 218, p. 188).  87 Cf. IDEM, Ibid., § 245, p. 201.  88 Der selbstsüchtige Zweck in seiner Verwirklichung, so durch die Allgemeinheit

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da sociedade civil e não na moldura do estado, pois nesta última só irá caber o direito público na modalidade da constituição política do estado. Colocando-se ao lado do movimento pró-codificação (§ 211) 83, os Fundamentos da Filosofia do Direito atribuem à formulação universal do direito a capacidade de dar uma forma universal à estrutura relativa da sociedade civil, que assim surge generalizada como uma sociedade de pessoas e de proprietários, que estabelecem contratos com outras pessoas e outros proprietários 84. Se a estrutura da sociedade civil é esta possibi­ lidade da relação entre pessoas na condição da referência à propriedade, então a estrutura do “código civil” pode ser como que deduzida a partir dela e, deste modo, a estrutura do direito na forma da lei mais não seria do que a universalidade pensada da sociedade civil. É com este sentido que Hegel irá considerar as ideias de personalidade e propriedade como as duas categorias centrais do Código (§ 218) 85. Em especial, é graças à elaboração jurídica da ideia de personalidade que pode ter lugar a noção de “bem comum” da sociedade, que não é já um alvo teleonómico da acção individual, mas a disposição da universalidade do preceito de quem ferir a pessoa/propriedade de alguém fere, ipso facto, a pessoa/proprie­ dade de todos, fere o “bem comum” 86. Assim, na vigência da lei geral e abs­tracta tem lugar a apropriação pelo direito da representação moral do bem. O discurso da moral transferia-se para o discurso do direito. 3. A economia da sociedade civil A Alemanha da época de Hegel está longe de oferecer o espectáculo de uma economia industrializada e é, portanto, da experiência inglesa que o filósofo recebe a informação relativa a este novo mundo 87. Pelo menos bdingt, begründet ein System allseitiger Abhängigkeit, dab die Subsistenz und das Wohl des Einzelnen und sein rechtliches Dasein in die Subsistenz, das Wohl und Recht aller verflochten, darauf gegrüindet und nur in diesem Zusammenhange wirklich und gesichert ist (IDEM, Ibid., § 183, p. 165).  89 É nos §§ dedicados dedicados à administração pública (Polizei) e à corporação que Hegel vai instalar o essencial da sua apreciação negativa dos efeitos do “trabalho abstracto” e da forma universal do mercado na formação da “desorganização da sociedade civil” (§ 255). Para isso vai contar o quarteto de elementos constituído pela: 1. pressão demográfica, 2. o crescimento da indústria e da classe dos trabalhadores dependentes, 3. o trabalho abstracto­ e 4. a contradição entre “excesso de riqueza”/geração da plebe ou “populaça” (Pöbel). Um dos efeitos visíveis da estrutura contraditória da “sociedade civil” reside na colisão de interesses entre produtores e consumidores. Cf. IDEM, Ibid., § 236, p. 197.

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de quatro pontos de vista se aproxima Hegel deste modelo económico: como mundo da indústria e do desfazer das lealdades tradicionais, como mundo do trabalho assalariado e do desmembramento do contrato de tra­ balho feudal, como mundo da universalização do mercado, como mundo das crises de produção e consumo. O conceito do mercado em Hegel rep­ resenta a forma objectiva da copossibilidade prática universal de acções comandadas pelas necessidades e pelo interesse individual. A noção de base que preside à concepção do “sistema das necessidades” é a da pura possibilidade da satisfação das necessidades próprias mediante o arbítrio de cada um, por um lado, e um sistema objectivo que assegura, anonimamente, a satisfação das necessidades de todos. A este último mecanismo objectivo, cego, anónimo e gerador de crises de consumo e produção se chama mercado. Ora, na visão hegeliana, tanto o conceito do bem próprio como a noção do justo estão embebidos nesta condição universal, que é o “meio” de encontro entre consumidores e produtores e que ou dinamiza o bem ou suscita a justiça, a partir da sua própria contin­gência. O modelo que subjaz ao bem e à justiça, e que condiciona as estruturas objectivas em que se incorpora tanto a moral como a justiça, é este condicionamento recíproco das vontades, este “sistema de depen­ dência universal” (§ 183) 88 de cada um em relação a todos os demais. Ao conceder uma tal importância à forma histórica do mercado, o filósofo não deixava de a caracterizar ora como geradora de inse­gurança, ora como “anarquia organizada”, “desorganização da sociedade civil”, etc 89. A liber­dade moderna do mercado é uma liberdade que pode originar o contrário do bem-estar de todos, o que Hegel constatava nas suas análises sobre a formação da Pöbel 90. Mas quem ler as diferentes formulações da crítica hegeliana ao conceito kantiano e fichteano de liberdade (desde 1802) verificará que o que aí está em jogo é esta mesma copossibilidade Cf. IDEM, Ibid., § 244, p. 201. Esta evidenciação crítica está presente na obra de Hegel de um modo claro pelo menos desde o ensaio sobre o Direito Natural. Cf. G. W. F. HEGEL, Über die wissens­ chaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts, seine Stelle in der praktischen Philosophie und sein Verhältnis zu den positiven Rechtswissenschaften in G. W. Bd. 4, Hamburg, 1968, pp. 446 e ss. 92 Cf. K. MARX, “Zur Kritik der hegelschen Rechtsphilosophie”, o. c., pp. 207 e ss. 93 Wenn die Abgeordneten als Repräsentanten betrachtet werden, so hat dies einen organisch vernünftigen Sinn nur dann, daβ sie nicht Repräsentanten als von Einzelnen, von einer Menge seien, sondern Repräsentanten einer der wesentlichen Sphären der Gesellschaft, Repräsentanten ihrer groβen Interessen... (G. W. F. HEGEL, Grundlinien der  90  91

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prática do arbítrio individual, que se reencontra na caracterização do mer­ cado e do seu jogo cego. Assim, ao revelar no homem livre ou “homem moral” o homem eco­ nómico, Hegel mostrava como o fundamento filosófico dos “direitos do homem” era afinal um fundamento económico e como o projecto da uni­ dade moral da sociedade, que dela fazia o sujeito da “crítica” política, mais não era que o princípio contrário da atomização do mercado 91. 4. A Política da Sociedade Civil Na obra de Hegel, a “administração pública” (Polizei) e a corpora­ ção constituem os dois pontos de junção entre sociedade civil e estado. A primeira na medida em que se destina a dar resposta e correcção públi­ cas às condições económicas resultantes de uma distribuição da riqueza com base no jogo do mercado. A segunda na medida em que, pela corpo­ ração, se ergue a sociedade civil até ao estado na forma da “representação de interesses”. Como tentativa de dar uma unidade à “eticidade relativa”, estruturada pelas regras do mercado, Hegel manteve nas suas Grundlinien um princí­ pio da representação política por classes da sociedade que, sem dúvida, parece um resquício da antiga sociedade estamental (por “ordens” sociais Philosophie des Rechts, o. c., § 311, p. 270). 94 Cf. E. BALSEMÃO PIRES, Povo, Eticidade e Razão. Contributos para o estudo da Filosofia Política de Hegel nos Fundamentos da Filosofia do Direito, na perspectiva da sua génese e recepção e à luz da reavaliação crítica do Direito Natural moderno, o. c., 2.º vol., pp. 838-879. 95 Cf. G. W. F. HEGEL, Beurteilung der Verhandlungen in der Versammlung der Landstände des Königreichs Württemberg im Jahr 1815 und 1816 in E. MOLDENHAUER / K. M. MICHEL (Hrsg.), Nürnberger und Heidelberger Schriften (1808-1817), Werke, Bd. 4, Frankfurt / M., 1990, p. 482. 96 Gegen die Sphären des Privatrechts und Privatwohls, der Familie und der bürgerlichen Gesellschaft ist der Staat einerseits eine äuberliche Notwendigkeit und ihre höhere Macht, deren Natur ihre Gesetze, sowie ihre Interessen untergeordnet und davon abhängig sind; aber andererseits ist er ihr imanenter Zweck... (IDEM, Grundlinien der Philosophie des Rechts, o. c., § 261, p. 215). 97 IDEM, Ibid., § 268, pp. 218-219. 98 Foi a ideia de um predomínio da justificação lógico-metafísica sobre a análise dos conteúdos concretos da “sociedade civil” na sua relação contraditória com a esfera política do estado que motivou a K. Marx a seguinte observação crítica a respeito das Grundlinien: (...) der politische Staat kann nicht sein ohne die natürliche Basis der Familie und die künstliche Basis der bürgerlichen Gesellschaft; sie sind für ihn eine conditio sine qua

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fixas) mas que, no fundo, procurava realizar uma ambicionada integração política da “sociedade civil” 92. Segundo a ideia de representação política do § 311 Hegel atribuía aos deputados de uma das câmaras não já a tarefa de representar uma realidade abstracta (como a “nação), mas sim a missão de representar as “esferas essenciais da sociedade” 93. A representação política permitiria, então, a metamorfose política do social. Sem entrar aqui em pormenores sobre a doutrina da representação política que segue Hegel 94, o essencial reside em dois aspectos relacionados. Por um lado, a crítica da chamada “representação nacional”, que Hegel considera “atomística”, por exemplo no escrito político de 1817 95. Por outro lado, encontramos a dupla articulação que, no § 261 dos Funda­ mentos da Filosofia do Direito, o filósofo expõe em torno da integração da “sociedade civil” e dos interesses particulares na esfera do estado. Esta dupla articulação entre “sociedade civil” e estado traduz o essencial da ideia hegeliana de uma integração política da sociedade. No citado § parte Hegel das relações entre sociedade e estado segundo uma “necessidade exterior” e um “fim imanente” 96. Entre sociedade e estado se gera, pois, a obrigação de uma continuidade (“fim imanente”) entre dois princípios desde logo tomados como heterogéneos (“necessidade exterior”). A estratégia de Hegel encontra-se, então, numa encruzilhada. Se, por um lado, parte da crítica aberta da “visão moral do mundo” por ser uma perspectiva “ideal” da unidade entre subjectividade moral, sociedade e estado, por outro lado, a sua análise dos interesses económicos e do func­ ionamento do mercado, como copossibilidade prática objectiva, condu-lo à conclusão de que nada na realidade da sociedade leva, directamente, à non; die Bedingung wird aber als das Bedingte, das Bestimmende wird als das Bestimmte, das Produzierende wird als Produkt seines Produkts gesetzt (K. MARX, “Zur Kritik der hegelschen Rechtsphilosophie”, o. c., p. 207). Mais adiante ainda acrescentava: Das Wesen der staatlichen Bestimmungen ist nicht, daβ sie staatlichen Bestimmungen, sondern dab sie in ihrer abstraktesten Gestalt als logisch-metaphysische Bestimmungen betrachtet werden können (K. MARX, “Zur Kritik der hegelschen Rechtsphilosophie”, o. c., p. 216). 99 É precisamente com o sentido de captar esta adaptação interna entre semântica da tradição filosófica e discurso sobre a sociedade, que se justifica o uso por N. Luhmann da ideia de uma Semântica da Velha Europa, na qual está reservado um lugar ao pensa­ mento hegeliano. Cf. E. BALSEMÃO PIRES, “Mitologia e Contingência (Esboço de compreensão da Filosofia Prática como Mitologia da Razão e da sua Crise 1789-1989)” in A. BORGES /A. P. PITA/J. Mª ANDRÉ (eds.), Ars Interpretandi. Diálogo e Tempo. Homenagem a Miguel Baptista Pereira, Porto, 2000, pp. 303-399, especialmente pp. 351 e ss.

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sua “unidade” com o estado. A “unidade” da “sociedade civil” moderna estaria, portanto, no encon­ tro de duas negações. Ela só poderia residir para além da unidade da exigência moral assim como para além da pseudo-unidade jurídico-econó­ mica. A primeira porque promete mais do que pode efectivamente gerar em concreto; a segunda porque só pode gerar “unidade” na forma de um resul­tado de lances em um jogo de um mecanismo cego, o que não é uma uni­dade consciente de si ou não é unidade no sentido de uma unidade política. O que Hegel mostra, portanto, é que a “sociedade civil” não possui qualquer unidade em si mesma e também que, partindo da sua forma mod­ erna mais acabada, entre ela e o estado só pode reinar uma separação. Na medida em que esta afirmação se inclui numa doutrina de uma Filosofia Real (Filosofia do Espírito Objectivo), ela possui um dupla justificação, a que pode juntar-se uma terceira. A justificação metafísica para esta ideia encontra-se nos Fundamentos da Filosofia do Direito em torno do uso da expressão Entzweiung, que designa a cisão da modernidade como acontecimento epocal total. A justificação política encontra-se no desejo de unidade política da sociedade ou de unidade da sociedade pelo estado, o único a poder ga­ rantir, como “fim imanente” da sociedade, na sua ordem racional, o que a racionalidade imperfeita do mercado não consegue produzir, de dentro de si, a saber: o “patriotismo”, o mais genuíno sentimento político 97. Por fim, a justificação política e lógico-metafísica encontram-se san­ cionadas pela narrativa da autodescoberta da liberdade do sujeito práti­ co, que atravessa a “Filosofia do Direito” assim como a “Filosofia da História”. Mas é a primeira justificação que acaba por dominar completamente as análises da sociedade civil moderna98 . Com a consagração lógico-metafísica da ideia da “sociedade civil” como “cisão” do “mundo ético”, Hegel gerava uma contaminação entre se­mân­­tica filosófica e semântica do discurso político. A separação entre

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estado e sociedade deixava de estar alicerçada somente na semântica do estado e da esfera política: ela detinha uma justificação lógica e meta­ física99. Numa subordinação platonizante, a justificação lógico-metafísica da separação entre estado e sociedade destinava-se a revelar na sociedade esse “mundo aparente” frente ao “mundo real” do estado. O Real do “mundo ético” é posto como político e o político revelado no lugar do Real do “mundo ético”. É neste sentido que Hegel nos aparece como o teórico dos efeitos da “crítica” iluminista do estado, pois uma vez cumpridas as principais finalidades da “crítica” do estado em nome da sociedade (e da moral), aquele aparece como a verdade desta e esta, por sua vez, como a impo­ tência política do social. Esta interpretação leva-me, novamente, ao dualismo do real dividido e do real reconciliado, a que me referia no fim do ponto 2 deste estudo. A posição de Hegel parte da observação deste dualismo desde a per­ spectiva do estado, como comunidade que sabe de si, pois esta é a única a poder oferecer as duas faces do dualismo numa posição de um Saber de ambas: a diferença entre o real da sociedade civil e o real do estado é uma diferença dada pelo saber do estado. Mas a posição do estado em relação

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à sociedade civil não pode ser entendida à luz do esquema simplista de uma “conservação-superação” de um nível no outro. Com efeito, o estado não “conserva” a “sociedade civil” mas mostra a verdade relativa dela. O estado não “supera” a “sociedade civil” mas serve como uma sobrecodi­ ficação política dos “interesses” presentes nesta. É isto que o § 261 das Grundlinien significava mediante a dupla referência à “necessidade exterior” e ao “fim imanente”. A relativização e a sobrecodificação são duas das modalidades pelas quais a observação da sociedade civil pelo estado não permitem manter a uniformidade clássica da “societas”. E, também, são as funções que asseguram que a verdade da sociedade civil só possa ser produzida na perspectiva do estado, como saber do “mundo ético” no seu todo e, pre­ cisamente, como saber que não pertence à “sociedade civil”. O problema fundamental a que Hegel pretendeu dar resposta com a sua concepção da diferença entre sociedade civil e estado foi o de saber que realidade na “arquitectónica do mundo ético” se encontra em condi­ções de gerar um saber adequado desse mundo ético, como mundo pro­duzido por uma liberdade inteligente. Ora, deste ponto de vista, não é possível desligar a exposição dos momentos articuladores entre sociedade civil e estado de uma “história da consciência” da liberdade nas condições do mundo moderno. De acordo com a formulação das linhas iniciais deste estudo, repensar, hoje, a sociedade civil implica repensar as condições da instituição pública da subjectividade prática, como subjectividade livre em uma “esfera pública”, que ela considera como um mundo criado pela sua liberdade. Em aproximação a Hegel, dir-se-ia que as condições da subjec­tividade prática são as mesmas condições que se devem dar para que, uma vez realizadas as funções civilizacionais parciais da satisfação das necessidades e dos interesses, possa ter lugar a apropriação de si na coincidência com a unidade da narrativa política. Ora, de um modo diferente daqueles que tematizam a sociedade civil como “utopia autolimitada” no horizonte da “ética da comunicação”, não parece possível dispensar esta ideia de falha interna do momento da “so­ ciedade civil”, como falha da sua permanente e ineliminável ambição política, precisamente porque a condição de a sociedade civil poder ser designada na sua relativa autonomia reside no seu “ainda não”, no facto de ela se situar no rumo de uma autonarrativa do sujeito prático, que ela não pode encerrar dentro de si mesma, mas que se abre para a dimensão do

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meio simbólico do poder, de um modo inevitável, como “fim ima­nente”. Assim, quer se encare a sociedade civil do ponto de vista evolu­ tivo, quer do ponto de vista das suas dimensões utópicas, ela surgirá ou como resíduo de acoplagens sistémicas ou como um “ainda não” político. A com­binação destes dois factores reforça o papel decisivo do político na designação do “ser-sujeito” da sociedade, o que dele fez e fará ainda, por um tempo que não sabemos limitar, a verdade metafísica da sociedade ou, por outras palavras, a fonte das imagens da sua unidade impossível. A aliança entre metafísica e política leva-nos a perguntar se nos livrá­ mos já ou nos livraremos do fiel guardião da Semântica da Velha Europa, que é o sistema político e a sua semântica. Edmundo Balsemão Pires (Universidade de Coimbra)

Teoría marxista de la sociedad civil 1.  Filosofía crítica y método genético-histórico. En nuestra interpretación de Marx queremos insistir en la dimensión filosófica de sus escritos, en los que lo importante es la búsqueda de aquellos fundamentos que hacen posible a las distintas ciencias. Su fi­ losofía podemos considerarla como una filosofía genealógica que se centra en la investigación de los fundamentos que hacen posible un determinado saber: el derecho, la historia, la economía, etc.Todos los escritos de Marx, desde los primeros a los últimos, siguen esa trayectoria, que nosotros ahora vamos a ver empezando por su escrito: Crítica de la filosofía del Estado de Hegel (1842). La palabra “critica” que aparece en muchos de los títulos de sus ob­ ras tenemos que entenderla con el sentido que la misma ha adquirido en el contexto de los jóvenes hegelianos y que es el que asume Marx. Los jóvenes hegelianos sustituyen la noción hegeliana de mediación, que todo lo unifica, por la de crítica que busca la diferenciación. Esta noción de crítica ha sido elaborada técnicamente por B. Bauer, de quien la toma Marx. La noción baueriana de crítica es un elemento de la praxis y es importante para comprender el método de Marx, que como diremos más adelante es un método genético-histórico. 2. La crítica marxiana del derecho de Hegel La tarea filosófica de Marx se inicia en el terreno del derecho, que es el espacio en el que Hegel ha centrado la filosofía de la historia al poner al Estado como el sujeto real (causa material) de la misma. Marx parte aquí de Hegel, pero adoptando una actitud crítica inspirada en la posición de

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Feuerbach. En el primer texto que vamos a analizar se sirve de la filosofía de Feuerbach como el instrumento fundamental para criticar la filosofía de Hegel y elaborar su propia posición. La crítica marxiana de Hegel en este texto es la crítica de la idealidad del Estado y la búsqueda de los fundamentos “reales” del mismo; enten­ diendo la palabra “reales” en el sentido feuerbachiano de la búsqueda de los elementos sensibles y empíricos del Estado. Y dado que el Estado es la “realización” de las esferas naturales de la familia y la sociedad civil; éstas pasan a ser calificadas por Marx en su interpretación del texto de Hegel “como el oscuro fondo natural sobre el que se proyecta la luz del Estado”. El Estado es la luz de esas esferas naturales y como tal la encar­ nación visible de su idealidad. El Estado es la realización de la idealidad de esas esferas, del mismo modo que el “hijo de Dios” es la encarnación de la idealidad de Dios. Y como tal encarnación es la realización de tal idealidad. La idealidad de Dios se encuentra realizada en el hijo; y de la misma forma el Estado es la realización de la idealidad de la familia y de la sociedad civil. Este planteamiento idealista es el que va a criticar Marx y va a buscar como alternativa las bases reales del mismo, que él coloca en los individuos. Hegel, en cambio, considera a la familia y a la sociedad civil como “esferas naturales”, que encuentran su razón de ser y su realización en el Estado, que es la “Idea” en la que esas otras dos esferas se resuelven en su devenir dialéctico efectivo. Tenemos, pues, que para Hegel el Estado es una “Idea”, que es el aspecto que va a criticar Marx, como se desprende de este comentario: “La realidad no es expre­ sada como es ella misma, sino como una realidad distinta” 1. Para Hegel la racionalidad de la realidad está en la significación que ésta recibe de la idea, de la que es “manifestación”. Y ahí es precisamente donde Marx rompe con Hegel al afirmar que la racionalidad de lo real no hay que ir a buscarla fuera de la realidad, sino en la realidad misma. Y ésta no es otra cosa que la actividad concreta de los individuos tal como se ejerce en la familia y en la sociedad civil. En lugar del movimiento de la idea como objetivación, Marx coloca la actividad concreta de los individuos, Marx, K., Zur Kritk der Hegelschen Staatsrechts en Werke, Diets Verlag, Berlin, I, 1974, 206 Trad. Española en Crítica de la filosofía del estado de Hegel. Trad. A. Sánchez Vázquez. Grijalbo, Barcelona, 1974, 14. Todas las notas referidas a Marx están tomadas de esta edición de las Marx-Engels Werke. A continuación indicaré la traducción española de donde está tomada la traducción. 2 Hegel, G. W. F., Grundlinien der Philosophie des Rechts. Werke, Suhrkamp, Frank­ 1

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su praxis; y a partir de ella va a ir generando (no deduciendo) todos los poderes que encontramos en la sociedad. Un lugar paradigmático para apreciar esta crítica de Marx a Hegel podemos encontrarlo en la interpretación que Hegel hace de la monar­ quía en sus Principios de la Filosofía del Derecho. En el & 7 explica Hegel la deducción conceptual de todas las determinaciones del Estado como estructura monádica (monarquía); y pone el fundamento de esa deducción en la voluntad libre que es la que sintetiza los momentos de la parti­cularidad y la individualidad. “La voluntad es la unidad de estos dos momentos, la particularidad reflejada en sí misma y por ello reconducida a la universalidad: la individualidad” 2. El concepto de voluntad libre se realiza como realidad en la individualidad que encarna la idea del Estado: el monarca. Por eso puede decir Hegel en el & 279 que “este momento del todo que tiene la absoluta decisión, no es por lo tanto la individualidad en general, sino un individuo, el monarca” 3. Y no solamentre esto, sino que además puede rematar su razonamiento diciendo que “la personalidad y en general la sujetividad... sólo tienen verdad... como persona, como sujeto existente por sí, y lo que existe por sí es necesariamente uno” 4. En esta misma idea de Hegel se apoya Marx para su crítica, que con­ creta de la siguiente forma: “Claro está que la personalidad y la subjetivi­ dad, no siendo más que predicados de la persona y del sujeto, no existen sino como persona y como sujeto y que la persona es individuo. Pero... el individuo no tiene verdad sino en cuanto que es muchos individuos”  5. La estructura monádica del ser individual no conduce al uno, sino a los muchos, a la pluralidad, lo cual trae importantes conse­cuencias políticas que luego analizaremos. Esta crítica de Marx a la filosofía del Estado de Hegel asume el para­ digma moderno de la estructura lógica del juicio tal como fuera plan­teado por Kant en el Critica de la razón pura al investigar la estructura de las ciencias. Esta estructura la aplicó Schelling a la filosofía en gene­ral al

furt, 1975, VII, 54. Las notas referidas a Hegel están tomadas de esta edición. A conti­ nuación pondré la edición española de donde está tomada la traducción. Principios de la filosofía del derecho. Trad. J.L. Vermal. E. Sudamericana, Buenos Aires, 1975, &7, 44. 3 Ibidem, 444, & 279, 327. 4 Ibidem, 445, & 279, 327. 5 Marx, K., Ktitik des Hegelschen Staatsrechts, 228. Crítica de la filosofía del Estado de Hegel, 37. 6 Ibidem, 209, 18. 7 Henry, M.: Marx, I. Gallimard, París, 1976, 46.

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discutir el significado del panteismo; y Feuerbach, siguiendo a Schelling, la aplicó a la discusión de la temática religiosa en La esencia del cristianismo. De aquí la toma Marx y la va a aplicar a la teoría del Estado, pero introduciendo una importante modificación. Aplicando el esquema del juicio a la teoría hegeliana del Estado se trata de dilucidar quien es el sujeto real de la política; entendiendo real en el sentido que Feuerbach da a dicho término. La pregunta que Marx dirige a Hegel es: ¿quién es el sujeto real y empírico de la política?. Y la res­puesta de Marx es clara: el individuo. A primera vista puede parecer que Hegel y Marx están de acuerdo; pero no es así, puesto que la perte­ nencia del mismo a la esfera del Estado no la deduce Hegel de su ser “particular”, sino de la relación universal entre necesidad y libertad. Di­ cho de forma más sencilla: el pueblo como colectividad tiene como fin la libertad y para la realización de ese fin se requiere la “necesidad externa” del Estado, que por mediación de las leyes orienta los intereses de los individuos hacia el fin general de la libertad. Y esta función la cumple el Estado por medio de la figura del monarca, que evidentemente es un individuo político, aunque no es un sujeto “real” en el sentido marxista. “Lo importante consiste en que Hegel transforma siempre a la idea en sujeto y hace del sujeto real propiamente dicho, tal como la “disposición política”, el predicado” 6. Vemos, pues, cómo la clave de la crítica de Marx a Hegel se concreta en que Hegel pone siempre a la “idealidad” como sujeto por el hecho de atenerse al punto de vista de la ciencia considerada como “exposición sistemática”; y por no atender para nada a su génesis, a como se engendra la ciencia, que es el punto de vista que adopta Marx. El intento de Marx no es la deducción lógica de la estructura del Estado, sino su génesis histórica. Y es aquí donde reside el punto más importante de la crítica marxista a Hegel: en el método de explicación de la realidad; que deja de ser idealista y se transforma en un método histórico-genético. Como escribe Henry “a la determinación de las partes por el todo sobre el fondo de su homogeneidad sustancial, se sustituye la tesis de la genealogía, es decir, la de su diferencia en primer lugar, la tesis de la formación y de la producción de la universalidad ideal a partir de un ideal heterogéneo”  7. La tesis de la genealogía coloca al individuo como fundamento real de 8 9

Kritik des Hegelschen Staatsrechts, 210, 19. Ibidem, 210, 19-20.

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la sustancia política por la mediación de su conciencia. Es a través de la conciencia como el hombre real llega a ser el principio de la constitución. Y esta realidad solamente puede ser desvelada por la historia, que parte de los individuos reales y su interacción dentro de un “modo de vida” (Lebensweise). Este es el subsuelo al que ha de descender la historia como crítica en su proceder genético a la búsqueda de los orígenes que pueden dar razón de la “vida real” de los individuos. El método de la deducción transcendental del idealismo se transforma en Marx en un método gené­ tico que busca el fundamento real que puede dar razón de las repre­sen­ taciones que el hombre se forma de la realidad. 3. Interpretación marxiana del Estado moderno. Este cambio de método se aprecia muy bien a propósito de la reflexión de Marx sobre la consideración del Estado como organismo. Este con­ cepto aparece en el & 267 de los Principios de la filosofía del derecho de Hegel, y luego es concretado y precisado en el & 269. Marx valora positivamente la consideración hegliana del Estado como organismo, lo que nos da a entender que su planteamiento al respecto asume las ideas que están vigentes en los diversos campos del saber en la primera mitad del siglo XIX, época en la que la metáfora del organ­ ismo ha sustituido a la de máquina, que había sido dominante durante la ilustración.”Considerar al Estado político como organismo, constituye un gran progreso, ya que en consecuencia no se considera sólo la diferencia de los poderes como una distinción (mecánica), sino también como una distinción viviente y racional” 8. Pero este aspecto positivo en la consi­ deración del Estado como un organismo queda desvirtuado al no fijar el sujeto real de ese organismo, que es quien lo diferencia de cualquier otro organismo. “El punto de partida es la idea abstracta cuyo desarrollo en el Estado es la constitución política. No se trata, pues, de la idea política, sino de la idea abstacta, en el elemento político” 9. Para Marx, en cambio, el sujeto real del organismo político son los Ibidem, 222, 30-31. Ibidem, 231, 40. 12 Ibidem, 321, 41. 10 11

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individuos, pero no entendidos desde la perspectiva natural de los mis­ mos (pasiones e intereses), sino desde su cualificación social; es decir, enten­didos como entes sociales constituidos por un conjunto de relaciones sociales. “Los asuntos y actividades del Estado están ligados a individuos (el Estado no es activo más que por medio de individuos); no el individuo físico, sino el individuo político, tomado en su condición de miembro del Estado... Están ligados más bien por un vinculum substantiale, por una cualidad social del individuo...(Hegel) olvida que la individualidad par­ ticular es una función humana y que los asuntos y actividades del Estado son funciones humanas; olvida que la esencia de la “personalidad par­ ticular” no es su barba, su sangre o su naturaleza física abstracta, sino su cualidad social; y que los asuntos del Estado... no son más que los modos de existencia y de actividad de las cualidades sociales de los hombres. Se comprende, pues, que los individuos como representantes de los asuntos y poderes del Estado, sean considerados de acuerdo a su cualidad social y no según su cualidad particular”10 . Esta consideración de los individuos como el sujeto real del organismo político conduce a Marx a un conjunto de interesantes reflexiones sobre la democracia. La esencia de lo político es la democracia porque en ella la cons­ titución está referida al hombre real y al pueblo real; y ella es obra de estos. Por eso puede afirmar que “la democracia es el enigma descifrado de todas las constituciones”11 . En la democracia la constitución aparece como lo que es: un producto libre del hombre. La colocación del hombre como el sujeto real y el descubrimiento del método genealógico son los dos elementos que van a servir a Marx como las piedras angulares de su sistema. De manera que esos dos elementos son los que va a aplicar a todos los ámbitos de la realidad en todos sus análisis: al ámbito jurídico-político, al ámbito económico, al filosófico y al religioso. En todos ellos va a aplicar el mismo esquema: va a colocar al hombre como punto de partida y va a generar a partir de él las formas de que se trate, inter­ pretándolas como productos de su praxis. En la Crítica de la filosofía del Estado de Hegel aplica esos dos el­ ementos al ámbito político; y en concreto a la teoría hegeliana del Estado. De acuerdo con esa aplicación considera al Estado como una “forma Ibidem, 268, 82-83. Ibidem, 270, 85. 15 Marx, K., Die heilige Familie, II, 126. La Sagrada familia y otros ensayos. Trad. 13 14

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política” y distingue tres realizaciones históricas de esa forma: la griega, la medieval y la moderna. Y afirma que sólo en la forma moderna del Estado coinciden forma y contenido; y ello ocurre en el ámbito de la democracia por el hecho de que “en la democracia el principio formal es a la vez el principio material” 12. En ella la soberanía reside en el pueblo y éste es el sujeto real de la constitución, que, a su vez, es un producto libre del hombre. Este es el que crea la constitución política y al Estado, que es el hombre objetivado. En la democracia el Estado político es una forma particular de la vida del pueblo. Es una forma organizadora y como tal coexiste junto a otras “formas de vida”. Entre esas otras formas de vida nos encontramos con las esferas concretas de la sociedad civil, que funcionan como intermediarias en el movimiento de la “Idea” que acaba objetivándose en el Estado. Lo que Marx critica de esa concepción hege­ liana del Estado es la función mediadora de la clase gobernante, porque en dicha función se escinde el Estado político por un lado y las clases sociales por otro dando lugar a la alienación política como un componente fundamental del Estado moderno. “El Estado constitucional es el Estado en el cual el interés del Estado no existe como interés real del pueblo más que formalmente, pero existe como una forma determinada al lado del Estado real; el interés del Estado ha adquirido aquí formalmente la realidad como interés del pueblo, pero igualmente no debe tener más que esta realidad formal. Se ha transformado en una formalidad, en el alto gusto de la vida popular, en una ceremonia. El elemento constituyente es la mentira sancionada, legal de los Estados constitucionales, diciendo que el Estado es el interés del pueblo o que el pueblo es el interés del Estado. Esta mentira se hará patente en el contenido. Se ha establecido como poder legislativo precisamente porque el poder legislativo tiene como contenido lo universal, es mucho más cosa del saber que de la voluntad, es la fuerza metafísica del Estado... La fuerza metafísica del Estado era el asiento más adecuado de la ilusión general y metafísica del Estado” 13. Marx se da cuenta que en la dialéctica hegeliana del pueblo y del Es­ tado no se produce la “reconciliación” de la que habla Hegel, sino más bien una escisión entre la “conciencia pública”, que es la “generalidad empírica de las opiniones y pensamientos de muchos”, y la “conciencia del W.Roces. Grijalbo, México, 1962, 185. 16 Ibidem,128, 187. 17 Ibidem,130, 189.

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Estado” representada por la clase burocrática. Es decir, que Hegel hace de la conciencia pública algo empírico, mientras que convierte a la burocracia en algo ideal. Transforma a la burocracia en el sujeto ideal del Estado en cuanto representante del “interés general” del mismo, y hace del Estado y la clase burocrática una institución; mientras que el pueblo queda des­ plazado al ámbito de la sociedad civil e incluido en la clase social. “El Estado y el gobierno son colocados del mismo lado como lo idéntico, y el pueblo, repartido entre las esferas particulares y los individuos, es colocado siempre del otro lado. Entre ambos se encuentran las clases como órgano mediador... Las clases son la síntesis entre el Estado y la sociedad civil” 14. Marx, en cambio, no está de acuerdo con esta interpretación de Hegel y considera que lo que ocurre en el Estado moderno es la alienación en el seno mismo del Estado político. Esa alienación es debida a que lo que tiene lugar en el Estado moderno es una escisión entre las clases sociales y el Estado; debido a que las clases no están unidas en el “interés general”­ del Estado, sino que ese “interés general” está representado por una de las clases (la burocrática), que pasa a ser dominante con respecto a las demás. Hasta la Revolución francesa las clases tenían un significado político, que les venía dado por el diferente grado de participación en el ejercicio de los poderes del Estado. Esta es la interpretación que recoge Hegel en los Pirncipios de la filosofía del derecho. Cuando Marx lleva a cabo la crítica de la filosofía de hegeliana del Estado se ha transformado el significado de las clases, que han pasado a ser clases sociales y que lo que expresan como tales son el tipo de relaciones sociales surgidas de la división del trabajo y de su posición en la vida social. Su significado les viene, pues, de la economía. Este cambio de significación es el que puede apreciarse en la crítica de Marx. 4.  La Revolución francesa como cambio de paradigma A partir de la Revolución francesa se ha producido una escisión en el Estado considerado como el organismo articulador de las diferentes clases. Esa escisión se manifiesta en que la burocracia como clase y tal como la interpreta Hegel es considerada como la clase que representa el 18 19

Ibidem, 131, 190-191. Marx, K., Zur Judenfrage, I, 362. Sobre la cuestión judía, en La Sagrada familia

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interés general del Estado. Como tal clase asociada al soberano queda separada de las otras clases. Ella es la que pasa a ser la interventora del Estado a través de sus delegados en las diferentes esferas de la realidad social: familia y sociedad civil. En las sociedades antiguas los individuos formaban parte de la esfera política en cuanto miembros de una familia o de una corporación. En la sociedad moderna la esfera política ha quedado separada de la esfera social, la cual se ha dividido en clases sociales de acuerdo con el sistema de producción y su correspondiente división del trabajo. Esto trae una importante modificación en la estructura de la so­ ciedad; y es esa modificación en la que se apoya Marx para su crítica de la política en las sociedades modernas. La participación de las clases en la esfera política es a través de la representación. Esta modificación trae consigo una división dentro del Estado moderno entre el ámbito de la clase política como gobernadora y legisladora; y el de las clases productoras, que quedan desplazadas de la participación política y aisladas como individuos en la esfera de la sociedad civil. Al aislar al individuo dentro de los estrechos límites de las asocia­ciones privadas hace de su conciencia particular su propia conciencia sustancial. Esta separación entre la esfera política y la social no solamente separa al individuo de la esfera politica, sino que separa al hombre de su ser general y produce una alienación radical del mismo, que podemos calificar como alienación política. Una consecuencia de esta transformación es la pérdida de importancia del derecho y el paso a primer plano de la economía política; en cuanto que la economía ha llegado a ser el principal elemento determinante de la sociedad. Tenemos, pues, que en su crítica de la moderna teoría del Estado y de lo político Marx ha llegado a descubrir que las raices reales del Estado y de lo político se encuentran en la econo­mía, lo que va a reorientar toda su reflexión a partir de este mo­mento.Pero a nosotros no nos interesa ahora esa orien­ tación, sino su profundización en la crítica moderna del Estado y de lo político. Y para ello vamos a consi­derar la interpretación marxiana de la Revolución francesa. 5. Interpretación marxiana de la Revolución francesa Uno de los temas importantes de la filosofía de Marx, al que ha dedi­ cado varias obras, es el de la Revolución francesa, que él interpreta como

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una revolución política y como una revolución burguesa. Marx entiende lo político como aquello que hace referencia al Estado y lo contrapone a lo social, que tiene que ver con la esfera de la sociedad civil. En esta con­ traposición lo político adquiere un tono peyorativo en cuanto que es in­ terpretado como una alienación que debe ser superada por los individuos. Como revolución burguesa la Revolución francesa ha jugado un papel en la historia universal, que debe ser reconocido; pero no absolutizado. La burguesía como clase ha cumplido su misión histórica en el caso de la Revolución francesa llegando a ser en dicho momento la clase porta­ dora del interés general. Pero luego se ha estancado y se ha ido afirmando progresivamente como la clase dominante, perdiendo su función emanci­ padora. Y este es el aspecto que Marx critica de la Revolución francesa. El año 1844 Marx publica juntamente con Engels La Sagrada familia en la que somete a crítica a Bruno Bauer, que había sido uno de sus mae­ stros. En este texto de Marx y Engels aparece una primera interpretación de la Revolución francesa hecha desde los presupuestos filosóficos que Marx ha ido logrando en sus escritos anteriores. El más claro de esos presupuestos es el de la contraposición entre “ideas” e “individuos”. “Las ideas no pueden nunca ejecutar nada. Para la ejecución de las ideas ha­ cen falta los individuos que pongan en acción una fuerza práctica” 15. Ahora bien, esos individuos a los que Marx se refiere no son “átomos”, sino “miembros de la sociedad burguesa”, que tienen como una de sus “cuali­dades” una necesidad e impulso que incita al individuo a buscar otras cosas y otros hombres fuera de él. Y esto es lo que hace que “la necesidad natural, las cualidades esenciales humanas, por extrañas las unas de las otras que puedan parecer, el interés, mantienen en cohexión a los miem­bros de la sociedad burguesa, y la vida burguesa y no la vida política es su vínculo real” 16. Es decir, que el fundamento real de la co­ hesión social se encuentra en la sociedad civil, entendida como sociedad burguesa, y es el resultado de la “vida” de dicha sociedad, que a su vez genera el Estado como expresión de esa vida. Un Estado que es el garante de los “derechos humanos”, que tienen como referencia al hombre como ciuda­dano y no precisamente al individuo burgués, que es el sujeto de intereses particualres. Esa escisión entre el individuo burgués (real) y el

y otros ensayos, 30. 20 Ibidem, 365, 33. 21 Ibidem, 364, 32. 22 Ibidem, 366, 34.

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hombre ciudadano como sujeto de derechos es uno de los blancos de la crítica de Marx. “La sociedad burguesa es representada positivamente por la burguesía. La burguesía comienza, pues, a gobernar. Los derechos huma­nos dejan de existir solamente en teoría” 17. Marx está reconociendo en este comentario el papel revolucionario de la burguesía en relación con el reconocimiento de los derechos humanos del hombre, que fue un elemento fundamental de la Revolución francesa. Reconocimiento que además precisa muy bien cuando distingue entre el papel de la Restau­ ración borbónica y el de Napoleón. El de la Restauración borbónica fue un papel contrarrevolucionario, mientras que el de Napoleón fue la con­ solidación de la Revolución francesa como revolución burguesa; y por lo tanto la transformación de la burguesía de clase revolucionaria en clase dominante. “En 1830, ésta (la burguesía) realizó por fin sus deseos del año 1789, pero con la diferencia de que, ahora, su esclarecimiento político había llegado ya a su término, pues ya no veía en el Estado representativo constitucional el ideal del Estado, no creía ya aspirar a salvar al mundo ni a alcanzar fines humanos de carácter general, sino que había reconocido ya más bien al Estado como la expresión oficial de su poder exclusivo y como el reconocimiento político de su interés particular”  18. 6.  La Revolución francesa y el moderno Estado representativo Hemos visto que la Revolución francesa como revolución burguesa ha traido consigo la consolidación de la burguesía como protagonista del proceso histórco. Si ahora nos fijamos en el otro elemento de la interpre­ tación marxiana de la Revolución francesa como revolución política podemos afirmar que la Revolución francesa trae también el moderno Estado representativo y democrático en el que todo hombre “vale como ser soberano”, aspecto éste que tiene su expresión clara en la teoría de los derechos humanos, de los que escribe Marx en Sobre la cuestión judía (1844) lo siguiente: “Estos derechos humanos son derechos políticos, derechos que sólo pueden ejercerse en comunidad con otros hombres. Su contenido es la participación en la comunidad, y concretamente, en 23 24

Ibidem, 370, 38. Marx, K., Die deutsche Ideologie, III, 36. La ideología alemana. Trad. W. Roces.

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la comunidad política, en el Estado. Estos derechos humanos entran en la categoría de la libertad política” 19. Marx distingue entre los derechos cívicos y los derechos humanos, asociando estos últimos a la categoria de hombre como miembro de un Estado político y democrático, cuya esencia es la libertad y la igualdad ante la ley, cosa que ocurre por primera vez en la sociedad burguesa. Con estas distinciones Marx está distinguiendo tres formas de Estado: el Estado de las antiguas polis, el Estado feudal y el moderno Estado representativo democrático, que ha hecho su aparición en la modernidad y ha logrado su culminación con la Revolución francesa. Esta última forma de Estado es la más desarrollada que encontramos en la historia, pero en la interpretación de Marx tiene una limitación que él califica de “misterio”, el cual tiene su base en la interpretación del individuo como “mónada aislada”, que hace que en la sociedad burguesa “todo hombre encuentre en otros hombres, no la realización, sino, por el contrario, la limitación de su libertad” 20. Esto se debe a que en la socie­ dad burguesa “los llamados derechos humanos, los derechos del hombre, a diferencia de los derechos del ciudadano, no son otra cosa que los derechos del miembro de la sociedad burguesa” 21. Y por eso “ninguno de los llamados derechos humanos va más allá del hombre egoista, del hombre como miembro de la sociedad burguesa, es decir, del individuo replegado a sí mismo, en su interés privado y en su arbitrariedad privada, y disociado de la comunidad”  22. Esta situación de alienación política solamente concluirá cuando el hombre egoista burgués se tranforme en ser genérico y quede superada la escisión que dentro de la sociedad burguesa se da entre el “idealismo del Estado” y el “materialismo de la sociedad civil”, entre el ciudadano abstracto del Estado y el individuo egoista de la sociedad civil. Esta interpretación marxiana de la Revolución francesa como revo­ lución política le lleva a Marx a distinguir entre “emancipación política” propia de la sociedad burguesa y “emancipación humana”, que es la que él propone al hablar del hombre como ser genérico. “Solo cuando el hombre individual real recobra en sí al ciudadano abstracto y se convierte, como Grijalbo, Barcelona, 1970, 38. 25 Ibidem, 36, 38. 26 Ibidem, 36, 38. 27 Ibidem, 36, 38. 28 Marx, K., Elementos fundamentales para la crítica de la Economía política. (Bor­ rador) 1857-1858. Trad. P. Scaron, Siglo XXI, México, 1972, I, 4.

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hombre individual, en ser genérico, en su trabajo individual y en sus re­ laciones individuales; sólo cuando el hombre ha reconocido y organizado sus fuerzas propias como fuerzas sociales y cuando, por tanto, no desglosa ya de sí la fuerza social bajo la forma de fueza política, sólo entonces se lleva a cabo la emancipación humana” 23. 7.  La “sociedad civil” como “la vida” del Estado Tenemos, pues, que para Marx el individuo solamente será verda­ deramente libre cuando logre reconocerse como lo que realmente es y esto solamente tendrá lugar en la “sociedad humana”, que tenemos que enten­ der como una forma social más evolucionada que la sociedad burguesa. Mientras el individuo siga formando parte de la “sociedad burguesa” no habrá logrado plenamente su emancipación como individuo. Y por eso toda la teoría política de Marx se va a orientar a la búsqueda de una nueva forma de sociedad dentro de la cual el individuo pueda ser realmente libre. Lo que a nosotros ahora nos importa retener es el hecho de que Marx considera a la sociedad burguesa como la forma más desarrollada de so­ ciedad que encontramos en la historia; y esto es precisamente lo que él reconoce en La ideología alemana, texto publicado el año 1846. La tesis de Marx en dicho texto es que la filosofía alemana no tiene en cuenta la ciencia de la historia a la hora de explicar al hombre. Y en cambio para Marx la historia es la ciencia fundamental a la que tenemos que recur­ rir a la hora de explicar la vida de los hombres; porque ella es la única ciencia que nos puede decir cómo son los hombres reales al mostrarnos las condiciones materiales de existencia dentro de las cuales los hombres viven e interactuan entre sí. A esas condiciones materiales Marx las de­ nomina “formas de vida”, como hemos dicho anteriormente, y ellas for­ man el subsuelo al que ha de llegar la historia para poder explicar como son los hombres reales, con independencia de lo que ellos piensen de sí mismos. Esto es lo que va a llevar a Marx a una de las más importantes distinciones de su filosofía: la distinción entre vida y representación, que en La ideología alemana él aplica también a los conceptos de sociedad civil y Estado, que son los que nos ocupan en nuestro estudio. Una de las diferencias entre la filosofía de Hegel y la de Marx es 29 30

Marx, K., Die deutsche Ideologie, 37. La ideología alemana, 40. Marx, K., Elementos fundamentales para la crítica de la Economía política. (Bor­

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que éste aspira a construir una teoría de la realidad social y sus formas de evolución y desarrollo; mientras que Hegel, como buen representante del idealismo, centra su filosofía en una teoría de la representación y sus formas lógicas de deducción. La filosofía de Marx tal como queda confi­ gurada a partir de La ideología alemana es una teoría de los modos de vida de los individuos y de cómo se han generado esos modos de vida en la historia. En este contexto es en el que él interpreta la sociedad civil cuando escribe: “La forma de intercambio condicionada por las fuerzas de producción existentes en todas las fases históricas anteriores y que, a su vez, las condiciona es la sociedad civil, que, como se desprende de lo anteriormente expuesto, tiene como premisa y como fundamento la fa­ milia simple y la familia compuesta, lo que suele llamarse la tribu, y cuya naturaleza queda precisada en páginas anterires”24 . Esto quiere decir que el sujeto real de la historia para Marx es la sociedad civil y no el Estado como pensara Hegel. Y ello es así porque es en la sociedad civil donde nos encontramos con los individuos reales. “Ello revela que esta sociedad civil es el verdadero hogar y escenario de toda la historia y cuan absurda resulta la concepción histórica anterior que, haciendo caso omiso de las relaciones reales, sólo mira, con su limitación, a las acciones resonantes de los jefes y del Estado” 25. En este texto Marx está invirtiendo la con­ cepción hegeliana de la historia, que ponía como sujeto y causa material al Estado; y frente a esa concepción hegeliana él pone como sujeto a los individuos tal como estos interactuan dentro de la sociedad civil; y hace de los conceptos de nación y de Estado dos conceptos derivados con re­ specto a la sociedad civil. “La sociedad civil abarca todo el intercambio material de los individuos, en una determinada fase de desarrollo de las fuerzas productivas. Abarca toda la vida comercial e industrial de una fase y, en este sentido, trasciende de los límites del Estado y de la nación, si bien, por otra parte, tiene necesariamente que hacerse valer al exterior como nacionalidad y, vista hacia el interior, como Estado”  26. En este texto que estamos comentando Marx deja claro el carácter fundante de la sociedad civil con repecto a los conceptos de nación y de Estado. Estos conceptos son representaciones que los individuos se hacen rador), I, 5. 31 Ibidem, I, 8.

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de su vida en sociedad; y como tales representaciones se apoyan en el suelo real de la vida en sociedad; en eso que a partir del siglo XVIII se ha llamado “sociedad civil”. “El término de sociedad civil apareció en el siglo XVIII, cuando ya las relaciones de propiedad se habían desprendido de los marcos de la comunidad antigua y medieval. La sociedad civil sólo se desarolla con la burguesía” 27. En este texto Marx deja muy claro cual es su concepto de sociedad civil y de Estado. La sociedad civil es el suelo real sobre el que se levanta el Estado, que es genéticamente posterior con respecto a aquella. Por lo tanto la sociedad civil pasa a ser el referente fundamental en la teoría política de Marx; ese referente que es el que hay que cambiar para que cambien todas las otras formas de representación, entre ellas la forma política del Estado. Ahora bien, con la llegada de esta forma de sociedad que es la socie­ dad civil se han roto entre los individuos todas las formas de conexión social dentro de las cuales el individuo se encontraba además como miem­ bro de una comunidad. En esta forma de sociedad las relaciones sociales no son ya “relaciones humanas”, sino simples medios para lograr fines privados; con lo cual el individuo se encuentra siempre como individuo solitario en un sistema de relaciones egoistas entre los indi­viduos. En los Manuscritos de 1857-1858 Marx lo expresa muy clara­mente: “Solamente al llegar el siglo XVIII, con la “sociedad civil”, las diferentes formas de conexión social aparecen ante el individuo como un simple medio para lograr sus fines privados, como una necesidad exterior. Pero la época que genera este punto de vista, esta idea del individuo aislado, es precisamente aquella en la cual las relaciones sociales (univer­sales según este punto de vista) han llegado al más alto grado de desar­rollo hasta el presente” 28. La tesis de Marx es que esa función de “cone­xión política” no puede cumplirla el Estado y por eso él va a recurrir a ideas políticas que hoy, con una palabra de nuestros días, podriamos denominar comunitaristas. Lo importante para la tesis de nuestro trabajo es que el fundamento de la historia es la “sociedad civil” tal como Marx afirma expresamente en un texto de La ideología alemana: “Esta concepción de la historia consiste... en concebir la forma de intercambio correspondiente a este modo de pro­

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ducción y engendrada por él, es decir, la sociedad civil en sus diferentes fases, como el fundamento de toda la historia” 29. Esto quiere decir que el sujeto de la historia no es el Estado como pensara Hegel, sino la socie­ dad civil como el “hogar” en el que los individuos interactuan entre sí.: interacciones que podemos distinguir entre interacciones de producción e interacciones de intercambio; todas las cuales se producen dentro de la sociedad civil, que es el “hogar” de los individuos reales, en cuyo seno se configuran las “formas de vida” y sus correspondientes representaciones de tipo religioso, político, filosófico, etc. La última forma­ción social que ha aparecido en la historia, y por tanto la más desarrollada, es la socie­ dad burguesa dentro de la cual el individuo está alienado; lo que quiere decir que está escindido entre lo que realmente “es” y el modo como se “representa” ser. Y el intento de Marx en su con­cepción de la política es precisamente liberar al individuo real de la alienación política y hacer del mismo un verdadero “animal político” en el sentido aristotélico de este término: es decir, un miembro humano no alienado de la república. 8.  Estado, nación y ciudadanía La teoría marxista de la razón pragmática (como razón técnica) está muy bien expuesta en las Tesis sobre Feuerbach, en las que Marx inter­ preta al hombre como la gran potencia transformadora de la realidad. El poder transformador del hombre cristaliza en la sociedad, que es la sínte­sis de la acción transformadora del hombre y de la realidad material de la naturaleza. La naturaleza es la base material sobre la que se ejerce el poder técnico del hombre. Y el resultado de esos dos elementos es la sociedad, que Marx describe como la armonía entre la naturalización del hombre y la humanización de la naturaleza. La sociedad puede ser enten­ dida entonces como la armonía entre esas que podemos calificar como las dos tendencias fundamentales de la modernidad: la de la objeti­vación y la de la subjetivación. Ambas tendencias quedan sintetizadas en la socie­ dad, que es el objeto fundamental hacia el que debemos dirigir nuestra atención a la hora de analizar la modernidad. Y el quicio sobre el que gira esa síntesis que es el hombre entendido como sujeto técnico y creador,

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que tiene como una de sus actividades fundamentales el trabajo, al que dado que se trata de una actividad humana podemos denominar praxis. La acción humana es una acción eminentemente práxica; es decir, una acción que tiene como los dos componentes fundamentales de la misma la técnica, transformadora de la naturaleza; y la ética, creadora de valores propiamente humanos. La acción humana en cuanto acción prá­xica tiene como sujeto al hombre concreto, como ser social que es la síntesis de naturaleza y razón. El sujeto de la historia humana no es la razón como pensara la modernidad de Descartes a Hegel, sino el hombre como ser práxico, que tiene el tiempo como un componente fundamental del mismo y la historia como el espacio en el que se desarrolla su praxis. La dimensión práxica del hombre se muestra ya en la sensibilidad, que Marx entiende como actividad práctica y no meramente como sensibilidad contemplativa. Es decir, que el objeto que la sensibilidad humana intuye no es un objeto que refleja un contenido empírico del mundo, sino un objeto que ha producido la propia sensibilidad del hombre como actividad práctica. Esta interpretación de la sensibilidad como actividad práctica presupone como base una sociedad, en la que se ejerce el trabajo del hombre como la actividad fundamental del mismo. El hombre es homo faber, trabajador; y esa dimensión trabajadora del hombre se manifiesta tanto en su dimensión técnica de transformación de la naturaleza, como en su dimensión ética de creación de valores en la sociedad. La inter­ pretación del hombre como homo faber se hace patente en la explicación que Marx da del conocimiento en el hecho de que sus metáforas para la explicación del mismo están tomadas del campo de la producción y no del de la visión como ocurriera en la interpretación que de la razón diera Aris­tóteles y que llega hasta Kant. En esta tradición el conocimiento es teoría (theoria) y la mente es como un espejo que reproduce la naturaleza. Marx, en cambio, se coloca en la línea que Bacon iniciara en la mo­dernidad y que veía el conocimiento como construcción, como cre­ ación racional. Esta línea la asume de alguna manera Hegel en su Feno­ menología del espíritu, en la que resalta el concepto de trabajo del mismo; y es continuada por Marx que va a interpretar al hombre concreto y real como el producto de su propio trabajo. La actividad del hombre es un continuo trabajar y producir; y es el verdadero fundamento del mundo sensible, así como del conocimiento mismo de las ciencias naturales. Por eso llega a decir en La ideología alemana que las ciencias naturales no

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hubieran progresado si no hubiera sido por la industria y el comercio. Aquí se ha producido un total “olvido del ser” como diría Heidegger y se ha colocado a los hombres activos como los auténticos sujetos de la historia. El verdadero entorno del hombre no es el ser, identificado con la naturaleza, sino la sociedad como un entorno elaborado por la actividad del hombre, como el resultado final de procesos humanos de trabajo. En este contexto adquiere pleno sentido la tercera de las Tesis sobre Feuer­ bach en la que se habla de las circustancias que rodean al hombre. Ellas son el referente fundamenal a la hora de interpretar la relación entre el ser y la conciencia. Ciertamente en la teoría de Marx es el ser el que deter­ mina a la conciencia y no la conciencia la que determina al ser. Pero esa determinación es a través de las circustancias que ha creado el propio hombre. Es decir, que sujeto (conciencia) y objeto (ser) no se dan como formas autónomas, sino como el resultado de la mediación de la una por la otra. Esa mediación se concreta en prácticas que están presentes y actuantes en las circustancias y que nos muestran que es el hombre y su actividad lo que es específico de la base material de la historia. La noción marxiana de materialismo no se refirere nunca a la naturaleza como un prius en el cual está encajado el hombre; sino a las circustancias dentro de las cuales se ejerce la potencia transformadora del hombre. Mientras que Marx entiende la praxis como la actividad transformadora fundamental del hombre, Feuerbach la entiende como una actividad egoista, teoría que critica Marx. La antropología de Marx interpreta al hombre como el conjunto de las relaciones sociales frente a la teoría del ser humano como un abstractum que habita en el interior de los individuos. La caracterización del hombre como el conjunto de las relaciones sociales podemos interpretarla como el conjunto de prácticas que constituyen al hombre en el espacio de la sociedad, que es el lugar en el que se encuentra inserto el hombre. El hom­bre concreto y real que considera la antropología de Marx es el ciu­ dadano como miembro de la sociedad y dotado de una serie de derechos que puede ejercer libremente en el espacio público. La humanidad no es una generalidad abstracta de la que participan los individuos, sino una realidad social concreta que posibilita que el individuo pueda realizarse libremente como individuo concreto en el espacio público. A eso es a lo que Marx llama comunismo, en cuyo seno el hombre vive libremente y sin aliena­ción. El comunismo es el suelo en el que vive el individuo y el

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que posi­bilita el desarrollo de la humanidad en su plena integridad. El humanismo real de Marx es un humanismo histórico. El hombre como individuo y la humanidad como la comunidad de los humanos se realiza en la historia a través de la praxis. La praxis es el tipo de actividad humana a través de cuyo ejercicio se va formando el hombre, que en el caso de Marx podemos interpretar como un sistema de prácticas frente a la teoría hegeliana de las formas de conciencia. El hombre va configurando un conjunto de prácticas sen­ sibles, de pensamiento, técnicas, políticas etc, que le van formando en la historia. Podemos interpretar la antropología de Marx a partir de los distintos conjuntos de prácticas o “formas de acción” a través de los que se va formando el individuo en su identidad histórica. Este planteamiento puede analizarse a partir de Fichte y los Jóvenes hegelianos, que propu­ sieron una filosofía de la acción como el tipo de filosofía paradigmática frente a la filosofía de la conciencia de Hegel. La cuestión está en cómo concretar esa filosofía de la acción La mejor forma de concretar la filosofía de la acción en el caso de la filosofía de Marx es a través del cocepto de mediación, tomado de Hegel. No se dan sujeto y objeto en estado puro, sino siempre mediados el uno por el otro. Y la mediación se cumple en la sociedad, que es el ámbito pro­piamente humano; el ámbito de las mediaciones. El resultado de la media­ción es un conjunto de prácticas que se van acumulando en la socie­ dad y formando el suelo común de la misma; suelo común sobre el que se asientan los individuos, que desde el momento mismo de su nacimiento ya no se enfrentan a una naturaleza desnuda, sino a una naturaleza re­ vestida por el manto humano de las instituciones, entre las que destaca la institución del lenguaje, que recubre a la naturaleza con interpretaciones como dicen unos o con formas simbólicas como dicen otros, o con for­ mas de vida como dice Marx. Tenemos, pues, que las formas de vida son un referente fundamental a la hora de elaborar una antropología real, tal como la denomina Marx. Las distintas formas de vida están configuradas por el conjunto de relaciones sociales que constituyen a los individuos; y están configurando la sociedad, que como dice Marx en Los Manusritos, es la acabada unidad esencial del hombre con la naturaleza, el naturalismo realizado del hombre y el humanismo realizado de la naturaleza. La peculiaridad del pensamiento de Marx es que considera que la más desarrollada de las formas de sociedad, que es la sociedad burguesa, es

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una sociedad en la que el hombre se encuentra alienado; y la propuesta de Marx es la de una nueva forma de sociedad, que él califica como sociedad humana o humanidad socializada. Esta forma de sociedad aún no ha sido constituida en la tierra, y esa es la tarea que él asigna a lo que llama comu­ nismo. Y dado que dicha forma de sociedad aún no ha sido constituida en la tierra, una de las tareas de la filosofía es precisamente la de anticiparla en el pensamiento. Y por eso él entiende la filosofía como una filosofía de la revolución y no como una filosofía de la interpretación. A esto es a lo que se refiere en definitiva la tesis 11 sobre Feuerbach, que es una de las frases de Marx que se han hecho más famosas: “Los filó­sofos no han hecho sino interpretar el mundo y de lo que se trata es de transformarlo”. Es decir, que él propone una filosofía entendida como anticipación y no como recuerdo (anámnesis), que es como se había entendido la filosofía desde Platón, como sigue entendíendose en Hegel y culmina de entenderse en Heidegger, que hace de la rememoración y repetición una de las cat­ egorias claves de su filosofía. La contraposición que Marx establece en la tesis 11 entre contem­ plación y transformación la podemos entender como la contraposición de un saber orientado hacia el pasado (recuerdo); y un saber orientado hacia el futuro (anticipación). Esta tesis filosófica de Marx tenemos que leerla con el trasfondo del Prólogo que Hegel pone a sus lecciones sobre Filo­ sofía del Derecho, en el que se sirve de la metáfora del buho de Minerva aplicada a la filosofía para decirnos que ésta llega siempre tarde; cuando una forma de mundo ya ha sido constituida. Y por lo tanto llega para interpretar esa forma de mundo; y no para colaborar en su constitución. Esta contraposición entre Hegel y Marx repercute también en la con­ cepción que uno y otro tienen acerca de la historia. Hegel, como puede verse al final de la Fenomenología o en sus Lecciones sobre la historia universal, la interpreta como recuerdo; mientras que Marx la interpreta como una ciencia que además de explicarnos la génesis de la realidad, nos proporciona el conocimiento necesario para transformar esa realidad y colaborar a que acceda la nueva forma de sociedad, en la que el hombre será realmente libre y estará liberado de todas sus alienaciones. Esta inter­ pretación marxiana de la historia entra en conexión con la teoría política y nos obliga al replanteamiento de las relaciones entre historia y política; o entre filosofía y política. Y es dentro de esas relaciones donde cabe encajar las dos formas de interpretar la historia por parte del marxismo:

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la interpretación vulgar de la historia y la interpretación científica de la misma. La interpretación científica de la misma es aquella que reconoce que la columna vertebral de la historia es la “economía política”; y es hacia ella hacia donde el historiador debe orientar su atención, y esto no debe hacerlo de forma vulgar, sino científicamente. Dentro de la inter­ pretación científica de la historia nos encontramos con la “sociedad civil” como el hogar de los individuos, en el que están sinte­tizadas en “relacio­ nes sociales” la interacción del hombre (praxis) con la naturaleza y de los hombres entre sí. Pero el hombre no solamente es un miembro aislado (egoista) de la sociedad civil; sino un ciudadano confi­gurado como sujeto de derechos. Y la preocupación de Marx va ser encon­trar el elemento de mediación que pueda superar la escisión que dentro de la sociedad civil como sociedad burguesa se da entre el burgués (individuo egoista) y el ciudadano (sujeto de derechos). Y Marx va a buscar esa mediación en el ámbito de la producción (praxis) entendida en un sentido humano y no meramente económico tal como nos da a entender en el siguiente texto: “Por eso, cuando se habla de producción se está hablando siempre de pro­ ducción de un estadio determinado del desarrollo social, de la producción del individuo en sociedad” 30 . En su búsqueda de una mediación Marx no idealiza la “forma griega de Estado” como hiciera Hegel para hablar de una Sittlichkeit (vida ética) imposible; sino que lo que defiende es que hay que crear un tipo de producción que haga posibles unas relaciones sociales comunitarias y solamente de esa manera tendre­mos un derecho y una política, que no serán alienantes, sino integradores de los individuos en una “comunidad” dentro de la sociedad civil. Porque “toda forma de producción engendra sus propias instituciones jurídicas, su forma de gobierno, etc” 31. El problema que se le plantea al pensamiento de Marx en este punto es el que deriva de lo que dice en la nota catorce de este trabajo: que entre­ la sociedad civil y el Estado “median” las clases sociales. Y a partir de este concepto de “clases sociales” plantea las “relaciones sociales” entre clase en términos de “lucha”, lo que sería un planteamiento hobbesiano en el que se rompe la relación entre la ética y la política y hace impo­

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sible la construcción de una “comunidad” entre todos los individuos de la “sociedad civil”. Quizá la solución estuviera por el camino de la fi­ losofía práctica aristotélica que busca, sobre bases racionales, la unidad de una vida buena individual y del mejor orden político-social. No hay que olvidar que Marx en estos años de 1857-58 está leyendo la Política de Aristóteles, cuyos apuntes se conservan en unos cuadernillos. Cerramos aquí nuestro trabajo dejando abierta la cuestión de si además de una utopía de una sociedad sin clases Marx apuntó también en sus análisis del presente caminos que luego han quedado completamente olvidados en las interpretaciones que de su pensamiento se han hecho. Cirilo Flórez Miguel

(Universidad de Salamanca)

NOTA SOBRE A CATEGORIA bürgerliche Gesellschaft EM KARL MARX 1.  Crítica sem contemplações do existente Logo em 1843, após o encerramento compulsivo da Rheinische Zei­ tung e do profundo reexame a que o incidente deu aso, numa relevante carta a Arnold Ruge – que viria a ser publicada, no ano seguinte, nos Deutsch-französische Jahrbücher –, Marx lança ao papel um conjunto de sugestivas orientações, que jamais deixaram de nortear, de então em diante, o seu procedimento teórico e prático. Não pretendo com esta observação rápida afirmar que é o germe, pré-figurado e «contracto», de todo um ideário futuro que aqui assoma (até porque, entre muitos outros motivos fundamentais, o papel estruturante da economia ainda aí não transparece com clareza). No entanto, esta peça epistolar representa seguramente – desde logo, sob as roupagens de um alargamento crítico (anunciado) do «princípio humanista» (humanistisches Prinzip) a todas as esferas do acontecer social­ – o testemunho nítido de uma germinação em curso. A aglutinadora «palavra de ordem» que neste escrito se desenha é cortante no seu desafio, ambiciosa no seu propósito e exigente na sua concretização. Não se contenta com pouco, não se afeiçoa ao simples; nada menos do que: «die rücksichtslose Kritik alles Bestehenden» – «a crítica sem contemplações de tudo o que subsiste». Não se trata, porém, de uma crítica nem desesperadamente demolidora (com ressonâncias «nihilistas» de terraplanagem absoluta das muitas maldades da existência), nem hipotecadamente tributária de juvenis aces­sos inflamados de verbalismo solucionante: ela visa, sim, delimitar, firmar e perspectivar um horizonte de pesquisa e de trabalho a desenvolver.

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Este horizonte não pode, deste modo, por sua vez confundir-se nem com uma artificiosa «construção do futuro» (Construktion der Zukunft), nem com um alinhamento moralizante de normas e máximas de um «de­ ver-ser» (Sollen) transcendentalizado, nem com um desiderato escato­ lógico de edificação para a eternidade. Pelo contrário, «o aprontar de algo de acabado para todos os tempos» (das fertig werden für alle Zeiten) é mesmo objecto de deliberada renúncia e de expressa reprovação. Neste movimento se enquadra a (por vezes, não bem entendida) censura de que é alvo o «comunismo realmente existente» à época (der wirkliche existierende Communismus) – e Marx menciona, designada­mente: Etienne Cabet, Théodore Dézamy e Wilhelm Weitling –, o qual, enfermando (no todo, ou em parte, e segundo matuzes vários) dos vícios e ilusões apontados, acaba por não conseguir transcender o estatuto de «abstracção dogmática» (dogmatische Abstraktion) 1, pesem o que pesa­rem a bondade ou a nobreza de intenções que o animam ou de que se revista. O caminho teorético e prático – a revolucionariamente percorrer, no âmbito e no prosseguimento de uma estreita cooperação (ainda a orga­ nizar) entre os protagonistas sociais peculiares do pensamento e da acção – tem, na verdade, que ser outro. Com vista a transformar materialmente – revulsão perante as injus­ tiças, visionarismo e anseio, mesmo que partilhados, não bastam. É pre­ ciso também, como e para enformação do acto emancipatório, conhecer com rigor – não tanto, ou não apenas, as «metas», os objectivos, que se pretendem finalmente alcançar, mas, sobretudo, a estrutura radical que rege e comanda o que refiguração reclama, bem como os meios de diversa natureza a congregar, e pôr em movimento, para o atingir. Neste sentido, seja-me permitido adiantar, em como tese e afirmação reitora da presente fala, o sublinhado de uma articulação fundamental: o programa comunista de Karl Marx inscreve-se, desde logo, na história do século XIX, como uma decidida intervenção forte – ideológica, política, social e economicamente consistente – de crítica e de superação da so­ ciedade burguesa. 1 Para todos estes desenvolvimentos, cf. Karl MARX, Brief an Arnold Ruge, Septem­ ber 1843; Marx-Engels Gesamtausgabe, ed. Günter Heyden e Anatoli Jegorow (dora­vante: MEGA+), Berlin, Dietz Verlag, 1975, vol. III/1, p. 55. 2 «A criação da sociedade burguesa pertence, de resto, ao mundo moderno, o qual

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2.  Um produto Um primeiro aspecto que gostaria de pôr em destaque – contrariando alguma tendência, a espaços observada, para uma abordagem porventura menos dinâmica destas matérias (com a correlativa «naturalização» da «sociedade civil» em abstracto) – é o seguinte: De um ponto de vista histórico e material, a «bürgerliche Gesells­ chaft» – na sua realidade e no(s) conceito(s) que a intenta(m) reflectir e unificadamente (re)presentar –, antes de «facto» ou datidade que a uma qualquer atenção indagante se oferece, constitui ela própria algo de «feito», um produto, um resultado; tem uma génese, e não é dela indepen­ dente, no que se refere, muito em especial, à determinação efectiva do seu teor e da sua lógica de desenvolvimento. Hegel descrevia-a como uma «criação» (Schöpfung) do mundo mo­ derno, que, nos termos e de acordo com os supostos ontológicos da sua doutrinação geral, fazia assim justiça ao desdobramento da integralidade das determinações da Ideia 2. Por seu turno, Marx – em parte, na esteira de Hegel (e até da filosofia alemã clássica), quanto à localização temporal e ao esboço global dos seus contornos, mas indo muito além do mestre, no que toca ao aprofun­ da­mento e desmontagem das suas estruturas e à compreensão (dialectica­ mente contraditória) da sua dinâmica – pensava-a como correspondendo a uma nova concreção económica e social, cujo «prelúdio» (Vorspiel) de transformações começa a verificar-se, de maneira muito assimétrica no tempo e no espaço, desde os finais de quatrocentos. Segundo um enunciado constante de O Capital, e que sintetiza argumentações mais pormenorizadas aí igualmente patentes: «O prelúdio somente faz justiça a todas as determinações da Ideia.» – «Die Schöpfung der bürgerlichen Gesellschaft gehört übrigens der modernen Welt an, welche allen Bestimmungen der Idee erst ihr Recht widerfahren läßt.», Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, oder Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse, § 182, Zusatz; Theorie Werkausgabe, red. Eva Moldenhauer e Karl M. Michel (doravante: TW), Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1970, vol. 7, p. 339. A conhecida crítica de Marx incidirá, a este propósito, sobre a inversão especulativa de Hegel, que faz depender da Ideia aquilo que, pelo contrário, constitui a sua base, e que verdadeiramente desempenha o papel de «impulsionador» (das Treibende). Cf. MARX, Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie; MEGA+, vol. I/2, pp. 8-10. 3 «Das Vorspiel der Umwälzung, welche die Grundlage der kapitalistischen Produktionsweise schuf, ereignet sich im letzten Dritteil des 15. und den ersten Dezennien des

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do revolucionamento [Umwälzung] que criou a base do modo capitalista de produção aconteceu no último terço do século XV e nos primeiros decénios do século XVI.» 3. A designação bürgerliche Gesellschaft dificilmente suporta uma imediata tradução linear. Ela encerra – a um tempo, na sua verdade his­tórica e de conteúdo – uma efectiva polissemia, que, em determinados contextos de intenção significante, não é fácil de discernir com clareza demarcatória nos estratos semânticos que associadamente integra. Com efeito, a bürgerliche Gesellschaft é, na unidade de um mesmo movimento, «sociedade civil» (em que começam paulatinamente a emer­ gir, e a ganhar estação, rudimentos e vectores tendenciais de uma cida­ dania política em evolução afirmativa) e «sociedade burguesa» (onde é a determinação económica e social de um estatuto dado que engrossa em importância decisiva, até para a caracterização abarcante de um modelo «idealmente» extensível e hegemonizador). Apenas dois breves e indicativos recordatórios, sem qualquer preo­ cupação de exaustividade ou de periodização formal, quanto a momentos relevantes de balizagem no percurso de formação destes conceitos que aca­bam por se entrelaçar e convergir na noção de bürgerliche Ge­sellschaft. Em 1583, Jean Bodin, na sua República, definia o «cidadão» (citoyen) como «o súbdito franco [ou livre] dependente da soberania de outrem» (le franc sujet tenant de la souveraineté d’autrui), enquanto o «burguês» (bourgeois) era o detentor de alguma «prerrogativa» ou «direito particular» (prérogative, droit particulier) associado à residência num «burgo» ou à sua condição de «citadino» 4. Para Jean-Jacques Rousseau, com o pacto social e a instituição de um corpo moral colectivo – a «cidade» (Cité), a «república» ou grémio polí­tico –, passa a haver lugar a uma verdadeira problematização cada vez mais «autónoma» da «cidadania», que transcende o estatuto meramente 16. Jahrhunderts.», MARX, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie, I, VII, 24, 2; Marx-Engels Werke, ed. IML (doravante: MEW), Berlin, Dietz Verlag, 1977+, vol. 23, pp. 745-746. 4 Cf. Jean BODIN, Les Six Livres de la République, I, 6; ed. Gérard Mairet, Paris, Le Livre de Poche, 1993, pp. 92 e 95. 5 Cf. Jean-Jacques ROUSSEAU, Du contract social, I, 6; Oeuvres Complètes, ed. Bernard Gagnebin e Marcel Raymond, Paris, Gallimard, 1964, vol. III, pp. 360-362. Mesmo sem remontarmos a toda a reflexão da Antiguidade em torno da politeia (cf.,

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«natural» do «homem», sem por esse facto o haver de conduzir, sem mais, à exclusiva privacidade interesseira do «burguês» (bourgeois), contra a qual, aliás, se insurge e não deixa de pôr de sobreaviso 5. Os termos conhecem, por conseguinte, flutuações e inflexões de sentido, fáceis de imaginar, consoante as situações e fases de desenvol­vimento em que procuram encontrar operacionalização útil em ordena­mentos jurídico-políticos de recorte muito diferenciado. De qualquer modo, e aqui reside o fundamental, é um mesmo processo de gestação que ao longo deste amplo e complexo curso pulsa. É neste quadro de lábil rearrumação de designações (espelhando, como referimos, as próprias alterações que no acontecer social se vão verificando) que se compreende que, tendo Marx esquissado um âmbito mais alargado para o processo de génese das realidades que lhe estão na origem, acabe por fazer remontar a épocas mais tardias a explícita introdução disseminada da categoria «bürgerliche Gesellschaft», com a sua mescla de significações que enlaçam «sociedade civil» e «sociedade burguesa». Como, em A ideologia alemã, se faz notar: «A expressão sociedade civil [burguesa, bürgerliche Gesellschaft] implantou-se no século XVIII, quando as relações de propriedade [Eigentumsverhältnisse] se haviam desembaraçado já da comunidade [Gemeinwesen] antiga e medieval. A sociedade civil como tal desenvolve-se apenas com a burguesia.» 6. por exemplo, ARISTÓTELES, Política, III, 1-3, 1274 b 32 – 1278 b 5), é manifesto que o tema não arranca liminarmente de Rousseau. Veja-se, por exemplo, Robert DERATHÉ, Jean-Jacques Rousseau et la politique de son temps, Paris, Jean Vrin, 1970+, pp. 151-171, e para informadas indicações acerca da história dos conceitos: Manfred RIEDEL, «Bürger, Staatsbürger, Bürgertum», Geschi­ chtliche Grundbegriffe. Historisches Lexicon zur politisch-sozialen Sprache in Deuts­ chland, ed. Otto Brunner, Werner Conze e Reinhart Koselleck, Stuttgart, Klett-Cotta, 19924, vol. I, pp. 672-725. 6 «Das Wort bürgerliche Gesellschaft kam auf im achtzehnten Jahrhundert, als die Eigentumsverhältnisse bereits aus dem antiken und mittelalterlichen Gemeinwesen sich herausgearbeitet hatten. Die bürgerliche Gesellschaft als solche entwickelt sich erst mit der Bourgeoisie.», MARX-ENGELS, Die deutsche Ideologie. Kritik der neuesten deuts­chen Philosophie in ihren Repräsentanten Feuerbach, B. Bauer und Stirner, und des deutschen Sozialismus in seinen verschiedenen Propheten, I; MEW, vol. 3, p. 36. 7 Cf. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 184; TW, vol. 7, p. 340. 8 «Wie die bürgerliche Gesellschaft der Kampfplatz des individuellen Privatinteresses aller gegen alle ist, so hat hier der Konflikt desselben gegen die gemeinschaftlichen besonderen Angelegenheiten, und dieser zusammen mit jenem gegen die höheren Gesicht-

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3. Um feixe entrelaçado de cisões Esta representação – a um tempo unitária e aditiva – da sociedade civil burguesa é, sob um certo ângulo, enganosa, na medida em que mascara e esconde, só na aparência: paradoxalmente, um cadinho de cavadas e labirínticas divisões, das quais, no fundo, se tece e entretece. Na verdade, ela reflecte, promove e respalda ideologicamente (por recurso a justificações várias) a constitutiva «cisão» (Entzweiung) dos distintos interesses privados em luta, no marco das energias desenfreadas por um processo (gradualizado ou pontualmente violento) de rompimento dos vínculos tradicionais das distintas organizações de extracção feudal, cujo membramento estabilizado e vagaroso ritmo de marcha sustentavam. Para recordar terminologia e caracterizações hegelianas deste fenó­ meno, «é o sistema da eticidade perdida nos seus extremos» (es ist das System der in ihre Extreme verlorenen Sittlichkeit), em que a «parti­ cularidade» (Besonderheit), ou peculiaridade de cada um, lança mão do «direito de se desenvolver e alongar omnilateralmente» (das Recht, sich nach allen Seiten zu entwickeln und ergehen), entrando em conflito (ora surdo, ora aberto) com a «universalidade» (Allgemeinheit), à qual cabe, principialmente, «o direito de se demonstrar quer como fundamento e forma necessária da particularidade, quer como poder sobre ela e sua finalidade última» (das Recht, sich als Grund und notwendige Form der Besonderheit sowie als die Macht über sie und ihren letzten Zweck zu erweisen) 7. Como Hegel havia advertido também, numa formulação percuciente que retrata bem este emaranhado de encaixadas conflitualidades: «Como a sociedade civil [burguesa] é o campo de batalha [Kampfplatz] do interesse privado individual de todos contra todos — o conflito deles com os assuntos [Angelegenheiten] particulares comunitários, e o [conflito] des­tes, junto com aquele, com os pontos de vista e as disposições [Anor­dnungen] superiores do Estado, têm aqui a sua sede [Sitz].» 8. spunkte und Anordnungen des Staats, seinen Sitz.», HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 289; TW, vol. 7, p. 458. 9 Cf. Thomas HOBBES, Elementarum philosophiae sectio tertia: De cive, I, 12; Opera­ philosophica, ed. William Molesworth, reimpr. Aalen, Scientia Verlag, 1961, vol. II, p. 166. Com esta expressão pretendia-se caracterizar o estado permanente e generalizado de beligerância entre os homens numa situação «de Natureza», isto é, antes da conclusão de

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Nos chamados Manuscritos de 1843, comentando, ainda que critica­ mente, este parágrafo hegeliano da Filosofia do Direito, Marx não dei­xará, no entanto, de considerar como «notável» (merkwürdig) a eviden­ciação agudamente desmistificadora, e certeira, de dois dos princi­pais traços estrutrantes que nesta abordagem analítica vêm à luz. Por um lado, releva a justa definição actualizada que nessas passagens transparece do hobbesiano bellum omnium contra omnes 9, sob o reaque­ cido império do «egoísmo privado» (Privategoismus), que, para além da sua (esperada) dimensão inter-individual, se alarga e complica, inclusi­ vamente, com uma expressão inter-grupal, corporativa (ou de classe). Por outro lado, sublinha a nítida percepção que aí se detecta da fixação abstracta da «oposição» (Gegensatz) entre indivíduo e universalidade, isto é, entre o «burguês» (conduzido pelo rasteiro interesse privado) e o «cidadão» (de um Estado, ou comunidade racional de homens livres) 10. A questão central que aqui se vê, assim, ganhar crescentes e acrescidos contornos de problema não resolvido (ou defeituosamente «dissolvido») é a da qualidade real do que, devendo aparecer como colectividade, não passa afinal de uma amálgama atomizada de indivíduos (em concorrência e em conflito, mais ou menos regrados), a espaços, conjunturalmente ligados por interesses de corpo particular (no limite: de classe) – em espe­cial, um pacto de «sociedade». Uma vez constituída a Commonwealth, quem quer que não seja (every one besides) o «soberano» (Soveraigne) é dito «súbdito» (Subject). Cf. HOBBES, Leviathan, or the Matter, Form & Power of a Common-Wealth Ecclesiasticall and Civill, II, 17; ed. Crawford B. Macpherson, Harmondsworth, Penguin Books, 198010, p. 228. Para completar o esquisso, lembremos que, ainda segundo Hobbes, quando compa­ ramos «cidadãos entre si» (citizens amongst themselves), pode parecer que «o homem é para o homem uma espécie de deus» (man to man is a kind of God); mas, quando a comparação envolve «cidades» (cities), o homem é para o homem «um rematado lobo» (na arrant wolf). Cf. HOBBES, Philosophical Rudiments Concerning Government and Society, To the Right Honourable William Earl of Devonshire; The English Works, ed. William Molesworth, reimpr. London, Routledge/Thoemmes Press, 1994+, vol. II, p. II. 10 Cf. MARX, Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie; MEGA+, vol. I/2, p. 45. 11 «des vom Menschen und vom Gemeinwesen getrennten Menschen», MARX, Zur Judenfrage, I; MEGA+, vol. I/2, p. 157. 12 «Sie läßt jeden Menschen im andern Menschen nicht die Verwirklichung, sondern vielmehr die Schranke seiner Freiheit finden.», MARX, Zur Judenfragen, I; MEGA+, vol. I/2, p. 158. 13 «In der bürgerlichen Gesellschaft ist jeder für sich Zweck, alles andere ist ihm

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quando se trata de mais eficazmente assegurar a subjugação e exploração de outros —, sem que um autêntico desabrochar de efectiva comunidade humana tenha lugar, ou sequer no horizonte se vislumbre. Em Hegel, é este registo que em próprio merece o nome de «Estado» (Staat), o qual, em caso algum, deve sumária e erroneamente ver-se iden­ tificado com o «governo» ou a «administração». Em Marx, é a figura tutelar­de uma genuína associação de produtores livres que, em comum, edificam e prosseguem, com substância e tradução concretas, enriquecidos desígnios de emancipação democraticamente plena. Para estas elevadas exigências (que o estádio de desenvolvimento global já autoriza), não está reconhecidamente a sociedade civil burguesa, por impossibilidade estrutural, à altura de fornecer as respostas adequadas. Daí a instante necessidade do seu desmascaramento e dos combates pela sua ultrapassagem em direcção a novas formas de organizar o viver colectivo humano e humanizante dos seres humanos. 4.  Grandezas e misérias desta «liberdade individual» em concreto No plano político – e isso corresponde, sem dúvida, a um avanço histórico relativamente à medieva condição herdada do «vassalo» ou do «súbdito» –, o homem firma-se e afirma-se como citoyen (celestializado em distintas declarações generosas), mas entendido sempre na terrena­ lidade do seu estatuto e da sua vida real, sob a figura (modelar ou para­ digmática, para os dominantes: inultrapassável e terminal) do bourgeois, «do homem apartado do homem e da comunidade [Gemeinwesen]»11. A (tão cantada, e decantada) «liberdade individual» (individuelle Frei­ heit), com a sua adoçada «aplicação útil» (Nutzanwendung), em subordinação serenamente inquestionada a critérios e ditames egoístas privados, formam a «base» (Grundlage) de esta sociedade civil – não porque ela seja um alfobre e o garante da «cidadania» (um valor a trans­formadamente preservar), mas porque ela é entranhada e irremedia­vel­mente «burguesa» (com um prazo de validade em vias de expirar, mas a que com obstinação renitente teima em agarrar-se). Nela se engendra, e replica, assim, por razões de estrutura e em connichts.», HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 182; TW, vol. 7, p. 339. 14 Para a caracterização hegeliana do sistema comandado pela «finalidade inte­resseira» (selbstsüchtige Zweck) como «Estado exterior» (äußerer Staat): HEGEL, Grun­dlinien der

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comitância, para a maioria dos seus membros, um estádio degradado, e em degradação, de humanidade – impedida de densificar e de estender em completude a sua própria socialidade. Como, em Para a questão judaica, se observa, por simples inspecção do que ao redor se passa: «Ela faz cada homem descobrir no outro homem, não a realização [Verwirklichung], mas, antes, o estorvo [ou a barreira, Schranke], da sua liberdade.» 12. E Hegel, uma vez mais, não por numinosos dotes de profecia inspi­ rada, mas com lucidez de visão assinalável, considerando a época em que escreveu, já o havia notado também: «Na sociedade burguesa, cada um é para si [mesmo] finalidade [Zweck], todo o outro é para ele nada.» 13. Ora, acontece que tudo isto ocorre num contorno de civilização que, quase como um paradoxo, se encontra diariamente a projectar do seu seio novas e enriquecidas possibilidades para uma verdadeira e alargada socialização – bem diferente, é certo, do teor determinado do curso que as coisas estão a levar, mas, nem por isso, só realizável a partir de pre­ missas materiais (transformadas e reorientadas) cujo surgimento apenas este quadro, à sua maneira, permite. Como toda a contradição histórica real, este momento (em si mesmo deveniente) corresponde a um feixe de situações e de processos que, do mesmo passo, reclamam denúncia e crítica, mas a partir e do interior de um movimento social de massas, susceptível de, praticamente, os fazer inflectir e conduzir a outros desenlaces. Sob determinado ângulo que não deve ser olvidado, estes são transes (trânsitos) típicos e decisivos em que a orientação da feitura humana da história se joga. Como, nos Manuscritos de 1857-1858, Marx refere: «Só no século XVIII, na “sociedade civil [burguesa]”, as diversas formas da conexão [Zusammenhang] social se contrapõem ao singular, como mero meio para Philosophie des Rechts, § 183; TW, vol. 7, p. 340. 15 «Erst in dem 18 t Jhh., in der “bürgerlichen Gesellschaft” treten die verschiednen Formen des gesellschaftlichen Zusammenhangs dem Einzelnen als blosses Mittel für seine Privatzwecke entgegen, als äusserliche Nothwendigkeit. Aber die Epoche, die diesen Standpunkt erzeugt, den des vereinzelten Einzelnen, ist grade die der bisher entwickelsten gesellschaftlichen (allgemeinen von diesem Standpunkt aus) Verhältnisse.», MARX, Ökonomische Manuskripte 1857/58, Einleitung zu den «Grundrissen der Kritik der politischen Ökonomie», I, 1; MEGA+, vol. II/1.1, p. 22. 16 Cf. MARX, Ökonomische Manuskripte 1857/58, Grundrisse der Kritik der

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as suas finalidades privadas, como necessidade exterior 14. Mas a época que engendra este ponto de vista, o do singular isolado [vereinzeltes Einzeln], é precisamente a [época] das relações sociais até aqui mais desenvolvidas (universais, deste ponto de vista).» 15. Encontramo-nos, portanto, a braços com uma bürgerliche Gesellschaft que se imagina «pacificada» no político céu estrelado do liberalismo doutrinal, mas que, no entanto, permanece realmente afundada em, e fendida por, contradições e «oposições imanentes» (immanente Gegen­ sätze) 16 – que, não obstante sofisticadas manobras ideológicas de diversão ou desbocados pronunciamentos de que os exclusivos culpados pela sua indigência são os próprios indigentes 17, ela não logra nem tem como tal interesse em debelar e superar. Para retomar palavras que retratam uma situação que ao perspicaz olhar de Hegel não escapou: esta sociedade burguesa, com todo o seu «excesso de riqueza» (Übermaß des Reichtums), não chega a impedir a acumulação, no outro polo, de um correlativo «excesso de pobreza» (Übermaß der Armut) e de exclusões múltiplas 18. Marx, por sua vez, veio a formulá-lo igualmente, num outro registo: «A sociedade burguesa moderna, saída do declínio [Untergang] da socie­ dade feudal, não superou [aufheben] as oposições de classes. Ela apenas colocou novas classes, novas condições da opressão, novas figuras da politischen Ökonomie, I, III, 1, 1: MEGA+, vol. II/1.1, p. 162. 17 Cf., por exemplo, a alusão crítica de Hegel a este altaneiro argumentário, típico de certa apologética burguesa: HEGEL, «Philosophie des Rechts. Nach der Vorle­sungs­ nachschrift von H. G. Hotho 1822/23», § 237; Vorlesungen über Rechtsphilosophie 18181831, ed. Karl-Heinz Ilting, Stuttgart – Bad Cannstatt, Frommann Verlag – Günther Holzboog, 1974, vol. III, p. 698. 18 Cf. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 245; TW, vol. 7, p. 390. 19 «Die aus dem Untergang der feudalen Gesellschaft hervorgegangene moderne bürgerliche Gesellschaft hat die Klassengegensätze nicht aufgehoben. Sie hat nur neue Klassen, neue Bedingungen der Unterdrückung, neue Gestaltungen des Kampfes an die Stelle der alten gesetzt.», MARX-ENGELS, Manifest der Kommunistischen Partei, I; MEW, vol. 4, p. 463. 20 Cf. MARX, Zur Kritik der Politischen Ökonomie, Vorwort; MEGA+, vol. II/2, p. 100. 21 «die Anatomie der bürgerlichen Gesellschaft in der politischen Ökonomie zu suchen sei», MARX, Zur Kritik der Politischen Ökonomie, Vorwort; MEGA+, vol. II/2, p. 100. 22 Cf. MARX-ENGELS, Die deutsche Ideologie, I; MEW, vol. 3, p. 36.

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luta, no lugar das antigas.» 19. Enfim, grandezas e misérias de uma etapa histórica, cuja justificada positividade não pode, todavia, converter-se em abençoada caução, ou antecipado asseguramento, da sua irremediável perenidade, imunizada contra todo o revolucionamento. 5. Forma e conteúdo histórico da categoria Enquanto conceito ou categoria (detentores de uma moldura própria), a «sociedade civil» no seu emprego marxiano – recuperando embora o seu sentido e uso genéricos na Inglaterra e na França do século XVIII – adquire traços constitutivos de estruturação concepcional que importa não perder de vista, nem diluir simplesmente no viso fenoménico adjectivado que patenteia in concreto na sua manifestação histórica determinada. Nesta conformidade, a «sociedade civil» assinala uma forma plástica e global que recolhe e apresenta unificadamente (zusammenfassen) uma «totalidade» (Gesamtheit) básica de «relações materiais do viver» (ma­terielle Lebensverhältnisse), em que se inscrevem, e com os quais dia­lecticamente interactuam, outras dimensões sociais de organização – tra­dicionalmente consideradas (em regime de idealismo histórico ou analítico) como «autónomas», isoladas ou primariamente determi­nantes 20. Se «a anatomia da sociedade civil há-de ser buscada na economia política» 21, é fundamentalmente porque aquela estrutura de totalização, não é um mero constructo soprepairante para efeitos de repertório classi­ ficativo; ela corresponde, sim, a um entramado dinâmico de rela­ções, a uma forma de circulação e intercâmbio (Verkehrsform), em que a vida, a cada momento determinado, desenvolve arquitectonicamente as suas «condições reais» (wirkliche Verhältnisse) de manifestação. «Die bürgerliche Gesellschaft umfaßt den gesamten materiellen Verkehr der Individuen innerhalb einer bestimmten Entwicklungsstufe der Produktivkräfte.», MARX-ENGELS, Die deutsche Ideologie, I; MEW, vol. 3, p. 36. 24 A abstracção histórica (instrumento teorético de inteligibilidade real, e não ideato retórico ou mistificatório) é aquela que «apenas» (nur) pode ser constituída (construída) «sobre a base de um desenvolvimento económico determinado da sociedade» – «auf der Grundlage einer bestimmten ökonomischen Entwicklung der Gesellschaft»; cf. MARX, Brief an Friedrich Engels, 2. April 1858; MEW, vol. 29, p. 315. 23

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Perfila-se, assim, o sentido radical, e a ajustada medida, em que a «bürgerliche Gesellschaft» pode transparecer e correctamente funcionar como «o verdadeiro lar e palco de toda a história» (der wahre Herd und Schauplatz aller Geschichte) 22. Desde que houve lugar à formação de uma «sociedade civil», é ela a instância verdadeira em que real e quoti­dianamente a vida concreta dos homens se desenrola – mesmo se e quando a pretendem transferir restritivamente para um éter «político» de imaginária «igualização» puramente abstracta. Como categoria global, a bürgerliche Gesellschaft, na sua acepção marxiana, é, pois, a forma material da convivência – mas é-o sempre também de um modo historicamente determinado, indissociável realmente dos conteúdos que apresenta. Ou seja, desde logo, nos tempos de Marx, a actualidade (e actuo­ sidade) dominante dessa «sociedade civil» dá-se, inapelavelmente, na sua figura «burguesa» – na sua concreção determinada, ela desdobra e ex-põe uma matriz capitalista. No plano teórico da penetração pensante na realidade histórica e social,­este conceito abarca um todo, assimetricamente articulado, de relações efectivas entre os humanos que produzem e reproduzem o seu viver determinado, sob a vigência (sincrónica e diacronicamente reitora) de uma estruturação económica fundamental (mas não exclusiva ou redutoramente económica, o que constituiria indício de um «econo­micismo» que ele não perfilha, nem no qual incorre). É dentro destes parâmetros, e sob os supostos referidos, que Marx pode afirmar, em A ideologia alemã, que «a sociedade civil compreende o comércio [Verkehr] material conjunto dos indivíduos no interior de um estádio determinado de desenvolvimento das forças produtivas.»  23. E esta é a sua significação abstracta, categorial. No entanto, na sua concreção mesma – ou enquanto abstracção deter­ minada 24 –, ela supõe a possibilidade de assunção de uma multi­plicidade 25

p. 97.

Cf. MARX, Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte, I; MEGA+, vol. I/11,

26 MARX, Ökonomische Manuskripte 1857/58, Einleitung zu den «Grundrissen der Kritik der politischen Ökonomie», I, 3; MEGA+, vol. II/1.1, p. 42. 27 «Die kapitalistische Produktion ist nicht nur Produktion von Ware, sie ist wesentlich Produktion von Mehrwert. [...]. Nur der Arbeiter ist produktiv, der Mehrwert für

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de figuras distintas, segundo o modo mesmo de determinação dos ele­ mentos, das relações e das dinâmicas que a integram. Dito de outra maneira: uma vez completada a génese em e por que se constitui, não há uma configuração única da bürgerliche Gesellschaft, mas várias; e entender os traços que a caracterizam em cada época devém uma tarefa decisiva para uma orientação (teórica e prática) consequente na realidade. 6.  O marco capitalista A «sociedade civil» da envolvência que conhece é, para Marx, uma «nova formação de sociedade» (neue Gesellschaftsformation), em que se está cumprindo – com a grande indústria mecanizada e o comércio mun­ dial ingleses, bem como com as diferentes ressonâncias e vicissitudes da «velha» Revolução Francesa (no plano económico, e no âmbito político e ideológico) – «a tarefa do tempo» (die Aufgabe der Zeit): «o desen­ cadeamento e fabricação da sociedade burguesa moderna» (die Entfes­ selung und Herstellung der modernen bürgerlichen Gesellschaft) 25. Na actualidade da circunstância histórica que é a sua, Marx identifica e analisa, com aguda profundidade ainda hoje reconhecida (mesmo por muitos dos que não comungam do seu ideário), o rasgo determinante de uma sociedade civil que se converte em sociedade burguesa: o seu carácter estrutural capitalista. Para recordar uma formulação emblemática, que ocorre nos Grun­ drisse: «O capital é o poder económico, que tudo domina, da sociedade burguesa» (das Capital ist die alles beherrschende ökonomische Macht der bürgerlichen Gesellschaft) 26.

den Kapitalisten produziert oder zur Selbstverwertung des Kapitals dient.», MARX, Das Kapital, I, V, 14; MEW, vol. 23, p. 532. 28 Tenhamos em conta que, de modo aproximado, o horizonte semântico desta classificação não é aqui interior à própria estratificação da burguesia de mediano porte ou dos assalariados de rendimentos consideráveis; ela corresponde ainda a um espaço intermédio (mas económica e socialmente bem determinado) entre a plebe trabalhadora, da cidade ou dos campos, e a nobreza aristocrática, originariamente terratenente.

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Alcançamos aqui um ponto fulcral, e um tabuleiro decisivo, de todo o adentramento marxiano maduro pela problemática social do viver, da bateria de supostos que condicionam e comandam a sua configuração – e, como não será de estranhar, também pela crítica do seu conspecto vigente e pelo projecto de uma sua superação. Toda a estruturação e o funcionamento da sociedade civil burguesa encontram-se basilar e intrinsecamente determinados, não por objectivos difusos de produção sem mais, mas, em última (ou primordial) instância, pela essencial necessidade geratriz da produção de mais-valia cometida, por razão constituinte, ao império e à lógica do capitalismo. A produção e a reprodução do viver, o seu próprio equacionamento valorativo, fazem-se e desdobram-se sob um imperativo categórico, que, inclusivamente, se torna critério do carácter «produtivo», uno, do tra­ balho: «A produção capitalista não é apenas produção de mercadoria [Ware]; ela é essencialmente produção de mais-valia [Mehrwert]. [...]. Só é produtivo o operário [Arbeiter] que produz mais-valia para o capitalista ou que serve para a autovalorização [Selbstverwertung] do capital.» 27. Este é, por conseguinte, o horizonte fundamental em que cobra sentido, e alcance crítico, a tematização e compreensão marxianas da socie­ dade civil moderna (burguesa). Preparada já desde os Manuscritos de 1843 (num fecundo diálogo com Hegel, que modificadamente não deixará de perdurar ao longo de toda a sua obra) e de A ideologia alemã (em polémica aberta com outras variantes críticas em curso na «esquerda» jovem-hegeliana, que disputa­ vam lideranças, pelo menos, doutrinárias), acaba por encontrar esta compreensão um resumo aclarador, pelos começos dos anos 50, na passagem de uma carta de Engels a Marx, onde é mister, precisamente, comentar a tradução mais adequada para a expressão «bürgerliche Gesellschaft», a propósito da sua utilização em O 18 do Brumário. Engels pronuncia-se aí desfavoravelmente quanto à sua versão inglesa por «Middle Class Society», e propõe que ela seja antes traduzida por «Bourgeois Society» ou, «segundo as circunstâncias» (nach Umstände), 29 «By Bourgeois Society, we understand that phase of social development in which the Bourgeoisie, the Middle Class, the class of industrial and commercial Capitalists, is, socially and politically, the ruling class; which is now the case more or less in all the civilized countries of Europe and America. By the expressions: Bourgeois Society, and: industrial and commercial society, we therefore propose to designate the same stage of social­

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por «commercial and industrial society», aduzindo para tal algumas linhas esquemáticas de justificação. Mau grado a extensão relativa do passo em causa, não será despi­ ciendo reproduzir, nesta ocasião, o texto do que Engels imaginava poder vir a constituir uma nota de rodapé: «Por sociedade burguesa, entendemos aquela fase do desenvolvimento social em que a burguesia, a classe média [Middle Class] 28, a classe dos capitalistas industriais e comerciais, é, social e politicamente, a classe que domina [the ruling class]; o que é agora o caso, mais ou menos, em todos os países civilizados da Europa e da América. Pelas expressões: sociedade burguesa, e: sociedade industrial e comercial, propomo-nos, portanto, designar o mesmo estádio de desenvolvimento social; referindose a pri­meira expressão, no entanto, mais ao facto de a classe média ser a classe que domina, em oposição quer à classe cuja dominação [rule] ela suplan­tou (a nobreza feudal) quer àquelas classes que ela consegue manter sob o seu domínio [dominion] social e político (o proletariado ou classe operária industrial, a população rural, etc.) – enquanto a designação de sociedade comercial e industrial se reporta mais particularmente ao modo de produção e distribuição característico desta fase da história social.» 29. O ponto fundamental a reter é, por conseguinte, o de que a bürgerliche Gesellschaft se refere a um «estádio de desenvolvimento social» (stage of social development), definido, na sua época, por uma dominação política development; the first expression referring, however, more to the fact of the middle class being the ruling class, in opposition either to the class whose rule it superseded (the feudal nobility), or to those classes which it succeeds in keeping under its social and political­ dominion (the proletariate or industrial working class, the rural population pp.) – while the designation of commercial and industrial society more particularly bears upon the mode of production and distribution characteristic of this phase of social history.», Friedrich ENGELS, Brief an Karl Marx, 23. September 1852; MEW, vol. 28, p. 139. 30 Cf., por exemplo, MARX-ENGELS, Manifest der Kommunistischen Partei, I; MEW, vol. 4, pp. 463 e ss. 31 Cf. MARX, Das Kapital, I, VII, 22, 3; MEW, vol. 23, pp. 619-620. 32 Cf. MARX, Das Kapital, I, III, 8, 1; MEW, vol. 23, p. 247. 33 «Wenn das Geld, nach Augier, “mit natürlichen Blutflecken auf einer Backe zur Welt kommt”, so das Kapital von Kopf bis Zeh, aus allen Poren, blut- und schmutztriefend.», MARX, Das Kapital, I, VII, 24, 6; MEW, vol. 23, p. 788. 34 «die jetzige Gesellschaft kein fester Kristall, sondern ein umwandlungsfähiger und beständig im Prozeß der Umwandlung begriffener Organismus ist.», MARX, Das Kapital, Vorwort zur ersten Auflage; MEW, vol. 23, p. 16.

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determinada (a da burguesia capitalista) assente num modo determinado também (capitalista) de empreender socialmente a produção e a circulação das mercadorias. 7.  A tarefa em aberto Numa abordagem e segundo uma perspectivação históricas, sem dúvida, que Marx não esquece – antes põe repetidamente em relevo – toda a aportação do capitalismo para o desenvolvimento da humanidade, em geral, e para a criação de possibilidades enriquecidas no que toca a uma futura materialização mais gratificante (porque refigurada) do seu viver. Mesmo sem recorrer aos Grundrisse ou a O Capital, basta recordar as muitas (e insuspeitas) passagens do Manifesto acerca do «papel sumamente revolucionário» (höchst revolutionäre Rolle) desempenhado pela burguesia no seu processo ascendente, no que diz respeito à «terre­ nalização» da focagem de muitos problemas e ao desenvolvimento maciço das forças produtivas da sociedade 30. Ainda que o contrário só angelicamente fosse expectável, nenhum destes progressos se consumou, porém, sem elevados custos sociais, muito em especial, para os já de si mais desfavorecidos — do «pecado original» (Erbsünde) da «acumulação originária» (ursprüngliche Akkumulation) 31 ao «vampiresco sugamento» (vampyrmäßig Einsaugung) de trabalho vivo pelo capital 32. Daí que Marx não tenha perdido um ensejo de erudição, em sede de conhecimento da literatura económica, para comentar, com sarcasmo cáustico: «se o dinheiro, segundo Augier, “vem ao mundo com manchas naturais de sangue numa bochecha”, o capital, da cabeça aos pés, também [vem] a escorrer sangue e porcaria por todos os poros.» 33. 35 «endlich nicht der Mensch als citoyen, sondern der Mensch als bourgeois für den eigentlichen und wahren Menschen genommen wird.», MARX, Zur Judenfrage, I; MEGA+, vol. I/2, p. 159. 36 «Der wirkliche Mensch ist erst in der Gestalt des egoistischen Individuums, der wahre Mensch erst in der Gestalt des abstrakten citoyen anerkannt.», MARX, Zur Juden­ frage, I; MEGA+, vol. I/2, p. 162. 37 «Es ist ein ebenso frommer wie dummer Wunsch, daß der Tauchwerth sich nicht

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Em qualquer caso, a crítica marxiana da sociedade civil burguesa não reveste, em momento algum, as tonalidades da mera condenação moral ou, pior ainda, moralista. Tem por base e fundamento, sim, uma compreensão funda da dinâ­ mica inscrita na própria contraditoriedade instalada e no leque de pos­si­ bilidades que cada existência adiante de si projecta como terreno prático de transformações a empreender, segundo um alargado e enrique­cido desígnio (genuinamente democrático) de humanidade: «a sociedade hodier­ na», recorda, «não é nenhum cristal rígido, mas um organismo capaz de transformação [umwandlungsfähig] e compreendido constan­temente em processo de transformação.» 34. O que se critica, então, são as múltiplas mistificações «estabiliza­do­ ras» que — soprando de diferentes quadrantes (e, por vezes, imaginando não vir a coincidir nos resultados que favorecem) – pretendem fazer da sociedade civil burguesa o final reencontro com a «natureza das coisas», um estádio derradeiro de insuperável avanço na ordem da qualidade, a expressão última e acabada da emancipação humana. Por isso se castigam os receituários políticos liberalistas, em que, através das mais inflamadas proclamações declaratórias, «finalmente, não é o homem como citoyen, mas o homem como bourgeois, que é tomado pelo homem verdadeiro e propriamente dito» 35, num marco bem deter­ minado de usurpações e de aproveitamentos confusionistas: «O homem real é reconhecido apenas na figura do indivíduo egoísta, o homem ver­ dadeiro [é reconhecido] apenas na figura do citoyen abstracto» 36. Por isso se denunciam, repetidamente e tendo em mira destinatários diversos, as ilusões fantasiosas de um apregoado «socialismo» germano-afrancesado ou franco-germanizante, incapaz de perceber que, conser­ vando o regime capitalista de produção como inalterado sistema básico de referência, «é um desejo tanto mais pio quanto mais estúpido que o valor zum Capital entwickle, oder die den Tauschwerth producierende Arbeit zur Lohnarbeit.», MARX, Ökonomische Manuskripte 1857/58, Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, I, III, 1; MEGA+, vol. II/1.1, p. 172. 38 «ainsi, il y a eu de l’histoire, mais il n’y en a plus», MARX, Misère de la phi­ losophie. Réponse à la philosophie de la misère de M. Proudhon, II, 1, 7; Oeuvres, ed. Maximilien Rubel, Paris, Gallimard, 1965, vol. I, p. 89. 39 «Radikal sein ist die Sache an der Wurzel fassen.», MARX, Zur Kritik der Hegels­ chen Rechtsphilosophie. Einleitung; MEGA +, vol. I/2, p. 177. 40 «Die Struktur der ökonomischen Grundelemente der Gesellschaft bleibt von den Stürmen der politischen Wolkenregion unberührt.», MARX, Das Kapital, I, IV, 12, 4;

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de troca se não desenvolva em capital ou o trabalho que produz valor de troca em trabalho assalariado [Lohnarbeit].» 37. Por isso se desmontam, sem piedade caridosa nem rodeios de pudi­ cícia, os expedientes sofisticados de uma apologética burguesa (afinal, rasteira), que, aspirando à «naturalização» do capitalismo (doravante decretado eximido às vicissitudes dos desenvolvimentos temporais), pretendem retirar, do triunfo das instituições então dominantes sobre os ordenamentos feudais transmitidos, a ilação deslumbrante e tranqui­li­zadora de que «assim, houve história, mas já não há mais»38. Porque «ser radical é agarrar as coisas pela raiz»39, o esforço revo­ lucionário de transformação não pode prescindir de assentar nessas fun­ duras o núcleo determinante da sua estratégia de intervenção, sem perder jamais de vista, na sua flexibilidade táctica (cuja lubrificada agilidade importa exercitar), que, muitas vezes, «a estrutura dos elementos econó­ micos fundamentais [ökonomische Grundelemente] da sociedade perma­ nece incólume às tempestades da região política das nuvens [politische Wolkenregion].» 40. Irrompe, deste modo, renovada, a tarefa histórica de construção que em aberto (nos) fica e suscita. Individual e colectivamente, não deixa ela de vir interpelar a qualidade, o empenho, e a lucidez da nossa interpre­ tação de actores (de agentes), em cada tempo e lugar, da destinação humana, que todos partilhamos, de inscrever o cunho da nossa huma­nidade no corpo deveniente do ser. A nítida consciência programática e operativa desta dialéctica crítico-prática (e não apenas teórico-crítica), a que é responsável mester humano MEW, vol. 23, p. 379. 41 «Die Menschen bauen sich eine neue Welt [...] aus den geschichtlichen Errun­ genschaften ihrer untergehenden Welt. Sie müssen im Lauf ihrer Entwicklung die ma­ teriellen Bedingungen einer neuen Gesellschaft selber erst produzieren, und keine Kraftanstrengung der Gesinnung oder des Willens kann sie von diesem Schicksal befreien.», MARX, Die moralisierende Kritik und die kritisierende Moral; MEW, vol. 4, p. 339. 42 «wir nicht dogmatisch die Welt anticipiren, sondern aus der Kritik der alten Welt die neue finden wollen», MARX, Brief an Arnold Ruge, September 1843; MEGA+, vol. III/1, p. 54. 43 «A história mundial não existiu sempre; a história como história mundial [é] resultado.», MARX, Ökonomische Manuskripte 1857/58, Einleitung zu den «Grundrissen der Kritik der politischen Ökonomie», I, 4; MEGA+, vol. II/1.1, p. 44. Isto é, a realidade (socialmente vivida) de um mundo unitário, abrangendo a terra

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meter ombros, encontra-se profunda e profusamente disseminada pela obra (escrita, dita e em acção consumada) de Marx. Aflora igualmente, amiúde, em passos de mais procurado despertar e mobilização, onde, todavia, se não sucumbe à tentação da prédica só de eloquentes tiradas enfunada. Sustenta-a, de facto, a coerência de um olhar informado e vigilante, que do pasto do saber apenas se não satisfaz: «Os homens edificam para si um mundo novo [...] a partir das con­ quistas [Errungenschaften] históricas do seu mundo que declina. Eles têm, no curso do seu desenvolvimento, que produzir eles próprios primeiro as condições materiais de uma nova sociedade, e nenhum esforço [Kraftans­trengung] dos sentimentos [Gesinnung] ou da vontade os pode livrar desse destino [Schicksal].»41 . Para regressarmos a uma formulação da carta de 1843 de que nesta exposição partimos, voltamos a deparar com propósitos em tudo seme­ lhantes, faltando-lhes, todavia, à altura da sua enunciação, a prova (ou a provação) do percurso que melhor os viria a fundamentar. Em qualquer caso, ela é significativa quanto ao rumo que se encara seguir, e do qual Marx se não afastou (contrariamente ao que os que o acusam de «dedu­ tivismo» pré-concebido se afadigam debalde em repetir): «nós não quere­ mos antecipar dogmaticamente o mundo, mas encontrar, a partir da crítica do mundo velho, o [mundo] novo» 42. Um trabalho da história, portanto – um infatigável trabalho na histó­ria; porque, no registo ontológico, em clave materialista, as colectividades humanas, do e no interior de condições determinadas que, a um tempo, herdam e contribuem para modelar, são constitutivamente ingrediência e agência do devir das realidades. Assim como a sociedade civil burguesa, no seu evoluir e na sua expansão, conduziu ao eclodir de uma efectiva «história mundial» (Welt­ inteira, é fruto de todo um moroso e complexo processo de génese. Durante milénios, o «mundo» de uma comunidade determinada nunca conseguiu ultrapassar fronteiras bem mais restritas. A «universalização» sedimentada tem, efectivamente, a ver, historicamente, com a expansão do capitalismo. 44 Cf., por exemplo, MARX-ENGELS, Manifest der Kommunistischen Partei, I; MEW, vol. 4, p. 466. 45 Cf. MARX, Thesen über Feuerbach, 10; MEW, vol. 3, p. 7.

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geschichte) 43, no marco da sua constituição de um verdadeiro «mer­cado mundial» (Weltmarkt) 44 – é agora para além dela, mais à frente das limitações de que continua a enfermar, que nos cabe dirigir o nosso olhar prospectivo, o nosso engenho criador e o nosso, sempre incon­tornável, envolvimento prático. Não é a viagem para o sonho que espreita e nos espera; é a sondagem do por-vir que cita e congrega – assumindo a negatividade esclarecida como componente indefectível da dialéctica histórica da construção real. É por isso que o «ponto de vista» (Standpunkt) do novo materialismo não é mais a «sociedade burguesa» (de que o mecanicismo atomista dará conta, e que de muita humanidade dá cabo), mas «a sociedade humana ou a humanidade social» (die menschliche Gesellschaft oder die gesells­ chaftliche Menschheit) 45. Enfim, um desafio que nos dias transformados de hoje – apesar de todas as acomodações habilidosas, de todas as ironizações cépticas, de todos os capitulacionismos, envergonhados ou escancarados – continua a convidar à transformação. Para que a cidadania não seja palavra vã, bordão estafado ou piedoso embuste – mas realização concreta de humanidade, para todos os homens e o homem todo, à altura das necessidades que sentimos, dos anseios de que não abdicamos, das possibilidades reais que urge praticamente tomar a cargo e materializar. Lisboa, Abril de 2001. José Barata-Moura

(Universidade de Lisboa)

A sociedade civil na «Política» de Aristóteles A distinção entre sociedade civil e estado, como sabemos, é mui­ to tardia. Como contraponto ao Estado da Modernidade este termo foi sendo cada vez mais usado a partir do séc. XVIII no contexto da crítica iluminista ao absolutismo1. Os pressupostos teóricos e o contexto histó­ rico em que se insere o texto aristotélico são muito diferentes. É verdade que a expressão societas ciuilis foi cunhada no trabalho de recepção da Polí­tica de Aristóteles2. Nesta obra, o termo mais próximo é o de politikê koinonia, muitas vezes traduzido como ‘comunidade política’. Esta tradu­ção interpreta o termo no sentido de a polis se compreender como uma koinonia de politai (cidadãos). O facto de muita da nossa terminologia básica, também no âmbito da política, ter a sua origem directa no grego clássico ou em derivados pró­ ximos faz-nos pensar nas múltiplas ligações que entretecem a proximidade do mundo grego com o nosso. Mas é óbvio que não podemos esquecer a  1 Vejam-se, por exemplo, os ensaios de C. Berry, M. Marcos e Edmundo Balsemão, publicados neste volume, para uma informação mais detalhada sobre alguns episódios da evolução semântica deste conceito na teoria política moderna.  2 O processo é longo e extremamente complexo como Manfred Riedel faz notar. Nele desempenhou papel relevante a recepção do texto aristotélico no séc. XIII, no Ocidente latino. Na Antiguidade Tardia cabe mencionar Cícero como um dos principais actores de uma criação de uma linguagem técnica em latim. Mas nele ainda encontramos koinwnÌa traduzida por termos tão diversos como “communitas”, “consociatio”, “coniunctio”, “communicatio”, “coetus” (Cícero, De officiis, I, 44- ). Guilherme de Moerbeke traduz politik@ koinwnÌa por “communitas ciuilis/politica”. Como é sabido, foi sobre esta tradução latina que trabalharam os grandes autores da escolástica medieval: Tomás de Aquino, Duns Escoto, Ockham e Marsílio de Pádua . É com a tradução renascentista de Leonardo Bruni (1438) que a expressão latina “societas ciuilis” passa a ser aceite como o equivalente da expressão grega politik@ koinwnÌa. Cf M. Riedel, Metaphysik und Metapolitik. Studien zu Aristoteles und zur politische Sprache der neuzeitliche Philosophie (Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1975):119-121.

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distância que nos separa dos gregos dos sécs. V e IV A.C. Não é apenas o facto de as instituições e a sociedade em geral diferirem significa­tiva­ mente mas sobretudo a compreensão do político parece ter-se transfor­ mado radicalmente. Uma das críticas mais frequentes a Aristóteles con­ siste no facto de ele se manter prisioneiro da polis apesar da subtil análise que faz da sua crise não conseguindo enquadrar a sua reflexão polí­tica noutro quadro institucional. Seja qual for a nossa opinião sobre a avalia­ ção que Aristóteles fez da evolução dos acontecimentos que prece­deram a destruição da democracia ateniense3, não podemos deixar de considerar o interesse e valor da sua argumentação sobretudo no que se refere à própria noção de cidadão e de participação deliberativa. Os ter­mos con­tinuam a ser usados ao longo dos tempos mas os significados mudam sem que por vezes os falantes se apercebam do alcance exacto da transfor­mação ope­ rada. O mais importante, neste caso, não é construir genea­logias, mais ou menos plausíveis, mas antes tentar perceber o sentido em que os termos são usados, em cada contexto. É isso que preten­demos fazer a partir do texto da Política de Aristóteles. Neste artigo, partimos do pressuposto seguinte: o termo polis é usado por Aristóteles em dois significados principais: 1) enquanto comunidade política no sentido de comunidade de cidadãos; 2) enquanto comunidade dos residentes no território da polis (incluindo, portanto, os que não eram cidadãos). Mais do que jogar com o contraste entre cidade – estado e cidade – sociedade4, Aristóteles parte de uma compreensão da comunidade política Embora esta questão seja muito debatida entre os historiadores da época, seguimos aqui a opinião que assinala o ponto de ruptura não com a morte de Alexandre Magno mas antes com o fim da Guerra Lamíaca em 322 AC e mudança do regime constitucional de Atenas por influência de Antipater. Por coincidência, 322 é também o ano da morte de Aristóteles e de Demóstenes. É sabido que o estabelecimento destes marcos históricos tem sempre algo de muito artificial e convencional. Também aqui esta data deve ser entendida no sentido de simbolizar um processo de transformação e ruptura que já estava e durou décadas. Neste sentido, é óbvio que a alteração constitucional provocada por Antipater é mais resultado do que causa das transformações da sociedade ateniense e é apenas uma delas. 4 Os autores que jogam com esta dicotomia apelam frequentemente para a distinção entre Gemeinschaft e Gesellschaft feita por Tönnies em Gemeinschaft und Gesellschaft (1887) que influenciou ainda a tipologia dos grupos de Max Weber. Tönnies designa por “comu­nidade” aquilo que a tradição europeia anterior ao séc. XVIII entendia por “sociedade” (integrando, como partes constitutivas, a casa, a aldeia, a cidade e, como elementos de ligação, as relações de vizinhança e de amizade). Tudo isto que os antigos associavam 3

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em que as dicotomias convencionais (estado de natureza – corpo político; sociedade – estado; público – privado) se esbatem face à sua análise da democracia ateniense. Por outro lado, Aristóteles usa o termo koinonia num sentido genérico que caracteriza pelos seguintes traços: 1) é constituída por indivíduos diferentes; 2) indivíduos que partilham algo; 3) indivíduos que estão em interacção; 4) indivíduos que estão unidos por um sentido de philia e de justiça. Uma análise mais completa do tema levar-nos-ia a explorar estes quatro aspectos na compreensão aristotélica da comunidade política. De­ senvolveremos apenas algumas ideias em torno dos dois primeiros tópicos limitando-nos a sugerir alguns nexos mais relevantes dos outros tópicos com o tema geral. Assim, veremos como se articulam, na Política, os principais usos de polis (I); analisaremos o modo como Aristóteles lida com o problema da diversidade e da diferença (II), e, finalmente, conclui­ remos com um breve apontamento sobre a importância da amizade cívica na formação e consolidação do sentido de justiça. I A definição da polis como “uma certa comunidade (koinonia tina)” de cidadãos, à primeira vista, parece excluir da análise política os não cidadãos. Contudo, Aristóteles dedica uma atenção especial na Política a várias categorias de não cidadãos: crianças, mulheres, escravos e outros homens livres. A tensão é clara ao longo do texto da Política5. Citemos apenas um passo de Pol. III em que a identificação entre polis e comunidade política à “sociedade” pretende Tönnies associar à “comunidade”. Cf. M. Riedel, Metaphysik und Metapolitik. Studien zu Aristoteles und zur politische Sprache der neuzeitliche Philosophie (Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1975):282-5. O recurso a estas tipologias pode revelar-se problemático. A leitura atenta do texto aristotélico pode revelar-nos as diferenças principais no entendimento do que é a comunidade política. 5 A questão é complexa e tem sido muito discutida entre os especialistas. De entre os autores mais recentes há que ter em conta os trabalhos do Copenhagen Polis Centre (CPC) dirigido por Mogens H. Hansen cujo objectivo último é precisamente esclarecer o que é uma polis. Embora os trabalhos ainda não estejam concluídos, Hansen pensa que as investigações já realizadas permitem confirmar algumas das hipóteses iniciais: o termo

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no sentido mais restrito parece inegável: “A politeia é uma organização da cidade no que se refere a vários poderes (archai) e sobretudo aos po­ deres supremos. O elemento supremo em toda a cidade é administração (politeuma) da cidade e a administração da cidade é a politeia. Quero dizer, nas democracias o povo é supremo; pelo contrário, nas oligar­ quias apenas alguns têm a supremacia. Por isso, dizemos que a politeia é diferente nestes casos” (1278b8-12). Mais adiante, na mesma linha de pensamento: “Politeia e politeuma significam a mesma coisa, sendo as autoridades (politeuma) o elemento supremo na cidade, necessariamente serão supremos ou um indivíduo, ou poucos ou muitos” (1279a25-28). Aqui, como em muitos outros passos, encontramo-nos perante dificul­ dades insuperáveis de tradução. Optar por uma solução, mesmo que seja a de uma simples transliteração, já é escolher ou privilegiar uma linha de interpretação do texto. Muitos autores traduzem politeuma por “autoridade suprema” (Newman, Tricot, Laurenti et al. ) – o que equivale a substituir o termo em causa pela definição dada por Aristóteles mais do que a traduzi­ -lo; outros preferem “governo” (Gigon, Robinson, Barnes). Prefe­rimos traduzir por “administração” e não por “governo”, como faz a Tra­du­ção Revista de Oxford, porque o termo inclui todas as funções relativas ao “governo” da cidade no sentido mais amplo e omnicompreensivo e não no sentido mais restrito que hoje associamos à palavra “governo”. Não estão em causa tanto as pessoas que “governam” mas antes os órgãos de poder, de todos os poderes (que aqui ainda não estavam separados como polis tinha uma conotação diferente conforme era usado por quem vivia numa polis ou não; o conceito de polis não mudou significativamente entre os sécs VII e IV AC; o modo como os atenienses entendiam e usavam o termo polis não diferia significativamente do uso no resto do mundo grego; nas fontes mais antigas, o termo polis no sentido de “cidade” só é usado nos casos em que as cidades eram simultaneamente centros políticos de uma polis. Ver os volumes de Actas do Copenhagen Polis Centre e, em particular, Mogens Herman Hansen, Polis and City State. (Copenhagen:  Royal Danish Academy of Sciences and Letters, 1998); Id., The Athenian Democracy in the Age of Demosthenes: Structure, Principles and Ideology, (Oxford, 1991); Oswyn Murray, “Polis and Politeia in Aristotle” in M.H. Hansen (ed.), The Ancient Greek City-State. Acts of the Copenhagen Polis Centre 1. Det Kongelige Danske Videnskabernes Selskab, Historisk-filosofiske Meddelelser 67 (Copenhagen, 1993) Na impossibilidade de justificarmos algumas divergências relativamente às teses de Hansen e do seu grupo de investigação remetemos para J. Ober que seguimos neste tema: J. Ober, The Athenian Revolution. Essays in Ancient Greek Democracy and Political Theory ( Princeton, Princeton Univ. Press, 1996).  6 Berti, art. cit. 342

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acontecerá mais tarde) da cidade. Alguns autores sublinharam o facto de politeuma ser aquilo que, de facto, mais se aproxima da noção moderna de Estado. É verdade que, no texto citado, Aristóteles identifica politeuma e politeia. Tal como já acontece em Platão, também no texto aristotélico politeia significa constituição mas também república (res publica). Mas, neste contexto, não se está a falar da polis, sem qualificação, mas apenas de uma parte da polis, daquela a quem estão cometidas as mais altas funções: de gestão corrente, de deliberação (assembleia e/ou conselho), judiciais (tribunais)6. Neste tipo de formulações, Aristóteles identifica politeia e politeuma deixando de lado as questões ligadas aos bens sociais. No entanto, a Política de Aristóteles preocupa-se com o modo como os bens sociais são produzidos e distribuídos7. Uma das tarefas principais da justiça é precisa­ mente redistribuir estes bens de acordo com o princípio de igual­dade. Nos passos citados, Aristóteles não está a tentar definir o lugar institucional da soberania. O termo politeia significa não só a constituição mas também todo o sistema de convicções e de práticas sociais protago­nizados pelo grupo social dominante na polis. Por isso, Aristóteles pode dizer que a “politeia é a forma particular de vida (bios tis) da polis” (1295b1). Por outro lado, no início de Pol. III Aristóteles alude à contenda sobre o uso do termo polis: alguns diziam que não tinha sido a polis a realizar determinadas acções mas sim o tirano ou a oligarquia (1274b32-6) por­ que estes regimes se baseavam no domínio e não no interesse comum (1276a12-3). Mas, se a polis, pelo menos em determinados contextos, não pode ser identificada com o seu regime político, então, parece inevitável que pode também ser entendida como o território e o conjunto dos seus habitantes (ou, pelo menos, parte deles). E aqui surgem alguns problemas: “Em primeiro lugar, a natureza da polis é, hoje em dia, uma questão disputada. (...) Por outro lado, vemos que toda a actividade do político e do legislador está obviamente relacionada com a cidade. Em suma, um regime político resulta de um certo modo de ordenar os habitantes da cidade. A polis é, pois, uma realidade composta da mesma maneira que o são todas as outras coisas que, não obstante possuírem diferentes parte, J. Ober, op. cit., 165. J. Ober, op.cit., 167. 9 A questão da relação entre a cidadania democrática e a escravatura, em Atenas, é  7 8

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formam um todo composto. Torna-se evidente, portanto, que devemos começar por orientar o nosso estudo para o cidadão, visto que uma polis é, por assim dizer, uma determinada multidão de cidadãos.” (1274b32-41) Estamos perante um breve texto onde se encontram, lado a lado, os dois usos de polis: na primeira parte, quando define a politeia como “um certo modo de ordenar os habitantes da cidade” está a usar o termo polis num sentido que inclui os não cidadãos. Mas, logo a seguir, passa para o uso restritivo quando diz que a polis é a comunidade dos cidadãos 8. De acordo com a interpretação maioritária, Aristóteles tinha em vista primordialmente os cidadãos, aqueles que partilhavam as coisas políticas na polis, e o modo como a politeia era afectada pelas tensões sociais entre aqueles que partilhavam a cidadania. Porém, estava convencido de que a explicação das possibilidades de coabitação entre cidadãos e não cidadãos era um passo decisivo para uma compreensão mais adequada da polis enquanto comunidade. Por isso, distinguia os interesses da polis, global­ mente considerada, dos interesses comuns dos cidadãos (1283b40-2). A presença e a participação activa dos não cidadãos na satisfação das necessidades básicas da polis eram, absolutamente, imprescindíveis. De modo nenhum se poderia falar de um resto supérfluo. Se eles fossem eli­ mi­nados da comunidade, a polis não conseguiria manter a sua autonomia e sobreviver (cf 1277b2-3). A justificação principal da existência da polis é sugerida por Aristó­ teles quando afirma ser ela constituída pela união daqueles que não sabem viver sem os outros: homens e mulheres, senhores e escravos. Isto não implica que a polis seja, necessariamente, uma configuração de uma so­ ciedade esclavagista. Baste, no contexto presente, a constatação do facto de ela depender materialmente do trabalho de não cidadãos9. A unidade mais complexa e continua a ser muito debatida na literatura especializada. Para se avançar neste debate no sentido de ultrapassar o nível extremamente elevado de preconceitos não clarificados seria necessário responder, entre outras, a algumas das seguintes questões: qual a extensão real da escravatura na agricultura de Atenas, nos sécs V e IV AC; qual o número exacto de escravos, em Atenas, nessa época, e qual a sua distribuição pelas diferentes actividades e que papel desempenhavam na economia e na defesa. De entre os que negam a tese de que a democracia ateniense dependia basicamente do trabalho dos escravos, ver Ellen M. Wood, Peasant-Citizen and Slave: The Foundations of Athenian Democracy (London: Verso, 1988); J. Ober, Fortress Attica: Defense of the Athenian Land Frontier,404-322 B.C. Mnemosyne suppl. 84 (Leiden: Brill, 1985); Id., Mass and Elite in Democratic Athens: Rhetoric, Ideology, and the Power of the People (Princeton:

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produtiva primária na polis era a família (oikos). No tipo peculiar de comunidade que é a família, era o cidadão (adulto, livre, do sexo mas­ culino) que detinha a autoridade e era senhor (despotes, 1260a7-10). Mas, para produzir os bens que garantiam o sustento da família e da polis ele contava com a cooperação e algum poder de coacção para lidar com os membros da unidade familiar que não tinham cidadania. Escusado será lembrar que aqui os cidadãos eram minoritários. No esquema evolutivo de Aristóteles, as famílias associaram-se formando aldeias e estas, por sua vez, avançaram para formas mais complexas de associação dando origem às cidades a fim de conseguirem uma certa auto-suficiência. (1252b1516; 27-9). Por outras palavras, ao nível do sistema de produção de bens parece haver uma certa convergência entre os interesses dos cidadãos e dos não cidadãos10. Apesar de ter definido, repetidas vezes, o homem como animal polí­ tico, Aristóteles sabia que viver em comum e participar activamente na con­dução das coisas humanas é sempre difícil (1263a15-16; cf 1286b1). Assim, apesar de existir em todos o impulso natural para viver numa comu­nidade política, contudo, quem primeiro levou os homens a asso­ - cia­rem-se para viverem numa polis foi causa do maior dos bens (1253a29-31; cf 1285b6-9). Uma vez construída, seria possível, em de­ terminadas circunstâncias, a polis desagregar-se por acção inadequada e injustiça dos seus membros ou partes. Só a compreensão do carácter contingente da polis permite entender adequadamente as afirmações acer­ ca do seu estatuto prioritário relativamente aos indivíduos e às famílias. A finalidade natural da polis está dependente do consentimento humano e de práticas sociais11. Princeton Univ. Press, 1989). Em sentido contrário: Michael Jameson, “Agriculture and Slavery in Classical Athens” in Classical Journal 73(1977/8): 122-145; V. Hanson, The Other Greeks: The Family Farm and the Agrarian Roots of Western Civilzation (N.Y.: Free Press, 1995). Seja qual for a posição que venhamos a defender nesta contenda, não podemos esquecer o facto de Atenas ter sido, no seu apogeu expansionista, um grande centro de tráfico de escravos. 10 J. Ober, op.cit., 168. 11 Ober fala de um processo “quasi-contractual “ na constituição da polis embora sublinhe igualmente as diferenças relativamente ao contratualismo moderno (op. cit. 169). A questão aparece sempre distorcida porque nem Aristóteles nem qualquer contemporâneo seu estavam realmente preocupados com questões de legitimidade e soberania no sentido dos modernos. Neste sentido, criticar Aristóteles por não apresentar uma justificação da

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A escravatura era, com certeza, uma prática social acerca da qual existia largo consenso na Grécia Antiga. Por um lado, era considerada como algo imprescindível e, de certo modo, inevitável. Mas havia também a noção difusa de que era uma condição infeliz. A parte mais negra da teoria política de Aristóteles é a sua tentativa de justificar a naturalidade da escravatura12. A análise da relação senhor-escravo desempenha um papel importante na descrição da polis, logo no início da Política. O que o preocupa realmente é a questão do poder político e a da autoridade na polis. Não é a escravatura tal como existia na sua época que está no centro. Por isso, não encontramos referências significativas à escravatura, na Política, fora deste contexto das diferentes formas de poder. A única forma de escravatura que a sua análise justifica é a escravatura natural. Porém, o texto da Política não apresenta qualquer argumento convincente de que há escravos naturais. Pode-se dizer mesmo que esta teoria está em contradição com outros pressupostos da sua análise da natureza humana13. As hesitações de Aristóteles relativamente à (im)possibilidade de uma amizade entre senhor e escravo (cf. 1255b4-15; 1161 a33-b5) mostram claramente as contradições da própria noção de “escravo natural”. O caso da escravatura é diferente do das mulheres porque está associado às no­ ções de necessidade económica e cultural e de má sorte individual. Não podemos esquecer que também nós, modernos, continuamos a aplicar em grande escala esta noções na interpretação da realidade social. Como autoridade (política) é não ter em conta o quadro de análise em que ele se move. O im­ portante para Aristóteles é distinguir claramente entre a autoridade política e a autoridade que se exerce na casa e na família. A autoridade política tem uma justificação puramente funcional que Aristóteles tematiza a partir do modelo da democracia ateniense do séc. IV AC. Para uma leitura da Política a partir de uma problemática da justificação da soberania ver G. Seel, “Die Rechtfertigung von Herrschaft in der «Politik» des Aristoteles” in G. Patzig (Hrsg), Aristoteles «Politik» (Göttingen: V & R, 1990): 32-62 bem como o comen­ tário crítico a esta comunicação onde Th. Ebert justifica porque é que os passos citados por G. Seel não podem ser entendidos como justificação da soberania em sentido moderno. De igual modo, o facto de Aristóteles reconhecer um direito natural, independente das leis humanas, não significa que ele lhe atribua qualquer função de justificação do direito positivo como algum jusnaturalismo posterior quis ler. Th. Ebert, “Bemerkungen zu G. Seel”, in G. Patzig (Hrsg), Aristoteles «Politik», 63-72. Cf. J. Ober, op. cit., 107-122.  12 B. Williams, Shame and Necessity (London/Berkeley: Univ. of California Press, 1993): 109-129.  13 E. Berti, art. cit., 328.  14 B. Williams, Shame and Necessity (London/Berkeley: Univ. of California Press, 1993):128. 15 R. Bodéüs, Le philosophe et la cité: recherches sur les rapports entre morale et

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Bernard Williams sublinha, a grande diferença entre os gregos antigos e o liberalismo moderno é que este espera “que aqueles conceitos, necessi­ dade e sorte, não venham a ocupar o lugar de considerações de justiça”14. Isto implica não apenas a rejeição da ideia de uma identidade necessária mas também a tarefa de construir um quadro de justiça social capaz de controlar a necessidade e o acaso. As mulheres também eram parte importante da polis constituindo cer­ ca de metade da população e sendo elemento imprescindível da família. A mulher, não podendo ter o estatuto da cidadania, podia, pelo casamento, partilhar os interesses do seu marido. As crianças e os jovens do sexo masculino eram potenciais cidadãos. Quando devidamente educados – de modo a interiorizarem os princípios do regime constitucional – depois de atingirem a maturidade das suas capacidades de escolha, os jovens conse­guiriam facilmente ver onde residiam os seus verdadeiros interes­ ses. Ao garantir que as crianças e os jovens compreendiam que os seus verda­deiros interesses se identificavam com os das gerações anteriores de cidadãos, o sistema educativo assegurava a sobrevivência política e cultural da polis (cf. 1310 a 12-14). “De todos os meios aqui referidos para assegurar a conservação dos regimes políticos, o que se afigura mais importante é o que se encontra hoje menosprezado: a educação cívica “ (prós tas politeias). No final de Política I Aristóteles sugere que as mulheres e as crianças que participariam mais tarde da cidadania deveriam ser educados “de acordo com o regime político estabelecido” (1260 b 15- 20). Mais um texto em que os não cidadãos estão claramente incluídos na comunidade da polis, neste caso através de um dos subsistemas principais, a educação. Quando falamos de um subsistema da educação não esquecemos que não havia, em Atenas, um sistema de ensino público nem um currículo padrão. Platão e Aristóteles, cada um à sua maneira, defendiam, contra a prática corrente, que a polis deveria assumir um papel mais activo na educação dos seus cidadãos. Aristóteles defende claramente a tese de que a educação é uma questão pública que não se pode confinar totalmente ao foro privado (1337 a11-12, 22-24, 26-29). Algumas afirmações em ma­ téria de educação são muito próximas das de Platão mas o sentido geral politique dans la pensée d’Aristote (Paris: Les Belles Lettres, 1982). Sobre a participação de um grande número nos diferentes poderes e a dimensão colegial dos mesmos ver, por

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das suas observações sobre o papel do filósofo é muito diferente daquilo que podemos ler na República ou em As Leis. Não compete ao filósofo governar nem legislar. Na Política a figura central é a do legislador na medida em que é dele que depende, em última análise, a felicidade dos seus concidadãos. A educação é um problema político fundamental que implica uma definição clara de metas e pressupõe uma concepção de homem que inclui a noção de homem virtuoso/excelente. O filósofo é chamado a desempenhar, neste contexto, um papel importante na for­ mação moral e cívica dos cidadãos em geral e muito particularmente do legislador (no caso da democracia as duas funções são conver­gentes)15 . É em função deste ponto de vista que se deve ler o programa educativo esboçado por Aristóteles na última parte da Política. Na impossibilidade de entrarmos nos detalhes programáticos sublinhemos três aspectos sobre os quais deveria incidir a formação do “legislador”: conhecimento mi­ nimamente adequado da diversidade de constituições existentes, das leis mais coerentes com cada tipo de constituição e dos meios mais eficazes para garantir a estabilidade constitucional. Os próprios cidadãos desempenhavam papéis diferentes e diferen­ ciados na polis. Como senhores num lar, os seus interesses eram de certo modo partilhados pelas mulheres, crianças e escravos (caso os tivessem). O cidadão, podia ainda partilhar alguns interesses – pelo menos ao ní­ vel das relações de produção e troca de bens – com estrangeiros livres (mete­cos, visitantes da polis ou outros que encontrava nas suas viagens). Parti­lhava ainda um conjunto de interesse com outros grupos de cidadãos; partilha esta que poderia, nalguns casos, traduzir-se num conflito com outros grupos de cidadãos. Finalmente, como cidadão tout court, os seus interesses deveriam identificar-se plenamente com os dos seus concida­ dãos e com os da polis. Mas o interesse vital da polis na auto-suficiência em matéria de ne­ cessidades básicas implicava que o cidadão, mesmo quando agia na esfera pública, não podia ignorar os interesses dos não cidadãos que tam­bém faziam parte da polis. Desempenhava ainda outros papéis, por exemplo, quando a cidade entrava em guerra. A capacidade de mobilidade e de exemplo, Política Γ 13, 1283 a29-1284 a3. 16  Esta definição do homem como animal político não deve ser interpretada num sentido essencialista ou puramente descritivo de um estado de coisas contingente. Assim acontece em alguma literatura especializada quando se afirma que no apogeu da polis ateniense o cidadão se transformou em “animal político”. Olof Gigon foi um dos que

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diferenciação dos diversos papéis exigidos em cada esfera social era um traço importante da formação do cidadão. Concluindo esta primeira parte da nossa análise formularíamos, assim, alguns resultados provisórios: A polis, tal como nos aparece nos escritos políticos de Aristóteles, era uma realidade em que podemos reconhecer a coexistência de traços daquilo que, mais tarde, se vai designar como um “estado” e uma “sociedade civil” pluralista e diferenciada. Tratava-se, na verdade, de uma multidão de indivíduos subdivididos em vários grupos. O regime político que estrutura a sociedade deveria ser apoiado explici­ tamente por todos os cidadãos e, indirectamente, pelos não cidadãos que integram a polis. Isto significa que a generalidade dos habitantes da polis deve reconhecer que o regime em que vivem satisfaz os padrões mínimos de justiça. Esta exigência desempenha um papel fulcral na arquitectura da politeia na medida em que a polis enquanto “cidade-estado” seria impen­ sável e inviável sem a polis enquanto comunidade política de todos os que habitam a polis. II Na explicitação sumária da noção de polis indicada na introdução sublinhámos o facto de ela ser constituída por indivíduos diferentes. De entre os elementos chave do saber político destacámos o conhecimento adequado da diversidade das constituições e das leis que regulam situa­ ções mais concretas no quadro mais amplo da lei fundamental. Importa agora ver em que medida o texto aristotélico permite um equilí­brio ade­ quado entre a norma comum e a diversidade. Na definição aristotélica do homem como animal político estão juntas duas dimensões que algumas dicotomias modernas persistem em não inte­ grar: o biológico e o político. Por um lado, algumas afirmações de Polí­tica A parecem apoiar uma compreensão totalmente naturalista e teleológica da política. De facto, quando Aristóteles diz que “a polis é natural (physei)”, não está a falar metaforicamente. Significa que a polis enquanto forma peculiar da sociedade tem a sua origem, naturalmente, a partir do casal passando pela família (“oikos”) e pela aldeia ou outras comunida­ des.16  Assim, Aristóteles vê a polis sob a acção de múltiplas finalidades.

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A polis é telos das mais diversas formas de associação dos humanos (1252b31-1253 a). Distingue-se das outras associações precisa­mente pelo projecto que a caracteriza: permitir que todos os que nela estão incluídos vivam bem. Até que ponto faz sentido distinguir, neste contexto, níveis de excelência?. Mesmo no caso de se julgar mais razoável fazê-lo talvez seja preferível adiar tal diferenciação para um momento posterior da análise. O papel da análise teleológica em Aristóteles tem sido objecto de mui­ ta discussão e é um dos pontos em que se torna mais urgente um trabalho crítico de reflexão sobre os pré-conceitos de gerações de leitores ao longo dos séculos. Noção fundamental, quer em filosofia da natureza quer na política, o conceito de tñloς não pode ser entendido fora do contexto do esquema da causalidade nos seus múltiplos usos respeitando sempre o estatuto próprio de cada tipo de investigação17. Um dos desafios com o qual nos confronta o texto aristotélico é o de encon­trar uma norma que respeite, simultaneamente, as dimensões natu­ rais comuns à espécie e a singularidade dos indivíduos. Mas, no contexto da determinação teleológica da polis, coloca-se a questão da diferenciação das politeiai e das respectivas constituições. Pierre Pellegrin insiste na tese de que o filósofo político, tal como o naturalista, “não tem que delibe­ rar sobre o melhor mundo animal possível”18. Segundo esta interpretação Aristóteles rejeitaria totalmente a noção de “constituição ideal” enquanto elemento unificador de todas as politeiai. Podemos aceitar sem dificul­ mais claramente se opôs a esta suposta identidade “homem = cidadão” na Antiga Grécia: Aristoteles Politik und Staat der Athener. Eingel. und neu übertr. von Olof Gigon (Zürich: Artemis-Verl., 1955). .Wolfgang Kullmann defende a tese de que a noção do homem como animal político não é explicitada de forma totalmente coerente no texto aristotélico e, por outro lado, a questão da natureza da polis tem de ser analisada com cautela de modo a não projectar indevidamente nela a noção de ousia , por exemplo. Cf W. Kullmann, “Man as a political animal in Aristotle” in David Keyt & F. D. Miller, Jr (eds), A Companion to Aristotle’s Politics (Oxford: Blackwell, 1991): 94-117 [versão revista pelo autor de “Der Mensch als politische Lebewesen bei Aristoteles”, Hermes 108(180):419-443]. 17 Cf. W. Wieland, Die aristotelische Physik (Göttingen: V & R, 1970): 254-277; Allan. Gotthelf, «Understanding Aristotle’s Teleology». In Final Causality in Nature and Human Affairs, edited by R. F. Hassing. (Washington: Catholic University of America Press., 1997):71-82.  18 Pierre Pellegrin, «Naturalité, excellence, diversité» in G. Patzig (hrsg.), Aristoteles «Politik», 127.  19 Pierre Pellegrin, «Naturalité, excellence, diversité» in G. Patzig (hrsg.), Aristoteles «Politik», 129-131. 20  Aristóteles é o primeiro a usar o termo boÚleusiς num sentido técnico recuper-

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dade a leitura de Pellegrin quando rejeita a noção de uma norma única e transcendente na filosofia política de Aristóteles. Contudo, reconhecidas as dificuldades teóricas, não podemos perder de vista as várias soluções que se esboçam no texto aristotélico. Neste contexto, Pellegrin agrupa a diversidade constitucional e a di­ ferenciação das cidades de acordo com dois critérios básicos: o pré-polí­ tico e o político19. Critério pré-político seria aquele que permite distin­ guir as cidades antes de qualquer diferenciação constitucional através da relação com o modelo construído da polis seguindo critérios gerais invocados pelo texto aristotélico. A diversidade das cidades seria assim comparável à dos indivíduos de uma mesma espécie biológica. O critério político é reclamado pelo próprio Aristóteles e aponta para a diversidade das constituições. De facto, é a constituição que confere a uma polis a sua identidade específica. Quando o quadro constitucional muda a polis já não é a mesma, especificamente, mantendo a unidade genérica de polis/ cidade. Mas também não podemos esquecer que o facto de Aristóteles utilizar uma tipologia já bastante antiga no seu tempo o leva a trabalhar com a diferenciação entre cidadãos como elemento característico da sua análise das constituições designadamente no que se refere ao seu poder econó­mico. Mas, se considerarmos o cidadão e não tanto a constituição como o elemento primordial da polis, então a análise deve orientar-se para a caracte­rização dos cidadãos quer do ponto de vista económico e so­ cial quer do ponto de vista da excelência. Assim, o legislador procura intro­duzir ordem no campo da diversidade empírica dos regimes consti­ tucionais para encontrar o regime mais favorável à vida virtuosa e feliz. A actividade principal e constitutiva da vida feliz é o exercício autónomo da racionalidade prática mas esta só pode exercer-se num contexto político e social. A φrÒnhsiς (prudentia) consiste na capacidade de deliberar (bem). A deliberação é uma noção que se aplica, primor­dialmente, nos domínios da técnica e da política20. A reflexão sobre a deli­beração de Ética a Nicómaco III está mais orientada para os pressupostos do agir humano do que para uma análise psicológica. O que importa é circunscrever o domínio da ando o sentido da boul» que em Homero significava o “conselho de anciãos”, em Ésquilo “conselho do rei” e na democracia ateniense o Conselho dos Quinhentos. Aliás, é a própria democracia grega que nasce deste processo deliberativo colectivo em que o demos é o protagonista principal. Para Aristóteles não há decisão (proaÌresiς) sem deliberação prévia. A teoria do discurso deliberativo é feita na Retórica onde já são visíveis os traços

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deliberação e mostrar o nexo com o político. Sendo a acção voluntária o único tipo de acção que se pode pre­miar ou castigar, o legislador precisa de ter um conhecimento exacto sobre estas matérias. O pressuposto óbvio é o da eficácia da deliberação humana que escolhe os meios mais eficazes para obter determinado fim. Não se trata apenas de tomar a democracia deliberativa como modelo do agir individual. A função principal da phronêsis é conduzir o indivíduo a “deliberar sobre o que é bom e vantajoso para si mesmo, não em parte apenas como o que conduz à saúde ou à força mas sobre tudo o que diz respeito a viver bem em geral” (EN VI, 5, 1140 a25-28). É inegável que Aristóteles não considerava a democracia um regime excelente. Muito pelo contrário. Mas também parece fora de dúvida que os regimes que mais se aproximam do ideal, sob o ponto de vista da sua hierarquização dos regimes constitucionais, estão ligados a pressupostos incompatíveis com a realidade dos factos humanos tal como a analisava Aristóteles. Por isso, o regime democrático acaba por ser, ape­ sar de tudo, aquele que melhor corresponde ao seu ideal de phronimos. A sua concepção de cida­dania enquadra-se melhor num regime democrático do que em qualquer dos outros tipos de constituição. Com isto não pre­ tendemos, de modo algum, eliminar as aporias do texto aristotélico que nos fala também de uma política de estabilidade assente, basicamente, na maior duração possível do regime constitucional. Aristóteles tinha uma consciência aguda das contingências do pro­ cesso histórico. A principal ameaça à estabilidade e unidade de uma polis era a stasis (st£siς)21, A stasis politica era vista por muitos contem­ porâneos de Aristóteles como uma doença endémica da polis. Porém, limitavam-se a descrever o fenómeno sem cuidar de indicar as suas causas possíveis. Aristóteles tenta explicar os conflitos políticos em Política V tomando como ponto de partida a sua análise da diversidade das cons­ da evolução da democracia ateniense. Cf. Pierre Aubenque, La Prudence chez Aristote (Paris: PUF, 1963/1997): 106-119. 21  Termo que em Aristóteles designa toda uma gama de conflitos sociais e políticos que vão desde a simples luta de interesses entre grupos e cidadãos até à guerra civil e revolução. Para uma informação mais pormenorizada sobre os conflitos internos na polis clássica ver H. J. Gehrke, Stasis. Untersuchungen zu den inneren Kriegen den griechischen Staaten (München: Beck, 1985).  22 Veja-se, por exemplo, neste sentido Peter Calvert, The Concept of Class (N.Y.: St. Martin, 1982): p. 30 onde se faz o contraste entre o discurso vago de Aristóteles e a detalhada tipologia da riqueza introduzida por Sólon. O autor que mais longe levou, e

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tituições. A causa mais comum dos conflitos é a desigualdade exis­tente entre os cidadãos ricos e pobres. Parece inegável que esta distinção entre cidadãos ricos e pobres é traço mais saliente das análises da conflictua­ lidade política (1290 a1-30, 1291b5, 1296 a20). A falta de um vocabu­ lário mais fino e diferenciado para analisar os conflitos sociais levaram muitos autores a contestarem a legitimidade do uso da noção de classe social na interpretação do texto aristotélico22. A concepção de política que Aristó­teles partilha com Platão e outros antigos subordina-a ao viver bem daque­les que integram a polis. É um lugar comum dizer que tal concepção se distingue radicalmente de concepções modernas onde os conflitos de interesses e o poder são os elementos mais característicos. É verdade que isto não nos impede de reconhecer a existência de conflitos de interesses, de luta pelo poder na polis clássica em geral e na Atenas dos séculos V e IV AC em particular. Mas já não poderemos concluir daqui, como faz Oswyn Murray, que aquela concepção da política, enquanto tal, seria in­ capaz de lidar com as questões levantadas pelos conflitos de inte­resses23. O debate desta questão levar-nos-ia a uma reconstrução das teorias da justiça dos antigos e de Aristóteles em particular que aqui não podemos realizar. Mesmo que possamos concordar, eventualmente, com os limites das soluções apresentadas. Haveria ainda que explorar as possibilidades de desenvolvimento teórico dos vários pontos de partida compatíveis com com maior sucesso, a aplicação das categorias de Marx à análise dos conflitos sociais na Grécia Antiga foi Geoffrey de Ste Croix, The Class Struggle in the Ancient Greek World from the Archaic Age to the Arab Conquests, (London: Duckworth, 1981).Partilhava a admiração que Marx nutria por Aristóteles: “Aristotle’s analysis of the citizen body of the Greek polis bears a remarkable resemblance to the method of approach adopted by Marx” (op.cit., p. 77). Sem negarmos o valor da monografia tardia de G. de Ste Croix cremos que há um anacronismo claro na aplicação das categorias de Marx à leitura do texto de Aristóteles. Mas o mais importante é perceber que a análise da Política contém elementos que não se encaixam na rede conceptual de inspiração marxista usada por G. de Ste Croix. Veja-se, neste sentido, J. Ober ,“Aristotle’s political sociology: Class, Status and Order in Aristotle’s Politics” in C. Lord & David O’Connor (Eds), Essays on the Foundations of Aristotelian Political Science (Berkeley/Los Angeles: Univ. of California Press, 1991): 112-135.  23 “But once true class war emerged, the Greeks had no way of controlling its consequences; and the absence of the conception of politics as conflict between interest groups, or a struggle for power, remains a basic weakness in Greek political thought”. Oswyn Murray, “Polis and Politeia in Aristotle” in M.H. Hansen (ed.), The Ancient Greek CityState, p. 203. Cf. O.Murray, “Cities of Reason” in O. Murray & S. Pride, The Greek City (Oxford: OUP, 1990): 1-25.

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aquele pressuposto central. Para Aristóteles, a verdadeira causa da stasis era a injustiça percebida e não qualquer conflito de interesses. O conflito surge , entre os cidadãos, quando algum ou um grupo se apercebe de que não recebe algo a que julga ter direito (1301 a28-38). Por outras palavras, é o desajustamento entre várias concepções de justiça e a eventual ruptura que estão na ori­ gem das mais diversas formas de revolta política. O texto não desenvolve com coerência uma noção de igualdade susceptível de evitar de garantir a estabilidade política. O apelo a um jogo constante e atento à diversidade das circunstâncias com a igualdade numérica e a igualdade proporcional não são satisfatórios e exigiriam uma reelaboração maior no contexto de uma teoria da justiça. Mais uma vez, Aristóteles reconhece que a democracia é o regime que mais favorece a classe média e, apesar de imperfeito na sua classificação idealizada, é igualmente o tipo de regime que mais condições oferece para garantir a estabilidade política (1302 a6-15). A sua apolo­ gia do cidadão virtuoso introduziria um ele­mento correctivo importante na prática política. Mas o ideal de partici­pação democrática impunha que mesmo aqueles cidadãos que se preten­diam dedicar a uma vida de theoria não estavam dispensados de cumprir a sua parte nas tarefas políticas. Aristó­teles tinha consciência de que é difícil alterar a evolução histórica das socie­dades mas a tarefa principal do legislador era lançar as bases de uma boa comunidade política que permitisse desenvolver o mais natural­ mente possí­vel cada um dos seus membros24. Mas como sabia que a lei, por si só, não basta para fazer uma sociedade justa contava com o papel decisivo da edu­cação cívica na qual o homem virtuoso e o filósofo desem­ penha­vam papel importante25. Outro aspecto que não podemos perder de vista é que, no enten­dimento de Aristóteles, a stasis dá-se entre cidadãos que estão ligados por laços de amizade cívica apesar de terem concepções  24 Ronald Polansky, “Aristotle on Political Change” in David Keyt & Fred D. Miller, Jr (Eds) A Companion to Aristotle’s Politics (Oxford: Blackwell, 1991), 344-5; Bernard Yack, The Problems of a Political Animal. Community, Justice, and Conflict in Aristotelian Political Thought(Berkeley/London: University of California Press, 1993): 215-224. 25  Com isto não queremos negar um problema de fundo do texto aristotélico referido na literatura especializada. Quando Aristóteles parte do pressuposto de que uma alteração constitucional dá origem a uma nova polis está a criar um problema sério para a sua análise da realidade política de Atenas. A recolha das 157 constituições, aparentemente, não alterou este pressuposto o que o levou a distinguir, na história constitucional ateniense, doze mudanças radicais. Algo que não se coaduna muito bem, como alguns historiadores sublinharam, com o desenvolvimento constitucional de Atenas designadamente durante

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de justiça antagónicas. III Que a noção de amizade (φilÌa) desempenha um papel importante na ética aristotélica ninguém duvida. Mas o caso é completamente diferente quando se trata da amizade cívica (politik@ φilÌa). Em primeiro lugar te­ mos o problema de ordem terminológica: esta expressão não aparece no texto da Política26. Porém este problema não é o mais grave pois o que está em causa não é um estudo puramente lexical mas saber até que ponto a amizade cívica pode ser considerada uma categoria polí­tica central no pensamento de Aristóteles. No sentido daqueles que reconhecem o lugar importante da amizade cívica na filosofia prática de Aristóteles podemos aduzir a afirmação do início do grande estudo da amizade em EN VIII segundo a qual “a amizade parece também manter unida a polis e os legis­ ladores preocuparem-se mais com ela do que com a justiça”( 1155 a22)27. Poderíamos central a nossa análise no sentido desta afirmação. Natural­ mente a amizade de que fala aqui Aristóteles tem que se distinguir clara­ mente da amizade pessoal. A diferença mais impor­tante entre a amizade pessoal e a amizade cívica reside no facto de nesta última não existirem vínculos de natureza emocional que apontem para relações de proximida­ de e intimidade. Por outro lado, a amizade cívica man­tém pelo menos um

o séc. IV AC. Época em que Atenas era uma sociedade genuinamente pluralista. Basta relembrar a relação de convivência de Platão com a democracia ateniense. Cf, entre outros, Oswyn Murray, “Polis and Politeia in Aristotle”, pp. 205-207. 26  Com a possível excepção do texto de Pol. Δ 11, 1295b234 que tem sido interpretado de forma muito diferente pelos comentadores. J. Cooper é um dos intérpretes recentes que defende mais vigorosamente, contra Newman e outros, a ligação entre politikhς e filÌaς. Cf J. Cooper, “Political animals and civic friendship” in G. Patzig (hrsg.), Aristoteles’ «Politik», pp. 220-241. Ver, num sentido diferente, no volume citado, o comentário de Julia Annas ao artigo de Cooper, “Comments on J. Cooper”, in op. cit. 242-248; A. W. Price, Love and Friendship in Plato and Aristotle. (Oxford: Clarendon Press, 1989).  27 Para uma compreensão da amizade cívica é importante ter em conta o que Aristóteles diz em EN Q 9-12 e EE H 9-10.  28 J. Cooper, “Political animals and civic friendship” in G. Patzig (hrsg.), Aristoteles’ «Politik», p.235. Não vamos entrar em polémica com a utilização do termo “bem estar” (well-being) qu, segundo alguns seria demasiado fraco para exprimir o ponto de vista de Aristóteles relativamente à vida boa e excelente que o homem deveria viver na polis. O que nos interessa aqui é a caracterização desse vínculo específico entre os cidadãos. De igual modo, é importante distinguir a amizade política, neste sentido, da política da amizade no sentido aduzido por Polemarco na República quando define a justiça como “ajudar os amigos e prejudicar os inimigos” (332d).

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traço comum a todas as formas de ami­zade: desejar o bem do amigo por ele mesmo. Na amizade cívica mantém-se, além disso, o reconhecimento recíproco, o fazer as coisas com vista ao bem do outro mas tudo isto num nível relacional mais politizado. E isto significa, com toda a ambiguidade que possamos atribuir aos textos de Aristóteles, como muito bem sublinha J. M. Cooper, que, numa polis animada e fortalecida pela amizade cívica “cada cidadão tem um certo grau de interesse e preo­cupação pelo bem estar (well being) de cada um dos outros cidadãos sim­plesmente porque o outro é um concidadão”28. Isto é claramente incom­patível com a leitura redutora de J. Annas que pretende resumir todo o alcance das afirmações de Aristóteles sobre a amizade cívica ao papel que a amizade desempenha nas instituições mais pequenas que fazem parte integrante da polis: família, gru­ pos religiosos e grupos de interesses de todos os tipos. Deste ponto de vista, Aristóteles teria toda a razão se com isso pretendesse afirmar que “uma vida cívica boa assenta no desen­volvi­mento harmonioso destas [instituições]. A vida política degeneraria numa socie­dade onde as pessoas não se sentissem integradas nestas estru­turas mais pequenas – o isolamento e a anomia estão associados ao fracasso da vida política e cívica”29. Dizemos que a interpreta­ ção de J. Annas é redutora porque, de facto, interpreta o texto de Aristóteles como se ele falasse apenas de amizade pessoal. A amizade cívica aparece assim como algo de impossí­vel na medida em que se torna inviável preen­ cher os requisitos da amizade pessoal30. Sendo assim, quando Aristóteles fala de amizade cívica (politik@ φilÌa) não estaria a falar “de um sentido alar­gado de φilÌa, mas antes a localizar onde é que a φilÌa de tipo pessoal pode surgir.”31 Por outras palavras, o qualificativo indicaria ape­nas que determinada relação de amizade se dava entre concidadãos. Esta inter­pretação tem a vantagem de eliminar algumas dificuldades de inter­pretação do texto J. Annas, «Comments on J. Cooper», p. 246. J. Annas sintetiza nesta frase a sua compreensão do longo texto sobre a amizade em EN VIII-IX: «A prominent feature of Aristotle’s theory of φilÌa in EN Q-I is that friendship is introduced by Aristotle and treated throughout as a personal relation». J. Annas, «Comments on J. Cooper», p. 243. 31 J. Annas, «Comments on J. Cooper», p. 247. 32 Ver, além do texto citado, “Aristotle on the Forms of Friendship,” Review of Metaphysics XXX (1977), 619-648. 33 Sibyl Schwarzenbach, “On Civic Friendship” in Ethics 107(1996): 97-128. 34 Sibyl Schwarzenbach, “On Civic Friendship” in Ethics 107(1996): 110. David Kahane aborda também esta problemática da amizade cívica tendo em conta as análises de Aristóteles e os problemas contemporâneos da cidadania e do multiculturalismo mas  29 30

A Sociedade Civil na «Política» de Aristóteles

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mas é manifestamente insuficiente para dar conta da importância política ful­ cral atribuída à φilÌa no texto citado no início desta secção. Para este efeito, a interpretação de J. Cooper é claramente superior32. Deixando de lado os detalhes da interpretação do texto aristotélico, poderíamos perguntar-nos se faz algum sentido repensar hoje a amiza­ de cívica como uma categoria política. Sobre este tema publicou Sibyl Schwar­zenbach um dos textos mais interessantes33. Apoiando-se na inter­ pretação de J. Cooper e numa interpretação pessoal daquilo que chama a actividade reprodutiva e sua relação com a amizade pessoal, sublinha o facto de a noção aristotélica de amizade cívica ter sido “em grande medida mal entendida pelos pensadores modernos; tendendo a ser confun­ dida com o fenómeno da «amizade pessoal», com o da altamente parcial «política dos amigos» ou presume-se ser uma espécie de «grande irman­ dade» onde tudo é comum segundo o modelo da República de Platão”34. Por outro lado, reconhece que as transformações estruturais operadas na Idade Moderna podem justificar, numa primeira análise, a rejeição da ami­ zade cívica como categoria política razoável num discurso moderno. Sibyl Schwarzenbach simplifica a sua análise salientando três pontos que con­ tribuiriam decisivamente para a feição tipicamente mo­derna do discurso político: a Reforma com o seu princípio da liberdade de cons­ciência; a doutrina dos direitos individuais; e o papel do mer­cado35. Apesar de re­ conhecer a importância das transformações históricas que alteraram os fenómenos políticos que Aristóteles pretendia interpretar com a sua noção de amizade cívica mantém a hipótese de que o mundo da polis a que ela se referia não se tenha desvanecido completamente. Sendo assim, seria ainda possível recuperar e transformar esta noção de amizade cívica. Tal reabilitação passa, aos olhos de Sibyl Schwarzenbach, pela subalter­ni­za­ num sentido muito diferente dos autores até aqui citados na medida em que procura explorar as analogias entre a amizade cívica e a amizade pessoal. David Kahane, “Diversity, Soli­darity, and Civic Friendship” in Journal of Political Philosophy 7(1999): 267-286. 35 Sibyl Schwarzenbach, “On Civic Friendship” in Ethics 107(1996): 110-116.  36 Sibyl Schwarzenbach, “On Civic Friendship” in Ethics 107(1996): 119.  37 Sibyl Schwarzenbach, “On Civic Friendship” in Ethics 107(1996): 120. Com esta formulação pretende distanciar-se das autoras feministas entendem o cuidado como sendo de natureza basicamente não racional.  38 Sibyl Schwarzenbach, “On Civic Friendship” in Ethics 107(1996): 123. Cf. Sibyl Schwarzenbach, “Rawls on Ownership: the Forgotten Category of Reproductive Labor” in Canadian Journal of Philosophy 13(1987): 139-167.

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ção da categoria de “produção”, dominante no pensa­mento moderno, e pela reva­lorização da praxis. A universalização dos direitos humanos e o reconhe­cimento das mulheres na esfera pública cons­tituiriam elementos chave neste processo de transformação que conduziria não só “a modelo alternativo de estado mas também da actividade prática do cidadão, que pode competir com sucesso, não só com o modelo do antigo guerreiro mas também com o modelo de produção liberal domi­nante nos últimos séculos.”36 Sibyl Schwarzenbach sugere que o dever moral do cuidado, entendido como “actividade inteligente e emocio­nal­mente compe­tente que não só capta o bem geral e concreto de uma pes­soa(ou objecto) como procura realizá-lo”37 implicaria, entre outras coisas, uma reinter­pretação do princípio da diferença de Rawls no sentido de o maior benefício dos mais desfavorecidos na sociedade em questão não ser visto apenas “em termos de rendimento e riqueza (em termos de produ­ção) mas principal­ mente em termos da base social do respeito por si mesmos (em termos de actividades reprodutivas como a educação, maior participação na posse económica, nos processos de decisão política, etc”38. Finalmente, poderíamos dizer que o ensaio de Sibyl Schwarzenbach indica uma possibilidade interessante não só de interpretar Aristóteles mas sobretudo de reformular o debate em torno da clássica tríade da Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, transformando a compreen­são do “cidadão”. António Manuel Martins (Universidade de Coimbra)

El tránsito de la sociedad a la politicidad en la Summa Theologiae de Tomás de Aquino § 1.  Tres textos de Tomás sobre sociedad y política Durante su período de madurez – entre 1268 y 1273 – Tomás de Aquino redactó tres textos que aluden a los temas sociedad y política. El primero es la I pars de la Summa theologiae, concluída en Viterbo en 1268, poco antes de iniciar su segunda estancia en París 1. El segundo es su comentario a la Politica de Aristóteles – la Sententia libri Politicorum- redactado o bien durante esa segunda estancia parisina – entre 1268 y 1271 2 – o bien hacia el fin de ella, en 1271 3. El tercero es el De regno. A pesar de las dificultades que ofrece para ubicarlo en la cronología de los escritos que integran el corpus tomista 4, el De Regno ha sido datado entre 1271 y 1273 5, es decir casi sobre el fin de la vida de Tomás. Todo análisis del pensamiento de Tomás de Aquino exije respetar dos principios metodológicos: limitar la exégesis a los textos en los que su objetivo ha sido transmitir sus propias ideas y respetar la historia del problema que se analiza reconstruyendo su genealogía. De los tres tratados mencionados, la Sententia libri Politicorum es un comentario a 1 

James A. Weisheipl, Tomás de Aquino. Vida, obras y doctrina (trad. de J. I. Saranyana), Pamplona 1994, 414. 2  ibid., 434. 3  Juergen Miethke, De potestate papae. Die päpstliche Amtskompetenz im Wider­ streit der politischen Theorie von Thomas von Aquin bis Wilhelm von Ockham, Tübingen, 2000, 27. 4  Una síntesis de esas dificultades ha sido expuesta por Hyacinthe-F. Dondaine en el Préface a la edición crítica del De regno, publicada en el T. XLII de la edición “leonina” de las obras de Tomás, Roma, 1979, 424 s. 5  Chr. Flüeler, Rezeption und Interpretation der Aristotelischen Politica im späten Mittelalter, Teil I, Amsterdam/Philadelphia, 1992, 27 s. 6  Esos breves textos, ordenados según la cronología de Weisheipl (ut supra, nota

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la Politica que emplea un género literario elegido por Tomás más para explicar el texto aristotélico que para expresar su pensamiento. Aunque en numerosos pasajes de su obra Tomás alude marginalmente a la socie­dad, a la política o a ambas 6, la carencia de sistematicidad y, en particular, la brevedad de esos pasajes los hace irrelevantes para reconstruir el pensamiento político de Tomás. El primer planteo formal del problema está recién en la I pars de la Summa theologiae, q. 96, a. 4 y q. 92, a.1. Los fuertes vínculos teóricos de estos dos artículos con el De regno hacen de ellos un antecedente valioso y necesario para la interpretación de este breve tratado, el único propiamente político de Tomás. Propongo aquí un examen de ambos artículos de la Summa theologiae en virtud de su importancia para la correcta inteligencia del pensamiento de Tomás sobre sociedad y política expuesto pocos años más tarde en el De regno7. § 2.  El problema en la Summa theologiae En la I pars de la Summa theologiae Tomás se ocupa de tres problemas directamente concernientes a la sociabilidad y la politicidad: la determinación de sociabilidad y politicidad en el estado de inocencia como rasgos o propiedades estructurales de la constitución antropológica (§ 2 a); el tránsito lógico que, en ese estado de inocencia, se verifica desde el concepto de sociabilidad hacia el concepto de politicidad (§ 2 b); y la definición teórica de la politicidad, es decir la explicitación del contenido conceptual de la politicidad – que Tomás llama dominium –, cuyo signifi­ 1), son los siguientes: 1261 (aún sin conocimiento de la Politica de Aristóteles): Summa contra­ Gentiles, L. III, cap. 85; cap. 117; cap. 125 y cap. 128; 1270: Summa theologiae, I-IIae, q. 72, art. 4, resp.; 1270-1: In Peri hermeneias, Lectio II (L. I, 1, ii); 1272: Summa theologiae, II-IIae, q. 109, art. 3, ad primum. Téngase en cuenta que los artículos de la Summa theologiae que analizamos en este trabajo fueron redactados en 1268. 7  En dos trabajos recientes me he ocupado de analizar el problema del tránsito desde la sociabilidad a la politicidad en el De regno de Tomás de Aquino: “El uso de la causalidad en la reflexión política de fines del siglo XIII y principios del XIV”, en: Semi­narios de Filosofía (Santiago de Chile), vol. 10, 1997, 115-143 y en “Jürgen Habermas escribe sobre Tomás de Aquino (Acerca de la expresión aninal sociale et politicum en el De regiminine principum)”, en: Reinholdo Aloysio Ullmann (org.), Consecratio Mundi. Festschrift em homenagem a Urbano Zilles, EDIPUCRS, Porto Alegre (Brasil), 1998, 388--403. 8  Véase infra, § 2 c. 9 Por ejemplo, Louis Lachance, L’ humanisme politique de Saint Thomas d’Aquin. Individu et État, Paris Montréal, 1965, 213.

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cado teórico se resuelve en el artículo 1 de la quaestio 92 mediante el recurso a la idea aristotélica de subiectio civilis (§ 2 c). § 2 a.  Sociabilidad y dominium en el estado de inocencia como propiedades de la humanidad En STh. I, q. 96, a. 4 Tomás pregunta Utrum homo in statu innocentiae homini dominabatur: si en el estado de inocencia el hombre dominaba al hombre. Aunque en este artículo no identifica explícitamente el dominium con los vínculos de subordinación políticos tratados por Aristóteles en la Politica, es evidente que Tomás utiliza aquí la expresión dominium para referirse a la subordinación política o – según el lenguaje empleado en otro pasaje de la Summa 8 – a la subiectio civilis. Por ello, el problema que plantea aquí puede ser formulado así: si en el estado de inocencia hubo de hecho ejercicio del dominium, es decir si hubo vínculos fácticos de subordinación política del hombre sobre el hombre. Este artículo ya ha merecido numerosas exégesis. Muchas de ellas tienden a leerlo como una respuesta afirmativa a la pregunta formulada por Tomás en su título. Ello ha consagrado una tradición interpretativa según la cual, para Tomás, en el estado de inocencia se verificó la existencia efectiva de vínculos de dominium entre los hombres 9. En mi opinión – que se aleja ligeramente de esas interpretacionesTomás formula allí tres afirmaciones: (1) el dominium en el estado de inocencia no debe ser entendido como un hecho, sino como una facultad o propiedad esencial de la constitución ontológica de la naturaleza humana; (2) en el estado de inocencia no existieron efectivamente vín­ culos de dominium entre los hombres; puesto que se trataba solamente de una propiedad o facultad de la naturaleza humana, esa propiedad podía efectivizarse o podía no hacerlo; de allí que la realización fáctica del dominium­en el estado de inocencia solo haya asumido el carácter de una posibilidad; (3) en cuanto propiedad de la humanidad, el dominium en el estado de inocencia es independiente de las consecuencias del pecado so10 

Tomo la expresión “causalidad negativa” de Lachance, op. cit., 291. “Dicit ... Augustinus: ... non voluit Deus [hominem] nisi irrationalibus dominari; non hominem homini...” (I, q. 96 a. 4). 12  “illud quod est introductum in poenam peccati, non fuisset in statu innocentiae. 11 

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bre la naturaleza humana originaria y, por ello, no puede ser consi­derado como un momento de un orden negativo o como efecto de una serie causal negativa 10. Las dos primeras afirmaciones señalan mi distan­cia de las interpretaciones tradicionales; la tercera coincide con ellas. En síntesis: Tomás no se expide acerca de la existencia de hecho en el status innocentiae de vinculos de dominium, pero puesto que considera que el dominium es una propiedad de la estructura ontológica de la natu­ raleza humana, sí se expide afirmativamente acerca de la posibilidad de su existencia. Tomás se limita a afirmar que los vínculos de dominium, que con Aristóteles lee como vínculos políticos, estaban presentes en el estado de inocencia solo como propiedades de la naturaleza humana: porque se trataba de propiedades, pudo haber existido dominium, inde­ pendientemente de su realización fáctica. Cuando reproduce los argumentos que refuta, Tomás resume el contenido teórico de una línea del pensamiento político que se remonta hasta San Agustín. Tomás atribuye tres argumentos a esa tradición. Dos de ellos merecen atención. El primero se apoya en la autoridad del De civitate Dei de Agustín, para quien Dios no quiso que el hombre, imago Dei, ejerciera dominium sobre el hombre, sino solamente sobre las bestias 11. El segundo insiste en el primero, pero avanza en la intensidad de su afirmación: Dios no sólo no quiso que existiera dominium del hom­bre sobre el hombre, sino que ese dominium aparece como castigo, es decir como un efecto negativo causado por el pecado 12. Así el dominium y, por ende, la politica quedan atados a la ruptura y a la enajenación que padece la naturaleza humana respecto de su estado originario. De ello parece deducirse, concluye Tomás, que en el status innocentiae no existió dominio del hombre sobre el hombre 13. Antes de presentar su propia posición Tomás se distancia de la posición del maestro. Para ello recurre a una estrategia consistente en desplazar sus propios argumentos hacia un terreno distinto del terreno en Sed hominem subesse homini, introductum est in poenam peccati...” (ibid.). 13  “...in statu innocentiae non erat homo homini subiectus”; “...homo homini in statu innocentiae non dominabatur” (ibid.). 14  “...dominium accipitur dupliciter. Uno modo, secundum quod opponitur servituti: et sic dominus dicitur cui aliquis subditur ut servus... Primo ergo modo accepto dominio, in statu innocentiae homo homini non dominaretur... Cuius ratio est, quia servus ... ordinatur ad alium. Tunc ergo aliquis dominatur alicui ut servo, quando eum cui dominatur ad propriam utilitatem sui, scilicet dominantis, refert ... Propter quod, in statu innocentiae

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el que colocó los argumentos que atribuye a la tradición agustiniana. La diferencia entre ambos terrenos reside en que, cuando alude a la posición agustiniana, Tomás utiliza siempre el modo indicativo, que expresa la realidad; con él quiere poner de manifiesto que para Agustín fue un factum, es decir fue un hecho efectivo que en el estado de inocencia non erat homo homini subiectus y que homo homini ... non dominabatur. En cam­ bio cuando presenta su propia posición acerca de aquella misma situación Tomás utiliza siempre el modo subjuntivo que expresa la posibilidad. Esa variante ya se perfila en el Sed contra del artículo, donde Tomás no habla acerca de lo que, según Agustín, sucedió efectivamente en el estado de inocencia, sino acerca de lo que, según el mismo Tomás, pudo haber sucedido teniendo en cuenta las propiedades constitutivas de la natu­raleza humana en ese estado. Por ello afirma: “non est contra digni­ tatem status innocentiae, quod homo homini dominaretur”. Con ello no intenta hacer referencia a un hecho que sucedió, sino a la presencia en ese estado de inocencia de una naturaleza humana cuyas propiedades no rechazaban, sino que admitían la posibilidad de la existencia de dominium. Mientras este último texto utiliza el modo indicativo est para afirmar el carácter real de la estructura constitutiva de la naturaleza humana en el status innocentiae, utiliza en cambio el modo subjuntivo dominaretur para aludir a las posibilidades implícitas en esa naturaleza humana en el estado de inocencia. La consecuencia más importante de esta inflexión implícita en el empleo de dos modos verbales diferentes es que para Tomás no se trata de refutar las tesis de Agustín mediante una simple negación “horizontal”, es decir manteniéndose en el mismo terreno que ellas y contrafirmando que en el estado de inocencia existió dominium. En otros términos, Tomás no se opone a Agustín sosteniendo que existió dominium, sino afirmando que el dominium es una propiedad compatible con la estructura ontológica de la humanidad en el estado de inocencia; por ello, en virtud de esa compatibilidad, pudo existir dominium en ese estado. Para expresar esa situación posible Tomás utiliza el modo subjuntivo (dominaretur) que no abandona hasta el final del artículo. El tránsito desde la utilización de un modo verbal a otro es expresivo del alcance que Tomás intenta atribuir a sus afirmaciones. Éstas no están referidas a lo que efectivamente sucedió o no sucedió en el estado de inocencia, sino, en primer lugar, a cómo debe entenderse la constitución

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estructural de la naturaleza humana en ese estado de inocencia y, en segundo lugar, a las consecuencias fácticas posibles, pero no necesarias, implicadas en esa constitución estructural de la humanidad y derivables de ella. El objetivo de Tomás no parece ser expedirse acerca de los hechos que tuvieron lugar antes del pecado, sino lograr una definición conceptual de dominium como propiedad perteneciente a la constitución estructu­ral de la naturaleza humana en el estado de inocencia. Recién a partir del esclarecimiento de esa constitución estructural originaria puede afirmarse lo que en ese estado primigenio podría haber sucedido, independien­te­ mente de su efectiva realización. En el cuerpo del artículo Tomás rompe con la posición agustiniana que ata la politicidad al pecado y que niega que los vínculos de dominium entre los hombres correspondan a la estructura constitutiva de la natura­ leza humana originaria. Tomás, en cambio, anula la influencia del pecado en la definición esencialmente política de la naturaleza humana y, con ello, independiza el dominium respecto de la historia de la salvación conse­cuente al pecado. Cuando avanza hacia la exposición de su propia posición Tomás comienza construyendo su respuesta con una distinción entre dos tipos de dominium. El primero resulta del carácter de servus del sujeto sobre el que se ejerce el dominium. De esta relación resulta un dominium que equivale a servidumbre. Tomás descarta la posibilidad de existencia en el estado de inocencia de este dominium ejercido sobre el servus (in statu innocen­ tiae non fuisset tale dominium) 14. Aunque no lo dice explícitamente, es obvio que el fundamento de su rechazo reside en la incompatibilidad que se verifica entre el contenido conceptual de la definición de naturaleza humana íntegra – no afectada por el pecado – y el contenido conceptual de un dominium en el que el dominado es utilizado en provecho del domi­ nante. Esta forma de dominium implicaría un vicio en la integridad de la naturaleza humana que sería contradictorio con el contenido conceptual de la condición ontológica íntegra de esa naturaleza en ese estado. non fuisset tale dominium hominis ad hominem”. (ibid., Resp.). 15  “...ille qui habet officium gubernandi et dirigendi liberos, dominus dici potest... secundo modo accepto dominio, in statu innocentiae homo homini dominari potuisset” (ibid.). 16  “Tunc vero dominatur aliquis alteri ut libero, quando dirigit ipsum ad proprium bonum eius qui dirigitur, vel ad bonum commune. Et tale dominium hominis ad hominem in statu innocentiae fuisset...” (ibid., Resp.).

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El segundo tipo de dominium resulta del carácter de liber del sujeto sobre quien se ejerce el dominium. Se trata ahora de un dominium genuino que Tomás llama officium gubernandi et dirigendi liberos. Del mismo modo como lo hizo cuando descartó la posibilidad del dominio servil, aquí Tomás sigue manteniendo su discurso en el nivel de la posibilidad para afirmar ahora que el dominium en el estado de inocencia habría sido posible (homo homini dominari potuisset) y que ese dominium habría podido consistir en el ejercicio de vínculos subordinantes por parte de un dominus sobre hombres libres 15. Tomás hace descansar la diferencia entre la situación en la que aliquis dominatur alicui ut servo y la situación en la que aliquis dominatur alteri ut libero en el hecho de que, en el segundo caso, desaparece la viciosa situa­ción implícita en la utilitas dominantis, que es sustituída por el pro­ prium bonum eius qui dirigitur y por el bonum commune. Este último dominium -que descansa tanto sobre el bien del dominado como sobre el bien común – es el que podría haber existido en el estado de inocencia: tale dominium ... in statu innocentiae fuisset 16. § 2 b.  El tránsito lógico-conceptual desde la sociabilidad hacia los vínculos de dominium Hasta aquí Tomás se ha extendido acerca del dominium posible en el estado de inocencia y lo ha definido en virtud del carácter de liber del dominado. Pero no ha presentado todavía ningún argumento que funda­ mente la posibilidad del dominium. De los dos argumentos presentados por Tomás interesa en particular el primero, que descansa en la diferen­ ciación entre sociedad y sociabilidad por una parte y dominium o politi­ cidad por la otra. Debe tenerse en cuenta que la distinción entre sociedad y domini­ um sobre la que trabaja Tomás es ajena al pensamiento aristotélico. En los primeros capítulos de la Politica Aristóteles trata el problema de la 17 

Cf. Politica , I, 1253 a10. En la versión de Guillermo de Moerbecke: “quod autem civile animal homo omni ape et omni gregali animali magis, palam” (Aristotelis Politico­ rum Libri Octo cum Vertusta translatione Guilelmi de Moerbeka. Recensuit Franciscus Susemihl, Lipsiae, 1987, 8). 18  Pol., I, 1253 a2. 19  ut supra, nota 17, 7. 20 Téngase en cuenta que mientras que en los textos de la Summa que analizamos aquí

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politicidad natural del hombre, pero no se extiende acerca de la socia­ bilidad natural. Aunque presenta el problema de la politicidad natural en estrecha conexión con el carácter gregario de los animales, sin embargo Aristóteles parece reservar el atributo de gregario (¢gelaioj) solo para éstos, mientras que atribuye al hombre la politicidad 17, propiedad dife­rente de la gregariedad o de la sociabilidad. La politicidad es, pues, más que sociabilidad. Aunque ella consiste en una natural pertenencia del hombre a una koinwnÌa, la pólis, esa pertenencia logra su perfecta y completa realización recién en el momento en que la pertenencia hace al hombre protagonista de los vínculos de dominium que se verifican dentro de la pólis y que son específicos de ella. Politicidad, pues, para Aristó­teles, es equivalente a la pertenencia a un ámbito de vínculos de dominio específicos. Precisamente, esos vínculos se denominan políticos porque tienen lugar solamente dentro de la pólis. Pero mientras Aristóteles no dedica ningún desarrollo teórico al problema de la sociabilidad humana, en cambio se dedica todo su empeño al problema que llama o anqrwpoj φÚsei politikÕn z%on 18, perífrasis que Guillermo de Moerbecke, en su versión latina de la Politica, tradujo como homo natura civile animal 19. El peso que Aristóteles pone en el problema de la politicidad natural explica porqué la Politica es generosa en su lenguaje sobre la politicidad, pero en cambio casi no se refiere ni a la sociabilidad ni a la sociedad por naturaleza en relación con el hombre. Tampoco la traducción latina de la Politica de Guillermo de Moerbecke que leyó Tomás menciona la palabra societas o alguno de sus derivados, ni tampoco los vincula con la naturaleza humana. Según Aristóteles el hombre se integra naturalmente en las distintas comunidades o koinwnÌai: la casa, la aldea y la ciudad; pero en lugar de desarrollar una teoría acerca del carácter gregario de esas comunidades, el discurso aristotélico se dedica a definir los distintos tipos de vínculos subordinantes que se verifican entre los miembros de cada comunidad, a diferenciarlos respecto de los vínculos políticos y a establecer sus mutuas relaciones. El núcleo Tomás opera ese tránsito como un paso puramente lógico desde el concepto de sociedad y de sociabilidad hacia el concepto de politicidad y dominium, en cambio en el De Regno el tránsito tiene lugar dentro de la historia, es decir avanza desde el hecho de la sociedad hacia el hecho del dominium, no en términos solamente conceptuales, sino dentro de una dimensión fáctica, claramente histórico-temporal. Sobre ese tránsito me permito referir a mi trabajo “El uso de la causalidad en la reflexión política....”, ut supra, nota 7. 21  Sobre esas fuentes latinas – Macrobio, Lactancio, Séneca y sobre todo Cicerón –

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del discurso aristotélico es, pues, la pÒlij, no lo que los latinos definieron como societas, referida a un impulso solo gregario. En síntesis, el discurso aristotélico es político porque se especifica como teoría acerca de los vínculos de subordinación propios de cada una de las koinwnÌai que culminan en la pÒlij, no como teoría acerca de la sociabilidad natural del hombre. Esas características del pensamiento aristotélico y las diferencias entre­Tomás y el Estagirita ponen en duda la posibilidad de hablar de “pensa­miento aristotélico-tomista”, por lo menos en referencia a los pasajes que estamos analizando. Tomás introduce una evidente novedad que lo distancia respecto del pensamiento aristotélico: distingue con nitidez entre sociabi­lidad natural y dominium y, sobre la base de esa distinción, propone una suerte de tránsito, un avance teórico desde la sociedad hacia el domi­nium. Ese tránsito anticipa y es paralelo al tránsito que realiza en el De Regno 20. Tomás se mantiene siempre en el terreno de la posibilidad; su tránsito no procede desde el hecho de la existencia de vínculos sociales hacia el hecho de la existencia de vínculos políticos o de dominium, sino desde el concepto o la posibilidad de la sociabilidad hacia el concepto o la posibilidad de la politicidad. Tomás expone en tres momentos el argumento que muestra el paso desde la sociedad hacia el dominium. En el primero afirma un presupuesto sin demostrarlo: la sociabilidad como propiedad de la naturaleza humana: homo naturaliter est animal sociale. Aquí vuelve a hablar de una propiedad del hombre, no de la efectivización de esa propiedad. Tomás no recurre a Aristóteles para apoyar su afirmación pues, como lo hemos visto, la sociabilidad natural no es una idea aristotélica. Numerosas fuentes latinas – que Tomás segura­ mente debió conocer y que puede haber tenido en cuenta al redactar el texto – aluden al carácter natural de la societas 21. v. Cary Nederman, “Nature, Sin and the Origins of Society: the Ciceronian tradition in medieval Political Thought”, en: Journal of the History of Ideas”, XLIX (1988) 1, 3-26. 22  “Primo quidem, quia homo naturaliter est animal sociale; unde homines in statu innocentiae socialiter vixissent” (I, q. 96 a. 4, Resp.). 23  “Socialis autem vita multorum esse non posset, nisi aliquis praesideret, qui ad bonum­ commune intenderet: multi enim per se intendunt ad multa, unus vero ad unum” (ibid.). 24  La expresión “determinación estructural” es utilizada por Georg Wieland en “La recepción de la Politica aristotélica y el desarrollo del concepto de estado en el medioevo tardío en Tomás de Aquino y Marsilio de Padua”, en: Patristica et Mediaevalia XXI

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En el segundo momento avanza desde la afirmación de la sociabilidad natural como propiedad a la afirmación de la sociabilidad como posibi­ lidad: es decir, puesto que se trata de un rasgo de la naturaleza humana, pudo haber habido vida social en el estado de inocencia: unde homines in statu innocentiae socialiter vixissent 22. El tercer momento es el momento resolutivo del argumento. Este tercer momento opera un tránsito lógico desde la sociabilidad como posibi­ lidad al dominium como posibilidad. El fundamento del tránsito reside en que el concepto de vida social o vita multorum – equivalente a la congre­ gación de muchos – exige un gobierno, es decir un unum que conduzca la multitud hacia su fin en cuanto multitud: el bonum commune. El tránsito lógico desde la sociabilidad hacia el dominium resulta de una funda­ mentación teórica que actúa como mediadora entre sociedad y política o, lo que es lo mismo, entre la sociabilidad y la necesidad racional del dominium. Tomás sugiere aquí la imposibilidad conceptual de pensar en la noción de socialis vita multorum sin dominium; de allí la inseparabilidad de la primera respecto del segundo. La fundamentación del tránsito resulta, pues, del despliegue del contenido del concepto de vita multorum: la congregación de muchos sin gobierno implicaría que cada uno de esos muchos tendería a fines diversos, no coincidentes con el fin unitario de la sociedad como todo 23. El mismo contenido del concepto de socialis vita multorum sin gobierno en el estado de inocencia implica una suerte de potencial con­ flicto en los fines en la sociedad. Ese potencial conflicto es provocado por el carácter esencialmente diversificado de la vida de los hombres en sociedad. Sin dominium, esa diversificación pondría en peligro el fin de la societas, el bonum commune. Por ello el dominium es una propiedad de la naturaleza humana cuya presencia habría sido exigida por el concepto de sociedad aún en el estado de inocencia, pues aún en ese estado la socialis vita multorum, que como propiedad está presente en la naturaleza humana, implica necesariamente que esos muchos podrían tender hacia bienes múltiples que habrían puesto en peligro el fin único de la sociedad. En consecuencia, aún en el estado de naturaleza originaria la

(2000), 28. 25  “Quecumque enim ex pluribus constituta sunt, et fit unum aliquod commune sive ex coniunctis sive ex divisis, in omnibus videtur principans et subiectum...” (Politica, Translatio prior imperfecta..., ut supra, nota 114, p. 8). 26  “Et ideo Philosophus dicit in principio Politicorum [1252a 28] quod quandocum­

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constitución antropológica naturalmente social requiere salvaguardar el fin de la sociedad como unidad; a su vez, esa unidad exige un gobierno; por ello el dominium asume el carácter de principio constitutivo necesario de la naturaleza humana y la pólis – como ámbito de vínculos de gobierno, es decir de dominio – se transforma en “determinación estructural” de la vida humana en comunidad 24. Las diferencias entre las tipologías del dominium y de la sociedad realizadas por Tomás muestran que el dominium ingresa en la argumen­ tación como un momento cualitativamente distinto respecto de la socie­ dad, es decir como un plus respecto de ella. Para Tomás dominium no es vida social, sino ejercicio de un gobierno mediante vínculos verticales que actúan sobre la multitud que vive en sociedad. De allí que, en primer lugar, el dominium se presente como una situación esencialmente distinta de la societas y que, en segundo lugar, el dominium asuma una suerte de posterioridad lógica respecto de la sociedad. Esa posterioridad lógica se explica por el hecho de que el dominium es requerido por el carácter intrínsecamente no unificado – es decir conflictivo – de los fines de los individuos que viven en la societas. Del argumento resulta claro que Tomás adquiere seguridad de encontrarse en terreno aristotélico recién cuando en su discurso irrumpe el dominium. Por ello, cuando argumenta en favor de la necesidad del dominium, concluye su argumentación apoyándose en un pasaje de la Politica 25 que sostiene que cuando una multitud de cosas se ordena a una, una de ellas actúa siempre como principal y rectora 26. Ello sugiere llamar la atención sobre el modo como Tomás organiza sus fuentes para construir su posición. En el primer momento de su argumento no se apoyó en Aristóteles para afirmar la sociabilidad natural, pero sí lo hace en el tercer momento para afirmar la necesidad de dominium. Por ello que multa ordinantur ad unum, semper invenitur unum ut principale et dirigens” (ibid.). 27  “Ad secundum dicendum quod duplex est subiectio. Una servilis, secundum quam praesidens utitur subiecto ad sui ipsius utilitatem; et talis subiectio introducta est post peccatum. Est autem alia subiectio oeconomica vel civilis, secundum quam praesidens utitur subiectis ad eorum utilitatem, et bonum: et ista subiectio fuisset etiam ante peccatum: defuisset enim bonum ordinis in humana multitudine, si quidam per alios sapientiores gubernati non fuissent” (STh, I, q. 92. a 1, ad 2um). 28  ibid. 29 V. supra, notas 14 y 15. 30  Politica, 1253b 15 ss.

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la argu­mentación de Tomás presenta un marcado interés histórico: ella muestra el alcance de su dependencia respecto de Aristóteles en cuanto a la temática del dominium, pero al mismo tiempo muestra su propósito de ir más allá de la posición aristotélica cuando introduce el tema de la sociabilidad natural como término a quo de su argumento. Tomás procede así porque sabe qué sostuvo y qué no sostuvo Aristóteles. Ello muestra su conocimiento de los temas que lo acercan y que lo separan del planteo aristotélico. § 2 c.  La definición conceptual del dominium en el estado de inocencia (STh. I, q. 92, a. 1) Hasta aquí Tomás ha afirmado que el dominium en el estado de inocencia fue posible y ha expuesto los fundamentos teóricos de esa posibilidad. Podemos interrogarle ahora por las categorías con que puede ser expresado el dominium. Si el dominium en el estado de inocencia fue posible porque la sociabilidad exige un gobierno, ¿cómo puede definirse conceptualmente ese dominium? es decir ¿qué significa dominium en términos rigurosamente teóricos? Tomás ha respondido esa pregunta en el artículo 1 de la quaestio 92 de la I pars de la Summa Theologiae, ya antes de tratar en el artículo 4 de la quaestio 96 las relaciones entre sociedad y dominium. En su respuesta Tomás insiste en la distinción entre dominium o subiectio servilis – en la que el dominado es utilizado para utilidad del dominante – y otra subiectio que puede ser oeconomica o civilis. Tomás descarta la subiectio servilis, que irrumpió post peccatum, y sostiene que en el estado de inocencia solo fue posible la existencia de la subiectio oeconomica o civilis 27. Aunque su respuesta es breve, ella asume una triple importancia. En primer lugar, porque en ella Tomás define por primera vez en términos teóricos su pensamiento acerca del problema del dominium en el status innocentiae. En segundo lugar, porque esa definición teórica del dominium 31  “Propter quod et expediens aliquid est etiam amicitia servo et domino ad invicem” (ibid., 1255b 11-13). 32  “in omnibus videtur principans et subiectum” (Politica, 1254a 30). 33  “Principari enim et subici non solum necessariorum sed et expedientium est” (ibid., 1254a 21-23). 34  “ex equali autem aut e contrario nocivum omnibus” (ibid., 1254b 8).

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lo identifica totalmente con la subiectio oeconomica y con la civilis, es decir con los vínculos de subordinación económicos y políticos aristo­ télicos. Y en tercer lugar porque al asumir esa definición del dominium­ agudiza su dependencia respecto del texto de la Política. La subiectio oeconomica y la subiectio civilis son categorías que Aristóteles define extensamente en las primeras líneas de la Política para presentar los vínculos de subordinación que tienen lugar dentro del oøkoj (la casa) y de la pÒlij (la ciudad). El hecho de que Tomás identifique esas categorías con el dominium en el estado de inocencia muestra que, cuando se trata de definir la naturaleza política del hombre en el estadio originario, su referente teórico es la politicidad aristotélica. Esta dependencia respecto del aparato conceptual de la Politica aristotélica se intensifica aún más cuando Tomás muestra que se trata de dos modos de subiectio en los que el objetivo de quien domina no es alcanzar su propia utilidad – pues esta subiectio es resultante de pecado –, sino la de los subordinados: praesidens utitur subiectis ad eorum utilita­tem, et bonum 28. Como ya lo hemos visto, el problema del bonum y de la utilitas del subordinado en el vínculo de dominium tambien es tratado por Tomás en STh. I, q. 96, a 4 29. A pesar de la insistencia de Tomás en el problema, obviamente no se trataba de un problema nuevo. En un extenso pasaje de la Politica Aristóteles lo trata dentro del contexto de las relaciones entre el señor y el esclavo30 . No es el caso entrar aquí en los detalles del problema. Sí podemos recordar que allí Aristóteles destaca los aspectos positivos de una relación en la que el esclavo recibe una utilidad de ella, ya que de esa relación surge un interés común del que manda y tambien del que obedece 31. El lenguaje de Aristóteles delata una tendencia a no limitar su discurso a las relaciones señor-esclavo, sino a extender su vigencia a todo ámbito en el que se verifican relaciones de subordinación. Es en esa dirección que deben interpretarse algunas afirmaciones aristotélicas, como la que sostiene que en todo compuesto se encuentra una parte que manda y otra que obedece 32 y, en especial, las que afirman que esas relaciones de 35 

Son fundamentales los finos análisis del problema de la politicidad en el status innocentiae y su continuidad post peccatum realizados por Bruno Nardi en su trabajo Saggi di filosofia dantesca, Firenze, 1967 (2da. ed.), 215-224.  36 V. supra, nota 1.

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subordinación no solo son necesarias, sino útiles 33 y que incluso es negativo que las partes del vínculo se encuentren en posiciones iguales 34. Es posible que esta tendencia de Aristóteles a extender su discurso más allá de la relación entre señor y esclavo haya sugerido a Tomás la utilización de la argumentación aristotélica para construir sus propios argumentos en favor de la utilidad y del bien de los subordinados en la relación de dominium que llama subiectio civilis. § 3.  Conclusión En los dos artículos que hemos examinado Tomás opera tres importantes pasos: 1) afirma que el dominium fue posible en el estado de inocencia; 2) demuestra que ese dominium fue posible porque es un rasgo propio de la humanidad perceptible ya en la constitución antropológica originaria; con ambas afirmaciones independiza el dominium respecto de la historia de la salvación que comienza con el pecado del primer hombre; y 3) define el dominium como subiectio civilis. Podemos detenernos ahora en algunos aspectos que ayudan a esclarecer el pensamiento de Tomás y, sobre todo, a definir su relación con el de Aristóteles. En primer lugar, a la luz de los contenidos teóricos que Tomás expone en ambos artículos, podemos formular los término con que Tomás habría respondido la pregunta que da su título al artículo 4 de la quaestio 96, utrum homo in statu innocentiae homini dominabatur. Tomás habría respondido así esa pregunta: in statu innocentiae homo homini domi­naretur, donde el subjuntivo dominaretur alude al dominium como posibilidad. En segundo lugar, la argumentación de Tomás muestra una interesante situación histórico-cultural. Ella resulta de la confluencia de su teología con el hecho histórico de la recepción de la Politica aristotélica. Tomás está colocado en una situación coyuntural – las consecuencias de la recep­ción del aristotelismo – que lo lleva a interpretar la condición política de la naturaleza humana originaria utilizando la filosofía aristotélica. Por una parte su argumentación toma el estereotipo de la humanidad de un dato

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de la revelación: la constitución antropológica originaria. Por la otra lee esa situación originaria de la naturaleza humana – en lo que concierne a su poli­ticidad – en una clave novedosa: la clave aristotélica. Tomás, pues, describe un dato de la revelación con la doctrina de los vínculos de domi­nium esen­ciales a la naturaleza humana que ofrece el discurso filo­sófico aristotélico. El tercer aspecto, que se deriva del anterior, se refiere a las conse­ cuencias de su utilización de la naturaleza aristotélica para definir el carácter político de la naturaleza en el estado de inocencia. Puesto que para Tomás la naturaleza es una y la misma antes y después del pecado, las perfecciones posibles de esa naturaleza que pueden ser relizadas por medio de la politicidad – es decir, el dominium – son las mismas antes y después del pecado. Si el dominium no hubiera existido tambien en el estado de inocencia, la naturaleza humana ante peccatum habría sido diferente de la naturaleza post peccatum 35. El cuarto aspecto concierne a las consecuencias de la dependencia de Tomás respecto de Aristóteles cuando afirma la posibilidad del dominium en el estado de inocencia. Esa dependencia lo coloca en una curiosa paradoja. Ella resulta, por una parte, de aceptar el dominium aristotélico como propiedad de la naturaleza humana y, por la otra, de admitir al mismo tiempo la presencia de ese dominium en un estadio de esa natu­ raleza humana que sin embargo, por definición, no delata falencias, excluye el conflicto y, por ende, no debería requerir de un dominium que Tomás define apelando a su función neutralizante de los conflictos entre los diversos fines de los hombres en sociedad. Tomás se encuentra aquí frente a una situación que le impide excluir el dominium del estado de inocencia y que, por ende, lo coloca frente a una forzosa alternativa: o bien admite la existencia efectiva de un dominium que sin embargo es innecesario en el estado de inocencia y, por ello contradictorio con ese estadio, o bien admite algún tipo de presencia de ese dominium que, sin embargo, no necesariamente implique el ejercicio efectivo de su función neutralizante de conflictos. Es obvio que si Tomás hubiera optado por asumir el pensamiento aristotélico afirmando la existencia efectiva de

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vínculos de dominium en el estado de inocencia, habría debido explicar la compatibilidad entre la integridad de la naturaleza humana y la exis­ tencia en ese estado de vínculos de dominium que son, sin embargo, innecesarios para neutralizar conflictos inexistentes. De allí que la única solución posible para superar esa dificultad y resolver la paradoja sea la escogida por Tomás, es decir presentar ese dominium no como existente de hecho, sino como una propiedad que no implicaba ni la existencia ni la no existencia fáctica de vínculos de dominium, sino solo su simple posibilidad. Así, tanto el dominium como la sociabilidad anterior a él, son solo propiedades del concepto de naturaleza humana in statu innocentiae. Por último, en quinto lugar, debe tenerse en cuenta que la nueva relación que se genera entre la teoría política de Tomás y Aristóteles evidencia no solamente la fuerte deuda tomista frente al Estagirita; ella anuncia además la deuda teórica que tambien el pensamiento político posterior a Tomás asumirá frente a Aristóteles. Los textos que hemos analizado fueron redactados por Tomás con pleno conocimiento del ciclo completo de los libri morales de Aristóteles, es decir la Etica Nicomaquea – traducida totalmente al latín hacia 1248 por Roberto Grosseteste – y la translatio perfecta de la Politica, disponible en latín a partir de 1265 en la versión de Guillermo de Moerbecke. Teniendo en cuenta que Tomás concluyó la redacción de esta parte de la Summa theologiae en 1268 36, puede explicarse su fuerte privilegio de las ideas de Aristóteles acerca de la politicidad natural en virtud de su reciente lectura de ese texto aristo­ télico y de la permanencia de esa politicidad natural aristotélica dentro de su horizonte intelectual. Ello no solo permite identificar los contenidos teórico-sistemáticos de la solución tomista del problema de las relaciones entre sociabilidad y politicidad en el estado de inocencia, sino tambien las características de la nueva situación histórica y del nuevo camino que las ideas políticas comienzan a recorrer a partir del conoci­miento medieval de la Politica aristotélica. En última instancia, el problema que hemos analizado en los textos tomistas no son otra cosa que un interesante capítulo de la recepción medieval del aristotelismo. Francisco Bertelloni

(Universidad de Buenos Aires)

A SOCIEDADE CIVIL EM GUILHERME DE OCKHAM 1.  O pensamento político de Ockham Sobre o pensamento político de Ockham, algumas observações, talvez óbvias, precisam ser feitas inicialmente. Em primeiro lugar, convém ter presente que Ockham não foi propria­ mente um politólogo e não se entendeu como um filósofo político. São ocasionais seus numerosos e importantes textos sobre matéria que nós, hoje em dia, chamamos política, textos que somam, em edição crítica, bem quatro volumes, aos quais acrescentar-se-ão, creio, outros tantos, con­tendo o Dialogus 1. Ele foi, por vocação, até o fim, um teólogo-filósofo; talvez possamos dizer que, até seus últimos dias, continuou sonhando com a cátedra de Oxford, à qual J. Lutterell impediu-lhe o acesso. Sua carreira, como sabemos, divide-se em dois distintos períodos: uma década de vida acadêmica e duas décadas de envolvimento em questões eclesiásticas e políticas. Mas o que apreendeu na universidade, sobre a forma de debate argumentativo, haverá de acompanhá-lo por toda a vida. Por isso, mesmo após a fuga de Avinhão, em 1328, continuará sendo o pensador que olha o problema por todos os lados e que nem sempre encontra a resposta que 1 As

obras de Ockham são citadas: Brevilóquio sobre o principado tirânico. Trad. De Luis A. De Boni. Petrópolis: Vozes, 1988. Os quatro escritos: Tratado contra Benedito, Pode um príncipe, Consulta sobre uma questão matrimonial, Sobre o poder dos papas e dos imperadores. In: Guilherme de Ockham. Obras políticas. Trad. de José A. de C. R. de Souza. Porto Alegre/Bragança Paulista: Edipucrs/USF, 1999. O Dialogus pela edição Goldast (Reprint Torino: Bottega d’Erasmo, 1966). Há projeto de edição crítica desta obra, com tradução para o inglês de J. Kilcullen e J. Scott, encontrável na Internet. As demais obras são citadas pela edição crítica Hoffler/Sikes. Guillelmi de Ockham. Opera politica. Manchester/Oxford: University Press, 1940-1997. Os textos dos quais não há tradução para o português são por mim traduzidos. Dos textos dos quais há tradução, é dela a primeira referência bibliográfica, sendo a da edição latina indicada a seguir, iniciando-se com o número romano do volume.

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gostaria de encontrar. Sintomático que sua principal obra, como o próprio nome indica, seja o Dialogus, uma forma didática não desconhecida na Idade Média – Abelardo já a utilizara –, mas pouco usada: nele o mes­ tre e o discípulo analisam, sob ângulos diversos, um mesmo problema, apresen­tando argumentos, testando o valor de cada um deles, sem contudo mani­festarem a própria opinião; a pergunta já é parte da resposta e a re­ sposta encaminha outra pergunta; por vezes retoma-se o tema em outro contexto, surgem novos argumentos, e mesmo assim ‘a’ solução não se apresenta e muitas questões permanecem em aberto, etc. Nas demais obras políticas, embora não de modo tão acentuado, o método continua sendo o mesmo, e assim, uma questão, já vista em uma obra, é retomada em outra, nuanceada e corrigida, parecendo por vezes que o autor está a repetir-se. Contudo, apesar do volume dos escritos, eles não deixam de ser cir­ cuns­tanciais: nada existe neles que possa assemelhar-se à sistematização de uma teoria política, pois escrever um tratado de política ou um co­ mentário sobre a Política eram coisas que fugiam-lhe do campo de inte­ resse. Nisso não se afastou de seus irmãos de hábito, entre os quais houve tão-somente dois comentários a esta obra, sendo que um foi composto em 1431, sobre a nova tradução empreendida por Leonardo Bruni 2. Da mes­ma forma, ninguém dentro da ordem – nem mesmo Francisco Mai­ rones ou Álvaro Pais – escreveu um verdadeiro tratado sobre o tema: os textos foram sempre escritos de ocasião, embora alguns de fundamental impor­tância para seu tempo. Dante, no De monarchia, e principalmente de Marsílio, no Defensor pacis, olham politicamente para os fatos políticos. Por isso, para mui­ tos, Marsílio é o primeiro pensador político da modernidade. O mesmo não acontece com Ockham. É pelo viés teológico que ele se aproxima da polí­tica. Tomemos um exemplo: em um de seus últimos escritos, o Breviló­quio sobre o principado tirânico 3, cujo tema, tal como indica o título, é o questionamento da ambição de plenitude do poder por parte dos papas de Avinhão, o núcleo da obra não é a análise do conceito de 2 Ch. Flüeler. Rezeption und Interpretation der aristotelischen Politica im späten Mittelalter. Amsterdam-Philadelphia, 1992, 2o vol. p. 43-46. Cf. a respeito as observacöes de A. Tabarroni. “Francescanesimo e riflessione politica sino ad Ockham”. In: Società Internazionale di Studi Francescani. (org.) Etica e Politica. Le teorie dei frati mendicanti nel due e trecento. (Atti del XXVI convegno internazionale. Assisi, 15-17/10/1998). Spoleto, 1999, p. 210s. 3 Brevilóquio 1, 7, p. 37s. (IV, 122 ss.)

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tirania, ou o estudo jurídico sobre a extensão do poder pontifício, mas a pergunta a respeito do poder que Cristo concedeu ao papa e ao imperador, porque compete precipuamente ao teólogo, não a outrem, saber o que foi conce­dido ao papa [ao imperador e aos reis] por direito divino. Da mesma forma, ao tratar Sobre os poder dos papas e dos imperadores, ou ao redi­gir as Oito questões sobre o poder do papa, fá-lo acima de tudo como teólogo que lê as Escrituras para saber que poder elas dizem que Cristo conferiu a Pedro e seus sucessores. Para o teólogo, os textos dos santos padres, a argumentação filosófica, a legislação civil ou canônica são sempre fontes secundárias ante a palavra divina. Teólogo envolvido circunstancialmente em questões políticas, requer, pois, que suas obras sejam lidas no contexto que as provocou. Ao con­ trário de Tomás de Aquino, cujos estudos sobre a lei e sobre a justiça, por exemplo, são elaborações acadêmicas dentro de um projeto maior, que é a Suma; cujo De regno ou o comentário In Politicorum também conser­ vam a necessária distância ante os fatos do quotidiano, os textos ockha­ mianos brotam de candentes questões do momento: o debate a res­peito da pobreza de Cristo; a luta entre o papa e o imperador; o rei que quer cobrar impostos do clero para poder levar à frente a guerra; a pergunta sobre a validade de um casamento infrutífero entre casas principescas; a explicação, aos confrades reunidos em capítulo, dos motivos que o impe­ dem de retornar à ordem franciscana, que tanto ama, etc. Mas, por trás da circunstanciabilidade, há uma constante, que se re­ sume em seis pontos, nos quais insiste, em todos seus escritos, e a partir dos quais sua obra deve ser lida: 1. negação da plenitudo potestatis ao papa (mas também ao imperador); 2. condenação das heresias de João XXII; 3. negação do direito do papa de confirmar o imperador; 4. direito de o imperador depor o papa herético 4; 5. independência de origem e de exercício do poder civil ante o poder eclesiástico; 6. exercício do poder, tanto eclesiástico como civil, em função do bem comum, como questão que interessa a todos. 2.  O peso da tradição. Um exemplo: a origem da propriedade Para os quatro primeiros pontos, cf. G. De Lagarde. La naissance de l’esprit laïque au déclin du moyen age. vol. IV. Louvain-Paris: Béatrice-Nauwelaerts, 1962. p. 40. 5 Sobre o pensamento franciscano, de Boaventura a Ockham, no que se refere à pro­ 4

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Ao tratarmos do pensamento político de Ockham é recomendável, en­ fim, que ele seja analisado dentro da tradição que, provindo da patrís­tica, perpassa toda a Escola Franciscana. Com isso, evidencia-se que suas teses não foram intuições caídas das nuvens e, também, que algumas críti­cas, a ele dirigidas, claudicam exatamente por não levar em consideração a genese e o desenvolvimento de teorias que não são exclusivas dele. Tomemos um exemplo que servirá também para elucidar a teoria ock­ hamista do poder: a origem da propriedade privada. 5 Há uma longa tradição cristã, afirmando como sendo uma disposição divina e de direito natural a destinação comum dos bens. Neste sentido, é lapidar a afirmação de santo Isidoro: “Pertence ao direito natural, comum a todos os povos [...] a geração e educação dos filhos, a posse comum dos bens e uma única liberdade para todos” 6. Entre os franciscanos, Alexandre de Hales e Boaventura, ao tratarem do tema, acentuam a distinção entre natureza instituída e natureza decaída, e com isso restringem a abrangência do conceito de natureza 7. Por isso, observa Boaventura: “Que todas as coisas devam ser comuns é um ditame segundo o estado de natureza instituída; que algumas sejam particulares, é um ditame, segundo o estado de natureza decaída, para evitar contendas e disputas” 8. priedade e ao poder, cf. L. A. De Boni. “Propriedade e poder: Aspectos do pensamento político da Escola Franciscana”. In: J. A. C. R. de Souza (org.) Pensamento Medieval – X Semana de Filosofia da UnB. São Paulo: Loyola/Unisantos, 1983, p. 144-159. Uma leitura geral do que foi o percurso da Escola Franciscana, com acentuação de momentos de continuidade e de ruptura, foi intentada em L. A. De Boni: “A escola franciscana: de Boaventura a Ockham”. In: Veritas 179 (set. 2000), p. 317-338). Sobre o problema do conhecimento do individual é clássica e definitiva a obra de C. Berubé. La connaissance de l’individuel au moyen age. Paris: PUF, 1964. O mesmo se diga, em se tratando da matéria, do livro de A. P. Estévez. La materia. De Avicena a la Escuela Franciscana. Maracaibo: Ediluz, 1998. 6 “Ius naturale [est] commune omnium nationum [...]; ut viri et feminae coniunctio, liberorum successio et educatio, communis omnium possessio et omnium una libertas” (Etymologiis 5,4; PL 82, 109). 7 Alexandre de Hales. Summa theologica (ed. Quaracchi, 1924-1948), l. 3, p. 2, inq. 2, q. 4, vol. 4, p. 362s; Boaventura (ed. Quaracchi, 1882-1902). In II Sent. d 44, a. 3, q. 1; II, 1009. Tomás de Aquino, neste ponto, não se afasta da tradição, tomando como de lei natural a propriedade comum dos bens, e como acréscimo da razão humana, pelo direito civil, a posse particular (Suma I-II, 94, a. 5, ad 3um.). 8 Ibid. Na distinção entre comunidade de bens no estado paradisíaco e propriedade particular no estado de natureza decaída radica-se a afirmação dos espirituais – e dos

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A posição de Scotus não é diferente; apenas aprofunda o que seus antecessores já haviam escrito. É conhecida a distinção que ele faz entre lei natural em sentido estrito e lei natural em sentido amplo, pertencendo àquela tão somente “os primeiros princípios da razão prática, evidentes pelos termos, ou as conclusões que necessariamente se seguem deles” 9. Noutras palavras, pertence à lei natural, em sentido estrito, sem jamais estar sujeito à mudança ou exceção, o que se refere às relações do homem para com Deus; as relações dos homens entre si não são propriamente imutáveis. Ora, como os bens materiais existem em função dos homens, não era necessário que no paraíso fosse instituída a propriedade particu­ lar dos mesmos, por não haver quem quisesse apoderar-se de algo em detrimento de outrem. Após o pecado, porém, o risco de discórdia e de faltar o mínimo necessário para a sobrevivência das pessoas mostrou ser conveniente a distribuição dos bens materiais entre os indivíduos. Tal repartição, porém, não foi fruto de uma determinação direta por parte de Deus, nem pertence, em sentido estrito, à lei natural. Ela é fruto da razão humana, que o pecado não obnubilou de todo e que, por isso, é capaz de procurar formas de organização social e econômica que possibilitem a convivência pacífica – pacifica conversatio – entre os homens 10. Como é fácil perceber, Ockham, ao envolver-se na polêmica sobre a pobreza, não precisou procurar novos argumentos para confrontar-se com franciscanos em geral – de que a perfeição da vida exclui a propriedade particular de bens. Portanto, quando da querela entre João XXII e os frades menores, o que estava em jogo era toda uma leitura franciscana de vida. Dizer que Adão e Eva eram proprietários, ou que Cristo e os apóstolos eram donos dos bens, significava, para os frades, afirmar que existia propriedade particular no paraíso, no estado de natureza instituída. Cf. a respeito do debate entre o papa e os espirituais: J. A. C. R. de Souza. “Miguel de Cesena: Ação e Pen­samento Político”, Leopoldianum 38 (1986): 106-147; id. “Miguel de Cesena – Po­ breza Franciscana e Poder Eclesiástico”. In: Itinerarium, 130-131 (1988), p. 191-231; R. Lam­bertini e L. Tabarroni. Dopo Francesco. L’eredità difficile. Torino: Edizioni Gruppo Abele, 1989; M. D. Lambert. Franciscan Poverty. The Doctrine of the Absolut Poverty of Christ and the Apostels in the Franciscan Order 1210-1323. New York: St. Bonaventure, 2. ed. 1992; N. Falbel. Os espirituais franciscanos. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 2. ed. 1995; L. A. De Boni. “O debate sobre a pobreza como problema político nos séculos XIII e XIV”. In: Patristica et Mediaevalia XIX (1998), p. 23-50 (nestes trabalhos há indicação de bibliografia suplementar). 9 III Ord. d. 37, q. un; ed. Vivès, XV, p. 825. 10 IV Ord. d. 15, a 2; ed. Vivès, XVIII, p. 256 ss. 11 Compreendendo-se esta tradição em seu espectro mais amplo, no qual os espirituais ocupam um amplo espaço. Aliás, dentro do vasto campo de estudos a serem efetuados

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João XXII: bastou-lhe recorrer à tradição da ordem 11. O material por ele apresentado não é novo; nova é a forma como é apresentado, o modo polêmico, a extensão do texto. Na trilha de seus confrades, ele também delimita o conceito de lei natural e vê na destinação universal dos bens uma determinação de lei divina e de lei natural. Depois do pecado, porém, a fim de evitar que o apetite imoderado dos maus os levasse a deixar o próximo na miséria, Deus instituiu, sem cooperação humana, o poder de apropriar-se dos bens temporais 12 para possibilitar a convivência pacífica entre as pessoas. A apropriação de fato, porém, “o domínio próprio”, no dizer de Ockham, coube aos homens efetuá-lo, quando a razão mostrou-lhes ser necessário 13. Por isso, possuir propriedades temporais é catalo­ gado por Ockham entre os “bens mínimos”, que a benignidade divina concedeu aos homens após o pecado, para que pudessem viver em socie­ dade 14. Mas concedeu em forma de preceito positivo, “que obriga sem­pre, mas não em toda a circunstância” 15, isto é, trata-se do direito de dispor das coisas terrenas daquele modo que a reta razão indica ser o melhor, não apenas para viver, mas para bem-viver 16, o que não implica que em todas as circunstâncias deva ser instaurado de fato o regime de proprie­ dade particular de bens. De modo geral, portanto, na condição atual da humanidade, deve-se concordar com Aristóteles, contra Platão, quando diz que é melhor que os bens sejam possuídos de forma individual, e não coletivamente. Entretanto, como não se trata de um preceito de lei natu­ ral, “na multidão dos perfeitos, ou dos que tendem com todas as forças à perfeição”, e que, por isso, “amam mais as coisas comuns e mais cuidam delas que das próprias”, não é necessário que haja apropriação individual dos bens, podendo ser eles utilizados em comunidade 17. sobre o pensamento ockhamiano, sem dúvida há ainda muito o que pesquisar sobre a influência dos espirituais sobre o Venerabilis Inceptor. 12 Brev. 3,7, p. 111ss. (IV, p. 178ss.); Dialogus III, I, II, c.5, p. 800; III, II, I, c. 1, p. 871; III, II, I, c. 4, p. 875, Octo quaest. 3, c 8, I, p. 112s. 13 Brev. 3, 7, p. 114 (IV, p. 179s); Opus non. , c. 14, I, p. 431-440; Dial. III, II, I, c. 6, p. 933. 14 Brev. 3, 6, p. 110 (IV, p. 177). 15 Brev. 3, 8; p. 116 (IV, p. 181). 16 Ibid. 3,7; p. 112 (IV, p. 179). 17 Ibid. , p. 113 (IV, p. 180). 18 “Hoc naturalis ordo praescribit, ita Deus hominem condidit [...] Rationalem fac­

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3. A origem do estado – o contratualismo político O legado patrístico, não sem influência estóica, considerava a relação autoridade-súdito como uma violência do homem contra o homem, como fruto do pecado. “Deus – diz Agostinho – não quis que o homem racional, feito à sua imagem, dominasse a não ser sobre os seres irracionais”  18. Nesta linha Alexandre de Hales e Boaventura, ao comentarem as Senten­ ças, perguntaram-se sobre a possibilidade de existência de auto­ridade no paraíso terrestre 19 e, embora reconhecendo o poder dos pais sobre os filhos ou do homem sobre a mulher, negaram que pudesse existir auto­ ridade política, ou relação senhor-servo no estado de natureza instituída. Na segunda metade do século XIII houve, porém, uma reviravolta: a Política de Aristóteles fora traduzida para o latim e logo a seguir comen­ tada por Alberto Magno e Tomás de Aquino. Para os três autores o homem é tido como sendo por natureza um animal político, isto é, por natureza ele tende para a pólis e só nesta se realiza plenamente. Por isso, argumenta Tomás, também no paraíso haveria autoridade política para coordenar vontades diversas, com objetivos diferentes, em vista do bem comum 20. Quase meio século depois, em seus Comentários às Sentenças, Duns Scotus opta pelo legado patrístico-franciscano, contra Aristóteles e Tomás de Aquino. Coerente com sua distinção entre natureza e vontade, cita o Filósofo para dizer que “o homem é por natureza um animal conjugal e doméstico” 21, mas seu curto e denso texto sobre o surgimento da pólis omite qualquer referência ao “animal político”. A cidade surgiu por um contrato entre grupos humanos, não por uma determinação da natureza e, por isso, no paraíso ela não teria existido. Após o pecado, muito da bondade primitiva foi perdido, mas “os homens, mesmo assim, manti­ ve­ram sabedoria e prudência suficientes para, de forma sábia e justa, tum ad imaginem suam noluit nisi irrationabilibus dominari: non hominem homini, sed hominem pecori” (De civ. Dei XIX, 15; PL 41, 643). 19 Cf. Alexandre de Hales. Summa l. 1, p. 2,inq. 4, tr.3, q. 5; vol. II, p. 777ss; Boaventura. In II Sent. d. 44, q. 2; vol. II, p. 1008s. 20 Summa I, q. 96, a 4; q. 92, a. 1, ad 2 um. 21 “Homo naturaliter est animal conjugale et domesticum”. Ord. IV, d. 26, q. 1, n. 6; Vivès, XIX, p. 149. Cf. Aristóteles. VII Ética, 1; 1232a 23ss. 22 “[...] constat autem quod post lapsum potuerunt homines habere sapientiam et prudentiam ad sapienter et iuste condendas leges” (Rep. Par. IV, d. 15, q. 4, n. 9; Vivès, XXIV, p. 234).

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instituírem leis” 22, a primeira das quais foi a de convirem para viver em comunidade, quando assim lhes pareceu conveniente. Diz ele: “A autori­ dade pode ser de duas formas: a paterna e a política. A política também é dupla, residindo ou em uma só pessoa ou na comunidade. – A primeira, isto é, a paterna, é justa pela lei natural, pela qual os filhos devem obe­ decer aos pais; e ela não foi revogada por alguma lei positiva divina, como a de Moisés ou a evangélica, antes foi por elas confirmada. Mas a autoridade política, que é autoridade sobre estranhos, quer resida numa pessoa, quer na comunidade, pode ser justa pelo consenso comum e pela eleição da própria comunidade. A primeira autoridade [a paterna] refere-se aos descendentes naturais, embora não habitem na mesma cidade. – Já a segunda refere-se aos que residem juntos, embora não os unam laços de sangue ou de relações próximas. Assim, por exemplo, se alguns estranhos entre si uniram-se para edificar ou habitar uma cidade e constataram que não podiam ser bem-governados, se não tivessem alguma autoridade, poderiam, então, de comum acordo, admitir que sua comunidade fosse confiada a uma só pessoa ou a um grupo. Sendo confiada a uma só pes­ soa, podiam decidir se a autoridade caberia somente a ela – devendo o sucessor ser novamente eleito – ou também à sua descendência. E esta autoridade política, em suas duas formas, é justa, pois com justiça pode alguém submeter-se a uma pessoa ou à comunidade naquelas coisas que não são contra a lei de Deus”  23. O texto, cuja análise foge ao propósito do presente trabalho, é claro: afastando-se do jusnaturalismo aristotélico-tomista, como observou Har­ ris, Scotus é o primeiro a apresentar os elementos essenciais do con­ 23 “[...] principatus est duplex: vel auctoritas paterna, scilicet, et politica. Politica du­ plex, scilicet in una persona vel in communitate. - Prima, scilicet paterna, iusta est, scilicet ex lege naturae, qua omnes filii tenentur parentibus obedire, nec ista per aliquam legem positivam Mosaicam vel evangelicam est revocata, sed magis confirmata. Auctoritas vero politica, quae est supra extraneos, sive in una persona resideat sive in communitate, potest esse iusta ex communi consensu et electione ipsius communitatis. Et prima auctoritas respicit descensum naturalem, quamquam non cohabitantes civiliter. – Secunda respicit cohabitantes, quantumcumque nulla consanguinitate vel propinquitate sibi coniunctos; utpote si ad civitatem aliquam aedificandam vel inhabitandam concurrerunt extranei aliqui videntes se non posse bene regi sine aliqua auctoritate, poterant concorditer consentire, ut vel uni personae vel communitati committerent illam communitatem; et uni personae vel pro se tantum – et successor eligeretur sicut ipse, – vel pro se et tota sui posteritate. Et ista auctoritas politica utraque iusta est, quia iuste potest quis se submittere personae vel communitati in his quae non sunt contra legem Dei” (Ord. IV, d. 15, q. 2; apud A. Wolter, Duns Scotus: On Will and Morality. Washington: The Catholic Un. of America,

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tratualismo moderno, sem as aberrações que se encontram em alguns autores 24. Ao deparar-se, pois, com a disputa entre o papa e o imperador, Ock­ ham dispunha de importantes elementos teológico-filosóficos dentro da tradição da Ordem, a partir dos quais poderia desenvolver um estudo sobre a sociedade civil. Quanto à origem do Estado, em Ockham, tomemos como pressupos­ tos nos quais não nos deteremos: Em primeiro lugar, o fato de que a luta dele contra a pretensão de plenitudo potestatis por parte do papa visa abrir espaço para um poder civil que não depende do papa, nem em sua origem, nem em seu exercício 25. As longas páginas a respeito procuram mostrar que se o império – e o poder civil em geral – dependessem do papa, tal fato deveria estar nas Escrituras, pois é nelas que se encontra o direito divino, pelo qual foi instituído o sumo pontificado, e são demar­ cados os poderes da autoridade eclesiástica. Fora delas existe o direito natural e o direito humano. Ora, não se demonstra pelo direito natural que o papa tenha poder sobre os reinos. Resta, pois, o direito humano: o conjunto de convenções jurídicas que os homens acordaram entre si para organizar a vida em comum. O direito canônico faz parte deste direito humano, no qual, aliás, se fundamenta. E, como se pode constatar, foi no corpo do direito canônico que se montou a teoria a respeito da plenitude do poder do sumo pontífice. Portanto, o direito canônico não é um anexo ou uma extensão do direito divino, nem uma dedução evidente do direito natural: ele é um conjunto de normas elaborado por clérigos, tendo em 1986, p. 314s). 24 C. R. S. Harris. Duns Scot. vol. 2. New York, 1959, p. 347. É compreensível que para alguns autores católicos, como G. de Lagarde (La naissance... vol. II, p. 248 ss.) a teoria scotista e, mais ainda, a interpertação de Harris, tenha soado mal: após os horrores de duas guerras mundiais e a violência sem limites dos totalitarismos, o jusnaturalismo tomista parecia-lhes quase um dogma de fé (Cf. a respeito F. Bottin. “Giovanni Duns Scoto sull’origine della proprietà”. In: Rivista di Storia della Filosofia, n. 1, 1997, p. 46-49). 25 Sobre a independência do poder temporal cf. J. A. C. R. de Souza. “As idéias de Guilherme de Ockham sobre a independência do poder imperial”. In: Idéias 8 (1986), Coimbra, p. 283-311. Neste texto (p. 295-302) são arroladas, por extenso, as principais perícopes ockhamianas sobre o tema. 26 “O direito divino, o encontramos nas Sagradas Escrituras, consoante o que está escrito no Decreto. Pois bem, nas Escrituras divinas não se acha absolutamente escrito que o papa possua algum poder especial sobre o império romano [...], do mesmo modo como não o possui sobre outros reis e príncipes. [...] Todo o direito humano ou é um direito dos povos ou um direito civil, estando compreendido, neste último, o direito canônico, que de

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vista o bom funcionamento dos afazeres eclesiásticos 26. Com isso, perde o seu valor e desmorona o edifício teórico dos juristas da cúria romana, que de certo modo acabam excluídos do debate, ficando este reservado sobretudo aos teólogos 27, a quem cabe, em primeiro lugar, à interpretação dos textos bíblicos. Em segundo lugar, para Ockham, o poder público surge num ambiente onde já existem direitos e liberdades. De fato e de direito, e nisto os es­ colásticos todos concordam, a sociedade humana constitui-se no Estado, mas há direitos que precedem ao Estado e que, por isso, estão acima da jurisdição deste. Em nenhum outro autor é tão clara a delimitação do poder do Estado ante o indivíduo como no Venerabilis Inceptor. Com estes pressupostos, examinemos agora como se constitui para o Venerabilis Inceptor o que hoje chamamos de sociedade civil. Tomamos como ponto de partida a afirmação dele de que os homens, por natureza, nascem livres e não submetidos a outros 28. No paraíso, pois, assim como não havia propriedade particular, também, de maneira similar, não havia autoridade. Com o pecado, porém, surgiu a possibilidade da opressão de um homem pelo outro e, por isso, entre os bens concedidos pela benigni­ dade divina ao homem decaído, foi dado também o poder de escolher quem fosse investido de autoridade, a fim de que fosse possível uma convivência pacífica entre as pessoas. Diz o texto ockhamiano: “[...] e por razão similar [ao poder de apropriar-se das coisas materiais] foi dado por certo modo é um direito civil” (“[...] Non [competit papae] iure divino, quia ius divinum in scripturis sacris habemus di. VIII Quo iure. In scripturis autem divinis nullatenus invenitur quod papa habeat aliquam potestatem specialem super Romanum imperium [...] quam non habeat super alios reges et principes [...] omne ius humanum aut est ius gentium, aut ius civile comprehendendo sub iure civili ius canonicum, quod uno modo est ius civile [...] – Contra Benedictum, c. 6, p. 39, III, p. 280s.; cf. Brev. 1, 8, p. 38s., IV, p. 106). 27 Brev. 1, c. 7, p. 37s. (IV, p. 105s). 28 “Todos os homens que nascem livres e por direito humano não são submetidos a ninguém [...] – a natura habent omnes mortales, qui nascuntur liberi et iure humano nequaquam alteri sunt subjecti [...]” (Brev. 4, 10, p. 147 s. – IV, p. 214. O texto, como se percebe, é um eco da afirmação isidoriana, repetida por Scotus, quando afirma que “de lege naturae omnes nascuntur liberi” (Ord. IV, d. 36, q. 1, n. 2; ed. Vivès, XIX, p. 446). 29 “ Et propter rationem consimilem [potestati appropriandi res temporales] data est a Deo, absque ministerio et cooperatione humana, potestas instituendi rectores habentes iurisdictionem temporalem; quia iurisdictio temporalis est de numero illorum quae sunt necessaria et utilia ad bene et politice vivere” (Brev. 3, 7, p. 113; IV, p. 180). 30 Ockham cita Aristóteles a respeito da origem do reino, mas recusa qualquer refer­ ência a uma origem ‘natural’ do mesmo: “ [...] licet sint diversimodi principatus regales,

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Deus, sem o ministério e a cooperação humana, o poder de instituir chefes com jurisdição temporal, pois a jurisdição temporal pertence ao número daqueles bens necessários e úteis para viver-se bem e politicamente”  29. Trata-se, pois, daqueles bens ínfimos, que Deus concedeu a todos, fiéis e infiéis, a fim de poderem viver. Com isso, contra Marsílio de Pádua, ele se mantém fiel à tradição cristã de seu tempo, ao tomar como uma afirma­ ção dogmática o dito paulino de que “todo o poder vem de Deus” (Rom. 13,1). Ao mesmo tempo, mantém-se fiel à tradição da ordem franciscana, rejeitando o naturalismo aristotélico-tomista, e considerando a instituição de fato da autoridade – e da sociedade civil – como uma decisão livre dos homens, quando pareceu-lhes conveniente para o bem viver. O homem, portanto, vai para a pólis não por uma inclinação coer­citiva da natureza, mas por um ato deliberado proveniente de sua racio­nalidade. Tal como Scotus, Ockham também não se atém, aqui, em demons­trar minuciosa­ mente porque o homem não é naturalmente um animal político, não se preocupa em rebater a tese de Aristóteles e Tomás, que conhece muito bem: interessa-lhe, isto sim, perquirir quando e como o homem deve ir para a sociedade 30. Ou melhor, e para sermos de todo fiéis ao pensamento ockhamiano: por preceito divino, o homem deve ir para a pólis, sempre que isto for necessário para poder viver em paz; mas pode muito bem acontecer que, para tanto, entre os perfeitos, não seja necessária a con­ sicut dicit Aristoteles in Politicis, nullus tamen principatus regalis est naturalis, quamvis principatus regalis assimiletur in multis principatui naturali: sed omnis principatus regalis est ex institutione positiva, divina vel humana [...]. Tripliciter enim potest prin­cipatus rega­ lis institui. Uno modo per voluntatem et ordinationem populi; quia quilibet populus carens rege proprio, quia non est subiectus imperatori vel alteri regi seu domino, potest de iure gentium constituere sibi regem (Dig. I, 1, 6; Brev. IV, 10). Alio modo potest institui prin­ cipatus regalis per imperatorem vel regem, qui diversos populos habet sibi subiectos [...]. Tertio modo potest institui principatus regalis per acquirentem plenum dominium super regionem, quae convenienter posset habere regem. Si enim aliquis potens per emptionem vel bellum iustum vel alio modo acquirit plenum dominium super provinciam aliquam, si per superiorem suum minime prohibetur, potest sibi nomen et rem regis assumere super eandem provinciam vel alii dare” (Octo quaest. 5, 6; I, 162 s.). 31 “Aliter potest aliqua iurisdictio vel potestas intelligi esse a solo Deo, quia a solo Deo confertur, non tamen absque omni ministerio creaturae vel hominis. Sic gratia in baptismo est a solo Deo, quia a solo Deo causatur, non tamen absque ministerior bap­ tizantis. Sic potestas conficiendi corpus Crhisti in sacerdote est a solo Deo, non tamen absque ministerior ordinantis. [...] Isto modo videtur aliquibus quod potestas papalis est a solo Deo in omni summo pontifice post beatum Petrum. Quia licet Christus absque omni ministerior hominis beato Petro papalem contulerit potestatem, tamen successoribus eius

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stituição do poder civil. Ora, viver em sociedade significa estar sob o poder da autoridade, ca­ bendo então perguntar-se sob as formas de instituicão desta, isto é, como se pode combinar a proveniência divina do poder e a liberdade humana de instituir a autoridade. Deve-se, então, explicar de onde provém o poder secular, quando este passa a existir. A este respeito, observa que há três maneiras de um poder vir de Deus. Em primeiro lugar, direta­mente, tal como a Bíblia conta no caso de Moisés, chamado pelo Senhor para diri­ gir seu povo, ou no de Pedro, ao ser constituído papa por decla­ração de Cristo. Por um segundo modo “pode-se entender que algu­ma jurisdição ou poder provém só de Deus porque é conferida só por Deus, embora não o seja sem alguma ação da criatura ou do homem. A graça do batismo, por exemplo, provém de Deus, pois que só por ele pode ser causada, mas não sem a ação do ministrante. Também o poder sacerdotal de consagrar o pão, tornando-o corpo de Cristo, provém só de Deus, mas não sem a ação do bispo que ordena [...] Deste modo parece a alguns que o poder papal provém só de Deus em todos os sumos pontífices após o bem-aventurado Pedro, porque embora Cristo, sem a ação ministerial do homem, tenha conferido a Pedro o poder pontifício, contudo, de modo algum o confere a seus sucessores sem que haja a eleição canônica. De fato, os eleitores do sumo pontífice não atribuem a ele nenhum poder, mas Deus dá-lhe o poder, mas dá-lhe somente sob a condição de que elejam canonicamente uma pessoa capaz de receber este poder [...] De um terceiro modo diz-se que uma jurisdição ou poder provém só de Deus não quando é dado ou conferido, mas depois que é dado, isto é, de tal modo que quando é dado não provém só de Deus, como nos dois modos anteriores, mas é dado ou conferido por um outro tanto como por Deus, mas depois de conferido depende só de Deus” 31. Noutras palavras: excetuando os raros casos em que a Escritura fala de um mandato divino direto, deve-se dizer que o império, e todo o poder civil entre os homens, foi instituído por Deus, através dos homens. Ock­ potestatem hiusmodi absque electione canonica minime confert. Electores enim summi pontificis nullam sibi tribuunt potstatem; sed Deus solus dat sibi potestatem, non tamen nisi illi canonice eligant personam capacem huiusmodi potestatem [...]. Tertio potest intelligi aliqua iurisdictio vel potestas esse a solo Deo non quando datur vel confertur, sed postquam data est: ut scilicet, licet quando datur non sit a solo Deo nec primo modo nec sec8undo, sed vere deter vel conferatur etiam ab alio quam a Deo, tamen postquam

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ham explicita noutra passagem: “[...] as autoridades seculares, a saber,­ a imperial, a régia e outras relevantes, são estabelecidas por Deus, não mediante a autoridade pontifícia, mas através da autoridade dos homens, a qual receberam não do papa, mas de Deus. Por isso, o poder real não provém do pontífice, mas de Deus, por intermédio do povo, que dele recebeu o poder para estabelecer para si um rei que o governe com vista à obtenção do bem comum” 32. Portanto, “compete à razão do homem o dever de individuar a conveniência de instituir a autoridade, mas foi Deus que deu ao homem a razão para procurar as coisas necessárias e úteis para viver de modo ordenado e pacífico” 33. A solução ockhamiana é engenhosa: com ela salva, de um lado, o princípio de que todo o poder provém de Deus e, por outro, a titularidade popular do poder, pois, como ele observa, o império pertence àquele que confere ao imperador o poder de fazer leis 34. Pode-se, porém, prosseguir na questão e perguntar quando é que o povo deve instituir a autoridade? A resposta corre paralela à questão da propriedade: tanto a jurisdição como a propriedade pertencem aos bens collata est, a solo Deo dependet [...]” (Brev. 4, 5, p. 137; IV, p. 202. Cf. Octo quaest. 2, 6; I, 78s.; Pode um príncipe, c. 4, p. 98s., I, 242s; Dial. III, II, I, c. 18-28, p. 885-901, onde se percebe, porém, que esta posição não estava ainda de todo amadurecida, pois parecia-lhe que a tese da origem divina imediata do poder tanto podia ser aceita como refutada (ibid. c. 26, p. 899). 32 “[...] potestates tamen saeculares, imperialis scilicet et regalis et aliae principales, sunt a Deo, non per auctoritatem papalem, sed per auctoritatem hominum quam non a papa acceperunt, sed a Deo. Unde regalis potestas non est a papa, sed est a Deo mediante populo, qui accepit potestatem a Deo praeficiendi sibi regem propter bonum commune” (Pode um príncipe, c. 4, p. 98s.; I, 243). 33 A. Ghisalberti. Guilherme de Ockham. Porto Alegre: Edipucrs, 1997, p. 286. 34 “[...] ab illo est imperium, qui imperatori contulit potestatem condendi leges” (Dial. III,II, 1, c. 27, p. 899). Cf. G. De Lagarde. La naissance... IV, p. 228ss, onde nas notas são arroladas inúmeras citaçöes sobre o poder do povo de constituir a autoridade, sendo digna de observação a afirmação de sabor marsiliano: “Omnium mortalium, si optimo regimine debent gubernari, debet esse unus supremus judex per electionem universitatis mortalium aut majoris ac sanioris partis constitutum” (Octo quaest. 3, 3, I, p. 104). 35 “[...] licet ad principantem de quo est sermo multa pertineat, [...] tamen ad hoc videtur principalissime institutus ut corrigat et puniat delinquentes” (Octo quaest. 3, 8, I, 113); “Cum igitur princeps maiorem habens [...] potestatem sit principalissime institutus ad corrigendum et puniendum legitime delinquentes [...] (ibid. 3, 10, I, p. 115); “Igitur, ut coerceantur mali et boni quiete vivant, est regimen principum institutum” (Dial. III, II, I, c. 1, p. 871). 36 “Si enim in aliqua communitate nullus pro culpa seu delicto puniri deberet, monitor

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ínfimos dados por Deus ao homem após o pecado, a fim de que ele possa viver pacificamente. Ambas pertencem àqueles preceitos divinos que, como vimos, “obrigam sempre, mas não para sempre”. Isto quer dizer que na comunidade dos perfeitos não se faz necessário instituir alguém como autoridade, pois a função precípua desta – e aqui Agostinho se faz nova­mente presente, e é explicitamente citado – é punir os maus 35. Por isso, por um lado, se num grupo humano os maus não devessem ser puni­ dos, a autoridade seria desnecessária, bastando alguém que, despojado de qualquer poder coercitivo, ministrasse bons conselhos 36; por outro lado, se não houvesse maus, a autoridade seria inútil, pois os bons não necessi­ tam dela para viver corretamente. Esclarecido o modo como surge o Estado, seria de esperar que o autor analisasse a forma como ele se organiza internamente. Para tanto, dis­punha de dois estudos importantes: a Política de Aristóteles e o Defensor pacis de Marsílio, obra esta contra a qual, mais de uma vez, havia levantado ressalvas. Mas é novamente o teólogo que tem a palavra, não o politólogo. Ora, ao teólogo interessa tratar da origem do poder, da finali­ dade dele, da bondade ou da maldade, do bom ou do mau governante – e, como muitos medievais, ele também possui alguns capítulos que pode­ riam ser classificados como “Espelho do príncipe”, onde se pergunta que qualidades o imperador deve possuir 37. Mas é-lhe de somenos interesse analisar os modelos como os indivíduos, em situaçõesões diversas, organi­ zam-se de modos diversos dentro da pólis. Parece-nos que até mesmo as formas de governo, que por força das circunstâncias tão largamente examinou, estão longe de seu campo de interesse, como pretendemos mostrar. Não é de sua competência tratar das questões do dia a dia, tratar da organização administrativa pura e simples; interessam-lhe os proble­ mas megapolíticos, onde há espaço para a palavra do teólogo. ad bonum et doctor sufficeret, et principans omnino superfluus videretur” (Octo quaest. 3, 8, I, p. 113, onde Agostinho é novamente citado). 37 Dial. III, II, I, c. 14-17, p. 883ss. 38 Dial. III, I, II, p. 788-819. Cf. a respeito G. Tabacco. Pluralità di papi et unità di chiesa nel pensiero di Guglielmo di Occam. Torino: Università di Torino, Facoltà di Lettere e Filosofia), 1949. 39 Cf. R. Lambertini. “Wilhelm von Ockham als Leser de ‘Politica’. In: J. Miethke (ed.) Das Publikum politischer Theorie im 14. Jahrhundert. München: Oldenburg, 1992, p. 207-224. 40 “Quandoque autem non solum attenditur meritum et dignitas honorandorum, sed etiam attenditur utilitas publica, quae melius procuratur principaliter per unum quam per

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3.  O bom governo e a legitimidade do exercício do poder Uma discussão que provém da antiguidade e perpassa o pensamento medieval é a que se refere à melhor forma de governo. Ockham a retoma, principalmente para perguntar-se sobre o governo da Igreja, se deve ser necessariamente monárquico ou se pode ser aristocrático, e ocupa-se do tema em todo um livro do Dialogus 38. A argumentação vale-se acima de tudo do texto aristotélico da Política e da Ética, mas o Aristóteles de Ockham não é o pensador com respostas prontas, e sim o levantador de problemas, que em questões políticas não conhece a resposta única e definitiva. Por isso, a obra aristotélica, mais que uma fonte de provas, serve para ele como um reservatório de argumentos 39. Ora, observa o Venerabilis Inceptor, normalmente parece que a unidade de comando venha a recomendar a monarquia, mas há muitos casos em que a aristoc­ racia parece preferível, como, por exemplo, quando há muitos indivíduos com igual competência, ou quando a escolha de um rei possa representar perigo para a paz social. Por isso, a questão do melhor governo não pode ser considerada tão somente a partir de um aspecto teórico: ela precisa levar em consideração o momento, as circunstâncias em que tal acontece. Não é só a competência do(s) candidato(s) que deve ser considerada, mas também, e acima de tudo, a utilidade pública 40. Por isso, embora o governo de um só pareça ser o melhor, contudo pode acontecer que em alguns casos ele não o seja 41. Portanto, mais importante que classificar e escolher formas de governo, plures et tunc quia maior respectus habendus est ad bonum commune, quam ad meritum et dignitatem honorandorum, iustum est ut aequalibus et similibus secundum virtutem non aequalis honor et virtus tribuatur (Dial. III, I, II, c. 15, p. 800). 41 “Licet regimen unius de se sit optimum, tamen aliquando per accidens et in casu non est optimum” (Dial. III; I; II; c. 24, p. 866). 42 Cf. Marsílio de Pádua. Defensor pacis. Hannover:Hahnsche Buchhandlung, 1932 (MGH). dict. I, c. 1, p. 2-5. 43 “Ille principatus est optimus et caeteris praestantior reputandus in quo inter subditos caritas, amiticia, pax et concordia potissime procuratur et nutritur, crescit et servatur, et quo seditio seu discordia quae est cuiuslibet communionis corruptio, praecipue devitatur. Propter hoc enim et omnis principatus bono communi expediens principaliter institutus, et isto summo conatu plantare debet princeps et fovere in sibi subiectis. [...] Ex quibus

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é saber se ele é voltado para o bem comum, ou para os interesses parti­ culares do(s) governante(s). Cremos não estar traindo o pensamento de Ockham, ao dizer que, para ele, em igualdade de condições, seria prefe­ rível o poder monárquico ao aristocrático, mas que, no fundo, trata-se de algo secundário, pois o que interessa mesmo é que o governante exerça o poder não em seu próprio interesse, mas no interesse do bem comum. Diz ele nas Octo quaestiones, num texto em que, tanto pela forma como pelas citações aduzidas ecoa o Defensor pacis 42: “[...] o melhor governo, e as­ sim deve ser considerado em relação aos demais, é aquele graças ao qual entre os súditos reinam e se desenvolvem a paz e a solidariedade humana, gerando a paz e a concórdia. Onde há paz, solidariedade e concórdia não há lugar para a sedição ou discórdia que são a causa da destruição de qualquer comunhão. Em vista disso, conclui-se que todo governo é estabelecido efetivamente para desenvolver o bem comum. O prín­ cipe, com o máximo empenho, deverá semear e cultivar aquelas virtudes entre os súditos”. E depois de elencar diversos textos do Evan­gelho e de Aristóteles, arremata: “Através daquelas citações demons­tra-se que o governo instituído, à frente do qual está o príncipe, deve ter como objetivo a conservação do entendimento, a paz e a concórdia entre os súditos, bem como a extirpação da discórdia entre os mesmos” 43. O bem comum autoriza mesmo que o príncipe possa ocasionalmente, em casos emergenciais, intervir na propriedade particular e nos direitos individuais. Trata-se, pois, de um bem que é superior ao bem individual probatur quod principatus ad servandam amicitiam, pacem et concordiam et ad tollendam discordiam inter subditos principi potissime ordinatur” (Octo quest. 3, 5, I, p. 109s). Cf. também: “ [...] potestas suprema laicalis est principatus regalis secundum perfectissimum modum principatus eiusdem. Perfectissimus autem modus principatus regalis, qui a princi­ patu tam tyrannico quam despotico summe distat, hoc habet inter alia, ut instituatur propter bonum commune subiectorum, et non propter bonum proprium principantis (Octo quaest. 2, 4, I, p. 75; cf. ibid. 3, 4, p. 105s). “ [...] natura optimi modi monarchiae regalis et op­ timi principatus in hoc consistit quod est institutus propter bonum commune subiectorum et non propter utilitatem, honorem et gloriam principantis [...]; et ideo subiecti gaudent maiori libertate, quae non est corruptiva tranquillitatis et pacis nec repugnat bono communi subiectorum tanto principatus est melior et nobilior” (Octo quaest. 8, 5, I, p. 201). 44 Cf. a respeito do ‘caso de necessidade’: J. Miethke. Ockhams Weg zur Sozial­ philosophie. Berlin: De Gruyter, 1969, p. 550-555. 45 “[...] omnes alii sibi subjecti essent servi sui” (Dial. III, II, II, c. 27, p. 923); “[...] imperator non habet in temporalibus plenitudinem potestatis, ut omnia possit, quae non sunt contra ius divinum nec naturale; sed limitata est potestas ut quoad liberos sibi subiectos et res eorum solummodo illa potest, quae prosunt ad communem utilitatem”

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e que permite, portanto, que em função dele os interesses individuais sejam atingidos. Nisto, aliás, Ockham concorda com Aristóteles e com todos os medievais, não havendo entre eles defensores de uma forma pura de ‘liberalismo’, para o qual a função primeira, e talvez única, do poder público seja a de defender os interesses privados. Para eles, não haveria sentido em instituir a autoridade, não fosse a necessidade de procurar algo que não é a mera soma de interesses particulares, mas que garante, ou procura garantir a todos e a cada um exatamente aquilo que a soma dos interesses individuais não consegue atingir: a vida feliz de todos em sociedade. Aqui, portanto, faz-se presente a distinção entre o poder que alguém possui regularmente (regulariter) e casualmente (casualiter). Ca­ sualmente, nas situações de emergência, em vista do bem comum, o papa pode intervir em questões civis, e o imperador pode intervir em questões eclesiásticas; da mesma forma, casualmente, em função do bem comum, a autoridade civil instituída pode intervir nos bens ou nos direitos indi­ viduais 44. Contudo, regulariter, o imperador – ou o papa, ou qualquer autoridade – não são proprietários dos bens do súditos, nem podem pura e simplesmente, sem culpa destes, reduzir-lhe o âmbito da liberdade, o que significaria rebaixar os súditos à condição de escravos. Portanto, a intervenção da autoridade possui um limite: o da liberdade dos indivíduos. Os ‘amplos poderes’ que os cidadãos conferem à autori­ dade não são uma carta em branco, pela qual o príncipe fica autorizado a fazer o que bem entende, ou apropriar-se dos bens de quem quer que seja. Ockham, ao contrário do que se pode talvez dizer de Marsílio de Pádua, não está retirando do papa a plenitudo potestatis para confiá-la ao imperador. Somente Deus possui poder absoluto; entre os homens, o poder é limitado a priori pelos direitos pré-estatais dos cidadãos. A liberdade que Deus e a natureza conferiram a cada um é um direito que precede à constituição do Estado e que, portanto, não pode ser revo­ gado arbitrariamente pela autoridade. Se Ockham não admite a plentiude (Dial. III, II, II, c. 27, p. 923 – este capítulo detém-se em várias respostas, nas quais o problema fundamental é o da relação entre o uso do poder e o bem comum); nem o papa, nem o imperador possuem a plenitude do poder “super communitatem fidelium, quia nullus eorum valet tollere iura et libertates inferiorum sine culpa et absque causa, nisi in casu necessitatis” (Octo quaest. 1, 11, I, p. 46); “[...] omnia quae sunt in regno, sunt regis quoad potestatem utendi eis pro bono comuni, non quoad potestatem disponendi de eis ad libitum suum” (Dial. III, II, II, c. 25, p. 922). 46 “Et humanum genus potissime liberum optime se habet [...] Hoc viso, iterum

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do poder, tanto do papa como do imperador, é porque a toma como ex­ pressão, como sinônimo, de poder absoluto: quem possui o poder de fazer tudo aquilo que não ofende a lei divina ou o direito natural, possui o poder de reduzir à escravidão os súditos, ou de apoderar-se dos bens deles. Ora, reduzir à escravidão só é permitido em caso de crime, e apoderar-se dos bens, só emergencialmente, em vista do bem comum, não em função do interesse particular da autoridade. Se o imperador possuísse todo o poder que não vai contra o direito divino e natural, então, diz ele, “aqueles que lhe são súditos seriam, em verdade, servos dele” 45. Plenitude do poder e liberdade são conceitos contraditórios, que se excluem mutuamente: a plentitude do poder é algo que destrói tanto o cristão quanto o cidadão, porque rouba-lhes a liberdade. Por isso, não se pode apelar para o bem comum a fim de justificar a plenitude do poder e, graças a este subterfú­ gio, suprimir depois a liberdade. A noção de liberdade é, pois, a chave para a compreensão do pensa­ mento político de Ockham. Ninguém, antes deles, conferira a ela tamanha importância. Entre os grandes pensadores políticos de seu tempo, Dante a menciona 46; Marsílio parece ignorá-la ao longo de sua obra principal, que se chama Defensor pacis e não Defensor libertatis. A fonte em que o frade franciscano se abebera é, também aqui, a da tradição franciscana: de um lado, o assim chamado “voluntarismo” oliviano e scotista; de outro, a subjetividade proveniente já de S. Francisco, que colocava expressa­ mente a consciência individual como norma primeira de conduta, ao dizer aos frades, na Regra Bulada, que deviam “obedecer aos superiores em manifestum esse potest quod hec libertas sive principium hoc totius nostre libertatis est maximum donum humane nature a Deo collatum” (Monarchia, 1, 12; Opere Minori. Napoli, Ricciardi, vol. III, 1, 1996, p. 346, 348). 47 “Unde firmiter praecipio eis, ut obediant suis ministris in omnibus quae promi­ serunt Domino observare et non sunt contraria animae et regulae nostrae” (K. Esser. Die Opuscula des Hl. Franziskus von Assisi. Quaracchi: Ed. Franciscanae, 1976, p. 370). 48 Sobre a relação entre a escola franciscana e a noção de liberdade política cf. G. Tarello. Profili giuridici della questione della povertà nel francescanesimo prima di Ockham. Milano, 1954; L Parisoli. “La contribution de l’école franciscaine a la naissance de la notion de liberté politique: les donnés préalables chez Pierre de Jean Olivi”. In: A. Boureau e S. Piron (org.). Pierre de Jean Olivi –Pensée scolastique, disssidence spirituelle et societé. Paris, Vrin, 1998. p. 251-263. 49 Respondendo a uma objeção, diz ele que a perfeita vida religiosa não é aquela que obedece em tudo ao superior, mas a que obedece em tudo o que não vai contra Deus e a Regra (“[...] religio perfectissima non promittit simpliciter in omnibus obedire – tunc enim posset praelatus religiosum huiusmodi cogere vitam ducere saecularem -; sed religio

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tudo o que não for contra sua alma e a nossa regra”  47. Esta objeção de consciência percorre o movimento franciscano48 , e não é estranha a Ockham 49. Há quem julgue mesmo que, com o Venerabilis Inceptor, surgem os assim chamados direitos subjetivos, não no sentido de que não se conhecessem anteriormente os direitos individuais – algo longamente tratado pelo direito romano, por exemplo – mas no sentido de que a partir de Ockham é possível montar uma teoria do Estado fundamentada nos direitos subjetivos 50. Mas, que é propriamente esta liberdade? Também aqui, como não poderia deixar de ser, o ponto de partida é uma noção teológica 51: a liberdade evangélica, anunciada no Novo Testamento 52. Por este, os fiéis não devem arcar sob um peso maior que o do Antigo Testamento, mas estariam em tal situação se o papa pudesse impor aos cristãos, sem culpa perfectissima promittit in omnibus obedire quae non sunt contra Deum et regulam suam, praesertim in hiis quae ad Deus et bonos mores et vitam pertinent regularem” (Octo quaest. 3, 6, I, p. 112). 50 P. A. Folgado. “La controversia franciscana bajo el pontificado de Juan XXII y el concepto de derecho subjectivo”. In: La Ciudad de Dios 172 (1959), p. 73-133; M. Villey: La formation de la pensée juridique moderne. Paris, 1975; id. “La genèse du droit subjectif chez Guillaume d’Occam”. In: Archives de Philosophie du Droit 9 (1964), p. 97-127; A. S. McGrade. “Ockham and the Birth of Individual Rights”. In: AA. VV. Autority and Power. Studies on Medieval Law and Government Presented to Walter Ullmann on his Seventhieth Birthday. Cambridge: CUP, 1980. p. 49-165; B. Tierney. The Idea of Natural Rights – Studies on Natural Law and Church Law 1150-1625. Atlanta: Scholars Press, 1997. p. 93-203; L. Parisoli. “Come affiorò il concetto di diritto soggetivo inalienabile nella riflessione francescana sulla povertà, sino ai fraticelli de opinione e Giovanni XXII”. In: Materiali per una storia della cultura giuridica 28 (1998), p. 93-127. 51 Cf. Pode um príncipe c. 2, p. 83-86 (I, p. 232-238); Contra Benedito, 6, c. 4, 29-32 (III, p. 275ss.); Brev. 2, c. 3-4, p. 47-50 (IV, p. 113-116); Sobre o poder, c. 1-3, p. 173-178 (IV, p. 282-287). Como acontece quase sempre, o tema é tratado mais longa­ mente no Dialogus (III, I, I, p. 772-788). 52 Cf. Tg 1, 25; At 15, 10, Gl 2, 3s; Gl 4, 31; 2 Cor 3, 17. 53 Brev. 2, 4, p. 49; IV, p. 115s. 54 G. De Lagarde. La naissance... vol. IV, p. 66. 55 W. Kölmel. Wilhelm Ockham und seine kirchenpolitischen Schriften. Essen: Ludgerus Verlag, 1962, p. 201. Cf. a respeito R. Palacz. “Libertas als eine Grundkathegorie der gesellschafltichen Philosophie bei Ockham”. In: A. Zimmermann (ed.) Soziale Ordnungen im Selbsvertändnis des Mittelalters. Misc. Mediaevalia 12/2. Berlin: De Gruyter, 1980, p. 408-426. Cf. também J. Miethke. Ockhams Weg... p. 300-305; A. S. McGrade. The Political Though of William of Ockham.Cambridge: Un. Press, 1974. p. 173-185. 56 “[...] libertates a Deo et a natura concessae mortalibus [...] (Brev. 2, 17, p. 77, IV, p. 146; cf. Sobre o poder c. 4, p. 192; IV, 287).

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da parte destes, penitências e boas obras que os sacerdotes da Lei Antiga não podiam impor aos judeus. A esta luz, como Ockham mesmo o diz, não está sendo proposta uma liberdade que acabe com a servidão civil 53, mas aquela que acaba coma servidão dentro do povo de Deus, porque a lei cristã é, acima de tudo, uma lex libertatis. Esta fundamentação teológica e o fato de o teólogo Ockham ter-se debatido a vida toda contra as pretensões papais podem levar a um erro de avaliação. Cremos que foi o que aconteceu com G. De Lagarde quando, após elencar diversos textos, observa: “Ainsi compléteé, le concept de liberté chrétienne, qui avait d’abord un air claquant et provocant anon­ çant la liberté chrétienne de Luther, est sérieusement amenuisé. Nous ne sommes libérés ni de la servitude de la loi ni des servitudes extérieures à la loi” 54. Ora, o pensamento ockhamiano vai além dos textos citados por De Lagarde. A liberdade religiosa que o papa deve respeitar possui uma contra-face na liberdade civil que o imperador (e o papa) também deve respeitar. Como observa W. Kölmel, em Ockham “há uma estreita união entre a liberdade da ordem da salvação e a liberdade natural” 55. Há uma correlação entre a liberdade religiosa e a liberdade civil. Tal como existe uma liberdade por direito divino, existem “as liberdades concedidas aos mortais por Deus e pela natureza” 56, um âmbito de liberdades e direitos dos leigos, para o bom ordenamento da sociedade 57, âmbito este que deve ser respeitado pela autoridade civil. Esperar de Ockham que, em nome da noção de liberdade individual, proclamasse a abolição da servi­dão, seria forçar a história, seria tirá-lo de seu tempo, do mesmo modo como Lutero, que De Lagarde cita, também foi revolucionário a seu modo, sem Sobre o poder, c. 4, p. 192; IV, p., 287s. “[Apostolicus principatus] est respectu liberorum, non respectu servorum; quia iure divino nullus est servus papae” (Sobre o poder, c. 13, p. 198; IV, 305). 59 “Repugnat autem optimo principatu plura, de quibus perstringenda sunt pauca; quorum primum est quod sibi repugnat solummodo servos havere sibi subiectos, immo nonnullis apparet quod non stat cum puritate optimi principatus quemcunque subditum, presertim invitum, absque culpa sua esse servum” (Octo quaest. 3, 6, I, p. 111) ; cf. ibid. 3,7, p. 112. Cf. supra, nota 45. A respeito do melhor governo cf. J. A. C. R. de Souza. “O melhor governo na concepção de Guilherme de Ockham”. In: Leopoldianum XII (1985), n. 34, p. 23-45. 60 “Papa nihil potest contra libertatem et ius unius Christiani, etiam in spiritualibus, nisi ratione delicti vel causa manifesta. Quoniam nullum potest privari iure suo et libertate sua sine culpa et iusta causa” (Dial. III, II, I, c. 23, p. 892). 61 “Rex enim superior est regulariter toto regno suo, et tamen in casu est inferior 57 58

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proclamar o fim da servidão. O Cristianismo, que é a única e verdadeira religião, é a religião da liberdade, e a superioridade do poder pontifício provém, entre outras coisas, do fato de o papa não possuir servos em razão do direito divino 58. Entre os reinos, não se pode dizer que um seja o único reino verdadeiro, mas pode-se dizer qual é o melhor: aquele no qual o governante impera sobre pessoas livres, não sobre escravos. Diz ele: “[...] Muitas coisas, a res­peito das quais trataremos resumidamente, repugnam ao melhor gov­ erno. Uma delas, inicialmente, consiste em ter servos como súditos, ou melhor, para algumas pessoas é evidente que não se coaduna com a pureza do melhor governo que qualquer súdito, sem haver motivo justo, contra sua vontade se torne escravo” 59. Na constituição da sociedade civil, portanto, há duas esferas que se interpenetram, mas que podem também autoexcluir-se. De um lado, o bem comum determinado pela autoridade; de outro, a liberdade individual. Em caso de conflito entre elas, repetimos, não há dúvida, para Ockham: a liberdade do indivíduo está acima do poder da autoridade. Sagrada não é a autoridade, e sim a liberdade que Deus e a natureza deram a cada um. Por isso, em caso de conflito, a presunção de direito está com os súditos, não com o governante. A intromissão da autoridade na esfera da liber­ dade, embora em nome do bem comum, será sempre eventual e restrita, cessando, tão logo cesse a emergência. Nem mesmo o papa pode intervir simplesmente nesta esfera 60. E quando surgir impasse entre a autoridade e os indivíduos, passa a valer então o princípio de que aquele que institui a autoridade tem também o poder de destituí-la, quando ela age contra os direitos da pessoa 61. Por trás desta afirmação encontra-se a teoria da dis­ regno, quia regnum in casu necessitatis potest regem suum depone et in custodia detinere” (Octo quaest. 2, 8, I, p. 86). “Et ideo, si imperator committit crimen dilapitationis vel destructionis imperii aut dampnabilis negligentiae in praeiudicium imperii et periculum tyrannidis seu quodcunque aliud depositione dignissimum, Romani vel illi quibus Romani suam potestatem dederunt debent ipsum deponere” (Octo quaest. 2, c. 9, I, p. 87). 62 Quod omnes tangit, ab ommnibus tractari et approbari debet [...] Dialogus, I, V, c. 35, p. 603-605)  63 “Universitati mortalium nullus praeffici debet, nisi per electionem et consensum eorum” (Dial. III, II, III, c. 6, p. 934). 64 “Isto viso, videtur posse probari, quod reges et principes ac nonnulli laici possunt ad generale concilium convenire et eiusdem concilii tractatibus interesse [...] . Quod omnes tangit, ab ommnibus tractari et approbari debet [...] Deus non solum est Deus

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tin­ção entre poder regular e casual: regularmente, aquele que é investido de autoridade está acima dos súditos; casualmente, os súditos estão acima da autoridade constituída e podem depô-la. Quando o imperador (ou o papa, ou o rei, ou seja lá quem for) não cumpre com seu dever, quando extrapola suas competências e torna-se impecilho à pacífica convivência entre os homens, os súditos podem avocar novamente a si o poder orig­ inário e cabe-lhes então depô-lo e constituir um outro, porque o poder pertence originariamente a quem instituiu a autoridade. O teólogo Ockham não se delonga em dizer como se dá tal destitu­ ição. Também não fala do modo de como a vontade popular se manifesta na eleição e na deposição da autoridade, embora, como vimos, seja-lhe conhe­cida a teoria da “valentior pars” marsiliana, fale por mais de uma vez da delegação de poderes por parte do povo romano e, seguramente, tenha presente os procedimentos eletivos das ordens mendicantes e das corporações urbanas, bem como a organização das cidades italianas e dos cantões suíços. Entretanto, um princípio é por ele repetido muitas vezes e deve ser aqui recordado: o que é de interesse de todos deve ser por todos decidido 62. Por isso, a eleição de alguém para um posto deve ser levada a cabo por aqueles que deverão obedecer a ele e, neste sen­ tido, se existe uma autoridade que preside a todos os mortais, deve ser eleita pelo con­junto deles 63. Na mesma linha de raciocínio, ao falar do concílio ecumê­nico, insiste em dizer que dele podem e devem participar todos aqueles de cujos interesses se venha a tratar. Mas não era o que se via em seu tempo, pois, como ele constatava, a legislação eclesiástica criou uma distinção muito grande entre os direitos dos clérigos e dos leigos, porque os clérigos legislaram em seu favor, contra os leigos, sem a anuência destes, chegando-se ao ponto de falar de ‘Igreja’, como se ela fosse cons­tituída apenas ou primordialmente pelos clérigos. Ora, observa, clericorum, sed etiam laicorum [...] Et ideo ubi sapientia, bonitas vel potentia mulierum esset tractatui fidei (de qua potissime est tractandum in concilio generali) necessaria, non est mulier a generali concilio excludenda” (Dialogus, I, V, c. 35, p. 603-605). “Secundo modo accipitur hoc nomen ecclesia pro congregatione Christianorum fidelium generali vel particulari, quae tam viros quam mulieres comprehendere potest. [...] ubi ecclesia accipitur pro collectione catholicorum, quae mulieres et laicos nequaquam excludit. [...] Et ideo dicunt [aliqui] quod ad ecclesiam, secundum quod in Scriptura divina (quae est totius fidei catholicae fundamentum) accipitur: ita laici et mulieres fideles pertinent et sunt personae ecclesiasticae, sicut clerici” (ibid. I, V, c. 21, p. 502). “[...] cum (sicut saepe alegatum est) in Scriptura Sacra numquam laici ab ecclesia nomine excludantur, sed ubi­

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na Es­critura Sagrada, quando se fala em Igreja, fala-se na congregação daqueles que creem em Cristo, sem distinguir se são clérigos ou leigos, homens ou mulheres e, por isso, também os leigos, sejam homens ou mulheres, devem fazer-se presentes ao concílio, quando dos interesses deles for tratado, não podendo ser impostos deveres a eles, ou retirados direitos deles, se eles não estiverem de acordo 64. Se, pois, na Igreja, as mulheres são convocadas a participar, e são capazes de tanto, por que deveriam elas ser excluídas quando devem ser tomadas decisões que as atingem na esfera civil? A pergunta não é colo­cada por ele; se o fosse, a resposta lógica seria: o direito divino ou o direito natural não as impede de participar das decisões governamentais, porque por eles elas também nasceram livres. Se estão excluídas deve-se, pois, ao direito civil. Ora, tal exclusão, ao que consta, foi tomada sem que elas tivessem sido ouvidas e, por isso, deve ser considerada nula, tal como devem ser consideradas nulas as decisões dos concílios, tomadas pelos clérigos contra os leigos, sem que estes tenham sido ouvidos. Voltando ao tema: pode-se dizer, então, que a autoridade voltada para o bem comum e que respeita a liberdade dos súditos é legítima? A res­ posta de Ockham é negativa. Para o franciscano inglês, a teoria não pode igno­rar a realidade. Ora, a realidade mostra que a origem de fato de muitos principados não se encontra numa reunião de pessoas livres que, não possuindo autoridade, resolveram constituir uma para si mesmas. Na maioria das vezes, a ambição e a violência fez com que um grupo humano passasse a servir a um príncipe. Agostinho e outros padres já haviam cumque in Scripturis sacris nomen ecclesiae viros et mulieres et laicos comprehendat” (Ibid. I, V, c. 100, p. 631). 65 “remota itaque iustitia, quid sunt regna, nisi magna latrocinia? quia et ipsa latro­ cinia quid sunt, nisi parva regna? [...] Fines imperii tueri magis quam proferre mos erat: intra suam cuiquem patriam regna finiebantur [...] Inferre bella finitimis, et inde in caetera procedere, ac populos sibi non molestos sola regni cupiditate conterere et subdere, quid aliud quam grande latrocinium nominandum est?” (Agostinho. De civ. Dei IV, c 4 e VI; PL 41,115s. cf. Brev. 4, 9, p. 146, IV, p. 211). 66 “[...] propter quod solummodo narrabo modos, quibus poterat fieri verum imperium [...]. Quorum unus poterat esse absque omni violentia per consensum liberum et spon­ taneum populorum voluntarie subdentium se Romanis. A Deo enim et a natura habent omnes mortales, qui nascuntur liberi et iure humano nequaquam alteri sunt subiecti, quod sponte possunt sibi rectorem praeficere [...]. Alius modus constituendi verum imperium poterat esse per bellum iustum [...]. Tertio modo poterat constitui Romanum imperium per ordinationem especialem divinam[...]” (Brev. 4, 10, p. 147s.; IV, p. 214s.). 67 “Nequaquam ergo ambigendum est Romanos habuisse tunc temporis verum impe­

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observado que os reinos são, geralmente, fruto da violência, são grandes latrocínios, incluindo-se entre eles o império romano. Os limites de cada povo eram, inicialmente, os de sua cidade; a ambição é que, através de guerras injustas de conquista estendeu as fronteiras 65. Agostinho, por­ tanto, lança dúvida sobre a legitimidade da origem do império romano. Ockham não vai discordar do grande bispo, mas dá um passo à frente, indo da dúvida para a certeza, ao dizer que o império, no tempo de Cristo, era um império legítimo. Donde provém então a legitimidade? Em seu modo típico de trabalhar, retoma no quarto livro do Brevilóquio o que dissera no terceiro sobre as formas legítimas de instituição do poder e o complementa. Do modelo ideal, passa para a realidade. Diz ele, após confessar que não sabe quando começou tal império a ser legítimo: “[...] Por isso apenas indicarei os modos, pelos quais era possível tornar-se verdadeiro império [...] Um modo poderia ser sem qualquer violência, pelo consenso livre e espontâneo. Todos os homens que nascem livres e que por direito humano não são sujeitos a ninguém, receberam de Deus e da natureza o poder de livremente constituírem para si um guia [...] Outro modo de constituir um verdadeiro império podia ser pela guerra justa [...] De um terceiro modo, o império romano poderia ser constituído por verdadeira ordenação divina especial” 66, o que é excluído. Mas, só por estas formas não se explica como o império chegou a ter as dimensões que o celebrizaram. Muitas vezes, a violência se fez presente, e não para o bem comum. E o mesmo aconteceu também na constituição de outros reinos. A fonte da legitimidade, então, precisa ser buscada alhures: na anuência dos súditos. De fato, se uma autoridade legítima deixa de sê-lo quando os súditos assim o decidem, da mesma rium. Sed quando et qualiter coeperit esse verum imperium, fateor me nescire. Dubium enim est mihi an, quando Romani dominari coeperunt de facto, tyrannice solummodo sibi dominium supra alios usurparent [...]. Nonnunquam igitur principatus tyrannici et usurpati in iustos et leggitimos transmutantur, sicut interdum [...] principatus regalis transmutatur in tyrannicum principatum. [...] Et ideo ex hoc quod, quod Romanum imperium malum habuisset principium, non posset ostendi quod non era postea legitimum et verum et non iniustum: non quidem propter hoc solummodo, quod Romani coepissent iuste regere et clementer [...] sed voluntas subditorum potest transmutare huismodi principatum [...]. Quia enim illi, qui primo per violentiam opprimuntur, postea voluntatem sua mutare possunt se sponte subiciendo opprimentibus” (Brev. 4, 10-11, p. 147-150; IV, p. 213-216; cf. Dial. III, II, I, c. 27, p. 899, onde, aliás, aflora novamente a idéia marsiliana da valentior pars).

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forma, uma autoridade não-legítima converte-se em legítima pela aceita­ ção dos súditos. Novamente, pois, está sendo aplicado o princípio de que os governados são a fonte primeira do poder. Por isso, mais do que perquirir como surgiu o poder nos albores dos tempos, convém perguntar se ele é aceito ou não pelos súditos. Sendo aceito, é legítimo; não sendo aceito, não serão o apreço pelo bem comum e o respeito à liberdade que o legitimarão. Diz ele: “Não se pode, pois, de modo algum duvidar que os romanos tivessem então [isto é, no tempo de Cristo] um verdadeiro império. Confesso, porém, que não sei dizer quando e como começaram a ser um verdadeiro império. A dúvida que tenho é se quando os romanos começaram a dominar de fato, usurparam apenas para si, tiranicamente, o domínio sobre os outros. Não me consta que tenham tido verdadeiro império desde o início, ou só posteriormente. [...] Algumas vezes, pois, os principados tirânicos e usurpados transmutam-se em justos e legítimos, assim como, algumas vezes, [...] o principado real transmuta-se em tirâ­ nico. [...] pelo fato de o império romano ter tido um mau princípio, não se pode demonstrar que posteriormente não fosse legítimo, verdadeiro e justo. Tornou-se assim não apenas porque os romanos começaram a gover­nar com justiça e clemência [...] Mas [porque] a vontade dos súditos pode modificar o principado [...] Ora, aqueles que antes eram oprimidos pela violência, podem modificar sua vontade, submetendo-se aos opressores” 67. Bem comum, respeito à liberdade e aceitação por parte dos súditos são, portanto, os pilares sobre os quais se assenta o governo bom e legí­ timo.

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4.  Em forma de conclusão Ao concluir, poder-se-ia dispensar a observação de que nas poucas páginas de uma comunicação não se condensa todo o pensamento de um autor, ainda mais quando de um autor da envergadura de Ockham. Há necessariamente simplificações, obliterações, escolhas e explicações, que podem facilitar o entendimento, mas que nem por isso deixam de colocar acentos diversos na compreensão do texto. Por isso mesmo, a fim de evitar mal-entendidos, observamos que contra uma eventual leitura de tópicos aqui apresentados, não defendemos, por exemplo, que Ockham foi um feminista avant la lêttre (embora seja de estranhar, aliás, que o movi­mento feminista ainda não tenha pinçado em sua obra tantas e tão belas citações) do mesmo modo, também, só com ressalvas, subscreveríamos a afirmação de que foi um defensor da soberania popular. Interessou-nos aqui, acima de tudo, mostrar, em primeiro lugar, que Ockham possui posições claras a respeito de diversas questões referen­ tes ao poder, na medida em que tais questões transcendem o patamar da análise ‘sociológica’ e fatual do político, se assim podemos falar. Há, por vezes, uma evolução em suas obras, no sentido de esclarecimentos de posições, mas as idéias centrais fazem-se presentes desde o início. Em segundo lugar, parece-nos que a afirmação da não existência de uma teoria política em Ockham, que continuamos defendendo, precisa ser complementada, dizendo-se que, apesar disso, em sua obra encontram-se aprofundados estudos teológico-filosóficos sobre a origem, a finalidade e a legitimidade do poder, estudos estes que colocam o teólogo Guilherme de Ockham entre os grandes pensadores políticos na Idade Média. Enfim, nunca seria demais insistir no fato de Ockham, em questões políticas, foi acima de tudo um panfletista. A extensão desproporcinal de certos temas no conjunto de sua obra está a indicar não a relevân­ cia teórica, mas a importância momentânea do assunto. Cremos que um apelo à imaginação poderia ser instigante a respeito. Se num passe de mágica voltássemos ao passado e víssemos, por volta de 1340, um papa bem diferente de João XXII ou de Bento XII à frente dos destinos da Igreja, talvez ficássemos sabendo que Ockham se reconciliara com a Sé Apos­tólica e fora reempossado, como magister, na cátedra de Teologia de Oxford, havendo o o santo padre solicitado a ele que escrevesse um tra­tado sobre política. Caso, então, tomássemos nas mãos o volume, seria

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talvez com surpresa que constataríamos que temas como o da plentiude do poder, da transladação do império, do direito de aprovação do impe­rador por parte do papa, da deposição do papa herético e outros semelhan­tes estavam simplesmente ausentes. Por que? Mudaram-se as idéias de frei Guilherme? – Não. Mudou-se tão somente o ângulo de consideração dos problemas: o panfletista cedeu lugar ao acadêmico. Luis Alberto De Boni

(Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil)

A Composição e a organização da sociedade civil segundo Marsílio de Pádua (1280-1342) Em primeiro lugar, tenhamos presente que Marsílio de Pádua escreveu e concluiu o Defensor da Paz 1 em 1324, ocasião essa em que já fazia oito anos que se desenrolava mais um conflito entre o Papado e o Império, respectivamente, protagonizado por João XXII (1316-34) e Ludovico IV (1314-47), porquanto, no entender do papa a eleição imperial de 1314 incorrera em vários erros de forma 2, de modo que, haurido nas teorias da translatio imperii 3 e da plenitudo potestatis 4 pontifícia, dada aquela 1  Tradução do latim e notas por José Antônio de C. R. de SOUZA, Introdução por José Antônio de C. R. de SOUZA, Francisco BERTELLONI e Gregório PIAIA, in Coleção Clássicos do Pensamento Político, vol. 12, Petrópolis, Vozes, 1997, 701 pp. Os estudos mais abrangentes e completos sobre O Defensor da Paz são da autoria de Alan GEWIRTH, Marsilius of Pádua, The Defender of Peace, vol. I, N. York, Columbia University Press, 1951. C. PINCIN, Marsílio, Torino, 1967. G. de LAGARDE, La Naissance de l’esprit laïque au déclin du Moyen-Âge, vol. III, Le Defensor Pacis, Louvain-Paris, Ed. Nauwelaerts, 1970. J. QUILLET, La Philosophie Politique de Marsile de Padoue, Paris, J. Vrin, 1970. P. DI VONA, I principi del Defensor Pacis, Napoli, 1974. Marino DAMIATA OFM, Plenitudo Potestatis e Universitas Civium in Marsílio da Padova, Firenze, ed. Studi Francescani, 1983. Carlo DOLCINI, Introduzione a Marsílio da Padova, 2.ª ed., Roma, Laterza, 1999. 2  Mais detalhes acerca dessa querela, o leitor lusitano poderá especificamente encontrar no artigo de nossa autoria intitulado “Marsílio de Pádua e a ‘Plenitudo Potestatis’”, Revista Portuguesa de Filosofia, tomo XXXIX, fasc. 1 e 2 (1983): 121-126; na Introdução, referida na nota anterior, às págs. 13-24. 3  Cfr. G. FRAILE et alii, Historia de la Iglesia Católica, III, Madrid, BAC, 1965: 79, particularmente o passo da bula Si fratrum, de João XXII, do ano de 1317. 4  Os trabalhos de Walter ULLMANN, escritos entre os anos 50 e 80 do século XX, são importantíssimos para a compreensão desse tema e outros mais correlatos. Referências especificas a tais estudos podem ser encontrados em meu livro escrito em co-autoria com João Morais BARBOSA, intitulado O reino de Deus e o reino dos homens: As relações entre os poderes espiritual e temporal na Baixa Idade Média (da Reforma Gregoriana a João Quidort), in Coleção Filosofia, vol. 58, Porto Alegre, EDIPUC-RS, 1997, 204 pp.

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circunstância, o papa se julgava no direito de interferir na mesma, à parte, obviamente, a aliança política franco-angevina e pontifícia, através da qual a casa de Anju, apoiada na monarquia francesa, cujos reis eram seus parentes, e no papado avinhonês, visava a assegurar para si as conquistas militares alcançadas na Itália meridional, a partir dos anos sessenta do século XIII, e a ampliar seus domínios na Península, ainda que tivesse de reconhecer o Sumo Pontífice como suserano e de respeitar os limites dos Estados Pontifícios. Por sua vez, os papas de Avinhão 5, mesmo ausentes de Roma, que­riam manter a soberania sobre o mesmo, assegurar o recebimento das rendas devidas da parte de seus vassalos (Guelfos), bem como tentar impedir que os imperadores germânicos, aliando-se aos líderes das comu­nas locais (Gibelinos), restabelecessem uma suserania, ainda que nominal, sobre o norte da Itália. Por outro lado, Ludovico IV e seus partidários, aos quais se juntaram os governantes de muitas das cidades-repúblicas da Itália Setentrional, entre outras, Milão, Verona e suas aliadas, para além de não admitir, primeiramente, que aquela eleição não tivesse sido efetuada corretamente, não aceitavam que o papa tivesse o direito de interferir na política interna do Império, nem tampouco de cercear a liberdade das próprias comunas.6 Marsílio de Pádua escreveu, pois, sua obra 7, com os propósitos de por um cobro àquela situação de permanente discórdia entre as cidades aliadas Estudo de excelente qualidade sobre o assunto é também o livro do Prof. J. MIETHKE, intitulado Las ideas políticas de la Edad Media, traduzido do original alemão por F. BERTELLONI, e publicado em Buenos Aires, Biblos, 1993, 218 pp. 5  Cfr. G. MOLLAT, Lês Papes d’Avignon 1305-1378, 10e., éd., Paris, Letouzey & Ané, 1964, pág. 343. 6  Cfr. J. QUILLET, op.cit., Chapitre Premier, págs. 23-48. 7  Hoje, também dispomos, em vários idiomas, de mais de uma centena de artigos sobre aspectos pontuais do Defensor da Paz, inclusive alguns em vernáculo, de minha própria lavra. Entre as coletâneas de estudos destaco A. CCHECCINI-Norberto BOBBIO, Marsílio da Padova. Studi raccolti nel VI centenario della morte, Padova, CEDAM, 1942. G. PIAIA, Marsílio da Padova Convegno Internazionale, Padova, Ed. Antenore, Medioevo V, 1979, VI, 1980. Idem, Marsílio e dintorni, Padova, ed. Antenore, 1999. Igualmente, ressalto o fato de que, recentemente, professores brasileiros defenderam suas teses de doutoramento, dirigindo sua atenção para o pensamento do Paduano, nomeadamente, Sérgio R. STREFLING, Crítica da plenitudo potestatis em Marsílio de Pádua.Princípios doutrinais e estratégias argumentativas, Porto Alegre, Pós-graduação em Filosofia, PUC, mimeo., 2000; Raquel KRITSCH, Soberania: a construção de um conceito, São Paulo,

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do Papado e as do Império, e de desmantelar a hierocracia pontifícia e os seus fundamentos, formulando uma nova teoria política e colocando-a à disposição de Ludovico IV 8. De fato, se as bases para a teoria política, então, comumente aceita, encontramo-las nas Escrituras, em autores da Alta Idade Média, mas principalmente em textos de variegada espécie, escritos a partir do último quartel do século XI, cuja forma acabada verificamo-la no Sobre o poder eclesiástico 9, de Egídio Romano, parece oportuno, ainda que resumida­ mente, salientar alguns de seus pontos lapidares, a saber, em primeiro lugar, a composição e a organização da sociedade, e estando em terra lusitana, para não ter de ir buscar paradigmas longínquos, é suficiente lembrar que Santo Antônio (1193-1231) em seus Sermões 10 e D. Duarte (1394-1438) no Leal Conselheiro 11, embora, duzentos anos os separem no tempo, recorreram à mesma concepção. Com efeito, para eles e outros pensadores medievais, que viveram desde o último quartel do século XI, a comunidade política de todos os cristãos era designada por Christianitas ou Respublica Christiana, con­ceito esse, equivalente, no plano religioso ao de Ecclesia, os quais deno­tavam que todos os seus membros, a partir do dia do seu Batismo, tornando-se homines novi, pela água e pelo Espírito, isto é, pelo Batismo, renascidos por tal graça, passavam a integrá-la, comunidade essa que, Pós-graduação em Ciência Política, USP, mimeo., 2000; Floriano Jonas CESAR, Papado, império e o pensamento de Marsílio de Pádua, São Paulo, Pós-graduação em Filosofia, USP, mimeo., 2000. 8  Defensor da Paz, ed. cit., pág. 72. 9  Ed. em vernáculo Luís Alberto DE BONI & Cléa Goldman LEJBMAN, Introdução notas L. A. De BONI, in Coleção Clássicos do Pensamento Político, vol. 7, Petrópolis, Vozes, 1989, 240 pp. 10  Ed. Henrique Pinto REMA OFM, Santo António de Lisboa Obras Completas Sermões Dominicais e Festivos, 2 vols. Porto, Lello & Irmão Editores, 1987. Dada a natureza da Opera antoniana, tais conceitos encontram-se respigados por ela. Em meu livro, intitulado O pensamento social de Santo Antônio, a ser publicado proximamente pela EDIPUC-RS, de Porto Alegre, trato amplamente desse assunto. 11  Ed. João Morais BARBOSA, Lisboa, INCM, 1982. A propósito, cfr. a dissertação de mestrado de minha orientanda, Jane Santos TAVARES, apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Goiás, e defendida em 1997, intitulada, A visão sócio-política de D. Duarte no Leal Conselheiro e em sua legislação, (policopiada), especialmente, o capítulo II, págs. 74-121. 12  Ed. bilíngüe e tradução por Miguel P. de MENESES, 3 vols., Lisboa, INIC, 1988- -1991.

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ao mesmo tempo, revestia-se duma característica imanente e duma outra transcendente, porquanto, continuava a existir no reino dos céus. Ademais, essa comunidade de todos os batizados, quanto à sua orga­ nização, compreendia dois Ordines, a saber, o Ordo clericorum e o Ordo laicorum, abrangendo, respectivamente, todos os eclesiásticos, hie­rar­ quizados entre si, e igualmente, todos os leigos, também hierarquizados entre si, cujos integrantes, desempenhavam tarefas específicas em proveito de si mesmos, de seu próprio Ordo e da Christianitas. Os mem­bros do primeiro, aquelas tarefas relacionadas com a Salvação, o fim último e principal a ser alcançado por todos, quais sejam, os ministérios do anúncio da Palavra e da distribuição dos Sacramentos e direção espiritual do rebanho; os integrantes deste último, os encargos de prover o sustento, o bem-estar material, o progresso, a segurança e o governo de todos. Igualmente ainda, em decorrência de tais metas a serem atingidas, cuja primeira era mais importante do que a segunda, o que implicava numa subor­ dinação entre elas, deparamo-nos, também, com uma terceira tese fundamental da hierocracia, concernente à organização política da Cris­tandade, respeitante à conduta religiosa e moral de todos os batizados, isto é, os membros do Ordo clericorum, especialmente os dignitários eclesiás­ticos e o líder deles, o Sumo Pontífice, ocupavam uma posição de preemi­nência sobre os integrantes do Ordo laicorum, tese essa que atingiu a sua expres­ são teórica mais extremada, na referida obra de Egídio Romano, na Unam Sanctam (18-11-1302) de Bonifácio VIII, (1294-1303) e no livro I do Estado e Pranto da Igreja 12 de Álvaro Pais (1270/5-1349), bispo de Silves. Ora, o caminho para o Paduano desmantelar tais fundamentos, ele o encontrou em Aristóteles e em sua Política, o qual, de um lado, tinha oferecido uma explicação natural para o surgimento da vida em socie­ dade 13, decorrente da propagação da espécie humana, agregando-a paulatina e progressivamente em famílias que geraram clãs, aparentados ou não entre si, que se radicaram em vários lugares, formando as aldeias ou povoados, sob a liderança de um ou mais chefes das grandes famílias, e de outro, uma explicação teórica de caráter laicizante para composição e a organização da própria sociedade, pois dela estão excluídos quaisquer dados religiosos ou sobrenaturais. 13 

Ed. cit., págs. § 3 e § 4, págs. 78-80. Ed. cit., págs. 67-74. 15   Apesar de, igualmente serem anti-hierocratas, Dante e Ockham escreveram seus tratados de política usando “roupagem” teológica. Ora, como o nota o Prof. BER­ 14 

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Bem a propósito, é interessante notar, por exemplo, que desde os capítulos iniciais da 1.ª Parte do Defensor da Paz 14, Marsílio usa os conceitos civitas, cives, societas civilis, etc., pois, se tivesse recorrido aos mesmos conceitos e à roupagem teórica 15, aos quais nos referimos anteriormente, que os seus oponentes utilizavam, não teria conseguido alcançar seu propósito. Igualmente, do Estagirita tomou emprestada a comparação segundo a qual a cidade ou reino é um organismo vivo e, como tal é constituído de partes que desempenham funções específicas em proveito do todo e, na condição de médico, ampliou a analogia, afirmando que a tranqüilidade de um reino equivale à saúde nos seres vivos, e o seu oposto, a discórdia, compara-se à doença, pois, quando qualquer ser vivo não está bem é porque algumas ou muitas de suas partes, diríamos nós hoje, órgãos e aparelhos, não estão funcionando como deviam e essa deficiência repercute negativamente sobre todo aquele ser. Semelhantemente, se as partes que compõem a cidade ou o reino não estiverem racionalmente bem definidas e organizadas todos os seus habitantes não gozarão da tranqüilidade, posto que haverá uma desor­ganização em seu interior, uma vez que cada uma delas ou não desem­penha as tarefas que lhe competem ou as desempenha mal.16 Se não era assim nas comunidades clânicas que viviam nas aldeias, onde todos desem­­penhavam todas as tarefas comuns, da agricultura, passando pelo pastoreio, à guerra, era porque tais comunidades ainda não requeriam divisões de tarefas ou atribuições de responsabilidades entre seus mem­bros, nem tampouco haviam alcançado um grau de aperfeiçoamento racional, decorrente da experiência acumulada com o passar do tempo. Mas, com o passar do tempo, prossegue Marsílio, os homens verifi­ cando que podiam viver melhor e querendo viver assim, com os propó­ TELLONI, Introdução cit., pág. 29: “...A presença da teologia, politizada inclusive na obra política de Dante, evidencia claramente as dificuldades em que, naqueles anos, debatiam-se os pensadores políticos para formular uma teoria absolutamente livre da teologia. Por isso, é um fato particularmente notável que, na “ prima dictio”...Marsílio tenha conseguido desprender-se dessa tradição teológica e tenha construído uma teoria sobre a “civitas”...apoiando-se exclusivamente na tradição filosófica e na razão natural, sem recorrer em absoluto à Revelação...”. 16  Cfr. ed. citada, § 3, págs. 76-77. 17  Ed. cit., cap., pág. 84, § 4 – Todavia, entre os homens assim reunidos, ocorreram rixas e contendas que, se por acaso não estivessem reguladas por uma norma de justiça, teriam sido a causa de guerras e da separação dos seres humanos e finalmente ocorreria então a própria destruição da cidade.

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sitos de não só obter mais facilmente tudo aquilo que necessitavam, bem como de repelir de si o que os prejudicava, como se fosse uma tendência proveniente do instinto, uniram-se numa comunidade mais numerosa de pessoas, cooperando e se auxiliando mutuamente. Entretanto, depois, também constataram que, apesar de estarem unidos naquela nova comunidade, com freqüência, se desentendiam entre si e brigavam uns com os outros, tendo chegando à conclusão de que, para que tal comunidade não se dissolvesse, era necessário regular a convivência deles através de uma norma legal de conduta acerca do que é justo e injusto, bem como estabelecer alguém dentre eles com as incumbências de fazer com que tal norma fosse respeitada, de castigar os seus infratores, isto é, os baderneiros e criadores de confusão, e ainda, de liderá-los, quando fosse necessário, a fim de repelir as ameaças de agressão e de invasão daquele local, provenientes dos vizinhos pertencentes ou não a uma comunidade semelhante.17 Estava, pois, estabelecido um tipo de poder político ordenador e organizador das relações sociais no interior das sociedades ou comunidades primitivas. Ademais, igualmente, constataram que em benefício comum, con­vinha que determinadas pessoas fossem especificamente incumbidas de, com o seu trabalho, produzir o que eles próprios e os demais precisavam para viver, e ou suprir a falta do que não tinham e, outras ainda, de prestar um culto de homenagem e ação de graças a Deus, bem como de instruir e orientar os semelhantes quanto a isso e acerca de seu comportamento correto ao conviver com os demais, tendo em vista a expectativa de uma outra vida.18 Assim, foi necessário estabelecer uma norma que determinasse o que é justo e se instituir um guardião ou executor da justiça no intuito de facilitar a convivência social. Competia àquela pessoa castigar os infratores daquelas normas de comportamento social, os fomentadores de confusão no interior da comunidade e ainda coibir as tentativas de violência oriundas do exterior contra ela. 18  Ed. cit., cap. IV, § 5, págs. 85: “Como os bens necessários àqueles que desejam viver de maneira suficiente são muitos e não podem ser obtidos por pessoas pertencentes a uma só ordem social e ocupação, foi necessário instituir nessa comunidade várias ordens de pessoas e ocupações, cada qual desempenhando tarefas específicas, isto é‚ visando obter aqueles bens de tal ou tal espécie que os homens precisam para uma vida suficiente. Essas diversas ordens sociais ou ocupações são efetivamente a pluralidade e a distinção entre os grupos sociais ou partes da cidade”. 19  Cfr. M. DAMIATA, op. cit., Cap.VI, págs. 141-160. G. de LAGARDE, op. cit., Cap. V, págs. 84-112.

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Essa comunidade perfeita e completa dos seres humanos, posto que nela há tudo o que precisam para viver bem, não apenas os alimentos e o vestuário, mas também uma convivência pacífica, ordeira e segura, chama-se, pois, cidade 19 ou reino, o qual, uma vez, ocupando uma região mais ampla, é constituído por várias cidades. Seus habitantes, livres de nasci­mento, são designados por cidadãos, os quais constituem a única sociedade que aí existe, a saber, a civil, pois dela não fazem parte as mu­lheres, os estrangeiros e os escravos, dadas as suas respectivas condi­ ções.20 Essa sociedade, tal como o organismo dos seres vivos, se subdivide em partes, conceito esse que tanto é sinônimo dos termos grupos ou ordens sociais, enquanto denota um determinado conjunto de pessoas que executam tarefas específicas consoante as suas inclinações ou aptidões, cuja causa material ou constitutiva são os próprios seres humanos 21, quanto o é das palavras ofícios ou cargos 22, ao designar as ocupações ou trabalhos que eles executam. Estribando-se mais uma vez em Aristóteles, Marsílio diz que esses ofícios ou ocupações, amplamente vistos, são seis, a agricultura, o arte­ sanato, as atividades financeiras, as militares, as sacerdotais e as judiciá­ rias. Num sentido estrito, esses ofícios se restringem aos três últimos, cujas incumbências são desempenhadas por aqueles que constituem a elite da sociedade, enquanto os três primeiros o são pelo povo, a maior parte da população.23 20  Defensor da Paz, I, XII, § 4, pág. 131: “...considero cidadão aquela pessoa que, na comunidade civil, participa do governo ou da função deliberativa ou da judicativa, conforme seu posto. Por conseguinte, esta definição exclui de tal conceito as crianças, os escravos, os estrangeiros, as mulheres, cada um, porém, de forma distinta. De fato, os filhos menores dos cidadãos também o são mais [sic] potencialmente, devido a não possuírem idade suficiente para sê-lo em ato...”. 21  Ed. cit., cap. VII, págs. 101-102. 22  Ibidem, pág. 101: “...Por isso, denomina-se corretamente os grupos sociais da cidade de cargos públicos, como se tratassem de serviços, pois considerando-se o motivo pelo qual foram estabelecidos em seu interior, estão ordenados ao proveito do ser humano...”. 23  Ibidem, cap. V § 1, pág. 86. 24  Ibidem, cap. V, § 5 e § 6, pág. 89. 25  Ibidem, cap. V, § 9, págs. 90-91. 26  Ed. cit., cap. VII, pág. 103: § 3 – “...No tocante às causas eficientes ou produtivas dos ofícios públicos, enquanto são hábitos anímicos, são as inteligências e as vontades dos

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Quanto à sua origem, esses ofícios também podem ser vistos ou como natural e imediatamente associados à sobrevivência dos seres humanos, e tal é o caso das atividades agro-pastoris, a par da caça e da pesca, e aquelas outras relacionadas com a transformação dos víveres, ou como provenientes do constante desejo humano de bem-viver, sob o aspecto material, ofícios esses que foram inventados pela inteligência e criativi­ dade humanas, neles se enquadrando todas as atividades artesanais e manufatureiras, entre outras, a lanificação, a sapataria, a metalurgia, e enfim, aqueles outros ofícios que, igualmente, inventados, sempre, com o mesmo propósito de aprimorar a vida humana, requerem uma prepa­ração específica e profunda, mediante o estudo, e tal é o caso da medicina, da arquitetura, da advocacia.24 Mas, face à sua localização, às condições e recursos naturais e as adversidades, nem todas as comunidades civis sempre conseguiram a auto-suficiência almejada. Por isso, igualmente, os seus habitantes acha­ ram por bem que aí devia haver um grupo social, designado financista por Aristóteles e Marsílio, que fosse o responsável pela administração das finanças, dos gêneros agro-pastoris e dos demais bens ou produzidos ou adquiridos por tal grupo social para comunidade, através da compra, con­soante as suas precisões.25 Por isso, a causa eficiente primeira de tais ofícios da cidade são a inteligência e a vontade dos seres humanos, ao tê-los inventado com vista ao seu próprio bem-viver.26 A finalidade do ofício sacerdotal e o seu desempenho por determi­ nadas pessoas é, até certo ponto semelhante ao dos demais. As diferenças residem nos fatos de que o ser humano é constituído de corpo e alma e, igualmente, aspira viver bem sob uma perspectiva espiritual, isto é, moral e religiosa, dado esse que leva a pressupor a crença num Ser transcen­ dente, considerado como o Criador de tudo que existe, a Quem se devem os preitos de reconhecimento e gratidão, a crença de que há uma outra vida em que esse Ser recompensará quem procedeu bem e punirá quem agiu mal 27 e a crença de que, para tanto, é necessário ser instruído na homens, manifestos através de seus pensamentos e aspirações, considerados individual ou coletivamente, pouco importam as circunstâncias...”. 27  Ibidem, cap. V, § 10, pág. 91: “...No entanto, todos os povos estão de acordo no tocante à conveniência de seu estabelecimento, com vista a louvar e cultuar a Deus e, por conseguinte, no benefício que isso ainda proporciona a esta e à outra vida, pois a maior parte das leis ou religiões afirmam que na outra vida Ele atribuirá um prêmio aos bons e um castigo aos maus”.

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doutrina e nas práticas que conduzem a obter essa recompensa futura e a se afastar do castigo eterno. Ora bem, a expectativa e o temor do que poderá vir a acontecer consigo, na outra vida, indiscutivelmente, contribuíram e contribuem para que os seres humanos procurem viver em paz em sociedade, fato esse que também contribui para a estabilidade e a preservação da mesma. 28 Entre os pagãos, o sacerdócio podia ser exercido por quaisquer pes­soas, mas, em geral eram escolhidas aquelas que já tinham desempenhado outros ofícios públicos, tendo se destacado por sua conduta virtuosa e exemplar e, dada a sua idade provecta, tornaram-se insensíveis às paixões humanas.29 Mas as crenças e os ensinamentos, inclusive aqueles contidos na lei § 11 – Mas além dessas razões concernentes ao estabelecimento das religiões ou leis, aceitos sem demonstração, os filósofos, dentre eles Hesíodo, Pitágoras e outros tantos pensadores antigos, consensualmente sempre deram atenção a um outro motivo que consideravam necessário para tanto. Tal motivo foi o de as mesmas contribuírem para a bondade dos atos humanos individuais e civis, dos quais dependem quase completamente a paz ou tranqüilidade no interior das comunidades, e, ainda, a suficiência desta vida”. 28  Ibidem, cap. V, § 11, págs. 92-93: “...Por causa do medo que tais crenças inspi­ ravam, os homens evitavam agir mal e estavam igualmente animados pelo zelo de praticar obras de misericórdia e piedade, agindo bem tanto para consigo mesmo quanto para com o seu próximo. Por esse motivo, muitos conflitos e violências não ocorreram nas comu­nidades, havendo, pois, no seu interior a paz ou tranqüilidade, bem como a vida suficiente almejadas pelos seres humanos enquanto vivem neste mundo. Aqueles sábios, ao expor-lhes tais leis ou seitas, visam alcançar os mencionados objetivos. § 12 – Portanto, o ofício dos sacerdotes pagãos consistiu em transmitir aqueles preceitos, e para ensinar os homens ergueram templos em suas comunidades onde os deuses eram cultuados. Formaram ainda sábios naquelas leis ou doutrinas, a respeito das quais já  falamos. Esses sábios eram chamados de sacerdotes porque presidiam os cultos utilizandose dos objetos consagrados existentes nos templos, como livros, vasos e muitos outros, destinados à celebração do que professavam.”. 29  Ed. citada, cap. V, pág. 93, § 13: “...Seus sacerdotes eram escolhidos entre quaisquer pessoas, dando-se preferência, no entanto, aos cidadãos zelosos e estimados por todos que haviam exercido antes os ofícios militar, judiciário ou no conselho, e tinham deixado de exerce-los por causa de sua idade provecta. Por conseguinte, foi àquelas pessoas já insensíveis às paixões humanas, que pareceu oportuno à comunidade confiar o mister de honrar aos deuses e desempenhar as outras citadas tarefas, pois sua idade avançada e austeridade davam mais crédito às suas palavras. Jamais, porém, os artesões ou os mercenários exerceram o sacerdócio porque antes não tinham desempenhado funções relevantes na comunidade. Daí, estar escrito na Política, livro VII, capítulo 7.º [IV, 9.º]: Não se deve estabelecer como sacerdote a um agricultor e tampouco a um artesão”. 30  Ibidem, cap. V, págs. 93-94, § 14 – “Mas as seitas pagãs e todas as outras que existiram ou existem, à parte a fé cristã, incluindo a lei mosaica e as crenças praticadas

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mosaica, ainda que tenham tido enorme relevância para os seres humanos, entretanto, não lhes propiciaram um aprimoramento completo sob a pers­ pectiva espiritual, ou por estarem eivados de erros, ou porque continham apenas uma parcela de verdade 30. Todavia, Deus misericordioso, não os abandonou na ignorância, revelando-lhes progressivamente a verdade, a qual atingiu sua plenitude, através da Encarnação de Jesus Cristo, o Filho de Deus e Redentor dos homens, que ensinou a verdadeira e única dou­ trina de salvação, instituindo a religião, os Sacramentos e o sacerdócio cristãos, com os sobreditos mencionados propósitos.31 Entretanto, os dois mais importantes ofícios e ou partes ou grupos sociais da cidade como o salienta Marsílio, na senda de Aristóteles são, o governamental ou judiciário, com o aparato que lhe é peculiar, e o militar, porquanto, numa palavra garantem a ordem interna que, estribada nas leis, deve haver na cidade, a segurança dos seus habitantes e a defesa deles contra quaisquer ameaças externas.32 Em seguida, haurindo-se uma vez mais no Estagirita, primeiramente, pelos santos patriarcas que a antecederam, mesmo não fazendo parte das tradições hebraicas, as quais se encontram no cânon sagrado, a Bíblia, não possuíram um conhecimento verdadeiro sobre Deus, porque se limitaram a seguir a razão humana, aos falsos profetas ou mestres do erro. Daí também não tiveram um conhecimento verdadeiro sobre a vida futura e tampouco acerca de sua felicidade ou desgraça e ainda sobre o verdadeiro sacerdócio instituído com a finalidade de tratar disto”. 31  Ed. citada, cap. VI, pág. 99, § 7: “...Como doutores da Lei Evangélica e ministros de seus Sacramentos, Deus estabeleceu que houvesse nas comunidades, de acordo com a mesma Lei, pessoas encarregadas de tais funções, chamadas sacerdotes e diáconos ou levitas, cujo oficio consiste no ensino dos preceitos e dos conselhos da lei cristã evangélica, sobre o que se deve acreditar, fazer e evitar, a fim de alcançar a bem-aventurança no outro mundo e fugir à condenação eterna”. § 8 – Portanto, a finalidade do sacerdócio como instituição reside na instrução e educação dos homens, de acordo com a Lei Evangélica, no tocante ao que é necessário acreditar, fazer e evitar, de modo a obter a salvação eterna e livrar-se do seu contrário”. Marsílio volta a tratar amplamente da origem e da finalidade do sacerdócio cristão na Parte I, capítulo XIX, §§ 4-7, págs. 196-199. 32  Cfr. Ed. cit., cap. V, §§ 7-8, págs. 89-90. 33  Ibidem, págs. 104-106. 34  Rm 13, 1-7. 35  Ed. cit., cap. IX, §§ 4-5, págs. 109-111. 36  Cfr. I, XIV, §§ 1-7, págs. 145-149. 37  Cfr. I, IX, §§ 6-7, págs. 112-113. 38  Cfr. ed. cit., págs. 162-181.

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no capítulo VIII da Parte I do Defensor da Paz 33, o Paduano discorre sobre a organização política da cidade, explanando sobre o que entende por governos temperados e corrompidos e, suas clássicas subdivisões. Por agora, o que importa salientar, é que em, qualquer das três espécies tem­peradas, (monarquia, aristocracia e república), pouco importa se é um ou se são muitos os governantes, desde, porém, que nesta segunda hipótese haja uma subordinação entre eles, o governante ao cumprir com seus deveres sempre visa ao bem comum dos cidadãos, concepção essa que entrelaça intimamente a Ética e a Política, sendo aquela fundamento desta. Depois, no começo do capítulo IX, conquanto aceite o dado da Revelação segundo o qual “todo poder vem de Deus” 34, embora frise que o Criador não interfere constantemente no curso da natureza, explana a respeito da causa eficiente imediata ou próxima da parte governante que exerce a monarquia real ou temperada, sobre a qual, adiante tratare- mos. A seguir, ainda respaldado na Política, o Paduano passa a discorrer sobre os cinco tipos de monarquia e como foram instituídas, as quais se reduzem a duas modalidades, a hereditária e a eletiva. A hereditária, em geral, é tirânica ou despótica, pois, o monarca concentra em suas mãos todos os poderes governamentais, bem como legisla sempre visando ao próprio interesse e, ainda, é o senhor de todos e de seus pertences (mo­ dalidades dois e cinco). A monarquia eletiva pode ser estabelecida com ou sem direito à sucessão hereditária. (Modalidades um e quatro). Em ambas as modali­dades o rei sempre é eleito, mas na segunda, ele governa ou por um deter­minado período, por exemplo, o de sua vida, e o sucessor será escolhido em sua família, ou em determinada circunstância, v. g., em ocasião de guerra. Ainda é possível haver uma modalidade (a terceira) de monarquia eletiva em que o rei governa apenas no próprio interesse. No entanto, as características essenciais da monarquia eletiva residem em terem sido estabelecidas com vista ao bem comum dos cidadãos ou súditos e no direito de estes escolherem o rei, ou porque se destaca pela excelência de suas virtudes, ou das façanhas que realiza, ou ainda, porque conquistou pelas armas determinado território ou o adquiriu pela compra, repartindo-o 35 entre seus aliados. 39 

Defensor da Paz, I, XVI, §§ 1-10, págs. 162-168. Ibidem, I, XVI, §§ 11-13, págs. 168-169. 41  Ibidem, I, XVI, § 15, pág. 170. 40 

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Todavia, convém ressaltar, desde já que, Marsílio privilegiou o regime monárquico no tocante aos outros e a modalidade eletiva em relação à hereditária, porquanto ela sempre possibilita escolher o melhor indivíduo para governar. As virtudes ou qualidades que tal pessoa deve possuir são, principalmente, a justiça e a prudência, e ainda, a bondade moral, a eqüi­dade e o amor pela sociedade civil e pelos cidadãos 36, de modo que este é o critério fundamental que deve nortear a escolha do príncipe ou governante, cuja função precípua é “regular as ações civis dos demais cidadãos”, mediante as leis 37. Com efeito, o Paduano volta a discutir amplamente tal assunto no capítulo XVI, o mais extenso da 1a Parte 38, apresentando-o sob a forma de uma quaestio disputata. Inicialmente, em parte, estribando-se nova­ mente em Aristóteles, arrola onze argumentos alegados em favor da monarquia com direito à sucessão hereditária.39 Depois, Marsílio sustenta três argumentos 40 em favor da modalidade que prefere por julgar ser a melhor, começando pelo principal que antes havia mencionado. Considerando que todos os membros da sociedade civil aspiram ao bem comum e à vida suficiente, esta é a única forma que lhes possibilita escolher o melhor governante que há de efetivar esse desejo. Ao contrário, a monarquia hereditária nem sempre assegura que isto irá acontecer. Para corroborar a tese, basta indutivamente examinar a história singular de cada reino e cada um de seus reis, a fim de verificar se, de fato, foram bons governantes. Em segundo lugar, ao se cogitar a pessoa de alguém para vir a ser eleita rei, normalmente, aqueles a quem compete fazer isso, consideram se tal pessoa é virtuosa, justa, prudente e possuidora de outras qualidades que a fazem capaz de bem exercer o governo. A monarquia hereditária não possibilita essa hipótese. Em terceiro, o monarca reinante, virtuoso que é, pois caso contrário não teria sido eleito, ao fazer justiça às pessoas será muito mais cuida­ doso, temendo que se represente contra ele e, até mesmo, porque receia vir a ser julgado e castigado por causa de suas falhas, dado que seu poder 42  Ibidem, I, XVI, §§ 16-18, págs. 171-174. Cfr. também § 23, págs. 178-179: “... No entanto, qualquer ente não é mais natural e perfeito do que outro que pertença a uma espécie diferente. Se assim não fosse, o artesão seria mais perfeito do que o metafísico e o artesanato do que a metafísica ou do que qualquer outra ciência especulativa. Aliás, já  dissemos anteriormente que isso não é uma verdade necessária. A monarquia eletiva não é sempre uma privação da hereditária e tampouco recipro­

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é limitado. É evidente que isso não ocorre na monarquia hereditária. Ademais, pensando na eleição futura, outrossim, esse rei irá cuidar bem da educação de seus filhos, os quais, por sua vez, tendo presente o mesmo motivo, não só procurarão adquirir e se exercitar em tais virtudes, mas também cumprirão com suas obrigações, de modo que, na ocasião apro­ priada, possam vir a ter chance de serem cogitados para rei. Em seguida, o Paduano passa a redargüir os argumentos apresentados a favor da monarquia hereditária, aproveitando para esclarecer e funda­ mentar mais a tese que professa. Com efeito, ao contrário, por ser virtuoso e bom, é o monarca eleito que tem uma solicitude maior para com o bem comum. Além disso, em seu íntimo, ele deseja ser respeitado, obter pres­ tígio e honra e, após a sua morte, vir a ser relembrado como um bom rei. Para mais, não é uma verdade irrefragável que o monarca hereditário é menos déspota pelo fato de a sua estirpe estar habituada a exercer o poder. Na verdade, um rei torna-se déspota, ou por imprudência política ou por maldade ou ainda por ambos os motivos, mas, “principalmente quando aspira poder agir mal impunemente” 41. Todavia, como foi dito, o monarca eleito, por ser virtuoso, sempre evitará tornar-se um déspota e, se por ventura agir mal, ainda será julgado e punido. Por outro lado, são apenas probabilidades que não podem ser apre­ sentadas como argumentos consistentes, as alegações de que: a) os súditos não iriam obedecer do mesmo modo um novo monarca eleito a cada vez, pois as leis determinam quais são seus deveres; b) uma dinastia tenha se destacado a tal ponto pelo bem que sempre proporcionou aos súditos que mereça conservar o poder, ou que os reis virtuosos educam seus filhos desse mesmo modo, porquanto ninguém pode assegurar que tais coisas sempre irão acontecer; c) que pelo fato de a monarquia hereditária ser a modalidade mais comum em todos os reinos e lugares é a mais perfeita, porquanto não se avalia a perfeição de um ente pela quantidade dos mesmos, mas por suas qualidades e em analogia com outros seres da própria e de espécies diferentes, ainda que essa comparação também possa ser relativa.42 Quanto à série de riscos que a monarquia eletiva pode ocasionar no tocante às pessoas do candidato e dos eleitores e suas conseqüências, quais sejam, 1) não candidatos virtuosos, é algo quase impossível; camente. Na verdade, sãohaver espécies distintas uma da outra, incompatíveis simultaneamente a uma mesma pessoa à frente de determinada sociedade civil...”. 43  Ibidem, I, XVI, § 19, págs. 174-175. 44  I, XVI, § 21, págs. 177-178.

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2) a falta de consenso entre eles quanto a eleger alguém com os preditos requisitos, o que poderá, até mesmo ocasionar uma guerra civil, e a hipótese de se deixarem conduzir por suas más inclinações, acabando por escolher um mau governante, refutam-se, afirmando que a eleição deverá sempre ser efetuada por homens virtuosos e prudentes, os quais, incorrer em tais erros, e ainda que não fossem, tal risco vale à pena, tendo-se presente o argumento principal, isto é, a monarquia eletiva sempre possi­bilita escolher o melhor governante, o qual jamais irá olvidar sua solicitude para com o bem comum.43 Com respeito ao argumento em que se dizia que a monarquia here­ ditária, tanto impede que os cidadãos venham a exercer o poder governa­ tivo porque se trata de algo que lhes é indevido, quanto os coíbem de ter esse desejo, é verdade. Porém, há que considerar, de um lado, que os cida­dãos considerando que há muito vem sendo governados por reis que são menos virtuosos e dignos do que muitos deles, e apesar disso, conti­nuam à margem do poder, um dia, irão se rebelar contra a dinastia reinante. Por outro, quando alguém, de fato, virtuoso, deseja reinar, não o tem esse desejo por ser orgulhoso, ambicioso ou presunçoso, mas porque antes sabe que tem condições de fazer um bom governo em proveito de todos, e só a modalidade eletiva possibilita isso.44 Igualmente sem base é o argumento, segundo o qual os monarcas eleitos, por medo de que seus filhos venham a sofrer represálias dos poderosos e de seus parentes, não têm coragem de os julgar e castigar porque transgrediram as leis, pois, o governante atual ou o seu sucessor, por força do dever de ofício, terá de reparar a justiça, porquanto assim o determina a lei, agrade ou não aos poderosos.45 Mas a questão fundamental a esclarecer é: como governar tendo em vista o bem comum dos cidadãos e regular o comportamento social ou civil dos mesmos? A resposta só pode ser uma: a sociedade há que ter 45 

Ibidem, § 22, pág. 178. Ed. cit., cap. X, § 4, pág. 117. Um pouco mais adiante, o Paduano explica melhor e sintetiza o seu pensamento, afirmando que: “a lei é um enunciado ou princípio que procede duma certa prudência e da inteligência política, quer dizer, ela é uma ordem referente ao justo e ao útil, e ainda aos seus contrários, através da prudência política, detentora do poder coercivo, isto é, trata-se de um preceito estatuído para ser observado, o qual se deve respeitar, ou ainda, alei é uma ordem promulgada através de determinado preceito..”. Cfr., a propósito, o interessante estudo de Julio A. C. DUBRA, “Finalismo y formalismo en el concepto marsiliano de ley: la ley y el legislador humanos en el Defensor Pacis”, Patristica et Mediaevalia, 18 (1997) 81-96. 46 

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leis e, para o Paduano, estas são normas coercivas que estipulam “o que é justo ou injusto, útil ou nocivo”, sob pena de “recompensa ou castigo a ser atribuído neste mundo, conforme a finalidade do seu cumprimento”.46 Portanto, para que a lei, seja perfeita, sob o aspecto material, se requer sempre que tenha um fundamento na virtude moral da Justiça, oposta ao seu contrário, a injustiça, e sob o aspecto formal, a coerção, impondo a sua observância. Algo justo, considerado socialmente, segundo havia ensinado o Estagirita, consiste naquilo que é determinado de modo melhor no interesse da comunidade e da totalidade dos cidadãos, não em proveito desta ou daquela parcela ou de um número maior das mesmas, ou no dos governantes, ou ainda no do próprio Estado.47 Ademais, a lei não só coíbe que o príncipe ou o governante, ainda que seja o melhor, ao exercer o cargo de juiz, decida sobre a causa, conforme o seu arbítrio, mas respaldado no que ela estipula, mas também assegura a estabilidade do regime.48 Mas para além desses aspectos, também é preciso esclarecer, segundo a visão de Marsílio, qual é a causa eficiente das leis, isto é, quem é o legislador humano 49 para a sociedade civil. Haurindo-se novamente em Aristóteles, o Paduano responde à ques­tão, afirmando que “...o legislador ou a causa eficiente primeira e espe­cífica 47 

Cfr. Política, III, 13. Defensor da Paz, I, XI, pág. 119: “...Portanto, a primeira finalidade, noutras palavras, reside no seguinte: é necessário estabelecer algo na sociedade civil que possibilite a realização correta de julgamentos civis, e mediante o qual poderão ser efetivados de acordo com a forma requerida, e na medida do possível estejam preservados das falhas dos atos humanos. Esse é o caso da lei, pois o governante ou príncipe deverá proferir julgamentos civis de acordo com o que ela determina”. Ibidem, § 7, pág. 127: “...Por isso, é oportuno que os governantes, ao proferirem julgamentos civis, estejam mais circunscritos àquilo que está determinado pela lei do que atuem segundo o próprio arbítrio, pois, agindo de acordo com a mesma, estarão coibidos de fazer coisas más e repreensíveis, de modo que seu governo tornar-se-á estável e duradouro...”. 49  Cfr. M. DAMIATA, op. cit., Cap. VII, págs. 161-169. 50  Defensor da Paz, I, XII, § 3, pág. 130. 51  Ibidem, § 5, pág. 132. Ibidem, I, XIII, § 6, pág. 142: “...mesmo que as leis pudessem ser elaboradas da melhor forma pelos doutos apenas do que pelos menos instruídos, não se deve concluir apressadamente que serão as mais bem feitas se forem elaboradas somente pelos primeiros do que por toda a globalidade dos cidadãos, da qual também fazem parte os sábios. De fato, a multidão englobando todos pode julgar mais claramente a respeito do que é justo e útil para a globalidade das pessoas e querer isto bem mais do que um dos grupos sociais particularmente tomado, mesmo que seja o dos prudentes...”. 52  Ibidem, § 8, pág. 135. Ibidem, I, XIII, § 5, pág. 141. 48 

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da lei é o povo ou o conjunto dos cidadãos ou sua parte pre­ponderante, por meio de sua escolha ou vontade externada no seio de sua assembléia geral, prescrevendo ou determinando que algo deve ser feito ou não, quanto aos atos civis, sob pena de castigo ou punição temporal...”. 50 Um pouco mais adiante, o Paduano justifica seu ponto de vista afir­ mando que quanto maior for ou o número de integrantes dessa assem­bléia ou o número de representantes dos cidadãos presentes à mesma, tanto mais serão capazes não só de perceber os mais variados tipos de erros nas propostas para se tornarem leis, bem como externar o que, efetiva e ampla­mente, lhes convém, do que se esta incumbência for confiada a uma só pessoa ou somente a qualquer um de seus grupos sociais.51 Com efeito, isto é evidente por vários motivos. De uma parte, várias pessoas, ainda que seu nível de instrução seja bastante heterogêneo ou até mesmo nulo, percebem e compreendem melhor a realidade do que uma só ou um grupo reduzido. De outra, como ninguém no pleno gozo de suas faculdades mentais prejudica a si mesmo, e tendo presente que o critério de bem ou utilidade comum é essencial à lei, com facilidade, os membros da assembléia poderão verificar se a sua aplicabilidade é ampla ou restrita. Além disso, se o poder legislativo for atribuído a uma pessoa ou a apenas uma parte da sociedade civil, todos ainda correrão dois graves riscos, a saber, o despotismo tirânico e o legislar em proveito ou benefício próprio.52 Para mais, dado que a lei deve ser observada por todos, seria um desperdício de tempo se os cidadãos se reunissem para deliberar e legislar acerca do que é proveitoso para todos, propondo normas legais com esse fito, se o Estado não dispuser de um aparato próprio, isto é, os servidores da justiça e os militares, para fazer com que as leis venham a ser cumpridas.53 Há, porém, dois problemas práticos a serem resolvidos. O primeiro, 53  Ibidem, § 6, págs. 133, 134. Mais adiante, no capítulo XIV, § 8, pág. 149, o pró­prio Marsílio explicita esse ponto de vista, declarando:“...É necessário ainda que o príncipe... disponha de um organismo extrínseco, isto é, dum certo número de soldados, por meio dos quais faça cumprir as suas sentenças civis, empregando assim a força coerciva contra os rebeldes ou desobedientes... Se não fosse dessa maneira, as sentenças e as leis civis seriam inócuas, porque não seriam cumpridas. Mas o legislador dever  fixar não apenas o número de soldados à disposição do príncipe, mas também o dos que exercem as demais atividades civis. Esse contingente terá de ser bastante numeroso de modo a exceder tanto o poder individual de cada cidadão, como o de grupos dos mesmos tomados em conjunto, entretanto, não deverá  extrapolar o poder de toda a coletividades ou de sua parte preponderante, a fim de que

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relaciona-se com a composição da assembléia dos cidadãos, e Marsílio sabia muito bem, seja pela própria experiência, baseada na organização política das comunas italianas, ou dos Parlamentos, então existentes na Inglaterra e na França, onde vivia quando escreveu seu Defensor da Paz, seja também através da leitura autores clássicos, particularmente, da Política, que a Ápela ateniense dos séculos V-IV a. C., embora, consti­ tuída por cidadãos, não representava todos os grupos sociais integrantes da mesma. Apesar disso, para integrar essa assembléia, sem entrar em minudências, quanto ao número total de representantes ou à proporcio­ nalidade dos mesmos por grupos sociais, salvo no que concerne à pre­ sença de homens prudentes como membros natos da mesma, ele propôs que, ou a totalidade dos cidadãos reunidos devia escolher as pessoas mais experientes para tanto, ou cada um dos seis grupos sociais ou partes da sociedade civil, em separado, escolhesse os seus representantes para tal.54 O outro problema diz respeito ao instante exato em que as disposições tomadas pela assembléia passam a vigorar como leis. Isso ocorre em duas etapas. Primeiro, todos os participantes da assembléia deverão apreciar as não aconteça que o governante presuma que pode ou violar as leis, ou governar à sua margem ou ir contra as mesmas, como se fosse um déspota...”. 54  Ibidem, I, XIII, pág. 143: § 8 – “Por tal razão é oportuno e muito útil que o con­ junto dos cidadãos confie a homens prudentes e experimentados não só a procura, a des­coberta e a elaboração das regras, futuras leis ou estatutos, relativos ao que é justo e útil à cidade, mas também a reflexão a respeito do que lhe é nocivo e acerca das respon­ sabilidades comuns a todos. Assim sendo, ou cada um dos grupos sociais existentes na cidade, aos quais nos referimos no capítulo V, § 1, desta parte da obra, de acordo, no entanto, com o seu ofício, escolha alguns cidadãos para tanto, ou todos os cidadãos reunidos em conjunto escolham as pessoas prudentes e experimentadas, às quais aludimos anteriormente, para executar aquela incumbência. Esta será, pois, a maneira adequada e útil para se legislar sem causar prejuízos ao resto da multidão, especialmente aos menos esclarecidos, os quais, se fossem incumbidos de tal mister, não somente não obteriam êxito mas se prejudicariam no desempenho das tarefas que lhes são necessárias, causando dano a si mesmos e aos demais cidadãos, fato este por demais oneroso tanto aos indivíduos como à própria comunidade...”. 55  Defensor da Paz, I, XIII, § 8, pág. 144: “...As mencionadas regras, futuras leis, tornar-se-ão públicas uma vez apresentadas à assembléia geral dos cidadãos. Estes, se qui­serem falar ponderadamente a seu respeito, deverão ser ouvidos. Posteriormente, deve- -se ou eleger, conforme a maneira já indicada, aquelas pessoas prudentes e experi­ mentadas, ou confirmar aqueles outros indivíduos, a quem nos referimos anteriormente,

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propostas, podendo modificá-las mediante acréscimos ou supressões, ou até mesmo, recusá-las na íntegra. Em seguida, então, terão ser aprovadas e promulgadas pelos presentes.55 É no direito de legislar sobre o que convém ao bem comum e a respeito do comportamento de todos 56, que a universitas civium ou sua valentior pars possui, que se fundamentam outros direitos que eles têm, entre os quais, o de eleger o príncipe ou governante 57, bem como fisca­ lizar sua conduta, e na hipótese de ele transgredir as leis ou exercer mal o seu ofício, não cumprindo com seus deveres, vir a ser julgado punido, até mesmo com a destituição do poder 58. Igualmente é de seu poder estabelecer ou instituir os demais ofícios que devem existir na sociedade civil, os quais na condição de representantes do conjunto dos cidadãos, exercendo a autoridade em seu nome, aprovarão ou recusarão total ou parcialmente as regras elaboradas e pro­ postas. Isto ainda poderá vir a ser feito pelo conjunto dos cidadãos globalmente ou por sua parte preponderante, se ele assim o desejar. É somente após tal aprovação, nunca antes, que as sobreditas regras tornam-se leis e merecem efetivamente essa denominação. Em seguida à sua promulgação e publicação, são exclusivamente essas leis, dentre os preceitos humanos, que têm a capacidade de impor uma pena ou um castigo civil aos seus transgressores....”. 56  Ibidem, I, XV, §§ 2-3, págs. 152, 153-154: “...afirmamos, apoiados na verdade e na opinião de Aristóteles manifesta na Política, livro III, capítulo 6.º, que o legislador ou o conjunto dos cidadãos é a causa eficiente da escolha ou do estabelecimento do governante da mesma forma que lhe cabe o poder legislativo, como vimos no capítulo 12.º desta Parte da obra, e não apenas isso, mas também é da sua competência representar contra o governante e ainda depô-lo, se tal medida for útil ao bem comum..Portanto, considerando que compete ao conjunto dos cidadãos engendrar a forma, isto é, a lei por meio da qual todos os atos civis devem ser regulados, ...é igualmente de sua alçada determinar o sujeito ou a matéria desta forma, quer dizer, escolher o príncipe, a quem cabe ordenar, segundo aquela forma, as ações civis dos seres humanos...”. 57  Cfr. Marino DAMIATA, op. cit, Cap. VIII, págs. 177-191. 58 Marsílio discorre mais amplamente sobre este assunto na 1a Parte do tratado, capítulo XVIII, ed. cit., págs. 190-192. 59  Cfr. I, XV, § 4, pág.154. 60  Ibidem, § 8, pág. 158: “...A norma ou lei que regula as sociedades bem organi­ zadas é, portanto, a seguinte: nomear as pessoas dotadas de aptidões práticas adequadas para exercer as funções ou ofícios da cidade, e paralelamente fazer com que os indivíduos que não as possuem, por exemplo, os jovens, sejam educados em função daquelas qualidades a que revelam naturalmente estar propensos. Esta foi a opinião do notável Aristóteles, referindo-se a esse assunto, na Ética, livro I, [2]: Quais são efetivamente as disciplinas que precisam ser ensinadas nas cidades ou quais devem ser ensinadas a cada pessoa e em cada medida, cabe à mesma dispor, quer dizer, à prudência política ou legislativa, e, por conseguinte, à pessoa à qual compete organizar a sociedade civil,

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de acordo com a sua organização ou regime político, mas por atribuição de competência 59, isso deve ser efetivado concretamente pelo governante, o qual, com esse propósito, terá de levar em conta não só as qualidades ou aptidões pessoais dos indivíduos, requeridas para que possam exercêlos 60, e um dos meios, com esse intuito, preconizados pelo Paduano na senda de Aristóteles, é a educação, mas também as neces­sidades concretas da própria sociedade, de modo que não venha a ocorrer um desequilíbrio numérico favorável a alguns ofícios, e em detrimento de outros. 61 Na verdade, o príncipe ao governar a sociedade civil, assemelha-se ao coração no organismo, pois, como este órgão faz as demais partes do mesmo funcionar bem, do mesmo modo, se não houver um governo e quem exerça esse ofício “...a comunidade civil não tem como sobreviver ou pelo menos se manter durante um espaço de tempo mais longo...”, por causa das rixas, discórdias e injustiças que os homens cometem recipro­ camente, as quais se não forem corrigidas e reparadas, em consonância com o estipulado pelas leis, indubitavelmente levarão ao caos social e à privação da vida suficiente...” 62. Ademais, ele “ainda mantém e ajuda os outros grupos sociais da cidade no desempenho de suas funções espe­ cíficas provenientes de seus próprios encargos e paralelamente daqueles conforme a lei, isto é, o príncipe...”. 61  Ibidem, § § 10-11, págs. 159-160: “...Assim, quanto a esse aspecto, o príncipe deve indicar um número razoável de pessoas aptas a desempenhar tais ofícios, de modo a não acontecer que a sociedade civil venha a ser destruída por causa de um contingente excessivo de indivíduos estar a desempenhar uma só tarefa em detrimentos de outras. O príncipe atuando dessa maneira manterá  os grupos sociais da cidade em suas funções espe­cíficas e a preservará  dos prejuízos e das injustiças, pois se um deles vier a sofrê-los ou cometê-los, esse ato deverá  ser imediatamente reparado por ele e o grupo que a cometeu deverá  ser castigado, porque a punição é um remédio para o delito...”. 62  Ibidem, § 6, pág. 156, 157. Cfr. também § 13: “É por tais motivos que a atuação do príncipe no interior da cidade, à semelhança da atividade cardíaca no organismo vivo, jamais dever  ser interrompida. De certa forma, os outros grupos sociais, durante algum tempo, poderiam até mesmo interromper suas tarefas sem causar grande prejuízo às pessoas, aos demais grupos ou a toda comunidade. Tal é o caso dos soldados em época de paz e a mesmíssima coisa ocorre também com os demais...”. 63  Ibidem, § 12, pág. 160. 64  Ibidem, § 14, pág. 161: “...Por conseguinte, ...o governo, conforme a lei humana, ocupa o primeiro lugar na sociedade civil e na e para a vida presente aqui na terra, isto é, no propósito de se viver em comunidade civil, tem competência para instituir os outros grupos sociais, determiná-los e conservá-los e todos eles lhe estão subordinados...”. Cfr. também G. de LAGARDE, op. cit., Cap. VI, págs. 113-131. J. QUILLET, op. cit., cap. IX, págs. 101-124.

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comuns decorrentes do relacionamento mútuo entre os mesmos” 63. Logo, com respeito à organização política da sociedade civil, e de acordo com a lei humana, a pars principans ou governativa, hierarquicamente, ocupa o primeiro lugar, e os demais ofícios, de modo indistinto, lhe estão subordinadas.64 Concluindo esta exposição, quero frisar alguns pontos que merecem consideração mais atenta ao se ler O Defensor da Paz. A teoria política de Marsílio, elaborada com vista a desmantelar a hierocracia pontifícia e o seu corolário prático, a plenitudo potestatis, dado o seu caráter natu­ralista e laicizante, de fato, é inovadora e original em relação à sua época, ainda que, por isso mesmo, também, apresente lacunas e impre­ cisões conceituais e, igualmente, no fundo espelhe tendências, decorrentes das mudanças sociais e econômicas que vinham acontecendo nas vilas e cidades, seja nas Comunas da Itália Setentrional, seja nos reinos da Francia ou da Inglaterra, e inclusive de Portugal, onde as monarquias nacionais com os Parlamentos, as Cortes e os Concelhos, se sobrepunham às monarquias feudais. Entretanto, querer considerar o Paduano como um pensador moderno porque teria introduzido e proposto na sua teoria, paradoxalmente, ou um absolutismo ou totalitarismo do Estado 65, encarnado no imperador, ou a idéia precoce de soberania popular da qual emanam os poderes gover­nativos da sociedade, são anacronismos conceituais decorrentes de inter­pretações baseadas na Ciência Política de nosso tempo. Não nego, porém, que Marsílio tenha aberto um caminho para novas concepções que,65no entanto, irão se consagrar muitos séculos mais tarde, tais como, a

  J. P. GALVÃO DE SOUSA, O Totalitarismo nas Origens da Moderna Teoria do Estado, S. Paulo, 1972.

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repar­tição das esferas do poder ao menos em duas, a judiciária, atribuída à pars principans, a legislativa à valentior pars da universitas civium; a absorção da Igreja no Estado, tal como veio a ocorrer com o Anglicanismo, o Galicismo e o Josefismo, e a sua desvinculação do exercício do poder. Enfim, aliás, bem a propósito, deixo uma questão para os investi­ ga­dores lusitanos interessados pelas idéias políticas: na centúria que se estende do governo de Afonso III (1248) ao de Pedro I (1367), não será possível descobrir nos textos das Cortes, das Chancelarias e das leis avulsas, um pensamento político para a nação portuguesa daquela época? José Antônio de C. R. de Souza

(Universidade Federal de Goiás-Goiânia, Brasil)

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