Sociedade contra o Estado. Duas ondas de democratização radical no Brasil (1988 e 2013): Uma interpretação à luz de Franz Neumann

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Sociedade contra o Estado.
Duas ondas de democratização radical no Brasil (1988 e 2013):
Uma interpretação à luz de Franz Neumann

José Rodrigo Rodriguez (UNISINOS e CEBRAP)


Crise, democracia e peemedebismo.

A atual crise brasileira está redefinindo as fronteiras entre direito e política uma segunda vez em menos de 30 anos de forma dramática e radical. Por diferentes razões, quando a música parar afinal, é provável que a política e o direito brasileiro nunca mais sejam os mesmos. Nosso sistema de justiça aparentemente revelou o núcleo corrompido da vida públicanaciona que está aberto para fazer negócios escusos ao menos desde a década de 1980. Até certo ponto, a maioria dos representantes políticos parece estar implicada nesta trama, os partidos políticos mais importantes do país e quase todas as maiores figuras políticas e empresariais do país.
Este processo pode se mostrar uma boa oportunidade para radicalizar a democracia brasileira ou pode se constituir em uma ameaça à sua integridade, provo cando a desarticulação de nosso sistema político. Seja como for, a crise não diz respeito apenas à corrupção: ela também está relacionada, de alguma forma, com uma segunda onda de democratização em curso, nascida no seio da sociedade civil brasileira. A primeira onda de democratização ocorreu ainda sob a ditadura militar e produziu a Constitutição de 1988, na sequência de uma estratégia de luta por direitos, processo que também ajudou a construir um Judiciário e um sistema de justiça fortes e influentes. De fato, parece que o sistema de justiça hoje é o único setor do estado capaz de ouvir e atender às demandas crescentes da sociedade civil brasileira.
Nos último anos o Judiciário tem assumido um papel central na política nacional, especialmente o STF, ao julgar casos polêmicos de amplo interesse público, os quais até pouco tempo atrás, permeneciam por anos estrategicamente esperando para entrar em pauta, por exemplo, a demarcação de terras indigenas, a possibilidade de aborto de fetos anecéfalos e a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Além disso, o STF julgou o caso criminal do "Mensalão", escândalo de corrupção ocorrido durante o governo Lula, por ser dotado de competência exclusiva para julgar autoridades que ocupam cargos no governo federal. Além disso, o sistema de justiça como um todo, Polícia, Ministério Público e Judiciário, têm se voltado para combater a corrupção, nesse momento, especialmente por meio da "Operação Lava-Jato". Todo este movimento pode ser interpretado como uma reação ao modo como a política brasileira tem atuado, adotabdo práticas corruptas e voltando as suas costas para as demandas da sociedade civil, como veremos a seguir.
Com efeito, a implementação dos direitos constitucionais estabelecidos em 1988 foi parcialmente sabotada por uma cultura e estrutura política reacionária chamada de "peemedebismo", que se organizou durante a Assembléia Constituinte brasileira (1987-1988), a fim de evitar o reconhecimento dos direitos sociais pelo texto constitucional e enfraquecer os meios destinados a sua execução e implementação. Além disso, a desregulamentação e a transnacionalização dos mercados na década de 1990 tiveram seu papel em restringir a força da luta por direitos, ao diminuir o poder do Estado de controlar e taxar o capital para financiar as políticas públicas de caráter social.
O processo social em curso neste momento, desencadeado em Junho de 2013, parece ser clamente uma reação da sociedade civil ao "peemedebismo". Ainda não está claro qual será a forma específica de institucionalização a atual onda. No entanto, sua inspiração autonomista e forma anti-hierárquica de ação social parece ter trazido ao centro do palco uma geração de ativistas que não está interessada em tomar parte na política tradicional ou ocupar posições de poder do Estado. Em vez disso, esses ativistas parecem estar mais preocupados em criar formas de vida auto-organizadas.
É claro que a atual onda de democratixzação pode vir a ser absorvida pela política tradicional e ver seu potencial inovador frustrado, ou levar a algumas consequências transformadoras de longo prazo. Por exemplo, ela pode eventualmente dar lugar à criação diversas zonas autônomas, anárquicas e experimentais, livres da influência do Estado. Ou talvez ela resulte em transformações na forma de Estado, que pode ser privado de seu poder de regular diretamente a sociedade, passando a desempenhar o papel de estimular e financiar os vários campos sociais auto-geridos, além de ajuda-los a lidar com os conflitos que surjam entre eles.
Caso o Estado realmente se transforme no sentido que apontamos, não terímos mais um Estado todo poderoso, mas uma entidade de coordenação que iria partilhar o seu poder soberano com a sociedade, ou seja, que iria devolver o poder normativo à sociedade - uma forma de poder atualmente concentrado no Parlamento - e dedicar-se principalmente à resolução de conflitos entre os diversos eapaços de gestão autônoma. Ainda que não seja fácil imaginar uma possibilidade como esta se efetivar na realidade, pois a nossa imaginação política parece estar quase completamente dominada pela dualidade Estado e sociedade civil, é necessário considerá-la seriamente a fim de não subsumir precocemente na gramática política tradicional o que pode haver de inovador nesta nova onda de ativismo social.
É importante ressaltar também que a atual crise política brasileira também é um resultado positivo do desenvolvimento de um sistema de justiça forte, que inclui um Poder Judiciário autônomo e muito bem pago e um igualmente poderoso e bem remunerado Ministério Público Federal e Estadual. De fato, o Ministério Público tornou-se tão poderoso e autônomo que parece razoável afirmar que ele atua hoje como um novo poder do Estado brasileiro e não apenas como uma agência estatal entre outras.
Nos últimos dois anos, quase todas as semanas o país descobre uma nova peça chocante no que parece ser um esquema de corrupção quase universal, revelado pela "Operação Lava-Jato" dirigida pelo Ministério Público Federal com a ajuda da Polícia Federal e da Justiça Federal. É verdade que não há provas até este momento de que todos os envolvidos tenham se beneficiado pessoalmente do esquema de corrupção. Essa é uma das razões pelas quais parte do país tem ido às ruas para se opor ao impeachment da presidente Dilma Rousseff e para lançar dúvidas sobre como Justiça Federal vem tratando o ex-presidente Lula, que ainda não foi formalmente acusado de nada. No entanto, neste momento parece não haver mais dúvidas de que todos os partidos políticos e uma enorme quantidade de figuras políticas, incluindo membros do PT, recebeu dinheiro para financiar suas campanhas, despesas pessoais e despesas do partido.
A "Operação Lava-Jato" parece ter atingido uma estrutura profunda e fundamental da política brasileira. É claro que existe o risco de tudo permanecer o mesmo depois que alguns bodes expiatórios sejam sacrificados nos altares da nossa sociedade do espetáculo. Mas o cenário "tudo termina em pizza", neste caso, soa menos plausível se lembramos das mudanças ocorridas no sistema de justiça brasileiro. Pois é cada vez menos plausível que policiais, juízes e membros do Ministério Público sejam manipulados pela esfera política quando seus poderes, atribuições e ganhos financeiros não depende de negociações políticas, mas decorrem diretamente do texto da Constituição.

Primeira onda de democratização: A Constituição de 1988 e o peemedebismo

Antes de 1988, o pensamento e a ação social de esquerda nunca haviam levado o Direito a sério no Brasil e por uma boa razão: a política brasileira sempre funcionou de cima para baixo e utilizava as leis, principalmente, para legitimar decisões autárquicas. Durante o século 20, o país alternou períodos democráticos curtos com golpe de Estado e longos períodos de governos autoritários, durante os quais as leis não eram elaboradas com a participação da sociedade civil. Vivemos agora nosso período democrático mais longo, quase 30 anos.
Não espanta, portanto, que o marxismo ortodoxo e abordagens foucaultianas sobre o Direito tendam a prevalecer no campo da esquerda acadêmica brasileira, pois essas teorias aparentemente descrevem nossa realidade de forma muito precisa, ao menos até 1988. Para um intelectual de esquerda no Brasil, a tarefa tem sido sempre denunciar a opressão implementada por meio das leis e não explorar suas caractéristicas de "espada de dois gumes", como Franz Neumann afirma no prefácio de O Império do Direito. Pois o Direito só adquire esse caráter dual quando é objeto de disputa pelos diversos gripos sociais, tanto no Parlamento quanto no Judiciário.
Franz Neumann ensina que, quando o proletariado começou a lutar por direitos, expôs a iniquidade do direito burguês, especialmente no campo dos contratos e do direito de propriedade. A luta proletária deixou claro que os contratos não promovem uma troca justa entre trabalho e salário e que o direito de propriedade oculta o arbítrio egoísta sobre bens de interesse social. Assim, para trazer algum equilíbrio à "troca" promovida pelo contrato de trabalho, a luta dos trabalhadores afirma ser necessário adicionar ao contrato várias cláusulas obrigatórias, que limitam a vontade do empregafor, colocando limites à exploração do trabalho por meio da garantia de direitos sociais, universalmente, a todos os trabalhadores. Estas cláusulas obrigatórias compensam e ao mesmo tempo expõem a desigualdade da troca de trabalho por salário
O conceito de função social da propriedade, nascido na Constituição de Weimar, impõe a regulação da propriedade privada em nome do interesse social e não apenas em função de interesses puramente egoístas. Por exemplo, para que alguém mantenha a propriedade sobre um imóvel, deve explorá-lo de modo a satisfazer os interesses sociais, ou seja, de acordo com critérios estabelecidos pelas leis, sob pena de poder ver seu bem desapropriado para fins de interesse público.
Estas mudanças na função do direito, provocadas também por transformações na estrutura e no funcionamento dos poderes do Estado, começou a limitar o controle da burguesia sobre capital. Não é por outra razão que, de acordo com Franz Neumann, o nazismo se seguiu à efervescência democrática da República de Weimar. Pois quando o Estado de direito é posto a serviço das classes oprimidas e ameaça o controle da burguesia sobre o capital, a burguesia procura fugir do direito fornecendo apoio a formas irracionais e autárquicas de governo ou de regulação capazes de neutralizar as demandas da sociedade civil. Por exemplo, durante o nazismo ou hoje no Brasil, com o "peemedebismo" e, globalmente, com os chamados "regimes privados transnacionais", que até teóricos tradicionais como Gunther Teubner admitem possuir uma tendência autoritária.
Franz Neumann generaliza os resultados de sua análise para explicar os EUA durante os anos 50 com a utilização dos conceitos de falsa legalidade e alienação política. Se as instituições formais não respondem às demandas sociais, a sociedade tende a se sentir alienada da política, e este estado de coisas, combinado com fatores psíquicos e com determinadas circunstâncias legais, pode favorecer o surgimento de regimes autoritários ou formas pervertidas de direito. Uma dessas formas pervertidas é, nas palavras de Neumann, a falsa legalidade. Por exemplo, durante os anos de McCarty, funcionários públicos foram investigados e, finalmente, demitidos, simplesmente por terem siso acusados de comunismo. Embora o Estado certamente tenha o direito de demitir seus funcionários, durante este período, Neumann argumentou, esse direito foi exercido de forma discriminatória. O Estado usou a forma universal do direito para disfarçar a discriminação contra os comunistas, desrespeitando a soberania popular com a criação de uma zona de uso arbitrário da lei.
Um direito democrático deve permitir que os conflitos sociais tenham impacto sobre o desempenho e sobre o desenho das instituições formais. Este ponto fica claro nas últimas páginas de introdução de Neumann para "O Espírito das Leis", de Montesquieu. Neumann afirma que a visão clássica da separação de poderes, considerada em seu contexto social, deve ser abandonada, uma vez que constitui um obstáculo à transformação social. Ao contrário de intérpretes comuns, Neumann propôs que a separação dos poderes de Montesquieu consistia na ideia de que nenhum poder deve ser autorizados a tomar uma decisão sem revisão. Isso é tudo.
Os poderes do Estado não devem ser necessariamente dois ou três e não devem ter um conjunto prefixado de competências, pois é possível utilizar essa estrutura naturalizada para deslegitimar qualquer transformação social. Por exemplo, durante a República de Weimar, Carl Schmitt e juristas conservadores defenderam que o Parlamento e as leis não deveriam poder disciplinar os direitos de propriedade. Como resultado, para estes autores, todos os direitos sociais reconhecidos pela Constituição de Weimar não era dotados da mesma coercibilidade que as outras partes da Constituição. Eram direitos de hierarquia inferior aos direitos individuais clássicos e por isso os juízes negavam-lhes validade, decidindo como se eles não existissem.
Desde 1988, a legislação brasileira tem perdido seu caráter autárquico. A Constituição brasileira de 1988 tem mais de 200 artigos e foi resultado de um processo de participação direta ainda foi pouco estudado. A assembleia nacional constituinte durou quase dois anos e recebeu 120 emendas populares legitimadas por 12 milhões de assinaturas, além de mais de 70 mil sugestões de cidadãos e organizações. Foram realizadas mais de 180 audiências públicas que contaram com a participação da sociedade civil que compareceu para debater as partes do texto constitucional de seu interesse direto.
Claro que toda esta participação não nasceu do nada. Durante os anos 70 e os anos 80, mesmo sob uma ditadura civil-militar, a sociedade civil brasileira foi capaz de se organizar em vários movimentos sociais. O clássico livro de Eder Sader, "Quando Novos Personagens Entraram em Cena", conta a história da luta dos clubes de mães, do sindicato dos metalúrgico de São Bernardo, da oposição do sindicato metalúrgico de São Paulo e do comités de saúde da zona leste de São Paulo e ajuda a explicar como a sociedade civil brasileira pode responder tão rapidamente às oportunidades políticas abertas pela Assembléia Nacional Constituinte. O livro também ajuda a explicar porque a reação a este impulso democratizante foi organizada de forma tão rápida e eficaz.
De fato, o aumento do controle dos movimentos sociais sobre o orçamento do Estado com a garantia de diversos direitos sociais, não ficou sem reação. Ainda durante a elaboração da Constituição, um grupo de deputados federais e senadores chamados de "centrão" organizou-se para combater a incorporação de uma agenda progressista ao texto constitucional. Este grupo de representantes está nas origens da cultura política reacionária chamada de "peemedebismo", que domina a política brasileira desde então.
O "peemedebismo" generalizou e universalizou as práticas do "centrão" e do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) para todo o sistema político. O PMDB, na origem MDB, foi um partido criado durante a ditadura brasileira como partido de opsição oficial a um governo autoritário que mantinha um bi-partidarismo de fachada, cuja atuação era bastante limitada. Ele nunca foi um partido ideológico, pois foi criado para reunir todos os membros da oposição que a ditadura brasileira era capaz de tolerar. Logo após a redemocratização brasileira, o PMDB se tornou o maior partido do país, utilizando a sua expertize pragmática de incorporar novos membros e simpatizantes, sem precisar desenvolver uma ideologia coerente, para se manter permenentemente no poder. Desde então, o partido conseguiu ocupar uma posição central em todas as coalizões para as eleições nacionais no Brasil. Hoje em dia, é praticamente impossível governar o Brasil sem o apoio do PMDB, um partido cujas práticas deixaram uma marca profunda na cultura política brasileira.
O sistema político brasileiro é organizado para formar grandes coalizões que tendem a dissolver os antagonismos sociais. Na verdade, o sistema conseguiu se perpetuar buscando ignorar o conflito social e atraindo mais e mais aliados por meio da oferta de cargos no governo, os quais dão acesso ao controle de parte da despesa pública. Quanto mais o sistema é capaz de evitar a influência da esfera pública, mais ele se perpetua sem incorporar novas demandas sociais, tendo que lidar apenas com interesse individuais no controle do orçamento por politicos aliados.
Como resultado de todo este processo de democratização e sua reação conservadora, a Constituição de 1988 garantiu toda espécie de direitos de maneira complexa e contraditória, o que torna impossível por vezes concluir, a partir do texto constitucional, qual é o conteúdo e os limites deste ou daquele direito. Além disso, a força obrigatória de muitos direitos sociais ainda dependem de novas leis que nunca foram aprovadas pelo parlamento. Capítulo por capítulo, pode-se identificar na Constituição as marcas da luta social que teve lugar durante a sua elaboração, uma luta que permanece aguerrida, posto que a Constituição não teve e ainda não tem vencedores claros.
Mesmo depois de sua promulgação, os conflitos sociais continuaram a se desenrolar de forma aguda, mas agora por outros meios. A implementação de direitos por parte do Executivo e sua interpretação final pelo Judiciário, especialmente pelo Supremo Tribunal do Brasil, desempenham hoje um papel central na política brasileira. A indeterminação da Constituição, que expressa uma espécie de "clinch" político entre as forças progressistas e as forças conservadoras, abre muito espaço para interpretação. De 1988 até hoje, os brasileiros não fazem mais do que lutar pelo significado e pela efetivação de sua Constituição, principalmente por intermédio do Judiciário, que tem sido acusado, não surpreendentemente, por forças reacionárias e por cientistas sociais tradicionais, de desrespeitar "a" separação de poderes, promovendo uma "judicialização da política" que estaria desrespeitando os limites "naturais" entre os poderes estatais.
A onda democratizante de 88 que produziu a Constituição e o "peemedebismo" encontraram tanto o seu ponto culminante quanto a sua hora final depois de dois mandatos muito bem-sucedidas do ex-Presidente Lula. A sociedade civil organizou-se para disputar o texto da Constituição durante a sua elaboração e continuou a fazê-lo por todos os meios disponíveis desde então. Não foi necessário mudar a Constituição para implementar projetos de Lula: ele apenas implementou muitas das suas partes mais progressitas
De outro lado, a implementação de um projeto maciço de privatizações e medidas econômicas conservadoras durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso exigiu grandes mudanças no texto constitucional. De fato, os conservadores ainda afirmam que os direitos sociais garantidos pela Constituição de 1988 enfraquecem a competitividade internacional brasileira e exercem enorme pressão sobre o seu orçamento, que ameaça a produzir défices públicos constantes.
No final do segundo mandato de Lula, parecia que ninguém no país era contra o governo. Não houve oposição significativa nos oito anos de governo, momento em que coalizão governamental atingiu o seu ápice. Mesmo depois de acusações de corrupção e a condenação de várias de figuras-chave do PT durante o escândalo do "Mensalão", Lula ainda era um dos presidentes mais populares da historia. O ex-Presidente foi beneficiado por um "boom" internacional no preço das commodities, fato que trouxe uma enorme quantidade de recursos para o Brasil, o suficiente para financiar programas sociais e criar mais empregos sem acirar o conflito social. Explico.
O impulso radical que surgiu durante a elaboração da Constituição de 1988 parecia estar finalmente esgotado e domesticado, com benefícios e contradições: a implementação de programas distributivos que reduziram a desigualdade no Brasil para níveis historicamente baixos, financiada pelo "boom" internacional de commodities e não por meio da reforma do sistema tributário brasileiro, regressivo e iníquo, bem como por meio da revisão da pertinência de subsídios de eficácia duvidosa que drenam enormes quantidades de dinheiro público para beneficiar empresas brasileiras. Como o chefe da coalizão governante era um partido de esquerda, parte da agenda progressista foi posta em prática, mesmo em um contexto que manteve a execução de práticas políticas tradicionais e corruptas, sem mexer nos mecanismos estruturais responsáveis por perpetuar a desigualdade social brasileira.
Segunda onda de democratização: Junho de 2013 e o impulso autonomista

Inadvertidamente, algo completamente diferente aconteceu em junho de 2013, antes mesmo da crise econômica ter atingido o Brasil duramente, como está acontecendo agora. Em 2013 o país viveu a maior onda de manifestações públicas de toda a sua história, manifestações cujo estopim foi um protesto que reivindicava transporte público gratuito para todos na cidade de São Paulo, por ocasião de um aumento de 20 centavos na passagem de ônibus. A manifestação foi organizada por um grupo de inpiração anarquista chmado "Movimento Passe Livre" (MBL).
Com efeito, durante esse ano, nada aconteceu como era de se esperar. O impacto do aumento de 20 centavos no orçamento dos trabalhadores urbanos, que não estevam no foco das políticas distributivas dos governos do PT, somado à insatisfação com os primeiros movimentos do segundo mandato de Dilma Rousseff, que começou a cortar despesas e investimentos públicos, fazendo exatamente o contrário do que a candidata Dilma havia prometido durante sua campanha presidencial, ainda, a extrema brutalidade da polícia do Estado de São Paulo que reprimiu com derramamento de sangue uma manifestação pacífica ocorrida na Avenida Paulista, causou revolta na população de São Paulo e atraiu mais e mais participantes para as manifestações seguintes, convocadas pelo MBL, em um processo que resultou, afinal, em uma demonstração pública enorme e desorganizada, ocorrida simultaneamente em várias cidades, grandes e médias, do pais. Estas manifestações colossais, ocorridas ao final do processo, já não tinham uma identidade política clara: todos e todas pareciam protestar contra tudo e contra todos.
Quem esteve na rua nestes dias, como eu mesmo estive, teve a impressão de que algo realmente novo estava acontecendo. Trabalhadores e estudantes jovens que pareciam nunca ter estado presentes a uma demonstração pública, estavam nas ruas lutando por transporte público gratuito, juntamente com membros da classe média e mesmo das classes altas, que propestavam contra a corrupção e contra o governo. A depender de onde alguém estava situado na manifestação, podia-se ouvir e ler slogans diferentes e mesmo contraditórios, à esquerda e à direita. Pela primeira vez desde a ditadura brasileira, diga-se, movimentos de direita se organizaram para sair às ruas e protestar contra a corrupção e contra a hegemonia política do PT.
Na verdade, parece que todos esses grupos nunca mais sairam das ruas desde então. Em 2014 e 2015, o país asisitiu a novas manifestações públicas, o que deixou claro que os acontecimentos de junho de 2013 não foram um episódio isolado. Estamos diante de um impulso democrático novo e radical, nascido da sociedade civil, à esquerda e à direita, que tem dado à luz a novos antagonismos sociais, nascidos bem às costas de um sistema político corrupto e autocentrado, que parece incapaz de ouvir as demandas sociais.
E novos personagens continuam entrando em cena: em 2015, em São Paulo, os estudantes de segundo grau ocuparam 200 escolas públicas para protestar contra o plano do Governo Estadual de fechar escolas supostamete subutilizadas e realocar os alunos e alunas em outras unidades. A ocupação durou quase dois meses e mesmo sob os ataques do Governo e da polícia de São Paulo, conquiatou o apoio da população e derrotou, ao menos até o momento, o plano de reorganização, motivando também a demissão do Secretário de Educação. Além disso, entre 2014 e 2015 ocorreram centenas ocupações de imóveis urbanos desocupados, promovidas articuladamente pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto) com a finalidade de combater a especulação imobiliária nas cidades e o aumento abusivo dos aluguéis.
Ainda em 2015, a chamada "Primavera feminista", uma série ações na internet e menifestações públicas em várias cidades do Brasil, ocorreu em resposta à aprovação de um projeto de lei conservador (n. 5,069 / 2013) apresentado pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). O projeto impôs dificuldades para o acesso de mulheres estupradas à prática de aborto, um direito garantido pela legislação brasileira. Notemos que o movimento feminista tem sido extremamente ativo na internet com campanhas digitais de grande visibilidade, como as que se propagaram por meio das hashtags #MeuPrimeiroAssedio e # NãoPoetizeOMachismo Também em 2015, a Marcha Nacional das Mulheres Negras organizou a sua maior manifestação da história, em Brasília, capital do Brasil, com a paticipação de cerca de 20 mil mulheres.
Para quem acredita na força transformadora do Direito sob um regime democrático, é impossível escrever ou ler sobre estes desenvolvimentos tardios da sociedade civil brasileira sem ficar profundamente comovido e, ao mesmo tempo, sem sentir um profundo ressentimento em relação ao PT e à parte dos partidos de esquerda, que não tem feito qualquer movimento significativo na direção desta nova onda de ativismo. Por outro lado, estes novos movimentos sociais parecem não estar de fato interessados em tomar parte na política formal, ao menos não da política como tem ocorrido durante os últimos anos.
A onda de democratização de 1988 foi capaz de alterar profundamente a política e o Direito brasileiro com a criação da Constituição, a consolidação da gramática política da luta por direitos e a criação da PT, partido que elegeu o Presidente do Brasil por 4 mandatos consecutivo. De sua parte, as consequências institucionais formais da onda de 2103 ainda não estão claras. O PT ainda se comporta como líder dos partidos de esquerda e, contra todas as evidências, acusa o sistema judicial de punir apenas os membros da esquerda nos escândalos sobre corrupção, além de praticamente não levar em consideração o vendaval de ar fresco vindo da sociedade civil nos últimos anos. Como qualquer partido burocratizado, parece insistir em permanecer na vanguarda do mesmo modelo de coalizão que o levou ao poder, apelando aos sindicatos e organizações camponesas que ainda apoiam o partido e o governo.
Por outro lado, a inspiração autonomista e anarquista dos vários novos movimentos sociais, que preferem se organizar sob a forma anti-hierárquica de coletivos, não mostra qualquer sinal de interesse nos velhos partidos políticos ou na formação de novos. Os movimentos sociais de direita, por sua vez, apesar de não apoiarem os velhos partidos políticos, parecem aprovar a atuação do Estado brasileiro, especialmente seu sistema de justiça. Ao que tudo indica, ao menos a "Operação Lava-Jato" foi capaz de efetivar uma parte de suas demandas. Partidos de esquerda mais radical, como o PSOL, também vêm a operação como uma oportunidade para transformar a política brasileira e para dar voz à sociedade civil, embora nenhum deles pareça estar em condições de oferecer uma voz política a estes novos ativistas radicais.

Fecho

De fato, ninguém sabe hoje o que vai acontecer no futuro próximo. Será que a política brasileira voltará a ser o que era antes de 2013? O país experimentará uma transformação radical da sua política, movendo-se para a direita ou para a esquerda? A esquerda irá se dividir em mil pedaços, como a eventual perda de força do PT. e terá que esperar por anos até que um Bernie Sanders seja capaz de levar a sua voz de volta para o centro do sistema político? Será que os novos movimentos sociais autonomistas irão ajudar a reinventar o Estado e os partidos políticos?
Tudo que eu me sinto seguro para dizer neste momento é, parafraseando uma conhecida citação do poeta russo Vladimir Mayakovski ("É melhor morrer de vodca do que de tédio!") é que ninguém vai morrer de vodca no Brasil, pelo menos nos próximos vinte anos. Talvez de um ataque cardíaco, diante da velocidade dos acontecimentos. Neste dia 11 de abril de 2016, data em que completo este texto, aguardamos a votação do impeachment da Presidente Dilma Rousseff, que pode resultar na formação de um novo governo, em torno da figura de Michel Temer, vice-presidente, ou na mudança de rumos do governo atual, agora com maior influência da figura de Lula.
No âmbito da sociedade civil, uma onda de ocupações de escolas públicas, agora no Rio de Janeiro, dialoga com o movimento paulista e reivindica melhores condições para o ensino público brasileiro : a efervescência nas ruas não pára de mandar sinais de que a reorganização palaciana dos sistema político não será suficiente para recolocar o direito e a política brasileira nos eixos. Será necessário encontrar maneiras de redesenhar as instituições formais brasileiras, sistema representativo e partidos; talvez destruir e reconstruir novamente nosso modelo de seperação dos poderes, para fazer com que a sociedade se sinta novamente parte de nosso estado de direito.
Até que esta articulação encontre uma nova configuração, um novo ponto de equilíbrio, a sociedade permanecerá en tensão com o Direito e o Estado e de forma radical. Ou talvez comecemos a ver nascer uma forma de organização política que, como sugeri no começo deste texto, tenha como objetivo central evitar que o estado se torne o senhor todo-poderoso da vida e dos destinos da sociedade, mas sem recair em uma visão libertariana radical, ou seja, mantendo-se sua função de patrocinador dos espaços autoregulados e de juiz dos conflitos.
"Dois axiomas, com efeito, parecem guiar a marcha da civilização ocidental desde a sua aurora: o primeiro estabelece que a verdadeira sociedade se desenvolve sob a sombra protetora do Estado; o segundo enuncia um imperativo categórico: é necessário trabalhar", nos lembra Pierre Clastres. Para que uma organização política assim seja possível, talvez seja necessário lidar com o segundo imperativo mencionado: o trabalho. Ou seja, para conferir maior plausibilidade a esta possível renovação nas formas de organização política, seria importante analisar esta nova onda de ativismo deste ponto de vista, qual seja, sua eventual propensão a defender novas formas de vida e de trabalho para além da competição e do capitalismo, formas de vida que buscassem superar a divisão entre ricos e pobres, a qual se relaciona de perto com a divisão entre dominantes e dominados, já que parte das funções do Estado é garantir a propriedade individual contra ataques de terceiros; uma tarefa a ser realizada em outra ocasião, por estar além dos objetivos deste texto.
TEXTO EM ELABORAÇÃO. NÃO CITAR, NÃO DIVULGAR.



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