Sociedade melancólica: um mal-estar contemporâneo?

June 30, 2017 | Autor: Livia Santiago | Categoria: Melancolia, Sociedade Contemporânea, Distúrbio Bipolar, Mal-estar
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IV Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental X Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental

Proposta de trabalho a ser apresentado em Mesa-Redonda

Título:

Sociedade melancólica: um mal-estar contemporâneo?

Autora: Lívia Santiago Moreira Psicóloga formada pela UFMG. Professora Substituta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Ferais nos anos 2008 e 2009. Aluna do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal de Minas Gerais

Objetivos: Este trabalho tem como objetivo discutir a interação indivíduo e sociedade como fonte de patologias construídas em nossa contemporaneidade, em especial, a melancolia e o “Distúrbio Bipolar”. Buscaremos apresentar a melancolia como descrita por Freud e questionar se o próprio “corpo social” estaria reagindo de modo melancólico frente às dificuldades do processo civilizatório. “O fim dos fins meus senhores: o melhor é não fazer nada! O melhor é a inércia consciente! Pois bem, viva o subsolo! Embora eu tenha dito realmente que invejo o homem normal até a derradeira gota da minha bílis, não quero ser ele, nas condições em que o vejo (embora não cesse de invejá-lo. Não, não, em todo caso, o subsolo é mais vantajoso!). Ali, pelo menos, se pode... Eh! Mas estou mentindo agora também. Minto porque eu mesmo se, como dois e dois, que o melhor não é o subsolo, mas algo diverso, absolutamente diverso, pelo qual anseio, mas de modo nenhum hei de encontrar! Ao diabo o subsolo!”

Memórias do Subsolo, Dostoievski, F.

Podemos pensar a psicanálise como parte de um efeito ou uma resposta à sociedade que se desenvolvia no final do século dezenove onde as relações econômicas obedecem às ordens do capital e as relações humanas procuram explicações para aquilo que escapou ao processo civilizatório.

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Freud em o “O mal estar na civilização” nos aponta como o sujeito precisa domar suas pulsões para se integrar em sociedade e criar vínculos. As exigências do mundo externo não permitem uma realização imediata dos desejos individuais e implicam numa necessidade de dessexualização da pulsão ou na formação de compromissos para que essa seja realizada apenas parcialmente. Isto é, o sujeito precisa desviar seus objetivos sexuais diretos para aqueles que possam ser compartilhados e seu desejo – a marca da singularidade do sujeito- precisa buscar vias conciliadoras para se realizar. Como Freud nos diz, “a primeira exigência da civilização, (...) é a justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo”. (FREUD, 1930, pg.116) A constituição psíquica de cada sujeito depende do contexto em que este se apóia e o desafio até hoje encontrado pelas ciências humanas é descrever as interferências do mundo externo e suas leis no sujeito e deste sujeito com toda sua particularidade no ambiente físico e simbólico que habita. Percebemos como a reação a um mundo desdivinizado se estampa nas poesias e romances, é discutido por filósofos, como também ocupa os consultórios médicos e os divãs. O sentimento de um mundo “desencantado”, o clima depressivo e sombrio, a alienação dos sujeitos, enfim, são possibilidades de reação à vida em sociedade que já nos exige um refreamento das pulsões como também nos impõe a necessidade de lidar com a angústia produzida pela ausência de ligações entre as representações e os afetos. Assim, “entre desamparo e onipotência oscila a subjetividade humana de acordo com a leitura freudiana do eu e do narcisismo, indicando ao mesmo tempo a fragilidade daquela e a sua pretensão divinizante. (...) O eu seria então a construção sólida pela qual o sujeito procura proteger-se do descentramento radical em todas as suas dimensões, isto é, o inconsciente, o desejo, a pulsão, o outro.” (BIRMAN, 2006. pg. 127) Na teoria freudiana temos a introdução do conceito de narcisismo que nos auxilia a pensar a relação do sujeito com o mundo e sua constituição psíquica, bem como a importância do novo dualismo pulsional de 1920 que tenta compreender as tendências agressivas e destrutivas do indivíduo. Observamos como exemplo clínico no centro privilegiado dessa discussão a melancolia, o que podemos chamar de desinvestimento libidinal do sujeito em relação aos objetos externos cuja característica diferencial é uma agressividade dirigida ao interior do eu. A melancolia coloca em primeiro plano o Eu, esta instância que representa o sujeito e é responsável pela mediação do sujeito entre seus conteúdos internos e a exigência da realidade externa. Na melancolia, este Eu encontra-se esvaziado de sua 2

energia de investimento que escoa como uma hemorragia através de uma ferida aberta. Este Eu não acredita mais possuir virtudes ou qualidades, muito menos que é possível ter um sentido para a vida. Percebemos como os melancólicos obtêm uma consciência trágica sobre a inevitabilidade da morte e a transitoriedade. Em “Luto e melancolia”, entendemos o mecanismo responsável pela alteração no Eu que tem toda a libido de investimento direcionada para si, ou seja, não possui mais a energia disponível para criar novos vínculos, investir em novos objetos uma vez que há um represamento desta energia no Eu. Freud ao observar as auto-acusações, o auto- envilecimento manifestado pelo depressivo compreende que o Eu foi transformado por uma identificação narcísica com o objeto perdido. Estes ataques que são deferidos ao Eu se dirigem ao mesmo tempo ao outro que foi responsável pelo abandono e agora faz parte do Eu e ao próprio Eu, que se culpa por não ter sido capaz de manter a presença do objeto amado. Assim o Eu busca evitar de todas as formas a perda de seu objeto de amor ao identificar-se com ele, pois sabe o que perdeu, mas não sabe o quê foi perdido nesta perda. Freud dá a indicação de três fontes que dariam origem ao sofrimento humano: o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade. Freud nos diz que em relação aos dois primeiros somos forçados a reconhecê-los e a “nos submetermos ao inevitável”, o que não possui um efeito paralisador _ pelo contrário. Contudo, a fonte social do sofrimento não pode ser admitida uma vez que os regulamentos estabelecidos por nós mesmos não representam proteção e benefício para cada um de nós. Diante da constatação de que malogramos ao tentar nos prevenir do sofrimento oriundo desta fonte, suspeitamos “que aqui é possível jazer, por trás desse fato, uma natureza inconquistável _ dessa vez, uma parcela de nossa própria constituição psíquica.” (FREUD, 1930, pg. 105) Diz-se que hoje, as patologias narcísicas funcionam como um último recurso diagnóstico, isto é, quando psicólogos, psicanalistas e psiquiatras não conseguem um diagnóstico fechado e englobante do sujeito, recorre-se às patologias narcísicas Dentre as descrições dos sintomas na melancolia observamos que se trata de um estado no qual o sujeito está distante de suas relações com o mundo e com os outros. Na melancolia, a solidão é símbolo das pulsões de morte, pulsões que procuram desfazer todos os elos, toda a representação que se constrói para atribuir um novo sentido à vida, cujo objetivo é desligar toda a energia que estava ligada.

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Poderíamos dizer que a sociedade possui elementos que compõe uma melancolia se pensarmos que perdemos ideais que faziam com que nos identificássemos e nos uníssemos em direção de um objetivo comum? A produção de laços sociais, a saída do isolamento narcísico parece sofrer um recuo quando as instituições às quais nos endereçamos perdem sua função. Como diz Pontalis, “ora nos felicitamos por não mais aderir a nenhuma grande crença coletiva, em que vemos o anúncio de uma futura tirania, ora gememos por não acreditar em mais nada”. (PONTALIS, 1998, pg. 25) Assim, as soluções para os conflitos individuais têm que ser geradas pelo particular, no âmbito privado onde a cada indivíduo é requisitado uma dose de criatividade e uma capacidade de superação inesgotável para que não desistamos. Encontramo-nos sós quando a democracia, símbolo máximo da sociedade civilizada, tem seu sentido esvaziado sempre que não corresponde à realidade. Mas quais seriam as saídas possíveis encontradas pelos sujeitos diante da realidade de um mal-estar que parece ser “esvaziador de desejo, impotente para elaborar e transformar seus conflitos?”( PONTALIS, 1998,pg. 25). As pulsões de vida buscam nos defender contra a destrutividade e a agressividade das pulsões de morte seja ela dirigida ao interior ou ao exterior do eu. As pulsões de vida nos convidam `a reinvenção, ao rearranjo, à fala, à desalienação, à ligação das representações e afetos. Na melancolia vemos como o complexo melancólico aciona defesas que vêem em auxílio desse Eu que se transformou em uma “pura cultura da pulsão de morte”. A instância crítica que acusa o Eu precisa ser calada, é necessário reinvestir nos objetos externos e liberar os canais de fluxo da libido. A chamada virada maníaca que muitas vezes acompanha a melancolia diz respeito a essa tentativa precária de sobrevivência do Eu. O que encontramos na mania é o pólo oposto da melancolia, onde a realidade externa é superinvestida, todos os objetos do mundo externo (e interno) têm o potencial de se desdobrar em múltiplos sentidos, a energia dispensada ao Eu para suas atividades parece ser ilimitada. As censuras são diminuídas, novos arranjos são experimentados, antigos ideais e projetos são retomados e reinvestidos. O Eu maníaco suspende os ataques ao objeto abandônico que está identificado ao Eu, entretanto, permanece sem o conhecimento do quê foi levado na perda. O conteúdo inconsciente da perda permanece tanto na mania como na melancolia. O chamado “mal do século” entendia a melancolia também como efeito do pensamento, isto é, uma mente reflexiva teria tendências melancólicas. Na atualidade, o 4

mal do século parece ter ganhado além de um novo nome, uma nova compreensão. Observamos em nossos hospitais, consultórios e nos meios de cultura como o chamado “Distúrbio Bipolar” passa a adquirir outro estatuto; o distúrbio é convocado para explicar e justificar praticamente todo o comportamento do indivíduo. As mudanças de humor, os ataques de fúria, a revolta, a indignação, são enquadradas num conjunto de comportamentos que irão compor o diagnóstico deste distúrbio que nos é oferecido como solução para nossa angústia frente nosso “desencantamento”, à quebra dos nossos ideais de sociedade que nos oferece a base de construção para a nossa constituição subjetiva. O potencial alienante desse diagnóstico (como muitos outros) parece seguir a lógica da nossa sociedade, onde os efeitos provocados por um conjunto social são remetidos somente ao sujeito e não à estrutura sobre a qual o sujeito se sustenta. Sendo assim, atentos ao risco de sempre incorrermos no erro de cairmos em categorizações bipolares que impedem o conflito ou buscam solucionar toda a nuance existente entre um extremo e outro, gostaria de utilizar o modelo apresentado pela dinâmica do complexo melancólico para pensar algumas características da nossa sociedade. Encontraríamos em nossa sociedade características do outro pólo da melancolia, isto é, elementos que sugeririam uma espécie de “mania”, como resposta ou tentativa de defesa do nosso Eu coletivo ou social? Observamos como em reação à perda dos nossos referenciais comuns, a sociedade procura se organizar de forma a lidar com a realidade apresentada. Seriam as “ONGS” e as redes de solidariedade tentativas de reinvestimento na rede social e uma espécie de defesa contra o isolamento e a solidão mortíferos? Se estas respostas da sociedade para se reinventar e não perecer aparentam um recurso ou solução emergencial, elas denunciam, assim como na melancolia que existe um núcleo responsável por estes “sintomas”. Um núcleo inconsciente que conta sobre o algo mais que foi perdido com nossas perdas. O próprio Eu foi perdido, assim como nosso ‘Eu social’. Sabemos como os conteúdos inconscientes procuram vir à tona, buscam formas alternativas para escapar da repressão e do silêncio a que foram submetidos. Assim como Freud nos indicou, através da diminuição da resistência oferecida a esses materiais inconscientes poderemos ressignificar estes conteúdos, incluí-los em um discurso e em uma história própria. Talvez o desafio em que nos encontramos seja o de enfrentar as determinações alienantes e superar nossas resistências que silenciam e isolam o sujeito, mesmo que os conteúdos convocados apontem para uma 5

despersonalização e uma ausência dos antigos referenciais e a necessidade angustiante da reconstrução de um novo Eu. O que chamamos aqui de mal-estar da sociedade melancólica seria então seria definido como a existência de um conflito sempre presente entre a possibilidade do eu se apresentar como singularidade, com seus referenciais próprios reformulados e a possibilidade de inclusão desse eu na trama do seu contexto social cultural, isto é do universal. Como nos mostra França Neto “ao se apresentar como estranha ao contexto do qual emerge, de duas uma, ou a singularidade se deixa absorver na trama, vindo então a perder sua estranheza (e, consequentemente deixando de ser singularidade), ou ela se impõe como imperativo a ser descoberto, desdobrado, forçando uma reinscrição de toda a trama da qual se sobressaiu. Essa segunda possibilidade corresponderia ao “acontecimento” proposto por Badiou.” (FRANÇA NETO, 2007, pg.183)Vemos então que o sujeito “ao sustentar uma singularidade, é constituidor de laço social, pois, o movimento que é a sublimação determina a constituição de uma trama simbólica que é percebida como nova, distinguindo-se do contexto anterior à sua emergência.” Nas palavras do artista, “ao diabo o subsolo!”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS -BIRMAN,Joel. Arquivos do mal-estar e da resistência.Rio de Janeiro:Civilização Brasileira,2006. -FRANÇA NETO,Oswaldo. Freud e a sublimação:arte,ciência, amor e política.Belo Horizonte:Editora UFMG,2007. -FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: ______. Um caso de histeria, três ensaios sobre a sexualidade e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). -FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II (1914). In: ______. O caso Schreber e Artigos sobre a técnica. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud).

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-FREUD, Sigmund. Luto e melancolia (1915). In: ______. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). FREUD, Sigmund. O instinto e suas vicissitudes (1915). In: ______. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). -FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer (1920). In: ______. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). -FREUD, Sigmund. O ego e o id (1923). In: ______. O ego e o id e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). -FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização.(1930). In: ______. O futuro de uma ilusão,O mal estar na civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). - PONTALIS,J.-B.Perder de Vista:da fantasia de recuperação do objeto perdido.Rio de Janeiro:Zahar,1998

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