Sociedade Protetora dos Desvalidos: mutualismo entre homens negros em Salvador (1874-1894)

May 27, 2017 | Autor: L. Ribeiro Campos | Categoria: Associações E Mutualismo, Mutualismo, Sociedade Protetora dos Desvalidos
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Anais eletrônicos: VII Encontro Estadual de História: Diálogos da História. 30 de setembro a 03 de outubro de 2014. Cachoeira, BA: UFRB, 2015. (ISBN: 978-85-61346-99-7).

Sociedade Protetora dos Desvalidos: mutualismo entre homens negros em Salvador (1874-1894) Lucas Ribeiro Campos1 A Sociedade Protetora dos Desvalidos foi uma associação de homens negros, fundada em 16 de setembro de 1832 pelo africano livre Manoel Victor Serra. Esta entidade exercia a função de junta de alforria, com o nome de Irmandade de Nossa Senhora da Soledade Amparo dos Desvalidos, ajudando africanos escravizados e seus familiares, a adquirirem sua liberdade.2 Suas primeiras reuniões, congregando outros africanos alforriados, foram realizadas na Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Quinze Mistérios, na Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo. No dia 17 de dezembro de 1848, a sede foi transferida para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário das Portas do Carmo, na ladeira do Pelourinho. Em 1851, assumindo o caráter de uma sociedade civil, a entidade passava a se chamar Sociedade Protetora dos Desvalidos, permanecendo na Igreja de Nossa Senhora do Rosário durante cerca de 20 anos, até surgirem desentendimentos entre a associação e a igreja.3 A sede foi transferida para um prédio à Rua do Bispo, nº 665, permanecendo até o ano de 1887, quando a Sociedade adquire um imóvel no largo do Cruzeiro de São Francisco, conservado como sede até hoje.4 Durante sua trajetória, desde irmandade até se tornar uma sociedade de auxílios mútuos, esta organização conservou o critério racial para a admissão de seus sócios. Após sua fundação, em 1832, os membros da Irmandade discutiram a formulação de um termo de compromisso, estabelecendo somente a entrada de indivíduos de cor preta como sócios.5 Na segunda metade do século XIX, o estatuto de 1874 admitia como sócios “todos os cidadãos brasileiros de cor preta”.6 Este critério era tão rigoroso que, vinte anos depois, no artigo 69 do estatuto de 1894, todos os regulamentos poderiam ser reformulados, menos o artigo 1º, considerado “perpetuo” e “inviolável”, pois se referia à entrada de sócios negros na associação.7 1

Graduado em História pela Universidade Federal da Bahia. A junta de alforria era uma instituição de crédito com objetivo de ajudar escravizados e suas famílias a adquirirem liberdade, funcionando através de um sistema rotativo de crédito. Sobre as juntas de alforria, ver: QUERINO, Manuel R. A raça africana. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1955. p. 145-148; REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 205-225. 3 Sobre os conflitos e rivalidades entre as irmandades, ver: REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991; FARIAS, Sara Oliveira. Irmãos de cor, de caridade e de crença: a Irmandade do Rosário do Pelourinho na Bahia do século XIX. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 1997. 4 Em relação à trajetória da Sociedade Protetora dos Desvalidos antes de adquirir a sede no largo do Cruzeiro de São Francisco, ver: BRAGA, Júlio. Sociedade Protetora dos Desvalidos: uma irmandade de cor. Salvador: Ianamá, 1987, p. 23-32; VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 2002. p. 546-548. 5 BRAGA, op. cit., p. 28-30. 6 Estatuto da Sociedade Protetora dos Desvalidos, aprovado pelo governo da Província em 26 de agosto de 1874 apud BRAGA, op. cit., p. 79. 7 Arquivo da Sociedade Protetora dos Desvalidos, “Estatuto da Sociedade Protetora dos Desvalidos, 08 de outubro de 1894”. Sobre a discussão de raça dentro de um contexto de desarticulação da escravidão no Brasil, ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de. O jogo da dissimulação: Abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009; FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas: Editora da Unicamp, 2006. Sobre a utilização de estatutos como fonte, ver: VISCARDI, Claudia 2

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Além de reunir apenas sócios de cor negra, a partir da década de 1850, a Sociedade Protetora dos Desvalidos passou a assumir características de uma sociedade mutualista (mutuária, de auxílios mútuos ou socorros mútuos), auxiliando seus associados em momentos de doença, desemprego e ajudando as famílias destes em casos de morte. Congregava trabalhadores negros livres, que enxergavam ali, além de um espaço de promoção individual, uma oportunidade de proteção e garantia de um futuro melhor. Sua atuação enquanto uma sociedade de socorros mútuos estava inserida em um contexto amplo de surgimento desse gênero de associações por todo o país, consequência da falta de uma legislação trabalhista e previdenciária que amparasse estes indivíduos. Este aumento de associações de socorros mútuos culminou, em 22 de agosto de 1860, na aprovação por parte do poder central da lei nº 1.083, seguida dos decretos nº 2.686 e 2.711, publicados respectivamente em 10 de novembro e 19 de dezembro do mesmo ano.8 Estas leis estabeleceram regras que, além de terem como objetivo uma vigilância sobre a livre-iniciativa na vida financeira e econômica, visavam controlar a prática associativa no país, muitas vezes de forma arbitrária. Para se constituir uma associação, os instaladores eram submetidos a alguns requisitos legais estabelecidos pelo Império, sob o olhar atento do Conselho de Estado.9 Com o advento da República, no começo da década de 1890, um conjunto de leis regulamentando essas organizações passou a vigorar, refletindo as aspirações de uma nova ordem política. Segundo Cláudia Viscardi, foi mantido o rigor e a vigilância em relação às sociedades de caráter econômico, deixando livres as associações de caráter civil, estabelecendo, através de outras ferramentas, novas formas de controle desses espaços de associação.10

M. R. O estudo do mutualismo: algumas considerações historiográficas e metodológicas. Revista Mundos do Trabalho, nº 4 (2010), p. 23-39. p. 29. A autora destaca que os estatutos são importantes, pois informam a data de fundação da entidade, os objetivos dela, quem deveriam ser os sócios, como funcionavam seus mecanismos e como se estruturava hierarquicamente. Entretanto, segundo Claudia Viscardi, esses documentos devem ser olhados com cuidado, pois muitos eram cópias com adaptações de estatutos de outras sociedades, demonstrando pouco a realidade daquelas instituições. 8 BRASIL. Lei nº 1.083, de 22 de agosto de 1860. Contendo providências sobre os bancos de emissão, meio circulante e diversas companhias e sociedades. Colleção das Leis do Império do Brazil, Rio de Janeiro, Typografia Nacional, v. 1, p. 28-36, 1860; BRASIL. Decreto nº 2.686, de 10 de novembro de 1860. Marca o prazo dentro do qual os bancos e outras companhias e sociedades anônimas, suas caixas filiais e agências, que atualmente funcionam sem autorização e aprovação de seus Estatutos, devem impetrá-las. Colleção das Leis do Império do Brazil, Rio de Janeiro, Typografia Nacional, v. 2, p. 1061-1063, 1860; BRASIL. Decreto nº 2.711, de 19 de dezembro de 1860. Contém diversas disposições sobre a criação e organização dos bancos, companhias, sociedades anônimas e outras, e prorroga por mais quatro meses o prazo marcado pelo artigo 1º do Decreto nº 2.686, de 10 de novembro do corrente ano. Colleção das Leis do Império do Brazil, Rio de Janeiro, Typografia Nacional, v. 2, p. 1125-1140, 1860. 9 O Conselho de Estado era um órgão responsável por analisar assuntos de interesse do Império. A regulamentação da maioria das associações de auxilio mútuo era obrigada a passar por sua aprovação. Com a lei nº 3.150, de 04 de novembro de 1882, o Conselho de Estado perdia sua responsabilidade em relação à regulação das associações. Esta lei pode ser consultada em: BRASIL. Lei nº 3.150, de 04 de novembro de 1882. Regula o estabelecimento de companhias e sociedades anônimas. Colleção das Leis do Império do Brazil, Typografia Nacional, v. 1, p. 139-149, 1883. Para mais informações sobre o funcionamento do Conselho de Estado, ver: JESUS, Ronaldo Pereira de. Associativismo no Brasil do Século XIX: repertório crítico dos registros de sociedades no Conselho de Estado (1860-1889). Locus: revista de história, n. 1 (2007), pp. 144-170. 10 VISCARDI, Cláudia M. R. Leis e cidadania na Primeira República: o direito de associação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, 26., 2011, São Paulo. Anais eletrônicos... São Paulo: USP, 2011. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300672659_ARQUIVO_ViscardiAnpuh.pdf Acesso em: 08 fev. 2014. Segundo Viscardi, os primeiros decretos republicanos foram: Decreto 164, de 17 de janeiro de 1890; Decreto 850, de 13 de outubro de 1890; Decreto 997, de 11 de novembro

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Dentro deste contexto, o objetivo do trabalho é apontar possibilidades de análises sobre os sujeitos presentes na Sociedade Protetora dos Desvalidos, nos anos tensos que precederam a abolição da escravidão, o fim do Império e os primeiros anos da República. Pretende-se refletir, dentro do recorte temporal dos estatutos de 1874 e 1894, como os membros dessa entidade, apesar de marcados pelo estigma da cor, fizeram desse espaço um ambiente de defesa dos trabalhadores inválidos e desempregados, assim como um lugar privilegiado de sociabilidade e de promoção individual. Estes sujeitos tornaram aquele ambiente propício para estabelecer fortes redes clientelistas, entre grandes nomes da política, lideranças de movimentos sociais e outras sociedades congêneres. Eram homens que projetavam naquele espaço uma oportunidade de ter voz e participação nas decisões das sessões, dentro do que Sidney Chalhoub chama de “democracia interna”.11 Observando a historiografia brasileira sobre o mutualismo, é possível perceber que, na década de 1960, prevaleceu a ideia de que o mutualismo seria uma primeira fase do sindicalismo, uma espécie de pré-história do movimento operário.12 Essa ideia já havia sido contestada ainda na mesma década, mas só ganhou impulso em 1990, com um estudo decisivo de Tânia Regina de Luca, em que a autora relativiza a concepção das sociedades de auxílio mútuo como precursoras dos sindicatos, rompendo com uma compreensão etapista da história do movimento operário e demonstrando uma coexistência entre as mutuais e os sindicatos de resistência, cada um com objetivos distintos.13 O seu trabalho foi responsável por chamar atenção dos historiadores para o tema do mutualismo no Brasil. Dentre os estudos mais recentes sobre o mutualismo, vale destacar os trabalhos de Cláudia Viscardi e Cláudio Batalha, apesar dos mesmos defenderem posições contrárias. Viscardi vem estudando o mutualismo desde 2003, observando como um fenômeno mais amplo e pluriclassita, privilegiando a dimensão propriamente previdenciária dessas organizações. A autora critica a concepção do mutualismo como uma etapa primeira dos sindicatos e entende que as mutuais não possuem nenhum vínculo com outras formas organizativas, como as corporações de ofício, as irmandades leigas e os próprios sindicatos. Suas pesquisas são muito importantes do ponto de vista metodológico, pois ajudam na compreensão do funcionamento jurídico das mutuais, além de lançar esclarecimentos sobre as fontes a serem utilizadas.14

de 1890; Decreto 1.362, de 14 de fevereiro de 1891; Decreto 1.386, de 20 de fevereiro de 1891 e Decreto 434, de 4 de julho de 1891. 11 CHALHOUB, Sidney. Solidariedade e liberdade: sociedades beneficentes de negros e negras no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. In: CUNHA, Olívia Maria Gomes da; GOMES, Flávio dos Santos. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 226. 12 RODRIGUES, J. A. Sindicato e desenvolvimento no Brasil. São Paulo: Difel, 1968. 13 Azis Simão observou que as mutuais haviam sido importantes para o surgimento do movimento operário, mas não originaram o sindicalismo que apareceu na mesma época. Tânia Regina de Luca, seguindo na mesma direção, demonstra uma coexistência entre as mutuais e os sindicatos de resistência. SIMÃO, Azis. Sindicato e Estado: suas relações na formação do proletariado de São Paulo. São Paulo: Ática, 1981; LUCA, Tânia R. de. O sonho do futuro assegurado (o mutualismo em São Paulo). São Paulo/Brasília: Contexto/CNPq, 1990. 14 VISCARDI, Cláudia M. R. Estratégias populares de sobrevivência: o mutualismo no Rio de Janeiro republicano. Revista Brasileira de História, nº 58 (2009), p. 291-315; VISCARDI, Cláudia M. R. O estudo do mutualismo: algumas considerações historiográficas e metodológicas. Revista Mundos do Trabalho, nº 4 (2010), p. 23-39; VISCARDI, Cláudia M. R. Leis e cidadania na Primeira República: o direito de associação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, 26., 2011, São Paulo. Anais eletrônicos... São Paulo: USP, 2011. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300672659_ARQUIVO_Viscardi-Anpuh.pdf Acesso em: 08 fev. 2014.

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Cláudio Batalha, tendo como base estatutos e atas de mutuais disponíveis na Secretária de Negócios do Conselho de Estado, além de almanaques e levantamentos estatísticos feitos por contemporâneos, concluiu que as mutuais “eram a única forma legalmente viável de organização para os trabalhadores manuais livres após 1824”, sendo uma forma de mascarar o seu real objetivo que era a defesa profissional.15 Ele chama atenção também, ao contrário de Viscardi, para as semelhanças existentes entre as mutuais, irmandades e corporações de ofícios, que compartilhavam características comuns, desde as hierarquias internas até os rituais burocráticos que cercavam o cotidiano dessas organizações. Além disso, Batalha destaca como as sociedades mutualistas tinham uma posição de defesa do fim da escravidão, principalmente depois da década de 1870, pois muitas eram abertamente contrárias a essa forma de exploração do trabalho, até porque a mão-de-obra escrava era concorrência para muitos trabalhadores livres que integravam as mutuais.16 Algumas delas, instaladas no Rio de Janeiro, até contribuíram para campanhas abolicionistas, assim como, assumiram posições políticas em favor da implantação da República. Esta última observação feita por Batalha é muito interessante para se refletir sobre a relação entre as sociedades de auxílio mútuo e o contexto em que estavam inseridas. Ao observar a Sociedade Protetora dos Desvalidos, é preciso avaliar a atuação dos sujeitos presentes naquela entidade, no que diz respeito ao movimento abolicionista e na dinâmica política de um modo geral. A existência no arquivo da Sociedade Protetora dos Desvalidos de correspondências emitidas pelo Centro Operário, clubes carnavalescos, sociedades abolicionistas, grêmios literários e científicos, órgãos do governo, bem como a presença em seu quadro de sócios de abolicionistas como Manoel Querino, nos leva a entender que provavelmente esta entidade cultivava uma relação próxima com a política baiana e com movimentos sociais.17 Outro trabalho interessante para se pensar o mutualismo é o de Sidney Chalhoub, que se dedica a estudar o processo de regulamentação da Sociedade Beneficente da Nação Conga, organização composta por africanos libertos e seus descendentes diretos. Chalhoub chama atenção para a presença de algumas características, tanto nas sociedades de trabalhadores em geral, como essa em específico. Primeiro, a presença de uma “democracia interna”, devido ao ritual constante de se convocar a assembleia de sócios, com intuito de deliberar sobre assuntos geralmente de interesse da associação, em que os membros teoricamente tinham o direito de manifestar sua opinião. Outra característica é a presença da “igualdade de direitos e deveres”, bem como “mensalidades e jóia baixas”, com um constante “desejo de angariar novos sócios”. Por fim, a intenção de proporcionar dignidade aos membros, “zelando por sua boa conduta moral”, assim como auxílios diversos em relação a funeral, doenças e assistência judicial.18 Chalhoub conclui demonstrando o excessivo rigor do Conselho de Estado 15

BATALHA, Cláudio H. M. Relançando o debate sobre o mutualismo: as relações entre corporações, irmandades, sociedades mutualistas de trabalhadores e sindicatos à luz da produção recente. Revista Mundos do Trabalho, v. 2, n. 4 (2010), p. 12-22; BATALHA, Cláudio H. M. Sociedades de trabalhadores no Rio de Janeiro do século XIX: algumas reflexões em torno da formação da classe operária. Cad. AEL, v. 6, n.10/11 (1999), p. 53. 16 Ibid., p. 62-65. 17 Sobre Manoel Querino e sua relação com a Sociedade Protetora dos Desvalidos, ver: LEAL, Maria das Graças de Andrade. Manuel Querino entre letras e lutas – Bahia: 1851-1923. São Paulo: Annablume, 2009; BRAGA, Júlio. Sociedade Protetora dos Desvalidos: uma irmandade de cor. Salvador: Ianamá, 1987; BUTLER, Kim D. Freedoms given, freedoms won: Afro-Brazilians in post-abolition São Paulo and Salvador. New Brunswick/Londres: Rutgers University Press, 1998. 18 CHALHOUB, Sidney. Solidariedade e liberdade: sociedades beneficentes de negros e negras no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. In: CUNHA, Olívia Maria Gomes da; GOMES, Flávio dos Santos. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 226.

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em barrar a constituição de sujeitos sociais coletivos baseados na autoidentificação racial e/ou de origem africana. Assim, a abertura de vias institucionais para a alforria servia, ao mesmo tempo, para inserir escravos e libertos numa cultura legal e arredá-los dela enquanto portadores de identidades coletivas de sua própria escolha.19

Em relação aos estudos sobre o mutualismo na Bahia, vale destacar os trabalhos de Maria da Conceição Barbosa da Costa e Silva e Maria das Graças de Andrade Leal. Estudando o caso especifico da Sociedade Montepio dos Artistas, fundada em 1852, Costa e Silva argumenta que as associações de auxílio mútuo na capital baiana se dedicavam “apenas a atividades assistenciais, sem caráter reivindicatório” e “sob o paternalismo controlador do Estado”.20 Por sua vez, Maria das Graças de Andrade Leal, ao estudar o caso da Sociedade de Artes e Ofícios – mais conhecida como Liceu de Artes e Ofícios –, fundada em 20 de outubro de 1872, observa que esta entidade utilizava da estratégia de distribuição de títulos a políticos importantes, com o objetivo de demonstrar apoio às classes dominantes para “manter-se atuante na vida de seus associados”.21 Neste sentido, o argumento de Costa e Silva é equivocado ao afirmar que essas associações não tinham participação política e eram completamente submetidas ao poder do Estado. Como bem demonstrou Maria das Graças de Andrade Leal, a existência de negociações nesse jogo de interesses era estratégia comum diante dos sujeitos que faziam parte dessas instituições, tanto no Império como na República, sendo até um aspecto essencial de sobrevivência para algumas daquelas organizações. Essas estratégias são visíveis no caso da Sociedade das Artes Mecânicas, estudada por Marcelo Mac Cord, no Recife oitocentista, quando chama atenção para a existência de “redes de clientela” entre os membros daquela entidade e figuras importantes da política pernambucana. Os indivíduos mais beneficiados por essa rede clientelista eram aqueles que ocupavam os cargos mais altos na hierarquia daquela associação, pois utilizavam daquele espaço para, além de outros objetivos, “ampliar o reconhecimento de seu prestígio social”. 22 Para Júlio Braga, a Sociedade Protetora dos Desvalidos, além de “socorrer e amparar seus associados em caso de necessidade, constituiu-se como tantas outras, numa agência de prestígio para seus membros”, com a condição de que os interesses desses sujeitos “não se chocassem com os interesses maiores da sociedade dominante”.23 Segundo Maria das Graças de Andrade Leal, essas associações eram espaços masculinos de sociabilidade de artistas e operários de maioria negra e mulata, onde se desenvolviam formas de convivência que resultaram em experiências de atuação política, do ponto de vista das relações de poder estabelecidas internamente.

A autora segue afirmando que, do ponto de vista político, essas associações tinham sido, um campo fértil de aprendizado e atuação por parte de lideranças emergentes, que se destacaram na condução dos destinos de tais sociedades. Era um espaço propício para a canalização de ideais societários para serem conquistados extramuros das associações, favorecendo a algumas lideranças

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Ibid., p. 237. SILVA, M. C. B. C. Sociedade Monte-Pio dos Artistas na Bahia: elo dos trabalhadores em Salvador. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo da Bahia/Fundação Cultural do Estado da Bahia/Empresa Gráfica da Bahia, 1998. p. 10. 21 LEAL, Maria das Graças de Andrade. A arte de ter um ofício: Liceu de Artes e Ofícios da Bahia (18721996). Salvador: Fundação Odebrecht; Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, 1996. p. 156. 22 CORD, Marcelo M. Artífices da cidadania: mutualismo, educação e trabalho no Recife oitocentista. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. p. 359. 23 BRAGA, op. cit, p. 55. 20

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o acesso aos espaços parlamentares, especialmente os relativos à municipalidade.24

Manuel Querino, após desentendimentos com a Sociedade Protetora dos Desvalidos, solicitou diversas vezes sua readmissão como sócio efetivo, pois o mesmo sabia que aquele era um espaço privilegiado para se promover, tendo em vista sua carreira política no Conselho Municipal. Por sua vez, os membros da Sociedade Protetora dos Desvalidos enxergavam nessa relação uma oportunidade de estabelecer uma aliança, algo que Braga vai caracterizar como “troca recíproca de prestígio”.25 A prática de buscar nomes importantes na política foi algo constante entre os membros da Sociedade Protetora dos Desvalidos e possivelmente se constituiu como uma alternativa de se manter atuante na vida de seus associados, bem como nas relações politicas de um modo geral.26 A única obra específica sobre a Sociedade Protetora dos Desvalidos é o livro do antropólogo Júlio Santana Braga, resultado de sua dissertação de mestrado, originalmente publicada em 1975. Além de apontar a existência de diversas fontes no arquivo desta associação, Braga observa a constituição de uma rede associativa entre os membros de várias sociedades de auxílios mútuos. Seu estudo também ajuda a refletir sobre a presença de uma espécie de “elite dominante” dentro da Sociedade Protetora dos Desvalidos, devido à identificação de sujeitos bem projetados ao nível interno da Sociedade. Além disso, Braga destaca a influência da abolição da escravatura nas reformas da organização interna da Sociedade, tendo que acolher indivíduos recém-emancipados.27 Entretanto, o autor não explora de forma convincente como a Sociedade Protetora dos Desvalidos teve que se aparelhar para encarar essa nova dinâmica social do pós-abolição, além de desconsiderar a possibilidade das mudanças políticas terem influenciado nos rumos dessa organização, como o fim do Império e a Proclamação da República. O estudo da Sociedade Protetora dos Desvalidos se apresenta como uma possibilidade de preencher uma lacuna na historiografia baiana sobre o estudo do mutualismo, com o intuito de contribuir para a consolidação das pesquisas no campo da História Social e Política, além de fornecer alternativas para a compreensão das configurações no mundo do trabalho, das relações raciais e das relações político-partidárias. Referências ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: Abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. BATALHA, Cláudio H. M. Relançando o debate sobre o mutualismo: as relações entre corporações, irmandades, sociedades mutualistas de trabalhadores e sindicatos à luz da produção recente. Revista Mundos do Trabalho, v. 2, n. 4 (2010), p. 12-22. ______. Sociedades de trabalhadores no Rio de Janeiro do século XIX: algumas reflexões em torno da formação da classe operária. Cad. AEL, v. 6, n.10/11 (1999), p. 42-68.

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LEAL, Maria das Graças de Andrade. Manuel Querino entre letras e lutas – Bahia: 1851-1923. São Paulo: Annablume, 2009. p. 319-320. 25 BRAGA, op. cit., p. 58. 26 Existe uma lista de sócios beneméritos e protetores, com os nomes do deputado João Augusto Neiva, o presidente da província José de Almeida Couto, o político Aristides Cezar Spínola Zama, o Conselheiro Henrique Pereira de Lucena, o governador Joaquim Manuel Rodrigues Lima, o Senador Rui Barbosa, o médico e político Sátiro de Oliveira Dias, entre tantos outros importantes nomes. Esta lista consta no Relatório da Sociedade Protetora dos Desvalidos relativo ao exercício de 1895 a 1896, apresentado pelo Presidente do Diretório Florencio da Silva Friandes e aprovado em sessão de 23 de outubro de 1896, Bahia: Imprensa Moderna de Prudêncio de Carvalho, 1896. 27 BRAGA, op. cit., p. 42.

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Anais eletrônicos: VII Encontro Estadual de História: Diálogos da História. 30 de setembro a 03 de outubro de 2014. Cachoeira, BA: UFRB, 2015. (ISBN: 978-85-61346-99-7).

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