Sociedades conectadas e direito à  cidade: novas fronteiras dos movimentos sociais no Século XXI

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Mestre em filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
De toda forma, quaisquer que sejam os anos escolhidos, o ritmo estrutural da progressão das maiores riquezas parece ser sempre muito mais rápido — no mínimo duas vezes mais rápido — do que o crescimento da renda média e do patrimônio médio. Se examinarmos a evolução da parcela dos diferentes milionésimos das maiores riquezas na riqueza mundial, veremos um aumento de mais de três vezes em menos de trinta anos (ver o Gráfico 12.3). É claro que as massas permanecem relativamente limitadas quando as exprimimos em proporção à riqueza mundial — mas o ritmo da divergência não deixa de ser espetacular. Se tal evolução continuar de forma indefinida, a participação desses grupos hoje extremamente restritos pode atingir níveis muito substanciais até o final do século XXI (PIKETTY, 2014, p. 424-425).
Esta hegemonia autoritária se sustenta a partir de ao menos três pilares fundamentais: 1 – "democracia parlamentar como ápice da organização política da humanidade." 2 – "qualquer tentativa de alterações substanciais no modelo representativo parlamentar nos conduziria necessariamente a algum beco sem saída, como algumas formas de autoritarismo (...)". 3- "o ideal de uma democracia direta apresentar-se-ia ilusório e inviável para o tamanho e o alto grau de complexidade alcançado pelas comunidades políticas contemporâneas." (VIEIRA. L.V. 2006, P.15).

Ao longo da história, os movimentos sociais são produtores de novos valores e objetivos em torno dos quais as instituições da sociedade se transformaram a fim de representar esses valores, criando novas normas para organizar a vida social. Os movimentos sociais exercem o contrapoder construindo-se, em primeiro lugar, mediante um processo de comunicação autônoma, livre do controle dos que detêm o poder institucional (CASTELLS, M. 2013, p.14).
Nós os encaramos como ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam formas distintas de a população se organizar e expressar suas demandas. (...)Na realidade histórica, os movimentos sempre existiram, e cremos que sempre existirão. Isso porque representam forças sociais organizadas, aglutinam as pessoas não como força-tarefa de ordem numérica, mas como campo de atividades e experimentação social, e essas atividades são fontes geradoras de criatividade e inovações socioculturais. (GOHN, 2011, p.333-334).
Mas as grandes conquistas de 1968 talvez sejam no âmbito ideológico, e até simbólico, que instaurou uma política cultural alternativa. As reivindicações feministas, dos direitos dos homossexuais, das minorias étnicas raciais, como os negros nos EUA, ou os indígenas e etc., todas essas questões se tornaram centrais, inclusive a ecológica. Ocorreu uma espécie de despertar de uma geração que passou a colocar novos assuntos na agência política. Também houve o movimento psicodélico, questionando a proibição das drogas e a existência de outras legais, como o tabaco e o álcool. Acho que isso resultou em uma reivindicação de democracia cultural (CARNEIRO, Henrique. 2008).
Cf. WALLERSTEIN, I. M. O que significa hoje ser um movimento anti-sistêmico. In: LEHER, R.; SETÚBAL, M. (Org.). Pensamento crítico e movimentos sociais: diálogos para uma nova práxis. São Paulo: Cortez, 2005. p.263-276.


A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de possibilidades infinitas, de que eles podem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco como as escolhas de consumo, cada vez mais "customizadas" e particularizadas. No entanto, talvez seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro "agir", pois é incapaz de mudar as possibilidades de escolha, previamente determinadas. Ele não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos e alternativas já postos à mesa. Por isso, essa ação não é livre. (SAFATLE, Vladimir. 2013, p. 51)
A definição de metarrelato por Lyotard é justamente para expor sua impossibilidade no mundo pós-moderno. A crise dos metarrelatos, entretanto, quando analisado pela o aspecto hegemônico da democracia representativa unido ao capitalismo, que a tudo permeia e fundamenta, leva-nos a justamente utilizar desta definição para significar esta característica tão fundamental do tempo agora.
"O saber e o cotidiano são legitimados por um 'metarrelato' que implica em uma filosofia da história com conceitos de justiça e verdade pré-determinados. Ou seja, "considera-se 'pós-moderna' a incredulidade em relação aos 'metarrelatos'. É, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências, mas este progresso, por sua vez, a supõe. Ao desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação corresponde, sobretudo a crise da filosofia metafísica e a da instituição universitária que dela dependia" (LYOTARD, 1993, p. 3).
O pensamento antiutópico contemporâneo envolve, portanto uma mediação crucial que nem sempre se revela à primeira vista. Seu argumento é que a ilusão social ou coletiva da utopia, ou a de uma sociedade radicalmente diferente, falha em primeiro lugar porque está investida da ilusão pessoal, ou existencial, que é, em si mesma, falha desde o princípio. (...) o pensamento utópico – ainda que aparentemente benigno, se não totalmente eficaz – é, na verdade, bastante perigoso e pode nos levar, entre outras coisas, aos campos stalinistas, a Pol Pot (...), aos "massacres" da Revolução Francesa (...) (JAMESON, F. 1996b, p.337 {grifo nosso}).
Cf. Furet, François. Interpreting the French Revolution. Trans., Elborg Forster. Cambridge: Cambridge UP, 1981.


Para o conceito de ideologia utilizamo-nos da abordagem do filósofo Zizek quando diz que: Essa, provavelmente, é a dimensão fundamental da "ideologia": a ideologia não é simplesmente uma "falsa consciência", uma representação ilusória da realidade; antes, é essa mesma realidade que já deve ser concebida como "ideológica": "ideológica" é uma realidade social cuja própria existência implica o não conhecimento de sua essência por parte de seus participantes, ou seja, a efetividade social cuja própria reprodução implica que os indivíduos "não sabem o que fazem". "Ideológica" não é a "falsa consciência" de um ser (social), mas esse próprio ser, na medida que ele sustentado pela "falsa consciência" (ZIZEK, 1999, p.305-306)
Em boa parte do mundo capitalista, passamos por um período surpreendente em que a política foi despolitizada e mercantilizada. Apenas agora em que o Estado entra em cena para socorrer os financistas ficou claro para todos que Estado e capital estão mais ligados um ao outro do que nunca, tanto institucional quanto pessoalmente. Vê-se agora claramente a classe dominante, mais do que a classe política que age como sua subordinada, dominando (HARVEY, D. 2011, p. 178)
E, de forma bastante lógica, na medida em que a economia seja considerada a esfera da não ideologia,esse admirável mundo novo de mercadorização global se considera pós-ideológico (...) a economia funciona aqui como o aparelho ideológico do estado (ZIZEK, 2011a, p.12).
O sentido de utopia que aqui queremos dar é o que Zizek comenta como o "impossível/real" que anima as práticas (2008, p.12-13) transformadoras e como Alan Badiou comenta sobre seu conceito de ideia, quando dize que, "(...) uma Ideia é a operação subjetiva pela qual uma verdade real particular é imaginariamente projetada no movimento simbólico de uma História, podemos dizer que uma Ideia apresenta a verdade como se ela fosse um fato. Ou ainda, que a Ideia apresenta certos fatos como símbolos do real da verdade (...)A Ideia, que é uma mediação operatória entre o real e o simbólico, apresenta sempre ao indivíduo algo que se situa entre o evento e o fato. (2009, p.118).
Doze anos antes do 11 de setembro, em 9 de novembro de 1989, o Muro de Berlim caiu. Esse evento parecia anunciar o início dos felizes anos 90", a utopia do "fim da história" de Francis Fukuyama, a crença de que a democracia liberal, em princípio, vencera, de que o surgimento de uma comunidade liberal global estava logo ali na esquina e os obstáculos a esse final feliz hollywoodiano eram apenas empíricos e contingentes (bolsões localizados de resistência cujos líderes ainda não haviam entendido que seu tempo acabara). Por sua vez, o 11 de Setembro simbolizou o fim do período clintonista e anunciou uma época em que vimos novos muros surgir por toda parte: entre Israel e Cisjordânia, em torno da União Europeia, na fronteira entre Estados Unidos e México e até no interior de Estados-nações (ZIZEK. 2011a, p.17{grifo nosso}).
O autor faz reconsiderações de sua tese pela forma que a democracia liberal ganhou no regime Norte Americano, sob o governo do então Presidente George W. Bush, com a construção de um estado extremamente beligerante e levando pela força militar e não pela ideologia triunfante a democracia liberal aos países que não seguiam este modelo. Esses e outros argumentos podem ser vistos no artigo intitulado The History at the End of History, disponível em .
Neste início de século XXI, certas desigualdades da riqueza que pensávamos ter desaparecido parecem estar prestes a voltar a seus picos históricos, ou até mesmo a ultrapassá-los, no contexto da nova economia global, portadora de imensas esperanças (o fim da pobreza) e de enormes desequilíbrios (tanto entre indivíduos como entre países) (PIKETTY, 2014, p.459).
Baseada na dolorosa evidência histórica surge a verdade desconcertante: através das interconexões estruturais das partes que o constituem, o sistema do capital consegue se impor sobre os esforços emancipadores parciais que visam alvos específicos limitados. Com isso, os adversários da ordem estabelecida da reprodução sociometabólica, incorrigivelmente discriminatória, têm de enfrentar e superar não apenas a força positiva autossustentada de extração do trabalho excedente pelo capital, mas também a força devastadoramente negativa (a inércia aparentemente ameaçadora) de suas ligações circulares MÉSZÁROS (2011, p. 181).
Há internacionalmente uma ortodoxia econômica, que é reforçada pelos movimentos do capital internacional. Os partidos políticos convencionais se tornaram reféns desse poder (...)
A situação agora reflete a alienação das pessoas em relação a praticamente todos os partidos políticos e a sua desilusão com o processo político. Nos EUA, o Congresso tem uma taxa de aprovação de 10%. Nessa circunstância, as pessoas não vão canalizar o seu descontentamento para o processo político, pois não enxergam esperança nisso. Por isso, há essa raiva. E assim as coisas vão continuar (HARVEY, D. 'Privatização de tudo' gerou protestos, que vão continuar, in Folha de São Paulo, 2013. Disponível em .
Parece, portanto, que a utopia de Fukuyama sobre os anos 1990 teve de morrer duas vezes, já que o colapso da utopia política democrático-liberal do 11 de setembro não afetou a utopia econômica do capitalismo do mercado global. Se a crise financeira de 2008 teve um significado histórico, só pode ter sido o sinal do fim da face econômica do sonho de Fukuyama (ZIZEK, 2011a, p.18).
O termo "eixo do mal" foi usado pela primeira vez pelo presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, em seu discurso anual sobre o estado da União, proferido diante do Congresso norte-americano em 29 de janeiro de 2002. Segundo Bush, os três países que constituem o "eixo do mal "-Coréia do Norte, Irã e Iraque- possuem armas de destruição em massa e patrocinam o terrorismo regional e mundial. A expressão remete ao "Eixo" formado por Alemanha, Itália e Japão na Segunda Guerra, e foi comparada ao "império do mal", usado por Ronald Reagan em 1982 para definir a então União Soviética. Acusados de investir em armas de grande impacto, esses "países renegados" representam, segundo a Casa Branca, uma ameaça real à estabilidade global. Coréia do Norte, Irã e Iraque, segundo Bush, constituem uma categoria superior dentro do que convencionou-se chamar de "Estados vilões". Aí também se situariam Cuba e Líbia, entre outros. (Iraque faz parte dos países que formam o "eixo do mal", diz George W. Bush, in Folha de São Paulo, 2002, disponível em .
Logo depois dos atentados, o presidente prometeu que o país iria "caçar e punir os responsáveis por esses atos covardes". Era o começo da chamada "guerra ao terror". O mundo foi dividido, na visão de Bush, entre quem estava com os EUA e quem estava contra o país.
Em seu discurso anual sobre o Estado da União de 2002, cunhou a expressão "eixo do mal" para referir-se a Irã, Iraque e Coreia do Norte como um grupo de países empenhado em desenvolver armas de destruição em massa que poderiam ser usadas por terroristas (Presidente Bush lançou "guerra ao terror" após ataques de 11/09, in Folha de São Paulo, 2011, disponível em .
A palavra "comunismo" foi durante cerca de dois séculos (desde a "comunidade dos iguais" de Babeuf até os anos 1980) o nome mais importante de uma Ideia situada no campo das políticas de emancipação ou políticas revolucionárias. Ser comunista era talvez ser militante de um partido comunista em determinado país. Mas ser militante de um partido comunista era ser um dos milhões de agentes de uma orientação histórica de toda a humanidade. A subjetivação ligava, no elemento da Ideia do comunismo, o pertencimento local a um processo político e ao imenso domínio simbólico da marcha da humanidade em direção a sua emancipação coletiva. Distribuir panfletos na rua também era subir ao palco da História (2009, p.14).

Usamos aqui a definição de "equivalência" para melhor representar esse jogo de forças não pacífico da palavra reunificação. Esse conceito é enunciado por Jameson quando dize que,
A descrição exemplar de Laclau e Mouffe do modo pelo qual a política de aliança funciona – no estabelecimento de um eixo de "equivalência" a partir do qual os partidos se alinham – não tem nada a ver, como eles mesmos enfatizam, com o conteúdo das questões em torno das quais a equivalência é construída. (Eles levam em conta, por exemplo, a possibilidade teórica de que, em uma conjuntura específica e única, o que "ocorre em todos os níveis da sociedade [...] [pode ser] totalmente determinado pelo que acontece no nível da economia"). Muitas vezes, obviamente, a equivalência vai se dar em torno de questões que não as de classe, como o aborto e energia nuclear (1996b, p.333).
(...) O século XX, o qual tornou-se de fato, conforme predissera Lênin, um século de guerras e revoluções. Portanto, um século da violência que atualmente se acredita seja seu denominador comum. Há, entretanto, um outro fator na situação atual o qual, embora previsto por todos, tem pelo menos importância igual. O progresso técnico dos instrumentos da violência alcançou agora o ponto onde objetivo político algum poderia corresponder ao seu potencial de destruição ou justificar o seu emprego real em conflitos armados. (...)A própria substância da violência é regida pela categoria meio/objetivo cuja mais importante característica, se aplicada às atividades humanas, foi sempre a de que os fins correm o perigo de serem dominados pelos meios, que justificam e que são necessários para alcançá-los. Uma vez que os propósitos da atividade humana, distintos que são dos produtos finais da fabricação, não podem jamais ser previstos com segurança, os meios empregados para se alcançar objetivos políticos são na maioria das vezes de maior relevância para o mundo futuro do que os objetivos pretendidos (HARENDT, H. 2004, p. 4-5)
No outono de 2008, no entanto, a "crise das hipotecas subprime", como veio a ser chamada, levou ao desmantelamento de todos os grandes bancos de investimento de Wall Street, com mudanças de estatuto, fusões forcadas ou falências. O dia em que o banco de investimentos Lehman Brothers desabou – em 15 de setembro de 2008 – foi um momento decisivo. Os mercados globais de credito congelaram, assim como a maioria dos empréstimos no mundo. Como o venerável ex-presidente da Federal Reserve Paul Volcker (que cinco anos antes, juntamente com vários outros comentaristas de prestigio, previra a calamidade financeira se o governo dos EUA não forcasse o sistema bancário a reformar seu funcionamento) observou, nunca antes as coisas haviam despencado "tão fácil e tão uniformemente ao redor do mundo". O resto do mundo, ate então relativamente imune (a exceção do Reino Unido, onde problemas análogos no mercado da habitação já tinham vindo atona, o que levou o governo a nacionalizar uma casa de empréstimos importantes, a Northern Rock), foi arrastado precipitadamente para a lama, gerada em particular pelo colapso financeiro dos EUA. No epicentro do problema estava a montanha de títulos de hipoteca "tóxicos" detidos pelos bancos ou comercializados por investidores incautos em todo o mundo (HARVEY, D. 2011, p.10).
O argumento chinês de que a estrutura da Internet serve aos "interesses hegemônicos" dos Estados Unidos foi visto por muito tempo pela comunidade internacional como "cínico e hipócrita", disse Dan Gilmor, autor e especialista em assuntos relativos à Internet, dado o fato de que a política norte-americana tem apoiado e promovido a liberdade de expressão online, enquanto a China construiu um sistema sólido e sofisticado de controle da Internet. Mas as crescentes revelações sobre o alcance da espionagem digital conduzida pela Agência de Segurança Nacional (NSA, sigla em inglês) levantaram dúvidas sobre o compromisso dos Estados Unidos. Os documentos vazados pelo ex-contratado da NSA Edward Snowden mostram que alguns dos programas de espionagem dos EUA operaram com o apoio técnico de empresas de tecnologia sob a jurisdição norte-americana. A NSA aproveitou-se do fato de que quase todas as comunicações online passam por servidores e switches baseados nos EUA para aspirar uma vasta parte da comunicação global. A agência estabeleceu como alvo especificamente governos, incluindo aliados como o Brasil, cuja presidente, Dilma Rousseff, ofendeu-se profundamente com a invasão de sua correspondência pessoal (SIMON, Joel. Como a espionagem dos Estados Unidos fortalece o controle da China, 2013, Disponível em http://cpj.org/pt/2014/02/ataque-a-imprensa-em-2013-como-a-espionagem.php).
Com um retorno médio do capital da ordem de 4-5%, é então provável que a desigualdade r > g volte a ser a norma no século XXI, como sempre foi na história e como era ainda no século XIX e às vésperas da Primeira Guerra Mundial. No século XX, foram as guerras que fizeram tábula rasa do passado e reduziram bruscamente o retorno do capital, dando, assim, a ilusão de uma superação estrutural do capitalismo e dessa contradição fundamental (PIKETTY, THOMAS. 2014, P. 556).
Neste início de século XXI, certas desigualdades da riqueza que pensávamos ter desaparecido parecem estar prestes a voltar a seus picos históricos, ou até mesmo a ultrapassá-los, no contexto da nova economia global, portadora de imensas esperanças (o fim da pobreza) e de enormes desequilíbrios (tanto entre indivíduos como entre países) (PIKETTY, 2014, p.459).
A reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, nos Estados Unidos, em novembro de 1999, marcou o nascimento do movimento antiglobalização como uma força internacional. Cerca de 100 mil manifestantes foram às ruas de Seattle protestar contra o encontro, que só ocorreu após a prisão de mais de 600 manifestantes (C.f. Movimento antiglobalização ganha voz a partir de Seattle, 2002. Disponível em ).
É importante destacar que, apesar das diferenças existentes nos movimentos transnacionais, a exemplo do próprio Fórum Social Mundial, eles unem à crítica sobre as causas da miséria, exclusão e conflitos sociais, a busca e a criação de um consenso que viabilize ações conjuntas. À globalização econômica, os movimentos propõem outro tipo de globalização, alternativa, baseada no respeito às diferentes culturas locais. Com isso, contribuem para construir outra rede de globalização, a da solidariedade. Ela expressa-se não somente nos fóruns mundiais, mas sobretudo nas redes de defesa dos direitos humanos, nas lutas contra a fome e defesa de frentes de produção alimentar, e não de armas, na defesa do meio ambiente, na luta pela paz, contra a exploração do trabalho infantil etc.
Para este tema de reconstrução das diretrizes do político pelas novas constituições latino americanas conferir o livro do Grupo de Estudos e Debates da América Latina – Nedal, intitulado Processos Constituintes na América Latina: a decisão por uma nova forma de existência política (2012).
LACLAU, Ernesto. La razónpopulista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005.
Eu estou convencido de que o processo político alternativo, altermundista, está em dificuldades e que de agora em diante terá que enfrentar a novos problemas sociais vinculados às novas formas de trabalho, às consequências da precarização geral, às novas divisões sociais, ao aumento da miséria e da pobreza, etc. hoje já se está abrindo um novo ciclo social de lutas que terá, muito provavelmente, novas características e toda uma série de forças que, todavia, estão repetindo velhos dogmas e velhas ladainhas que, na prática, serão deixadas de lado. Porque o que interessa é isso, essa gestão, essa positividade da luta que corresponde a um novo prazer do trabalho. Portanto, creio que neste terreno encontraremos muitos espaços comuns de discussão (NEGRI, A. 2005, p.7).
As críticas aos altermundialistas destacam que, entre os participantes, nos megaeventos, quem detém de fato a fala são porta-vozes autorizados, de certa forma já "profissionais na política", detentores de um capital militante onde a luta política se trava num combate de ideias e ideais, a questão simbólica é mais importante que os problemas concretos. O processo de transformação social adquire facetas proféticas, místico, sem objetivo definido. Os processos efetivos de dominação existentes não aparecem nos discursos (GOHN, 2011, p. 339).
O conceito a que nos referimos de Utopia é o que Alan Badiou faz uso ao comentar sobre o termo no Livro A hipótese Comunista (2008), a utopia com a ideia platônica, inesgotável, infinita, eterna e que, por outro lado, anima as práticas transformadoras.
A contínua transformação da tecnologia da comunicação (TI) na era digital amplia o alcance dos meios de comunicação para todos os domínios da vida social, numa rede que e simultaneamente global e local, genérica e personalizada, num padrão em constante mudança. O processo de construção de significado caracteriza-se por um grande volume de diversidade. Existe, contudo, uma característica comum a todos os processos de construção simbólica: eles dependem amplamente das mensagens e estruturas criadas, formatadas e difundidas nas redes de comunicação multimídia (CASTELLS. M. 2013, p.11)
Em nossa sociedade, que conceituei como uma sociedade em rede, o poder e multidimensional e se organiza em torno de redes programadas em cada domínio da atividade humana, de acordo com os interesses e valores de atores habilitados. As redes de poder o exercem, sobretudo influenciando a mente humana (mas não apenas) mediante as redes multimídia de comunicação de massa. Assim, as redes de comunicação são fontes decisivas de construção do poder (CASTELLS, M. 2013, p.16).
Os manifestantes do Movimento Occupy Wall Street, que se instalaram no coração do distrito financeiro de Nova York, estão protestando contra um sistema de capital financeiro despótico: um vampiro infectado pela ganância que sobrevive chupando o sangue de quem não é rico. Eles tão mostrando seu desprezo em relação aos banqueiros, aos especuladores financeiros e seus mercenários da mídia, que continuam insistindo que não há alternativa (ALI, Tariq. 2012, p. 66 {grifo nosso})
{Em recife}, O movimento Ocupe Estelita surge em concomitância com o grupo Direitos Urbanos. O objetivo específico do movimento é cancelar o projeto imobiliário denominado Novo Recife, que consiste na construção de 12 torres gigantes, que se desdobram na prática em 15 torres, de 20 a 45 andares, no antigo cais José Estelita, atualmente desativado, cuja área localiza-se no coração do Recife – terreno estratégico no meio de duas importantes avenidas da cidade e numa importante paisagem da cidade. O Ocupe Estelita, na forma de uma ocupação física no Cais Estelita, acontece quando um militante é agredido enquanto tenta registrar, motivado por uma denúncia, a destruição dos antigos armazéns do referido cais. Imediatamente, faz-se necessária uma intervenção política urgente, capaz de inibir de alguma forma o famigerado projeto. Ocupar fisicamente – com os nossos corpos – foi a solução imediata para o impasse da invisibilidade (ANDRADE, E. 2014, p.2 {inserção nossa}).
O termo "ocupe", ainda que genérico e, por conseguinte, longe de expressar perfeitamente uma uniformidade de plataformas políticas, passou a designar diferentes manifestações protagonizadas na década de 2010 que indicavam a necessidade, entre outras coisas, de aprofundar a democracia no sentido de torná-la efetiva ou real por meio da participação popular. Nesses termos, o Ocupe articula as demandas sociais, ainda presentes em vários países em vias de desenvolvimento, com a demanda por uma democracia em que a participação popular não seja apenas consultiva e marcada pela finalidade de manter o modus operandi da política tradicional, representativa, mas que tenha o poder de interferir no espaço de decisão política (ANDRADE, E. 2014, p.1)
Argumentare a este respecto que la urbanizacion desempeiia un papel particularmente activo (junto con otros fenômenos como los gastos militares) en la absorcion del producto excedente que los capitalistas producen continuamente en su busqueda de plusvalor (HARVEY, David. 2013, p.24)
Sem controles adequados, essa onda de "financeirização" se transformou na chamada crise das hipotecas podres e do valor dos imóveis. As consequências se concentraram, primeiro, nas cidades americanas e em torno delas, com implicações particularmente graves para os negros de baixa renda e famílias chefiadas por mulheres solteiras. A crise também afetou aqueles que, sem poder pagar os preços exorbitantes da habitação nos centros urbanos, foram forçados a morar nas semiperiferias metropolitanas. Nesses lugares, as pessoas compraram a juros, inicialmente baixos, casas padronizadas em condomínios construídos especulativamente; com a crise, passaram a enfrentar o aumento do custo do transporte para o trabalho e das prestações da hipoteca (HARVEY, D. 2013, p.33)
Nesse ponto da história, essa tem de ser uma luta global, predominantemente contra o capital financeiro, pois essa é a escala em que ocorrem hoje os processos de urbanização. Sem dúvida, a tarefa política de organizar tal confronto é difícil, se não desanimadora. Mas as oportunidades são múltiplas, pois, como mostra esta breve história, as crises eclodem repetidas vezes em torno da urbanização e a metrópole é hoje o ponto de confronto – ousaríamos chamar de luta de classes? — a respeito da acumulação de capital pela desapropriação dos menos favorecidos e do tipo de desenvolvimento que procura colonizar espaços para os ricos (HARVEY, D. 2013b, p.12)..
Sociedades conectadas e direito à cidade: novas fronteiras dos movimentos sociais no século XXI.

Francisco José Sobreira de Matos

Introdução
Nas últimas duas décadas, a sociedade tem vivido intensas mudanças, ganhado novas características ulteriores e determinações que afetam, não somente a sua superfície, mas transformam de dentro a sua égide, o desenvolvimento e o resultado dos seus efeitos. Estas mudanças aparecem influenciadas por este novo modelo de sociedade, que se encontra sedimentado em um alicerce onde o iminente colapso ecológico, o aumento da desigualdade social, a violência estatal crescente e a democracia representativa liberal dialogam e se digladiam no interior de um novo paradigma tecnológico – centrado no desenvolvimento exponencial das tecnologias da informação e comunicação (CASTELLS & CARDOZO, 2005) – transformando-se em chaves de leituras fundamentais para a análise e entendimento dos fenômenos sociais no agora. Desta forma, não é de se estranhar que estas novas relações influenciem também no modo como nossos problemas, nossas crises sociais, nossas indignações aparecem e, principalmente, como nos organizamos socialmente para combatê-las.
A sociedade contemporânea aparece em nossas televisões, computadores e smartphones em um constante processo de efervescência/ebulição, muito motivado por um intenso desejo ulterior do ser humano por mudanças que acalentem suas esperanças. Esta efervescência não é o principal ponto nesse contexto, uma vez que sempre existiu em diferentes formas e níveis na nossa história, mas aqui o ponto central é como essa sede por mudança, as problemáticas individuais/globais e sua relação com as novas tecnologias têm se tornado ponto aglutinador de demandas sociais por um lado e, por outro, no compartilhamento e reconhecimento de indignações comuns e novas formas do agir coletivo, em um modelo político que aparece exaurido em sua capacidade de promover justiça social.
Desde a adoção do conceito de representação política como solução para a derrocada final dos governos despóticos e absolutistas, a democracia representativa, como forma de organização política, tornou-se um paradigma hegemônico. A promessa da representação popular e mudanças nevrálgicas, ante a um passado de mazelas sociais, oriundas de governos despóticos e extremamente elitistas, pareciam desejáveis demais para ser relegada; e, como vimos, a democracia representativa tornou-se, não só um novo modelo, mas o principal modelo de organização da esfera política das sociedades desde o século XIX.
Todavia, o que parecia ser uma ideia sem falhas, uma utopia possível, mostra-se, desde o seu nascimento, em seus aspectos contraditórios. A organização política destas sociedades limou parte da pungência e do fulgor das transformações sociais e do desenvolvimento de ações políticas para práticas sociais emancipatórias e, por conseguinte, promoveu uma espécie de esvaziamento do sentido do Político, no conjunto de sociedades que adotaram o sistema democrático, liberal e representativo como seu modelo de estruturação (VIEIRA, L. V. 2006).
Outra característica fundamental, é que o sistema econômico capitalista se atrelou, progressivamente, ao modelo político da democracia representativa, criando, posteriormente, uma espécie dupla necessidade interna, em que, uma "feliz coincidência", unira o "melhor" dos modelos políticos, com o "ápice" do sistema econômico. Criava-se, assim, uma relação simbiótica entre democracia e capital, sob o conceito de democracia liberal.
Por conseguinte, por seu sucesso histórico, as lutas sociais por transformações deste modelo econômico-político hegemônico aparecem hoje como uma forma de luta "sem" causa material, como uma espécie de debater-se infantil, uma birra, ante a uma ordem dada pelos pais. Ou, então, ligadas eminentemente a bandeiras políticas muito específicas, que não conseguem aglutinar de forma coesa outras insatisfações e causas; mantendo difuso o jogo de forças empregado para o pensar destas relações e para a criação de uma possibilidade efetiva de modificação das condições materiais de existência.
É importante frisar que o que por anos foi a ideia mais robusta e importante de contra ideologia dominante da democracia liberal, a ideia de comunismo, foi sendo programaticamente solapada e, cada vez mais, seu conceito sendo transposto a uma espécie de similitude essencial aos exemplos dos governos socialistas totalitários do período pós-guerras mundiais. Essa ressalva é importante já que grande parte da força dos movimentos sociais do século XX residiu justamente na ideia de comunismo como mundo possível, como possibilidade fática e não simplesmente como ideia abstrata (BADIOU, 2012); o que, por sua vez, aglutinava diferentes bandeiras, demandas, ideologias sob o mesmo manto de possibilidade de modificação basilar das estruturas da sociedade.
Diante disso, com o modelo político econômico da democracia liberal praticamente hegemônico e com o processo de fragmentação das bandeiras dos movimentos sociais principalmente pós 1968, o modelo vigente apresenta-se, desde então, como uma espécie de thelos da história humana, o "fim da história" (FUKUYAMA. F. 1992), ou o seu termo.
Ou seja, com a crise do socialismo e a onipresença da democracia liberal, a luta de classes foi sendo resignificada e, esta bandeira aglutinadora, com potencial estruturalmente transformador, sendo substituída pela abertura das demandas do flanco cultural, disseminadas globalmente, primordialmente, pós-manifestações estudantis de maio de 1968. Wallerstein (2005) esclarece que desde 1968 tem havido uma busca persistente por um novo e melhor modelo de movimento anti-sistêmico, pois a velha esquerda havia falhado, por não aplicar a doutrina da revolução. Surgem, então, quatro tipos de tentativas de movimentos anti-sistêmicos, algumas ainda em curso: (1) aparecimento dos múltiplos maoísmos, inspirados na Revolução Cultural Chinesa, já em extinção; (2) o nascimento, da New Left (nova esquerda) com os movimentos de minorias raciais/étnicas, os movimentos ecológicos, os movimentos feministas, todos com maior força pós 1968. (3) emergência de movimentos de organizações de direitos humanos, adquirindo maior pungência a partir dos anos 80; (4) movimentos antiglobalização, com maior força a partir dos anos 90. Havendo, portanto, uma riqueza específica de detalhes nos movimentos sociais no século XX, o que influencia decisivamente como eles se apresentam nessas duas primeiras décadas do século XXI.
Analisaremos, então, como se articulam esses contextos no contemporâneo, onde o modelo político-econômico fundamental não conseguiu resolver a maioria das mazelas sociais de um lado, mas que continua sendo o modelo hegemônico e quase que inquestionável, e, de outro, um processo escalonado de construção de redes globais de indignação (CASTELLS, 2013), através das tecnologias informacionais, acarretando a reestruturação dos movimentos sociais e de suas práticas modificadoras na ressignificação do direito às cidades (HARVEY. D. 2013a).

1 – O século XX e o nascimento do conceito de um mundo "pós-ideológico".

O século XX entrou para história como o século das transformações e mudanças. Seja na cultura, na arte, nas teorias e, sobretudo, na esfera político-econômica – em seu miradouro privilegiado de conduzir os modos correntes dessas transformações – seu legado sempre será o das intensas modificações da vida humana e do Planeta como um todo. Como não lembrar a crise de interesses do Neocolonialismo, que desaguou em duas grandes guerras mundiais, pondo fim à possibilidade de racionalização completa do horizonte humano (ADORNO E HORKHEIMER, 1985)? Na ascensão e queda retumbante de um novo modelo de político-econômico-social, o Socialismo? Dos intensos avanços técnico-científicos e seus efeitos sobre as pessoas e seus modos de existência? Das numerosas, aguerridas e plurais manifestações sociais. E, por fim, dentre tantas características marcantes desse período, algo que não podemos nos furtar de discutir, da hegemonia latente de um sistema político-econômico que hoje pauta as discussões, sejam elas quais forem, como modelo intransponível, a saber, a democracia liberal?
Desde muito ouvimos que o Capitalismo é esta espécie de organismo vivo, que, apesar das crises constantes, evolui e rapidamente retorna mais forte e voraz, pronto para sanar seus problemas e continuar melhorando a vida de todos. Também escutamos que o modelo de democracia representativa é o sonho a ser alcançado, compartilhado e disseminado – mesmo que a força – aos países e povos que não chegaram a este conteúdo "basilar" para a existência política no nosso agora. Além disso, vemos que esta união bastante estável entre democracia representativa e capitalismo financeiro domina hoje o contexto de toda e qualquer discussão teórico/ideológica, e, na medida em que esses dois efeitos, um político e o outro econômico, apresentam-se como ápices da forma de existir em sociedade, passaram estes, a se caracterizar enquanto metanarrativas fundamentais na construção simbólica do agora. Mas nem sempre foi assim.
Para iniciarmos essa discussão, sobre o que tentaremos provar ser eminentemente uma falácia, de que vivemos em um mundo pós-ideologias, e onde estas perderam o sentido e valor para significar conteúdos basilares de nosso tempo, buscaremos rememorar o surgimento dessa união entre capitalismo e democracia representativa, tentando expor nossa tese de que o paradigma fundamental de toda e qualquer discussão de nosso tempo, seja para criticar ou para ratificar algum fenômeno, perpassa a apreciação da ideia de democracia liberal como a derradeira utopia político/econômica, como espécie de ode ao pensamento antiutópico.


1.1- Surgimento do conceito político de representação e a adoção de um novo modelo de sistema econômico.


Desde o século XII, o feudalismo já mostrava seus aspectos de esgotamento, um aumento substancial na circulação de moedas, um desenvolvimento crescente dos centros urbanos e consequente êxodo rural, um fortalecimento do poder central do rei e um enriquecimento rápido de uma nova classe social – que não detinha direitos políticos essenciais – a burguesia. Esta, com o aumento de seu poder econômico, já preparava o terreno para a derradeira derrocada desse sistema político que viria ser a substituído pelas monarquias absolutistas. Tais monarquias já nasceram atreladas ao poder econômico dessa nova elite financeira, que passara a financiar os governos destes monarcas, visando a obtenção de favores políticos e a ampliação das condições para massificação do mercantilismo enquanto ideologia dominante.
Todavia, o poder forte e central do monarca causava ainda entraves ao desenvolvimento das reais ações que a classe burguesa pretendia: pautar as ações estatais amplificando a possibilidade de lucro. A autoridade real passou a ser considerada um empecilho ao livre desenvolvimento econômico, e as primeiras ideias de transferir parte desse poder centralizado para a população surgem com as chamadas monarquias constitucionais ou absolutismo esclarecido, e, por fim, com os ideais da representação popular das democracias modernas.
Assim, a democracia representativa, que tem no representante o pretenso legado material da soberania popular, aparece com um caráter revolucionário, que libertava a sociedade do "retrocesso" feudal e do despotismo real; cobrando, então, da população formas de reprodução social que garantissem a continuidade dessa conquista.
Cabe aqui uma ressalva, a celebração da vitória derradeira desse novo modelo político-econômico dar-se-á na Revolução Francesa, de 1789. Esse grande acontecimento é marcado por um verdadeiro hecatombe de revoltas, de ideologias concorrentes, de desejos incongruentes, de uma massa informe com desejo de mudança, bem diferente das apreciações mais apressadas, que ao falar sobre o tema remetem tacitamente a uma simples tarja de uma revolta burguesa. A ideia de um sistema político-representativo burguês concorria com uma infinidade de outros discursos, saindo vitoriosa já que foi o discurso adotado pela a maioria dos manifestantes vitoriosos. Ou seja, tudo que a Revolução Francesa não é, é o ambiente pacífico onde as ideias burguesas pacificamente ascenderam ao posto de poder sobre as novas formas do viver social no Estado Francês.
Exposto isso, temos aqui que, desde a guinada para esse novo modelo político/econômico, o capitalismo e democracia representativa estiveram ligados, enquanto uma espécie de relação mutualista, onde a união realizada beneficia amplamente os dois. Ou seja, a amplificação de um implica necessariamente no outro. E, desta forma, suas égides históricas, seus desenvolvimentos e seus aspectos atuais, não só caminharam juntos, mas se fizeram simbioticamente, adornando um a outro com as características que melhor se adequavam ao fortalecimento mútuo.
Portanto, uma crítica que venha a se contrapor a qualquer uma destas duas facetas da nossa sociedade só pode ser uma crítica contundente se expõe essa dupla necessidade entre democracia representativa e capitalismo. Já que o que vemos no agora é a legitimação pacífica de um caráter ideológico totalitário por excelência que tenta englobar todo e quaisquer pensamentos diversos como o diferente a ser criticado, deglutido ou sobreposto, isto porque,

(...) boa parte da intelectualidade tem abdicado de questionar, passando, assim, a compartilhar tacitamente, mesmo que às vezes o negue expressamente, a irreversibilidade do Capitalismo e de sua congênere, a democracia liberal, como formas definitivas de reprodução das comunidades modernas. Ou seja, como se a ordem econômica dominante fosse, de agora em diante, uma realidade inquestionável (VIEIRA. L.V. 2006, P.16).


Destarte, perguntamo-nos: a união destas duas ideias, capitalismo/democracia representativa liberal, não fundamentaria, pois, um efeito prático e substancial da própria ideia de ideologia, que parte dos teóricos contemporâneos tentam rechaçar como a ideia de mundo pós-ideológico?

1.2- A falácia do mundo pós-ideológico.


Como vimos anteriormente, parte das críticas de hoje à economia ou a política não buscam de fato a radicalidade – referente à raiz em sua etimologia –, mas somente criticam seus efeitos exteriores e não propriamente a sua morada. Este invólucro, arquitetado cada vez mais sólido ao longo dos anos, construiu sobre si um arcabouço conceitual que transforma essas críticas exteriores em pequenos percalços a serem deglutidos em seu processo natural de crescimento. Neste contexto, é que surge a ideia de mundo pós-ideologia, a supremacia factual de um contexto político, a saber, da democracia liberal, sobre todos os outros sistemas.
Partindo da ideia que o sistema capitalista e a democracia representativa sobreviveram a todas as crises e embates com outros modelos político-econômicos, abriu-se uma margem para construção de um aspecto teórico escatológico ou mítico que incide diretamente na sociedade que passa a reproduzir a incolumidade e aparente eternidade destes signos como eminentemente verdadeiros a priori. Tal argumentação é baseada no argumentum petitio principii, falácia de relevância, onde a aparente forma de argumentação válida advém do mecanismo de circularidade lógica: firmando uma conclusão que se utilizará para demonstrar uma tese partindo do princípio que ela é a válida (também conhecida como falácia de presunção). Desta forma, a circularidade dessa falácia apresenta-se sob a prerrogativa da "democracia liberal ser o melhor dos sistemas, porque venceu a guerra contra todos os outros sistemas", como conclusão a priori válida. A partir deste ponto tudo que se ligar a formação da argumentação subsequente se subjugará para confirmar a conclusão já encontrada. E assim se segue: Mas porque que ela ganhou a batalha contra todos os outros sistemas? Porque é o melhor dos sistemas. Porque não podemos pensar em viver sob outros sistemas? Porque a democracia liberal já é o melhor dos sistemas. A força psicológica e alimentadora dessa falácia se enraíza na sua transformação em uma,

(...) grande negação fetichista: "Sei muito bem os riscos que corro e até a inevitabilidade do colapso final, mas mesmo assim..[consigo adiar o colapso mais um pouquinho, assumir um pouquinho mais de risco e assim indefinidamente]". É uma "irracionalidade" auto-ofuscante em estreita correlação com "irracionalidade" das classes mais baixas, que votam contra o próprio interesse, e mais uma prova do poder concreto da ideologia. Como o amor, a ideologia é cega, mesmo que os indivíduos enredados nela não sejam (ZIZEK, 2008, p.42 [grifos do autor])

Assim, as crenças na chegada ao thelos e, consequentemente, ao falso ápice político-econômico, abrem margem à caracterização de nossa sociedade enquanto pós-ideológica. Já que, nessa nossa conjuntura, tais ideias se encontram naturalizadas – para além da possibilidade de mutabilidade histórica – e enquanto enraizadas como vontade particular da grande maioria das pessoas – legando ao desprezo pessoal, ostracismo e crítica passional as análises críticas feitas a este modelo circular de argumentação. Estes aspectos de ápice e thelos podem ser bem vistos pelo teórico liberal Fukuyama quando diz em O fim da História e o último homem (1992) que,

As mentes mais moderadas e sérias deste século não veem (sic) razão para pensar que o mundo caminha para o que nós, no Ocidente, consideramos como instituições políticas descentes e humanitárias, ou seja, a democracia liberal. (1992, p. 29-30). Dos diferentes tipos de regimes surgidos no curso da história da humanidade, desde monarquias e aristocracias até as teocracias religiosas e as ditaduras fascistas e comunistas deste século, a única forma de governo que sobreviveu intacta até o fim do século XX foi a democracia liberal. (Ibid, p. 80).

Logo, a força e quase que onipresença da ideologia da democracia liberal confere os subsídios necessários para até mesmo se dizer pós-ideológica. Por conta de sua total difusão, a ideologia surge como seu oposto, como não ideologia, como âmago de nossa identidade humana para além de qualquer rótulo ideológico (ZIZEK, 2008, p. 43). Esta forçosa caracterização tem efeitos largos no nosso cotidiano, e, ousamos dizer, é uma verdade das mais aceitas no pensamento corrente. Quais seriam, portanto, os efeitos dessa conceituação que, apesar de falha, é amplamente aceita na caracterização dos fenômenos mais importante de nosso tempo?


1.3– O conceito de pós-ideologia enquanto mito ordenador do pensamento contemporâneo.


A princípio, para começarmos a responder a pergunta deixada no tópico anterior, aludimos à crise da razão, fruto da tentativa de esclarecimento absoluto da modernidade ocidental, tão bem exposta por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento (1985), que nos oferecerá uma primeira chave de leitura pra tentarmos expor melhor nossa proposição que é: o conceito de mundo pós-ideológico, não só é primordialmente ideológico, como se tornou um mito totalizante/ordenador que a tudo tenta englobar para melhorar dominar e se perpetuar, vejamos a citação.

O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este os conhece na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si torna-se para ele. Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato da dominação. Essa identidade constitui a unidade da natureza. (1985, p.24).


No momento do aparecer de um algo nunca antes visto, a razão que se diz esclarecida se esforça rapidamente para subjugar aquele fenômeno ao conceito, libertando os humanos dos "perigos" da dúvida e da incerteza, neste nosso caso libertar das "ideologias" (ADORNO E HORKHEIMER, 1985). O conceito, fruto desta pretensa infalibilidade racional, torna possível a tentativa de legitimar essa espécie de imperialismo teórico, já que representaria o pensamento que procura definir de súbito a característica mais essencial de todo elemento pertencente ao horizonte de análise. De acordo com Fredric Jameson, teórico da modernidade tardia, é fundamental a análise do que é, e quais características fundamentam esse conceito iluminista de esclarecimento, que subjuga tudo a um princípio de identidade – a definição filosófica desse conceito corresponde à igualdade de cada coisa consigo mesma através de um determinado termo –. "No âmbito filosófico, portanto, o conceito é a forma forte de identidade, subsumindo uma grande variedade de objetos diferentes, realmente existentes sob o mesmo termo ou pensamento" (JAMESON. F. 1996a, p.37).
Assim, o conceito impõe a convicção de que ele assegura a "verdade" de um determinado objeto ou de uma gama destes; porém, seria necessário para uma crítica acertada explicitar o que é essa "verdade", de onde ela provém e como se realiza através de certas formas. O conceito aparece nessa convicção não questionada, ora como algo que representa a realidade intrínseca do objeto, ora como um sentimento que é conforme esse objeto: "O modo como essa relação é concebida com certeza joga com uma ampla variedade de fantasias epistemológicas, desde noções de que ela representa alguma verdade intrínseca da coisa até o sentimento de que ela é algo 'como' a coisa" (Ibid., p.38). Ou seja, o conceito baseia-se no,

(...) programa do esclarecimento que propunha o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber (ADORNO E HORKHEIMER, 1985, p. 19). O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este os conhece na medida em que pode manipulá-los (Ibid, p. 24).


Dito isso, a democracia representativa, em sua relação mutualista com Capitalismo, funcionaria como essa espécie de conceito que permite ao mundo ter a aparência de estar completamente esclarecido, de pretensa chegada à maturidade intelectual, onde não é mais necessário o pensamento ideológico. A chegada aos ditos "ápices" do pensamento econômico e político transpassou o mero campo da ideia para cunhar as próprias diretrizes fundamentais dos mecanismos de reprodução social, convertendo-se na própria égide e finalidade da realidade em nosso tempo.Com isso, um efeito sentido é que a realidade humana confere um valor monetário de troca a toda forma de objetividade e até mesmo da subjetividade, transpondo para o próprio mecanismo de subjetivação a necessidade dessa relação de identidade. E isto se dá quando ponderamos que o modo mais corriqueiro encontrado pelo humano nos dias de hoje, para revelar a verdade dos sujeitos e objetos, situa-se no campo econômico, posto que nossa relação mais corriqueira com os entes a nossa volta é a quantificação e a troca através da mediação do dinheiro, além de que a esfera política – lócus privilegiado das disputas e debates sociais – está amplamente subjugadaà esfera econômica.
Queremos, então, mostrar aqui que o mito da superação das ideologias pelo horizonte pós-ideológico, por si só já ideológico e subjuga, a tudo e todos como o miradouro de onde parte tudo que é cotidiano e as até mesmo as críticas a este modelo. Assim sendo, uma vez que tal contexto, não só está implementado enquanto ideologia, como esta se encontra quase que universalmente naturalizado no nosso cotidiano, tem-se, como efeito, que a esfera econômica transformou-se na própria essência da política, ou como sintetiza bem Zizek ao dizer que,

(...) nossa época se percebe como uma época de maturidade em que, com os colapsos dos Estados comunistas, a humanidade abandonou os antigos sonos utópicos milenaristas e aceitou as restrições da realidade (leia-se: a realidade socioeconômica capitalista) como todas as suas impossibilidades (...) A razão disso é que vivemos numa época pós-política de naturalização da economia: em regra, as decisões políticas são apresentadas como questões de pura necessidade econômica; quando medidas de austeridade se impõem, dizem-nos vezes sem fim que isso é simplesmente o que deve ser feito. (...) Hoje, a ideologia dominante pretende nos fazer aceitar a "impossibilidade" de mudança radical, da abolição do Capitalismo, da democracia não restrita ao jogo parlamentar etc., para tornar invisível o impossível/real do antagonismo que transcende as sociedades capitalistas. (2008, p.12-13{grifo nosso}).


Assim, essa conversão, do mito da democracia representativa e da economia capitalista, enquanto finalidade da história humana, no próprio espaço pós-ideológico, acarreta um dos maiores perigos de nosso tempo: a crença tácita na possibilidade e verdade imediata desta ideologia e, em consequência, da subsunção de todo e qualquer tipo de fenômeno que exista ou que possa vir a existir a este pré-julgar ordenador, até mesmo a condenação a priori de toda e qualquer possibilidade utópica de mudança estrutural.



1.4 –Crise utópica e fragmentação das bandeiras dos movimentos sociais.



Comemoramos em novembro de 2014 os vinte e cinco anos da queda do muro de Berlim, marco fundamental da derrocada na divisão geopolítica do mundo em dois grandes blocos, o capitalista e o socialista. Esse evento histórico, datado de 09 de novembro de 1989, amplamente noticiado, serviu na época para a construção de uma das teorias mais fortes e impactantes do pensamento social do fim do século XX e início do XXI, a saber, "o triunfo das ideias do Oeste" e o fim das utopias, como podemos observar na famosa citação de Fukuyama sobre o episódio,


O que nós podemos estar testemunhando é não apenas o fim da Guerra Fria, ou a passagem de um período de história do pós-guerra, mas o fim da história como tal: isto é, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano (1992, p. 11 e 13).



A princípio esta tese – já parcialmente atualizada, mas não rejeitada pelo autor – parece apresentar uma simples constatação, uma vitória da democracia liberal sobre o socialismo soviético. Entretanto, como já discutimos em momentos anteriores, a ideologia que esta tese carrega é o conteúdo emblemático de que nenhuma sociedade que se diga moderna e desenvolvida é legada a possibilidade de que não seja regida por uma economia de mercado e por um sistema democrático representativo: a democracia liberal como o ponto de chegada da epopéia humana. Mas e o que restaria aos insatisfeitos e aos problemas estruturais ainda hoje persistentes, já que se chegamos ao pretenso ápice dos modelos econômico e político?
Bem, aos insatisfeitos sobraria o papel da reforma de dentro deste modelo vencedor. As bandeiras utópicas, de mudanças radicais, devem ser enroladas e guardadas, e a partir de agora promover um esforço sério para amplificação dos direitos de grupos sociais particulares no seio das possibilidades desse sistema hegemônico, que por si só, tem na sua concepção a impossibilidade da igualdade e uma aura excludente. A fragmentação dos movimentos e suas lutas é uma das estratégias das ideologias hegemônicas para impedir a cooperação dos mesmos, e isto se dá, na medida em que alimenta a divisão de interesses no interior dos movimentos em virtude das diferenças existentes no tocante a questões como a da identidade de raça, etnia, gênero, política, língua, orientação sexual e crença religiosa. Isto é visível nos dias de hoje quando se observa características de nossas sociedades, tais como, a diferença salarial existente entre homens e mulheres de mesma qualificação, entre negros e brancos em mesmos postos, bem como os atritos entre a força de trabalho dos países avançados e os imigrantes latinos, africanos e asiáticos, que fez crescer a xenofobia na Europa e nos Estados Unidos – característica tão marcante e presente nas últimas duas décadas. Ou seja, para Harvey (2011, p. 58),

Ao longo de sua história, o capital não foi de maneira nenhuma relutante em explorar, se não promover, fragmentações, e os próprios trabalhadores lutam para definir meios de ação coletiva que muitas vezes se defrontam com os limites das identidades étnicas, religiosas, raciais ou de gênero.


Unidos a este contexto, a abertura do flanco cultural, desde as manifestações de maio de 1968, ajudou a produzir uma reformulação nos movimentos sociais tradicionais, estes agora se dividiram, esfacelaram ou se adaptaram as mais diversas demandas. Como vimos, o combate ao racismo, o feminismo, a luta pelos direitos à homossexualidade e tantos outros movimentos ganharam força com a revolução cultural da década de 60, e, assim, passaram a significar o próprio modelo básico de luta por igualdade dentro do sistema democrático liberal, transferiram parte da universalidade da luta de classes para uma guerra a ser travada, quase que de forma isolada, no âmbito moral, e com características, algumas vezes, de cunho essencialista. Outra problemática dessa questão é, que apesar de seus reconhecidos ganhos pela divulgação e demarcação de posição das necessidades intrínsecas de cada movimento, a fragmentação de bandeiras ajuda a manutenção do status quo vigente, de tal forma que,

(...) a "classe dominante" tolera a "guerra moral" como meio de manter as classes inferiores sob controle, isto é, permite que elas expressem sua fúria sem perturbar o status quo econômico. Isso significa que a guerra cultural é uma guerra de classes deslocada, apesar dos que afirmam que vivemos numa sociedade pós-classes... (ZIZEK, 2011a, p. 39).


Assim, enunciamos os seguintes contextos: 1-um processo de interferência cada vez mais amplificado da esfera econômica na esfera política. 2-a aparente tese da perca de força de cobrança global dos insatisfeitos. 3- a descrença internacional com o sistema representativo partidário. 4- uma separação dos movimentos sociais pela fragmentação das bandeiras. Esses quatro pontos, em paralelo com o mito da democracia liberal como o fim da história e o auge das possibilidades de liberdade humana, pareciam apontar para esse verdadeiro remate da história. Mas a democracia liberal vem sofrendo e distribuindo duros golpes nessas duas primeiras décadas do Século XXI.
O autoritarismo, totalitarismo moderno, o Estado Nação cada vez mais beligerante e a ampliação forçada da democracia liberal imposta pelo, então, presidente George W. Bush, pós 11 de setembro, puseram um fortíssimo sinal de interrogação na crença do progressivo e natural ganho de liberdade humana dentro do seio deste modelo político. Isto porque, ao analisarmos, não só os países do "Eixo do Mal" , que foram devastados em suas fronteiras, tradições e cultura em geral pela "guerra ao terror", e que até agora não conseguiram estabilizar sua situação político-econômica, coadunadas com efeito mais claro em estados beligerantes, a abdicação forçada de parte das liberdades individuais dos seus cidadãos – força motriz e pilar da democracia liberal–, apontam para uma situação do Político posta em segundo pano, em detrimento das promessas futuras de um mundo mais justo e mais democrático pós-guerra e pós restrições das liberdades. Ora, como conviver pacificamente com a limitação progressiva das liberdades em prol de um presente beligerante e um futuro de sonhos que nunca chega?
Surge, então, um abismo prático-teórico, os excluídos ou com poucos direitos encontram-se fragmentados por suas bandeiras que não conseguem aglutinar outros movimentos sociais, dada a sua proeminente particularidade, e o ideal utópico, de um novo modelo econômico-político (que uniu durante anos os movimentos mais diversos), parece estar interditado pela liberdade e desenvolvimento prometidos pela democracia liberal. O que resta ao pensar e ao agir realmente transformador num mundo com cada vez mais muros, separações radicais, conflitos e pobreza estrutural insolúvel? Ou como vaticina Badiou (2012, p.8 {grifo nosso}),

O que restaria aos nossos escrevinhadores dos direitos para fazer o elogio da democracia burguesa como única forma do Bem relativo, eles que só vaticinam contra o totalitarismo acocorados sobre montanhas de vítimas?
(...) É verdade que, nos últimos tempos, ele tem tido mais com que se preocupar. Às voltas com uma crise realmente histórica, depois de duas décadas de prosperidade cinicamente desigualitária, teve de moderar a pretensão "democrática", como já parecia fazer há algum tempo, à custa de muros e arames farpados antiestrangeiros, mídia corrompida e subjugada, prisões superlotadas e leis perversas. É porque tem cada vez menos meios de corromper a clientela local e comprar a distância regimes ferozes, os Mubarak ou os Musharraf, incumbidos de vigiar a manada de pobres.


Por conseguinte, diante deste abismo prático-teórico, os movimentos sociais e pensamentos que tentam entender o contemporâneo já não podem se furtar ao pensar da falácia da democracia liberal como o último sistema possível, já que o mesmo sempre dá sinais claros de esgotamentos e contradições profundas. Por outro lado, esses mesmos movimentos sociais precisam se reinventar, equalizando suas bandeiras sob um leque mais ampliando, visando garantir uma práxis realmente transformadora, e não apenas cuidar de apagar os incêndios que surgem de quando em quando neste sistema que é naturalmente excludente. E para isso, é preciso não só expor as contradições do sistema hegemônico vigente, mas estar conectado as novas formas de interação social como a Internet, fazendo deste espaço de disputa política, equalização de bandeiras dos movimentos sociais anti-sistêmicos e espaço privilegiado para o desejo e o debate sobre o pensamento utópico de que outro mundo completamente diferente é possível.

2- Redes de indignação compartilhadas e o direito a cidade enquanto equalizador das bandeiras dos movimentos sociais.
2.1 – Século XXI, surgimento de movimentos populares anti-sistêmicos, altermundialismo e a esperança de reunificação das bandeiras sociais.

A princípio, antes de qualquer análise, já para explicar o aparecimento da palavra reunificação nos títulos deste subtópico, adotamos essa palavra mesmo sabendo de sua precariedade. Esta possibilidade de reunificação das bandeiras, dada a multiplicidade e até mesmo incongruência definitiva entre lutas dos movimentos sociais, vem para significar um contexto de intenso debate, disputa e análises, visando uma outra visão de mundo possível. Esta reunificação não é nem de longe tácita, a priori e pacífica, mas um campo minado, onde palavras e ações contam muito na formação destas pontes, tantas vezes, provisórias, mas tão poderosas na construção de uma ideia de mudança real. Assim, esta reaproximação dos movimentos, em específicos contextos, aparece para atender um caráter bastante utilitário, junção tática de forças em prol de uma conquista maior ou definitiva. Ou seja, esta reunificação não solapa o conteúdo indenitário próprio de cada movimento, mas equaliza posições em prol de uma ideia que consiga significar um bem comum ou maior.
Dito isto, tentamos até aqui oferecer ao leitor um panorama do esgotamento da ideia de democracia liberal como o modelo último, melhore derradeiro do conceito do Político. Seja pela sua faceta cada vez mais beligerante e violenta – característica fulcral do seu desenvolvimento desde o século XX e a continuação e amplificação desta escalada no século XXI pós 11 de Setembro –, ou pelos diversos efeitos negativos como surgimento e fortalecimento de movimentos de ultradireita radicais, apregoando xenofobias, esgotamento da política centrada na representação partidária tradicional, a degradação ambiental massiva e a questão do limite ecológico, o consumo irracional de recursos não renováveis, crises econômicas globais cada vez mais corriqueiras e profundas, falência do modelo de progressiva desregulamentação dos mercados de capitais pelo advento crise sistêmica do mercado financeiro de 2008 (que gerou a crise mais profunda desde o crack da bolsa de Nova York em 1929), tomada da esfera política pela econômica, limitação das liberdades individuais, dificuldade ulterior na inclusão das minorias no mercado de consumo e capitais, censura e espionagemnão autorizada à internet, muros e grades que se multiplicam nos países e em suas cidades, pobreza estrutural nos países periféricos, ampliação dos dados de concentração de renda nas mãos dos mais ricos, ou por tantos outros motivos que ajudam a significar o conteúdo desse modelo político-econômico como um sistema incapaz de promover uma justiça social. Já que a primeira lição que precisa se aprender é que um capitalismo ético, sem exploração e socialmente justo que beneficie a todos é impossível. Contradiz a própria natureza do capital. (HARVEY, D. 2011, p. 193)
Com esses ingredientes, nas últimas décadas, vimos a proliferação de novos movimentos sociais e modelos de manifestações anti-sistêmicas ao redor do globo. O primeiro momento desses protestos, que colocaram em suspenso a afirmação da democracia liberal como modelo econômico e político mais desejável, é justamente o acontecer dos movimentos antiglobalização em Seattle no ano de 1999, que logo se acomodou na proposta de um intenso debate sobre a quem favoreceria os rumos do fenômeno da globalização.A discussão desse tema logo desembocou no conceito alternativo à globalização, de altermundialismo, plasmado nas grandes discussões do Fórum Social Mundial em 2001.Ou como diz Löwy,

O movimento altermundialista é sem dúvida o fenômeno mais importante de resistência anti-sistêmica do início do século XXI. Esta vasta nebulosa, esta espécie de "movimento dos movimentos", que se manifesta de forma visível por ocasião dos Fóruns Sociais – regionais ou mundiais – e das grandes manifestações de protesto – contra a OMC, o G8 ou a guerra no Iraque – não corresponde às formas habituais da ação social ou política. Grande rede descentralizada, é múltipla, diversa e heterogênea, associando sindicatos operários e movimentos camponeses, ONGs e organizações indígenas, movimentos de mulheres e associações ecológicas, intelectuais e jovens ativistas. Longe de ser uma fraqueza, esta pluralidade é uma das fontes de força, crescimento e expansão do movimento (2008, p1).

Com a abertura destas primeiras manifestações anti-sistêmicas e o surgimento de debates nos fóruns sociais de temas do altermundialismo –que deram suporte teórico para tentativas de transformações nos modelos vigentes –como o fim da discussão para o estabelecimento da ALCA (Área de Livre comércio das Américas), motivos das crises insolúveis e corriqueiras do sistema político econômico vigente, em sua dificuldade essencial de promover justiça social, imposição da cartilha neoliberal em países com dificuldade financeira pelos órgãos financeiros internacionais, unidos àascensão de governos de esquerda na América Latina,preparou o terreno para uma rediscussão forte e séria da fundamentação de novas possibilidades de transformação do Político. Estas transformações culminaram no debate acerca de mecanismos, teorias e conceitos que buscavam uma refundaçãodo status quo vigente, desaguando no efeito real de nascimento de novas Constituições latino-americanas, na Venezuela (1999), Equador (2008) e Bolívia (2009), com efeitos constitucionais anti-hegemônicos como respeito à barreira ecológica, reconhecimento de povos tradicionais e seus domínios territoriais coletivos, Estado Plurinacional, ampliação dos mecanismos de democracia direta, regulamentação democrática das mídias, estímulo forte aos programas sociais de promoção de diversidade e igualdade e pela condução teórica do novo conceito de populismo, proposto por Laclau, que serviu para identificar e dar suporte as articulações anti-hegemônicas nas políticas de mediação à democracia liberal, nos governos de esquerda na América Latina (Venezuela, Bolívia e Equador), quando diz que,

O populismo começa no ponto em que os elementos popular-democráticos se apresentam como opção antagônica face à ideologia do bloco dominante. (LACLAU, 1979, p. 179). O populismo não é, em consequência, expressão do atraso ideológico de uma classe dominada mas, ao contrário, uma expressão do momento em que o poder articulatório desta classe se impõe hegemonicamente sobre o resto da sociedade. Este é o primeiro movimento da dialética entre povo e classe: As classes não podem afirmar sua hegemonia sem articular o povo a seu discurso; e a forma específica desta articulação, no caso de uma classe que, para afirmar sua hegemonia, tem que entrar em confronto com o bloco de poder em seu conjunto, será o populismo (Ibidem, p. 201 {grifo do autor}).


Por conseguinte, apesar das limitações dos efeitos anti-sistêmicos no horizonte latino-americano, principalmente no tocante a reprodução de velhos esquematismos do modelo democrático liberal, tais manifestações anti-sistêmicas, que tem na teoria altermundialista, de considerar as estruturas de governo como um espaço aberto ao qual se devem abrir continuamente pressões com o objetivo de transformar o governo em governança (NEGRI, A. 2005, p. 6), e que até hoje influenciam aspectos transformadores do Político, constituíram-se como um conceito capaz de agregar bandeiras, apesar das críticas,construindo pontes entre centenas e centenas de movimentos sociais diversos em prol da retomada de um ideal comum, a saber, o reestabelecimento da utopia como o impossível/real, no conceito plasmado de "um outro mundo é possível". Ou melhor, dizendo, os fóruns sociais mundiais, a teoria altermundialista e as transformações político constitucionais nos países latino-americanos serviram no mínimo para mostrar que tentativas de pensar o diverso, num mundo onde a falácia do horizonte pós-ideológico impera, não só é possível como necessário. Ou como diz LÖWY ao comentar sobre o Fórum Social Mundial de 2001,

(...): a dimensão utópica do movimento. Ela também é radical: "um outro mundo é possível". Não se trata simplesmente de corrigir os excessos do mundo capitalista/industrial e das suas monstruosas políticas neoliberais, mas de sonhar, e de lutar por uma outra civilização, um outro paradigma econômico e social, uma outra forma de viver juntos no planeta. Além das múltiplas propostas concretas e específicas, o movimento contém uma perspectiva transformadora mais ambiciosa, mais "global", mais universal. Claro, aqui também, perseguiríamos em vão um projeto comum, um programa reformador ou revolucionário consensual. A utopia altermundialista somente se manifesta no compartilhamento de certos valores comuns. São estes que desenham os contornos desse outro "mundo possível" (2008, p.6)


2.2 - Movimentos sociais anti-sistêmicos e era digital.

Em paralelo a estas primeiras tentativas de requalificação do debate político e da busca pela possibilidade de reunificação das bandeiras sociais, o fenômeno da internet e mais atualmente, das redes sociais, disseminavam-se rapidamente pelo mundo como instrumento facilitador desses processos. Atingindo a grande maioria dos países e uma parcela importante de suas populações, sua instantaneidade, os conteúdos quase infinitos de suas expectativas, a liberdade descomunal e a neutralidade ampliada (em comparação com outros meios tradicionais de comunicação), mas não irrestrita, fizeram das Redes espaços privilegiados para equalizar e promover as indignações e esperanças das pessoas e coletivos, que, cansados das eternas promessas de um futuro promissor em troca das violências contra suas liberdades, vislumbravam e difundiam, em escalas cada vez maiores, a ideia de um mundo diferente para o agora. Compartilhando seus temores, esperanças, desejos e sonhos, o espaço da internet foi aos poucos sendo constituído, como este lócus privilegiado para promoção do debate ideológico, renegado por tanto tempo do horizonte social, e as bandeiras individuais sendo, pouco a pouco, transpostas para um aspecto coletivo sempre crescente, na composição da disputa de poder em uma sociedade em rede.
A crítica contundente ao modelo democrático liberal, como espaço ulterior da representação no campo político, e a batalha pela ampliação dos mecanismos de participação nas decisões democráticas, unidas as graves crises que solapam o sistema financeiro global com cada vez mais frequência, em especial a crise financeira global de 2008, que atingiu a maioria dos países do globo e causou uma onda mundial de revolta por onde passou, pela adoção de medidas impopulares para sanar o colapso produzido pelos 1% mais ricos, ajudaram a disseminar estas redes de indignação comuns pelo horizonte digital. Ou como explica Gohn,

Na primeira década desse século, ampliaram-se os movimentos que ultrapassam as fronteiras da nação; são transnacionais, como o movimento altermundialista ou antiglobalização, presente no Fórum Social Mundial, que atuam através de redes conectadas por meios tecnológicos da sociedade da informação. Novíssimos atores entraram em cena, tanto do ponto de vista de propostas que pautam para os temas e problemas sociais da contemporaneidade, como na forma como se organizam, utilizando-se dos meios de comunicação e informação modernos. Preocupam-se com a formação de seus militantes, pela experiência direta, e não tanto com a formação em escolas, com leituras e estudos de textos (2011, p. 338).

Assim, as pautas e lutas dos movimentos sociais, que pareciam tão difusas, algumas flertando até com um caráter essencialista na defesa de suas teses, e que, por conseguinte, os separava de maneira quase definitiva, pareciam encontrar seus pontos de contato e mediação no embate de ideias comuns e multiplicidade da era digital; facilitado pela esperança de constituição deste outro mundo possível, para além das limitações do status quo vigente e no afã de inaugurar, de fato, um novo evento na história. A ideia de evento que aqui utilizamos é da forma como Badiou entende, quando diz que,
Denomino "evento" uma ruptura na disposição normal dos corpos e das linguagens tal como ela existe para uma situação particular (se nos remetemos a O ser e o evento [1988] ou Manifesto pela filosofia [1989]) ou tal como aparece num mundo particular (se nos remetemos a Logiques des mondes [2006] ou Second manifeste pour la philosophie [2009]). O que é importante aqui é notar que um evento não é a realização de uma possibilidade interna à situação ou dependente das leis transcendentais do mundo. Um evento é a criação de novas possibilidades. Situa-se não simplesmente no nível das possibilidades objetivas, mas no nível da possibilidade dos possíveis. O que também pode ser dito: em relação à situação ou ao mundo, um evento abre a possibilidade daquilo que, do estrito ponto de vista da composição dessa situação ou da legalidade desse mundo, é propriamente impossível. Se recordamos que, para Lacan, temos a equação real = impossível, vemos de imediato a dimensão intrinsecamente real do evento. Poderíamos dizer também que um evento é o advindo do real enquanto possível futuro dele mesmo (2012, p. 116).


Esse espaço digital teve o papel fundamental de, não só possibilitar a equalizar de indignações comuns dos movimentos sociais, dada a necessidade de uma luta anti-sistêmica, visando um bem comum e conquistas estruturais e não pontuais, mas de expor o conteúdo ideológico por trás dos papéis sociais das pessoas e instituições do nosso tempo. Ou seja, uma extrapolação do conteúdo ideológico privado ou recôndito para o âmbito coletivo, tornando possível o debate franco e enfretamento, às vezes, não pacífico de ideias. A importância disto, é que os espaços reservados para o debate político, econômico e ideológico como um todo, que foram progressivamente sendo limitados pela privatização dos meios de comunicação de massa e pela falácia de chegada ao melhor mundo possível, não cabendo ao tempo corrido da vida cotidiana a "perca" de tempo com tais discussões, encontra uma nova morada, as Redes Sociais. Alguns Movimentos Sociais, pela divulgação e debate sobre suas pautas e propostas, ou pela iminente necessidade de reação contra as injustiças em âmbito global, uniam-se e espalhavam-se em núcleos revolucionários como que,

(...) por contágio num mundo ligado pela internet sem fio e caracterizado pela difusão rápida, viral, de imagens e ideias. Começaram no sul e no norte, na Tunísia e na Islândia, e de lá a centelha acendeu o fogo numa paisagem social diversificada e devastada pela ambição e manipulação em todos os recantos deste planeta azul. Não foram apenas a pobreza, a crise econômica ou a falta de democracia que causaram essa rebelião multifacetada. Evidentemente, todas essas dolorosas manifestações de uma sociedade injusta e de uma comunidade política não democrática estavam presentes nos protestos. Mas foi basicamente a humilhação provocada pelo cinismo e pela arrogância das pessoas no poder, seja ele financeiro, político ou cultural, que uniram aqueles que transformaram medo em indignação, e indignação em esperança de uma humanidade melhor. Uma humanidade que tinha de ser reconstruída a partir do zero, escapando das múltiplas armadilhas ideológicas e institucionais que tinham levado inúmeras vezes a becos sem saída, forjando um novo caminho, à medida que o percorria. Era a busca de dignidade em meio ao sofrimento da humilhação – temas recorrentes na maioria dos movimentos (CASTELLS, M. 2013, p.9-10)


Talvez a mais emblemática manifestação de indignações coletivas em Redes Sociais, que desaguou em um protesto global, e que até hoje é modelo para movimentos sociais e suas formas de ocupação e luta, seja o movimento Occupy Wall Street. Surgido do interior da crise financeira de 2008, que trouxe uma infinidade de problemas sociais a todo o globo – que até hoje não conseguiu recuperar a curva do crescimento do PIB global –, pessoas dos mais diferentes grupos e estratos econômicos uniram-se para protestar contra a quebradeira geral promovida pelo mercado de capitais, fruto da frouxidão da regulação estatal na fiscalização das operações financeiras cíclicas relativas ao mercado de hipotecas no Estados Unidos. A alusão do governo americano em utilizar do dinheiro dos impostos dos cidadãos para salvar os megainvestidores, os mesmos que promoveram a crise, foi o estopim para criação desta rede de indignação digital. Em pouco tempo, esse aspecto virtual, de construção de indignações comuns, materializou-se na ocupação de ruas e praças em torno de Wall Street (coração financeiro do sistema de circulação de capitais), por pessoas que passaram a conviver e morar nos espaços públicos, criando um ambiente coletivo alternativo, onde o debate de ideias e ressignificação dos espaços públicos eram o mote central. Ou seja, uma utopia real, no âmago do sistema hegemônico nos nossos dias, um Quilombo de Palmares na época de escravidão.
Esse protesto, que teve como pautas a ampliação da justiça social, de mecanismos mais aprimorados de participação na democracia, de crítica às desigualdades estruturais do sistema financeiro global, de denúncia da violência crescente nesses primeiros anos de Século XXI e tantas outras pautas, ganhou um caráter global sendo replicado de diferentes formas e conteúdos em mais de 951 cidades e 82 países. ZIZEK, na leitura do seu manifesto para os ocupantes de Wall Street sintetiza a mensagem básica do movimento quando diz que,

Nossa mensagem básica é: o tabu já foi rompido, não vivemos no melhor mundo possível, temos a permissão e a obrigação de pensar em alternativas. Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo teremos de enfrentar questões realmente difíceis – questões não sobre aquilo que não queremos, mas sobre aquilo que QUEREMOS. Qual organização social pode substituir o Capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem (2011b)


Estes novos movimentos sociais, com fortes bases fincadas no mundo digital, também ganharamas ruas também no mundo Árabe, principalmente na Tunísia (2010), Egito (2011), Líbia (2011) e Síria (2011), que enfrentaram enormes manifestações, conclamadas pelas redes sociais, reivindicando mudanças na forma de governo destes países e lutando contra as sérias restrições às liberdades e condições econômicas de seus cidadãos. Estas manifestações ficaram conhecidas como a Primavera Árabe, que conseguiu, entre outros feitos, mudanças nos sistemas de governo, deposição de presidentes, reformas democráticas, melhorias nas condições sociais, etc. Este exemplo é importante já que depois de pelo menos duas décadas de silencio no seio da democracia liberal, pessoas das mais diferentes ideologias e nacionalidades passaram a se unir por um projeto comum de luta pela modificação do campo político, e, em um curtíssimo espaço de tempo, o mundo Árabe, assim como os países assolados pelo Occupy e seus efeitos globais, foram lançados à convulsão social, tornado a indignação de alguns na indignação de muitos, servindo de referência para outros tantos movimentos dos últimos anos.
Ademais, a característica histórica dos movimentos sociais, de crítica ao status quo vigente, constituição de novos valores, defesa de ideais ainda não legitimados pela maioria e anunciação de possíveis caminhos a se seguir no processo de evolução dos direitos sociais, encontrou na internet um espaço privilegiado para sua reorganização, após os duros golpes que transformaram suas constituições nas últimas décadas do século XX. O espaço de disputa, ainda em aberto, das Redes Sociais torna-se um local privilegiado para exposição das novidades que estes movimentos tendem a carregar, exercendo de forma quase que imediata seu papel de ser um poder contra hegemônico a disposição dos cidadãos/internautas. Visando, quase sempre, a transposição do conteúdo das reinvindicações digitais para o âmbito da efetividade material na reconfiguração do espaço das cidades, este novo reduto para as lutas anti-sistêmicas.


2.3 – A luta pelo direito à cidade como trincheira nas batalhas anti-sistêmicas.

É pacífico que o sistema econômico capitalista se baseia no processo ininterrupto de acumulação de capitais e reinvestimento destes visando ampliação do lucro, e, por isso, precisa continuamente de novas fronteiras e espaços para sua continua reprodução. Na última metade do século XX e nesse início de século XXI, percebemos uma nova dinâmica para a reprodução do Capitalismo em escala global, a construção da cidade-mercadoria que, sob a égide do poder político dos governos locais, perfila-se através dos processos de reestruturação urbana (como exigência da economia competitiva) e através da construção de imagem para vendê-la, para inseri-la no mercado (SANCHEZ. Fernanda 2001, p.33). Ou seja, esta nova faceta do Capitalismo globalizado encontra-se plasmada na transformação dos núcleos urbanos e da ordenação de sua produção enquanto mercadoria. Para tanto, a rentabilidade e competitividade desta tem que seguir o princípio do menor custo para maximização do lucro para o aporte do capital financeiro.
Logo, esse processo de urbanização em escala global atinge milhares de cidades ao redor mundo, o aporte de capitais excedentes encontrou um novo destino, a construção e reconstrução das cidades, com o único intuito de tornar material o dinheiro oriundo do capital especulativo, impulsionando a própria reprodução desta faceta do Capitalismo global. China, Índia, Brasil, Estados Unidos e tantos outros países passam por este processo de urbanização capitalista de suas cidades e os efeitos são sentidos a todo instante, com grandes obras de impacto descomunal, condomínios de luxo em reservas florestais ou em centros históricos, megaeventos e sua espetacularização que transformam por completo grandes áreas de cidades sede, financiamento ostensivo de do mercado imobiliário e de hipotecas, despejo de comunidades pobres de áreas de interesse financeiro, favelização dos subúrbios, gentrificação dos centros urbanos e tantos outros efeitos desse novo processo global de urbanização capitalista.
Desta forma, a primeira implicação desta relação é que o conceito de cidade encontra-se em processo de ressignificação. O antigo conceito de ambiente a ser construído pelos desejos dos cidadãos, através do embate político, parece relegado a uma esfera de menor importância, pela, como vimos, interferência e centralidade da esfera econômica sobre a política na democracia liberal. Na Grécia antiga a Pólis era significante do termo cidade e esta era,

(...) uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam a algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas e que inclui todas as outras tem mais que todas este objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política. (ARISTÓTELES, 1989, L. I, cap. I, 125 a, p.12).
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Analisamos aqui que na Grécia antiga, a cidade se constituía visando um fim específico: o supremo bem das comunidades que a compunham. Este princípio ético norteava o jogo político entre os cidadãos, que não podiam se furtar ao dever de realizar o bem comum para os seus concidadãos. Mostra-se, assim, uma clara diferença entre um modelo de sociedade onde a esfera política foi soberana e, hoje, onde esta se encontra subjugada aos desmandos do capital. A situação hoje é que a cooptação do Político pelo o econômico, transformou nossas cidades em realizadores dos interesses privados, geralmente das pessoas, empresas e grupos que detém o poder financeiro. O investimento público, a ordem de prioridade na aplicação destes recursos e os ditames sobre as leis e formas de urbanização das cidades, são decididos de forma quase que independente da vontade da população, os grandes conglomerados econômicos, que financiam a própria égide desse jogo político-partidário na democracia liberal, detém um forte poder de influenciar o destino desses, retroalimentando, assim, a dependência do político pelo econômico. Vivemos, afinal, num mundo em que os direitos da propriedade privada e a taxa de lucro superam todas as outras noções de direito (HARVEY, D. 2013b, p.1). Este modelo de cidade responde a uma versão tecnocrática da sociedade que esvazia a dimensão política do Estado, subsumindo as demandas sociais na esfera técnica (OLIVEIRA, F. L., 1999, p. 150).
O processo recente de urbanização das cidades acarretou alterações intensas nos modos de viver e da qualidade de se viver nestes ambientes. Estes conceitos foram substituídos pela valoração monetária dos modos possíveis de existência no interior destas. O céu é quase que o limite para aqueles que possuem o poder financeiro. Há por todas as capitais mundiais, e, mais recentemente, em um processo de interiorização pelos grotões mais distantes dos países, a disseminação de grandes shoppings, lojas padronizadas, baseadas em franquias internacionais, lanchonetes fast food e toda uma estrutura pública voltada para levar os consumidores para estes locais. Cria-se uma forma de padronização dos modelos de constituição das cidades, pela forma de obtenção de lucros mais fáceis e facilitando, como um todo, a circulação de capitais, destino último desse modelo de urbanização. Os espaços públicos de convivência são legados ao mero caráter pontual, uma benesse do Estado ou da iniciativa privada, para adornar com a alcunha de socialmente/ambientalmente responsável suas obras de impacto profundo. E aqui nos deparamos com horizonte de pessoas excluídas deste processo de consumo destas mercadorias padronizadas de médio-alto luxo e deste modelo classista de urbanização capitalista das cidades, como fica, então, esta parcela importante da população que não consegue ou se recusa a se adequar a este modelo de cidade para poucos?
O legado sentido desse caráter mercadoria das cidades hoje é o processo escalonado de ampliação da desigualdade social. Apenas uma pequena parte da população está a se beneficiar do aporte de capitais na reconstrução das cidades pelo modelo dessa urbanização global. Os mais ricos, apenas uma pequena parcela da população, tiveram nos últimos tempos – desculpem o trocadilho – ótimos tempos. Praticamente toda grande obra seja ela pública, privada, ou parceria público-privada, veio para nutrir o afã desta parcela da população, legando à exclusão a grande maioria das pessoas. Os processos excludentes tornam-se cada vez mais óbvios mais óbvios e o caráter autoritário e violento do Estado – parceiro quase que passivo e dependente do financiamento privado – precisa surgir sempre mais forte para conter os ânimos continuamente acirrados da massa crescente dos excluídos. Isto porque,

(...)uma conclusão clara surge desde agora: é ilusório pensar que existem, na estrutura de crescimento moderno, ou nas leis da economia de mercado, forças de convergência que conduzam naturalmente a uma redução da desigualdade da riqueza ou a uma estabilização harmoniosa (PIKETTY, 2014, p. 367).

Assim, com essa crescente massa de excluídos, a impossibilidade do modelo político-econômico em promover justiça social, a negação programática do uso e direito às cidades pela maioria das pessoas e o aumento do aparato policial e da sua forma violenta de repressão econômico-política-ideológica, transformam o ambiente urbano, hoje, num espaço privilegiado para o nascimento de núcleos de resistência anti-sistêmica. A luta pelo direito à cidade é, pois, uma trincheira fundamental no processo dereunificação de bandeiras sociais, a massa dos excluídos urbanos, mobiliza-se de forma mais intensa a cada novo golpe, pelos desmandos do capital financeiro em sua necessidade contínua de reprodução e expansão, contra seusdireitos garantidos e as formas as cidades estão sendo transformadas de maneiras extremamente segregadoras. A progressiva negação dos direitos às grandes massas consegue aglutinar, algumas vezes, pautas difusas sobre a bandeira de reconquista da cidade, já que a cidade é para o ser humano o seu habitat, a sua morada. O direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade (HARVEY, D. 2013, p.1).
Por conseguinte, o direito coletivo à cidade e suas formas de produção é uma grande utopia que move os núcleos de resistência no interior destes centros urbanos. Esta utopiaconfigura-se como uma força motriz capaz de transpor o campo das ideias para a materialidade fática da práxis, já é possível hoje pensa modelos de ocupação e resistência urbana que recolocaram o jogo de forças em suspenso, fundando novas possibilidades, no direito e ao uso da cidade e das formas políticas que conduzem essas cidades. Ou seja, os movimentos sociais devem sair da aparente estrutura básica da crítica,para retomar o que historicamente foi seu papel e,

(...) construir um espaço público, criando comunidades livres no espaço urbano. Uma vez que o espaço público institucional – o espaço constitucionalmente designado para a deliberação - está ocupado pelos interesses das elites dominantes e suas redes, os movimentos sociais precisam abrir um novo espaço público que não se limite à internet, mas se torne visível nos lugares da vida social. É por isso que ocupam o espaço urbano e os prédios simbólicos. Os espaços ocupados têm desempenhado papel importante na história da mudança social, assim como na prática contemporânea, (...) (CASTELLS, M. 2012, p. 14-15)


Assim como a internet, a causa do direito à cidade funciona hoje como possibilidade ordenadora de demandas na diversidade estrutural dos movimentos sociais. Equalizar, num mesmo lócus, feministas, movimento negro, movimento LGBTS, movimento indígena, moradores sem teto e tantas outras grandes forças sociais, é uma tarefa que não podemos nos furtar, para conseguir de fato pensar e oferecer uma opção verdadeira ao sistema econômico-político da democracia liberal. A luta contra a cidade-mercadoria é eminentemente uma luta anti-sistêmica, já que esta é modelo central no atual dispositivo de reprodução da dinâmica do capital. Lutar de forma anti-sistêmica, com reais possibilidades de mudança ante o poderio hegemônico, cobra dos movimentos sociais anti-sistêmicos a ressignificação do conceito de luta de classes, a adoção da bandeira anticapitalista como possibilidade de bem comum e a,

(...) unificação dessas lutas e adoção do direito à cidade, como slogan e como ideal político, precisamente porque ele levanta a questão de quem comanda a relação entre a urbanização e o sistema econômico. A democratização desse direito e a construção de um amplo movimento social para fazer valer a sua vontade são imperativas para que os despossuídos possam retomar o controle que por tanto tempo lhes foi negado e instituir novas formas de urbanização. Lefebvre estava certo ao insistir em que a revolução tem de ser urbana, no sentido mais amplo do termo; do contrário, não será nada (HARVEY, D. 2013a, p.49).

3- Considerações Finais

Este artigo partiu de um miradouro bem delimitado, a concepção, necessariamente anti-hegemônica e anti-sistêmica, de demarcar a democracia liberal como uma ideia realizada historicamente no campo político-econômico e não o seu thelos. Ou seja, este é um texto que flertou com a possibilidade, não de abolição, mas de superação dialética desta ideia, seja no campo teórico, por suas crises inerentes, ou pelas práticas transformadoras dos novos movimentos sociais. Além disto, adotamos aqui, um alinhamento com as correntes do pensamento e das práticas ligadas à esquerda contemporânea.
No nosso tempo, os ideais questionadores das raízes e problemas estruturais da democracia liberal encontram-se imbricados ao varal de fracassos dos outros modelos políticos derrotados no Século XX, principalmente ao socialismo soviético. Portanto, o pensamento questionador das principais estruturas do tempo presente, e, por conseguinte, contra o modelo hegemônico, já nasce com essa espécie de fracasso iminente, por estar, de diferentes formas, a ideologias e modelos históricos que fracassaram rotundamente. Levantando-se, pois, sempre as perguntas: Porque, então, questionar um sistema que saiu vencedor das mais duras batalhas? Porque não imprimir força de ação simplesmente para melhorar e reduzir as desigualdades no seio desse sistema vencedor?
Bem, "Se o capitalismo é assim tão melhor do que o socialismo, por que nossa vida continua péssima?". Essa pergunta do Zizek é extremamente importante, justamente porque ela expõe a circularidade da resposta presente nessetipo de argumentação que naturaliza o sistema atual, aproximando nosso cotidiano de um lócus pós-ideológico ou pós-utópico. Ou seja, o que garante que a supremacia histórica do capitalismo e sua congênere, a democracia representativa, torne este modelo o último e melhor, mesmo gerando tantas contradições e miséria? A única resposta possível, neste contexto, é a falácia da circularidade em dizer que: ele saiu vencedor da batalha com os outros sistemas concorrentes. Desta forma, as contradições inerentes do modelo hegemônico não entram na cota para a construção da resposta. O ideal transformador é, então, substituído por um ideal reformador, pois, como já vivemos no melhor dos sistemas, cabe a nós uma lutano interior deste para amenizar seus efeitos negativos e não para modificá-lo essencialmente. O sistema político econômico encontra-se, então, não só no campo do domínio da hegemonia, mas no perigoso campo da naturalização desta ideia.
Assim, nosso tempo anuncia a mentira que as utopias e ideologias morreram, cabe agora ao viver o tempo presente. Não há mais espaço para a sua reinvenção estrutural, e sua possibilidade transformadora parece impossibilitada pela falta de um ideal de futuro, uma utopia. Essa espécie de eterno presente, pela aparente chegada ao ápice da forma de existir humana, retira dos sujeitos a capacidade de viver inebriado pela ideiadeum modo totalmente outro de existir – motor das transformações sociais mais radicais. Além do mais, esse contexto, configura-se na falácia do mundo pós-ideológico, em seu retumbante sucesso, de, apesar de ser uma ideologia, taxativamente alardeia que vivemos num horizonte pós-ideológico. Essa realidade é chave de leitura para os componentes própriosdo esvaziamento da esfera política, isto porque, o horizonte político nesta situação aparece como um espaço a ser ocupado mais por um gestor, um técnico do que um criador de soluções para resolver problemas estruturais. Fórmula bem condizente com a característica de interferência categórica da esfera econômica na esfera política na democracia liberal.
Por conseguinte, esta ideologia, da democracia liberal como thelos, apresenta-se como pensamento global e estruturante. Representando um papel proeminente na configuração e manutenção desta ideologia como hegemônica, ao ponto de possibilitar a sua caracterização como não ideológica. Isto porque, para a manutenção deste processo de naturalização do sistema hegemônico, a retórica do medo, de que se voltarmos a era de sonhar com uma outra realidade possível, provavelmente cairemos, mais uma vez, em sistemas totalitários, violentos e que historicamente falharam. O medo de perder o já conquistado interdita o caminho para se sonhar livremente com a utopia de um novo e melhor mundo possível.
Assim, se o medo aparece como o legitimador de um estado de coisas, ao invés das suas próprias benesses, é necessário, na outra ponta dessa ideologia, uma poderosa força para manter os sujeitos insatisfeitos no interior desta ideia, e esta força é a violência. No decorrer do artigo, tentamos mostrar algumas deficiências e contradições da democracia liberal em promover justiça social, neste modelo a massa de excluídos não se refere apenas a sua inserção no mercado de consumo, mas nos próprios direitos fundamentais, que são alienados pelo sobrepujar de leis como propriedade privada e respeito aos contratos – fundamentos últimos e inquestionáveis do status quo vigente. Ou seja, para manter uma realidade por si só excludente, hierarquizada, sedimentada na impossibilidade da igualdade e num processo predatório de contínua acumulação de capitais, a violência – em seus muros, grades, apartheid, câmeras, favelas, condomínios de luxo, etc. – surge como efeito necessário para manutenção da causa. Já que a própria substância da violência é regida pela categoria meio/objetivo cuja mais importante característica, se aplicada às atividades humanas, foi sempre a de que os fins correm o perigo de serem dominados pelos meios, que justificam e que são necessários para alcançá-los (ARENDT, h. 2004, p.4).
Desta forma, pelo medo e pela violência, que os excluídos ou insatisfeitos são conduzidos hoje ao não pensar de que estão trilhando um caminho impossível. Não há como compatibilizar ad infinitum uma demanda perene do Sistema que necessita de ampliação dos mercados, fronteiras econômicas e um processo contínuo de acumulação e emprego de capitais, com os limites factuais dessa expansão global. Nesse ponto Zizek é taxativo,

(...) o sistema capitalista global aproxima-se de um ponto zero apocalíptico. Seus "quatro cavaleiros do Apocalipse" são a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta vindoura por matéria-prima, comida e água) e o crescimento explosivo das divisões e exclusões sociais (2012, p.11-12).

É preciso, pois, pensar hoje coisas que voltem a chocar esse sistema. Daí talvez a estranha sensação de que nossa primeira tarefa consiste em acelerar o desabamento. Mesmo que estejamos numa situação histórica que se sustenta exatamente por ser um desabamento em forma de mercadoria (SAFATLE, 2008, p. 204). Isso, porque, precisamos inaugurar o novo, sair da apatia do domínio do mesmo e partir para o pensamento que possibilite a transformação da práxis. As ideias reaparecem no momento em que as expectativas estão zeradas. Reconstruir o modo de pensar e agir transformador parece ser o papel central das nossas ações.
Outra questão importante, é que sehoje estamos vendo alguma prática transformadora elas vêm acontecendo para além da forma partidária tradicional. Ninguém que deseje uma outra forma de existir quer ter suas causas atreladas pacificamente ao jogo político partidário, dado seu esgotamento e conjunção quase que sintomática aos desmandos do capital financeiro. As novas experiências partidárias, que buscam de alguma forma reverter essa lógica hegemônica, como nos partidos de governos de esquerda latino americanos e europeus (PSUV [Venezuela], Alianza PAIS [Equador], MAS [Bolívia], o Podemos (Espanha), o Syriza (Grécia) Partido Pirata (Europa), entre outros não são necessariamente novos partidos no conceito tradicional, mas frentes amplas eaté mesmo contraditórias internamente, em resposta para um momento específico de incertezas, desigualdades e manifestações. A força destes, reside, então, na capacidade de gerar convergências na condução das demandas criadas pelos movimentos sociais mais diversos, que os incitam a representar possíveis mudanças estruturais.
Os movimentos sociais sempre apareceram como a força construtora de novas demandas, ideias, desejos, práticas, perspectivas voltadas para a transformação das condições materiais de existência e impelindo a sociedade e suas instituições à mudança. Ou seja, os movimentos sociais de esquerda devem agir como este contrapoder para que suas demandas passem a significar novas possibilidades para transformação fática das sociedades. Para tanto, é preciso que estes construam espaços autônomos da institucionalidade existente, para que de fato dialoguem com os novos meios e exigências do seu tempo. Pensando hoje, os movimentos sociais transformadores têm ao menos 4 (quatro) contextos para mediar na construção de suas propostas: 1 – A naturalização de um modelo econômico-político que traz em sua matriz a impossibilidade de justiça social universalizada. 2 – Necessidade de equalização e junção de forças com outros movimentos para a construção de um efetivo modelo de transformação, ou, como queira, passagem da forma de reformas negociadas para o tom da refundação. 3 – O fenômeno da Internet, as redes sociais e a democratização das mídias e do saber como espaço privilegiado de organização, subjetivação, luta social, aglutinação de bandeiras e trocas informacionais. 4 - O direito à cidade como uma possibilidade viável de equalização de bandeiras dos movimentos, promovendo uma união tática para promoção deste bem comum.
Assim sendo, no nosso modo de entender, só é possível ir para além da pergunta Com uma esquerda como essa quem precisa de direita? (ZIZEK, 2011c, p.74), através da força criadora dos movimentos sociais autônomos. As contradições do sistema democrático liberal começam a ser desmistificados, e, sua aparente perenidade, solapada pelo desmascarar e efeitos nocivos de suas estratégias de medo, violência, Estado beligerante e repressor. A insatisfação política se arvora mais fortemente a cada dia com a incapacidade de representação do sistema político partidário, coadunado com tomada da esfera política pela econômica. Ainda, a insatisfação econômica é latente com a impossibilidade do sistema capitalista em findar a miséria e combater as injustiças sociais de forma definitiva. De outro ponto, os limites ecológicos e o colapso ambiental iminente nos cobram ação, ante o turning point que já ultrapassamos. Eaté mesmo nossas cidades se encontram subjugadas, não as nossas vontades, mas as necessidades próprias da reprodução da dinâmica do Capital.
No passado sabíamos exatamente o que fazer e era uma questão de maturação histórica. Era uma realização da ideia de liberdade plasmada na ideia de comunismo. Hoje não temos a menor ideia do passo definitivo a dar, mas temos que fazer algo para não sermos lançados ao limbo a que nos leva esse sistema. Precisamos agir para que o mundo não se desfaça como em colapso, ou seja, é preciso justamente uma articulação e difusão das contradições do modelo hegemônico para, primeiramente, fazer o mito de o único sistema possível desabar, e, então, abrir espaço para que o pensamento utópico retorne, como uma ideia que alimente às práxis transformadoras. O caminho não é fácil, dada a quase que onipresença do modelo hegemônico, mas toda transformação ao longo da história teve seu conteúdo traumático. O que não nos é permitido é continuarmos estagnados, num aparente luto pelo fim dos modelos concorrentes, padecendo de progressivas limitações sérias à nossa liberdade, em prol de um futuro perfeito e belo, que promete a democracia liberal, mas que nunca chega.


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