Sociologia urbana, cidades globais e cidades pós-coloniais africanas

May 27, 2017 | Autor: Redy Wilson Lima | Categoria: Urban Sociology, Cities and globalization/Global cities, Post-colonial Cities
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Sociologia urbana, cidades globais e cidades pós-coloniais africanas1

Redy Wilson Lima*

Resumo: A sociologia urbana é uma linha de investigação situada no âmbito das disciplinas sociológicas e tem como elemento de particularidade interessar-se pelas cidades nos seus aspectos sociais. A esses aspectos referem-se ao comportamento das pessoas que compõem a população urbana, às relações que estabelecem entre si, à formação de grupos sociais, movimentos, instituições, organizações, às ligações de complementaridade ou de competição existentes entre as entidades que a compõem e à configuração da própria cidade como sistema social. É propósito deste artigo abordar os principais contributos sociológicos no estudo das cidades ao longo da história e reflectir sobre a emergência do estudo pós-colonial das cidades africanas. Palavras-chave: sociologia urbana, cidades globais, cidades pós-coloniais Abstract: The urban sociology is a research line situated within the sociological disciplines and has the element of particularity become interested in cities in their social aspects. To those aspects refer to the behavior of people that compose the urban population, the relationships established between them, the formation of social groups, movements, institutions, organizations, links to complementary or of existing competition among entities that compose it and the configuration of the city itself as a social system. It is the purpose of this paper to address the major sociological contributions to the study of cities throughout history and reflect on the emergence of post-colonial study of African cities. Keywords: urban sociology, global cities, post-colonial cities I. Introdução. Delimitação teórica e objecto de estudo da sociologia urbana Delimitar teoricamente um campo de análise como uma cidade torna-se uma tarefa complicada. Se antes da revolução industrial, tomando os casos das cidades antigas e medievais como exemplo, ela era facilmente identificável, visto que era separada do espaço rural por muralhas ou fortificações, os processos de industrialização e globalização vieram complexificar o seu entendimento. Portanto, face à dificuldade em encerrar a sociologia urbana dentro de limites certos, para uma maior compreensão dos fenómenos urbanos, há que concedê-lo um carácter interdisciplinar2.

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Lima, R.W. (2016). "Sociologia urbana, cidades globais e cidades pós-coloniais africanas". Revista Cabo-Verdiana de Ciências Jurídicas e Sociais, ano 1, n. 1, p. 91-112. Praia: ISCJS. * Professor assistente convidado do ISCJS, investigador colaborador do CEsA/ISEG-ULisboa, investigador associado ao Núcleo de Antropologia Visual da Baía e Doutorando em Estudos Urbanos integrado no CICS.NOVA. 2 Manuel Castells, Problemas de investigação em sociologia urbana, Lisboa, Editorial Presença, 1984.

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Interrogando se existe mesmo uma sociologia urbana, Castells engloba os trabalhos sociológicos denominados de urbanos em três categorias3 com a finalidade de mostrar que apesar de haver vários estudos denominados urbanos dispersos por vários ramos do saber, não existe uma abundância de estudos sociológicos sobre o assunto. Portanto, para este autor, o que existe são manuais e compilações sobre a vida urbana, que se transformam, de facto, em tratados sobre os processos sociais em geral, uns sob a forma de uma exposição sistemática da ‘realidade social’ codificada, seguindo as categorias funcionalistas clássicas, e voltando-se outros para a perspectiva historicista da evolução social. A facilidade com que eles apresentam a passagem da ‘sociedade urbana’ para a ‘sociedade global’ ilustra bastante bem, de um outro ponto de vista, a desaparição da sociologia urbana enquanto objecto autónomo de investigação; a identificação deste objecto com a sociedade urbana leva-nos, por conseguinte, a considerar a sociedade (sem adjectivos) como seu campo de estudo4.

Com esta afirmação Castells chama a atenção para aquilo que chama de crise intelectual da sociologia urbana, visto que ao se fazer desaparecer a cidade, enquanto unidade social autónoma, simultaneamente está-se a fazer desaparecer a sociologia urbana, enquanto corpo teórico com capacidade de análise. Defende que “uma ciência define-se primordialmente pela existência de um objecto teórico, que lhe é próprio, suscitado pela necessidade social de conhecer uma determinada parcela da realidade concreta”5. Logo, uma ciência que não tenha um objecto teórico próprio nem objecto real específico carecerá de existência institucional para poder ser reconhecida como produtora de conhecimento. Como forma de expor as falhas teóricas da Escola de Chicago, pega no conceito que serve de ponto de partida da sociologia urbana, o da cultura urbana, e desmonta-o. Para Wirth6, cultura urbana corresponde a um sistema específico de normas ou valores que representam uma expressão de formas determinadas de actividade e organizações sociais, caracterizada por interacções diferenciadas, isolamento social e pessoal, relações sociais marcadas pela superficialidade e utilitarismo, especialização funcional e divisão do trabalho, espírito de competição, grande mobilidade, economia de mercado, predomínio das relações secundárias sobre as primeiras, passagem da 3

Primeiro; os que tratam do processo global de organização, de perspectiva exclusivamente demográfica; segundo; as investigações sobre desorganização social e aculturação na lógica da Escola de Chicago; e por fim, a tradição dos community studies desenvolvidas tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos. 4 Manuel Castells, Problemas de investigação em sociologia urbana, pp. 25-26. 5 Ibid., p. 53. 6 Louis Wirth, “Urbanism as a way of life”, The American journal of sociology, v. 44, n. 1, 1938, pp. 124.

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comunidade à associação, demissão do indivíduo em relação às organizações, controlo da política pelas associações de massa, etc. A partir dessa conceptualização, Castells afirma que aquilo que se diz ser uma definição teórica da cultura urbana não é outra coisa senão um tipo sociocultural correspondente à chamada sociedade de massa. Para esse autor, os primeiros sociólogos urbanos na busca das definições que explicassem fenómenos que emergiram nas cidades, substituíram essa busca pela implementação de um adjectivo globalizante, a cultura urbana, que apenas designa o lugar em que esses novos fenómenos nasceram e desenvolveram. A seu ver, este ponto de vista torna a sociologia urbana ideológica, isto porque, por um lado, ao considerar a cultura urbana como um objecto teórico autónomo, limitando-a à cultura própria da sociedade capitalista liberal, o que se quer pressupor é que “todas as sociedades tendem a ser semelhantes a ela à medida que se vão desenvolvendo, sem ter em conta certas diferenças secundárias como, por exemplo, as que dizem respeito ao sistema económico”7. Por outro lado, pegando na questão da integração social, mostra que ao estudá-la no quadro de uma cultura dada (no caso, de uma cultura produzida pela industrialização capitalista), a sua margem de manobra torna-se inevitavelmente bastante precária do ponto de vista teórico. A Escola de Chicago, de acordo com o autor, da forma como conceptualizou o fenómeno urbano, fez da sociologia urbana uma sociologia da sociedade ocidental, na medida em que identificou a urbanização com a modernização e, por conseguinte, com a ocidentalização. II. Os caminhos da sociologia urbana (I): da Escola de Chicago à ‘nova sociologia urbana’ Savage & Warde8 advogam que apesar dos considerados pais da sociologia – Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim – não sejam tomados como sociólogos urbanos, o facto de terem debruçado sobre temas que podem vagamente serem chamados de problemas urbanos, transforma o início do século XX na época dourada da sociologia urbana. Contudo, Castells, reconhecendo a importância destes clássicos no desenvolvimento dessa subdisciplina, uma vez que na análise da industrialização 7 8

Manuel Castells, Problemas de investigação em sociologia urbana, p. 62. Mike Savage & Alan Warde, Urban sociology, capitalism and modernity, London, McMillan, 1993.

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tiveram de tomar em consideração o fenómeno urbano e tenham insistido no papel das cidades nesse processo, defende que só se poderá falar de uma teoria sociológica, especificamente aplicável à cidade a partir da publicação dos estudos dos sociólogos da Escola de Chicago, mais concretamente depois da publicação em 1925 da obra The City, da autoria de Robert Park, Ernest Burgess e Roderick McKenzie. Park9, cujo objectivo principal foi constituir a cidade como objecto de estudo da sociologia, considera-a como sendo, para além de uma unidade geográfica e ecológica, uma unidade económica, na medida em que a sua organização é baseada na divisão do trabalho. Visto ela ser um espaço de natureza humana, isto porque resulta do esforço conjunto das pessoas que a compõem, o autor defende que na cidade se produz um tipo peculiar de cultura. Com este argumento, para Savage & Warde, Park estabelece uma agenda de pesquisa exaustiva para a sociologia urbana e a etnografia – vertente de investigação privilegiada dessa escola – desenvolvida pelos seus colegas e alunos sobre vários aspectos da vida de Chicago, o que serviu para que muitas das questões levantadas por ele fossem posteriormente respondidas. Castells resume os primeiros textos da sociologia urbana utilizando dois termos: urbanismo e urbanização. Ressalva que “urbanismo como modo de vida (as a way of life), urbanização como processo organizado a partir de um modelo (pattern) de interacção entre o homem e o meio, tal é, em termos sociológicos, o objecto real do que foi e do que continua a ser ainda a sociologia urbana”10. Institucionalmente considera que a sociologia urbana americana conheceu duas autênticas idades de ouro11. Entretanto, apesar da pujança inicial da sociologia urbana, a transformação teórica ocorrida na sociologia depois da segunda metade dos anos de 1930, sobretudo após o lançamento das obras The Structure of Social Action (1937) e The Social System (1951), ambas da autoria de Talcott Parsons, fez deslocar o foco da sua análise, uma vez que se começou a preocupar mais com as questões teóricas de ordem social, diminuindo o interesse nas questões empíricas à volta dos problemas urbanos. 9

Robert Ezra Park, “The city: suggestions for the investigation of human behaviour in the human environment” in: Robert Ezra Park; Ernest Burgess & Roderick D. McKenzie (Eds.), The City, Chicago, University of Chicago Press, 1925, pp. 1-46. 10 Manuel Castells, Problemas de investigação em sociologia urbana, p. 27. 11 Primeiro; o período entre as duas grandes guerras mundiais com os estudos produzidos pela Escola de Chicago sobre os mecanismos de integração e desorganização sociais nas grandes cidades e segundo; o período imediatamente a seguir à Segunda Guerra Mundial, com a produção de trabalhos sobre os fenómenos de difusão urbana e de constituição de regiões metropolitanas interdependentes e hierarquizadas pela Escola de Michigan.

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Se para Savage & Warde foi essa a situação que contribuiu para o declínio momentâneo da sociologia urbana americana, para Castells a razão por detrás do progressivo distanciamento entre a sociologia e o tratamento dos problemas urbanos deve-se, por um lado, à transformação das sociedades industriais quase inteiramente em sociedades urbanas, levando a sociologia urbana a converter-se em sociologia geral e, por outro, pelo facto de que os problemas urbanos deixaram de ser problemas de integração, uma vez que foram substituídos por problemas de gestão do sistema. Estavase, por conseguinte, a passar do paradigma da reforma social para o paradigma do planeamento urbano. Em relação à sociologia urbana produzida na Europa, Savage & Warde afirmam que esta foi relegada para segundo plano, tendo em conta que a sociologia europeia privilegiava o estudo das desigualdades e do controlo social suportados pelo método quantitativo, recorte teórico este que não contemplava especificamente o contexto urbano. Castells, por seu turno, considera que a sociologia urbana produzida na Europa era sobretudo americana, por um lado, devido à superioridade do aparelho de propaganda das universidades americanas aliadas à dominação tecnológica, económica e política desse país e, por outro, porque há que se ter em conta que a “existência de algo a que se chama sociologia urbana parte de um parcelamento entre as diferentes áreas intelectuais, que é a expressão de uma perspectiva epistemológica empirista, fundamento da sociologia americana, que contudo, tem menos relevo na Europa”12. Voltando à sociologia urbana americana, é de se referir que, segundo Savage & Warde, não obstante as diferenças evidentes entre a sociologia produzida por Parsons e a desenvolvida pela Escola de Chicago, a insistência na não existência de ordem social na cidade moderna foi um dos poucos pontos de concordância entre elas. Entretanto, no entender dos dois autores, a visão apocalíptica das cidades americanas apresentada pela Escola de Chicago favoreceu em certa medida a influência do funcionalismo normativo de Parsons na academia americana de então. Contudo, os motins urbanos em meados dos anos de 1960 vieram perturbar o status académico funcionalista, isto porque levantaram algumas preocupações que tinham a ver com a questão da justiça social e da ordem, questões essas que a teoria desenvolvida por Parsons tinha dificuldades em responder.

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Manuel Castells, Problemas de investigação em sociologia urbana, p. 58.

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Todavia, apesar deste declínio da sociologia urbana, ela sobreviveu, especialmente nos Estados Unidos, tendo encontrado nas descrições estatísticas das condições urbanas da população uma saída através do qual oferecia bases informativas com o intuito de resolver os problemas urbanos. Continuou a explorar o crescimento da cidade e, em particular, a explorar as descontinuidades entre a vida urbana e a vida rural. Contudo, apesar de alguns estudos de referência, para Savage & Warde, a sociologia urbana dessa época encontrava-se teoricamente estagnada, o que fez emergir, nos anos de 1970, uma corrente de investigação conhecida no plano internacional como ‘a nova sociologia urbana’, que através da crítica às limitações teóricas da sociologia urbana desenvolvida até à data, procurou reconstruí-la a partir de outras bases teóricas. No entender de Savage & Warde, Manuel Castells foi, de entre os sociólogos desta ‘nova sociologia urbana’, o mais original, que através de uma crítica sistemática das principais contribuições das ciências sociais aos estudos da urbanização, procurou reconstruir a sociologia urbana a partir de um esquema teórico capaz de entender os processos sociais subjacentes à problemática urbana, com base na teoria marxista codificada em sua versão althusseriana. Na obra A Questão Urbana, Castells13 considera que o marxismo não proporcionou categorias adequadas para o entendimento e resolução dos problemas concretos da vida urbana, visto que a maior parte dos problemas urbanos fazem parte da esfera da reprodução, área essa em que a contribuição desta escola teórica é limitada. Contudo, constata que “o papel do Estado em todo o novo processo de urbanização exige uma teoria capaz de integrar a análise do espaço com das lutas sociais e dos processos políticos. Por isso a referência à tradição marxista é obrigatória, como ponto de partida e não como última palavra”14. Harvey15, por sua vez, reconhece a importância da Escola de Chicago no desenvolvimento da teoria social urbana, porém, considera que algumas formulações desses autores contêm aspectos demasiado particularistas que difícilmente poderão ser incorporados numa teoria urbana geral. Para esse autor, uma teoria geral de urbanismo é muito difícil de construir, devido à sua complexidade, ambiguidade e manifestações diversas e, portanto, ela tem sido até agora, provavelmente, mais redutor do que útil. 13

Manuel Castells, A questão urbana, 4º Edição, São Paulo, Paz e Terra, 2009 [1972]. Ibid., p. 11. 15 David Harvey, Social justice and the city, Revised edition, Athens, The University of Georgia Press, 2009 [1973]. 14

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Teorias, como definições, tem suas raízes na especulação metafísica e na ideologia, e dependerá, também, dos objectivos do investigador e das características dos fenómenos que estão sendo investigados. Há, ao que parece, demasiadas posições ideológicas a serem defendidas, muitas especulações intrigantes a serem seguidas, muitos pesquisadores e uma variedade de contextos onde se pode encontrar fenómenos urbanos, para que uma teoria geral do urbanismo tenha tão facilmente emergido16.

Entretanto, defende que esta limitação teórica geral não deve servir de impedimento para se buscar informações gerais das qualidades essenciais do urbanismo, aproveitando alguns conceitos existentes na literatura marxista que possam ser úteis na descrição e compreensão da dinâmica urbana. É o que faz Castells quando considera que a transformação de uma unidade espacial é determinada pelas variações nos elementos do sistema urbano e nas relações que eles mantêm entre si. Para ele, os elementos do sistema urbano a ter em conta são: produção – dimensão espacial do conjunto de actividades produtoras de serviço e informações17; consumo – dimensão espacial das actividades que têm por objecto a apropriação social, individual e colectiva do produto18; intercâmbio – dimensão espacial dos intercâmbios que têm lugar quer entre produção e consumo quer no seio delas19; e gestão – processos de regulação das relações em produção, consumo e intercâmbio20. Considera-as como processos sociais, ou seja, intervenções de agentes sociais sobre elementos materiais. “A combinação entre eles não é arbitrária, mas exprime as leis estruturais da formação social em que a unidade urbana está incluída”21.

III. Os caminhos da sociologia urbana (II): das influências de Weber e Simmel ao ‘novo modelo evolucionista’ A teoria social urbana foi influenciada, no entender de Flanagan22, por sociólogos alemães, mais especificamente Max Weber e Georg Simmel. Para esse autor, através da utilização do modelo tipo ideal, Weber identificou os elementos essenciais que compõem a cidade. Esse sociólogo alemão considerava que para se construir uma 16

Ibid., pp. 195-196. Exemplos, a indústria, os escritórios, os mass media. 18 Exemplos, a habitação, os equipamentos colectivos, culturais e recreativos, etc. 19 Exemplos, a circulação, o comércio, etc. 20 Exemplos, organismos de planeamento urbano, instituições municipais, etc. 21 Manuel Castells, Problemas de investigação em sociologia urbana, p. 75. 22 William G. Flamagan, Urban sociology. Images & structure, 5.ed., Lanham, Rowman& Littlefield, 2010. 17

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comunidade urbana dever-se-ia ter em conta determinadas características: uma fortificação, um mercado, um tribunal com pelo menos uma parcial autoridade autónoma, uma forma de associação e uma administração. Embora alguns desses critérios pareçam adequados para a construção de um modelo geral de cidade, Flanagan acha que a ideia de uma cidade fortificada é anacrónica, até porque na época em que a obra de Weber surgiu a industrialização estava bastante consolidada e tinha remodelado completamente a paisagem urbana europeia. Posteriormente surge o trabalho de Simmel cujo objectivo seria o de examinar a experiência da vida urbana nessa nova era, ou seja, de acordo com Flanagan, entender de que modo a experiência urbana estruturava a forma como as pessoas pensavam e agiam. Para este outro sociólogo alemão, a intensidade dos estímulos nervosos ou a sensação da cidade e o efeito do mercado sobre as relações urbanas condicionava a forma como os citadinos pensavam e agiam. Isto faz com que, ao contrário do habitante das pequenas cidades e aldeias mais propensos a profundos relacionamentos emocionais, “os habitantes das metrópoles desenvolvem uma capacidade especial para evitar o envolvimento emocional em relação a tudo que acontece ao seu redor” 23. Por outras palavras, o relacionamento humano nas metrópoles é caracterizado por tensão e cálculo. A influência destes dois sociólogos alemães na Escola de Chicago nota-se, segundo Flanagan, na forma como pensaram a cidade, na medida em que conceberamna como espaço organizado em áreas naturais por meio de processos de competição, invasão e sucessão, em que os bairros são diferenciados entre eles e desenvolvem-se a partir de ajustamentos feitos por seus habitantes à medida que lutam pela vida. Cada área, independentemente das suas qualidades, é caracterizada pelo seu próprio “código moral”, que corresponde a interesses e gostos de quem a usa, quer seja para residência ou recriação. O texto Urbanism as a Way of Life, para Castells como para Flanagan, não obstante as inúmeras críticas de que foi alvo, tornou-se num texto obrigatório da sociologia. Nesse texto, Wirth identificou três critérios fundamentais que determinam o grau de urbanismo existente numa dada sociedade: dimensão, densidade e heterogeneidade. Considerou que quanto maior o tamanho de uma determinada 23

Simmel cit. In William G. Flamagan, Urban sociology. Images & structure, p. 79.

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população, maior a probabilidade de ela ser composta por diferentes tipos de pessoas, a nível de raça e status, criando oportunidades de segregação espacial da mesma, tornando as relações humanas bastantes segmentadas e especializadas, dificultando assim o desenvolvimento de relações primárias entre as pessoas. O efeito da densidade é evidente na configuração da cidade, isto porque dá origem à formação de bairros com características distintas, sendo que alguns preservam as características de pequenas comunidades. No entender de Savage & Warde, tanto nas obras de Simmel como nas teorias desenvolvidas pela Escola de Chicago, as cidades foram representadas como uma síntese da ordem económica e social produzida pelo sistema capitalista industrial. A cidade de Chicago foi tomada por Burgess24 como uma cidade industrial moderna, representada a partir de um modelo de anel concêntrico e, a partir deste esquema de pensamento, ela foi entendida como produto de uma elaborada divisão de trabalho característico das modernas cidades industriais, visto que ela desempenhava um papel central na nova ordem industrial emergida como centro de comércio, local de produção e base da mais variada especialização. Para Harvey e Castells, a abordagem da Escola de Chicago inscreve-se numa perspectiva historicista de evolução social, sendo que a cidade é apresentada como a manifestação mais avançada deste processo de evolução de mudança económica. A partir dessa linha de pensamento, Savage & Warde afirmam que a cidade industrial foi tomada como o culminar de um longo processo de acumulação que remonta os primeiros períodos da história da humanidade. Isto é, a revolução industrial, pela forma como proporcionou uma vigorosa dinâmica nas cidades, devido à sua capacidade de produção económica, possibilitou a expansão urbana, fenómeno que levou Lefebvre25 a profetizar sobre o fim do rural, acreditando que ao futuro reservava uma completa urbanização do planeta. A cidade industrial foi, portanto, tida como o locus da nova sociedade industrial, inaugurando um novo ciclo de evolução histórica em que o crescimento urbano poderia continuar a níveis nunca antes vistos. Contudo, o processo de desindustrialização iniciado na segunda metade do século XX contribuiu para a não validação das hipóteses das teorias urbanas evolutivas, na medida em que, nos Estados Unidos, muitas 24

Ernest Burgess, “The growth of the city: an introduction to a research project” in: Robert Ezra Park; Ernest Burgess & Roderick D. McKenzie (Eds.), The City, pp. 47-62. 25 Henri Lefebvre, The urban revolution, Minneapolis, University of Minnesota, 2003 [1970].

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aglomerações urbanas colapsaram. Ainda assim, as teorias evolutivas das cidades persistem ainda hoje, se bem que com uma orientação diferente. Peter Hall é um desses teóricos que, segundo Savage & Warde, tem desenvolvido, a partir das cidades americanas, uma teoria evolutiva urbana que abrange não só os processos da industrialização como os da desindustrialização. Argumenta que o sistema urbano foi nas últimas décadas massivamente transformado devido a quatro processos ligados entre si que minaram a centralidade da grande aglomeração urbana industrial que caracterizou o período anterior ao capitalismo industrial: primeiro, suburbanização, que fez com que o crescimento urbano se desse nos subúrbios ao invés das áreas urbanas centrais; segundo, desurbanização, visto que a população urbana foi reduzindo em relação às populações das áreas rurais e não urbanas; terceiro, concentração das populações nas maiores cidades; e por fim o surgimento de novas regiões e, consequentemente, o declínio das velhas regiões. Alega que com a industrialização as cidades crescem em tamanho e concentração, mas que essas áreas acabam por se estagnar quando surgem inovações noutras regiões. A esse processo chamou-se contraurbanização. Savage & Warde apontam, entretanto, uma série de dificuldades de explicação dos processos de urbanização através do modelo evolutivo de Hall em cidades não americanas. “Não há dúvida que em muitas partes do mundo desenvolvido populações e empregos estão-se a deslocar para áreas urbanas centrais, mas se isto deve ser visto como testemunho do declínio das cidades ao invés de uma maior expansão para novas áreas é um ponto discutível”26. Um outro problema apontado tem a ver com a forma generalizada como Hall e seus colegas estudam as tendências urbanas do século XX. Apontam cinco tipos urbanos proeminentes nos finais do século XX que o modelo de Hall se mostrou incapaz de explicar: cidades do terceiro mundo, cidades globais, cidades industriais em declínio, novos distritos industriais e cidades socialistas.

IV. Cidades globais: a globalização económica e suas implicações nas cidades

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Mike Savage & Alan Warde, Urban sociology, capitalism and modernity, p. 38.

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Sassen27 entende que a globalização da economia fez emergir um novo tipo de territorialidade com alcance fora das fronteiras nacionais onde as transacções financeiras tinham lugar no passado. A partir dos anos de 1980, os Estados-nação deixam de controlar o fluxo económico derivado das privatizações das empresas mais rentáveis, da desregulamentação, da abertura das economias nacionais a empresas estrangeiras, assim como a participação dos agentes económicos nacionais em mercados globais28. Perante essa nova realidade, o espaço urbano ganha nova centralidade já que se viu inserido num sistema económico mundial diferente e, assim sendo, as ferramentas teóricas que possibilitavam até então perceber as dinâmicas urbanas mostraram-se ineficazes, fazendo com que termos como cidades globais ou cidades mundiais começassem a ouvir-se. Para Mbembe & Nuttall29, cidades globais resultam da dialéctica entre a globalização da economia e a necessidade da aglomeração da função central de coordenação, controlo e gestão em centros financeiros estabelecidos numa determinada região do globo. Isto é, espaços que dependem cada vez mais dos serviços financeiros internacionais e estão ligados à circulação e realização de riqueza e que servem de sede das grandes empresas multinacionais. Embora Sassen30 tenha apresentado inicialmente Nova Iorque, Londres e Tóquio como exemplos de cidades globais, Mbembe e Nuttall chamam a atenção para estudos recentes sobre Shanghai e Hong Kong, que indicam que é possível redesenhar o mapa das metrópoles fora da caixa da história intelectual europeia. Apontam também o facto de que as maiores cidades do hemisfério sul compartilham muitas características das cidades globais do norte, incluindo a heterogeneidade cultural e étnica, fluxos transnacionais de trabalho e capital, bem como um desenvolvimento espacial e social desigual.

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Saskia Sassen, “The Global City: Introducing a Concept”, Brown journal of world affairs, vol. XI, n. 2, 2005, pp. 27-43. 28 Saskia Sassen, “Introduction. Locating cities on global circuits”, in: Saskia Sassen (Ed.), Global Networks, Linked Cities, New York, Routledge, 2002, p. 1-36. Nos países africanos este processo teve

lugar nos anos de 1990 com o advento daquilo que alguns autores designaram de terceira vaga democrática. 29

Achille Mbembe & Sarah Nuttball, “Introduction: Afropolis”, in: Achille Mbembe & Sarah Nuttball (Eds.), Johannesburg: the Elusive Metropolis, Durham, Duke University, 2008, p. 1-33. 30 Saskia Sassen, TheGlobal City: New York, London, Tokyo, Princeton, Princeton University Press, 1991.

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Na concepção do modelo cidade global, Sassem argumenta que a dispersão geográfica das actividades económicas que marca a globalização juntamente com a integração simultânea de tais actividades geograficamente dispersas são factores-chave que alimentam o crescimento e a importância de funções corporativas. Face a essa dispersão em países diferentes e devido sobretudo à complexificação das funções de controlo de operações de empresas inseridas numa escala global, o serviço de gestão, coordenação e assistência técnica são terceirizadas a empresas especializadas que estabelecem relações directas com a sede, aumentando assim a rapidez das transacções. Esse novo desenho de relações económicas, moldado pela globalização, transcende as fronteiras nacionais, na medida em que as relações passam a ser estabelecidas entre cidades e/ou entre cidades e nações. Esta realidade possibilita, no entender da autora, a formação de sistemas urbanos transnacionais. O crescimento dos mercados globais de finanças e serviços especializados, a necessidade de manutenção de redes transnacionais devido ao forte aumento do investimento internacional, o papel reduzido do governo na regulação da actividade económica internacional e a ascensão correspondente de outras arenas institucionais – nomeadamente mercados globais e sedes corporativos – apontam para a existência de uma série de redes transnacionais de cidades31.

Castells32 observa que a era da informação introduziu uma nova estrutura urbana a que chama de cidade informacional. Defende que a sociedade hoje se baseia no conhecimento e está construída em torno de fluxos: fluxos de capital, de informação, de tecnologia, de interacção organizacional, de imagens, sons e símbolos. “Os fluxos não representam apenas um elemento da organização social: são a expressão dos processos que dominam a nossa vida económica, política e simbólica”33. Desta feita, argumenta que a cidade vai perdendo a sua forma conforme se vai transformando numa estrutura de espaço de fluxos. Isto faz com que estar na cidade seja o sinónimo de estar em um ciclo de informações extremamente intenso e denso. Convém também salientar que essas cidades são apresentadas como sendo reprodutoras de desigualdades. Santos34 evoca as teorias da dependência defendida por 31

Saskia Sassen, “The Global City: Introducing a Concept”, p. 29. Manual Castells, A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, v. I. 33 Ibid., p. 535. 34 Boaventura de Sousa Santos, “Os processos da globalização” in: Boaventura de Sousa Santos (Org.), Globalização: fatalidade ou utopia?, 3.ed, Porto, Edições Afrontamento, 2005, pp. 31-106. 32

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Peter Evans na análise da “tripla aliança” entre as empresas multinacionais, a elite capitalista local e a “burguesia estatal” enquanto base da dinâmica de industrialização e do crescimento económico dos países semi-periféricos e as teorias do pós-imperialismo defendidas por Peter Becker e Richard Sklar, que dão conta da emergência de uma burguesia de executivos saída das relações entre o sector administrativo do Estado e as grandes empresas privadas ou privatizadas. Esta nova classe citadina global35 cria espaços exclusivos tão segregados e distantes do conjunto da cidade quanto os bairros burgueses da sociedade industrial, só que em escala maior. Reforçando essa ideia, Ribeiro & Telles36, pensando no caso brasileiro, falam que nesse tipo de cidades tende-se a criar espaços racialmente segregados, reproduzindo as tensões históricas, ainda mais quando são pensadas igualmente para alocar uma elite internacional branca.

V. Urbanismo africano: o estudo das cidades africanas pós-coloniais Mbembe & Nuttall consideram Joanesburgo a primeira metrópole africana e o símbolo por excelência da modernidade africana, em termos tecnológicos, de riqueza, complexidade racial, bem como de práticas culturais e institucionais. No texto Afropolis, esses autores assumem que escrever sobre uma metrópole africana é uma tarefa complexa e constrangedora. “Por um lado, requer uma profunda reinterrogação de África como o símbolo de formação moderna do conhecimento. Por outro, exige um exame crítico na forma como algumas cidades no geral e cidades africanas em particular têm sido analisadas pela academia global”37. Termos como cidades do terceiro mundo ou cidades globais tem sido utilizados para designar algumas cidades situadas no hemisfério sul, em países com um passado colonial, e o paradigma cidade global, desenvolvido no último quartel do século XX, tem dominado os estudos sobre a configuração urbana, integrando-o nos chamados estudos da globalização.

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A burguesia nacional (elite empresarial, directores de empresas, altos funcionários do Estado, líderes políticos e profissionais influentes) e a burguesia internacional (gestores das empresas multinacionais e dirigentes das instituições financeiras internacionais). 36 Luiz Cesar Ribeiro & Edward E. Telles, “Rio de Janeiro: Emerging Dualization in a Historically Unequal City” in: Peter Marcuse and Ronald Van Kempen (Eds.), Globalizing cities: A new spatial order?, Hoboken, Blackwell Publishing, 2000, pp. 78-94. 37 Achille Mbembe & Sarah Nuttball, “Introduction: Afropolis”, p. 1.

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Recentemente, no âmbito dos estudos pós-coloniais, surge o termo cidades póscoloniais, cujo enfoque é colocado não só nos impactos do colonialismo na urbanização e arquitectura dos antigos centros urbanos ultramarinos europeus, como também na forma como são entendidos e representados hoje38. Partindo dessas premissas de estudo, Moassab39 defende que, na análise do padrão de ocupação do território, resultante da rápida urbanização das cidades africanas, deve-se ter em conta tanto o impacto da globalização neoliberal bem como o do processo da descolonização. Domingos e Peralta40, analisando as cidades coloniais portuguesas, fornecem-nos pistas que nos levam a questionar até que ponto as cidades coloniais não eram elas próprias globais. Para esses dois autores as cidades coloniais eram centros de administração, de poder colonial e locais de fluxo de bens e serviços. As suas urbes funcionavam como eixos de relações com outros centros urbanos e não estavam isentos de influência política e económica de organizações internacionais. Apresentam o exemplo da cidade da Beira, em Moçambique, que cresceu durante o século XX e até 1942 era gerida por uma companhia majestática. A influência política de outras potências coloniais, bem como de organizações internacionais, sobre o rumo do colonialismo português, a presença de inúmeros estrangeiros no quadro de decisões institucional económica e política e a influência dos quadros económicos e políticos regionais revelam que o colonialismo era um projecto global. As redes urbanas africanas, as que ligavam, por exemplo, Moçambique e Angola à África do Sul, à Rodésia ou ao Congo, criaram autonomias próprias que reproduziam o ritmo do colonialismo internacional, no fluxo de mercadorias, trabalhadores e capital41.

Desta feita, entendem que as cidades coloniais portuguesas só podem ser interpretadas em contextos de troca imperial mais vasta e funcionavam como “eixos de passagem de práticas e consumos tendencialmente globais, ou de circulação regional, que os Estados coloniais facilitavam ou procuravam controlar com maior ou menor sucesso”42. 38

Anthony D. King, “Postcolonialcities”, disponível em http://booksite.elsevier.com/brochures/hugy/SampleContent/Postcolonial-Cities.pdf, acesso a 15 de Janeiro de 2014.Garth Myers, African cities: Alternative Visions of Urban Theory and Practice, London, Zed Books, 2011. 39 Andréia Moassab, “Globalização, neocolonização e urbanização na África”, disponível em http://www.teoriaedebate.org.br/materias/internacional/globalizacao-neocolonizacao-e-urbanizacao-naafrica?page=full, acesso a 15 de Janeiro de 2014. 40 Nuno Domingos & Elsa Peralta, “A cidade e o colonial” in: Nuno Domingos & Elsa Peralta (Orgs.), Cidade e império. Dinâmicas coloniais e reconfigurações pós-coloniais, Lisboa, Edições 70, 2013. 41 Ibid., p. XXI. 42 Ibid., p. XII.

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Para além destas continuidades, enfatizado também por Moassab, pensando a urbe africana hoje, Mbembe & Nuttall afirmam que as grandes cidades africanas têm bastantes semelhanças com as chamadas cidades globais e, tal como as outras cidades imperiais africanas situadas no hemisfério sul durante a primeira metade do século XX, consideram que Joanesburgo também criou o seu estilo metropolitano com opulência, uma vez que desde o início tinha como uma das suas características definidoras a praça financeira e extensas ruas comerciais. Porém, é forçoso referir que já existia um comércio e uma cultura urbana précolonial no continente africano, embora tende-se a elaborar estudos sobre a transição do rural para a vida urbana como se o modo de vida urbano fosse praticamente desconhecido nas sociedades africanas antes da colonização europeia. Este desconhecimento, na perspectiva de Domingos & Peralta, deve-se, sobretudo, ao apagamento da história pré-colonial não evidenciada nos estudos urbanos coloniais que integraram a investigação sobre as colónias nas histórias da expansão europeia, a partir do século XV. Freund43 afirma que a tradição oral africana aponta para a existência de áreas urbanas na África Ocidental há pelo menos dois mil anos, e Myers defende que na África do Norte já existiam grandes cidades que fascinariam qualquer estudioso das questões urbanas. Henriques & Vieira44 mostram que antes da chegada dos portugueses a Angola existiam nesse país africano estruturas urbanas que a colonização soube reconhecer, ocupar e desenvolver. Como forma de evidenciar a riqueza urbana africana, Myers entende que as cidades africanas devem ser estudadas a partir de instrumentos conceptuais diferentes às utilizadas nas teorizações sobre cidades nos Estados Unidos e na Europa ou sob a perspectiva de desenvolvimento como tem sido comum nos vários estudos urbanos sobre África. Esta opção epistemológica poderá impedir que, por um lado, as cidades africanas contemporâneas sejam encaradas somente por aquilo que Mbembe & Nuttall denominam de metanarrativa da urbanização, modernização ou crise e, por outro, sejam caracterizadas como grandes favelas45 ou percebidas como perigosas, caóticas,

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Bill Freund, The African city: a History, Cambridge, Cambridge University Press, 2007. Isabel Castro Henriques & Miguel Pais Vieira, “Cidades em Angola: construções coloniais e reivenções africanas”, in: Nuno Domingos & Elsa Peralta (orgs.), Cidade e império. Dinâmicas coloniais e reconfigurações pós-coloniais, Lisboa, Edições 70, 2013, pp. 7-58. 45 Mike Davis, Planet of Slums,New York, Verso, 2006. 44

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disfuncionais e não produtivas46. Ou então, como aponta Freund, de forma mais radical, indicada como o exemplo da falência generalizada dos Estados africanos que se têm mostrado incapazes em conter o sector informal, que tem contribuído para a degradação urbana do continente. Para Myers, foi nos anos de 1970 que o sector informal ganha destaque nos estudos urbanos sobre África. Esse sector era entendido como sendo desregulado, na maioria das vezes ilegal, utilizado por pessoas que não tinham oportunidades no sector formal, percebido como regulamentado e legal. A transportação desta ideia para a esfera espacial reproduziu a noção de que as áreas informais seriam aquelas em que as residências apresentavam padrões irregulares, situados em terrenos inabitáveis, cujos donos não possuiam registo de propriedade, e as áreas formais como tendo sido surgido a partir de um planeamento urbano, edificadas em terrenos registados. Para Mbembe & Nuttall, a oposição entre o informal e o formal é inútil. Apresentam o estudo de Jane Guyet sobre as cidades nigerianas onde existe todo um modo de vida que inclui uma “economia popular” que sustenta o emprego e a criação de activos de capitais, mas que em grande medida vê o seu investimento retirado por instituições de regulação. Para eles, este facto prova que o informal não está fora do formal, visto que esse se relaciona constantemente com instituições formais. No que toca aos estudos pós-coloniais das cidades africanas, a partir do caso sulafricano, esses dois autores dividem em três os tipos de estudos produzidos: primeiro estudos que seguem a longa tradição de inquéritos urbanos focando as deslocações espaciais, as diferenciações classistas e a polarização racial imposta pela paisagem urbana do apartheid. Nesses estudos, a atenção é colocada na geografia da pobreza, resultante das exclusões espaciais das populações negras removidas das cidades apartheid. Segundo - os estudos pós-apartheids que se inserem no paradigma de desenvolvimento tão prevalecente nos outros países africanos e países em desenvolvimento. Por fim - os estudos que se preocupam com a reestruturação espacial da cidade.

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Francesca Locatelli & Paul Nugent, “Introduction”, in: Francesca Locatelli & Paul Nugent (Eds.), African Cities: Competing Claimson Urban Spaces, Leiden, Brill, 2009, p. 1-13.

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Outros autores47, a partir do estudo de capitais africanas pós-coloniais, tentam mostrar a forma como a dualização cidade formal e cidade informal foi reproduzida na pós-independência, tendo com isso produzido cidades partidas em que as elites ocupam as cidades formais, circundados pela cidade informal, onde habita a maioria das populações. A maioria dos países africanos conseguiu a independência da Europa entre 1956 e 1977. Existe, no entanto, a particularidade da África do Sul que não obstante ter tomado a independência do império britânico em 1910, cerca de 85% da sua população só realmente ficou formalmente livre em 1994 com o fim do regime do apartheid. No entanto, Varela48 defende a tese de que estas datas foram meras formalidades, uma vez que o modelo colonial continua vigente nessas sociedades, só que trasvestido em outras roupagens. Como nos lembra Myers, espaços fortificados tem emergido em muitas cidades africanas e prevalecem ainda áreas que anteriormente eram ocupadas pela elite colonial branca, que entram em confronto com habitats extremamente pobres, transformados, em alguns casos, em espaços Apartheid pós-colonial. Reforçando este ponto, Mbembe49 afirma que evidências mostram que os regimes pós-coloniais têm melhorado as estratégias de administração colonial, tornando-a mais segmentada e autoritária.

VI. Nota final: a emergência de um Centro de Estudos Urbanos Ela50, sociólogo camaronês, é da opinião de que uma nova abordagem da realidade africana é necessária, caso contrário os estudiosos africanos continuarão a reproduzir o discurso que considera África como uma espécie de museu de antiguidades

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Marluci Menezes, “Entre a inovação e a norma na informalidade da periferia: Repensando a intervenção socio-urbanística”, comunicação apresentada na IX Reunião de Antropologia do Mercosul, 10 a 13 de Junho, 2011. Redy Wilson Lima, “Praia, cidade partida: apropriação e representação dos espaços” in: Luca Bussotti & Severino Ngoenha (Orgs.), Cabo Verde da independência a hoje – Estudos PósColoniais. Udine, Aviani & Aviani, 2011, pp. 49-66. Simon Bekker & Goran Therborm, “Introduction”, in: Simon Bekker & Goran Therborm (Eds), Power and Powerlessness. Capital Cities in Africa, Cape Town, HSRC Press, 2012, pp. 1-6.Teresa Madeira da Silva, “A cidade Africana contemporânea de origem portuguesa: São Tomé pré e pós-independência”, Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 4, n. 2, 2012, pp. 175-188. Jacqueline Britto Pólvora “Cidades informais: o caso da cidade da Praia”, Ciências Sociais Unisinos, v. 49, n. 1, 2013, pp. 97-103. 48 Odair Barros Varela, Mestiçagem jurídica? O Estado e a participação local na justiça em Cabo Verde: uma análise pós-colonial, Dissertação de doutoramento, Coimbra, CES, 2012. 49 Achille Mbembe, África insubmissa. Poder e Estado na sociedade pós-colonial, Mangualde/ Luanda, Edições Pedago/Edições Mulemba, 2013. 50 Jean-Marc Ela, Restituir a história às sociedades africanas. Promover as ciências sociais na África negra, Mangualde/ Luanda, Edições Pedago/Edições Mulemba, 2013 [1994].

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europeias. Sendo assim, propõe uma abordagem dinâmica do espaço social africano e destaca a urgência de se promover estudos sobre a cidade, isto porque ela se constitui como um verdadeiro laboratório de mudanças sociais. É necessário imaginar as mudanças sociais ligadas à explosão urbana em países onde o agravamento das desigualdades de desenvolvimento acentua as disparidades socioeconómicas entre as elites e o povo. E, tudo isto acontece num contexto onde o crescimento demográfico é um grave desafio para os estados esmagados pelo peso da dívida51.

No entanto, para esse autor, os estudos africanos que abordam as mutações sociais situam-se, na maioria das vezes, “sob o ângulo da relação entre a tradição e a modernidade”52. Assim sendo, defende que é preciso reconsiderar as categorias utilizadas pelo Ocidente na leitura de outras sociedades, evitando assim correr o risco de retomar os eixos de investigação privilegiados pelo discurso colonial. Com vista a transcender a colonialidade nos estudos produzidos sobre África, propõe, por um lado, que as universidades africanas (e os centros de estudos africanos) deixem de estar capturadas pelo Estado e tenham capacidade de se reestruturarem a partir de um modelo que repouse sobre os princípios da descentralização; da autonomia; da inovação; da criatividade pedagógica; e da interdisciplinaridade. Defende que os eixos que devem orientar a produção de conhecimento em África devem ter em consideração o passado; através da promoção de sistemas de ensino e investigações sobre as estruturas fundamentais das sociedades africanas, o presente; centrando os estudos nas situações actuais, tendo em conta as ‘rupturas’, as ‘crises’ e as mutações que se operam no quotidiano das sociedades africanas e, por fim, o futuro; inscrevendo nos campos de análise “não só os conflitos e as tensões, mas também os factores integradores bem como os actores e as forças susceptíveis de influenciar o curso da história regional ou nacional. A dimensão ‘prospectiva’ e ‘geopolítica’ deve ser integrada no programa dos estudos e das investigações”53 Desta feita, a criação de um Centro de Estudos Urbanos de cariz pós-colonial é defendido de forma energética por esse autor. Entende que este centro deverá ter como objectivos: aprofundar os estudos urbanos segundo abordagens diversas que apelem à 51

Ibid., p. 29. Mbahcit. in Jean-Marc Ela, Restituir a história às sociedades africanas. Promover as ciências sociais na África negra, p. 50. 53 Jean-Marc Ela, Restituir a história às sociedades africanas. Promover as ciências sociais na África negra, p. 67. 52

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história, à sociologia, à antropologia, à demografia, às ciências políticas e económicas; e formar investigadores numa perspectiva de desenvolvimento viável, repondo as questões da cidade e do meio ambiente nos contextos socioeconómicos, políticos e culturais. Considera que é de primordial importância estabelecer a relação entre cidade e sociedade, permitindo que a abordagem das problemáticas da sociologia urbana seja concebida a partir das culturas novas que têm emergido nos centros urbanos africanos. Para além das descrições miserabilistas centradas sobre os “bairros de lata”, pretende-se com essa nova perspectiva de estudo compreender as dinâmicas urbanas e as formas de criatividade pelas quais os diversos actores têm intervindo na produção do espaço a partir das lógicas sociais e das estratégias que inventam. O objectivo é, segundo Ela, o de mostrar em que medida o espaço urbano é um lugar de inovação e de lutas sociais, e para isso é necessário abordar temas como os sistemas alimentares e processos de urbanização; a economia urbana popular: uma sociologia do ‘desenrasque’ e do ‘contrabando’; as formas de apropriação da cidade; os desafios imobiliários em meio urbano: poderes e estratégias; as estratégias residenciais e os bairros periféricos; a gestão das aglomerações metropolitanas; as culturas urbanas; violência urbana e novas formas de luta social; as formas de organização e os grupos de pressão; os movimentos sociais, as redes associativas e as políticas urbanas; os lazeres modernos e as indústrias do imaginário.

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