SOFTWARE, O LUGAR DA INSCRIÇÃO DA ESCRITA EM AMBIENTE DIGITAL

June 7, 2017 | Autor: Aguinaldo Gomes | Categoria: Software, Suporte Textual, Escrita Digital
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ABRALIN ISBN 978-85-7539-446-5 Anais - VI Congresso Internacional da Abralin / Dermeval da Hora (org.). - João Pessoa: Idéia, 2009.

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SOFTWARE, O LUGAR DA INSCRIÇÃO DA ESCRITA EM AMBIENTE DIGITAL

Aguinaldo Souza – UFPE

0 Apontamentos preliminares Não se trata aqui, evidentemente, de fazer uma retomada histórica que perpasse por todos os períodos, desde o surgimento do primeiro objeto que serviu para inscrição da escrita, até os programas de computador que atualmente nos permite manter contato com a escrita. Tal retomada só poderia ser feita para fins de comparação e análise diacrônica das tecnologias da escrita. Fato que não está no nosso itinerário, a breve retomada histórica que iniciaremos só serve para propor um ponto de partida para nossa reflexão, para nos aproximar do objeto de nossa reflexão, e para isso – acreditamos – não é necessário que ela seja feita de maneira sistemática. Entretanto, por mais breve que possa parecer, essa retomada nos permite observar o fenômeno da linguagem escrita de uma maneira próxima, nos permite observar que o lugar da inscrição da escrita condiciona o uso dessa escrita, veja, por exemplo, as tábulas de argila mesopotâmicas, o papiro, o pergaminho ou até mesmo o livro impresso. Com efeito, percebe-se que, o modo como se dá a relação com a escrita é completamente dependente do objeto que sirva para inscrição (cf. ARAÚJO, 2008). Nos intentos do presente artigo, entendemos com Marcuschi (2005, p.26) a escrita como “um modo de produção textual-discursiva para fins comunicativos com certas especificidades materiais e caracterizada pela sua constituição gráfica”. Embora, como bem salienta Marcuschi, ao utilizar a expressão ‘gráfica’, não estamos equiparando a escrita só a sua forma de realização alfabética, mas, antes, estamos generalizando, incluindo na concepção de escrita os modos de realização alfabéticos, imagéticos, ideográficos entre outros. Todos os objetos que servem para inscrição da escrita são indispensáveis para o reconhecimento do gênero que nele é fixado, também o acesso e o arquivamento desses textos, desses enunciados inscritos, são dependentes do objeto que o sirva para tal. Foi assim com o códice – predecessor do livro impresso – que permitiu o nascituro do volumem. Foi assim com o livro impresso. O mundo impresso, o mundo dos textos impressos e todos os objetos impressos que nos são familiares – e.g. uma revista impressa, um cardápio, um dicionário impresso, um outdoor etc –, são produtos de uma tecnologia que permitiu ao homem avançar de um estágio da existência à outro estágio, esse mundo passou e ainda passa por inúmeras modificações. A passagem de um texto – que tinha no códex manuscrito ou no livro impresso a partir da invenção de Gutenberg1 seu habitat natural –, para o texto eletrônico, implica ruptura total no modo como escritor ou o leitor se envolvem com a escrita. Muito dessa nova relação que o leitor ou o escritor estabelece com esses textos se deve ao aparecimento do primeiro computador2. Computadores, telefones celulares, Iphones, câmeras fotográficas digitais, Palms, calculadoras digitais, MP4/MTV Playes, os terminais de auto-atendimento bancários etc. são máquinas que de um modo ou de outro fazem parte da existência do homem atual e que estão tão entranhadas em nossa cultura que já é impossível pensar na não existência delas. Os fundamentos científicos que permitiram o desenvolvimento dessas máquinas são um pouco mais antigos, remontam centenas ou milhares de anos antes de seu aparecimento. Não obstante o valor dado à máquina física – o hardware – nesse trabalho iremos nos deter na máquina digital que funciona com o auxilio da máquina física, por entendermos que é nela que enunciamos, que mantemos relação com a escrita, ou seja, iremos nos deter na questão do software. 1

Temos ciência de que no oriente – na China – as técnicas de impressão já eram conhecidas e utilizadas bem antes de Johannes Gutenberg (c.1400 – c. 1468) trazê-la para o ocidente. 2 Consideramos aqui como o primeiro computador eletromecânico o MARK I, desenvolvido em 1944. Por ser este o primeiro computador que era controlado por um programa (software). Embora ainda seja possível recuar um pouco mais e visualizar a máquina de Hollerith que funcionava com o auxilio de cartões perfurados. Poderse-ia dizer que esses cartões perfurados que eram lidos por máquinas, são os predecessores dos atuais softwares digitais que conhecemos.

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Estranha-nos, com efeito, que as pesquisas sobre os modos enunciativos em ambiente digital – pesquisas sobre os enunciados, sobre os gêneros digitais – iniciadas quando do aparecimento na sociedade humana do computador conectado à rede internet – se quer cogitem a possibilidade de um artefato tecnológico, o software, ser o organismo3 que aporta em si os textos, os enunciados, os gêneros. O próprio reconhecimento como verdade dessa proposição e todos os efeitos que ela gera (todas as mudanças de perspectivas, de ações, a forma de se enxergar os enunciados, os hipertextos, por exemplo, todas as ações sociais que o uso de um software desencadeia) aparecem quando essa proposição é tomada como verdadeira. No entanto por mais evidente que seja essa proposição, pouco ou quase nada foi produzido a partir dela no âmbito das ciências da linguagem. Afirmar que o software é um organismo que aporta em si os textos, enunciados etc e que é no software que mantemos relação direta com a escrita, é afirmar que esse produto tecnológico é formado por uma série de inter-relações observáveis desde o seu estado embrionário, quando um sujeito situado o projeta, até as relações desencadeadas quando outro sujeito social começa a utilizar esse software. É observar que os modos enunciativos em ambiente digital, os hipertextos, as hipermídias, são partes desse organismo, do software, e estão nele materializados.

1 Das contribuições teóricas Dado ao ineditismo do tema, não encontramos estudos na ciência lingüística que trate do objeto em questão, desse modo, as contribuições para a construção de um conceito coerente sobre o lugar da inscrição da escrita em ambiente digital, sobre os softwares, virão de forma substancial de estudos realizados em outras áreas do conhecimento humano: da ciência da computação, do design voltado para objetos digitais etc. A primeira definição a qual buscamos na área, é a de software, o qual, para Fernandes (2003), é uma descrição de máquina cujo funcionamento depende de outra máquina que carregue e interprete as informações que ele está formatado. Essa máquina de ordem superior é representada na figura do hardware, que pode ser desde um computador pessoal, a uma câmera digital, um terminal de auto-atendimento bancário ou mesmo um telefone celular. É também à luz da ciência da computação que buscamos entender a organização dos softwares, uma vez que é dela que separamos (cf. SOUZA, A.G (2007) os dois estados do software: o estado produto e o estado processo. O estado processo refere-se à linguagem de programação escolhida para criar um software, essas linguagens foram desenvolvidas para facilitar o processo de fabricação de softwares e se assemelham muito ao nosso código lingüístico. Desse modo, os programadores poderiam fazer a descrição de máquinas de forma mais rápida, não precisando escrever o código diretamente em linguagem de máquina. O outro estado do software é o que denominamos de produto, no qual o software é visto em sua integralidade, ou seja, é visto não só como um código, mas como um organismo que é capaz de unir a si outros tipos de objetos: desde uma interface até um outro software e estabelecer com eles, além das relações mediadas por humanos, relações automáticas (sem interferência de humanos). Além disso, verificamos a dupla divisão dos softwares, ou seja, vemos que um software pode ser dividido em software aplicativo e software sistema. Conforme nos mostra Brookshear (2001, p. 112), são exemplos de softwares aplicativos: planilhas eletrônicas, sistema de edição de textos como o MS Word, jogos, navegadores web como o Fire Fox ou Internet Explore (softwares no qual a maioria dos gêneros digitais estão acoplados) e softwares de desenvolvimento de programas. Um software sistema executa aquelas tarefas que são vistas nos sistemas operacionais – no Windows, no Linux entre outros – de certo modo, o software sistema desenha o ambiente no qual o software aplicativo se desenvolve. Dentro dos softwares sistemas podemos encontrar módulos de 3

Na tentativa de entender aquilo que se passava em ambiente digital, alguns lingüistas para compreender o fenômeno novo, estabelecia com esse ambiente, analogia com outro, o ambiente impresso. Daí trazerem para os estudos lingüísticos em ambiente digital terminologia de outra área. É o caso, por exemplo, do nome ‘suporte’ utilizado para os textos e gêneros impressos. Assumindo uma mea culpa, tomo a liberdade de aqui tentar consertar essa confusão terminológica que de certa forma contribui para que se estabelecesse: o que em trabalhos anteriores chamei de suporte deve ser entendido como ‘software’, para mim o software não é só um suporte (um portador do texto nos termos em que os estudos dos gêneros impressos atribuem ao nome suporte) é muito mais um organismo. O conceito de organismo será introduzido ainda nesse trabalho e retomado com maior clareza em trabalhos vindouros.

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softwares utilitários, (são exemplos desses softwares os programas de comunicação por modem, softwares que formatam o computador etc) a distinção entre software aplicativo e software utilitário é bastante vaga e por vezes são tratados como homônimos, por essa razão achamos desnecessário, para os intentos deste trabalho, nos estendermos. O software sistema tem o papel de se comunicar com o usuário do software e com os outros componentes – os softwares aplicativos – para coordenar a execução das atividades dentro das máquinas. Todo software possui um shell. Shell é a parte do software que define a interface entre o software e o usuário, permitindo que haja uma comunicação natural entre ambos. É através dessa parte do sistema que o sujeito que utilizará o software poderá manipular ícones, enviar comandos ao sistema etc. Em computação moderna, os shells executam essas funções através de interfaces gráficas, também conhecidas como GUI (graphical user interface). 1. 1 A engenharia cognitiva e semiótica É através da interface gráfica (GUI) que o sujeito utilizador poderá manter relação com o software – poderá digitar um artigo, escrever um e-mail, enviar um formulário etc. No interior das reflexões desenvolvidas pela área da IHC (interação humano-computador), existem duas correntes que servem de apoio ao desenvolvimento delas, uma cognitivista e outra semiótica. A abordagem cognitivista (cf. de SOUZA et al., 1999, p.13) se nutre diretamente da psicologia cognitiva, da ciência cognitiva e da inteligência artificial que estuda a cognição. Uma das preocupações da corrente cognitivista quando do desenvolvimento das interfaces é possibilitar ao designer entender como ocorrem os processos cognitivos humanos. A idéia básica é que modelos cognitivos que descrevem os processos e estruturas mentais (e.g. recordação, interpretação, planejamento e aprendizado) podem indicar para pesquisadores e projetistas quais as propriedades que os modelos de interação devem ter de maneira que a interação possa ser desempenhada mais facilmente pelos usuários. Como estas abordagens adotam uma perspectiva centrada nos aspectos cognitivos do usuário, o design feito com base nelas é chamado de design de sistemas centrado no usuário (User Centered System Design – UCSD).

Assim, com Norman (1986), podemos afirmar que o designer de artefatos digitais deve ser capaz de construir um sistema (uma interface) que permita com que o usuário, ao interagir com esse artefato, crie um modelo mental consistente com o modelo projetado pelo designer. Para ajudar os designers a entenderem como os usuários leigos utilizam uma interface, Norman argumenta que os designers precisam entender os processos mentais pelos quais os humanos interagem com a interface, propondo a teoria da ação cuja proposta define que a interação usuário-sistema é desempenhada num ciclo-de-ação. Assim, como mostra de Souza (2006, p.2), os estudos voltados para interação homemmáquina de base cognitivista vêem a interação com interface como ...uma travessia de dois golfos, o de execução e o de avaliação. A busca pelo “racional” (quase sempre usado como antônimo de “subjetivo”) é evidente na caracterização que se oferece para as atividades do usuário de sistemas computacionais interativos. Em sete passos iterados, o usuário utiliza seus recursos cognitivos para “atingir sua meta” com o auxílio de computadores. O primeiro passo é justamente o estabelecimento de uma meta global. O segundo, a formulação de uma intenção imediata de (inter)ação, seguida de um plano para atingi-la (terceiro passo) e de sua execução (quarto passo). Com foco radicalmente fincado na perspectiva do usuário (e não na do sistema, ou muito menos na de quem o produziu), estes quatro passos levam o usuário a atravessar o golfo de execução da (inter)ação. A esta travessia segue-se a do golfo de avaliação, em três passos: primeiro, o da percepção de um sinal físico que indica o estado corrente do sistema; segundo, o da atribuição de significado a tal estado, ou interpretação; e terceiro, finalmente, o da avaliação sobre o sucesso ou insucesso do plano total ou de uma de suas etapas.

A crítica maior feita para teoria cognitiva é que ela focaliza apenas a interação usuáriosistema, desconsiderando o processo de design bem como o produto final do processo de design. Com o argumento de que a teoria de base cognitivista nega o rastro da subjetividade deixada pelos produtores dos softwares, de Souza (1993; 1996) propõe uma outra teoria para o campo da IHC, a

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engenharia semiótica. Nutrida substancialmente na semiótica de Peirce (2003), a teoria argumenta que tanto design quanto usuário possui o mesmo papel dentro da interação humano-computador. Assim, como salienta de Souza (1999, p.16) “nestas abordagens toda aplicação computacional é concebida como um ato de comunicação que inclui o designer no papel de emissor de uma mensagem para os usuários dos sistemas por ele criados”. Desse modo, a engenharia semiótica tornase complementar a engenharia cognitiva uma vez que enfatiza que o design não está só buscando construir a imagem do sistema, mas buscando comunicar ao usuário sua própria visão do sistema. Esta mensagem tem como objetivo comunicar ao usuário a resposta a duas perguntas fundamentais: (1) Qual a interpretação do designer sobre o(s) problema(s) do usuário?, e (2) Como o usuário pode interagir com a aplicação para resolver este(s) problema(s)? O usuário concebe a resposta a estas perguntas à medida que interage com a aplicação. Assim, esta mensagem é unilateral, uma vez que o usuário recebe a mensagem concluída e não pode dar continuidade ao processo de comunicação [de Souza, 1993] naquele mesmo contexto de interação. Além disso, como esta mensagem (a interface) é ela mesma capaz de trocar mensagens com o usuário, ela é um artefato de comunicação sobre comunicação, ou metacomunicação.

A engenharia semiótica considera válidos todos os resultados obtidos pela engenharia cognitiva, entretanto, a interação entre o usuário-sistema deixa de ser o foco dando lugar para expressão do designer e ao processo de design. Dessa forma, para engenharia semiótica, o que se deve atentar é a mensagem do designer enviada de forma unidirecional ao usuário. 1.2 Um olhar lingüístico sobre softwares e interfaces As reflexões que iniciamos até aqui são suficientes como um esboço daquilo que consideramos o lugar da inscrição da escrita, naturalmente, o germe jogado, vindo assim de uma outra área estranha à ciência lingüística, merece ser delineado. Não temos a pretensão de chegar à precisão, como os teóricos das respectivas teorias buscavam, até mesmo porque o problema que eles tentam solucionar é diferente do nosso. O que buscamos, em cada classe, nos softwares e nas interfaces dos softwares, é apenas a precisão adequada ao assunto – língua/linguagem – e essa incursão que iniciamos só interessa se responderem as perguntas desse grupo. Assim, como “um carpinteiro e um geômetra estudam o ângulo reto de maneiras diferentes; o primeiro o faz até o ponto em que o ângulo reto é útil ao seu trabalho, enquanto o segundo indaga o que é o ângulo e como ele é4”, cumpre-nos também olhar para os softwares para as interfaces dos softwares a fim de encontrar nelas as repostas não das perguntas que um profissional da IHC ou da ciência da computação faz, mas sim encontrar a resposta sobre como os enunciados e textos, como os gêneros digitais são formados. Para nós, tanto a engenharia cognitiva, quanto a engenharia semiótica não respondem as diversas perguntas existentes no âmbito da ciência lingüística, no tocante a linguagem (também não esperaríamos que respondessem). Entretanto, o princípio semioticista nos dar a percepção para conduzir o trabalho para uma direção que traga o outro e suas enunciações, que traga as marcas linguísticas para o cerne da discussão. Assim, olhando os softwares e as interfaces iremos identificar nessas classes, entre todas as formas como se apresentam, que esses organismos também possuem uma ancoragem lingüística. O que entendemos por isso é que tanto nos softwares quanto nas interfaces desses softwares, desses dispositivos, há essencialmente marcas lingüísticas deixadas por desenvolvedores5 que perpassam desde o processo de fabricação, até o produto em uso por outros sujeitos situados. Foi embebecido desse princípio que Peres (2007)6 propõe uma nova forma de olhar os estudos sobre a IHC, resgatando do Círculo de M. Bakhtin a noção de autor, autoria, vozes e dialogismo. Assim, enquanto a engenharia semiótica acredita em uma ‘mensagem concluída e unilateral’ enviada do design para o usuário do software, olhando por um prisma dialógico, a autora argumenta que essas mensagens são vozes que se 4

Aristóteles (1996, p. 127) Os profissionais envolvidos na criação de um software: engenheiros, programadores, designers etc. 6 Até onde temos ciência, essa tese defendida no programa de pós-graduação em psicologia da UFPE, foi a primeira a tratar da questão. 5

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materializam em interfaces. Assim, quem interage com um software – por exemplo, o software cliente de e-mail, que dá origem ao gênero digital e-mail – além de interagir com outros sujeitos situados, de forma diacrônica, está também em responsividade a outros sujeitos situados uma vez que recebe desses enunciações que aparecem nas interfaces dos softwares, essas enunciações – ou vozes cf. Peres (2007) – guiam-lhes as ações em ambiente digital. Vista por um prisma dialógico, em que a linguagem é o principio mediador, as interfaces dos softwares possuem em si marcas lingüísticas da subjetividade do desenvolvedor. A subjetividade nos artefatos computacionais está, de certa forma, materializada em vozes – no sentido bakhtiniano do termo, ou seja, a marca ideológica de um eu que se vincula a um lugar social – encontra aí a sua maior ressonância. Daí decorre o olhar para interface não como uma mensagem já concluída – conforme apregoa a engenharia semiótica – mas como vozes que guiam ações de uso, que conectam desenvolvedores e usuários, situados em pólos extremos. É mais especificamente no trabalho da equipe que irá desenvolver a interface do software – Graphical User Interface (GUI) – que as questões relacionadas ao estilo, a subjetividades, a posições valorativas, a alteridade, se tornam mais expressivas, esses profissionais de design ter por missão comunicar ao usuário do software o que ele poderá fazer com um software. A pressuposição de um outro a quem o software irá servir interfere significativamente no acabamento do produto, dessa forma, questões como: a quem a mensagem se destina? Que problemas a interface se propõe a resolver? Como interagir com sistemas para resolvê-los? são pensadas pelos protagonistas da atividade enquanto estão desenvolvendo as interfaces dos sistemas. A idéia de comunicar algo a alguém e fazer com que esse outro em potencial assuma uma posição axiológica frente a um chamado que se manifesta em um artefato computacional, constitui um dos trabalhos mais sujeitos a interferência de terceiros dentro de uma fábrica de software. Essas formas de enunciações que se materializam em uma interface de software constituem-se como material de base sobre a qual o usuário do software estabelecerá relação. Um bom exemplo dessas ‘vozes’ que os protagonistas da atividade deixam durante o processo de fabricação de software, são as caixas de diálogo que aparecem quando estamos interagindo com softwares, veja o exemplo 1, o caso do software ‘web mail’ alertando o usuário que ele não pode colar um determinado texto no corpo do e-mail. Essas enunciações que aparecem na interface do software são o que Peres (2007) ao propor a metáfora do dialogismo para a IHC (interação humano-computador) chamou de vozes, ou seja, enunciações dos desenvolvedores dos softwares que entre outras coisas guiam o uso de um software.

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Exemplo 1 Poderíamos então falar que uma interface de software carrega em si um ‘mínimo dialógico’ e que esse mínimo se forma e é orientado por uma gama de vozes que antecedem um artefato tecnológico. Esse ‘mínimo’ pode ser sentido também nos embates comunicativos travados entre dois sujeitos situados, através de softwares, e.g. uma conversa que ocorre através de um comunicador instantâneo como o Messenger, conforme aponta Meira e Peres (2004), este tipo de comunicação mediada por um artefato tecnológico é sempre co-dependente da organização sígnica da interface. Para os autores supracitados, o software participa desses diálogos travados uma vez que os turnos das falas dos interactantes estão submetidos ao funcionamento do próprio software - ver exemplo 2- ou mesmo estão ligadas com a própria interface, ligadas às sugestões que aparecem na interface (enunciações dos desenvolvedores). Dessa forma, o processo de uso de um software está diretamente relacionado com o processo de desenvolvimento do software. É nessa direção – processo de desenvolvimento/processo de uso que a instância humana, a presença de um sujeito historicamente situado, emerge.

Exemplo 2 Quando evocamos a idéia de que a interface do software é uma enunciação, um discurso dirigido a alguém (SOUZA A.G. (2008), estamos afirmando que essa pressuposição de um outro interfere significativamente no trabalho prescrito e no acabamento do produto, o acabamento pode ser estritamente lingüístico – que enunciados devem vir na interface para que o sujeito que irá utilizar o software não tenha problemas de interpretação? – a um acabamento puramente estilístico –

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considerado não só como um acabamento do design do produto, mas também as marcas lingüísticas deixadas nesse produto. Estilo está, de tal forma, ligado ao conceito de autor/autoria que para uma análise substancial desse par é necessário rever as relações constitutivas entre os diversos protagonistas da atividade (os desenvolvedores do software) e ver como essa seqüência de relações se atravessa com o outro para quem o software é pensando. As marcas estilísticas em uma interface de software, as marcas da gênese estilística que são marcas deixadas ao longo do processo de fabricação, é uma conseqüência da interação entre os diversos protagonistas da atividade e da idéia que esses protagonistas fazem do outro a quem o software irá servir. Embora que esse outro só exista em primeiro momento no campo da idéia, um outro idealizado, essa pressuposição de um outro se liga desde o momento de produção ao objeto de trabalho.

Considerações finais sobre um artefato hipertextual e hipermodal Entendemos os softwares como organismos, no sentido em que a biologia utiliza a palavra organismo 7, ou seja: ele é constituído por uma seqüência de códigos e por uma interface que o reveste, executando ações à medida que humanos interagem com ele – se auto-atualizando, dando respostas dos comandos recebidos através da interface – ou à medida que outros softwares com ele interagem e respondem a seus comandos (codificação e decodificação de códigos). Além disso, eles possuem a capacidade de se reproduzir (é com um software que se cria outro software) e de se mesclar – de unir a si – uma série de outros elementos tais como vídeos, imagens e sons se adaptando a esses corpos e desempenhando ações conjuntas com eles. Essa peculiaridade agregadora de um objeto que serve como lugar da inscrição da escrita, permite o nascituro de gêneros hipermodais. Chamamos de hipermidiático ou hipermodal o gênero que está acoplado no software cuja interface gráfica contém mais de uma forma de organização lingüística – os vários modos de enunciação: textos, sons, imagens e vídeos – assim, como mostramos em Souza A.G. (2008a), são organismos de hipermídia os que estão materializados em um software, cuja interface gráfica permite a junção de textos, de sons, vídeos imagens etc que se interligam através de sistemas de hiperlinks possibilitando com isso que usuários da língua estabeleçam macro compreensão entre enunciados e entre camadas de informações. Esses gêneros digitais, gêneros hipermodais, evocam do sujeito que com ele interage participação ativa, seja através de acionamentos de links, seja através de mensagens recebidas na interface do software, mensagem que faz o interactante assumir uma posição responsiva a um chamado. Embora seja tentador tentar fazer uma aproximação entre hipermodalidade e multimodalidade, essa aproximação deve ser evitada. Na multimodalidade não há participação ativa nem acionamento de links nem a possibilidade do sujeito que está imerso nessa modalidade de interação de assumir uma atitude responsiva, na hipermodalidade ao contrário, temos todos esses elementos e mais a capacidade de interagir com sistemas de hipertexto. Se nos softwares mantemos relação direta com a escrita, enunciando, interatuando com outros sujeitos situados etc é nos softwares que podemos interagir e construir textos em forma de hipertexto. Os hipertextos, ou melhor, a hipertextualidade que aqui é entendida como uma propriedade do hipertexto nasce de e no software. Por essa razão, quando estudamos a hipertextualidade e os hipertextos devemos ter em mente que essas são propriedades constitutivas de um organismo digital, de um software e não uma exclusividade de um gênero digital, ou uma forma de escrita. Tudo o que está em um software é ou pode vir a ser hipertextual, ou por vezes é puro hipertexto. Nossa definição de hipertexto é de certa forma condizente com a opinião que o identifica como um modo de enunciação digital, de fato, o hipertexto é um modo de enunciação digital que se materializa, ou melhor, que só se realiza em um software. Assim entendemos como hipertexto todo texto escrito em um software e ligado por hiperlinks, esse software pode ser desde um processador de textos a um web mail.

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O organismo ou ser vivo, sob o ponto de vista da biologia, é um ser que: desenvolve-se e cresce; responde a estímulos do meio; reproduz-se. Essa metáfora, de um ser que cresce, desenvolve-se e responde a estímulos – guardada as devidas proporções – nos parece adequada ao caso dos softwares.

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É na rede internet que o hipertexto ganha mais visibilidade8, a internet é uma rede de redes. Redes de computadores são formadas por máquinas independentes que efetuam transferência de arquivos através de conexões utilizando-se dos softwares dos sistemas operacionais conhecidos como softwares utilitários, dentro do estudo das redes de computadores há essencialmente duas dicotomias: de um lado as redes locais (também conhecidas como redes fechadas) e de outro as redes abertas. São exemplos de rede locais as redes de computadores domésticas que conectam dois ou três computadores, são exemplos de rede aberta, de rede de longa distância, a internet. Hoje a internet é uma combinação de redes locais com redes de longa distância operando via protocolo de hipertexto; é no software cliente que reside no computador do usuário(fire fox, internet explore entre tantos) que a WWW é acessada, o software cliente ou browser é o responsável por permitir que o usuário obtenha acesso à rede internet e aos hipertextos. Esses softwares – ‘browsers’ – manipulam diversos documentos, decodificando e organizando o modo como se apresentam, é comum que esses softwares possuam a capacidade de manipular além de textos (hipertextos) textos que estão acrescidos de outras formas enunciativas tais como: sons, vídeos e imagens. Tais browsers dão origem a gêneros e a textos hipermodais. O hipertexto e a hipermídia são partes constituintes de um só organismo (o software) e fazem parte de uma relação dialógica amparada por signos determinando certos modelos de interação (cf. SOUZA A.G, 2008a). Assim, entendido – como estando materializado em um software – o gênero digital, os hipertextos, os enunciados produzidos por sujeitos em interação ou mesmo os enunciados que estão materializados na interface do software, passam a ser vistos como co-dependentes desse organismo. Em boa medida, a relação que o usuário da língua estabelece com um gênero digital é condicionada pela interface do software – o sentido, a construção de sentido em ambiente digital – é parte de uma co-construção que toma voz a partir do momento em que um profissional projeta um software e uma interface. As relações que se estabelecem entre o usuário da língua e o software, são relações que se desencadeiam na direção um/outrem (interação). Essas relações, que iremos chamar de interação, mas não no sentido que a engenharia cognitiva ou a engenharia semiótica entende a palavra interação, constituí o ponto de apoio sobre o qual toda comunicação em ambiente digital estará submetida. Dessa feita, ao interagir com um organismo que é ao mesmo tempo o objeto no qual a escrita se inscreve, o objeto que dá forma aos gêneros digitais, que permite o nascituro de textos que se interligam de forma não seqüencial em não hierárquica (hipertexto) etc, devemos atentar não só para os enunciados que se materializam e são reconhecidos como gêneros – como, por exemplo, os e-mails – mas também devemos levar em consideração que ao interagir com esses artefatos computacionais, estamos em responsividade a outros sujeitos situados (veja, por exemplo, os enunciados que aparecem nas interfaces dos softwares –web mails - enunciados que guiam o uso (o botão enviar, anexar arquivo, encaminhar etc), que indicam como interagir com o software (as mensagens de erro ou de acerto que aparecem na interface do software quando um sujeito situado está com ele interagindo)) essas questões que se vinculam diretamente ao conceito de autor/autoria, de responsividade, criam limites precisos sobre as enunciações dos enunciadores, modifica-as, propicia o tom expressivo, definem o estilo. Quando o usuário da língua está imerso em uma relação mediada por um artefato computacional, quando ele está interagindo com um software que possui uma interface gráfica, ele está a todo o momento em responsividade a outros sujeitos, em responsividade não só ao parceiro enunciativo mais visível, mais imediato, mas em responsividade também aos desenvolvedores dos softwares. Essa atitude, essa compreensão responsiva ativa – nos termos que Bakhtin/Voloshinov (1996) aponta – é recorrente durante todo o tempo em que o usuário da língua com o software estiver interagindo. Assim por exemplo, quando o sujeito usuário se depara com uma interface (a interface do web mail, por exemplo), se depara com enunciações de outros sujeitos situados (os desenvolvedores) que vêm materializadas na interface, assumem perante esses enunciados materializados uma atitude responsiva ativa. A interface do software é o elo mediador entre o humano e a máquina. É ela também a responsável pela noção de realidade que o usuário da língua estabelece com o sistema computacional é ela quem dá forma (embora seja o software propriamente quem define a função) ao gênero digital. Todo software é por natureza hipertextual e sempre é identificado pela interface. Entendemos que a 8

Entendendo que ligações por hipertexto se dão também de forma offline como a ajuda do Windows ou cd-rom .

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interface determina um modelo de interação. Assim, ao se deparar com a interface do processador de textos Word o sujeito que o utilizará esse software saberá que poderá digitar um artigo, uma carta, criar um memorando etc. Ao se deparar com a interface de um web mail esse mesmo sujeito saberá que tais atividades serão impossíveis de serem desenvolvidas. As interfaces, portanto, determinam um modelo de interação, em outras palavras: a interface é a responsável pela relação que o sujeito terá com os textos, enunciados e gêneros em ambientes digitais. Tal modelo constitui um núcleo funcional e hipertextual que determina sua funcionalidade. É ao voltar os olhos para as interfaces que questões como9: a subjetividade, enunciado, enunciação, atitude responsiva, signos passam a ser vistas e levadas em consideração na hora de olhar para um gênero digital. Basicamente, quando passamos a considerar o software como um organismo que aporta em si textos (hipertextos) enunciados e gêneros digitais, como o lugar da inscrição da escrita em ambiente digital não podemos desassociar as relações de sentido que se desencadeiam quando um sujeito situado o projeta e outro sujeito situado começa a utilizar esse software. Essas relações semânticas constituem o material sobre o qual o processo de uso de um software repousa. E é com vistas nessas relações que tomamos as interfaces dos softwares não como uma metacomunicação (cf. a engenharia semiótica), mas como discursos como enunciados de um autor/criador do software para a partir daí estabelecer com esses enunciados, com esses signos que vêem materializados nas interfaces, relações que geram significação responsiva a medida que com elas os sujeitos usuários estejam interagindo. Essas relações de sentido, relações dialógicas, são possíveis a partir do momento que o usuário desses softwares passam a enxergar os signos vistos em um software como oposição semântica de um outro sujeito situado (o desenvolvedor do software). É claro que os signos que estamos falando aqui em nada tem a ver com os signos utilizados por dois sociais em interação mediada por um software, esses signos (emoticons) que os interactantes utilizam em embate comunicativo via software, possuem muito mais uma relação de sentido que uma construção semântica ideológica.

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Questões trazidas do Círculo de M.Bakhtin

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