Sola Scriptura: Um lugar legítimo para a teologia na prática da pesquisa em religião

May 22, 2017 | Autor: Jovanir Lage | Categoria: Teologia, Religião, Lutero, Hermenêutica, Sola Scriptura
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Sola Scriptura: Um lugar legítimo para a teologia na pratica da pesquisa em religiao Jovanir Lage Doutorando em Ciências da Religião - UMESP [email protected]

Resumo: Os questionamentos que levaram o Monge Martinho Lutero a publicar as 95 teses junto aos portões da catedral de Wittenberg e os desdobramentos do movimento que culminou na Reforma Protestante, estão intrinsecamente relacionados à interpretação bíblica. Esta categoria de sentido que também faz referência ao transcendente, último ou sagrado, é por excelência uma ciência hermenêutica, que se torna a chave para a compreensão dos objetos com as quais ela se ocupa, produzindo um sistema de sentido e significado. Toda a ação humana e os objetos produzidos por ela provêm do esforço de compreensão e sugerem uma organização plausível de sentido. É neste propósito que entendemos a teologia como mais uma ferramenta na construção de saberes para o estudo da religião. Como ciência hermenêutica, seu papel deve ser o da crítica aos sistemas fechados que tentam "provar" a superioridade da fé Cristã. Seu objeto, na verdade, deve ser o da realidade antropológica e social de todos. Palavras-chave: Teologia, Sola Scriptura, Lutero, Hermenêutica, religião.

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Desde os eventos da Reforma Protestante, temos experimentado em seus desdobramentos uma verdadeira revolução na história da religião. Aos poucos, novos paradigmas foram surgindo e os sistemas religiosos fechados em si mesmos foram abrindo espaços para a compreensão do outro. A religião ou a prática religiosa pode ser percebida ou experimentada hoje, a partir de sua multiplicidade. Seja por uma abordagem científica que tenta compreender a essência da religião ou pela busca de sentido, atendendo aos apelos de uma percepção intuitiva e imediata. Mesmo que em raros momentos, ainda que se constate a orientação religiosa mediada pela imposição de uma instituição dominante, conseguimos dar um grande salto, na transformação de “verdades absolutas” em “sistemas de sentido”. Todo este avanço e desenvolvimento da experiência religiosa têm, portanto sua herança nas abordagens interpretativas que os reformadores faziam a partir de sua compreensão teológica dos fatos. Este processo trouxe benefícios importantes para o desenvolvimento da pesquisa científica sobre a Religião. A religião, que até então dominava o saber com seus grandes sistematizadores (Agostinho e Tomás de Aquino), passa, agora, a ser objeto de estudo. Ainda que considerada por alguns como inacessível à pesquisa empírica, teve que se sujeitar aos métodos da averiguação crítica, a partir de sua manifestação antropológica e histórica. Este avanço só foi possível com o desenvolvimento do princípio doutrinal fundamental da Reforma Protestante que é a “Sola Scriptura”. Este fundamento que sustenta a primazia do texto bíblico sobre a Tradição e o Magistério da Igreja, foi norteador para o processo de autonomia do ser humano em sua vocação religiosa e nos seus métodos de pesquisa. A Ciência da Religião O conceito de Ciência da Religião foi apresentado, a princípio, como matéria institucionalizada nas universidades europeias e já na segunda metade do século XIX, era concebida por teólogos e cientistas sociais como uma disciplina comparativa que busca pelo conhecimento das religiões1. Porém, no desenvolvimento deste cientificismo em relação à Ciência da Religião, tornou-se necessário distingui-la da teologia, pois diante do seu objeto, sua base científica não permitia atitudes teológicas, confessionais e dogmáticas.

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F. Usarski. Constituintes da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 15.

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Por outro lado, Faustino Teixeira ressalta que apesar dos esforços realizados no sentido de dar coerência e consistência aos estudos realizados nesse novo campo disciplinar, verifica-se ainda ausência de clareza epistemológica. Na visão de Pierre Gisel, quando se diz ciência da religião há incertezas tanto quanto ao método, quanto ao objeto. As dificuldades já se iniciam com o nome: há uma ciranda de nomes envolvendo esse novo campo: ciência da religião, ciências da religião, ciências das religiões. Alguns autores preferem trabalhar com o modelo alemão, da Religionwissenschaft, privilegiando a ciência da religião em sentido unívoco, visando captar a especificidade da religião. Com base em “método unificador”, busca-se “um referencial único que perpasse toda a área do conhecimento chamada religião e que chame a si a contribuição das ciências que parcialmente delas tratam e as organize num sistema”2

A tentativa de retirar a Teologia do campo interdisciplinar da Ciência da Religião advém da necessidade de excluir toda abordagem apologética deste campo de estudo, conferindo-lhe o caráter científico. Sabemos, porém, que não existe ciência pura e a constituição dos diversos saberes, inclui sempre uma parte importante de “bricolagem”. Assim, a religião precisa ser pensada também a partir de outras bases. Neste sentido, a teologia pode perfeitamente funcionar como uma das múltiplas abordagens ou aproximações a um mesmo objeto: a religião ou o religioso, sem afirmar necessariamente que ela seria uma “ciência” da religião. Segundo Pierre Gisel, a teologia compartilha com as ciências da religião pelo menos três focos de interesse: a referência ao absoluto (transcendente, último ou Sagrado); a referência ao simbólico e ao ritual; a referência aos lugares de pertença, de tradição e de experiência.3 Em 1919, Paul Tillich já distinguia entre uma teologia eclesiástica, encarregada de sistematizar os conteúdos da mensagem cristã, e uma teologia da cultura, cuja tarefa é de estudar (analisar, classificar e sistematizar) o conteúdo religioso de toda cultura e de toda forma cultural. Para a Teologia fica notório e permanente a incumbência de estabelecer critérios consensuais para discernir esse conteúdo religioso.4 A Teologia compartilha com as Ciências da Religião, a tarefa de alcançar a unidade de sentido que se expressa de modo simbólico através das formas autônomas da cultura, respeitando os limites da compreensão racional de seu objeto5.

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A.G. Mendonça. A cientificidade das ciências da religião. In: F.Teixeira (Org). A(s) ciência (s) da religião no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2001, p. 109. 3 GISEL, Pierre. La théologie face aux sciences religieuses. Genève, Labor et Fides, 1999, 44-45. 4 TILLICH, Paul. Über die Idee einer Theologie der Kultur, in: Gesammelte Werke, IX, Die Religiöse Substanz der Kultur. Stuttgart, Evangelisches Verlagswerk, 1977, 13-31. 5 QUAGLIO, Humberto Araújo. Fenomenologia da experiência religiosa em Kierkegaard e Rudolf Otto. São Paulo: Editora LiberArts, 2014, p45.

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O lugar da Teologia A constante tensão entre ciências da religião e teologia é na verdade, uma resistência de mão dupla. Há da parte de cientistas da religião uma desconfiança permanente com respeito à teologia, sobretudo da perspectiva vista como apologética, normativa e missionária. Por outro lado, Teólogos também reagem às ciências da religião por motivos diferenciados. Ressalta-se, em geral, a dificuldade destas ciências captarem a identidade e verdade que animam a religião.6 A Teologia deve ser vista como parte sistemática e normativa das Ciências da Religião7. Quando se trata de contextualizar, situar e compreender uma tradição religiosa exige-se do teólogo um engajamento existencial, uma busca de verdade, ou, melhor, de sentido na experiência e nos mitos, narrativas, símbolos, crenças, discursos e sistemas religiosos. O que está em jogo é o sentido da vida, inclusive do próprio teólogo. O compromisso existencial deve superar, portanto, a afirmação ingênua do caráter absoluto do cristianismo (ou de qualquer outra religião) retirando todo o aspecto objetivo da revelação. Em sua vocação científica e hermenêutica, a teologia cumprirá essa tarefa, muitas vezes já assumida pela filosofia e pelas ciências sociais críticas, a seu modo e na sua linguagem própria. Os juízos de valor emitidos sobre o religioso deverão partir da experiência humana concreta e das valorações que derivam dessa experiência, bem como seus princípios éticos. Seu ponto de partida, não está nos dogmas oficiais e nem os modelos teológicos normativos confessionais, mas na experiência humana concreta. Sendo ciência hermenêutica por excelência, a Teologia não investiga o fenômeno Religioso a partir de fora, mas desenvolve um esforço de auto-compreenção no interior da vida e da fé. A teologia, sendo histórica e reflexiva, situa-se sempre conscientemente numa tradição religiosa e cultural específica, mas isto não significa que ela seja objeto particular desta tradição. Muito pelo contrário, trata-se de uma relação dialógica com a pluralidade e diversidade simbólica de uma tradição viva, em constante recomposição e profundamente heterogênea e sincrética, como é o caso particularmente no Brasil.

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M.F.Miranda. Inculturação da fé e sincretismo religioso. REB, v. 60, n. 38, 2000, p. 282. HIGUET, Ettiene A. A Teologia em Programas de Ciências da Religião. Revista Eletrônica Correlatio, n 9, maio de 2006, p. 41. 7

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Conclusão Enfim, considerando que a partir de todo o desenvolvimento que a Teologia proporcionou, tanto para a Ciência como para a Religião, precisamos observá-la mais como um processo dinâmico que se coloca em permanente construção, do que uma simples teoria normativa. Sua proposta fundamental é transformar, ou melhor, teologizar o não teológico, saindo do âmbito eclesial para se colocar em diálogo com o mundo. A Teologia deixa de ser entendida como a ciência de um objeto particular chamado “Deus”, para tornar-se parte normativa e sistemática da ciência da religião. Não mais compreendida como a exposição de um conteúdo revelado particular, a Teologia tem, portanto, um lugar garantido nas Ciências da Religião, principalmente quando conseguimos entende-la em sua perspectiva pública. É, portanto, neste ambiente de luta em favor de uma atuação crítica e livre, que a teologia precisa se encontrar, garantindo seu lugar legitimo na prática das pesquisas em religião, exercendo sua liberdade acadêmica para executar seu criativo exercício hermenêutico.

Referências bibliográficas GISEL, Pierre. La théologie face aux sciences religieuses. Genève, Labor et Fides, 1999. HIGUET, Ettiene A. A Teologia em Programas de Ciências da Religião. Revista Eletrônica Correlatio, n 9, maio de 2006. MENDONÇA, A. Gouveia. A cientificidade das ciências da religião. In: F.Teixeira (Org). A(s) ciência (s) da religião no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2001. MIRANDA, Mário de França. Inculturação da fé e sincretismo religioso. REB, v. 60, n. 38, 2000, p. 282. QUAGLIO, Humberto Araújo. Fenomenologia da experiência religiosa em Kierkegaard e Rudolf Otto. São Paulo: Editora LiberArts, 2014. TILLICH, Paul. Über die Idee einer Theologie der Kultur, in: Gesammelte Werke, IX, Die Religiöse Substanz der Kultur. Stuttgart, Evangelisches Verlagswerk, 1977. USARSKI, Frank. Constituintes da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2006.

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