\"Solidão medieval: forjando as bases de um monopólio\". Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Ex clusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 1 2 de setembro de 2008.

October 16, 2017 | Autor: Gabriel Castanho | Categoria: Monastic Studies, Lexical Semantics, History of Monasticism, Solitude, John Cassian
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Solidão medieval: forjando as bases de um monopólio Gabriel de Carvalho Godoy Castanho Mestre em História Social – USP

Diversos foram os significados que a apalavra “solidão” possuiu ao longo da história. Muitas também foram as tentativas de controlar tais significados, aproximando ou afastando os aspectos positivos ou negativos associados a essa palavra. Se hoje a mentalidade individualista pode conceber a solidão como alimento para a criatividade humana, esse sentimento também pode ser execrado socialmente se relacionado à depressão devido à sua tendência à improdutividade e à demência psíquica. Ao nos perguntarmos a respeito da solidão na Idade Média, como de resto acontece com outros aspectos da experiência humana, encontraremos rupturas e continuidades em relação a nosso presente. Nesse sentido, podemos, de modo geral, relacionar o aspecto positivo ao contato com Deus e a iluminação que emana da trindade (figura una, solitária, mas composta por três pessoas ao mesmo tempo), e negativo concentrado no pecado da acedia, vista como letargia que afasta do criador. Vemos assim que a noção de solidão na Idade Média passa por concepções fundamentais do cristianismo Ocidental como o dogma da trindade e um pecado que veio a se tornar capital. A importância prática de tal conceito fica patente, por exemplo, nas redações regulares que instituíam qualidades de vocações diferenciadas. “Como eles se abstinham do casamento e se mantinham separados de seus parentes e da vida no século, nós os chamamos monges ou μονάζοντες devido à austeridade desta vida sem família e solitária” (Cassiano, Conferências, 18, V). Cassiano assim apresenta uma de suas definições para o grupo de pessoas que por fervor religioso buscam afastamento do convívio com os outros. Trata-se de uma vida de solidão, ainda que essa possa ser, como de fato o foi (não só por Cassiano como também por outros legisladores da Igreja), matizada em diferentes tipos ou gêneros de monges. Atendo-nos ao autor que ora mencionamos, tido como principal matriz das ordenações monásticas cristãs, encontramos três tipos desses homens: cenobitas, anacoretas e sarabitas (aos quais se juntarão os giróvagos definitivamente após a regra beneditina). São essas as modalidades de solidão que passam gradativamente a fazer parte do horizonte regulamentar da solidão eclesiástica. Em nosso percurso de Mestrado a cerca do eremitismo medieval tivemos a oportunidade de abordar diretamente a questão da construção e dos limites das práticas e representações em torno dos solitários. Naquela ocasião chamamos atenção para o mecanismo de construção e desestruturação de

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modelos e práticas religiosas em função, entre outros aspectos, das modalidades de solidão defendidas por esse ou aquele grupo em disputa. Solitudo será o objeto central desta apresentação. Palavra controversa que expõe a dificuldade de aproximação do medievalista em relação à documentação que compõe seu corpus de análise. Sua tradução por “solidão” é direta em diversas línguas vernáculas, contudo as diferenças semânticas são relevantes. É verdade que em termos gerais o campo de significados dessas palavras é o mesmo na Idade Media e nos dias de hoje: sentimento, prática e lugar. No entanto a hierarquia interna que organiza tais elementos é diferente. Se para os dias atuais a solidão é antes de tudo um sentimento, o mesmo não pode ser dito a respeito do período medieval. Aqueles séculos são marcados pela hegemonia semântica de lugar, seguido por prática e em última escala, sentimento. Se por um lado tal organização de significados nos afasta das polêmicas em torno da história dos sentimentos, 1 por outro nos impõe uma adequação terminológica. Por esta razão optamos pelo termo “isolamento” como tradução para solitudo no presente artigo. Abordar o isolamento não significa tratar de idiossincrasias de um sujeito hipostasiado em relação ao convívio social. Visamos, em um projeto de pesquisa que vai além dessa apresentação, compreender o isolamento na Idade Média como a relação dos homens entre si, relação essa que permeia dois dos principais elementos de agregação social e compreensão do mundo na Idade Média: de um lado as relações de homem a homem e sua ancoragem senhorial2, de outro o comunitarismo cristão e sua materialização no que vem sendo chamado de inecclesiamento3. As forças de agregação social operam simultaneamente elementos de aspecto laico e eclesiástico. Do mesmo modo, o isolamento no Ocidente medieval permeia diferentes aspectos do cotidiano, muitos deles já tendo sido abordados pelos historiadores. Banidos, excomungados, leprosos são apenas alguns dos solitários que deixaram suas marcas na história. Contudo, poucos estudos se dedicaram diretamente à questão do isolamento propriamente dito e, em especial, aos significados da palavra solitudo.4 Poucos ainda tentaram compreender a temática do isolamento entre aqueles 1

REDDY, W. M., The Navigation of Feeling. A framework for the History of Emotions, Cambridge, University Press, 2001. ROSENWEIN, B. H., Emotional Communities in the Early Middle Ages, Ithaca, Cornell University, 2007. NAGY, P. (dir.), “Émotions médiévales”, em Critique (Editions de Minuit), n° 716-717, janvier-février 2007. 2 BLOCH, M, La Société féodale, Paris, Albin Michel, 1994 [1939-1940]. 3 LAUWERS, M., Naissance du cimetière. Lieux sacrés et terre des morts dans l’Occident médiéval. Paris, Aubier, 2005. 4 Entre eles: HASENOHR, Geneviève, « Typologie spirituelle et morphologie lexicale. Remarques sur le vocabulaire français de la solitude (XIIe-XVe siècles) », Cultura Neolatina. Rivista di Filologia Romanza

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que buscam abandonar voluntariamente o mundo no final da Antiguidade e princípios da Idade Média. Se os exemplos de separação social indicados a pouco são resultado de forças institucionais que visam afastar aquelas pessoas que colocam algum risco à manutenção do corpo social, de outro lado, monges, eremitas e reclusas são responsáveis pela inserção desse afastamento no seio das relações humanas. É no campo religioso que o isolamento encontra seu lugar social mais evidente. Lugar esse que desde bastante cedo esteve no centro de atenção de importantes expoentes da espiritualidade e normalização canônica do cristianismo ocidental. O isolamento se insere, assim, no quadro geral dos esforços realizados por diferentes grupos eclesiásticos para a normalização não apenas da religiosidade como da sociedade em seus diferentes aspectos. Tal processo se deu mediante a positivação de determinadas práticas e idéias e a negativização de outras ao longo dos séculos. Aproximamo-nos assim de trabalhos recentes sobre a organização da sociedade medieval que atribuem à Igreja papel preponderante na estruturação das relações humanas.5 Estas pesquisas partem do pressuposto de que, mesmo que com diferentes níveis de intimidade em relação às concepções de mundo manipuladas por diferentes membros da aristocracia (laica ou eclesiástica), existem algumas, noções, idéias, instrumentos mentais, mentalidades etc. (os termos aqui variam de acordo com os autores) que são compartilhados por todas as pessoas em um dado período e região (a explicação para esse compartilhamento se baseando em fatores sociais associados à noção de ideologia). Há ainda trabalhos que apesar de compartilharem o pressuposto da ampla permeabilidade e movimentação social das concepções de mundo, atribuem a essa força dinâmica uma explicação atenta a cinética cultural mediante a utilização de conceitos como imaginário.6 Diversos tratados abordam a questão do isolamento no Ocidente medieval. Dentre eles as “Instituições Cenobíticas” de João Cassiano surgem como um elemento de transposição das tradições orientais ao mundo ocidental, além de ter (com o passar do tempo) se tornado uma das principais referências citadas por gerações de cristãos em toda a Europa. Cassiano nasceu em família de posses e foi formado nas letras clássicas. Cedo entrou na vida monástica, tendo viajado pelo Egito e cidades como Constantinopla fondata da Giulio Bertoni, 62 : 3-4, 2002, p. 229-245 ; WEBB, D., Privacy and Solitude in the Middle Ages, Londres, Hambledon Continuum, 2007. 5 LAWERS, M. Op. cit.. IOGNA-PRAT, D. La Maison Dieu, Une histoire monumentale de l’Église au Moyen Age. Paris, Seuil, 2006. 6 No cerne dessa proposição encontramos o trabalho seminal de Le Goff, LE GOFF, J., O imaginário Medieval, Lisboa, Estampa, 1994 [1985].

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em busca dos ensinamentos dos religiosos solitários que habitavam essas terras. Após suas viagens, Cassiano fixou morada em Marselha, onde fundou o mosteiro masculino de São Vítor e o feminino de São Salvador. Foi nesse momento de sua vida (c.425) que compôs duas de suas obras dedicadas ao ensinamento e formação dos noviços nos modelos e costumes do monasticismo: “Instituições Cenobíticas” e “Conferências”. Essas obras entraram definitivamente na mentalidade ocidental após as emulações feitas por São Bento em sua regra, bem como ao prestígio que essa obra veio a alcançar entre os canonistas medievais. Assim, por meio de processos históricos, que não nos cabem aqui analisar, o tempo transformou os escritos de Cassiano em uma das principais fontes regulamentadoras do monasticismo cristão no período. No que tange a presente reflexão nos centraremos na primeira dessas obras (as “Instituições”) 7, a fim de elaboráramos uma proposta de análise não apenas para a obra em questão, como, e principalmente, para propormos uma abordagem de estudo da solitudo medieval, nosso objeto de pesquisa doutoral. A obra foi escrita com dedicatória ao papa Castor de Apt (419-426) e pode ser dividida em duas grandes partes: 1) livros I ao IV tratam das vestimentas, das orações canônicas diurnas e noturnas, e da formação e acompanhamento dos noviços – em fim, daquilo que Cassiano chama de “homem exterior”; 2) livros V-XII abordam os vícios que atrapalham a busca monástica (gula, luxúria, avareza, cólera, tristeza, acídia, vã glória e orgulho) – ou seja, do foro que seu autor classifica como “homem interior”. Tal divisão foi responsável pela titulação atribuída ao texto (o nome “Instituições Cenobíticas” não tendo sido dado por Cassiano): De institutis coenobiorum et de octo pricipalium vitiorum remediis libri XII.8 O isolamento físico aparece nas “Instituições” cassianas como situação propícia aos vícios. Praticamente todo monge que sofre ataques de algum dos espíritos maléficos tratados pelo autor tem seu combate amplamente dificuldade se tiver abandonado vivência com seus companheiros de fé. O isolamento é antes de tudo uma tentação.9 Embora nem sempre anunciada pelos historiadores, tal conclusão é evidenciada pela

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Embora centradas em metodologias e objetivos diferentes, nossas conclusões em muitos pontos se aproximam das enunciadas por Driver. DRIVER, Steven D., “A Reconsideration of Cassian’s Views on the Communal and Solitary Lives”, em BURMAN, Thomas E. et alii, Religion, Text and Society in medieval Spain and Northern Europe. Essays in Honor of J. N. Hilgarth. Toronto: Pontifical Institute of Medieval Studies, 2002, p. 277-301. 8 Em nossa análise utilizaremos a edição que consta no número 109 das Sources Chrétiennes. João Cassiano, Institutions Cénobitiques, (Edição, introdução, tradução e notas de J.-Cl. GUY), Paris Cerf, 2001. 9 Ainda que possa ser salutar para alguns monges como mostra o livro X, capítulo 3 (de agora em diante as indicações ao texto de Cassiano serão apresentadas diretamente entre parênteses).

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declaração oposta, largamente conhecida e aceita pela historiografia há décadas: a obra de Cassiano é uma das mais importantes defesas do cenobitismo na tradição ocidental. Entre cenobitismo e abandono do mundo (princípio fundamental para o monasticismo canônico) o que existe são modalidades de isolamento, as quais nosso autor separa em dois tipos principais: física e espiritual (a primeira deve ser entendida como a vida coletiva levada em conjunto pelos monges fechados em um claustro; a segunda é mais ampla uma vez que diz respeito ao foro interior, à luta contra os vícios e ao esquecimento dos assuntos seculares) (XII, 27). Na tentativa de delinear ainda mais os contornos das modalidades de isolamento, abordaremos aqui os usos do termo solitudo nas “Instituições” de Cassiano. Dezesseis são as ocorrências dessa palavra no documento em questão10. Dessas, apenas uma se encontra na primeira parte da obra que trata do comportamento do “homem exterior” (livros I-IV). As demais quinze se situam na parte dedicada ao “homem interior” e aos vícios principais que o afligem. Para a análise que se segue nos apoiamos na sugestão de indexação semântico-histórica proposta por A. Guerreau para o termo textus na Idade Média Central11. A partir de Guerreau estruturamos uma tabela com uma linha para cada ocorrência da palavra solitudo e 16 colunas contendo diferentes aspectos analíticos como declinações, qualificativos, preposições, formas verbais etc..12 Além dessas informações, nossa análise levará em conta a preocupação de contextualização das palavras na proposta discursiva de Cassiano. Nesse sentido é importante lembrar que o autor concebeu sua obra em 12 livros. Encontramos a palavra solitudo na metade deles: no capítulo 1, que versa sobre as vestes monásticas; no capítulo 5, sobre a gula; no capítulo 6, sobre luxúria; no oitavo se trata da ira; no capítulo 11 a preocupação se dirige à vã glória; no último o autor se dedica ao orgulho. Temas como orações, formação dos noviços, avareza, tristeza e acídia não receberam o termo solitudo em sua redação, o que não significa não terem abordado a temática do isolamento, como veremos mais adiante. É nessa dissociação entre as palavras e as coisas que reside a

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Desconsideramos duas incidências para a apresente apresentação por se encontrarem na titulação dos capítulos (VI,3 e XI, 6) uma vez que a erudição indica a inserção tardia de tal organização nos códices. Ver comentários introdutórios de J. –Cl. Guy para sua edição do texto de Cassiano. João Cassiano, Institutions... p. 14. 11 GUERREAU, A.“ ‘Textus’ chez les auteurs latins du 12eme siècle”, in ‘Textus’ im Mittelalter. Komponenten und Situationen des Wortgebrauchs im schriftsemantischen Feld. KUNCHENBUCH, L et U. KLEINE (orgs.), Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 2006. p.149-178. 12 Trata-se de exercício analítico visando apurar metodologia aplicada a recortes documentais mais amplos.

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maior dificuldade imposta pela metodologia da semântica histórica a um trabalho atento não a uma palavra, mas a um significado. Dentre os três sentidos para o termo solitudo o mais encontrado foi o de lugar (10), seguido por ato (4) e sentimento (1) – há ainda um caso em que a semântica parece oscilar fortemente entre os dois primeiros significados (o que não significa, por outro lado, que a distinção seja evidente nos demais casos). Todas as ocorrências, com exceção da primeira, se encontram no singular. Ablativos são 9, genitivos 4, nominativos 2 e acusativo 1. Dentre os ablativos apenas 1 não possui significado de local (primeira ocorrência do VI, 3 - prática); entre os genitivos 2 são usados como prática (os outros são significados como sentimento – V, 39 – e prática/lugar – segunda incidência do VIII, 19); os nominativos estão distribuídos entre prática (VI, 3, segunda ocorrência) e lugar (segunda incidência do VIII, 18). O único caso acusativo remete a um espaço físico determinado. A alta concentração no sentido espacial dado ao termo, empregado na forma ablativa com a preposição in, vem reforçar nossa hipótese geral de que na tradição cristã solitudo é antes de tudo um local. O mesmo se pode dizer a respeito da ordenação dos outros dois significados se relacionarmos a hierarquia semântica mencionada mais acima e à quantitativa agora demonstrada. O primeiro uso da palavra (I, 7) se insere em uma referência bíblica (Hebr. 11, 37-38). O isolamento aparece listado entre os lugares pelos quais vagam os solitários egípcios descritos por Cassiano: montanhas, cavernas e antros. Lugares desertos que por suas características ermas atraem esse tipo de religiosos. Parece-nos significativo não só que o primeiro uso da palavra nas “Instituições” remeta a um espaço, mas, principalmente, que esse lugar seja polarizado por características geofísicas tão claras, fundindo sua semântica à força simbólica do verbo por excelência, a bíblia. Dá segunda a quinta incidência do termos o referencial é o combate à gula. No capítulo 26 do livro V percebemos que o isolamento físico da cela monástica pode ser quebrado pela ida do religioso às celebrações litúrgicas coletivas (no final da semana), mas não por visitas a seu habitat. A retomada da distinção das duas modalidades de isolamento (anacorética e cenobítica) permite até mesmo crer na possibilidade de se viver 40 anos em completo isolamento em relação aos contatos humanos (V,27). No capítulo 36 desse mesmo livro V, Cassiano nos permite vislumbrar a oposição entre significado espacial e prático de solitudo. Ali o termo secreta é utilizado em seu sentido espacial ao se referir a um ambiente desértico (a tradução de J.-Cl Guy se utiliza da expressão “solitude”– mesma tradução encontrada quando Cassiano usa o

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termo solitudo). Em seguida solitudo aparece como prática acética pautada pelas penas suportadas pelo solitário, e como exercício espiritual movido pelo desejo de virtude e amor do próprio isolamento. As dificuldades trazidas por uma vida em isolamento explicam a inserção do termo em questão nesse livro das “Instituições”, bem como apontam para o aspecto sentimental do termo. O isolado vive constantemente em risco de tombar na má ociosidade causada pela falta do cultivo de alimentos e na conseqüente obsessão pela busca por alimentos junto a outras pessoas (V, 39). Criticam-se assim aqueles que procuram a vida solitária a fim de escapar das dificuldades da vida secular em benefício do corpo e não do espírito, ou seja, que são movidos pelo seu estomago. O isolamento é assim tomado como vício, entidade interior (espírito diria Cassiano, sentimento poderíamos dizer hoje em dia) que ataca as virtudes. Contra a luxúria a separação do mundo e, conseqüentemente, do contato com outras pessoas, aparece como uma possível ação remediadora desde que o retiro seja exercido buscando a tranqüilidade e calma espirituais (VI, 3). Práticas que estão sujeitas à maior complexidade do vício colérico. A ira revela que o isolamento físico não implica o distanciamento das preocupações mundanas. Sobre esse vício é tecida uma antropologia do isolamento cristão: “um homem acredita ser paciente e humilde enquanto não se relaciona com ninguém, mas desde que uma ocasião de contrariedade se apresenta, ele retornará a sua natureza primeira [isto é, viciosa]” (...) “interrompendo todas as relações humanas, nossos vícios se desenvolvem ainda em nós, se eles não foram purificados antes” (VIII, 19). Não é o lugar que purifica, caso contrário escorpiões e serpentes não possuiriam venenos (VIII, 19). Se o solitário não faz mal a ninguém não é por sua bondade, mas simplesmente porque seu isolamento – tido como lugar e prática – necessariamente busca evitar contatos com pessoas (VIII, 19). Prova disso é que na falta de pessoas nossa ira se direciona a coisas que nos impõem alguma dificuldade em nosso cotidiano (VIII, 19). O isolamento é então um lugar buscado por aqueles que, movidos pelo orgulho e impaciência, não suportam mais viver junto a outras pessoas (VIII,16) e acreditam encontrar ali uma oportunidade propícia à contemplação superior (VIII,19). Assim, a cólera revela a ambigüidade intrínseca de solitudo: lugar que pode revelar ciência divina a alguns e manter, ocultamente, os vícios de outros. A relação entre isolamento e vã glória opera de forma semelhante à que existe com a ira. O isolamento pode alimentar a ambição por meio de elucubrações fantasiosas a respeito da fama do solitário (XI, 6), mostrando que esse lugar, ainda que distante dos

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homens e das comparações cotidianas, não é um porto seguro contra a vã glória, pelo contrário (XI, 14). Por fim, no livro XII capítulo 13, o campo semântico de solitudo parece estar atrelado à forma sintática apresentada. A palavra ali aparece no genitivo, mas sua função sintática a aproxima de um ablativo. A pesar da forte tendência de associação entre a forma ablativa e o significado espacial, aqui o uso genitivo poderia nos indicar o significado associado a uma ação. Tal leitura semântica é reforçada pela relação com as outras palavras ali empregas e seu forte sentido de exercício ascético (ieiuniorum, uigiliarum, lectionis, solitudinis ac remotionis). De fato, o isolamento surge ali como uma forma de exercício ascético árduo, mas que não basta para se obter pureza e integridade tão desejada. Essas são os usos do termo solitudo nas “Instituições Cenobíticas”. Contudo, como enunciamos anteriormente, a temática do isolamento não se restringe às aplicações de apenas um vocábulo. Se a separação física dos religiosos deve estar circunscrita às relações com o século, internamente, os monges que constituem o coenobium, devem, mediante humildade e obediência, buscar sempre contato com seus pares. O forte papel social do isolamento fica evidente quando o autor descreve elogiosamente os hábitos punitivos encontrados em sua viagem ao Egito e Oriente Médio. Se por um lado se evita incisivamente que um monge possa ficar sozinho dentro do claustro por muito tempo (II, 15), por outro lado, “se alguém, por ter cometido uma falta qualquer, foi colocado de lado da oração, ninguém está autorizado a orar com ele antes que, prostrado no solo em penitência, sua reconciliação e o perdão da sua falta sejam resolvidos publicamente pelo abade, em presença de todos os irmãos” (II, 16). O isolamento do faltoso funciona como um instrumento de segregação punitiva sem, no entanto, significar um completo rompimento da proximidade física entre os monges. A separação encontra referencial no espaço. Ao mencionar as conseqüências para aqueles que chegam atrasados às orações canônicas, diz o costume que ele “não deve ousar entrar no oratório nem se misturar aqueles que salmodiam, mas, de pé, próximo a porta, deve esperar a congregação” (III, 7). Ainda que momentaneamente, o atrasado ocupa um espaço físico fora da congregação. Esse “fora” marca visualmente o isolamento como conseqüência de um crime contra a ordem comunitária estabelecida entre os monges. Vale destacar o peso especifico desse tipo de segregação. Ela priva o monge do contato com os outros justamente nas poucas ocasiões que os religiosos podiam participar de práticas coletivas

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no mosteiro. Tudo bastante ritualizado e só encerrado quando do ato público de reinserção do monge nas relações cotidianas com seus irmãos. A socialização monástica necessita da obediência aos ensinamentos dos mais experientes (IV, 7-9), e sobre tudo do abade. Vão contra esse domínio atos como “permanecer com alguém [após os ofícios coletivos] mesmo que por pouco tempo, ou se retirar um momento junto com essa pessoa, segurar a mão do outro, se permitir falar com quem não ocupa a mesma cela – ainda que com poucas palavras, orar com aquele que foi posto aparte da oração, ver ou falar com parente sem ter junto seu ancião, tentar receber uma carta de qualquer pessoa – ou de respondê-la sem a permissão do abade” (IV, 16). Tais faltas, diferentemente do tipo mencionado anteriormente, mereceriam uma punição espiritual, ou seja, não coletiva. Acreditamos que se aquelas faltas atingiam a socialização monástica em seus momentos mais evidentes, essas, por sua vez, põem em risco o “homem interior”. Se aqueles afetavam a organização exterior da congregação, a punição deve, ela também, ser pública (isolamento forçado) para remediar a ordem ameaçada; se essas dizem respeito às práticas pessoais que alimentam o enfraquecimento do isolamento, a correção deve não apenas ser individualizada como também exigir do penitente seu isolamento voluntário para a realização de exercícios ascéticos. As concepções de Cassiano em torno do isolamento colocam em questão a prática anacorética. Citando uma historieta de sua própria vida o autor relata que, estando em sua cela, veio um dia um abade em plena noite vigiar secretamente “com uma curiosidade paternal, o que eu fazia sozinho, eu que era um anacoreta ainda iniciante. Ele me encontrou enquanto me alongava sobre minha esteira, tendo acabado de terminar a celebração do fim de tarde, e de começar a descansar meu corpo cansado. Então, suspirando profundamente e me chamado pelo meu nome, ele me diz: ‘ Oh João, quantos, à essa hora, buscam Deus e O possuem fechado dentro de si! E você, você se priva de uma luz tão grande, vencido pelo torpor estéril!’ ” (V, 35). Não fosse a companhia mais experiente do abade, Cassiano teria caído na maléfica ociosidade, quando poderia (e deveria) buscar a Deus. A lição diz então que um solitário isolado fisicamente não dispõe da ajuda de seus pares para remediar seus deslizes, o que significa enaltecer a vida dos monges que vivem retiradamente em comunidade. É verdade que Cassiano abre espaço pra o anacoretísmo em suas “Instituições”, no entanto o coloca como praticável apenas em casos especiais de vocação. Ele mesmo diz ter, em certa altura de sua vida, considerado essa prática como o grau mais excelente entre os

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religiosos que abandonam o mundo secular, “pois esses permanecem inicialmente por muito tempo nos mosteiros onde aprendem segundo a regra, a paciência e o discernimento. Tendo [no cenóbio] adquirido a virtude da humildade e da nudez e estando completamente purgados de seus vícios, eles entram nos profundos segredos do deserto para ali enfrentar o demônio em combates terríveis” (V, 36). Tal vertente encontrou seu lugar definitivo na Regra de São Bento que ajudou a cristalizar no monasticismo ocidental a noção de que os eremitas e anacoretas embarcam nesse modelo ascético “não por um fervor de novato na vida monástica, mas após a prova do mosteiro”, pois “aprenderam a lutar contra o diabo auxiliados pela companhia de outros, e se encontram bem formados nas filas dos irmãos para o combate individual do deserto sem socorro alheio, pelo que se bastam com o auxílio de Deus para o combate contra o vícios da carne e dos pensamentos” (I). Aqueles que não haviam sido suficientemente treinados na vida cenobítica e mesmo assim abandonavam o claustro para abraçar outra forma de isolamento religioso eram execrados como sarabaitas (desregrados) e giróvagos (vagabundos). Além da separação em relação ao século, da obediência e da restrição anacorética, o controle do isolamento religioso passa ainda por dois elementos fundamentais: a paciência e a humildade. Quanto ao primeiro, Cassiano diz a seus leitores monges que Deus “não nos ordenou a abandonar a freqüentação de nossos irmãos nem evitar aqueles que nós acreditamos terem sido lesados por nós ou por aqueles que pensamos nos tenham ofendido”. A solução é mais uma vez interior e personalista: “a perfeição do coração não se conquista tanto pela separação dos homens quanto pela virtude da paciência” (IX, 7). Assim vemos que as preocupações com assuntos mundanos empurram viciosamente o monge para o isolamento. Para Cassiano não se trata de fugir dos problemas, uma vez que fazem parte da condição humana. A saída encontrada é a conformação cenobítica. Quanto à humildade ela está na base da sociabilidade monástica (XII, 32). O elogio dessa virtude contraposto ao vício do orgulho permite ao autor explicitar de maneira mais clara a tensão com que enxerga a relação cenóbio-isolamento. Esse vício se manifesta por marcas exteriores que são perceptíveis em formas negativas de discurso social (voz elevada, silêncio amargo, risos rompantes e descontrolados etc.) encontradas em uma situação em que os interlocutores discordam – discordância essa que aponta para o orgulho (XII, 29). O orgulho é assim tido como anti-social, posto que contrário ao convívio cenobítico baseado na humildade e na obediência, bem como na

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paciência que decorre dessas virtudes. Por essa razão nos parece que o orgulho está na fronteira do que é eclesiástico e do que não o é; do que está dentro da Igreja e do que está fora dela. É ai que se situa o cerne do monopólio eclesiástico da vida social (monástica). Aquele que abandona seu mosteiro e funda novas casas ou ordens monásticas pode ser tomado como orgulhoso ou como santo. A fronteira (como no caso das heresias) nem sempre é evidente a primeira vista, mas diz respeito à adequação ou não (segundo os critérios elencados a cima) da busca por isolamento em relação às regras monásticas e, em última instância, à mentalidade canônica.

Como vimos, Cassiano apresenta em suas “Instituições Cenobíticas” diferentes formas de isolamentos e suas relações com o corpo social. Sua tipologia nos remete, por um lado, à interioridade e exterioridade do isolamento, por outro, à intencionalidade da separação. A subjetividade ou objetividade do isolamento corresponde às modalidades físicas (lugares) e ascéticas (práticas) da separação em relação ao mundo. Essa, por sua vez, pode ser tanto imposta como voluntária. Quando forçada, o caráter punitivo, apoiado na privação do convívio social, desponta dialeticamente como forma didática da humildade e da obediência, elementos basilares de agregação monástica. Quanto ao isolamento voluntário, esse pode ser tanto virtuoso como vicioso, cabendo ao autor delimitar os contornos de um e outro. O fiel de sua balança se localiza em sua compreensão dos ensinamentos provenientes dos costumes monásticos e bíblicos (evangélicos, sobretudo), tidos como conhecimento regularizador das normas cenobíticas. Mas a formação claustral não é suficiente. Mais uma vez coerente com sua visão de mundo, Cassiano parte de seu princípio interior e exterior aplicado ao homem para fundamentar sua reflexão a cerca da solitudo. Seus comentários sobre a ira, a vã glória e o orgulho deixam claro o papel fundamental das ações interiores dos homens na busca pelo isolamento virtuoso: a separação física é tida como prejudicial, se não ao menos pouco importante diante das intenções pessoais, essas sim fundamentais para a salvação. Cassiano assim imprime sua marca à tensão semântica do termo solitudo ao tomá-la como lugar coletivo no qual a vigilância mutua das ações pessoais pode levar o religioso a experiência de beatitude ou de perdição, servindo como exemplo para comunidade a qual o monge pertence.

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Fontes citadas: São Bento, La Regla de San Benito. (Introdução e comentários G. M. COLOMBAS; tradução e notas

I. ARANGUREN). Madri: Biblioteca de Autores

Cristianos, 406, 1979. João Cassiano, Instituitions Cénobitiques, (Edição, introdução, tradução e notas de J.-Cl. GUY), Paris Cerf, 2001. Bibliografia citada: BLOCH, M, La Société féodale, Paris, Albin Michel, 1994 [1939-1940]. DRIVER, Steven D., “A Reconsideration of Cassian’s Views on the Communal and Solitary Lives”, em BURMAN, Thomas E. et alii, Religion, Text and Society in medieval Spain and Northern Europe. Essays in Honor of J. N. Hilgarth. Toronto: Pontifical Institute of Medieval Studies, 2002, p. 277-301. GUERREAU, A. “ ‘Textus’ chez les auteurs latins du 12eme siècle”, in ‘Textus’ im

Mittelalter.

Komponenten

und

Situationen

des

Wortgebrauchs

im

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

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