Solidariedade crítica e cuidado: Reflexões bioéticas

July 21, 2017 | Autor: B. Cátedra UNESCO | Categoria: Bioethics, Bioética
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Solidariedade crítica e cuidado: Reflexões bioéticas

|organização|

José Roque Junges Volnei Garrafa

Solidariedade crítica e cuidado: Reflexões bioéticas Homenagem à bioeticista Lucilda Selli

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Pe. Inocente Radrizzani Junges, José Roque Solidariedade crítica e cuidado: reflexões bioéticas / José Roque Junges; Volnei Garrafa (Org.). -- 1.ed. -- São Paulo : Edições Loyola; Centro Universitário São Camilo, 2011. 192p. ISBN: 978-85-15-03837-4 1. Bioética. 2. Solidariedade. 3. Trabalho voluntário I. Garrafa, Volnei II. Título. CDD – 179.1

Comitê Editorial Centro Universitário São Camilo Leo Pessini Christian de Paul de Barchifontaine José Eduardo de Siqueira Paulo Antonio de Carvalho Fortes Elma Zoboli Marcelo Perine William Saad Hossne Editor-chefe: Leo Pessini Assessoria Editorial: Leda Virginia Alves Moreno Preparação: Maurício Balthazar Leal Capa: Viviane B. Jeronimo Diagramação: Ronaldo Hideo Inoue Revisão: Renato da Rocha

Centro Universitário São Camilo Rua Padre Chico, 688 05008-010 São Paulo, SP T 55 11 3465 2704 / 3465 2746 [email protected] www.saocamilo-sp.br Programa de Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado em Bioética Edições Loyola Jesuítas Rua 1822, 341 – Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP T 55 11 3385 8500 F 55 11 2063 4275 [email protected] [email protected] www.loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

ISBN 978-85-15-03837-4 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2011

Estes dados saíram no último livro em co-edição com a São Camilo. Precisam ser confirmados, quando enviarmos o pdf para e eles.

Sumário

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Apresentação José Roque Junges Volnei Garrafa

Parte 1

Principais artigos de Lucilda Selli 13



Bioética, solidariedade crítica e voluntariado orgânico

Lucilda Selli Volnei Garrafa

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Solidariedade crítica e voluntariado orgânico: outra possibilidade de intervenção societária

Lucilda Selli Volnei Garrafa

35



Beneficiários do trabalho voluntário: uma leitura a partir da bioética

Lucilda Selli Volnei Garrafa José Roque Junges

43



Presença feminina na atividade voluntária: uma leitura a partir da bioética

Lucilda Selli Volnei Garrafa

53



O cuidado na ressignificação da vida diante da doença

Lucilda Selli Stela Meneghel José Roque Junges Eloir Antonio Vial

63



Dor e sofrimento na tessitura da vida

Lucilda Selli

Parte 2

Trabalhos oferecidos em homenagem a Lucilda Selli 71



Bioética na enfermagem: um tributo a Lucilda Selli

Elma Lourdes Campos Pavoni Zoboli

83





Entre o comércio do corpo, a solidariedade crítica e o voluntariado orgânico Volnei Garrafa

99



O poder do diálogo e o engajamento das pessoas comuns

FERMIN ROLAND Schramm

109



Desumano, demasiadamente desumano

JOSÉ EDUARDO DE Siqueira Marcos Liboni

123



Direitos humanos: a conquista ética do século XX

DORA Porto

137





Biopoder, biotecnologias e justiça JOSÉ ROQUE Junges

149



Vida e morte: uma questão de dignidade

LEO Pessini

167



Aprender dos erros em serviços de saúde: uma aproximação bioética

MÁRCIO FABRI dos Anjos

181



Alocar e priorizar recursos escassos nos serviços de saúde: uma breve reflexão bioética PAULO ANTONIO DE CARVALHO Fortes

Apresentação José Roque Junges Unisinos

Volnei Garrafa UnB

A

presente obra é uma homenagem póstuma à professora, pesquisadora e bioeticista Lucilda Selli, falecida precocemente em 25 de maio de 2009, na plenitude de sua produção acadêmica, vitimada por um câncer. A obra reúne, na primeira parte, seis de seus principais artigos e, na segunda, a contribuição de importantes pesquisadores brasileiros — seus amigos — que apresentam textos escritos sobre bioética em sua memória. O título tenta reunir duas temáticas que foram objeto de preocupação e pesquisa da professora e constituem o fio condutor da obra: a solidariedade crítica e a ética do cuidado. Lucilda Selli nasceu em 15 de agosto de 1959 em São Valentim do Sul, no estado do Rio Grande do Sul, numa família numerosa, de tradições religiosas italianas. Em 1971 entrou na vida religiosa na Congregação de São Camilo, que tem uma ampla tradição de trabalho em hospitais. Trabalhou durante vários anos no setor de enfermagem do Hospital São Camilo, na cidade de Esteio (RS). Motivada por essa vocação do cuidado dos doentes, adquiriu em 1991 a habilitação em enfermagem pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), onde logo foi contratada como professora do curso de enfermagem. Para aprimorar sua competência e sua inserção acadêmica fez vários cursos de pós-graduação: mestrado em enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina em 1997, com a dissertação Beneficência, auto­ nomia e justiça como princípios bioéticos: implicações para o fazer da enfer­ magem; especialização em bioética pela Universidade de Brasília (UnB) em 1998-1999, cuja monografia final feita em parceria com a assistente social Marta Tenório teve como título Solidariedade: um caminho para o conflito

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moral; doutorado em ciências da saúde na área de concentração em bioética também pela UnB, em 2002, com a tese Bioética, solidariedade crítica e vo­ luntariado orgânico, sob orientação do professor Volnei Garrafa. Desde 2001 atuou como professora e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Unisinos. Na UnB, ficou por quase quatro anos, tendo se destacado como uma das alunas mais brilhantes e ativas no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética (hoje Cátedra Unesco de Bioética) e no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde. Sua passagem por Brasília foi tão marcante que em 2007 foi convidada a fazer parte do corpo docente do primeiro Programa de Mestrado/Doutorado em Bioética do país, criado na UnB. Embora tivesse orientado diversas dissertações de mestrado na Unisinos, infelizmente a vida não lhe proporcionou tempo suficiente para concluir a orientação da tese de sua primeira aluna de doutorado… Publicou o livro Bioética da enfermagem, atualmente em sua segunda edição, pela Editora Unisinos, além de expressivo número de artigos em revistas científicas nacionais de renome. Era membro do Conselho Editorial de várias revistas acadêmicas de sua área de interesse: Revista Brasileira de Bioética (RBB); Revista Bioética, do Conselho Federal de Medicina; Revista Gaúcha de Enfermagem. Lucilda era uma mulher simples, serena, alegre, otimista, questionadora, disposta e lutadora. Sentia grande prazer em ministrar aulas, em orientar alunos, em participar de uma discussão, colocava toda a sua satisfação nas coisas que fazia, gostava de aprender e ensinar coisas novas. Era animada e sabia estimular quem estava ao seu lado. Sabia juntar de uma maneira criativa e saborosa o seu ser mulher, religiosa, professora e pesquisadora, o que nem sempre foi fácil, às vezes lhe trazendo incompreensões e dissabores. Como religiosa, enfrentar um doutorado numa universidade pública foi um grande desafio que abriu os seus horizontes intelectuais, a introduziu num pensamento socialmente crítico e a ajudou saber situar-se como cristã num contexto secularizado para dialogar e discutir as questões de bioética. Era uma pessoa de grande bom-senso moral, essencial para qualquer discernimento ético, avessa a atitudes rígidas e a dogmatismos. Duas temáticas ocuparam nos últimos anos sua preocupação intelectual: a solidariedade crítica e o voluntariado orgânico, que foi o tema de sua pesquisa de doutorado, cuja parte prática desenvolveu no Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio de Janeiro, trabalhando com diversas entidades de voluntários; e o cuidado das pessoas enfermas por parte dos profissionais da saúde, especialmente a enfermagem, que foram objeto de sua investigação no programa de pós-graduação da Unisinos. Esse último tema passou a constituir uma questão existencial na vida de Lucilda, pelas várias vezes em que passou por hospitais e pôde sentir na

Solidariedade crítica e cuidado

Apresentação

pele como eram tratados os doentes. Em diversas vezes expressou seu desejo de escrever um livro testemunhal sobre essa questão, o que não chegou a realizar. Um de seus artigos colocados neste livro segue essa linha. Ela dizia: “Se eu, como professora conhecida, tive que passar por situações de desatenção e não cuidado, o que não acontece com as pessoas que não são conhecidas?”. Por isso preocupava-se com a formação dos profissionais da saúde, especialmente das enfermeiras, e defendia mudanças nos currículos para integrar os conhecimentos técnico-científicos à humanização do atendimento, que só acontece pelo aprendizado de uma terapia conversacional que inclua as vivências do usuário. Lucilda Selli deixou-nos demasiado cedo, na fase mais produtiva de sua profícua e exemplar vida acadêmica. Fica a lembrança afetuosa de uma pessoa muito especial e querida para nós, de uma companheira leal nos embates acadêmicos e de uma pessoa portadora de uma fé e uma persistência inquebrantáveis. Este livro é um singelo legado que nós, seus colegas e especialmente amigos, deixamos para o futuro, em justa homenagem à memória de uma grande mulher.

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PARTE 1 PRINCIPAIS ARTIGOS DE LUCILDA SELLI

Bioética, solidariedade crítica e voluntariado orgânico 1

Lucilda selli Volnei garrafa

Introdução

B

ioética, traduzido por ética da vida, é um conceito originalmente derivado do grego bios, “vida”, e ethos, “ética, costume, conduta”. Designa o ramo da ética que disciplina a conduta humana nas questões que envolvem a vida em geral, desde o ser humano até o ecossistema do qual faz parte. O conceito foi criado pelo médico americano Van Rensselaer Potter, desenvolvido em seu livro Bioethics: Bridge to the Future (Potter 1971). A bioética emergiu no horizonte de uma tomada de consciência das grandes transformações que caracterizaram a situação sócio-histórica que hoje constitui a realidade. Essas transformações, no plano da ciência, da economia e do direito, tiveram profundo impacto sobre a vida social e fizeram-se sentir com maior profundidade na segunda metade do século XX. Do ângulo da ciência e de sua influência na vida cotidiana, levaram a mudanças substanciais, tanto pela adoção de novas tecnologias como por suas formas alternativas de aplicação. Esse período, entre outras consequências, agregou profundas mudanças nos valores que até então serviam de referência para a humanidade, trazendo à tona questões relacionadas com a diversidade moral, o respeito pela diferença, com ênfase na tolerância como um novo valor emergente, entre outros (Engelhardt 1998). Nesse sentido, a Constituição brasileira (Brasil 1988) colocou o país em sintonia com o mundo ocidental, que já 1. Publicado na Revista de Saúde Pública 39(3) (2005) 473-478.

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PARTE 1 PRINCIPAIS ARTIGOS DE LUCILDA SELLI

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nos anos 1960 e 1970 trazia essa questão para o centro da agenda política no âmbito daquelas sociedades. Na América Latina, principalmente no Brasil, há muito a ser feito para concretizar os direitos individuais e coletivos garantidos na Constituição. Garrafa (1999) defende a radicalização da democracia do ponto de vista político-social como meio de fazer cumprir as leis e gozar das conquistas alcançadas. Em suas origens, a bioética consagrou princípios de conduta embasados nos valores tradicionais da ética ocidental, constituindo parâmetros para orientar as distintas comunidades morais que emergiram na pós-modernidade (Beauchamp, Childress 1994). O Brasil, examinado de uma perspectiva histórica, esteve tradicionalmente ligado a valores paternalistas e autoritários. O interesse pela proposta da solidariedade crítica como instrumento a orientar o serviço voluntário orgânico e como valor na agenda bioética tem, entre outras justificativas, motivações provenientes da realidade social. Solidariedade crítica e voluntariado orgânico são dois polos que se implicam e se interceptam. Para dar clareza à discussão é necessário estabelecer a compreensão desses conceitos. A adjetivação crítica diz respeito à capacidade do agente de discernir, ou seja, de possuir critérios capazes de ajudá-lo a discriminar as dimensões social e política que estão indissociavelmente presentes na relação solidária. Assim, a solidariedade não se esgota enquanto relação típica da sociedade civil. Ao contrário, possui um elemento político que tem como referência o Estado. A capacidade de entender essa dimensão política, que se refere à cidadania e à possibilidade de intervir de forma ativa na definição de políticas públicas, também caracteriza essa dimensão crítica (Bobbio, Matteucci 1995). O conceito de voluntariado orgânico, por sua vez, foi construído por analogia ao conceito de intelectual orgânico desenvolvido por Gramsci (1979) e é entendido como participação politizada, comprometida, ativa e beneficente das pessoas que desenvolvem o serviço voluntário na construção das condições necessárias à democratização efetiva do Estado, em todas as suas dimensões, no caso específico na área da saúde. No campo da saúde, os princípios e valores que regulamentam a conduta dos profissionais pautaram-se pelo binômio beneficência e caridade. A beneficência sintetiza a deontologia médica hipocrática e a caridade representa os valores clássicos da tradição cristã na área da saúde. Exemplificado na relação médico–paciente, o polo ativo dava-se na figura do médico e o polo passivo encarnava-se na figura do paciente. As normas legais, por seu turno, cristalizavam juridicamente tais representações. O marco decisivo que, no bojo do processo de secularização da sociedade brasileira, modificou o status quo foi a Constituição da República Federativa do Brasil

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Bioética, solidariedade crítica e voluntariado orgânico

(Brasil 1988). Na saúde, o impacto se fez sentir com a introdução de novas formas de relacionamento em geral, na relação médico–paciente em particular. Tais mudanças nas relações intersubjetivas são resultantes do processo de secularização aliado à ampliação do individualismo liberal e democrático no país. Elas são consentâneas com o paradigma representado pelo mundo civilizado e podem ser sintetizadas pelos valores clássicos da igualdade e da liberdade. Com a progressiva mudança na cultura política e social, a sociedade brasileira encontra-se hoje num período de valorização e ampliação do espaço da sociedade civil (Weffort 1998). O surgimento de novas organizações sociais, aliadas às tradicionalmente existentes, a ampliação da quantidade de voluntários e de espaços para a prática do voluntariado sinalizam os inúmeros problemas sociais existentes no país. São, portanto, as organizações sociais, no espaço da sociedade civil, os novos agentes de mudança (Roca 1994). Este trabalho busca propor, entre os novos princípios e valores associados à sociabilidade moderna, aquele que melhor se coaduna com relações interpessoais guiadas pela igualdade e pela liberdade, qual seja, a solidariedade. A proposta tem respaldo na crença de que a atividade voluntária nos marcos da solidariedade é elemento importante para aqueles que buscam a justiça social, aliada ao interesse pela compreensão do fenômeno. Além disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) ampliou a ação social ao declarar 2001 o Ano Internacional do Voluntariado e com isso “legitimar o interesse pelo outro”. O presente estudo tem por objetivo propor a “solidariedade crítica” como valor a ser incorporado na agenda bioética do século XXI e como instrumento na prática voluntária, pela identificação da motivação dos voluntários.

Métodos

A pesquisa foi realizada em cinco associações de voluntários atuantes em uma instituição de combate ao câncer localizada no município do Rio de Janeiro e fundada em 1938. Essa instituição, de administração direta do Mi­ nistério da Saúde, é vinculada à Secretaria de Assistência à Saúde daque­ la cidade. A população da qual foi retirada a amostra foi de 731 voluntários devidamente legalizados — conforme a lei n. 9.608, de 18 de fevereiro de 1998 — e pertencentes a cinco associações escolhidas para compor a amostra. Os critérios de exclusão foram: voluntários de associações religiosas (119); voluntários em período de adaptação (120), num total de 239 voluntários

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excluídos. A população final foi de 492 sujeitos. A amostra foi calculada com a utilização dos seguintes parâmetros: nível de confiança de 95%; prevalência estimada do desfecho, 10%, obtendo-se um total de 105 pessoas. Para prevenir possíveis perdas, acrescentaram-se cinco voluntários, obtendo-se o número final de 110 voluntários amostrados. A fase de coleta de dados foi de outubro a dezembro de 2000. Para a abordagem dos sujeitos da pesquisa optou-se pela aplicação de questionário com dezesseis perguntas fechadas. Esse questionário foi dividido em duas partes: uma introdutória, com sete itens, constando de dados gerais dos entrevistados; e a outra referente às motivações deles com relação ao tema da solidariedade. Foram distribuídos 110 questionários, retornaram 106, e um sujeito recusou-se a participar da pesquisa. O segundo momento constou da aplicação de entrevista semiestruturada e gravada, dirigida somente a sete voluntários. O motivo dessa escolha foi porque, no processo de aproximação, contato e aplicação dos questionários, esses voluntários mostraram-se mais envolvidos com o tema, com especial capacidade de interpretação dos fatos e, acima de tudo, inquietude diante do assunto.

Resultados e discussão 16 Perfil socioeconômico

A análise descritiva, a partir das variáveis sexo, idade, escolaridade, ocupação, renda e estado civil, mostrou que as características mais destacadas do voluntário são as seguintes: são predominantemente mulheres (89,5%), acima de 40 anos (79,0%), aposentados (28,6%), profissionais liberais (23,8%) ou do lar (30,4%). Muito embora predomine a formação superior (41,9%), há uma parcela representativa com escolaridade mínima de segundo grau (37,2%). Com relação ao estado civil, são em sua maioria sem companheiro (40,5%), havendo também mulheres casadas (34,3%). Quanto à variável renda, 32,4% recebem entre cinco e dez salários-mínimos e 21,9% recebem acima de dez salários-mínimos. O número de voluntários solteiros, viúvos e divorciados (50,5%) é muito representativo e, sem dúvida, é fator de influência na adesão à atividade voluntária. Eis a distribuição percentual segundo condição civil dos voluntários: casados, 36 (34,3%); solteiros, 21 (20%); viúvos, 18 (17,1%); divorciados, 14 (13,4%); união estável, 7 (6,7%); em branco, 9 (8,5%). Dos voluntários amostrados, 89,5% são do sexo feminino e 10,5% do sexo masculino. O percentual elevado de mulheres no trabalho voluntário ilustra o peso de sua participação na atividade voluntária. Com base na legislação trabalhista vigente no Brasil, a mulher aposenta-se, em média, com cerca

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de 15% de tempo de atividade a menos que os homens e têm uma expectativa de vida cerca de 10% maior. Isso pode explicar, em parte, a maior participação da mulher na atividade voluntária. Agregue-se às inferências acima o fato de as ocupações da área da saúde no Brasil serem preenchidas por mulheres, o que influi na alta participação do sexo feminino na atividade voluntária. Essa visão recoloca as mulheres no lugar que sempre ocuparam, reforçando padrões de opressão e subordinação impregnados nos homens e mulheres pela tradição eminentemente masculina (Rosaldo, Lamphere 1979). O enfrentamento de visões tão arraigadas estaria sob a responsabilidade das próprias mulheres, que individual e coletivamente devem assumir o ônus da rebeldia (Kuhse 1997). A solidariedade crítica, como valor, deve ser pautada por uma prática capaz de avaliar e aproximar o discurso sobre a igualdade e incorporá-lo à prática cotidiana, produzindo relações mais igualitárias entre homens e mulheres. Motivações para a atividade voluntária

A partir dos dados recolhidos, pode-se resumir as razões fundamentais que estabelecem as motivações para a atividade voluntária em torno de três tipos de motivações básicas: a. motivações pessoais relacionadas à vida do voluntário, b. motivações decorrentes da crença professada, e c. motivações despertadas pelo sentimento de solidariedade. Motivações relacionadas à vida do voluntário

As razões dadas como justificativa para exercer a atividade voluntária têm como centro de interesse a busca da realização pessoal do sujeito da ação. Ele é voluntário para “dar sentido à própria vida“, “para ocupar o próprio tempo”, “para ter a possibilidade de comunicar-se”, “para superar o vazio da existência”, “para sentir-se melhor como pessoa”. Observou-se que 10,4% dos entrevistados, ao estabelecer relações entre sua definição pessoal de solidariedade e as características que a identificam, indicaram a conquista do “próprio bem-estar” como fator relacionado às motivações pessoais. Pelas entrevistas abertas foi possível observar a ênfase atribuída às questões pessoais como fortemente influentes no movimento para a atividade voluntária. Para Roca (1994), as motivações que têm como pano de fundo dilemas relativos à existência mobilizam as pessoas na busca da realização pessoal. O voluntário busca respostas para as próprias inquietações e a cura para suas dores existenciais pela relação empática com o sofrimento alheio. Imoda (1996) possibilita uma aproximação explicativa para tais vivências e a assimilação silenciosa e compartilhada do fenômeno da dor pela ligação em-

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PARTE 1 PRINCIPAIS ARTIGOS DE LUCILDA SELLI

pática. Cortina (1991), por sua vez, segue a mesma perspectiva, acrescida de um ingrediente crucial: “reviver em si a experiência do outro”. A convivência com a própria vulnerabilidade desperta para a vulnerabilidade alheia (Guilhem 2000). O voluntário, por essas falas, revela ser alguém que deve encontrar o próprio deserto para reconhecer e acolher o deserto do outro. Motivações relacionadas à crença professada

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A motivação é fecundada pela filosofia de vida que a crença propõe a seus adeptos. O foco do interesse motivacional é a pessoa do voluntário, que, como crente, cumpre com os preceitos que sustentam sua fé. Nessa tipologia de motivações, o sujeito é voluntário para “conquistar a perfeição” por meio do “exercício da caridade”, do “amor ao próximo” e da “compaixão” de “boas obras”. Tanto na doutrina cristã como no espiritismo kardecista, o amor ao próximo é um valor básico e encontra seu fundamento em Mateus 25,34-40, e os entrevistados, em sua maioria (56,2%), o consideraram a motivação por excelência para o voluntariado. Esse valor representa, em ambas as doutrinas, espírita kardecista e cristã católica, a virtude suprema. Acresce ao que foi dito o fato de os voluntários possuírem, em sua maioria, mais de 40 anos (82,9%), o que faz que os valores religiosos tenham maior influência nessa população. A idade, portanto, é uma variável interveniente que afeta as motivações dos voluntários. Foi constatado que parcela representativa dos voluntários (27,6%) possui mais de 60 anos e 41,9% têm curso superior ou pós-graduação. O cumprimento do mandamento da Lei de Deus confere certa tranquilidade aos agentes por estabelecer padrões morais a ser seguidos tidos como verdadeiros. Tanto o voluntário que apela a Deus — seja na inspiração ou para legitimação — como aquele que encontra no voluntariado espaço para dar evasão às questões existenciais têm parcela de contribuição nos moldes de voluntariado para os tempos atuais. Entende-se que as motivações alicerçadas em filosofias religiosas caracterizam a solidariedade por semelhança, na qual seus adeptos comungam os mesmos valores. A solidariedade para os tempos atuais, com suas múltiplas moralidades, é aquela que inclui todos aqueles que participam da condição humana. Motivações alicerçadas na solidariedade

A solidariedade atingiu o segundo lugar entre os entrevistados, alcançando o total de 22,9% na amostra. Nessa tipologia motivacional, a atividade voluntária tem no centro de seus interesses o bem do outro. O sujeito é volun­ tário para “ajudar as pessoas”, “tornar as pessoas mais autônomas”, “contribuir na construção da justiça”, “reduzir as disparidades sociais”, “cumprir

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Bioética, solidariedade crítica e voluntariado orgânico

com a sua parte como membro da sociedade”. Os entrevistados, em sua maioria (69,5%), reconheceram ser a motivação um ato espontâneo. Falta, contudo, perceber que, além da disponibilidade interna, a solidariedade crítica é uma prática que supõe sujeitos engajados, politizados e comprometidos com a causa social. A mola propulsora à atividade voluntária solidária é o reconhecimento do outro como sendo um humano igual a cada um de nós e, como tal, digno. A dignidade ética torna o ser humano sujeito criador de valores e, assim, capaz de dar um sentido à sua existência (Sartre 1973). Ficaram evidenciadas, pelos dados encontrados, a reciprocidade e a alteridade como indicadores basilares da solidariedade, pois a relação “eu– tu” é uma relação de reciprocidade (Buber 1977). A solidariedade é um valor do ser humano que precisa ser aprendido. A ideia de “construção” da solidariedade tematizada por Rorty (1994) realça o fato de que a solidariedade é uma conduta social aprendida. Evoca a responsabilidade que temos na manutenção dessa construção. Parker (1994) destaca que a palavra de ordem numa leitura rortiana da solidariedade é clara: não pode haver combate eficiente das questões sociais que atingem os seres humanos se não há preocupação com a vida e com os ideais de justiça e tolerância moral. Quanto mais conscientes dos direitos civis ou simplesmente humanos, mais preparados para enfrentar os efeitos nocivos do poder ou da opressão, pois diz Sartre (1973): “Quando declaro que a liberdade, através de cada circunstância concreta, não pode ter outro fim senão querer-se a si própria, se alguma vez o homem reconheceu que estabelece valores no seu abandono, ele já não pode querer senão uma coisa — a liberdade como fundamento de todos os valores”. A solidariedade, como o princípio da liberdade, prescinde e transcende prescrições e imposições de qualquer ordem; pelo contrário, sua prática expressa o exercício da liberdade. A ruptura do modelo assistencial detectado, em que pese a grande maioria do voluntariado ter se mostrado basicamente tradicional, supõe um trabalho de conscientização. Deve possibilitar aos membros integrantes das diferentes associações visibilizar os interesses permeadores de suas práticas e criar condições para o confronto com os pressupostos que qualificam um voluntariado verdadeiramente politizado, comprometido e adequado para atender às demandas específicas dos tempos atuais. A proposta da solidariedade crítica como valor a sedimentar o voluntariado orgânico visa à continuidade das ações voluntárias. Reconhece o mérito da atividade caritativa, assistencialista e humanista que perpassou a história do voluntariado e caracteriza o voluntariado pesquisado. Além disso, identifica e denuncia ser tal atividade insuficiente e inadequada para suprir as exigências das sociedades no mundo pós-moderno e visualiza a necessidade de uma ruptura do modelo assistencial de voluntariado. Posto isso, propõe-se o voluntariado orgânico

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como mecanismo de transição, mobilização e transformação para o enfrentamento do modelo assistencial de voluntariado detectado. O processo de mudança depende, em parte, da compreensão e da assimilação pelas associações voluntárias de seu potencial papel em tal processo. Ele deve constituir-se em uma instância social com identidade própria, referencial teórico específico e espaço de ações e intervenções que privilegiem radicalmente o respeito ao pluralismo moral e a construção de transformações sociais includentes. A identidade da solidariedade crítica está centrada no comprometimento do sujeito em suas intervenções e ações orgânicas, visando a proporcionar ao “outro” a conquista da autonomia, livre de paternalismo ou de qualquer outra forma de assistencialismo e autoritarismo, cuja expressão histórica concretiza-se no exercício da liberdade individual consagrada na Carta dos Direitos Humanos e na Constituição brasileira (Brasil 1988). O voluntariado orgânico constitui mais um espaço para promover o exercício da liberdade individual e coletiva. O enfrentamento dos problemas sociais supõe articular as disposições governamentais com as iniciativas sociais, os recursos institucionais com as dinâmicas comunitárias, a competência técnica com a habilidade humana. A proposta da solidariedade como valor que guia as associações nas práticas voluntárias orgânicas compreende tal fator agregador das forças civis, políticas e sociais. A proposta da solidariedade crítica oferece ao voluntariado orgânico, em geral, a oportunidade de refletir sobre sua prática, aperfeiçoá-la e torná-la mais eficiente para seus propósitos. A prática voluntária orgânica pautada pela solidariedade crítica revela-se pela capacidade dos agentes de despertar as pessoas para que participem, consciente e criticamente, de questões que envolvem as problemáticas sociais. A cultura da participação é essencial para a educação, para a conscientização, para o comprometimento pessoal dos sujeitos sociais no processo de mudança e inclusão social. O voluntariado orgânico interage na construção desse dinamismo social participativo visando à essência do verdadeiro bem-estar coletivo. Tornou-se evidente que a solidariedade crítica deve ser entendida como condição para a justiça e como medida que constitui um complemento para sua concretização. Num país marcado por profundas desigualdades, tanto culturais como materiais, cabe à bioética procurar ampliar os espaços das pessoas em sua esfera específica de atuação e, com isso, contribuir na busca de uma maior justiça social.

Referências bibliográficas Beauchamp, T. L., Childress, J. F. Principles of Biomedical Ethics. New York, Ox­ ford University Press, 1994.

Solidariedade crítica e cuidado

Bioética, solidariedade crítica e voluntariado orgânico

Bobbio, N., Matteucci, N., Pasquino, G. Dicionário de política. 7ª ed. Brasília, Ed. UnB, 1995, v. 2. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo, Saraiva, 1996. Buber, M. Eu e tu. São Paulo, Cortez & Moraes, 1977. Cortina, A. La moral del camaléon. Madrid [s.n.], 1991. Engelhardt, T. Fundamentos da bioética. São Paulo, Loyola, 1998. Garrafa, V. Bioética, saúde e cidadania. Mundo Saúde 23(5) (1999) 263-269. Gramsci, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979. Guilhem, D. Escravas do risco: bioética, mulheres e aids. Tese (Doutorado). Brasí­ lia, UnB, 2000. Imoda, F. O desenvolvimento humano. São Paulo, Paulinas, 1996. Kuhse, H. The Slumbering Giant. In: Caring: Nurses, Women and Ethics. Oxford, Blackwell Publishers, 1997, p. 199-219. Parker, R. G. A construção da solidariedade: aids, sexualidade e política no Brasil. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994 (História Social da Aids 3). Potter, V. R. Bioethics: Bridge to the Future. New Jersey, Prentice-Hall, 1971. Roca, G. J. Solidariedad y voluntariado. Santander, Sal Terrae, 1994. Rorty, R. Contingência, ironia e solidariedade. Lisboa, Presença, 1994. Rosaldo, M. Z., Lamphere, L. Mulher, cultura e solidariedade. São Paulo, Paz e Terra, 1979. Sartre, J. P. O existencialismo é um humanismo. São Paulo, Abril Cultural, 1973 (Os Pensadores). Weffort, F. (org.). Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montes­ quieu, Rousseau, “O federalista”. São Paulo, Ática, 1998, v. 1.

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Lucilda Selli Volnei Garrafa

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interesse pela proposta da solidariedade crítica como valor a orientar o serviço voluntário orgânico tem, entre outras justificativas, motivações provenientes da realidade social e outras alicerçadas em vivências pessoais. A adjetivação crítica, no contexto deste trabalho, diz respeito à capacidade do agente de discernir, ou seja, de possuir critérios capazes de ajudá-lo a discriminar as dimensões social e política indissociavelmente presentes na relação solidária. Assim, a solidariedade não se esgota enquanto relação típica da sociedade civil. Ao contrário, possui um elemento político que tem como referência o Estado. A capacidade de entender essa dimensão política, que se refere à cidadania e à possibilidade de intervir de forma ativa na definição de políticas públicas, também caracteriza essa dimensão crítica. O conceito de voluntariado orgânico, por sua vez, foi construído por analogia ao conceito de intelectual orgânico desenvolvido por Gramsci (1979) e é entendido como uma participação ativa e beneficente das pessoas que desenvolvem a atividade voluntária na construção das condições necessárias à democratização efetiva do Estado, em todas as suas dimensões, em nosso caso específico na área da saúde. Respalda esta proposta a crença de que existe um potencial a ser explorado entre os prestadores de trabalho voluntário para uma adequada utilização de suas capacidades, as quais podem atuar no enfrentamento da questão social, que hoje no Brasil é premente e demanda soluções que reduzam a exclusão e a desigualdade social. A leitura que a sociedade brasileira faz da atividade voluntária ainda está plena de estereótipos e pre1. Publicado na revista História, Ciências, Saúde, Manguinhos, 13(2) (2006) 239-251.

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conceitos ligados a representações sociais que foram construídas ao longo do tempo e fazem parte de nossa cultura política. A solidariedade que se busca compreender e propor como motivação central para a atuação voluntária em organizações da sociedade civil é um valor ligado à organização da sociedade moderna. Esta, por definição, não deriva de doutrinas políticas ou religiosas, que por sua natureza são parciais. Contudo, é um valor central e serve como motivador para as associações voluntárias de todos os tipos que tenham como objetivo principal trazer benefícios aos necessitados. Em sua dimensão ética, designa um valor imanente à condição humana, que decorre do fato de os seres humanos viverem em comunidade, viverem, portanto, em relações interdependentes (Prudente 2000). A crença de que a atividade voluntária nos marcos da solidariedade é elemento importante para aqueles que buscam a justiça social, aliada ao interesse pela compreensão do fenômeno, e a tentativa da Organização Mundial da Saúde de ampliar a ação social ao declarar 2001 o Ano Internacional do Voluntariado e com isso legitimar o interesse pelo “outro” levaram-nos a estudar e aprofundar tal tema. No campo da saúde, os princípios e valores que regulamentam a conduta dos profissionais pautaram-se pelo binômio beneficência e caridade. A beneficência sintetiza a deontologia médica hipocrática, e a caridade representa os valores clássicos da tradição cristã na área da saúde. Tais representações sociais, passando pelo mundo político, estabeleciam uma configuração específica ao direito nas questões ligadas à saúde. Exemplificado na relação médico–paciente, o polo ativo dava-se na figura do médico e o polo passivo encarnava-se na figura do paciente. As normas legais, por seu turno, cristalizavam juridicamente tais representações. O marco decisivo que, no bojo do processo de secularização da sociedade brasileira, modificou o status quo foi a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Esse diploma fundamental sintetiza as novas representações éticopolíticas da sociedade brasileira. O ordenamento jurídico brasileiro passou, aos poucos, a se adequar à nova realidade. Pessoas e cidadãos passaram a ter novos direitos tutelados pelo Estado. Na saúde, o impacto se fez sentir com a introdução de novas formas de relacionamento em geral, e da relação médico–paciente em particular. Tais mudanças nas relações intersubjetivas — em nossa visão, resultantes de um processo de secularização aliado à ampliação do individualismo liberal e democrático em nosso país — são consentâneas com o paradigma representado pelo mundo civilizado e podem ser sintetizadas pelos valores clássicos da igualdade e da liberdade. Com a progressiva mudança na cultura política e social, a sociedade brasileira encontra-se hoje num período de valorização e ampliação do espaço da sociedade civil. O surgimento de novas

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organizações sociais, aliadas às tradicionalmente existentes, e a ampliação da quantidade de voluntários e espaços para a prática do voluntariado sinalizam que a sociedade brasileira passa a enfrentar o desafio dos inúmeros problemas sociais existentes no país. São, portanto, as organizações sociais, no espaço da sociedade civil, novos agentes de mudança (Roca 1994). Este trabalho insere-se no contexto descrito. Busca propor, entre os novos princípios e valores associados à sociabilidade moderna, aquele que melhor se coaduna com relações interpessoais guiadas pela igualdade e pela liberdade, qual seja, a solidariedade. Também é de interesse tornar claras as motivações que norteiam a conduta dos voluntários na expectativa de que estas atividades se ampliem, com evidentes benefícios sociais, a exemplo de outros países que já possuem uma “tradição” de voluntariado nos moldes contemporâneos.

Solidariedade em perspectiva histórica

O tema da solidariedade tem várias interpretações no mundo de hoje. A solidariedade como valor ético, fazendo uma retrospectiva histórica, está presente na filosofia política do iluminismo. Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, via na solidariedade a capacidade de manter unida uma coletividade composta de indivíduos isolados. Na Revolução Francesa, o ideal da fraternidade, contraposto ao individualismo e ao egoísmo burguês, possuía características da solidariedade como se conhece hoje. Foi, porém, no pensamento anarquista que a solidariedade encontrou um amplo espaço para a explicação de uma característica usual em nossa espécie: as relações de ajuda mútua e apoio. Foi o príncipe russo Peter Kropotkin, convertido ao anarquismo, ideo­ logia política comum na Rússia do final do século XIX, que procurou dar um fundamento natural à solidariedade. Kropotkin procura demonstrar que Thomas Hobbes, ao descrever o “estado de natureza” em que se encontram os seres humanos na ausência do Estado como uma “guerra de todos contra todos”, diz uma meia verdade. A ajuda mútua, ou solidariedade, também possui um papel fundamental na evolução. Diz ele: “Se fizermos um teste indireto e perguntarmos à Natureza quem é mais apto, se as espécies que vivem constantemente em guerra ou as que se apoiam mutuamente, veremos de imediato que os animais que adquirem o hábito da ajuda mútua são os mais aptos” (Kropotkin, Ridley 2000). Nesta mesma linha de raciocínio, Camps (1996) entende que a solidariedade é uma lei da natureza, um sentimento irrefutável de adesão ao grupo e à espécie. Esse fundamento permite conceber a moral não como um compromisso de deveres e normas, mas como a busca do prazer e a

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repulsa da dor, isto é, uma moral utilitária, que no entanto não tem como sujeito do prazer o indivíduo, mas a sociedade. Infere Camps (1996, p. 37): “é certo que em toda a sociedade humana a solidariedade é uma lei da natureza infinitamente mais importante que a luta pela existência cuja virtude nos cantam os burgueses em seus refrãos a fim de embrutecer-nos o mais completamente possível”. A solidariedade seria intrínseca a todos os que participam da condição humana. As assimetrias, as desigualdades mobilizam nas pessoas essa dimensão, principalmente com os membros menos favorecidos e mais vulneráveis da sociedade. O conceito de solidariedade também esteve presente na sociologia do século XIX. Durkheim (1987), sociólogo francês, fez da solidariedade um conceito importante para designar as forças que mantêm unidos os membros de uma coletividade. Quando os indivíduos vivem em sistemas econômicos marcados pela ausência de especialização entre eles (divisão do trabalho), o que os mantém unidos é a solidariedade mecânica, que, segundo o autor, se caracteriza pelo compartilhamento de ideias comuns, costumes, crenças, hábitos. Com a divisão do trabalho e a consequente especialização dos trabalhadores surge a solidariedade orgânica, que, como o próprio nome denota, faz que os indivíduos, sendo interdependentes, comportem-se como um organismo. Os dois tipos sociológicos de solidariedade descritos por Durkheim solidificam a coesão interna e os vínculos existentes entre grupos sociais definidos. Essa forma de solidariedade impõe-lhe limites por restringi-la aos interesses de determinada coletividade. Na busca de um contraponto ao individualismo liberal, alguns pensadores católicos no final do século XIX, preocupados com o papel da doutrina social da Igreja, desenvolveram uma corrente fundamentada no chamado “solidarismo”. O interesse era fazer acontecer um equilíbrio entre o individualismo liberal e o coletivismo marxista (Wildmann 1961). No bojo da questão estava o interesse da Igreja Católica pelo direito à igualdade de todos os seres humanos. Tanto a doutrina social da Igreja como a teologia da libertação têm em sua gênese a solidariedade com as vítimas do sistema liberal capitalista (ANJOS 2000). Na compreensão da teologia da libertação, a solidariedade autêntica é a solidariedade entre desiguais. É uma solidariedade que postula transformações estruturais que corrigem as assimetrias existentes. A atividade voluntária orgânica deve, em princípio, ter como motivação o exercício da solidariedade crítica. Berlinguer (1996) lembra que todo indivíduo tem direitos próprios e, portanto, não pode ser usado ou manipulado por outros. A solidariedade crítica não aceita que diferenças naturais (sexo, raça, cor, idade etc.) ou sociais (renda, cultura, descendência etc.) possam levar a tratamentos desiguais entre os indivíduos, tanto no mundo privado quanto no mundo público.

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Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a igualdade é assim descrita: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (art. 5). A atividade voluntária orgânica constitui, portanto, um espaço singular em que os sujeitos, motivados pela solidariedade crítica como valor que orienta seu agir, são fautores da justiça. O valor que deve nortear a ética da responsabilidade há de ser a solidariedade. Nas palavras de Carvalho e seus colegas (1998, p. 32), “uma ética solidária, baseada na cooperação e na qualidade do que se produz, do que se vive e do que se pensa”. Uma ética que nasce, assim, de um sentimento de responsabilidade. Mediante a prática da solidariedade crítica pretende-se — como refere a raiz grega do termo solidus — construir uma sociedade mais igualitária, sólida, inclusiva (Gafo 1997). Sintetizando as observações teóricas referidas, enumeram-se algumas características do conceito de solidariedade nos moldes que respaldam a presente proposta: é um valor próprio da pessoa humana, que tem origem em sua dignidade; independe de determinações, prescrições e crenças religiosas, que criam comunidades morais distintas e, na maioria das vezes, antagônicas; tal como os direitos civis (vida, liberdade, direito de expressão etc.), ela é um valor universal; exercida pela pessoa na sociedade civil, independe, portanto, de seu papel de cidadão, de crente etc.; ela é praticada entre pessoas que comungam tanto idênticas quanto diferentes moralidades; sua prática deve estabelecer uma relação horizontal (unívoca); situa-se entre a ideia de imparcialidade — ser movido pelo bem geral do outro — e a ideia de benefício mútuo — reciprocidade.

A importância social do voluntariado

O conceito de voluntariado é utilizado nos dias de hoje, conforme Szazi (2000), com o objetivo de designar as condutas das pessoas que prestam serviços não onerosos na sociedade civil e em diferentes áreas onde tais serviços são necessários. A atividade voluntária organizada surgiu na Europa, quando a urbanização e o êxodo rural associado à industrialização, em seus primórdios, trouxeram consequências negativas para amplas parcelas da sociedade. No mundo rural pré-industrial algumas instituições eram responsáveis pela solução de problemas como fome, doença e catástrofes naturais que pudessem atingir indivíduos ou grupos. A família extensa de caráter patriarcal, as instituições religiosas ou mesmo a comunidade tinham tal atribuição. Não existia ainda um Estado capaz de propor políticas públicas de amparo aos necessitados. Do ponto de vista histórico, o Estado moderno surgiu no Ocidente, na maioria dos casos, nos séculos XIV a XVI,

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pouco antes do início das mudanças econômicas e sociais trazidas pela industrialização, baseada no sistema econômico capitalista. No século XVII a Inglaterra já formulara uma doutrina política liberal para o Estado, uma política centrada no indivíduo. O liberalismo político criara um Estado para tutelar os direitos individuais e garantir a atividade econômica. A questão social surgida na Europa com a migração e a urbanização (fome, desemprego, miséria etc.) tinha de ser administrada pela própria sociedade civil, e foi nesse contexto que surgiram as associações voluntárias de caráter social. Além de contribuir para a solução de questões sociais, as organizações voluntárias tiveram um papel importante na defesa da sociedade contra o exercício arbitrário do poder do Estado. Como intermediárias entre o indivíduo isolado e a sociedade política, coube às associações voluntárias (partidos políticos, sindicatos, instituições de intelectuais, associações religiosas etc.) promover a defesa da sociedade civil contra o poder arbitrário do Estado. Bobbio (1995) assegura que com o surgimento e a ampliação da democracia política na Europa, a partir da segunda metade do século XIX, mais importante tornou-se o papel das associações voluntárias. Segundo Weffort (1998), o processo de democratização política experimentado na Europa muito deveu a elas. O mesmo pode-se dizer dos Estados Unidos. Adeptos do liberalismo político, os construtores do Estado norte-americano reservaram um amplo espaço à auto-organização da sociedade civil, dotando as comunidades de um grande poder para gerir seus destinos sem a interferência pública. O cientista político norte-americano Robert A. Dahl (in Bobbio et al. 1995) entende que são necessários muitos centros de poder, dos quais nenhum possa ser inteiramente soberano. Embora na perspectiva do pluralismo americano só o povo seja o legítimo soberano, ele não deve ser nunca um soberano absoluto. A teoria e a prática do pluralismo americano tendem a afirmar que a existência da multiplicidade de centros de poder, nenhum deles totalmente soberano, ajudará a refrear o poder, a garantir o consenso de todos e a resolver pacificamente os conflitos. No constitucionalismo moderno, o direito de associação é um dos múltiplos direitos civis tutelados pelo Estado. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assim se expressa com relação ao tema em seu artigo 5, inciso XVII: “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”; e no inciso XVIII: “a criação de associa­ ções e, na forma da lei, de cooperativas independe de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”. O espaço deixado ao Estado pela doutrina liberal é eminentemente negativo: não interferência no mundo privado. O Brasil, embora colonizado por um país “europeu”, teve outro destino histórico.

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Na tradição política portuguesa, influenciada por uma extensa ocupação árabe, o Estado ocupava não só o espaço que lhe cabia na vida social mas também o espaço do que hoje se chama sociedade civil. Com uma tradição política distinta da sociedade liberal cujo modelo é a Inglaterra, tal forma de dominação política, transportada para o além-mar, estabeleceu as características principais das relações entre Estado e sociedade civil neste país, que se mantêm até os dias de hoje. Entre elas, sobressai o “culto ao Estado” como agente capaz não só de estabelecer a paz social e a justiça, mas também de produzir riqueza, assistir aos desvalidos e, no limite, trazer a felicidade a todos os seus membros, ao menos no discurso (Schwartzmann 1988). Na díade Estado–sociedade civil, o polo ativo é o Estado, em seus três níveis organizativos: federal, estadual e municipal. Tal processo acarretou para os membros da sociedade civil uma fraca capacidade organizativa na solução de seus problemas e na defesa de seus interesses, e esse traço cultural percorreu toda a nossa história política. A sociedade civil brasileira é assim descrita por Schwartzman (1988, p. 16): “Diante de um Estado com estas características, como se estrutura a sociedade? Em parte, ela segue uma dinâmica própria, que não se explica nem se entende pelo que ocorre no nível político”. O país passou da escravatura para o trabalho livre através de um processo dramático de deslocamento populacional do campo para as grandes cidades e de um estímulo à imigração, desenvolvendo um parque industrial de grandes proporções na região centro-sul. Não se pode dizer que tudo isto ocorreu por decisão ou intenção dos governos, ainda que o Estado neopatrimonial tratasse sempre de influenciar ou condicionar estes processos. O autor chama a atenção para a tradição estatizante da cultura política vigente na sociedade brasileira. O Estado é quase tudo; a sociedade, quase nada. Prova disso é o pequeno papel desempenhado pelos partidos políticos e outras associações voluntárias em nossa história. Apenas a Igreja conseguiu ter um peso político relevante. Mas, como lembra Dreher (2000), na tradição política portuguesa a Igreja fazia parte do Estado. A questão social, segundo Bobbio (Bobbio et al. 1995), foi encampada por um Estado marcado pelo paternalismo e pelo assistencialismo, Estado a quem cabia a solução dos problemas sociais. Os limites de tais práticas, tanto paternalistas como assistencialistas, segundo Schwartzman (1988, p. 54), logo se fizeram sentir. Em suas palavras: “Estas transformações tão intensas não poderiam deixar de colocar em crise a relação de simbiose e dependência que havia se estabelecido no passado entre o Estado brasileiro e a sociedade civil. Entra em crise a administração patrimonial clássica, formalista, pesada, ineficiente e voltada para a distribuição de empregos e privilégios”. O Estado agora é chamado a gerir com eficiência grandes aglomerados urbanos, proporcionar infraestrutura a uma economia moderna em expan-

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são, regular um sistema financeiro extremamente complexo, e assim por diante. O antigo sistema corporativista, que implicava um pacto de conveniência mútua entre o Estado e alguns setores mais organizados da sociedade, também entra em colapso: o número de participantes aumenta, os recursos e privilégios a ser distribuídos não crescem na mesma proporção. O “neomercantilismo”, conforme Weffort (1998), também sofre. Sua inerente ineficiência, os altos níveis de corrupção, tudo isso é aceito e tolerado quando a economia se expande e o que uns ganham não chega a ser necessariamente retirado de outros. Porém, quando os recursos se tornam mais escassos, quando os mecanismos inflacionários de financiamento do dispêndio público colocam em risco a ordem econômica e social, aumenta a pressão por maiores eficiência, racionalidade e previsibilidade das ações do governo. O autor refere-se a um período da política brasileira que se inicia nos anos 1940 e se prolonga até 1964, em que teve vigência o chamado “pacto populista”. Iniciado com Getúlio Vargas, o populismo tinha a função de incorporar as massas urbanas ao processo político de forma que nele não tivessem uma participação autônoma. Era, portanto, mobilizador dentro de uma relação personalista, em que não havia ou, quando havia, era frágil a mediação dos partidos políticos organizados. Por sua vez, o populismo, em todas as suas versões, é conciliador do ponto de vista social; exclui as lutas entre classes sociais e apela a um conceito mítico de “povo”. Sua função mais importante, contudo, como ilustra o caso brasileiro, é fazer a mediação política diante de um processo de crescimento econômico acelerado, no contexto de uma mão de obra oriunda do campo, com baixos níveis de qualificação e extremamente abundante. Com salários baixos, num processo de acumulação de capital baseado na exploração extensiva dos trabalhadores (grande jornada de trabalho), o Estado passa a proteger os trabalhadores (legislação trabalhista para os trabalhadores urbanos), amplia a saúde fornecida pelo setor público, desenvolve a previdência social, amplia a educação etc. Tudo isso, porém, traduz-se em concessões públicas e não em conquistas políticas dos trabalhadores, tal como ocorreu, por exemplo, na Europa. Como se pode ver, a “questão social” no Brasil é recente. Num primeiro momento, trata-se de incorporar as emergentes massas urbanas ao processo político e de promover, direta e indiretamente, um processo de industrialização acelerado. A industrialização brasileira é tardia em comparação com a dos países europeus. Iniciada por volta de 1930, quase dois séculos separam-nos da industrialização da Inglaterra, por exemplo. A migração maciça, a urbanização e o crescimento das cidades originam-se nesse período (Faoro 2000). A partir daí, o crescimento da população total e da população urbana é, no mínimo, impressionante. É nesse momento que surge, com toda a força, a “questão social” brasileira. Nesse período torna-se necessário dotar o país de infraestrutura urbana capaz de absor-

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ver o crescimento da população, possibilitando uma vida com um mínimo de dignidade para as pessoas. Também os serviços públicos essenciais são incapazes de acompanhar o crescimento da demanda. A administração da justiça entra em colapso, e a habitação, o saneamento e a previdência, entre outros, passam a ser problemas crônicos do país. So­mente quando a possibilidade de tratar a questão social de forma paterna­lis­ta e demagógica acaba, quando o Estado mostra seus limites e possibi­li­dades é que se amplia o espaço para a sociedade civil. A onipresença es­tatal, mesmo nos dias de hoje, ajuda a explicar a ênfase dada à dimensão da cidadania neste país. Como o Estado é nossa referência fundamental para a solução da questão social, e o cidadão o titular da soberania política, é tentador imaginar que este, ao assumir o controle público, possa utilizá-lo para “resolver” a questão social. Tudo, portanto, recebe a referência da ci­dadania: escola cidadã, participação cidadã e assim por diante. A participação da cidadania é um sinal de maturidade política que deve ser saudado. Somente não se pode manter a ilusão, sob nova roupagem e com outra linguagem, de que o Estado irá resolver a questão social em seus múltiplos desdobramentos. É nesse momento que surge, entre tantas outras, a possibilidade de ampliação quantitativa e qualitativa do voluntariado. Do ponto de vista quantitativo, pode-se imaginar, num país dominado por uma população jovem, o grande potencial de recursos humanos facilmente mobilizáveis para atender às demandas sociais da população periférica, tanto das pequenas comunidades quanto das metrópoles urbanas. Do ponto de vista qualitativo, pode-se imaginar a capacidade contributiva social de um significativo número de aposentados com alta qualificação. Neste trabalho, a ênfase às associações voluntárias está dada por sua capacidade de aglutinar esforços da própria comunidade, o que vemos como aspecto básico para enfrentar os problemas sociais, tão veementes nos dias atuais. Ao mesmo tempo, não se pode concluir apressadamente que seja proposta uma retirada do Estado e de suas políticas sociais. Ao contrário, deseja-se um sinergismo de esforços diante de tão complexa tarefa. Deve-se trabalhar a dimensão da ética aplicada à saúde pública e coletiva, como justiça, cidadania, direitos humanos, liberdade, participação, responsabilidade, solidariedade, radicalidade e tolerância. Nesse sentido, entende-se que o voluntariado orgânico compõe-se de características específicas que o identificam, compreendidas nos seguintes pressupostos: a conduta voluntária é uma ação racional com relação a um valor: a solidariedade crítica; a conduta voluntária orgânica preenche uma série de requisitos, a saber: é exercida na sociedade civil, não tem como finalidade o poder político, direta ou indiretamente, nem qualquer outra forma dele; é na condição de pessoa que o agente dirige-se aos demais membros da

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coletividade e a seus potenciais beneficiários; é um compromisso unilateral e personalíssimo, que não se liga a nenhuma forma de ativismo (político, social, religioso) que busque no voluntariado uma função instrumental para seus desígnios; não possui, ao menos conscientemente, um conteúdo utilitário; não vê em sua prática a criação de uma moeda de troca ou uma forma de barganha psicológica ou religiosa; é uma busca da reciprocidade e da alteridade; é uma abertura ao outro e ao fato de participar de um mesmo universo existencial; denota um inconformismo individual com o status quo que leva a uma ação positiva em favor de mudanças sociais concretas; caracteriza-se por ser uma busca pela justiça dos destinatários da conduta voluntária livre de paternalismo ou de qualquer outra forma de autoritarismo; deve partir de uma postura democrática radical, que vê no outro um igual tanto em dignidade quanto em autonomia para buscar seus fins; deve ver na tolerância o pluralismo ético indispensável à realização, por todos os membros da coletividade, dos fins que considera relevantes para sua existência; busca a ruptura dos antigos parâmetros imobilizantes.

Palavras finais: construção da solidariedade crítica e voluntariado orgânico 32

A solidariedade, com a função de orientar as condutas das pessoas, é entendida nesta proposta de estudo como solidariedade crítica, ou seja, solidariedade comprometida, interventiva — que visa à transformação social na busca de políticas públicas democráticas e equitativas —, e produz mudanças nos níveis individual e coletivo. As mudanças entendidas como beneficentes para o indivíduo compreendem a busca da justiça. O sujeito da solidariedade, pela prática solidária crítica, estabelece com os destinatários da atividade voluntária orgânica relações que lhes possibilitam descobrir-se como sujeitos capazes de exercer seus direitos políticos e civis, de liberdade e igualdade. Na medida em que o indivíduo se reconhece como sujeito que possui direitos e deveres, tanto no plano social quanto no político, terá as condições necessárias para fazer suas escolhas e responder pelas consequências de suas decisões. Assim, em nível individual, a solidariedade crítica tem o papel de tornar o destinatário da ação solidária consciente de si mesmo, de seus direitos e deveres, como pessoa integrada na sociedade e como cidadão integrado na vida política. O comprometimento com o outro na vida em coletividade supõe abertura total às múltiplas dimensões da realidade, tanto do indivíduo como sujeito quanto da realidade sociopolítica na qual ele está inserido e exerce seus papéis de pessoa e de cidadão.

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Solidariedade crítica e voluntariado orgânico

A solidariedade crítica é o valor ético que motiva a prática voluntária orgânica; portanto, valor central que motiva a auto-organização social. Como valor que guia as pessoas no exercício da atividade voluntária, constitui um espaço singular para o exercício da cidadania nos marcos de uma democracia participativa. A solidariedade poderá realizar mudanças político-sociais, entre outras formas, a partir de um voluntariado orgânico, ou seja, por meio da ação concreta de grupos organizados de voluntários comprometidos com transformações sociais, com a luta pela inclusão crescente de um maior número possível de cidadãos nas decisões públicas que lhes digam respeito. O conceito de voluntariado orgânico é entendido como participação crítica das pessoas que desenvolvem a atividade voluntária, como contribuição na construção de condições necessárias ao cumprimento dos compromissos do Estado, em todas as suas dimensões, principalmente na prestação de serviços na área da saúde. O aprofundamento da democracia brasileira exige das pessoas uma postura radical no sentido de participarem de forma efetiva da condução das atividades públicas. As associações sociais, na medida em que fazem a mediação entre o in­ divíduo isolado e as instituições públicas, devem funcionar como “grupos de pressão” na busca da democratização do Estado. Ao voluntariado — organi­ camente ligado às demandas dos setores populares que necessitam, por um princípio de justiça equitativa, de políticas públicas efetivas — cumpre um papel fundamental nesse processo. Sua capacidade organizativa, aliada a uma clara percepção de que a solução dos problemas sociais passa necessariamente pela via política, estabelece-lhe um papel pedagógico no esclarecimento de direitos constitucionais fundamentais aos setores populares. A atividade voluntária, nessa perspectiva, deve ser acompanhada pelo comprometimento próprio de quem entendeu seu papel na sociedade civil, como porta-voz das aspirações dos segmentos que não possuem voz na sociedade. A força autêntica do voluntariado orgânico vem do espírito de comprometimento solidário na busca da liberdade efetiva e da igualdade social, pressuposto de uma sociedade que se pretende liberal e democrática. Torna-se urgentemente necessária a presença ativa da sociedade civil na discussão das prioridades sociais. O voluntariado orgânico, movido pela solidariedade crítica, tem um papel pioneiro na construção de uma sociedade comprometida com o bem-estar de seus membros e de um Estado com a participação efetiva da cidadania nas decisões de interesse coletivo. Nesse sentido, o estudo procura desmitificar a visão tradicional de voluntariado, focalizando-o sob uma visão orgânica. O voluntariado orgânico não objetiva substituir o Estado em seu compromisso público; constitui, na verdade, uma forma complementar de apoio às atividades relacionadas com a organização e o bem-estar social. A solidariedade crítica, assumida por grupos voluntários e outras associações

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da sociedade civil, constitui uma forma complementar às organizações do Estado e se traduz num apoio às atividades públicas que visam à promoção do bem-estar social e da cidadania.

Referências bibliográficas

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Solidariedade crítica e cuidado

Beneficiários do trabalho voluntário: uma leitura a partir da bioética 1

Lucilda Selli Volnei Garrafa José Roque Junges

Introdução

S

olidariedade crítica e voluntariado orgânico são dois polos que se relacionam e podem contribuir para a agenda bioética do século XXI. A adjetivação crítica diz respeito à capacidade do agente voluntário de possuir critérios capazes de ajudá-lo a discriminar as dimensões social e po­­lítica indissociavelmente presentes na relação solidária (Selli, Garrafa 2005). Voluntariado orgânico foi um conceito construído por analogia ao de intelectual orgânico, desenvolvido por Gramsci (1979) e entendido como participação politizada, ativa e beneficente das pessoas que desenvolvem o serviço voluntário, no caso específico na área da saúde. Atual­mente, instituições da sociedade civil, como algumas organizações não governamentais (ONGs), expressam seu compromisso com uma sociedade mais equânime e solidária. O voluntariado orgânico tende, assim, a fortalecer a autonomia e a capacidade das organizações da sociedade civil (Vieira 2000). No Brasil, as desigualdades sociais mobilizam o surgimento de novas organizações sociais, aliadas às tradicionalmente existentes, com a ampliação da quantidade de voluntários e de espaços para esta prática. A atividade voluntária é elemento agregador na construção da justiça social. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) aposta na ação social voluntária como um novo espaço de transformação social. A sociedade brasileira encontra-se num período de valorização e ampliação do espaço da sociedade civil no enfrentamento dos problemas sociais. 1. Publicado na Revista de Saúde Pública, 42(6) (2008) 1085-1089.

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A bioética pode ser um instrumento orientador para a solidariedade no campo do voluntariado. Em sua origem, a bioética refletia sobre as con­ sequências da crescente difusão de intervenções tecnológicas sobre o ambiente natural e o ser humano. O neologismo “bioética” foi criado e tor­nado público em 1971 com a obra Bioethics: Bridge to the Future, do oncologis­ ta Van Rensselaer Potter, que entendia que a bioética deveria ser a ciência da sobrevivência em face das diferentes ameaças à vida no planeta (Selli, Garrafa 2005). Por sua vez, Andre Hellegers, preocupado com a insuficiência da deontologia médica em proporcionar aos profissionais subsídios para responder aos desafios éticos das novas biotecnologias aplicadas à medicina, fundou em 1971 o The Kennedy Institute of Ethics (Washington), utilizando o mesmo neologismo (Beuachamp, Childress 1994). Portanto, a bioética tem como origem a preocupação com os avanços das biotecnologias aplicadas à vida e com os aspectos éticos do ato médico. Na perspectiva do serviço voluntário, preconiza-se uma compreensão de bioética com um referencial social (Callahan 1995). Isso implica considerar as dimensões sociais dos problemas, tais como aspectos legais e de políticas públicas (Garrafa 2000), aplicando-as ao campo da saúde coletiva. Buscam-se alternativas coletivas para a bioética e uma reação à simples importação descontextualizada das propostas ou “pacotes” éticos importados de países mais desenvolvidos (Garrafa 2005; Jacquard 1989). A solidariedade crítica constitui o valor principal a orientar os trabalhadores voluntários na área da saúde, numa sociedade que possui amplas parcelas da população com elevados índices de pobreza e marginalização. É neste contexto que se busca alargar sua reflexão e sua intervenção, entre outras formas, por meio da solidariedade crítica como valor motivador dos grupos e associações organicamente comprometidos com a questão social. Existe um potencial a ser explorado entre os prestadores de trabalho vo­ luntário para uma adequada utilização de suas capacidades, as quais podem atuar no enfrentamento da questão social, que hoje no Brasil demanda soluções. As associações de voluntários podem constituir-se em potentes dispositivos de mudanças na sociedade. Isso requer uma ética baseada no reconhecimento dos valores humanitários de solidariedade que devem presidir ao serviço voluntário e dos direitos de cidadania em torno da assistência à saúde. Esses valores deverão guiar a formação de um modelo de voluntariado social. Assim, faz-se necessário conhecer a percepção dos trabalhadores voluntários sobre os beneficiários do trabalho voluntário. O presente estudo teve por objetivo descrever a percepção dos volun­ tários sobre os benefícios individuais e coletivos e as motivações do trabalho voluntário.

Solidariedade crítica e cuidado

Beneficiários do trabalho voluntário

Métodos

A pesquisa foi realizada em cinco associações de voluntários (731 pessoas) no município do Rio de Janeiro (RJ), em 2001. Foram excluídos voluntários de associações religiosas (119) e voluntários em período de adaptação (120), num total de 239 indivíduos. A população final foi de 492 sujeitos. A amostra foi calculada com a utilização dos seguintes parâmetros: intervalo de confiança de 95%; erro amostral de 5%, prevalência estimada do desfecho de 10%, obtendo-se amostra mínima de 105. Para prevenir possíveis perdas acrescentaram-se cinco voluntários, obtendo-se amostra final igual a 110. Foi aplicado um questionário com dezesseis perguntas fechadas aos participantes. O instrumento foi dividido em duas partes: a primeira sobre dados gerais e informações socioeconômicas dos entrevistados, a segunda referente às motivações relacionadas ao tema da solidariedade. Foram distribuídos 110 questionários, dos quais retornaram 106, com uma recusa. A segunda etapa constou da aplicação de entrevista semiestruturada e gravada com sete voluntários. A escolha destes participantes considerou seu maior envolvimento com o tema durante a aplicação dos questionários. Resultados e discussão 37

Os participantes foram, predominantemente: mulheres (89,5%), acima de 40 anos (79,0%), aposentados (28,6%), profissionais liberais (23,8%) ou do lar (30,4%). Houve predomínio de voluntários com formação superior (41,9%), seguido de segundo grau completo (37,2%). Quanto à renda, 32,4% recebiam entre cinco e dez salários-mínimos e 21,9% acima de dez salários-mínimos. Quanto ao estado civil, 36 (34,3%) sujeitos eram casados, 21 (20%) solteiros, 18 (17,1%) viúvos, 14 (13,4%) divorciados, 7 (6,7%) viviam em união estável e 9 (8,5%) não responderam. A proporção de voluntários solteiros, viúvos e divorciados (50,5%) foi representativa e considerada fator de influência à adesão para a atividade voluntária. A análise dos beneficiários do trabalho voluntário ocorreu em três polos: individual, no qual o beneficiário é o voluntário; dual, no qual voluntário e pa­ciente são simultaneamente beneficiários; e coletivo, no qual o volun­tário resulta em um benefício maior, com repercussão para a dimensão social. Polo individual: o voluntário como maior beneficiário do trabalho voluntário

A visão dos voluntários sobre os benefícios do trabalho voluntário esteve centrada no paciente (50,5%), no voluntário (41,9%) e na instituição e na

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sociedade que receberam o trabalho (7,6%). No entanto, nas sete entrevistas semiestruturadas não houve nenhuma referência ao paciente como o único beneficiário; estes respondentes entendem que o voluntário é o mais beneficiado, relatando as razões para isso. As razões alegadas, fundamentando a ideia de ser o voluntário o maior beneficiário do trabalho por ele realizado, estão relacionadas ao aprendizado, à superação de si mesmo, ao redimensionamento do cotidiano e ao encontro com a própria humanidade: O voluntário, pelo contato com a doença, com a terminalidade, passa a repensar e reformular a vida de uma forma completamente nova, dinâmica e transgressora também. Ele se beneficia muito mais que o paciente.

A expressão “vira humano outra vez” faz entender que o contato, a convivência e a participação na vida do outro, na situação de sofrimento, despertam a sensibilidade humana no voluntário: O voluntário é o mais beneficiado porque ele redimensiona a vida. Ele redimensiona valores. Na hora em que começa a realizar um trabalho forte, que vai a fundo, que acredita, que vê que dá certo e que é possível, redimensiona tudo, até o seu lidar com os problemas, vira humano outra vez. 38

“[…] Essa riqueza que não existiria sem os homens e com a qual eles se gratificam mutuamente” (Buber 1977). A gratificação mútua expressa uma relação de permuta entre as pessoas. A cooperação é própria da condição humana. “Não habitamos o mundo somente através do trabalho, mas fundamentalmente através do cuidado e da amorosidade” (Potter 1971). Ao identificar-se como o maior beneficiário, o voluntário justifica que o contato com o paciente foi uma forma de redimensionar valores e reassumir a vida com uma dimensão maior. Outra interpretação sobre o voluntário ser o maior beneficiário está relacionada ao fato de o voluntariado buscar condições para uma existência digna e verdadeiramente humana (Cortina 1991). Nesse contexto, o trabalho voluntário expressa uma exigência no plano da realização pessoal, caracterizado como um lugar de refúgio e um espaço para encontrar motivos para viver com maior intensidade e conferir um sentido útil à existência. Polo dual: paciente e voluntário como beneficiários do trabalho voluntário

Nas entrevistas semiestruturadas, paciente e voluntário foram referidos co­ mo simultaneamente beneficiários:

Solidariedade crítica e cuidado

Beneficiários do trabalho voluntário

O paciente é beneficiado porque ele recebe amor, atenção, apoio, ele tem cuidados, em contrapartida, o voluntário se beneficia porque ele se torna um realizador de si mesmo.

Os entrevistados estabeleceram uma relação de reciprocidade na qual ambos são destinatários e sujeitos do benefício, apresentando uma noção de horizontalidade na relação: Não tenho nenhuma ilusão de que quando ajudo o outro estou me ajudando, assim o benefício é mútuo.

Compartilhar sofrimento traduz uma ligação empática (Buber 1977), e esse encontro com a dor do outro ressignifica o cotidiano da existência (Cortina 1991) ao compreender os benefícios do trabalho em uma perspectiva de interdependência (Melucci 2001).

Polo coletivo: instituição e sociedade como beneficiários do trabalho voluntário

O trabalho voluntário como uma atividade mais abrangente, com repercussões para a instituição e a sociedade, teve pouca ênfase nos dados quantitativos (7,6%). Entretanto, há uma compreensão da importância social da atividade voluntária. Nesta tipologia de motivação, pautada pelo interesse do benefício coletivo, o voluntário dirige-se aos outros, em primeiro lugar, com o fim de se fazer útil às necessidades do outro: O serviço voluntário é uma possibilidade de exercer minha cidadania plenamente. Eu só posso exercê-la plenamente na medida em que outras pessoas também possam. Ninguém pode ser cidadão se o outro que está ao lado dele não é, não importa se eu o conheço ou não.

Houve relatos sobre a necessidade de ultrapassar as visões estereotipadas acerca dessa atividade ainda presentes na sociedade e nos próprios voluntários: Aqui se está aprendendo um serviço voluntário com uma conotação muito maior, de comprometimento real que leva a mudanças na sociedade […] aqui se aprende com os nossos dirigentes que o trabalho voluntário não deve ser assistencialista e nem interesseiro, o que ajuda a entender a abrangência do serviço.

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Há uma compreensão mais consciente do trabalho voluntário, revelando a conquista de um horizonte maior como sujeitos inseridos na sociedade, sendo o voluntariado social adequado para os tempos atuais. Embora o trabalho voluntário seja orientado por objetivos comuns, pode permanecer em seu interior uma multiplicidade de objetivos individuais ou de subgrupos (Camps 1996). Assim, a solidariedade constitui um valor bioético fundamental para orientar a prática voluntária ao dar visibilidade e voz aos menos favorecidos (Selli, Garrafa 2005) e à solidariedade crítica, baseada na dignidade de todos os seres humanos (Beauchamp, Childress 1994) A justiça social afirma tanto a dignidade moral quanto o igual respeito a todos os homens, questionando a ordem social vigente. A solidariedade deve ser entendida como condição para a justiça e como medida que compensa a insuficiência da virtude da justiça (Cortina 1991). Conforme Cortina (1991), a justiça não é completa sem a solidariedade e a autonomia não é autêntica sem a justiça-solidariedade. A bioética inscreve-se nos movimentos sociais em defesa dos grupos marginalizados e deve ser extremamente sensível para que todos tenham a necessária atenção na saúde.

Considerações finais 40

A diversidade motivacional dos resultados define a compreensão dos voluntários sobre os beneficiários de seu trabalho, com maior ênfase nas motivações centradas no polo individual e no polo dual. Quanto ao polo social (benefícios coletivos) do trabalho voluntário, as motivações traduzem um comprometimento com a transformação e o bemestar social (Imoda 1996). O processo de mudança das motivações com uma visão mais ampla sobre os beneficiários do trabalho voluntário (polo social) depende, em parte, da compreensão das associações de voluntários sobre seu potencial papel na sociedade (Callahan 1995). A visão de voluntariado com benefícios sociais prevê uma posição social autônoma e soberana, cuja expressão histórica concretiza-se no exercício da liberdade consagrada na Carta dos Direitos Humanos e na Constituição brasileira de 1988. O voluntariado orgânico, movido pela solidariedade crítica, constitui mais um espaço para promover o exercício da liberdade na prática dos direitos humanos (Callahan 1995). O trabalho voluntário contribui na construção do bem comum como motivação ética para guiar as pessoas no trabalho voluntário e participar ativa e criticamente na democratização efetiva do Estado nas dimensões sociais, políticas e econômicas (Cortina 1991).

Solidariedade crítica e cuidado

Beneficiários do trabalho voluntário

A bioética reforça a ideia de que o voluntariado orgânico pode desmitificar o distanciamento entre Estado e sociedade civil por meio da solidariedade crítica. Portanto, nem só o Estado é responsável pela questão social e nem só a sociedade civil isoladamente, mas a cooperação mútua é fator indispensável na construção da sociedade inclusiva (Selli, Garrafa 2005). Conclui-se que o voluntariado orgânico, movido pela solidariedade crítica em uma perspectiva bioética, possibilita construir progressivamente uma visão social de voluntariado em resposta às necessidades dos tempos atuais.

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Presença feminina na atividade voluntária: uma leitura a partir da bioética

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Lucilda Selli Volnei Garrafa

A

teorização sobre a problemática da participação majoritária da mulher em atividades voluntárias está voltada para a ampliação do debate sobre o tema do voluntariado orgânico no campo da bioética. Aqui abordam-se as razões alegadas pelos voluntários pesquisados co­ mo justificáveis para a participação feminina majoritária em atividades de cunho voluntário. Este é um dos aspectos que emergiram de uma pesqui­sa recente que analisou e propôs a solidariedade crítica como valor a ser incorporado na agenda bioética do século XXI, como instrumento no aprimoramento da democracia e na diminuição das disparidades sociais (Selli, Garrafa 2005). Entende-se por solidariedade crítica a capacidade do agente de discernir, ou seja, de possuir critérios capazes de ajudá-lo a discriminar as dimensões sociais e política indissociavelmente presentes na relação solidária. Assim, a solidariedade não se esgota enquanto relação típica da sociedade civil. Ao contrário, possui um elemento político que tem como referência o Estado. A capacidade de entender essa dimensão política, que se refere à cidadania e à possibilidade de intervir de forma ativa na definição de políticas públicas, também caracteriza essa dimensão crítica da solidariedade (Bobbio 1995). As razões alegadas como justificativas para a maior participação da mulher na atividade voluntária ofereceram elementos importantes para construir a visão de voluntariado que os atores possuem sobre a sua própria atividade voluntária e para propor um modelo de voluntariado com enfoque social, tendo como ferramenta de intervenção a solidariedade crí1. Publicado na Revista Brasileira de Bioética, 1(1) (2005) 80-90.

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tica. Em sua tese de doutorado, Gonçalves estabelece a solidariedade como um dos pressupostos da bioética de intervenção, para fazer frente à desconstrução do preconceito em torno do HIV/aids (Gonçalves 2005). Em essência, o que está ficando claro no contexto dos países periféricos é a necessidade de buscarem por meio da pesquisa respostas bioéticas próprias, adequadas a cada contexto sociocultural (Garrafa 2004). É também nesta perspectiva que se entende ser a solidariedade um valor que instrumentaliza os atores sociais voluntários a fazer frente aos preconceitos em torno do feminino/voluntário e ter ações voluntárias que possibilitem a emergência de sujeitos coletivos.

Alguns dados do contexto

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Propõe-se para o Brasil uma bioética pautada na solidariedade como um dos valores a orientar a área da saúde de uma sociedade que possui amplas parcelas da população num quadro permanente de pobreza e marginalização. Neste cenário, as pessoas que exercem a prática voluntária possuem como uma de suas ferramentas a solidariedade, como instrumento para romper a identidade de excluídos de muitos dos destinatários de suas ações. Para Maia, o voluntariado é uma das atitudes mais solidárias. Para ela, muitas instituições somente sobrevivem com a participação desse agente, por seu trabalho voluntário comprometido; trata-se do voluntariado que doa parte de seu tempo na realização de trabalhos sociais (Maia 2000). No caso brasileiro, mesmo constatando-se que ao longo dos últimos cinquenta anos têm-se investido recursos na área da saúde, tal investimento não tem sido suficiente para alterar o quadro de pobreza e exclusão de parcelas significativas da sociedade. Instituições da sociedade civil, como algumas organizações não governamentais, têm adotado a solidariedade como característica de suas ações, dando mostra de comprometimento com a sociedade na busca de alternativas que minimizem o quadro de injustiça ocasionado pela exclusão social. O voluntariado é uma ação que tem como função ser mediadora na condução das questões sociais, pautando-se, ao menos teoricamente, por uma política ancorada no valor da solidariedade, com capacidade de gerar transformações tanto conjunturais como estruturais para a busca da justiça e da dignidade humana. O espaço público constitui-se no lugar onde a ação, como mediadora da vida política, vai sintetizar o simbólico e o real presentes nas coletividades. O voluntariado como espaço para expressão de uma solidariedade comprometida com a busca de um projeto comum, capaz de ser assumido por uma comunidade como proposta operacional

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Presença feminina na atividade voluntária

e como referencial simbólico de sua subjetividade, pode constituir-se em uma ação política por excelência (Bavaresco 2004). Um estudo sobre a radiografia bioética do Brasil destacou a necessidade de buscar perspectivas alternativas para as teorias bioéticas tradicionais (Garrafa 2000). A proposta da solidariedade como instrumento que orienta o serviço voluntário qualificado como social é uma tentativa de introduzir progressivamente um modelo de bioética, a bioética de intervenção, condizente com nossa realidade e comprometida com o aprimoramento da democracia e a diminuição das disparidades sociais.

A ética do cuidado

O cuidado estava presente na antiga literatura romana pela palavra cura, traduzida por cuidado, atenção, interesse. A radical importância do cuidado para o ser humano aparece no mito, chamado de Cuidado, recolhido pelo autor romano Higino (Reich 1995). Heidegger fundamenta o cuidado antropologicamente. Este não é um conceito ao lado de outros, mas um ponto central de seu sistema filosófico (Heidegger 1988). O cuidado torna-se um modo de ser do ser-aí (Dasein). Entende o cuidado como uma dimensão fontal, ontológica do ser humano. Distingue taking care of de care of: o primeiro corresponde à preocupação pelas necessidades e carências dos outros, o segundo identifica-se com a solicitude pelas pessoas, por grupos humanos etc.; o primeiro remete à sobrevivência e à finitude do ser humano, o segundo supera e transcende a ansiedade da preocupação, desenvolvendo as potencialidades da solicitude que caracteriza o ser humano (Reich 1995). A fundamentação antropológica do cuidado abriu a perspectiva para a construção de uma proposta ética do cuidado. Em 1982 com a publicação da obra de Carol Gilligan In a Different Voice, emergiu a perspectiva do cuidado na ética, como resultado de um estudo sobre o desenvolvimento moral das mulheres realizado pela autora. Gilligan mostrou que as mulheres elaboram e avaliam conflitos morais de modo diferente dos homens. Para a autora, os homens procuram analisar os componentes do dilema separando-os em indivíduos isolados e tentando definir o direito de cada um na perspectiva da justiça. As mulheres buscam ver o conjunto das relações implicadas na situação, tentando detectar as conexões e procurando cuidar das inter-relações. Assim, o cuidado não é uma teoria, mas uma orientação ética que enfatiza a preocupação e o discernimento, os hábitos e as tendências de interpretação, a seletividade de habilidades e a destreza. A ética do cuidado de Gilligan concentra-se mais na atitude ou caráter da pessoa do que no comportamento ou no ato corretos.

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Para entender o estudo de Gilligan sobre o desenvolvimento moral das mulheres é necessário apresentar o pensamento de Kohlberg sobre o desenvolvimento moral. O autor buscou em seus estudos conhecer as características estruturais do raciocínio moral de um indivíduo e o processo de desenvolvimento de tais características. Concluiu que o desenvolvimento moral é universal para todos os humanos, sejam mulheres ou homens, e evolui de maneira progressiva e em diferentes níveis para formas superiores de maturidade moral. Os níveis progressivos de desenvolvimento moral significariam passar da formulação de juízos puramente heterônimos a um raciocínio ético autônomo. A autonomia representa a condição e a justiça, o conteúdo formal da moralidade madura. A teoria de Kohlberg está baseada na pura avaliação cognitiva de julgamentos morais, e nisso está sua debilidade como sistema de educação para valores morais. Examinando o processo de pesquisa de Kohlberg, Gilligan constatou que as avaliações sobre o desenvolvimento moral feitas naquele estudo estavam fundadas em critérios masculinos, já que, segundo o autor, as mulheres tinham dificuldade para chegar a juízos correspondentes ao nível pós-convencional. Conforme Gilligan, o problema não estava nas mulheres, mas na metodologia utilizada. Na controvérsia que se seguiu, Gilligan provou que as mulheres elaboram e avaliam conflitos morais de modo diferente que os homens. Para ela os homens assumem o enfoque da justiça na solução dos problemas morais, enquanto as mulheres adotam uma postura do ponto de vista do cuidado. O problema moral para as mulheres é uma questão de cuidado e responsabilidade nos relacionamentos em vez da pergunta sobre direitos e normas que caracteriza a ética da justiça. Gilligan articula a discussão entre a ética da justiça e a ética do cuidado. Entende que são duas orientações éticas diferentes, mas que devem se complementar, e não duas teorias que se opõem. O homem, mais inclinado ao esquema da justiça, precisa educar-se para a perspectiva do cuidado. A mulher, mais tendente ao cuidado, necessita despertar para o enfoque da justiça. O voluntário, ao eleger a solidariedade como valor que orienta sua atividade, necessita incorporar e articular a ética da justiça e a ética do cuidado à sua prática.

Metodologia

O projeto de pesquisa maior do qual resultou este estudo foi desenvolvido junto a cinco associações de voluntários atuantes, entre outras instituições, no Instituto Nacional do Câncer (Inca) do Rio de Janeiro (Selli, 2002). Os dados sobre as associações foram obtidos no contato com elas e por meio do Relatório de atividades do Inca — 1998/1999 (Brasil 1999). A população na

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qual foi escolhida a amostra foi de 731 voluntários, que constituíram as cinco associações definidas para participar da pesquisa. O critério de inclusão dos sujeitos da pesquisa foi o de serem voluntários devidamente legalizados, conforme a lei nº 9.608, de 18 de fevereiro de 1998, pertencentes às associações escolhidas para compor a amostra. Os critérios de exclusão foram: participantes de associações religiosas, com um total de 119 voluntários, e voluntários não registrados nas associações e em período de adaptação, completando o número de 120 voluntários. Na soma total foram excluí­dos 239 voluntários, resultando um desvio-padrão estatístico de 0,05%. Fo­ram acrescentados cinco voluntários a este total para prevenir possíveis perdas e assim foi obtido o número final de 110 voluntários amostrados. A amostra ficou assim distribuída: Associação dos Amigos da Criança com Cân­cer: 30 voluntários; Associação dos Amigos do Instituto Nacional do Câncer: 30 voluntários; Grupo de Apoio Integrado de Voluntários à Oncologia de Adultos e Adolescentes: 22 voluntários; Associação de Recreação e Apoio à Criança com Câncer: 15 voluntários; Associação de Voluntários em Artes e Apoio aos Pacientes do Hospital de Oncologia: 13 voluntários. Para a abordagem dos sujeitos da pesquisa optou-se pela estratégia metodológica em dois diferentes momentos. O primeiro momento foi de aplicação de um questionário com dezesseis perguntas fechadas, dividido em duas partes: uma introdutória, com sete itens, com dados gerais dos entrevistados; a outra referente a suas motivações com relação ao tema da solidariedade. O se­gundo momento foi a aplicação de uma entrevista semiestruturada e gravada, dirigida a sete voluntários que, no processo de aproximação, contato e aplicação dos questionários, se mostraram mais envolvidos com o tema, com especial capacidade de interpretação dos fatos e, acima de tudo, demonstração de inquietude diante do assunto. Foram distribuídos 110 questionários, dos quais retornaram 106; entre estes, um entrevistado recusou-se a participar da pesquisa, devolvendo o questionário em branco. O trabalho de campo foi desenvolvido entre outubro e dezembro de 2000. Para a elaboração e a análise dos dados foi usado como referência Minayo (1996).

Significados atribuídos à atividade voluntária feminina

Quando se decidiu conhecer as motivações para a atividade voluntária e saber o lugar que a solidariedade ocupa entre os sujeitos da pesquisa, tornouse necessário investigar o motivo atribuído à significativa maior adesão das mulheres em tal atividade, reconstruindo assim a visão de voluntariado que os atores possuem, com o objetivo de conhecer a percepção e o movimento de passagem entre o voluntariado tradicional e o voluntariado social do gru-

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po pesquisado. Aqui se busca especificamente uma aproximação da leitura feita pelo sujeitos da pesquisa sobre as razões alegadas para a participação majoritária da mulher na atividade voluntária. Os entrevistados foram convidados a estabelecer os motivos que, segundo eles, são indicadores da participação predominante da mulher no serviço voluntário, aspecto que pode proporcionar o conhecimento do significado que essa atividade tem entre os voluntários, em sua maioria mulheres. Pelos dados estatísticos, constatou-se que a presença da mulher no trabalho voluntário atingiu 89,5% da amostra, o que ilustra o peso de sua participação na atividade voluntária. A descrição a seguir sobre as características femininas representa a visão que a mulher ainda tem de si mesma como voluntária e a força que os indicadores sociais construídos à sua volta, ao longo da história, exercem em suas próprias representações e no desempenho de seus papéis sociais. As falas das mulheres entrevistadas estão impregnadas dos estereótipos que estabelecem suas características. A sensibilidade foi indicada como primeiro motivo de ter a mulher maior participação na atividade voluntária, perfazendo o total de 27,5% das respostas. Na opinião de 20% dos voluntários, o amor explica a maior inserção da mulher em atividades voluntárias. O instinto materno foi indicado por 17,5% como razão para a maior participação da mulher em associações voluntárias, e o fator tempo disponível somou um total de 15,2%. Outra razão alegada foi o fato de as mulheres serem mais emotivas, com 7,6% das respostas. Analisando as motivações indicadas, constata-se que, em sua maioria, prevaleceram os estereótipos construídos ao longo do tempo em nossa cultura sobre os vários papéis da mulher na sociedade: mãe, dona de casa com tempo disponível, capaz de expressar seu amor aos filhos e, por extensão, aos demais, e responsável pelo cuidado da família. Tais opiniões atingiram o total de 72,6% dos entrevistados, representando, em valores absolutos, a opinião de 75 entrevistados. Os dados são confirmados pelas falas registradas nas entrevistas semiestruturadas, nas quais um entrevistado relata: “a mulher tem a tendência de se envolver mais com atividades voluntárias por ser mais sensível, é mais aberta às necessidades dos outros”. Neste sentido, outro entrevistado diz que “a mulher leva consigo o instinto materno, então ela é mais sensível e amorosa com as pessoas necessitadas”. Um terceiro acrescenta que “a mulher, diante do sofrimento, é mais emotiva, se doa mais, percebe mais a dor do outro”. Além desses, outros motivos foram verbalizados como justificativa para a maior adesão da mulher às atividades voluntárias: “ao longo da história, a mulher ocupou o lugar de doméstica; isso fez que dispusesse de mais tempo para atividades voluntárias”; “o fato de o sustento da família estar na dependência do homem favoreceu à mulher dispor de mais tempo para estas atividades não remuneradas da sociedade”; “muitas vezes, a

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mulher, para ter uma ocupação fora de casa ou ocupar o seu tempo ocioso, dedicou-se ao trabalho voluntário”. O livro Caring: Nurses, Women and Ethics aborda detalhadamente os efeitos perniciosos que a eticidade baseada em uma ética do cuidar tem sobre as experiências das mulheres. A autora enfatiza que o esforço teórico de papéis femininos considerados naturalizantes, como é o caso da maternidade, traz consequências que podem ser extremamente destrutivas para profissões predominantemente femininas. De acordo com as mesmas colocações, a utilização da fórmula “mulher–boa mãe–boa enfermeira” reforça a subordinação nas relações profissionais, delimitando uma divisão de trabalho baseada em uma hierarquia de gênero e atribuindo com isso à enfermeira um papel passivo nessa relação (Kuhse 1997). Neste contexto é importante considerar também os estudos de Nodding sobre o fato de as mulheres frequentemente se definirem tanto como pessoas quanto como agentes morais em função de sua capacidade de cuidar. Para a autora, as estruturas psicológicas profundas podem ser responsáveis por este modo de definição (Nodding 2003). Há diferenças típicas entre os homens e as mulheres em sua busca da ética nos relacionamentos humanos. Essa compreensão contrapõe-se à maneira de interpretar práticas voluntárias femininas simplesmente como decorrentes da natureza das mulheres. Os serviços de saúde, ao refletir de forma inequívoca a estrutura social dominante, evidenciam uma prática do cuidado com o viés da subordinação feminina. Estes dados revelam uma visão tradicional, assistencialista e paternalista da atividade voluntária, não adequada a uma atividade voluntária de cunho crítico e transformador. A industrialização, a urbanização, o aumento da escolarização feminina, entre outros múltiplos fatores, modificaram boa parte dos papéis sociais femininos, além de definirem outros, como, por exemplo, o de cônjuge cabeça do casal. Segundo dados oficiais, cerca de 25% das mulheres com união estável no Brasil são responsáveis pelo sustento familiar. Por este dado é possível admitir que a visão tradicional do voluntariado como atividade tipicamente feminina, exercida por mulheres na terceira idade e desocupadas, já não corresponde à realidade do país. Neste sentido, diz um entrevistado: “As pessoas ainda acreditam que a atividade voluntária é praticada por pessoas ociosas, principalmente mulheres. É uma mentalidade machista. Temos que trabalhar para modificar essa visão distorcida da atividade voluntária”. Outro assim se pronuncia: “Ainda há uma visão muito elitista no nosso país sobre a atividade voluntária. Ela era vista como privativa de pessoas ricas, com tempo disponível para práticas assistencialistas”. Outro diz: “A cultura do voluntariado como atividade para mulheres desocupadas perdurou durante muito tempo. É lamentável que essa visão distorcida do serviço

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voluntário ainda encontre guarida em muitos indivíduos. Isso prejudica a atividade voluntária, porque quem é preconceituoso não irá exercê-la”. O próprio objeto da atividade voluntária, a prestação do serviço propriamente dito, é visto de forma estereotipada, como foi relatado em algumas entrevistas: “A atividade voluntária é vista como algo insignificante, uma atividade piedosa, de importância menor na sociedade”. Referindo-se aos estereótipos criados em torno da atividade voluntária como eminentemente feminina, destaca um entrevistado: “A população brasileira precisa de conscientização. Cada pessoa deve sentir-se participante da vida do país”. Outro refere: “Na medida em que cada pessoa assume a sua parcela de responsabilidade e toma consciência disto, com certeza haverá mudanças na sociedade”. Por estes depoimentos percebe-se com clareza o significado que a atividade voluntária deve ocupar na vida das pessoas, tornando-as integradas à sociedade e, como tal, corresponsáveis pelo bem-estar coletivo.

Considerações finais

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O reconhecimento do perfil social das mulheres, as características próprias da personalidade feminina e suas experiências cotidianas, ditadas de acordo com os processos biológicos e sociais, contribuíram para situá-las como mais próximas de uma natureza universalizante, em contraposição aos objetivos culturais traduzidos como processo criativo atribuído ao homem. É essa diferença de status que contribui para a subordinação, o controle e a manipulação das mulheres pelos homens, de acordo com Rosaldo e Lamphére (1979). Embora evoque e faça uma abordagem séria das experiências da vida moral feminina, sejam elas relacionadas ao cuidado dos outros, como crianças, idosos, doentes e pacientes, sejam elas relacionadas à manutenção de uma infraestrutura familiar que dê suporte para a manutenção do status masculino na sociedade, a ética do cuidar perpetua a subordinação feminina, reforçando os estereótipos sociais tradicionalmente associados aos papéis de gênero masculinos e femininos (Carse, Nelson 1999). Essa visão mantém as mulheres circunscritas ao lugar que sempre ocuparam, reforçando os padrões de opressão e submissão impregnados nos homens e mulheres por um processo cultural que outorga o poder aos homens e conforma as representações calcadas em uma visão eminentemente masculina. Embora os voluntários entrevistados não tenham manifestado rupturas na complementaridade das ações voluntárias, como resultado das relações de poder, trouxeram com clareza os estereótipos e apontaram saídas em prol da eficácia de seu fazer. A tentativa de conhecer o lugar atribuído à mulher na atividade voluntária, nos dias atuais, pelo conhecimento das

Solidariedade crítica e cuidado

Presença feminina na atividade voluntária

motivações, dá visibilidade ao juízo pouco criterioso que ainda permeia as representações sobre a atividade voluntária. O enfrentamento e a superação de representações tão arraigadas e a busca da independência estariam sob a responsabilidade das próprias mulheres, que individual e coletivamente devem assumir o ônus da rebeldia (Kuhse 1997). A construção da categoria solidariedade crítica implica olhar de modo questionador as dificuldades que as mulheres enfrentam para abandonar olhares distorcidos sobre seu fazer voluntário. A solidariedade crítica, como valor, deve ser pautada por uma bioética capaz de avaliar e aproximar o discurso concreto sobre a igualdade e incorporá-lo à prática cotidiana, produzindo relações mais equilibradas entre homens e mulheres (Selli, Garrafa 2005). Uma proposta social de voluntariado deve considerar a história e a trajetória real de tal atividade. O interesse de fomentar o voluntariado como coadjuvante para as questões de bem-estar social deve levar em consideração tal trajetória e permitir a passagem processual do modelo tradicional para um novo modelo socialmente comprometido e transformador, adequado aos tempos atuais, porém ainda mesclado pelas representações da tradição. A reconstrução das representações sobre as mulheres na atividade voluntária implica o enfrentamento das relações de poder, o rompimento com a naturalização do potencial feminino e a visibilização de sua capacidade de resistir e de inventar novos caminhos.

Referências bibliográficas Bavaresco, S. M. R. O discurso sobre o voluntariado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos. Cadernos IHU Ideias, ano 2, n. 26 (2004). Bobbio, N. et al. Dicionário de política. 7ª ed. Brasília, Ed. UnB, 1995, v. I-II. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional do Câncer. Relatório de ati­ vidades. Rio de Janeiro, 1999. Carse, A. L., Nelson, H. L. Reabilitating Care. In: Donchin, A., Purdy, L. M. (ed.). Recent Embodying Feminist Bioethics Advances. Boston, Rowman & Littlefield, 1999. Garrafa, V. Radiografia bioética de um país/Brasil. A Bioethical Radiograph of Brazil. Acta Bioethica, 6(1) (2000) 165-181. ———. O Brasil deve buscar respostas bioéticas próprias. Radis, Rio de Janeiro, Fiocruz, nº 24 (ago. 2004) 32-33. Gonçalves, E. H. Desconstruindo o preconceito em torno do HIV/aids na perspecti­ va da bioética de intervenção. Tese (Doutorado em Ciências da Saúde, área de concentração em Bioética). Brasília, Universidade de Brasília, 2005.

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PARTE 1 PRINCIPAIS ARTIGOS DE LUCILDA SELLI

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Solidariedade crítica e cuidado

O cuidado na ressignificação da vida diante da doença 1

Lucilda Selli Stela Meneghel José Roque Junges Eloir Antonio Vial

Introdução

O

uso de tecnologias nas práticas de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) permite democratizar o acesso a tratamentos de alta complexidade, antes reservados a uma minoria da população. Este movimento responde à tendência de crescente tecnificação dos processos terapêuticos. A introdução de aparelhos e medicamentos de última geração trouxe bene­ fícios, na medida em que possibilitam diagnósticos mais precisos e terapias mais específicas. Por outro lado, esta sofisticação tecnológica produz efeitos iatrogênicos, como já apontara Ivan Ilich (1970), nem sempre percebidos pelos profissionais. Um desses efeitos é a redução da relação terapêutica a processos técnicos traduzidos por uma variedade de exames e pelo uso de intervenções cada vez mais sofisticadas. A crença na onipotência da técnica pode fazer esquecer a importância da qualidade da relação entre o profissional e o usuário. Não se ignora que outros fatores além da “sofisticação tecnológica” exercem influência sobre a forma com que as ações e os serviços em saúde são produzidos para atender aos problemas de saúde da população. A incorporação tecnológica, inerente à reestruturação produtiva do capitalismo em curso, é parte do problema, que se insere na discussão estrutural sobre a tensa correlação de forças entre mercado e trabalho na conformação das políticas sociais. Essa discussão mais contextual, no âmbito das políticas e dos modelos de atenção em saúde, exerce influência no processo de ressignificação por 1. Publicado na revista Mundo da Saúde, 32(1) (2008) 85-90.

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traduzir o contexto sócio-histórico em que as subjetividades se produzem. Este texto, porém, enfatiza especificamente a questão da relação profissional–usuário, como constituindo uma mediação oportuna no processo de subjetivação e ressignificação da vida, o que não significa defender uma visão reducionista e simplificadora do modo de entender a dinamicidade dos processos da vida. As doenças interferem diretamente nos projetos existenciais das pessoas, exigindo uma ressignificação de suas vidas. O profissional pode ser um mediador privilegiado desse processo de ressignificação diante do adoecer das pessoas. As reflexões deste ensaio estão pautadas pela temática do cuidado e nutrem-se da vivência e da experiência profissional e de pesquisa dos autores.

Ressignificação como dinamismo da existência humana

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A doença na vida de uma pessoa é um caminho, nem positivo nem negativo em si mesmo, que pode ser simplesmente percorrido, embora alguns autores entendam que a doença é uma oportunidade para um sujeito tornar-se aquilo que ele é. Os sintomas transmitem mensagens que podem transformar a vida do doente, constituindo-se em oportunidades de autoconhecimento (Dahlke 1999). A compreensão da doença e a ação da pessoa diante dela são fundamentais na construção de um sentido, na interpretação da situação vivida em decorrência da doença e no entendimento como oportunidade (ressignificação) ou desventura (não ressignificação). Para trabalhar o conceito de ressignificação, partimos dos pressupostos de historiadores orais (Thompson 2000) que entendem a narrativa como a reinterpretação do passado, elaborada pelas pessoas e sempre influenciada pelo ponto de vista que assumem no presente. Episódios de doença levam muitas vezes à reflexão e ao questionamento de posições dos indivíduos no meio social; sinais de desconforto são transformados em sintomas de aflição imbuídos de sentido: etiologias relacionam um conjunto concreto de qualidades, fatos, objetos e eventos, implicando asserções mais gerais sobre as relações do indivíduo com o meio. Portanto, ressignificar é produzir sentidos para a experiência da doença (Hita 1998; Alves 1994). Quando um terapeuta e, por analogia, um trabalhador da saúde tenta problematizar com um usuário para levá-lo a “pensar de outro modo sobre as coisas”, “ver novos pontos de vista” ou “levar outros fatores em consideração”, está envidando esforços para ressignificar acontecimentos, contribuindo para que a pessoa responda diferentemente a eles (Dahlke 1999). Desta maneira, o processo de ressignificação vivenciado pelo doente pode ser influenciado pelo ambiente sociocultural e pelos trabalhadores da

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O cuidado na ressignificação da vida diante da doença

saúde. A ressignificação da vida implica um processo de subjetivação, no qual a pessoa passa a apropriar-se de sua doença e a operar um reordenamento na vida. A introdução da nova concepção no modo de viver, como resposta à doença, exige que a pessoa doente se situe no novo contexto existencial provocado pela doença (Bellino 1997). O universo existencial constitui um espaço desestabilizado pela inquietação gerada pela nova situação decorrente da doença. Portanto, a ressignificação da vida implica enfrentar a situação e avançar do problema orgânico fisiológico para o problema humano existencial. A transposição para o humano existencial evoca as possibilidades do cuidado advogado nas discussões filosóficas integradoras de “ser” ou “modo de ser” da existência, quanto à dinamicidade reconstrutiva política inerente aos seres em relações de cuidado, que extrapolam o humano, uma vez que vida é cuidado (Heidegger 2002; Boff 1999). Frankl (1991) critica a visão de ser humano que descarta a capacidade de enfrentar e resistir aos condicionantes da vida, quaisquer que eles sejam. Considera que uma das principais características humanas está na capacidade de superar as condições biológicas, psicológicas ou sociais. Entende que a busca de sentido é a principal força motivadora do ser humano. O doente conseguirá defrontar-se com a doença e se engajar num tratamento se conseguir entender que a doença é uma experiência de si, de tornar-se finalmente aquilo que ele é. Desse modo, ele visualiza outras possibilidades e potências, para além da doença, ultrapassando-a (Olivieri 1985). Portanto, precisa buscar e encontrar um sentido para o sofrimento, podendo ser passageiro de acordo com a interpretação que lhe for atribuída.

O contexto do cuidado

O interesse de teorizar sobre o papel do cuidado no processo de ressignificação da vida diante da doença se pauta pela possibilidade de que os modos de pensar a saúde impliquem mudanças nas práticas de saúde. O cuidado é entendido neste contexto como uma interação entre dois ou mais sujeitos visando ao alívio de um sofrimento ou ao alcance de bemestar (Martin 2004). É nesta perspectiva que se traz o cuidado como elemento que compõe as práticas de saúde, mas que não se reduz a instrumento de trabalho em saúde, mas é sim um dispositivo que pode produzir subjetividade e ressignificação para as pessoas em situação de doença. O cuidado, no contexto do presente estudo, diz respeito à capacidade dos trabalhadores de saúde e cuidadores de considerar as dimensões subjetiva e existencial indissocia-

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velmente presentes e operantes na vida da pessoa doente e sua influência no processo de ressignificação. A capacidade de entender as dimensões subjetiva e existencial do ser humano, atributo da cultura humanista, e associá-las aos conhecimentos da cultura científica também caracteriza essa dimensão do cuidado. Assim, o cuidado não se esgota como realização de técnicas e procedimentos profissionais terapêuticos objetivos. Ao contrário, possui um elemento subjetivo que remete à dimensão humana e de sentido da existência. O cuidado penetra o universo da existência humana, avança para o espaço do sentido, para o qual a tecnologia não tem respostas. A percepção e a apropriação da realidade humana interpenetrada de campos de sentido afetivo-existencial auxiliam a pessoa neste processo, no sentido de redefinir, reorganizar e redesenhar sucessivamente o horizonte de significação, o sentido vital (Merhy 1998). As tecnologias predominam na definição do diagnóstico e do tratamento das doenças, bem como no itinerário que perfaz o caminho da cura e/ou estabilização do quadro clínico. Elas, por um lado, trazem benefícios, mas em determinadas situações são ineficazes ou inacessíveis, uma vez que nas sociedades desiguais são disponibilizadas apenas ao estrato de maior poder aquisitivo. A tecnociência configura cada vez mais o modelo biomédico, portanto constitui um elemento cada vez mais presente, influenciando os usuários dos serviços de saúde em suas demandas ao setor de saúde. Como já assinalado, as tecnologias não respondem às questões humanas existenciais mobilizadas, sobretudo, em situações de vulnerabilidade, pois não ajudam os doentes a sentir-se acolhidos, ouvidos e a mudar o modo de viver a vida (Bellino 1997). O crescente uso de tecnologias, associado a uma visão mecanicista que percebe o corpo humano como uma máquina constituída de sistemas e órgãos, induz o trabalhador da saúde a avançar, sucessivamente, em campos específicos de especialização. Essa necessidade é influenciada não apenas pela resposta tecnológica, mas, ao mesmo tempo, pelo ponto de vista que percebe a doença a ser tratada, e não o ser humano doente. A especialização, ao mesmo tempo em que aprofunda o conhecimento, encaminha-se para uma fragmentação do saber e do próprio doente. O especialista tende a tratar a patologia somente em vista de sua especificidade (Martin 2004), ignorando a possibilidade de atenção integral à pessoa (Merhy 1998). O acento posto nos modelos tecnológicos em saúde, com atuação altamente especializada, leva a uma fragmentação do ser humano e a uma redução biologicista. Esse modelo de prática fraciona os cuidados a ser assegurados, impossibilitando a obtenção da integralidade. O cuidado implica a incorporação e a inclusão de uma visão complexa de ser humano. Esse modo de agir propicia o enfrentamento da disjunção operada entre a natureza e o ser humano, que se tornam estranhos um ao outro. O humano

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O cuidado na ressignificação da vida diante da doença

é uma complexificação extrema dos processos da vida. Essa disjunção leva à redução do humano ao biológico e do biológico ao físico, configurandose em uma degradação da existência entendida em sua totalidade (Morin 2001). A integração da cultura científica com a humanista, voltada para o sentido da existência, como complementares e inseparáveis permite tratar a pessoa em sua integralidade.

Interlocução: cultura humanista e cultura científica

É necessário considerar a cultura humanista e a cultura científica pela influência que exercem sobre as pessoas. Ambas são oriundas da mesma fonte grega de conhecimento e emergem do mesmo fenômeno histórico, o Renas­ cimento. Distinguem-se e dissociam-se progressivamente nos séculos XVII e XVIII, até que se opera a grande disjunção, no século XX, comportando cada uma, desde então, seu objeto e seus valores (Morin 2002). A cultura humanista é animada pela necessidade de esclarecer a condição e a conduta humana, preocupando-se com a situação do ser humano no mundo e na sociedade, com as questões do sentido da existência humana. A cultura científica especializa-se sempre mais, com um crescimento exponencial do conhecimento, fechado em disciplinas, organizando-se, ao contrário da cultura humanista, com base na formalização da linguagem, que desencarna seres e coisas, na redução ao simples, que desintegra os fenômenos complexos, e na disjunção, que destrói, pela classificação, qualquer elo entre entidades separadas (Morin 2002). Esse modo de fazer ciência reduz o complexo ao simples, e também o humano ao biológico e o biológico ao físico. Quando o ser humano perde o significado, torna-se impossível levantar o problema do sentido ou de seu destino no mundo, impossível religar um objeto/sujeito que foi dividido em parcelas em um saber unidimensionalizado (Souza 2002). Quebra-se a comunicação entre a reflexão e o conhecimento, e acontece o rompimento entre o conhecimento e a existência. Há uma degradação da reflexão na cultura humanista ao querer imitar a cultura científica, e há uma gradativa rarefação da reflexão na cultura científica, sempre mais destinada a um conhecimento parcelado e disjunto. A reflexão liga um objeto particular ao conjunto/sistema do qual faz parte, e esse conjunto é reportado ao sujeito que o reflete. O conhecimento científico ignora o sentido de seu devir, ignora as noções de subjetividade e, assim, impossibilita a reflexão. A partir daí, compreende-se que o saber destinado a ser refletido, meditado, pensado, discutido, incorporado é cada vez mais restrito às rubricas especializadas e acumulado em bancos de dados (Morin 2002).

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O exercício profissional permeado pelo cuidado implica associar a reflexividade da cultura humanista e a objetividade da cultura científica. É preciso, para um atendimento integral da pessoa, reconhecer a especificidade de cada uma das duas culturas e integrar seus domínios de saber com suas complexidades e especificidades, de forma que a objetividade da ciência e a subjetividade do ser se tornem complementares. O cuidado supõe o reconhecimento de pontos específicos de domínio de ambas as culturas no enfrentar a fratura/cisão produzida pela insuficiência de uma e de outra, que dificulta encontrar o sentido vivido pelo sujeito na rede de significações e ressignificações que qualificam seu estado de saúde/doença. Se o uso da tecnologia implica não apenas uma aplicação de técnicas, um modo de fazer, mas uma decisão sobre que coisas são importantes fazer, então é necessário que os trabalhadores da saúde construam mediações ou façam escolhas segundo certas possibilidades sobre o que devem querer, ser e fazer com aqueles que são cuidados por eles (Martin 2004). Por outro lado, se compreendemos que as respostas necessárias para alcançar a saúde não se restringem a perguntas endereçadas exclusivamente à cultura científica, então a ação em saúde não pode se restringir à aplicação de técnicas. A intervenção tecnológica, oriunda da cultura científica, deve articular-se com outras formas de intervenção, próprias da cultura humanista, que remetem às dimensões ontológico-existenciais da vida. A interação terapêutica, na perspectiva da inclusão do cuidado, põe em cena os saberes das duas culturas, resultando em ações profissionais mais abrangentes e expressivas.

Relação indivíduo/coletividade

As relações entre o indivíduo, considerado em sua complexidade, e o social na configuração do processo de saúde/doença não são facilmente percebidas e compreendidas, tanto pelos profissionais quanto pelos doentes. No entanto, sabe-se que a própria percepção da saúde ou da doença é influenciada pela posição social e pela cultura do grupo social de referência (Moscovici 2003). O cuidado implica a capacidade de perceber o indivíduo/sujeito inserido em um determinado contexto sociocultural e os significados construídos por ele como ressignificações da vida, da saúde, da doença. Como fenômeno intimamente ligado à vida privada dos indivíduos, raramente a doença é um caso isolado (Berlinguer 1996), ou seja, tem a ver com significados partilhados culturalmente sob influência do meio e da posição social do indivíduo. A relação indivíduo/coletividade implica a autonomia, entendida neste contexto não como liberdade absoluta, eximida de qualquer dependência, mas como uma autonomia em dependência do ambiente, seja ele

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O cuidado na ressignificação da vida diante da doença

biológico, cultural ou social (Morin 2002). Trata-se de uma autonomia na qual o sujeito se integra e interage no ambiente e com o ambiente em suas diferentes formas de expressão. O cuidado implica articular os aspectos psicossociais, socioculturais e comunicacionais com os saberes e as ações dos profissionais, não os considerando periféricos ao trabalho de atenção às pessoas (Peduzzi 2001). A significação/ressignificação da saúde e da doença produz subjetivação. Na busca de sentido, os seres humanos interpretam suas experiências, incluindo a doença, fundamentados em referências simbólicas presentes nos significados socialmente aceitos (Minayo 2000). A subjetividade se faz de modo plural (Souza 2002), ou seja, é nas múltiplas relações do homem com os outros homens e com o mundo que a subjetividade é constantemente produzida. O trabalhador da área da saúde pode contribuir no processo de familiarização que insere a doença no universo consensual do doente (Moscovici 2003). O cuidado resulta em ações como curiosidade, paixão, busca de significado, desejo de tecer laços, relação com o tempo, maneira de unir intuição e razão, cautela e audácia, que nascem tanto da formação como da experiência.

Redesenhar horizontes de sentido

Os determinismos históricos e culturais do ensino marcam fortemente a for­mação dos profissionais da saúde. O modelo de ensino assenta-se substancialmente na causalidade biológica dos agravos que acometem o ser humano e volta-se para a resolução dos problemas orgânico-fisiológicos. A doença constitui o objeto de trabalho dos profissionais da saúde. É em tor­no dela que são elaborados e repassados os conhecimentos com uma di­ cotomia marcante entre o papel educativo e o papel curativo. Além dessa di­cotomia, o modelo de ensino é acompanhado por uma clara disjunção en­tre cultura humanista e cultura científica. Há uma acentuada dose de menosprezo da cultura humanista e um acentuado endeusamento da cultura científica nas propostas curriculares. A articulação da cultura científica e da cultura humanista viabiliza a formação profissional voltada para as necessidades globais da pessoa, com ênfase na integralidade e na totalidade do ser. A formação do profissional da saúde deve compreender essa abrangência para estar preparado e poder de fato contribuir, na prática, com a pessoa na construção progressiva de significados e ressignificados de suas situações existenciais. Isso implica considerar as diversas esferas da vida humana que vão além do biológico, principalmente a subjetividade e os processos de subjetivação. O cuidado envolve perceber o indivíduo/sujeito inserido em seu contexto sociocultu-

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ral e captar os significados representativos para ele, assimilados em suas construções de vida/saúde/doença/ressignificação. Segundo Guizardi e Pinheiro (2004, p. 39), é nos encontros entre pro­ fissionais/serviço com o seu outro, usuário/comunidade, que os sujeitos implicados ressignificam e/ou consolidam suas práticas, ensaiam alteridades e atualizam instituições. Nestes encontros, “a relação se torna signo, se desdobra em significados e se forja como vínculo, como referencial recíproco na produção da teia do existir coletivo — em outras palavras, dimensão em que o humano se afirma como impreterivelmente social”. O envolvimento dos trabalhadores da área da saúde com o problema concreto, em conjunto com as elaborações intersubjetivas profissional/doente/familiar e outros, possibilita capturar significados que emergem da situação. O diálogo propicia refletir e discutir sobre o problema, permite que surjam insights importantes a respeito da situação em sua amplitude, ou seja, ultrapassando a doença. Isso implica trabalhar em uma perspectiva metodológica que visibiliza a dimensão subjetiva da situação enfrentada. O encontro dos profissionais com o doente propicia a captura e a criação de significações à situação existencial. A ênfase não se limita ao tratamento, mas estende-se à criação de um contexto ou ambiente em que a pessoa possa interagir, revendo, retificando suas ideias e, mesmo sendo influenciada em suas opiniões, favorecendo processos construtivos de sentido. A ideia é que no cuidado os doentes possam falar a respeito de si e do significado de seu momento, que necessita de um reordenamento de vida. O cuidado constitui um aspecto intersubjetivo de construção de sentido, antes de constituir um elemento de ressignificação. O conhecimento está presente em quase todas as ações humanas, às vezes de maneira superficial, outras vezes aprofundada, e quanto mais forem complexas, abstratas, mediatizadas por tecnologias e apoiadas em modelos sistêmicos da realidade mais conhecimentos aprofundados, avançados, organizados e confiáveis elas irão exigir. A atuação em saúde permeada pelo cuidado supõe ações, avaliações e redefinições permanentes, acompanhadas pela constante qualificação profissional e humana. A vida é tecida por uma trama de confrontos e desafios que exigem remanejamentos e modificações. O cuidado, por sua vez, engloba essa dinamicidade.

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O cuidado na ressignificação da vida diante da doença

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Dor e sofrimento na tessitura da vida

1

Lucilda Selli

Introdução

E

ste escrito se deu a partir de uma vivência de dor e sofrimento provocados por um acidente sofrido quando apanhada repentinamente por uma moto em um percurso reservado a pedestres. Os quatro meses de dependência, cuidados, expressões de afeto e carinho que vinham de pessoas que fazem parte da minha vida constituíram alicerce para fazer frente à situação. Todas essas presenças, esses cuidados e manifestações foram fundamentais. Mesmo assim digo que foi a situação da minha vida que caracterizo como vivida na profunda solidão com o meu Deus e a minha fé. Cresceu meu apreço à espiritualidade; amadureceu a certeza de que com Deus é que faremos verdadeiras proezas no sentido espiritual. Nele é que não estamos sós e com ele vivemos a plenitude da solidão sem sentir o abandono. Entendi que dor e sofrimento são realidades diferentes, mas constituem conceitos que, de certa forma, se implicam e se interceptam. Conforme o uso corrente dos termos, originam-se do latim dolore e su­ fferere. No entanto, entendi também que, enquanto a tecnociência dispõe praticamente de todas as condições necessárias para combater a dor orgânico-fisiológica, o sofrimento é uma realidade mais complexa, que pode, mas não necessariamente, envolver a presença da dor física. Quando a dor me assolava, os analgésicos me aliviavam e até embalavam meu sono. No entanto, o olhar profundo de minha mãe, acompanhado de expressões que afloram do coração de mãe, gerava sofrimento mútuo, que nenhum 1. Publicado na revista Mundo da Saúde, 31(2) (2007) 297-300.

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PARTE 1 PRINCIPAIS ARTIGOS DE LUCILDA SELLI

analgésico conseguia conter. É um movimento recíproco, no qual uma e outra são afetadas e buscam fôlego no recôndito da alma para algo que não se explica, se vive. E os estudiosos, o que dizem sobre isso que, para mim, se tornou carne da minha carne e vida na minha vida? A International Association for the Study of Pain (www.iasp-pain.org) entende dor como “uma experiência emocional e sensorial desagradável associada com dano potencial ou total de tecidos, descrita em termos de tais mudanças”. A fundadora do moderno hospice, Cicely Saunders, criou a expressão “dor total”, que inclui, além da dor física, as dores mental, social e espiritual. Posso dizer que é bem assim. Estes aspectos estão inter-relacionados e abrangem a totalidade do ser humano. No entanto, na situação de sofrimento a vulnerabilidade humana torna-se mais aguda do que a dor. Esta constatação possibilita estabelecer diferenças entre dor e sofrimento. Nem sempre quem está com dor sofre. O sofrimento é uma questão pessoal. Está ligado aos valores da pessoa e a situações circunstanciais que a afetam no seu ser total. Daniel Callaham entende a categoria sofrimento como possibilidade de traduzir a experiência de impotência vivenciada pela pessoa em situação de dor não aliviada, de doença que leva a sentir a vida abalada em seu sentido. Portanto, o sofrimento é mais global do que a dor; diria pela minha vivência que atinge o âmago, a vida na sua plenitude. 64

Sofrimento e apropriação de si

Entendo que a apropriação da realidade pessoal e a reação da pessoa são fundamentais para captar a mensagem contida nas situações de dor e sofrimento, interpretá-la e assimilá-la como oportunidade ou desventura. Esta capacidade de percepção de si é fundamental para a pessoa fazer frente à realidade vivenciada, seja ela qual for. Tomar nas mãos a situação implica um processo de subjetivação no qual a pessoa passa a apropriar-se do seu problema, a reconhecer e a incorporar a necessidade de um reordenamento na vida. A introdução da nova concepção no modo de viver, como resposta reativa à situação, supõe que a pessoa se situe no novo contexto de existência. O universo existencial do indivíduo constitui o espaço em que é visitado e revisitado pelo sofrimento. Portanto, o autoenfrentamento implica a necessidade de fazer frente à situação e avançar do problema orgânico-fisiológico para o plano humano existencial. A pessoa conseguirá defrontar-se com o sofrimento e se engajar em um enfrentamento se conseguir entender a si mesma como alguém maior que o problema que ela possui, ou seja, se conseguir visualizar em sua vida outras possibilidades e potencialidades que tem a desenvolver, apesar da situação de sofrimento. A pessoa é mais do que o sofri-

Solidariedade crítica e cuidado

Dor e sofrimento na tessitura da vida

mento que habita nela e, portanto, precisa buscar e encontrar um sentido no seu sofrimento, para poder incorporá-lo na sua vida e mesmo ultrapassá-lo. Sofrimento e construção da identidade

O tempo de estar recolhida para cuidar da minha saúde me levou a fazer outras leituras sobre o tema. Queria, na verdade, saber o que pensavam aqueles que escrevem sobre dor e sofrimento, que traduzia o meu momento de vida. Então me foi alcançado um material que versava sobre sofrimento e representação cultural da doença na construção da pessoa. É um “estudo curioso” realizado por Rodrigues e Cardoso (2001) com sujeitos frequentadores de terreiros afro-brasileiros. Os interlocutores pesquisados indicaram um tipo de discurso de realização de identidade, respaldados nas ideias de doença, sofrimento e cura. Em suas narrativas, utilizam estas categorias para descrever sua existência como marcada pelo sofrimento. A noção de sofrimento faz alusão a uma trajetória. Por um lado, a representação de doença remete às razões para o sofrimento; por outro, a representação ou o discurso sobre a cura remete a uma experiência sincrônica, uma vez que se apresenta como antítese ao sofrimento e à doença. A categoria sofrimento é usada pelos interlocutores em diferentes sentidos, caracterizando-se como “significante flutuante”, no sentido de comportar contradições de significados que se movimentam entre os planos concreto e abstrato, conforme aponta Lévi-Strauss. No plano concreto sofrimento significa doença física. No plano abstrato, o sofrimento passa a ser entendido pelos significados que ultrapassam os limites da experiência da doença física e oferece elementos determinantes para que a pessoa sofredora construa sua identidade. O sofrimento, portanto, evoca significados desde força e fraqueza, medo e coragem, despertando emoções positivas ou negativas na pessoa em sofrimento. Estes atributos apontam o sofrimento como epifania das extremas vulnerabilidade e heteronomia humanas, pois todo tipo de sofrimento que ataca o ser humano constitui uma manifestação concreta e integral de sua dependência e vulnerabilidade. Sofrimento e vulnerabilidade

No sofrimento, conforme Levinas (1988) e também para mim, no meu sofrimento e seus sentidos se produz a ausência de todo refúgio. Nele o ser humano se encontra totalmente despido de si, de suas seguranças, exposto a uma radical indigência e a uma total dependência. O sofrimento constitui uma realidade que acompanha a vida do ser humano em todo o seu itinerário

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e se apresenta de diferentes formas e modalidades. Ele irrompe na existência humana e altera totalmente a vida da pessoa. A experiência da própria existência humana se dá via sofrimento. Diante do sofrimento o ser humano escala a busca do sentido de existir e de sua vida. Por isso, diante de uma pessoa que sofre a atitude mais adequada é a de silêncio e solidariedade. O silêncio evoca comunhão e engajamento de um humano com outro humano que sofre. A solidariedade constitui uma atitude de estar com quem sofre e agir a favor de alguém que está necessitado. Este engajamento humano caracteriza reciprocidade e remete à igualdade de todos os humanos enquanto sofredores vulneráveis e necessitados. Sofrimento e busca de sentido

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O sofrimento constitui um espaço singular de busca de sentido. É diante do sofrimento que o ser humano prova para si mesmo sua capacidade de resistir, de fazer frente às situações mais duras e adversas da vida, de atribuir um sentido à realidade que vive e que o cerca, de avaliar o valor do próprio sofrimento no concreto da vida. O sentido torna-se possibilidade de significar a situação de sofrimento e transformá-la em espaço privilegiado de aprendizado na construção de si mesmo e dos próprios ideais de vida. Para ter sentido, conforme Victor Frankl (1991), o sofrimento não pode ser um fim em si mesmo. O sofrimento tem sentido quando se tem um motivo para tal ou quando se atribui um motivo. Quando incorporado de sentido, remete a uma “causa” que faz transcender o sofrimento como algo que se impregnou, sem licença, na vida de alguém. Frankl (1991) critica a visão de ser humano que descarta sua capacidade de tomar uma posição ante condicionantes, quaisquer que sejam. Ele diz que uma das principais características humanas está na capacidade de se elevar acima das condições biológicas, psicológicas ou sociológicas e crescer para além delas. Entende que a busca de sentido na vida é a principal força motivadora do ser humano. Em suas observações no campo de concentração, percebeu que somente conseguiam se manter vivas as pessoas que tinham um sentido na vida. Portanto, o sofrimento é uma escola imprescindível de descoberta de significados e sentido. O sofrimento que me visitou por ocasião de um acidente grave me fez entender que o sujeito que sofre é ao mesmo tempo Aprendiz e Mestre de si mesmo. Sofrimento e ética

Outro aspecto evocado pelo sofrimento pertence ao campo da ética. No sentido ético, Roselló entende que o sofrimento ensina as pessoas. Quando

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o ser humano está acometido pelo sofrimento, a tendência normal é a de refletir sobre o sofrimento que o assola e também sobre a própria vida e a forma de conduzi-la. A pessoa repensa valores, atitudes e admite as próprias finitude e fragilidade humanas. Cria espaço para o redimensionamento da própria vida e abraça com grandeza de alma a humildade, que consiste na aceitação da própria fragilidade. Para Frankl (1991), sofrer significa crescer; para Roselló (1998), significa amadurecer; para mim, sofrer significa possibilidade de vir a ser. Esse processo possibilita conquista de liberdade interior apesar da dependência exterior. Sofrimento e relação interpessoal

O sofrimento também comporta a relação com o outro. Neste plano o sofrimento constrói espaços de revelação, confidencialidade e possibilidade de abertura de si para o outro e de construção de verdadeiras amizades. Desperta, por um lado, confiança e capacidade de entrega absoluta, por outro sensibilidade e capacidade de compaixão e doação incondicional. Na relação interpessoal, o sofrimento pode ser a pedra angular no evoluir para uma relação selada pelo amor e pelo bem-querer verdadeiros. O outro se torna um “outro eu” que comunga o mais profundo do “meu eu” apanhado pelo sofrimento. 67

Sofrimento e novas tecnologias

As tecnologias predominam no itinerário que perfaz o caminho da cura e/ou estabilização do quadro de sofrimento da pessoa. Por um lado, elas trazem benefícios e expectativas cada vez mais promissoras; por outro, constituem uma irrealidade tanto no sentido de perspectivas e eficácia quanto no de possibilidades de acesso. Embora apontem perspectivas positivas para as pessoas, elas não penetram o âmago das questões humanas existenciais mobilizadas, sobretudo, em situações de vulnerabilidade. A integração da cultura científica, com seu conhecimento objetivo, e da cultura humanista, voltada para o sentido da existência, como complementares e inseparáveis, constitui ferramenta no enfrentamento da visão mecanicista e biologicista da vida e favorece a introdução de uma visão holística de ser humano, necessária para orientar a vida marcada pela fragilidade e pela possibilidade de irromper plenamente. Sofrimento e profissionais da saúde

O profissional da saúde tem um papel fundamental junto à pessoa na construção do processo de apropriação de sua realidade de sofrimento. Deve

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considerar a dimensão subjetiva e existencial indissociavelmente presente e operante na vida da pessoa em situação de sofrimento e sua influência na construção de sentido. Assim, a atuação do profissional não se esgota com a realização de técnicas e procedimentos profissionais terapêuticos objetivos. Ao contrário, possui um elemento subjetivo que remete para a dimensão humana e de sentido da existência. O exercício profissional implica a incorporação e a inclusão de uma visão complexa de ser humano. Esse modo de agir propicia o enfrentamento da disjunção operada entre natureza e homem, que se tornam estranhos um ao outro, isto é, a redução do humano ao biológico e do biológico ao físico, o que configura a superação da degradação da existência total.

Referências bibliográficas

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Frankl, V. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Petró­ polis, Vozes, 1991. Levinas, E. Totalidade e infinito. Lisboa, Edições 70, 1988. Morin, E. O método. Porto Alegre, Sulina, 2002, v. 5. ———. O método. Porto Alegre, Sulina, 2005, v. 6. Rodrigues, N., Cardoso, A. C. Ideia de sofrimento e representação cultural da doença na construção da pessoa. In: Duarte, D. F. L., Leal, F. O. (orgs.). Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2001. Rosselló, T. F. Antropologia del cuidar. Barcelona, Instituto Borja de Bioética/ Fundación Mapfre Medicina, 1998.

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Bioética na enfermagem: um tributo a Lucilda Selli Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli Faculdade de Enfermagem da Universidade de São Paulo

Estou feliz por tê-la como amiga e vê-la sempre muito empreendedora. Continuemos desbravan­ do o mundo da bioética. Meu carinho

C

om estas palavras em epígrafe a amiga Lucilda Selli dedicava-me, em 4 de julho de 2000, seu livro Bioética em enfermagem. A partir desta sua obra pioneira, este capítulo presta tributo à contribuição preciosa de Lucilda para a enfermagem e a bioética. Destaco o que aprendi não apenas com a leitura do que produzia, mas com a amizade que tive o privilégio de desfrutar em profícuos, prazerosos e alegres encontros. Com o propósito de destacar elementos de seu pioneirismo na bioética em enfermagem, da releitura de seus textos para a elaboração deste capítulo, optei por uma breve análise de conteúdo (Bardin 2004) com a inserção literal de trechos em que se encontram os ensinamentos que mais me marcaram. Editado em 1988, o livro de Lucilda Selli (1999) foi o primeiro dedi­ cado à investigação da interface entre enfermagem e bioética. Nos três capítulos da obra, além de investigar a aplicação da bioética no trabalho de enfermagem, examina o fazer da enfermagem e as competências do agir profissional em meio à hegemonia do saber médico que estruturou a saúde e suas organizações. Fundamenta a tríade principialista da bioética (autonomia, beneficência e justiça) com um cuidadoso e rico caminho por trilhas filosóficas, deixando patentes seu preparo acadêmico e sua erudição, que sabia manifestar com simplicidade. O livro (1999), como outras produções de Lucilda Selli (2000, 2002, 2003), é pioneiro não só por ser o primeiro a tratar da questão da bioética aplicada à enfermagem, mas por inserir-se na bioética cotidiana. Sem esquecerse das questões-limite, “tenta alargar o campo da bioética para a prática do

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cotidiano” (Selli 1999, p. 13). Compreendeu que “a bioética que se ocupa com as questões de fronteira se limita à minoria da população” (ibid., p. 14). Muitos fatores a influenciaram para essa compreensão. Entre eles, destacava “a atividade profissional de enfermagem em vários estabelecimentos hospitalares, a docência, tanto na área do ensino quanto em campo de estágio” (Selli 2002, p. 134). Em suas palavras, “a ética da vida faz parte do cotidiano do ser humano” (Selli 1999, p. 14). Por isso parte das ideias de Giovanni Berlinguer (1996), entendendo que o limite e a exceção teriam assumido o lugar da cotidianidade na reflexão da bioética, negligenciando-se os problemas de ordem ética que envolvem a maioria das pessoas em sua vida cotidiana, como as “relações com as doenças e com os tratamentos à maioria do gênero humano” (Selli 1999, p. 14). As cacotanásias, as péssimas mortes prematuras e não merecidas que acontecem por falta de prevenção e tratamento ficam subsumidas às discussões sobre eutanásia. Trabalha-se muito com as tecnologias para reprodução assistida, mas dedicam-se poucos esforços, na pesquisa e nas atividades práticas, à esterilidade, que só em raros casos pode ser resolvida com a fecundação artificial. Há preocupações justas acerca do controle farmacológico ou genético do comportamento, mas não se considera a constante manipulação humana através de tantos outros meios (Berlinguer 1996). Mas, como nos chamava a atenção Selli, respaldada pelo filósofo Hen­ rique Dussel, “o tema da ética é o homem caído na cotidiana existência” (Selli 2000, p. 78). Ética: atitude existencial na vivência cotidiana

Lucilda Selli distinguia a ética como revestida de um “certo verniz filosófico” e a moral reduzida “a uma séria de normas que nos servem para melhor viver em grupos e sociedade na vida diária”. Alertava que “uma lista de atos permitidos ou proibidos não poderá ser confundida com o que vem a ser a ética no concreto na vida”, pois “a ação ética surge de um âmbito mais amplo que o simples obedecer a uma regra”. A “atitude ética” não se determina com os “costumes morais, aquilo que é aceito pelo grupo e considerado correto” (ibid.). Para ser autêntica, qualquer preocupação com a ética “terá de lidar com bem mais do que a lista do que é correto ou incorreto, do que é honestidade ou desonestidade, no trato com o outro como razão de ser da ética” (ibid., p. 79). A ética é “uma maneira de agir” que não pode ser restrita ao “comportamento que se limita a não ferir as aparências”. Como pondera Selli, “o

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princípio de viver em harmonia com a vida é mais amplo do que a proibição do ‘não matarás’” (ibid.). A ética também não pode ser resumida ao “exame de atos isolados, mas precisa considerar como eles se engrenam na história de uma pessoa ou mesmo na vida de um povo, como concorrem para a liberdade ou a escravidão, para a autonomia ou a heteronomia, para a inclusão social ou a exclusão social” (ibid.). Advogava, e vivia ela própria, coerência: “Vida moral implica viver cada uma das ideias que aceitamos conforme à ética. Tudo que pensamos, tudo o que nos é inteligível e que aceitamos no plano do intelecto requer uma imediata passagem à ação” (ibid., p. 78). E justificava: “Desse modo, a conduta seria o reflexo do nosso ‘Ser’ interior” (ibid.), porque a “ação ética é a reta ação, algo que se expressa em sintonia e harmonia com o que está em nosso íntimo” (ibid., p. 79). Em outras palavras, “no agir ético há a exteriorização de nossa índole interna” (ibid.), numa “postura de vida, relacionada com os princípios gerais e universais presentes na consciência do indivíduo” (ibid.). Esta coerência seria fruto de “atitude reflexivo-crítica”, de “discernimento” (ibid., p. 78), de “flexão da consciência sobre o seu próprio conteúdo, na qual verificamos os nossos pressupostos, examinamos a fundamentação do nosso pensar e agir” para ver “se temos ou não um entendimento adequado para cada situação concreta” (ibid.). Assim, numa “práxis radical”, vamos “à raiz da questão” para “alcançarmos uma visão geral” e “posicionamento com o máximo de objetividade na nossa conduta”, pois “o viver é o campo em que a consciência ética se revela”. E “ser ou não ético é o resultado de algo que passa pela reflexão e torna-se ação externa” (ibid.). O ato ético ou é autônomo ou não é ético, por isso Lucilda nos ensinava: “o essencial na ética é a opção”, a “escolha que foi feita ao se agir de um certo modo, após compreender que existem princípios que sugerem certa postura de vida”. Então, a “ética é resultado de um ato voluntário, uma postura existencial que inclui a possibilidade de agir ou não de uma certa maneira” (ibid., p. 79). O agir ético implica “a formação, a reflexão e a práxis” (Selli 2002, p. 134). Fazer a ética presente nas diversas esferas da vida requer “atitude existencial, intimamente ligada à nossa vivência”, a fim de “perguntar, investigar, procurar saber o que é ético e agir eticamente”, e constituir uma “ação que se expressa na vida social, em nossas interações e intervenções concretas”. É isto, na opinião de Selli, que faz a “ética ser capaz de viver em todas as épocas da História e de ser contudo sempre nova, sempre viva, na busca da autêntica essência das coisas” (Selli 2000, p. 78).

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Bioética: abertura às circunstâncias da vida cotidiana

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Para Lucilda Selli, a realidade onde se dão as necessidades de cada um é complexa e inclui, ademais dos fatos, “diferentes valores: culturais, religiosos, profissionais e científicos” (Selli 1999, p. 14). Assim, entendia que a bioética teria que adotar uma abordagem interdisciplinar e desenvolver uma “concepção do ser humano como ser integral, e não limitá-lo, como é comum na área da saúde, à condição de ‘paciente’” (Selli 2000, p. 14). Enquanto pesquisadora, entendia a bioética como “representação social que guia a conduta dos indivíduos e, portanto, produz um sentido às suas escolhas nesse campo. É a ação individual, simbolicamente reproduzida pelo discurso, que revela as escolhas éticas” (Selli 1999, p. 19). Para ela a bioética era uma “ética prática” (Selli 2000, p. 79), e via Selli a “segurança do discurso bioético” em seu caráter reflexivo-crítico, na capacidade de manter-se despido de certezas e aberto às circunstâncias da vida, ou seja, do cotidiano (Selli 2000, p. 79). A bioética abre “portas para a necessidade de um possível reconhecimento social de que a diferença moral do outro, como um outro cidadão, deveria ser respeitada” (ibid., p. 76). Para Lucilda, na área da saúde, a bioética despontou como “chave de ouro diante dos desafios que a prática colocava aos profissionais em termos do que seja moralmente correto fazer” (ibid.) A questão era colocada por Selli: “Como estabelecer um consenso mínimo, socialmente eficiente, sobre questões fundamentais para a vida coletiva, diante da atual pluralidade de visões da ética que indivíduos, grupos e instituições professam?” (ibid.). O campo de reflexão da bioética ocorre em meio a uma sociedade que se deixa “guiar por princípios que a definem como liberal, isto é, que aceita a autonomia da vontade individual como fundamento da conduta individual” (ibid., p. 77). Mas é também uma sociedade democrática, isto é, “aceita a igualdade social, com um valor acima das diferenças pessoais criadas pela natureza e/ou pela cultura” (ibid.). Por isso, a bioética busca “quais são os valores que devem guiar as pessoas hoje” e “como administrar as antinomias que irão necessariamente ocorrer no cotidiano” (ibid.). Assim, a bioética implica “buscar compreender no cotidiano a vivência de outrem, respeitando seu universo interior, seus valores, sua dignidade, sua história” (ibid.). Na prática, isto significa a “construção de um espaço comum entre as diversas posturas éticas em constante conflito, a fim de estabelecer condutas capazes de criar um clima de diálogo social diante dos temas bioéticos cotidianos” (ibid.). Com a modernidade, “as pessoas são livres para professar os valores que acharem coerentes com sua visão de mundo”. E mais, “ninguém pode ser obrigado, seja por uma demonstração científica, seja por revelação divi-

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na ou pela violência […] a reconhecer como seu um valor ao qual não quer espontaneamente aderir”. As pessoas engendram “seus valores ao longo da história e fazem profissão de fé neles”. O “espírito de nossa época veda” (ibid.) que se tente impor os valores de cada um ao outro, ou ao coletivo, pela coerção física, ideológica ou emocional. No “universo do discurso bioético” (ibid.) na saúde, Lucilda Selli defendia como valores fundamentais a tolerância, o consentimento livre e esclarecido e a empatia. A tolerância, “princípio básico da vida coletiva”, define que “não se pode vincular a conduta de ninguém por meio da violência, mesmo que seja para salvá-lo”. O consentimento livre e esclarecido é o “princípio por meio do qual se torna legítima a interferência de alguém no espaço individual autônomo”. Por isso, é a “chave de ouro no respeito ao outro”. A empatia é a “capacidade de reproduzir em si o universo de emoções e sentimentos de outrem que resulta na solidariedade e no respeito, condição básica na relação de reciprocidade” (ibid.). Estes valores incorporados na prática profissional cotidiana fundamentariam sua “autêntica relação e percepção no universo da bioética” e possibilitariam “distinguir entre alcançar o bem das pessoas e respeitá-las como agentes morais responsáveis e livres” (ibid.). Assim, Lucilda Selli defendia e incorporava em sua vida, em suas pesquisas e produções uma bioética de espírito aberto, respeito, tolerância, escuta ativa, especialmente para com os mais vulneráveis da sociedade. Ensinou-nos: “vive-se em um período histórico de mudanças. Tal realidade traz consigo a necessidade da tolerância como o valor no mundo das relações” (Selli 2002, p. 134). A dignidade humana requer justiça e responsabilidade

Lucilda Selli, com grande sensibilidade e generosidade, demonstrava em seu livro preocupação com a justiça na saúde e na sociedade. Considerava a justiça um princípio bioético fundamental, sintetizando-o na máxima “a cada qual segundo suas necessidades” (Selli 1999, p. 14). A responsabilidade era para ela outro referencial importante, essencial na bioética. Diante do pluralismo moral, argumentava que “cada indivíduo deveria ter a capacidade suficiente para determinar que o próprio bem não prejudique o bem do outro e tampouco o da sociedade” (Selli 2000, p. 80). Para Lucilda, coerente com a importância que conferia ao princípio da justiça, “a liberdade supõe pessoas responsáveis e conscientes do resultado das próprias escolhas tanto individual quanto coletivamente” (ibid.), pois “nossas ações, resultantes de nossas escolhas individuais, afetam outras pessoas” (ibid., p. 76).

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Responsabilidade é resposta diante de si mesmo e da sociedade. E para Selli “talvez o essencial na ética, para o nosso tempo” (ibid., p. 79) seja que “não respondemos apenas por nossa intenção, pelo que nos parece ser a causa interior de agirmos de tal ou qual modo”, mas “pelos resultados previsíveis de nossa ação” (ibid.). Em sua prática profissional, a enfermagem, ciente do “peso de seus atos”, “evoca liberdade com responsabilidade diante das conquistas da biotecnociência, transformadas em pesquisas, técnicas e cuidado” (ibid.). Mas Lucilda Selli preocupava-se com a dignidade humana para além das fronteiras da prática profissional da enfermagem, engajada que era com as questões da justiça social. Assim, ensinou-nos que a “liberdade exige condições de ordem econômica, social, política e cultural que tornem possível o seu exercício” e que “os obstáculos” que o impedem “ferem a dignidade humana” (Selli 1999, p. 124). Assim, lembrava-nos que “a autonomia individual completa é sobretudo um ideal e não um fato concreto”, considerando as “dificuldades em se concretizar a liberdade total do indivíduo” devido ao “forte grau de controle” e desigualdade existente nas “relações sociais” (ibid., p. 130). Por isso, considerava que o “princípio bioético da justiça norteia as relações entre os indivíduos que necessitam dos serviços de saúde e as instituições responsáveis por eles” (ibid.). Este princípio “preconiza que todo sistema de saúde […] garanta a atenção e o cuidado pela distribuição justa, equitativa e universal dos benefícios de saúde” (ibid., p. 142). No cuidado integral, a informação não se resume a uma questão de respeito à autonomia das pessoas, mas é um “componente básico para a justiça social” (ibid., p. 141), pois a orientação aos usuários conforma-se como “uma atitude justa” (ibid., p. 142) na medida em que possibilita “buscar os recursos que a sociedade coloca à sua disposição para o tratamento” (ibid.). Assim, o respeito “envolve tratar as pessoas para capacitá-las a agir autonomamente”, e o desrespeito abarca “atitudes e ações que ignoram decisões autônomas autênticas” (Selli 2002, p. 140). Enfermagem: agir profissional dialogado, comprometido e eficiente

A Lucinda incomodava a “constatação de que profissionais de saúde, muitas vezes, desenvolvem uma conduta de ‘apropriação’ sobre os ‘pacientes’, mantendo-os passivos e sem opções para desenvolver escolhas diante dos procedimentos técnicos necessários” (Selli 1999, p. 15). Dizia que, “no seu ir e vir cotidiano, a enfermagem deve alargar o espaço da participação do paciente no processo saúde/doença” (Selli 2000, p. 79).

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Outro elemento do “fazer da enfermagem” (Selli 1999, p. 16) que questionava profundamente Lucilda era a “invasão do corpo do cliente quando se utilizavam os procedimentos necessários ao cumprimento da prescrição médica, sobretudo no que se refere à administração de medicamentos” (ibid.). Para ela, “do ponto de vista do princípio bioético da autonomia, o paciente pode negar-se a aceitar uma medicação” e “também pode decidir, por exemplo, o momento mais conveniente para seu banho de leito” (ibid.). Com base em Davis e Underwood (1989), Zoboli e Massarollo (2002) coincidimos com Selli (1999) ao entender que é opinião corrente na área da saúde considerar as intervenções de enfermagem relativamente benignas. Entretanto, como ponderamos, nós três, Zoboli, Massarollo e Selli, isso pode ser falacioso, pois mesmo que digam respeito a procedimentos comuns do dia a dia das pessoas, como o banho e a alimentação, na verdade ocorrem de maneira invasiva, intrusa, regrada e limitada pelas determinações e peculiaridades de normas e rotinas institucionais. Alertamos que há uma presunção equivocada de que ao consentir as intervenções médicas de diagnóstico ou tratamento o usuário está automaticamente admitindo a atenção de enfermagem implicada em sua concretização. Por isso, Lucilda Selli nos questionava: “Como conciliar o agir profis­ sional respeitoso, eficiente, comprometido, com os valores e convicções pessoais do cliente?” (Selli 1999, p. 16). E nos ensinou que o diálogo é uma dimensão “constitutiva da própria bioética” e que o “fazer da enfermagem” ocorre em meio a uma “inter-relação conflitual e dinâmica” (ibid., p. 17) que se estabelece entre os membros da equipe e entre estes e os usuários dos serviços. Para Selli, “o cliente é, portanto, sujeito-objeto em que incidem diretamente as questões implicadas na prática profissional. Seu envolvimento é fator fundamental para a participação consciente, ativa e responsável nas condutas que envolvem a própria pessoa” (ibid.). E nos alertava que o “papel da enfermagem na reflexão bioética cotidiana não é brigar para saber de quem é o paciente. É, sim, ter o olhar voltado para o paciente, perceber o lugar que ele ocupa, saber de onde parte sua voz” (Selli 2000, p. 80). Almejava, sonhava e lutava por uma “ética de novas relações profissionais/paciente/sociedade” que destituísse “toda e qualquer voz de monopólio nas relações” (ibid.). Por isso, ensinou-nos que, em seu compromisso com a vida, a “bioética busca integrar a ética com as ciências biomédicas, na tentativa de incluir a dimensão humana dos clientes nas tomadas de decisão sobre suas vidas” (Selli 1999, p. 134). Bioética significa “ética aplicada à vida” (ibid., p. 80), e na enfermagem apresenta-se como “procura de uma atitude comportamental respon-

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sável” para encaminhar “decisões, condutas e desempenho teórico-prático e relacional” a fim de “manter o equilíbrio entre tecnociência e os direitos dos clientes a um tratamento, acima de tudo, humano” (ibid., p. 81). Com Lucilda aprendi, e defendo, que a bioética configura-se como a ponte que torna possível interligar e fazer conviver o cuidado como técnica e o cuidado como ética: “O nosso fazer profissional é a síntese de um agir movido por princípios éticos, aliado a um fazer iluminado pela prática” (Selli 2000, p. 78). Resumia este fazer “no conceito de práxis”, enquanto uma “terminologia tão cara à filosofia clássica” (ibid.). E esta convivência vai se expressar no cotidiano da prática de enfermagem em ações e intervenções competentes, dignas e respeitosas aos usuários dos serviços de saúde. Para isso, “liberdade e justiça são valores básicos para nortear a conduta beneficente na prática profissional” (Selli 1999, p. 81). Para se conseguir efetivar a beneficência na prática da enfermagem via como essencial o diálogo, por evidenciar-se nele “o constante empenho da equipe multicategorial de enfermagem a favor do bem do cliente”. E para conseguir esse bem “o cotidiano profissional exige da enfermagem uma constante interação com profissionais de outras áreas e, especialmente, da área médica, para direcionar sua própria atuação e também garantir a continuidade do tratamento e do cuidado ao cliente” (ibid.). Lucilda (2003) entendia a humanização como uma abertura para a expressão do outro, seu acolhimento e a inclusão elaborada de aspectos subjetivos na atenção à saúde. Ou seja, com base nos estudos de Correia (1993), tomava a alteridade como um critério para a tríade bioética e compreendia a pessoa como um “ser relacional vivendo numa rede de relações de troca e interdependência com os demais, no mundo social” (Selli 1999, p. 82). A alteridade era vista como a “capacidade de colocar-se no lugar de outrem” (Selli 2000, p. 77) e com isso perceber o que “está à nossa volta” e que “invoca uma ação prática e imediata, como um processo dinâmico e vivo em resposta ao apelo do outro” (ibid., p. 80). Em uma “descrição fenomenológica”, na prática do profissional de enfermagem, “todas nossas condutas profissionais incidem sobre o outro” (ibid.), que são os pacientes e os membros das equipes. E “em cada situação cotidiana da atividade profissional existem reflexões e decisões que devem ser tomadas” com âncora em “valores que demandam avaliação de ordem ética” e que “perpassam” ou, o “mais das vezes, ultrapassam o código de deontologia profissional” (ibid., p. 78). Como a “pessoa ética”, o profissional ético “vive a solidão de suas decisões” (ibid., p. 79), ou seja, ninguém tomará por ele a decisão de ser ou não ético, de agir ou não eticamente, ninguém, a não ser os profissionais e o paciente envolvidos nos conflitos morais, poderá decidir que caminho seguir.

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Assim, “a conversação, o diálogo e a partilha significam para o cliente atendimento, cuidado, interação” que possibilitarão a ação beneficente por meio de “maior aproximação e compreensão entre os sujeitos e o respeito mútuo como fundamento de suas atitudes e decisões”. Da maior aproximação que leva à “crescente compreensão do outro” abre-se caminho para a “ação comum” (Selli 1999, p. 87). Diálogo e partilha de decisões implicam compromisso da equipe, porque os problemas éticos extrapolam o “campo da tecnociência médica e de enfermagem”, pois “o trabalho na saúde é desenvolvido de forma coletiva”. Para uma construção coletiva e integrada, exige-se necessariamente “uma ação dialogada, participativa, tendo como propósito central o bem do cliente” (ibid., p. 98). O diálogo entre o profissional de saúde e o usuário dos serviços favo­ rece o entendimento de suas razões e objeções e a “maximização” de sua autonomia. A “recomendação do diálogo favorece a interação com o cliente” (ibid., p. 114). O diálogo da equipe favorece “desvelar os conflitos vivenciados no cotidiano das relações de trabalho” para a “busca de entender e definir os papéis” e as responsabilidades de cada profissional da equipe “nas relações interprofissionais e com o cliente” (ibid., p. 118). O diálogo pautado pela bioética era visto por Lucilda como a melhor maneira de lidar, no interior da equipe, com a questão posta pela hegemonia do poder médico decorrente, além de das questões de gênero, de “condições históricas que contribuíram para a produção e reprodução das relações de poder e submissão existentes até a atualidade na área da saúde” (ibid.). O diálogo sensível “caracteriza uma forma de conhecer o fundamento existencial de uma experiência essencialmente humana” (ibid., p. 127) que representa a pessoa de quem cuidamos na prática profissional da enfermagem e o próprio fazer da profissão para realizar este cuidado, que é trabalho vivo em ato. Há de ser buscar na prática profissional cotidiana uma “constante interação” com o usuário dos serviços, “na medida em que o respeito a ele deve caracterizar a implementação das condutas de enfermagem” (ibid.). Assim, “junto à competência técnico-profissional da equipe, torna-se necessária a consciência dos valores e significados da vivência do cliente e [seus] familiares para transformar cada caso em um encontro humano” (ibid., p. 134-135). Considerar o “cliente como sujeito que compartilha decisões” (ibid., p. 117) traz para a enfermagem o desafio de elaborar uma nova atitude na relação clínica, no trabalho em equipe, com as instituições e com a sociedade. A prática profissional da enfermagem é tremendamente marca-

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da pela tradição decorrente dos ensinamentos de Florence Nigthingale, e segundo o que afirmava Lucilda, ao dizer que a “enfermeira deve executar seu trabalho considerando o que é certo e melhor para o cliente”, estes postulados impingem aos profissionais a responsabilidade de decidir o que viria a ser este “melhor para o cliente” (ibid.). “Colocar-se no lugar do cliente para entender e reconstruir” os significados que atribui à sua experiência de vida e do momento que vive no processo saúde-doença-cuidado “só é possível quando há um profundo senso de inter-relacionalidade, precedida por “atenção, escuta, observação e respeito ao outro” (ibid., p. 128). Este “respeito ao outro”, ao ser tomado como “princípio ético para a enfermagem, transmite ao saber-fazer dos profissionais uma dimensão essencialmente humana” (ibid., p. 129). Com isto “o cliente deixa de ser apenas objeto do fazer e torna-se sujeito das ações de enfermagem que incidem sobre sua pessoa” (ibid., p. 131). De submisso e passivo o “cliente” passa a “uma participação ativa e autônoma” (ibid.). Nesta compreensão, a bioética “enfatiza a importância da corresponsabilidade na tomada de decisões que envolvem a vida de um ser humano” (ibid., p. 110). Essa corresponsabilidade e esse respeito expressam-se no “agir cauteloso, ponderado” (ibid.) em benefício do cliente, sem deixar de considerar e promover sua autonomia por meio de informações esclarecedoras. Instalam-se assim “conflitos fundamentais em relação a quem deveria definir o bem das pessoas, como e com respeito a tais critérios”. A “ética moderna encontra na autonomia da vontade, no respeito à dignidade humana em toda a pluralidade de dimensões sua finalidade essencial”. A ética moderna é “ética motivacional”, contrapõe-se à “ética metafísica”. Essa “reifica o ser humano em nome de um princípio ou valor transcendente a ser alcançado pela ascese física ou espiritual”. A ética motivacional, por sua vez, “entende que o bem do outro, objeto da ética, é uma construção histórica do próprio ser humano que, nesse processo, busca os meios mais adequados e compatíveis com os fins propostos”, sem que isto implique que “o agente deva abandonar os princípios que professa” (Selli 2000, p. 77). A “nova realidade para os profissionais de saúde” decorrente da consideração dos direitos e garantias individuais tem obrigado enfermeiros e médicos a “uma grande revisão na forma tradicional de relacionamento com seus pacientes e familiares, suscitando a necessidade de um novo discurso sobre o espaço ético e jurídico de um e do outro na relação profissional/paciente” (ibid., p. 76). O usuário do serviço de saúde, ou seus familiares quando é o caso de decisões de substituição, tem o direito de “acesso à devida informação, para a decisão livre e consciente sobre condutas médicas e de enferma-

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Bioética na enfermagem

gem” (Selli 1999, p. 115). Se isto for desconsiderado e a equipe tomar decisões “pelo cliente, sem consultar sua vontade” (ibid., p. 117), ainda que “usado o referencial da beneficência, ou seja, tendo o bem do cliente como o maior compromisso” (ibid.), mesmo assim estaremos desprezando-o como um “sujeito de direitos sobre o qual são aplicados conhecimentos de domínio dos profissionais de saúde” (ibid., p. 115). Todas estas questões do poder implicado nas diversas relações do cotidiano do trabalho e da assistência na saúde conformam uma complexa e intricada rede: “captar todos os aspectos bioéticos implicados na questão do saber-poder é tarefa difícil” (ibid., p. 122). Lucilda, por meio de suas pesquisas, constatou que há “uma resistência cotidiana ao domínio absoluto”; há “uma espécie de defesa do ‘mais fraco’, de defesa do cliente” (ibid.). Como nos lembra Lucilda, “proteger e resguardar o cliente caracteriza-se como gesto humano no cuidado que corresponde ao respeito” (ibid., p. 123). Para ela, o “objetivo da bioética na prática profissional” é “dirimir a vulnerabilidade e a discriminação na ética profissional”. Respaldada pelo “princípio democrático”, a bioética requer “que não se estabeleça uma situação hierárquica superior/inferior” (Selli 2000, p. 77) na relação clínica e nas relações de trabalho da equipe. Nada justifica esta verticalidade na prática profissional cotidiana da enfermagem, nem a “autoridade religiosa […] ou ideológica” (ibid.), tampouco o saber científico e menos ainda as especificidades do fazer profissional de cada integrante da equipe de enfermagem e multiprofissional. Merece atenção especial a privacidade, pois sua violação “é um atentado à dignidade” (Selli 1999, p. 123) do usuário dos serviços de saúde, “não pelos atos em si, mas pela forma como se processa, podendo levar o cliente a sentir-se embaraçado, humilhado, invadido, enfim, despersonalizado” (ibid., p. 124). A “relação profissional–cliente […] deve ser vivida num ambiente humanizado por atitudes e gestos que promovem a dignidade, a autoestima, a privacidade e a individualidade” (ibid.), porque a pessoa “vale por si”, ou seja, “por ser autônoma, possui valor intrínseco absoluto”, e a “ciência da saúde tem seu valor como meio a serviço da pessoa” (ibid., p. 125). Inverter esta relação e pensar que as pessoas estão a serviço da ciência corresponde a uma perversão na finalidade do fazer cotidiano dos profissionais de enfermagem. Deve-se um respeito à vida humana que “nasce do princípio da dignidade humana, com a qual cada sujeito é constituído” (ibid.). Nas dimensões da saúde, no trabalho da equipe de enfermagem e multiprofissional, “o princípio de respeito pela vida” expressa-se como “compromisso de protegê-la com muito cuidado no fazer cotidiano” (ibid.).

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Lucilda enfatizava ainda a “necessidade do diálogo, da comunicação, da corresponsabilidade e do trabalho construído em equipe como forma de produzir um maior comprometimento do todo em benefício do cliente” (ibid., p. 145). Numa homenagem póstuma, resta-me reconhecer: cara Lucilda, sou feliz por tê-la tido como amiga. Continuarei desbravando a bioética na enfermagem por nós! Obrigada por tudo o que me ensinou!

Referências bibliográficas

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Entre o comércio do corpo, a solidariedade crítica e o voluntariado orgânico Volnei Garrafa Cátedra Unesco de Bioética, Universidade de Brasília

Preâmbulo

O

texto a seguir foi apresentado em forma de conferência no Seminário Internacional sobre “Doação, sangue, circulação social: as sociedades multiculturais como ambiente de experimentação”, desenvolvido na cidade de Prato, na província da Lombardia, Itália, em 24 de abril de 2004. O objetivo do evento promovido pela prefeitura da histórica cidade comandada durante muitas décadas de forma ininterrupta e democrática pelo Partido Comunista Italiano era estimular os emigrantes africanos — acolhidos com carinho pela comunidade local — à doação voluntária e altruísta de sangue, ação pouco comum em suas culturas de origem. Além das razões de ordem ética e cultural, havia razões de ordem prática: os emigrantes es­tavam recebendo transfusões de sangue nos serviços públicos da muni­ cipalidade desproporcionalmente a suas doações no contexto societário local, numa proporção de uso/doação de 17% contra 83% dos próprios italianos. Além de objetivar um incremento nas doações sanguíneas pelos africanos, a ideia central do seminário era que o ato da doação — possibilitando a entrada de um tecido vivo de um indivíduo (negro ou branco) em outro indivíduo coirmão (branco ou negro) — poderia vir a se constituir em elemento fundamental para uma efetiva aproximação entre as duas culturas. O conteúdo da conferência foi baseado nos ensinamentos que o autor recebeu de seu professor de Bioética — Giovanni Berlinguer — e de textos com ele produzidos durante o percurso de seu programa de pós-doutoramento realizado na Università La Sapienza, em Roma (1991-1993), e das sessões de pesquisa, orientação — além de artigos — produzidas nos

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cursos de especialização e doutorado em bioética e desenvolvidos extensivamente por Lucilda Selli na Cátedra Unesco de Bioética da Uni­versidade de Brasília entre os anos 1998 e 2002.

Introdução

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São frequentes as notícias sobre compra e venda de órgãos com finalidade de transplantes e até mesmo de crianças raptadas e mortas para a retirada de partes de seus corpos. Em muitos casos trata-se somente de suspeitas mal documentadas que assustam e, paradoxalmente, acabam por esconder a realidade dos fatos: os processos penais contra médicos que favoreceram este tipo de comércio; a comprovação da existência de agências que oferecem órgãos mediante pagamento e de pessoas dispostas a vendê-los; o florescente comércio, principalmente nos Estados Unidos, de sangue, esperma, óvulos e tecidos embrionários. Paralelamente, o mundo vem desenvolvendo intensas discussões a favor e contra a legalidade e a legitimidade de tais procedimentos, não só nas revistas científicas especializadas, mas também nos congressos científicos e filosóficos, nos jornais, no dia a dia da imprensa. O assunto tem profundas implicações. Os transplantes de órgãos, como as transfusões de sangue, são conquistas científicas que possibilitam em um número crescente de casos a sobrevivência de doentes que de outro modo estariam condenados a morrer em pouco tempo; e a reprodução assistida, outro exemplo, pode em muitos casos resolver problemas de esterilidade. Os abusos, contudo, podem não só levar tais práticas ao descrédito como originar uma repulsa generalizada com relação a muitos aspectos do progresso científico, principalmente aqueles que chegam próximos à intimidade da própria existência humana. Percebe-se, desse modo, que as aplicações técnicas do conhecimento podem ser orientadas em direção ao bem ou ao mal. À discussão sobre temas específicos associam-se também controvérsias filosóficas e jurídicas sobre a relação da ciência com a ética, ou da liberdade com o mercado, que são típicas dos nossos tempos e, quando o objeto da discussão é o próprio corpo humano, originam ainda maior atração ou repulsa. Contemporaneamente, surgem duas perguntas cruciais: 1. A compra/ venda de partes do corpo humano é um fato isolado ou o uso do corpo humano como mercadoria faz parte, de diferentes formas, da própria história humana? 2. No presente momento histórico, é possível isolar este fenômeno — até agora ainda circunscrito a poucos casos comparativamente aos milhões de pessoas vivas — ou significa de certo modo uma metáfora e uma exacerbação do fenômeno de mercantilização do qual são objeto

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os órgãos, as funções, as atividades e até mesmo os pensamentos dos seres humanos? A primeira pergunta conduz o raciocínio em direção a um exame histórico-crítico da relação entre os diversos valores atribuídos aos homens e mulheres: valor intrínseco (no sentido ético e social), valor de uso e valor de troca. A segunda leva a indagar, no campo da bioética, sobre a relação entre problemas emergentes que por enquanto dizem respeito a um número ainda limitado de pessoas e relacionam-se com as fronteiras mais avançadas do campo científico-tecnológico e os problemas persistentes enfrentados por quase todos os seres humanos em sua vida cotidiana (Berlinguer, Garrafa 1993).

Usos e abusos do corpo humano

Não há dúvida de que a opção entre as duas concepções do corpo humano — mercadoria ou valor — acompanha a história. Existem registrados confrontos nas leis, nas tendências filosóficas e religiosas, nas opiniões e nos comportamentos individuais. Na segunda metade do século XX, no entanto, surgiu uma situação completamente nova com relação ao passado. Esta nova concepção deriva do progresso científico e permite a retirada, a modificação, a transferência e o uso — em benefício ou vantagem de outras pessoas (principalmente por motivos de saúde, mas não somente por esta razão) — de partes individualizadas do corpo humano, de gametas, de embriões. As aplicações já dizem respeito a variados campos: clínica, pesquisa, reprodução humana, produção industrial de testes diagnósticos e de fármacos… Algumas destas práticas, como as pesquisas com embriões, originaram muitas reações negativas, motivadas principalmente por razões de princípio. Ao contrário, temas como as transfusões de sangue e os transplantes de órgãos já geraram consenso quase geral; nestes casos não há registro de grande hostilidade. Somente alguns grupos específicos antepõem motivações religiosas como, por exemplo, as testemunhas de jeová, que recusam as transfusões, ou ainda os adeptos de outras religiões que não admitem a retirada de órgãos de cadáveres em nome da reencarnação. No entanto, existem ainda muitas incertezas relativas não somente aos princípios, mas às técnicas, às regras, aos limites e às condições como tais práticas se dão. Em todo este contexto, pode-se prever que teremos nos próximos anos e de modo acelerado: a. uma ampliação das possibilidades tecnocientíficas nestas áreas; b. um aumento de vantagens imediatas que venham a beneficiar alguns ou muitos indivíduos; c. uma oferta crescente de empresas bioindustriais, de estruturas sanitárias adequadas e de novas categorias profissionais; d. um acentuado conflito de interesses e de ideias sobre as

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condições para a retirada, a transformação e a distribuição de tais “materiais”, na medida em que eles são ao mesmo tempo um objeto que pode ser transformado em mercadoria e um sujeito, uma vez que constituem parte ou mesmo um projeto de ser humano (Berlinguer, Garrafa 2002). Este conflito é típico da atual era tecnológica, mas existem muitos outros antecedentes semelhantes já registrados na história, até mesmo registros de formas “arcaicas” de tal tipo de mercado que continuam a existir na sociedade atual. Nos primórdios da civilização, a força física constituía a base da sobrevivência do homem; cada indivíduo usava a própria força para se defender, proteger a família ou se alimentar. Com a evolução da espécie humana, a inteligência de alguns passou a ser usada para a aquisição e o controle da força física de outros. Inicialmente o processo se restringia a pequenas trocas agrícolas de gêneros alimentícios essenciais. Com o tempo, este processo chegou ao ápice com a escravidão, por meio da qual alguns homens passaram a ter o poder e o direito de compra sobre sujeitos da mesma espécie. Desta maneira surgiu o mercado humano, que assumiu variados formatos em diferentes partes do mundo. Com o desenvolvimento científico e tecnológico dos últimos anos, os limites entre o uso e o abuso do corpo humano tornaram-se gradativamente mais sutis e imprecisos, originando posições científicas e jurídicas diversas com relação a um mesmo fato ou problema. Por razões de princípios e pelo sofrimento que gera, este fenômeno originou reações que conduziram, depois de muito trabalho, à construção e à homologação de regras internacionais (reconhecidas por todos, mas até agora ainda não universalmente aplicadas) que deram fim a todas estas iniciativas nefastas e tiveram como referência inicial a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. São muitas e variadas as formas registradas na história com relação a processos que envolveram a compra e venda do corpo humano: além da escravidão, a servidão, igualmente antiga e que, embora menos agressiva, ainda persiste em várias regiões do planeta; a prostituição, capaz de adquirir conotações próprias em diferentes sociedades e períodos de tempo diversos; o próprio trabalho assalariado, que acabou por adquirir formas diferentes daquelas descritas no século XIX e analisadas por Marx, mas de qualquer modo baseadas em um “contrato de uso” da capacidade física e mental do corpo humano. Com a evolução tecnocientífica dos últimos cinquenta anos o tema está colocado em termos absolutamente novos. No início do século XXI, o fenômeno mais peculiar é que a compra/ venda não se refere ao corpo completo, em sua totalidade, mas à fragmentação comercial do ser humano. Os limites entre os usos e os abusos do corpo tornaram-se gradualmente mais sutis e imprecisos, e assim surgem, como em tempos anteriores, opiniões filosóficas, científicas e jurídicas tremenda-

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mente divergentes. As novas propostas estimulam a considerar a analogia e as diferenças com o passado em torno da dupla caracterização do ser humano: como sujeito e como objeto do processo mercantil. Hoje em dia a agenda de temas a ser analisados neste estudo inclui a difusão crescente da compra/venda de partes separadas do corpo, ou seja, a fragmentação humana, que inclui: sangue e medula; gametas e órgãos reprodutivos; placenta; embriões e fetos; DNA e células; órgãos utilizáveis para transplantes. Detalhes e sutilezas mascarados por uma sofisticada e complexa tecnologia e de uma terminologia de difícil compreensão pelo cidadão comum não escondem a semelhança substancial entre os atuais processos sutis de compra/venda de partes do corpo e aqueles mais toscos verificados em épocas anteriores. Um dos objetivos do presente estudo é analisar algumas possíveis razões ou causas que facilitaram, estimularam ou mesmo articularam a evolução e a difusão de tais práticas em âmbito internacional. Estes aspectos podem ser resumidamente classificados da seguinte maneira: razões socioeconômicas, razões socioculturais, estruturas públicas inadequadas e limites indefinidos entre a ciência e a ética (Garrafa 1993). Razões socioeconômicas

Dois pontos fundamentais devem ser discutidos neste tópico: as desigualdades sociais e a sede de lucro (exploração econômica). Na análise da bibliografia dos últimos anos sobre a compra/venda e o aluguel de partes do corpo humano, dois aspectos estão envolvidos: a escassez de informações sobre o follow up (seguimento, preservação) dos doadores vivos e a não prio­ rização das questões socioeconômicas, culturais e políticas envolvidas na complexa relação receptor–doador. Os poucos estudos que se propõem discutir tais questões o fazem de modo geralmente restrito ao campo puramente biológico. As nações mais ricas que hoje desfrutam de uma posição privilegiada no contexto mundial não devem esquecer que neste início de século XXI aproximadamente 75% da população do planeta vive no terceiro e no quarto mundos. Africanos, asiáticos e latino-americanos, entre outros, já iniciaram uma dramática caminhada migratória em busca de sobrevivência, principalmente na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Em futuro próximo, a qualidade da vida e a tranquilidade dos cidadãos dos países do primeiro mundo dependerão, sem dúvida, das condições de vida existentes nas nações pobres; a pressão e a força da água são crescentes, e o dique não resistirá por muito tempo… E entre os incontáveis fatores desestabi­ li­zantes do frágil equilíbrio atual deve ser incluído o tema do mercado humano, no qual, historicamente, os pobres do hemisfério sul correm o risco de ser os grandes derrotados (Garrafa 1993; 1994).

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Razões socioculturais

Em um congresso científico realizado no Brasil há alguns anos, um grupo de pesquisadores afirmou que, “no âmbito da saúde, a verdadeira democratização significa as pessoas conhecerem seu próprio corpo”. Esta ampla interpretação envolve não só o conceito de cidadania, mas também de outros bens sociais — a educação, por exemplo, além da saúde propriamente dita — que o Estado deve colocar à disposição dos indivíduos para ajudá-los a empoderar-se de todos aqueles instrumentos analíticos e de decisão com relação à utilização do próprio corpo. Do ponto de vista cultural, existem diversas concepções do corpo humano. Para algumas religiões, por exemplo, o corpo é sagrado e intocável sob certos aspectos, o que limita ou exclui uma série de intervenções médicas, como uma simples transfusão de sangue. Para o islamismo, por outro lado, aquelas pessoas que se apresentarem ao juízo de Alá sem o corpo completo e íntegro estarão condenadas a sofrer. Estruturas públicas inadequadas

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Existem dois problemas com relação a este tema: a ausência, a insuficiência ou o mau funcionamento dos programas de doações voluntárias; e a inexistência, a imprecisão ou a inadequação da legislação com relação à disponibilidade e à utilização do corpo humano. O progresso, que permitiu um conhecimento mais amplo da biologia dos transplantes, provocou um aumento na demanda de órgãos de pessoas para fazer frente às novas necessidades. Chama a atenção, no entanto, a crônica falta de órgãos, mesmo em alguns dos centros mais avançados do mundo. Não obstante alguns destes centros terem sede nas nações ricas e desenvolvidas, as atividades promovidas para incentivar as doações de órgãos e tecidos não têm conseguido motivar as pessoas de modo mais contundente. As campanhas publicitárias de estímulo às doações voluntárias tem se revelado frágeis; as doações voluntárias, sejam provenientes de pessoas vivas ou de cadáveres, têm estado muito aquém das necessidades atuais. Na verdade, os governos e organismos responsáveis adotam programas permanentes que têm como objetivo a busca capilarizada de doadores potenciais. Este fracasso é singular se se considera que os países do primeiro mundo possuem uma sofisticada estrutura de comunicação e marketing que responde magnificamente a finalidades menos nobres: por exemplo, cada centímetro dos macacões e capacetes dos corredores da Fórmula 1 é disputado por milhões de dólares para vender tabaco nocivo, roupas caríssimas ou combustíveis poluentes.

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Limites indefinidos entre a ciência e a ética

O acelerado progresso da ciência nos últimos anos nem sempre proporcionou o tempo necessário ao aprofundamento das diferentes implicações relacionadas com as novas conquistas. Nos casos de transplantes múltiplos ou de pesquisas com células fetais, por exemplo, é indispensável que se proceda a reflexões mais articuladas sobre os limites a ser respeitados. As preocupações, no entanto, são imensas e estabelecidas principalmente a partir das pesquisas relacionadas com os códigos genéticos humanos. Tais preocupações não devem significar obstruções aos avanços da biologia, da genética ou da própria medicina em seus conteúdos e significados humanos e éticos: trata-se, ao contrário, de definir os limites “humanos” deste desenvolvimento. Por outro lado, apesar da incessante procura de novos caminhos, as pes­ quisas científicas têm investido muito pouco na prevenção, que, apesar de todas as limitações, é ainda a forma mais rápida e acessível para a população pobre aproximar-se de níveis dignos de saúde e bem-estar. O fetichismo tecnológico é outro aspecto que não pode ser esquecido nesta análise. O poder mágico da ciência e da tecnologia muitas vezes cega alguns pesquisadores e clínicos, que acabam por perder as referências da realidade concreta que os cerca. Não sendo ideológica em sua estrutura, a ciência pode estar a serviço de finalidades nobres ou danosas à espécie humana, mas jamais é neutra. Daí o pesquisador não poder permanecer estranho às consequências sociais de seu trabalho. A ciência não pode ser separada da moral; a utilização, os fins e os interesses aos quais ela serve e as consequências sociais de sua aplicação fazem parte inequivocamente do campo da moral. Assim, são perfeitamente pertinentes as discussões que cientistas, filósofos, juristas e outros estudiosos dedicam atualmente aos problemas dos limites ou das fronteiras éticas da ciência e suas aplicações. Com o objetivo de que o futuro da humanidade não seja comprometido, é necessário que a ciência e a tecnologia estejam realmente a serviço da sociedade como um todo.

Kant e o corpo humano

Já no século XVIII Kant (1991) sustentava que o homem é um fim em si mesmo e jamais um meio: O corpo constitui a condição absoluta da vida, a tal ponto que não podemos ter uma ideia de outra vida senão mediante nosso próprio corpo, e não é possível usar de nossa liberdade senão valendo-se disso […]. O homem não é uma

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propriedade de si mesmo, pois isso seria contraditório. Na medida em que ele é uma pessoa, ele é um sujeito que pode almejar a propriedade de outras coisas. Se, ao contrário, fosse uma propriedade de si mesmo, ele seria uma coisa […]. É impossível ser uma pessoa e uma coisa […]. Com base nisso não lhe é permitido vender um dente ou outra parte de si mesmo.

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Os dentes, como se sabe, eram a única parte viva do corpo que se podia vender naquela época. A tese de Kant é hoje mais atual ainda, pois estão em jogo partes absolutamente vitais do corpo humano. Deve-se considerar que os termos seriam ainda mais claros caso a reflexão partisse do lado oposto do processo de mercantilização: não da venda, mas da aquisição. Há uma pergunta indispensável que surge deste importante debate filosófico: o centro do debate deve estar na faculdade de vender-se ou no direito de comprar as partes vivas do corpo de outra pessoa? Contudo, neste tipo de mercado os protagonistas não são somente os vendedores e os compradores. Do ponto de vista ético, pelo contrário, ambos podem apresentar justificativas com respeito à sua participação no ato. É difícil criticar aquele que deseja ou aceita vender numa situação de extrema necessidade, como, por exemplo, aquele que vende um rim para alimentar a família ou porque não tem meios para tratar uma doença grave sua ou de algum familiar. Mesmo aquele que compra, embora em menor medida, pode invocar argumentos atenuantes. Ele usa sua compreensível recusa a sucumbir ao ciclo natural vida–morte e a presunção de que o dinheiro possa adquirir tudo, incluindo a retirada de um órgão vital de outro indivíduo humano, mesmo sabendo que isso pode levar seu semelhante a uma morte mais prematura. Ao redor destes dois sujeitos, no entanto, existe uma ampla rede de intermediários, especialmente os médicos. Estes não têm nenhuma justificativa, nem mesmo no caso de um paciente urgentemente necessitado que sem um órgão salvador não poderá mais viver. Com relação aos médicos há muitos agravantes: o de violar o princípio universal da medicina primum non nocere; o de utilizar para a mutilação de uma pessoa competência e estruturas criadas para proporcionar saúde e bem-estar aos seres humanos; e o de emprestar a própria ação clínica em uma troca ou transação desigual. A transação é desigual seja pelo objeto (corpo em troca de dinheiro), seja pelos sujeitos que dela participam. A compra/venda verdadeiramente não é feita entre iguais, uma vez que o doador/vendedor se encontra — sem exceção — em uma tríplice condição de inferioridade: econômica, de conhecimento e de poder. Diante de progressos geopolíticos recentes, como a unificação europeia ou os acordos para diminuição da proliferação das armas nucleares, esperase que pelo menos sejam criadas regras e normas nacionais e internacionais

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com relação à utilização e à disponibilidade do corpo humano, bem como aos direitos humanos com relação ao progresso científico. No momento em que a ciência atingiu níveis impensáveis algum tempo atrás, a espécie humana e a comunidade de nações passaram a ter a obrigação de refletir com responsabilidade e consciência sobre o verdadeiro sentido e a verdadeira meta do desenvolvimento. A epistemologia da ciência do futuro deverá expressar a mais ampla e profunda compreensão possível da solidariedade, da colaboração humana e da cidadania. Portanto, há necessidade de que se reflita — uma vez mais — sobre a essência do conceito de democracia.

Solidariedade crítica e compromisso social

A palavra “solidariedade” não tem um valor absoluto e universalmente aceito. Sua aceitação varia de acordo com o país ou a cultura em que é contextualizada. Há pouco mais de dez anos um pesquisador brasileiro que participava de um encontro de estudos desenvolvido nos Estados Unidos, cujos participantes eram na maioria estadunidenses e canadenses, decidiu fazer uma pesquisa de opinião para saber o que entendiam por “solidarie­ dade” (Anjos 2000). Os resultados foram surpreendentes e substancialmente relacionados com duas interpretações: a. do internacionalmente conhecido sindicato polonês dirigido por Lech Walesa nos anos 1980; b. de interferência, intromissão ou mesmo “invasão da privacidade”. Esta segun­ da interpretação foi exemplificada pelos participantes do evento pela ação de um vizinho que, ouvindo ruídos provenientes de nossa casa, soa a campainha para saber se estamos precisando de alguma ajuda. Atualmente, a prática da solidariedade, não obstante a impertinência das interpretações acima, é amplamente difundida em todo o mundo dos modos mais diversos: algumas vezes é praticada de modo falso, com o único objetivo de algumas pessoas manterem seu status quo; outras vezes, no entanto, é praticada de modo consciente, com o objetivo de promover transformações de maior ou menor profundidade. Para entender melhor a prática da solidariedade crítica em sua expressão real, é oportuno estudar as ações dos participantes e grupos de “voluntários” que habitualmente atuam em hospitais ou em instituições que oferecem assistência a pessoas pobres e indigentes. Este capítulo, portanto, é voltado para a reflexão a respeito de um quadro que permita argumentar sobre a solidariedade como uma categoria teórica capaz de motivar e sustentar práticas socialmente comprometidas do voluntariado (Selli 2002). Neste sentido, é oportuno lembrar que nos chamados “países em vias de desenvolvimento” os termos “solidariedade” e “voluntariado” têm um va-

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lor particular, bem diferente daquele que apresenta nos países da América do Norte, como já referido. Fundamentar o estudo sobre esta categoria e a ela fazer referência com o objetivo de diminuir as injustiças sociais é uma forma de responder a uma necessidade real constatada na sociedade hodierna. É oportuno recordar, também, que a solidariedade livremente exercida, nascida de ações voluntárias, flui no sentido de formas de altruísmo e reciprocidade que constituem a realimentação necessária para que a alteridade emerja das relações interpessoais e intergrupais, no âmbito de um determinado espaço social1. Desta forma, pode-se dizer que o presente enfoque ao tema da solidariedade é primeiramente histórico e se coloca no contexto do chamado welfare state (Estado de bem-estar social) como responsabilidade também da alçada do Estado. Em um segundo momento, partindo de uma visão bioética, é proposta a solidariedade crítica como espaço privilegiado para o exercício da democracia, como percurso para a conquista dos direitos civis e como um dos possíveis caminhos para o aprofundamento na pesquisa e na conquista do welfare futuro. Devemos agregar, ainda, que não faz parte dos objetivos deste estudo eximir o Estado de suas obrigações e responsabilidades inerentes ao bem-estar social. Desejamos, ao contrário, estimular algumas reflexões sobre a capacidade da solidariedade de reunir, agregar e facilitar a luta por um futuro de mais equidade e melhores condições de vida. Em uma reflexão sobre o “Estado de bem-estar social” na Europa, Berlinguer (1994) escreveu o seguinte: Há algum tempo tudo parecia simples. Ao Estado era atribuído o papel de prover as necessidades dos cidadãos — de cabo a rabo, como se dizia em uma expressão provavelmente depreciativa e certamente paternalista. O sistema de welfare state parecia destinado a se perpetuar e expandir indefinidamente (p. 35).

Mas a partir dos anos 1970 e sobretudo nos anos 1980 ficou demonstrado que o Estado era incapaz de ser o único responsável por garantir o bem-estar, diante da impossibilidade de controlar “o crescimento dos gastos sanitários e previdenciários devido a muitos fatores, entre os quais se deve recordar as próprias mudanças positivas introduzidas pelo welfare state, como o aumento da população idosa e as demandas no campo da saúde” (ibid.). Foi neste contexto que — com Lucilda Selli — propusemos a solida­ riedade crítica como possível via para a pesquisa e a retomada do bem-estar, 1. É indispensável agregar a este capítulo que em outubro de 2005, com a homologação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco, a solidariedade passou a constar efetivamente da agenda internacional, mesmo com a resistência de alguns países ditos desenvolvidos (art. 13: Solidariedade e cooperação).

Solidariedade crítica e cuidado

Entre o comércio do corpo, a solidariedade crítica e o voluntariado orgânico

especialmente para aqueles indivíduos ou grupos sociais menos privilegiados e mais vulneráveis. E a construção de tal enfoque de solidariedade poderá ser traduzida, entre outras formas, em mudanças político-sociais baseadas no exercício de um voluntariado responsável e organizado — vo­ luntariado orgânico —, ou seja, exercido por meio de ações concretas de grupos estruturados de pessoas preocupadas com as transformações sociais, entendidas como luta pela inclusão do maior número possível de cidadãos e cidadãs no processo de desenvolvimento mundial.

Voluntariado orgânico

No presente estudo, a expressão relacionada ao que Selli e eu denominamos voluntariado organicamente estruturado, no sentido proposto por Antonio Gramsci, diz respeito à busca da união de uma tríplice forma de cidadania que possibilite acesso aos direitos civis, políticos e sociais, e usufruto deles. Este voluntariado orgânico encontra sua razão de ser em uma solidariedade crítica e comprometida com o “outro”, que está distante de significar apenas uma ação alienada, mecânica e horizontal. Tal tipo de solidariedade se insere no interior da normalidade da vida cotidiana e, na gratuidade das ações, contém o embrião de uma possível transformação social. A orientação do voluntariado orgânico concretiza-se por meio de ações palpáveis de solidariedade consciente e transformadora. Tais grupos organizados de voluntários deverão sustentar suas ações políticas e estabelecer suas relações no âmbito da justiça e do direito, com práticas solidárias interativas, juridicamente adequadas e socialmente comprometidas. Contudo, existem grupos de pessoas que não têm garantia de liberdade, de movimento e de livre organização e que, por esta razão, não participam nas decisões relativas à definição das políticas públicas que dizem respeito a elas mesmas. Propor a solidariedade crítica como categoria e referência para as atividades do voluntariado orgânico, além de significar uma nova visão bioética mais aproximada ao princípio da justiça, equivale à adoção de um parâmetro teórico dotado de concretude e especificidade. Nestes termos, o processo de compreensão e integração da solidariedade promove uma especificidade humanitária exclusiva aos integrantes dos movimentos de voluntariado, proporcionando — em um segundo momento — as condições indispensáveis ao progresso político-social, quando se torna visível o espaço de integração do maior número de indivíduos no exercício da cidadania. A especificidade humanitária que propomos é composta de duas características essenciais: a disponibilidade e a disposição à observação e à

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interpretação da realidade e da verdade, e a capacidade de “indignar-se” diante de fatos e situações que devem ser repudiados. Trata-se de um movimento que contribui para a transformação de uma sociedade “fragmentada” em uma “sociedade real”, no sentido da totalidade concreta descrita por Karel Kosik, em que todos os fatos de uma realidade e de um tema específico dela se iluminam reciprocamente, em uma espiral concreta e ao mesmo tempo infinita (Kosik 1976). Este fato torna possível a aceitação dos sujeitos sociais em sua diversidade e a recusa à tragédia que se apresenta como natural no universo das injustiças. O ponto de força dessa transformação está na superação do moralismo excludente e em permitir a interação de sujeitos concretos com a diversidade cultural e a iniquidade. O lado frágil da solidariedade (e do voluntariado como um de seus instrumentos…) consiste em não ter um patrimônio teórico-conceitual que lhe confira maior legitimidade. O voluntariado, por exemplo, mesmo enfrentando obstáculos em sua caminhada, construiu um estatuto próprio na prática de diferentes profissões que, em um dado momento histórico, proporcionavam prestígio social e acadêmico. Assim, sua identidade confunde suas práticas em algumas circunstâncias com as práticas dos psicólogos, dos sociólogos, dos religiosos, dos assistentes sociais, dos políticos… Tornamo-nos simplesmente duplicadores mecânicos de outras práticas, de outros métodos de intervenção e instrumentos de análise. A presente proposta trata de construir na solidariedade crítica o núcleo de referência teórica que reconhece a identidade e qualifica a prática do voluntariado orgânico. De acordo com essa orientação, a solidariedade crítica — como categoria geradora e como orientação das operações do voluntariado orgânico — desmistifica e supera a visão tradicional do voluntariado como simples assistência humanitária. É indispensável esclarecer a esta altura de nossas reflexões que as formas tradicionais de voluntariado, de modo geral, não são nada além de instituições burguesas destinadas ao exercício de ações desarticuladas executadas por indivíduos que não sabem o que fazer com seu tempo e necessitam de algumas justificativas morais — materializadas por meio de ações pontuais de caridade ou misericórdia — para amenizar seus próprios conflitos interiores ou suas omissões e/ou injustiças praticadas no passado. A transformação do voluntariado tradicional em outro tipo de voluntariado — orgânico — encontra no conceito de solidariedade crítica e da busca da alteridade (do ver realmente o “outro”…) a motivação para a procura de uma melhor qualidade de vida para nossos semelhantes. A crise econômica mundial, ao mesmo tempo em que foi um elemento de estímulo às ações voluntárias, teve seus efeitos negativos sobre as associações de voluntários, reduzindo as atividades a um subproduto de si

Solidariedade crítica e cuidado

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mesmas e obrigando as associações a ocupar-se de espaços impróprios. O voluntariado, privado de autonomia e do âmbito que lhe era peculiar, tornou-se um simples amortecedor dos efeitos perversos da crise e também vítima da economia. Um voluntariado que se desenvolve sobre o fracasso econômico se nutre de êxitos fugazes, uma vez que esta é uma das razões de ele existir. A esfera política é, na verdade, o supremo tribunal onde se deve reivindicar todos os direitos civis, de parte das lideranças da coletividade, em benefício da própria sociedade e especialmente daquelas pessoas com mais necessidades materiais. O voluntariado orgânico — como possível âmbito da solidariedade crítica — possui uma identidade própria e deve se transformar em propulsor de mudanças sociais e de bem-estar para as pessoas mais necessitadas, promovendo de modo progressivo a autonomia dos beneficiários das ações voluntárias. Esse voluntariado orgânico e consciente equivale a um verdadeiro agente de transformações. Se na sociedade atual tudo concorre para confirmar a emergência do individualismo, o voluntariado orgânico dá vida à realidade solidária levando as atividades e ações em direção ao “nós” em vez de ao “eu”.

Solidariedade, voluntariado e welfare state

“O bem-estar dos súditos não é simplesmente um objetivo a ser alcançado para o alcance do Estado ideal; é também um meio importante para fazer funcionar bem o Estado na sua realização histórica” (Bobbio, Matteucci, Pasquino 1995). Em outras palavras, mesmo se o welfare state é uma responsabilidade do Estado, depende dos súditos, uma vez que estes são seus financiadores. De fato, é obrigação dos súditos proporcionar os meios para a realização daquelas ações demandadas ao Estado. Ao Estado compete o papel de criar e cobrar impostos para recolher os meios necessários à realização do bem-estar. O voluntariado orgânico tem sua razão de ser na doação como gesto gratuito e fator de coesão das forças políticas, civis e sociais, na prática superior de uma solidariedade verdadeiramente crítica e ativa. As iniciativas de altruísmo e solidariedade como processo para a conquista da cidadania plena ativam a potencialidade das pessoas e constituem uma proposta de resgate dos direitos civis, políticos e sociais para todos os indivíduos que vivem à margem da sociedade. Entre os grandes objetivos da bioética, a justiça tem particular importância, como pré-requisito necessário ao alcance da equilibrada distribuição de benefícios. Quando aborda o complexo tema da equidade, Berlinguer diz: “Falarei de equidade pensando, por um lado, nos valores intrínsecos e únicos […]

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de cada pessoa, e pelo outro na importância de promover ações para remover os obstáculos ao bem-estar” (1994, p. 76). A proposta de solidariedade crítica considera esta dupla realidade e ao mesmo tempo serve de instrumento para a construção de uma sociedade mais justa. É nesta dialética de integração e de apropriação de si mesma diante de situações de compromisso real que se abre a cena para uma cidadania real, que principia com a participação da solidariedade crítica como elemento catalisador do processo social e motor de uma cultura centrada na melhoria da qualidade de vida do outro, do semelhante que necessita mais. A dinâmica das mudanças na conquista do bem-estar implica inter-relações e coordenação no trabalho. As incontáveis leituras feitas sobre os movimentos de voluntários no mundo denunciam um real interesse em redesenhar o papel ativo das organizações de voluntários. Paralelamente a esse interesse, é oportuno recordar que a proposta de solidariedade crítica é pré-requisito funcional indispensável à operação de ações voluntárias orgânicas e transformadoras. Para encerrar este tópico, pode-se dizer que a solidariedade crítica e socialmente comprometida é ao mesmo tempo causa e efeito das transformações, que vão desde a simples prática de ações humanitárias livres a um voluntariado responsável, ordenadamente estruturado. Assim conceitualizada, a proposta de voluntariado orgânico vem incluída no âmbito das instâncias sociais, com identidade própria e características teóricas específicas. Além disso, propõe-se como espaço de ação para intervenções seletivas que valorizem o respeito ao pluralismo moral e a promoção de transformações sociais e de integração conforme as orientações da justiça e dos direitos humanos como princípios fundamentais da bioética.

Considerações finais

A possibilidade de legitimar as ações voluntárias orgânicas como espaço peculiar para a prática da solidariedade crítica, contida na presente proposta, está no compromisso pela conquista da cidadania plena que reconhece seus pressupostos em três elementos centrais: cidadania civil, cidadania política e cidadania social. O aspecto civil da cidadania atribui ao indivíduo uma realidade autônoma e soberana, cuja expressão histórica se concretiza no exercício da liberdade individual explicitada na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O voluntariado nasce desta mesma matriz e é compreendido como um espaço a mais para promover o exercício das liberdades individuais e coletivas na prática dos direitos humanos. Propor uma visão crítica da solidariedade, adequada ao atual momento histórico e condizente com a conjuntura social mundial, equivale a ofe-

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recer ao voluntariado orgânico a capacidade de refletir sobre suas ações, aperfeiçoando-as e tornando-as mais fecundas com relação aos objetivos predeterminados. O voluntariado orgânico deverá ser organizado por grupos sociais capazes de promover e defender os direitos individuais e coletivos e de servir como interlocutores na prática social. Todos os movimentos de luta contra os danos físicos e morais que afligem a sociedade (drogas, câncer, aids, miséria…), todas as ações de conscientização para o gozo dos direitos, pelo respeito da vida e em defesa de uma humanidade vista em sua plenitude (educação e prevenção sanitária, doações de sangue, humanização das prisões…) provam a existência de pessoas voluntariamente empenhadas em mudar a ordem atual da solidariedade tradicional. Confrontar-se com os problemas sociais pressupõe coordenação e coo­pe­ração entre as disposições governamentais e a iniciativa social, entre os recursos oficiais e a dinâmica comunitária, entre a competência técnica e a habilidade humana; este é o percurso exato a ser seguido por uma operação forte, que realize a prática do voluntariado orgânico segundo os ditames da solidariedade crítica. A característica que torna peculiar a solidariedade crítica manifesta-se em sua capacidade de estimular as pessoas para que participem, convencidas e com senso crítico, na busca de soluções aos problemas que são de seu interesse. A cultura da participação é fundamental para o compromisso e a dedicação dos sujeitos no processo de transformação e inclusão social. A solidariedade crítica oferece as condições objetivas para que o voluntariado possa dar um salto qualitativo, deixando de ser um espaço ocupado substancialmente por elites desocupadas para apropriar-se de uma dimensão dialética e inovadora. Neste capítulo, tentamos fazer um corte epistemológico da realidade, colocando em destaque os aspectos éticos da vida social relacionados com a sociedade civil. A análise da solidariedade, do voluntariado e de suas motivações se insere, portanto, no domínio da sociedade civil e de suas formas associativas. Para concluir, pode-se dizer que a presente proposta é uma tentativa de resposta ao grito de protesto lançado por aqueles que sofrem na própria pele a dor da exclusão e da dignidade aviltada, que persistem de modo cada vez mais agudo na realidade concreta dos dias atuais. Para o seminário promovido na cidade de Prato, na Itália, referido no início deste capítulo, a presente discussão procurou partir de aspectos relacionados com a mercantilização do corpo, incluindo as doações e transfusões de sangue, fazendo “ponte” com o delicado tema da solidariedade. Pelos resultados alcançados com os debates lá desenvolvidos — com intensa participação de emigrantes africanos e da sociedade local italiana —, a in-

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clusão epistemológica dos conceitos de solidariedade crítica e voluntariado orgânico foi bastante útil na construção de alternativas positivas com vistas ao futuro das relações sociais e políticas que estavam em discussão.

Referências bibliográficas

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O poder do diálogo e o engajamento das pessoas comuns Fermin Roland Schramm Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP)/ Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Rio de Janeiro

Introdução

O

título proposto estabelece uma relação entre duas ideias: 1. “poder do diálogo” e 2. “engajamento das pessoas comuns”. A primeira ideia contém os dois conceitos interligados de “poder” e “diá­ logo”, a segunda (embora de forma indireta) o conceito de “democracia” e a adjetivação “participativa” — e a ideia geral é que poder e diálogo podem ser considerados meios para atingir a democracia e, eventualmente, a democracia participativa. Isso se democracia é entendida como “direta” — como indica a palavra “engajamento” do título —, ou seja, se referida à práxis dos cidadãos e a seu autogoverno ou — como se prefere hoje — a seu empoderamento, e não somente à representação de seus interesses por terceiros, como de fato acontece nas principais democracias do mundo, que são prevalentemente “representativas”. Ou ainda se entendemos a democracia como exercício de poder de cada um e de todos e, consequentemente, se cada interesse legítimo é tomado devidamente em conta no cômputo do interesse geral. Mas isso abre a discussão às questões das potencialidades e dos limites do exercício do poder, dos vínculos do poder com os direitos e os deveres, ambos constitutivos do ethos em que vivemos e decidimos, ganhamos e perdemos, vivemos nossas experiências, compartilhadas ou não, do sofrimento e do prazer.

Poder, diálogo, democracia e ética

Em filosofia política, a relação entre “poder”, “diálogo” e “democracia” pode ser pensada considerando que a democracia é, por definição, “o poder do

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povo”. “Povo” que é — de acordo com o sentido adquirido na cultura política contemporânea — o “titular da soberania”, o “poder político originário”, fonte da qual derivam os demais poderes que em princípio — embora não necessariamente de fato — encontram nele sua legitimidade. Mas existe também uma relação entre “poder” e “diálogo” com a ética, se a pensarmos — de acordo com uma indicação de Ricardo Maliandi — como a instância capaz de equilibrar “as funções contrapostas da razão”, isto é, como instância capaz de dar conta da dialética entre “conflituosidade” e “convergência”, sabendo, no entanto, que existe um “a priori da conflituosidade” e, mesmo assim, que esse a priori não impede a busca de uma possível harmonia (Maliandi 2006, p. 11-12). Relacionando poder, diálogo e ética pode-se pensar a questão do empoderamento dos atores envolvidos (indivíduos e grupos), isto é, pensar nos meios para eles poderem defender seus interesses legítimos e resolver problemas e conflitos que surgem da vida em comum — o que é também uma das ca­ racterísticas da democracia. Entretanto, o poder pode tanto relacionar-se com como separar-se do diálogo, e portanto incluir ou excluir a democracia. Quando se separa — ou se contrapõe — poder e democracia, os conflitos ficam sem solução ou a democracia é — por assim dizer — imposta, devendo, portanto, ser justificada enquanto “democracia”, podendo ser de fato uma não democracia ou uma “pseudodemocracia”. Mas poder e diálogo podem também relacionar-se, como na expressão “o poder do diálogo”, na qual a relação é pensada a partir do conceito de diálogo, entendido como a prática capaz tanto de dar conta como de limitar o poder pela inclusão ou pela exclusão das “pessoas comuns”, vinculando, portanto, ambas à democracia. A ordem dos três conceitos pode ser invertida, isto é, a análise da relação entre “poder”, “diálogo” e “democracia” pode ser feita a partir de cada um deles, estabelecendo as devidas relações com os outros dois conceitos. Em nossa análise a seguir, partiremos do conceito de diálogo e tentaremos ver quais tipos de relações podem existir entre o diálogo, o poder e a democracia. A razão desta postura é sua aparente simplicidade quando comparada às outras duas, pois o “diálogo” é, por definição, inclusivo com relação aos usuários desta forma discursiva (que são também agentes). Isso permite pensar a forma discursiva chamada diálogo como a instância que é, por princípio, democrática, havendo, portanto, congruência entre “diálogo” e “democracia” devido à inclusão de todos os agentes nas duas funções de emitir e receber mensagens e, a partir desta inclusão recíproca, empoderar-se ou — para utilizar um termo de Paulo Freire — libertar-se. Mas existe outra razão para preferir o tipo de análise que parte do diálogo: é o fato de ela apontar para o campo da ética, entendida como análise crítica dos argumentos em jogo nos conflitos para os quais procuramos

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O poder do diálogo e o engajamento das pessoas comuns

modos de convergência e de solução possíveis, ou seja — na linguagem de Maliandi —, uma possível “harmonia”. Ao contrário, se partimos do conceito de “poder” para analisar a rela­ção poder/diálogo/democracia, a operação é mais problemática, pois na relação diá­ ­logo/poder o diálogo pode ser visto, positivamente, como a instância capaz de empoderar/libertar seus atores e, eventualmente, torná-los competen­tes para fazer frente ao poder exercido por terceiros e, quando julgado necessário, contrastá-lo e, eventualmente, desconstruí-lo ou até destruí-lo. Entretanto, existem também situações em que o poder não dialoga e não é “democrá­ tico”, em que o poder fica sozinho, excluindo diálogo e democracia. Resumindo: no segundo caso teríamos os dois polos de uma relação: a tomada de poder (o empoderamento) e algo como uma resistência ao poder vigente, resistência que pode ser legítima ou não, dependendo de o poder também sê-lo ou não. Este é, grosso modo, o mapa da questão das relações possíveis entre diálogo, poder e democracia. Mas a relação do diálogo com o poder não é necessariamente antinômica, pois o poder não é uma entidade coerente e estável: as relações de poder podem mudar de acordo com as condições históricas e geográficas, e suas estratégias e seus efeitos podem ser múltiplos e diferenciados, sem necessariamente passar pela instância do diálogo. Mas — como vimos — poder e diálogo podem estar relacionados à democracia, a qual indica o exercício do poder em princípio por parte de todos os cidadãos, sem nenhuma exclusão a priori, e quando houver exclusão esta deverá ser devidamente justificada, isto é, argumentada dialogicamente; caso contrário, será arbitrária e ilegítima, ou uma não democracia. De fato, a relação entre poder, diálogo e democracia é complexa: os três conceitos são distintos, mas não separados, e, simultaneamente, estão vinculados, mas não podem ser confundidos. Trata-se, por um lado, de conceitos distintos se consideramos que o poder pode opor-se tanto ao diálogo (por exemplo, pela censura da informação) como à democracia (é o caso das ditaduras); isto é, ser uma forma “unívoca” ou autoritária de relação, sem nenhum diálogo entre quem exerce o poder e quem é objeto de tal exercício, e sem nenhum “engajamento das pessoas comuns” no exercício real do poder. De fato, neste último caso teríamos uma relação de tipo logicamente disjuntivo: o poder entendido como exercício do domínio de uns sobre outros (ou de uma classe social sobre outra[s]) ou de um discurso (que se torna ideolo­gia dominante) que se impõe — inclusive pela força — sobre os demais discur­sos legítimos possíveis, que poderão ser desqualificados ou censurados de várias maneiras (como bem mostra atualmente o debate sobre a liberdade de imprensa, não só na América Latina, mas também na Europa). Mas pode existir também — ao menos em tese — uma relação propriamente dita, isto é, um vínculo entre os três termos, como no caso da democracia efetiva, que é, por

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definição, o poder exercido por todos, e não somente — como deixa entender, no fundo, Platão — o poder exercido pelos que “sabem”, pelos “melhores” ou… pelos que podem, isto é, pelos que têm os meios materiais e simbólicos para submeter a seus desejos os demais… que não os têm. “Compartir o logos” e a ética

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O diálogo — literalmente, “compartir o logos” — é uma modalidade do discurso, formada — de acordo com o linguista Emile Benveniste (1974, p. 85) — por “duas ‘figuras’ igualmente necessárias, uma origem, a outra destino da enunciação […] em posição de parceiros [que] são, alternativamente, protagonistas da enunciação”, mas que tem uma variedade, representada pelo monólogo, ou “diálogo interiorizado, formulado em ‘linguagem interior’, entre um eu (moi) locutor e um eu (moi) ouvinte”. Esta concepção do diálogo permite superar o paradigma cognitivista da linguagem, que só considerara os aspectos gnosiológicos do diálogo, e considerar sua dimensão prática, isto é, suas dimensões — que nos interessam aqui — éticas e políticas. Desta maneira, o diálogo pode ser considerado ato de fala, que de fato não descreve um estado de coisas existentes ou uma relação denotativa entre palavras e coisas, mas transcende a representação e a necessidade de tão somente se submeter à prova da verdade de seus enunciados, para incluir também seu conteúdo pragmático, que é aquele em que seu significado se realiza concretamente. Com isso, o diálogo pode ser considerado uma prática que tem um componente ético, pois acontece, por definição, entre pelo menos dois atores sociais da espécie homo sapiens distintos, que enquanto tais são “outros” entre si e — devido às regras que regem o ato de fala chamado diálogo — devem respeitar-se mutuamente como seres racionais e livres que “discutem” entre si para encontrar os meios capazes de produzir efeitos que sejam compartilháveis e aceitáveis por todos os envolvidos. É neste sentido que se pode dizer que o diálogo tem uma dimensão performativa, isto é, “que realiza seu significado”, ou cujo dictum se torna factum (Agamben 2008, p. 74, 80), pois no diálogo o ser humano é “o único entre os viventes […] que tenha posto em jogo a sua própria natureza de humano [e] juntado, em um nexo ético e político, as palavras, as coisas e as ações” (ibid., p. 94-95). O poder sobre e o poder com

O poder tem a ver com a capacidade que os humanos têm de condicionar outros humanos e outros seres vivos (indicado, por exemplo, pelo termo

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romano imperium) ou coisas (dominium), ou seja, o poder é uma estrutura relacional entre sujeitos diferentes que tem pelo menos três termos (ou polos): a. o indivíduo (ou grupo) que tem o poder e o exerce sobre aquele(s) que não tem(têm) o poder; b. o indivíduo ou grupo ao qual o poder do(s) primeiro(s) se aplica; e c. um contexto representado pela esfera de atividades e dispositivos em que o poder se exerce, e que podem ser de tipo religioso, político, econômico, cultural ou linguístico, entre outros. O diálogo — considerado uma forma de poder — pode ser entendido de duas maneiras distintas: 1. no sentido de partilha do poder entre todos os en­volvidos na forma discursiva chamada diálogo, sentido estritamente vincu­ lado ao conceito de exercício da “democracia”; e 2. no sentido de resistên­ cia a um poder vigente e não compartilhado, ou seja, de ação tendente a enquadrar e limitar o poder dos agentes sobre/contra os destinatários, tendo em vista seu controle contra eventuais abusos e a garantia de seu exercício democrático. Em ambos os casos o poder pode ser visto como a forma em que o diálogo de fato se concretiza e se efetiva para controlar o poder, o qual pode ser limitado por um contrato que torna possível a existência tanto da sociedade organizada secular quanto do Estado democrático e laico. O contrato pode ser estabelecido livremente por um consenso, mas pode implicar também a renúncia à democracia propriamente dita e a instaura­ ção de um poder absoluto em troca de sua proteção contra riscos e perigos — como no caso do Leviatã de Thomas Hobbes ou no estado de exceção. Mas o poder pode também ser conceituado como exercício compartilhado através de dispositivos capazes de limitar os abusos de poder — inclusive do Leviatã e da suspensão de direitos representada pelo estado de exceção —, como no caso do exercício do estado de direito que, quando legítimo, pode apropriar-se e ter o monopólio da força (Macht) e até da violência (Gewaltsamkeit) (Weber 1922).

Arqueologia do diálogo

Historicamente, a palavra diálogo, entendida com o significado de compartilhar o logos, é de origem grega. De fato, já em Homero aparece o termo dialegomai, que significa “ponderar algo” e, com isso, engajar-se pondo em risco o próprio destino pessoal diante do(s) outro(s) com os quais interagimos; ou seja, no diálogo os envolvidos estão reciprocamente em jogo, e isso com relação a uma questão que está em aberto e (ainda) não decidida, mas que se pretende em princípio resolver. No diálogo se estabelece, assim, uma dupla relação: 1. uma relação entre pelo menos dois atores, que ocupam alternativamente o lugar de emis-

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sor e de receptor de mensagens e que podemos chamar de relação eu–outro (ou eu–tu) mediada pela linguagem; e 2. uma relação desta estrutura eu– outro (ou eu–tu) com um terceiro termo, representado pelas palavras “isso” e “aquilo”, que podem representar algo conhecido (e que pode ser presente ou passado) ou algo não conhecido (e, portanto, futuro ou pertencente a um passado desconhecido). Em Platão o diálogo se torna uma forma do pensar referido a conteúdos, em princípio atemporais, mas compartilhados intersubjetivamente e que entram, portanto, no âmbito do conhecimento. No Teeteto, Sócrates define o pensar como “[u]m discurso que a alma mantém consigo mesma, acerca do que ela quer examinar. […] uma espécie de diálogo para si mesma com perguntas e respostas, ora para afirmar ora para negar” (189e, 190a, in Platão 2001, p. 107-108). No cristianismo, o diálogo mantém, em substância, a estrutura eu–ou­ tro (ou eu–tu), mas adquire — por exemplo nos Soliloquia de Santo Agos­ tinho — também a dimensão de relação da alma individual (ou do eu) com a verdade, através da ratio (Soliloquia II, 14). De fato, Agostinho “cristianiza” o cognitivista Platão, quando considera que o diálogo se dá com o “maestro interior” ou Deus. De qualquer maneira, este sentido de diálogo como relação entre o eu e a verdade, através da razão, será mantido na filosofia ocidental tanto por Descartes como pela fenomenologia de Husserl. Mas quando entram em jogo — como categorias de análise — a história, a linguagem e a sociedade o diálogo pode ser entendido como acontecimento ético e político, pois o diálogo se dá (como em Kant na Metafísica dos costumes [1785]) como algo que deve ter em devida conta a dignidade absoluta de qualquer ser humano, o qual — de acordo com o imperativo do dever — deve ser aceito, sem exceções, como fim em si mesmo e não somente como meio para fins alheios. Não cabe aqui entrar no mérito de saber se a ética kantiana é meramente formal e abstrata, carente de concretude e de contextualização institucional (como pretendia Hegel), pois se pode muito bem entender a indicação kantiana de maneira mais abrangente, saindo, portanto, de seu “formalismo” e considerando que ela estabelece, de fato, uma diretriz de como as pessoas devem ser consideradas numa democracia: pessoas em princípio livres, ou autônomas em suas tomadas de decisão, e que podem, portanto, ser consideradas democraticamente responsáveis por seu agir. (Derrida — seja dito de passagem — desenvolverá esta ideia ao propor aquela que chamara de hospitalidade incondicional.) Com a descoberta da linguística comparada de que as línguas são irredutíveis umas às outras (Humboldt 1836), a questão do diálogo adquire gradativamente uma dimensão coletiva, societal; constata-se que entre línguas só pode haver tradução e que a tradução de uma língua para outra implica sempre uma perda de significado — fato indicado pelo mote italiano

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traduttore traditore. Existiria, portanto, uma impossibilidade prática de dar conta das diferenças de cada língua em uma espécie de língua universal comum (ou lingua universalis, como pretendia Leibniz) ou metalinguagem atemporal, ou seja, a impossibilidade da “superação da diversidade na unidade de uma linguagem atemporal” (Casper 2006, p. 2819). Com isso, o diálogo entendido como discurso ou como “compartilhar o logos”, tendo em vista o conhecimento, mostra também seus limites. De fato, o que está em questão aqui é a concepção gnosiológica de diálogo entendido como comunicação reduzida ao jogo de linguagem chamado argumentação — baseada nos significados cognitivos dos atos de fala —, esquecendo-se de que na comunicação real coabitam saber, fazer e agir, ou seja, que a comunicação é um sistema (ou o subsistema do sistema mundo) que se situa no tempo, que cria condições de interação entre sujeitos e culturas, e que produz efeitos sobre os agentes, efeitos que podem ser considerados bons ou maus, de acordo com algum parâmetro de avaliação, inclusive de acordo com paradigmas de tipo moral. Uma das consequências desta reconsideração do que é, de fato, um diá­ logo foi a inclusão em sua conceituação do ser-aí (Dasein, como o chamara Heidegger) das pessoas envolvidas no diálogo, o que fez que a estrutura eu– outro pudesse ser pensada também como estrutura “eu–tu” (Buber 1974). Com isso, as regras linguísticas que garantiriam o uso correto da linguagem para as pessoas se entenderem passaram a ser pensadas como sendo subsumíveis a uma regra — julgada de ordem lógica superior — que é a regra que garante o próprio diálogo e que implica a ideia de ser o lugar legítimo onde se expressa a vontade moral de entendimento de todos os envolvidos — e que Habermas sintetizará pela fórmula conhecida do agir comunicativo.

Considerações finais

Entretanto, mesmo com esta extensão do campo conceitual de diálogo — ago­ ra entendido como saber que é um dizer, mas também como um fazer que é um agir —, ou seja, vinculando as três características do 1. conhecimento da verdade (ou supostamente tal graças à mediação da razão), 2. do fazer poiético (que inclui ciência, técnica e arte) e 3. do agir (que implica terceiros, seus desejos e interesses considerados legítimos, e os eventuais conflitos entre si), ficou em aberto um problema: o da efetiva apreensão e/ou compreensão do outro através do diálogo. Em outros termos, a pergunta (de fato dupla) que fica sem uma resposta satisfatória — por isso é uma “questão em aberto” — refere-se a quanto o outro seja de fato compreensível para mim (e vice-versa) e a quanto eu seja compreensível a

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mim mesmo no processo de interação com o outro de mim, podendo com isso, e se necessário, mudar meu comportamento de acordo com regras de comportamento que possam ser consideradas democráticas. O que não é muito diferente da antiga questão de saber quanto a multiplicidade possa ser reduzida ao Uno atemporal — ou quando e em quais condições as diferenças possam ser subsumidas a uma identidade — sem perder as di­ ferenças consideradas significativas, mesmo quando esta “redução” fosse tão somente de linguagem — como poderia ser o caso se existisse uma meta­ linguagem capaz de dar conta de todas as linguagens em pauta, tanto do ponto de vista denotativo como do conotativo. Em resumo, as respostas dadas a esta questão são de dois tipos. A primeira resposta tenta contornar a dificuldade, propondo, por um lado, uma hermenêutica capaz de aceitar tanto um grau de intransparência do outro ao eu e do eu ao outro — indicado pelo verso de Arthur Rimbaud “je est un outre” —, mas vinculando esta “falta” à necessidade que o eu teria do outro; ou seja, considerando o evento constituído por dois entes que são outros entre si ou, se quisermos, um evento em que o indivíduo, formalmente autônomo, é também praticamente vinculado ao outro — e, portanto, possui uma autonomia limitada. De fato, o eu precisa do outro em sentido moral e político, isto é, como agente moral que é também um cidadão numa sociedade dita democrática e que se pretenda pluralista. O segundo tipo de resposta é aquele que considera que este tipo de relação está destinado ao fracasso — como parecem indicar os motes lacanianos “il n’y a pas de rapport sexuel” e “il n’y a pas de metalangage” —, ou seja, em substância, que não existiria um ponto de vista capaz de dar conta de todas as particularidades de cada jogo de linguagem em um diálogo — como pretendem também os filósofos ditos pós-modernos. A questão é, evidentemente, mais complexa, mas ficaremos por aqui. Nas novas condições, que são ao mesmo tempo cognitivas e existenciais, o diálogo é um evento em que os falantes que são também agentes — ou, se quisermos ser mais precisos, que são sujeitos cognitivos que são também sujeitos morais e políticos — permanecem outros entre si e, no entanto, vinculados entre si, porque cada eu precisa do outro e deve, portanto, respeitar o outro em sua diferença — ou pelo menos tolerá-lo —, num movimento em aberto e sempre em transformação, que para Lévinas (1993) implicaria algo como “a própria relação com o infinito” (p. 127). De fato, para Lévinas esta relação assimétrica entre eu e outro seria a base do evento da relação do eu com o outro, na qual o eu seria sempre o devedor do outro (e para Jonas esta relação se dá numa estrutura em que o eu seria responsável pelo outro). Assim sendo, se o diálogo é um evento que se dá numa estrutura eu– outro do tipo daquela que acabamos de delinear — essencialmente assi-

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métrica —, e se o caráter prático do diálogo implica atos do eu que podem afetar o outro de maneira significativa, o diálogo tem uma clara dimensão moral e política, a qual tem a ver com o poder, suas qualidades e potencialidades, e com a democracia.

Referências bibliográficas Agamben, G. Il sacramento del linguaggio. Archeologia del giuramento (homo sacer II,3). Roma, Laterza, 2008. Benveniste, E. Problèmes de lingüistique générale II. Paris, Gallimard, 1974. Buber, M. Ich und Du. Heidelberg, Lambert Scheider, 1974. Casper, B. Diálogo. In: Enciclopedia filosofica. Milano, Bompiani, 2006, v. 3, p. 2818-2821. Humboldt, W. Über die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues und ih­ ren Einfluß auf die geistige Entwicklung des Menschengeschlechts. Bonn, F. Dämmler, 1836. Lévinas, E. Dieu, la mort, le temps. Paris, Grasset, 1993. Maliandi, R. Ética, dilemas y convergencias: cuestiones éticas de la identidad, la globalización y la tecnología. Buenos Aires, Biblos/UNLa, 2006. Platão. Diálogos: Teeteto – Crátilo. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, EDUFPA, 2001. Weber, M. Wirtschaft und Gesellschaft. Grundriss der verstehenden Soziologie. Tübingen, Mohr, 1922.

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Desumano, demasiadamente desumano José Eduardo de Siqueira Marcos Liboni Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Londrina

Desenvolvimento psíquico e vida em sociedade

V

ivemos uma realidade histórica complexa. Esta certamente é uma época de transição que está ocorrendo com tal rapidez que parece não estarmos encontrando condições de assimilar as mudanças no ritmo em que os eventos se apresentam. Não temos mais limitações de acesso às informações, e a possibilidade de estabelecer contatos com pessoas nos mais diferentes cantos do mundo é tanto mais real quanto maior o número de canais virtuais ao nosso alcance. Muitas instituições e organizações seculares encontram-se em crise enquanto fontes geradoras de informações acolhidas socialmente, como eram representadas pelas Igrejas, pelas escolas e pelos órgãos governamentais até a primeira metade do século XX. Em meio a uma inusitada crise do sistema econômico internacional, acompanhada de incontrolável onda de desemprego, paradoxalmente assistimos a autoridades públicas estimulando o consumo como único mecanismo para reavivar o mercado em agonia. Em suma, pede-se a pessoas desempregadas que desembolsem recursos de que não dispõem como condição para terem de volta seus postos de trabalho. Apesar de vivermos num mundo excessivamente populoso, sentimonos cada vez mais solitários. As doenças mentais e muitos agravos à saúde se alastram como verdadeiras epidemias. O crescente desinteresse dos jovens pelo cultivo de relações interpessoais sólidas, as manifestações repetidas de desrespeito mútuo e a inconsequente busca ilimitada do prazer são claras evidências de grave enfermidade moral. A busca por um significado na vida pessoal foi tomada de assalto pelo materialismo histórico e um inconsequente existencialismo. Os ganhos em

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conforto proporcionados pela revolução industrial fizeram-se acompanhar de enormes repressões impostas pelos valores da sociedade burguesa emergente, o que sufocou as mais genuínas expressões do humanismo. A promessa do acesso incondicional aos bens de consumo trouxe, entre outros desenganos, a falácia do gozo infinito do ter, privatizando valores da esfera pública, como, por exemplo, obras de arte de grandes artistas. No campo das artes plásticas, o exemplo mais emblemático ocorrido no passado século foi a aquisição da famosa tela de Auguste Renoir O baile no moinho de La Galette por um milionário japonês, que pagou por ela 56 milhões de dólares e lhe ofereceu como destino um cofre climatizado — assim, somente ele poderia ter acesso ao prazer de contemplar a mais importante tela representativa do impressionismo. Não bastasse isso, o excêntrico milionário teria expressado o desejo de ser cremado juntamente com a tela, fato felizmente não concretizado. Esse tema foi muito bem exposto por Eduardo Giannetti em sua obra Vícios privados, benefícios públicos?. Até que ponto a mão invisível do mercado foi eficaz para trazer prosperidade e valores humanos na sociedade moderna? Qual é a relação entre ética e livres intervenções do capital privado na vida pública? (Giannetti 2007). Temos ainda os exemplos das grandes barbáries perpetradas pelo homem no último século, por meio de guerras, da imposição de ditaduras e, a partir de 11 de setembro de 2001, da novidade do terrorismo. Todos estes fatos são manifestações concretas de uma perversão natural do homem que encontrou no materialismo a possibilidade de se expressar por um verdadeiro desatino cultural (Roudinesco 2008). A falta da percepção de um significado para além da existência material erodiu irreversivelmente o que havia de essencial na vida humana. Assim sendo, não constitui motivo de surpresa observar que as sociedades economicamente mais ricas apresentem elevados índices de doenças mentais e suicídio, como é caso da França (Por que os franceses… 2009). Situação semelhante ocorre nos Estados Unidos da América do Norte, onde quase 2% da população adulta cumpre pena de reclusão por diferentes crimes contra a sociedade. Nos países em desenvolvimento a realidade é ainda mais traumática. O Brasil, embora ostente a alegre condição de país do carnaval, assiste impassível à concretização do pesadelo descrito por Josué de Castro em Geografia da fome, em que grandes conglomerados urbanos são habitados por enorme contingente de pessoas insones, as que não dormem por estar com fome e as que não adormecem dominadas permanentemente pelo medo daquelas que têm fome (Castro 2005). Passamos a viver a estranha condição de zumbis, projetos póstumos do que poderíamos ser, uma vez que estamos nos destruindo de forma incessante e vivendo cada vez mais nossas pulsões de morte (Freud 1981). Não

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estamos conseguindo desenvolver nossas identidades pessoais de forma autenticamente humana. Paradoxalmente, urge humanizar a humanidade dos homens! O desenvolvimento da experiência humana, particularmente, influencia a maneira como cada pessoa se vê e desenvolve sua personalidade, sempre única. E o modo como estabelecemos nossas relações de consumo tem uma forte base psíquica. O que nos impulsiona a comprar e consumir? Não nascemos psiquicamente prontos para viver as relações interpessoais de modo maduro e interagir de forma responsável com a sociedade. Nosso desenvolvimento mental deveria almejar a construção de convivências social e ambiental harmônicas. Uma existência madura, como seres moralmente adaptados e capazes de uma interação cooperativa com a natureza, depende da qualidade e da estruturação de nossa formação emocional (Liboni, Siqueira 2009). Existimos a partir de nossa mente, de nossa consciência, a partir da noção do eu e do incessante processo de comunicação. A qualidade do psiquismo fundamenta e influencia o enfrentamento racional da realidade que nos cerca. Sua formação vem de uma complexa interação entre os desenvolvimentos biológico, psíquico e ambiental, e a existência consciente da pessoa é uma manifestação desta interação, e não somente marcada por características herdadas, como sugerem alguns cientistas defensores do determinismo genético. Se dependêssemos unicamente de nossas raízes biológicas, prevaleceria um comportamento predatório, tão bem identificado por Nietzsche (2009) na máxima 41 de Crepúsculo dos ídolos: “Queres caminhar junto? Ou andar na frente? Ou seguir sozinho? É preciso saber o que se quer. Quarto problema de consciência”. O consumismo está estreitamente ligado à impulsividade (Giglio 2008). Além da investigação sobre os pressupostos físicos e estruturais de um provável sistema biológico da estruturação do psiquismo humano, a avaliação de seu funcionamento por meio de métodos de análise social, ambiental, antropológica, filosófica e psicológica tem fornecido importantes informações para a pesquisa nessa área do conhecimento. O ganho do desenvolvimento de um complexo aparelho psíquico é uma aquisição, antes de tudo, de nosso processo civilizatório (Morris 2006). Foi somente depois da aquisição de capacidades de cooperação e de convivência harmoniosa, a princípio até como mecanismo de proteção da família, que o homem logrou viver em sociedade segundo o modelo atual de relações. Zimerman (1999) propõe que o pensamento é um atributo exclusivo do ser humano e que apresenta em seu desenvolvimento evolutivo uma escala crescente de complexidade e sofisticação, de acordo com uma ordenação cronológica e segundo as leis da maturação neurobiológica específicas da espécie humana. Assim, desde a forma primitiva do psiquismo, abstraída de significado

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e conceitos, em que não há obediência aos princípios da lógica, mas sim aos da magia e da concretude, o pensamento pode evoluir até o nível abstrativosimbólico, o que possibilita sua utilização para fins dedutivo-científicos. Segundo Klein (1996), a moralidade se desenvolve de acordo com o amadurecimento e o aparecimento da consciência da criança. A introjeção oral dos objetos e a associação inevitável de sua agressividade com as figuras parentais severas e opressoras geram uma ansiedade significativa e aniquiladora já nos primeiros meses de vida. Essa ansiedade é então projetada em objetos exteriores e faz emergir a necessidade de destruição deles como uma contingência do processo de adaptação, o que caracterizaria as atitudes sádicas. Em um processo inadequado de amadurecimento do psiquismo, permanece a posição de um sadismo intenso na procura pela gratificação da oralidade, da qual derivam os comportamentos antissociais e criminosos. Uma ideia que se contrapõe ao pressuposto psicanalítico é a teoria da aprendizagem social, derivada do behaviorismo de Skinner (1945) Para esta teoria, todo comportamento, inclusive o moral, é aprendido. Este se daria por imitação e/ou por mecanismos de reforço/punição dos comportamentos. No dizer de Skinner (1998), uma das maneiras de efetivar um comportamento moral aceitável seria estimular e reforçar as estruturas e a diversificação das agências de controle social externo. Na linha da ontognoseologia de Miguel Reale (2000) e da percepção de Ramozzi-Chiarottino (1988), conclui-se que Piaget ponderou que as condições a priori de tempo, espaço e casualidade são necessárias para a construção do pensamento, embora dependam da experiência pessoal. Apesar de todas estas contribuições do pensamento humano e do desen­ volvimento da humanidade em seu complexo processo civilizatório, temos hoje um homem extremamente individualista, egocêntrico e pouco socializado em suas relações. Vivemos numa sociedade dominada pela perspectiva da alienação psíquica sensorial e de percepção, tanto dos elementos psíquicos internos como do mundo externo. O atual paradigma se resume na busca da analgesia infinita, em que o menor sofrimento é percebido como algo extremamente ruim e difícil de ser superado. O homem passou a ser objeto e meio de consumo ao mesmo tempo. A perda e a sensação de frustração parecem inexistir, pois tudo é substituído por algo material, e o valor das coisas passa a ser apenas o estético e o virtual. Se do ponto de vista biológico temos já indícios de uma certeza da individualidade, nossas relações de consumo confirmam esta eventualidade (Giglio 2008). A contemporaneidade trouxe ao homem a condição de uma existência instrumentalizada na produção, que, aliada a outros movimentos de transformação, é hoje o campo de maior expressão da competitividade humana. A concepção de um sistema de relações de convivência e trocas

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econômicas que visam ao lucro como maneira de sobrevivência acabou por apresentar a real condição de fragilidade e vulnerabilidade humanas.

O processo de desconstrução do ser humano

O que faz do ser humano contemporâneo membro de uma espécie dominada por crises existenciais que se superpõem, tornando-o estranho em seu próprio ninho, ator rebelde cada vez mais complexo e agressivo? Para onde quer que dirijamos nosso olhar, encontramos pessoas insatisfeitas e apreensivas com o cotidiano de suas vidas. Paradoxalmente, o século dos extraordinários avanços tecnológicos e da mais pronunciada expressão das liberdades individuais convive com candente manifestação de vulnerabili­ dade humana. A promessa de que a abundância material e a liberdade in­ dividual sem limites, gestadas no século XX, nos levariam à felicidade plena parece sepultada. O sonho redundou em pesadelo ao nos tornarmos peças ínfimas e descartáveis de um voraz mercado, manipulado por grandes conglomerados financeiros que promovem contínuas desregulamentações das estruturas e organizações sociais. Acabamos por erigir uma sociedade de pessoas infelizes e que buscam no incontido consumo amenizar suas angústias e inseguranças. O pensador Ernest Becker (1997) sentenciou: “tudo que o homem faz em seu mundo simbólico é uma tentativa de negar e sobrepujar seu destino grotesco. Ele literalmente se lança em um esquecimento cego por meio de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão afastadas da realidade de sua situação que são formas de loucura: loucura aceita, compartilhada, disfarçada e dignificada, mas mesmo assim loucura”. A palavra crise provém do grego krisis e significa examinar e tomar decisões diante de um dilema moral. Curiosamente, adotamos na modernidade outro significado para o termo, qual seja, o de estar sem saída diante de uma decisão difícil. Há, entretanto, aqueles que preferem realizar outra leitura dessa realidade e entendem que a palavra crise contém como significado oculto o desafio do criar. Nessa perspectiva encontram-se autores de diferentes calibres intelectuais, que oferecem soluções pouco ortodoxas. Pensadores como o polêmico sociólogo italiano Domenico de Masi (2000), que imagina o futuro pertencendo àqueles que souberem libertar-se da ideia tradicional de trabalho como obrigação e forem capazes de conceber uma vida em que o tempo dedicado ao labor profissional será reduzido e dará lugar ao lazer, empregando seu tempo livre para exercitar o “ócio criativo”. Há também autores que promovem o comércio da felicidade através da bem-sucedida literatura de autoajuda. Rowland (1995), por exemplo, prome­

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te em seus livros a fácil conquista da felicidade, o caminho para a vida de completa realização pessoal. Na introdução de uma de suas obras, pontifica: O que você está por ler neste livro o surpreenderá e o libertará de tal modo que possivelmente você nunca sonhou ser possível […]. Vou mostrar a você como se pode ter a maior felicidade e alegria em êxtase e plena existência, bem como deter posses materiais, relações interpessoais e as oportunidades que quiser.

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Tanto o sofisticado De Masi quanto o superficial Rowland orientam-se pela invulnerabilidade do poder absoluto da mente humana para alcançar quaisquer objetivos que se queira na vida. É óbvio que, como a aposta no universo do poder mental torna possível divagar à vontade, os autores viajam por territórios fascinantes, não sem antes advertir que a “fácil” tarefa do encontro do tesouro da felicidade plena é de total responsabilidade do leitor, que ao não encontrá-la assume a condição de incompetente. Frases como “sua própria mente é que permitirá ditar seu destino […] você se tornará verdadeiramente o criador de sua própria vida”, ou obviedades como “você não pode mudar aquilo que você não pode mudar”, embora discordantes entre si, soam como mantras a passíveis leitores que devoram este tipo de pseudoliteratura. O desaparecimento da figura do respeitável homem público, representada por lideranças políticas verdadeiramente comprometidas com o bem comum, a extinção dos sólidos laços sociais de outrora, que afastavam o medo da separação, do isolamento e apresentavam-se como porto seguro para o mais modesto cidadão, lançaram sobretudo os mais jovens e inseguros para o enganoso mercado das drogas, do estridente mundo das músicas eletrônicas que, ao tempo em que aguçam as sensações de estar vivo, silenciam a profunda angústia existencial que os domina. A separação entre o social e a dinâmica da psique individual do modelo freudiano dificulta a compreensão do impacto da condição histórico-cultural em nossas vidas. A percepção do social como objetivo externo e indiferente ao comportamento individual começou a ser questionada na década de 1960 por reflexões de diferentes autores que efetuaram detida análise de situações sociais complexas e das respectivas respostas individuais e/ou grupais de indignação e revolta que influenciaram a realização de mudanças na conduta de poderes institucionais tidos até então como hegemônicos. Se o indivíduo e o átomo representaram os ícones do século XX, o atual deverá ser marcado pelo social e pelo arquétipo da rede. O átomo que gira em torno de seu próprio eixo é a maior expressão da individualidade. O símbolo para o novo milênio deverá ser o da rede desprovida de centro, órbita ou certeza. A rede é o modelo ideal para representar todos os

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circuitos, toda manifestação de inteligência e sentimentos humanos, todas as interdependências de variáveis sociais, econômicas e ambientais. Todas as vias de comunicações, desde o microcosmo familiar até o macrocosmo planetário, das pequenas decisões tribais aos imperativos de democracia participativa, disponíveis para todos os cidadãos da Terra. Enquanto o átomo representa uma unidade isolada e solitária, a rede é composta de canais que se intercomunicam através de uma realidade complexa de múltiplos atores sociais que interagem entre si permanentemente. As ONGs constituem exemplos vivos de organizações que trabalham no modelo de redes que operam transformações sociais em total independência dos poderes institucionais formalmente constituídos (Kelly 1998). É óbvio que a noção de rede não é incompatível nem pretende anular a importância da subjetividade humana, como o fez a escola psicológica da ex-União Soviética quando elevou o social à categoria de essencial e insubstituível, propondo vínculos entre o behavorismo e a reflexologia pavloviana. Essa relação inadequada de dependência acaba por colocar o social como causa determinante e a subjetividade humana como mero efeito. Foi Vygotsky (2005) quem recuperou a visão sistêmica e complexa da psique individual no universo do social. Defendeu com sólida argumentação científica a tese de que o social não é algo externo em relação ao indivíduo, mas sim representa outro momento de produção de sentidos associado às condições objetivas que transcendem os espaços e tempos do individual, ou seja, é essencial na determinação de parâmetros para a compreensão do apelo do ambiental que serão incorporados naturalmente na subjetividade individual. Com ele, o campo da subjetividade atomizada dá lugar a uma lógica não unicamente voltada para a dinâmica intrassubjetiva, mas também reconhece como próprios o espaço e as ações sociais. O pensamento de Vygotsky desvela a dinâmica dialética que aproxima indivíduo e meio, já descrita por Ortega y Gasset ao responder à célebre questão de que não se pode representar qualquer pessoa senão pela realidade inseparável entre indivíduo e suas circunstâncias biográficas, tese resgatada por Edgar Morin (2005) em sua teoria do pensamento complexo. Entretanto, as barreiras supraindividuais que moldam o curso da vida individual são muito poderosas e sobrepõem-se aos frágeis impulsos para estabelecer vínculos humanos que sejam compartilhados na esperança de construir a humanidade dos homens contidos na proposta levinasiana, o que nos leva a compreender o dramático apelo de Morin para descongelarmos a enorme quantidade de amor petrificada pelo materialismo, filho legítimo do racionalismo. Ouçamos o brado de Morin: Eis a péssima notícia: estamos perdidos, irremediavelmente perdidos. Se há um evangelho, isto é, uma boa notícia, deve partir da má; estamos perdidos,

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mas temos um teto, uma casa, uma pátria […]. É a nossa pátria, o lugar da nossa comunidade de destino de vida e de morte terrenos […]. O evangelho dos homens perdidos e da terra-pátria nos diz: devemos ser irmãos, não porque seremos salvos, mas porque estamos perdidos (Morin, Kern 1995).

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As perguntas que se impõem, entretanto, são duas: Estará claro para todos que estamos perdidos? Estaremos conscientes da imperiosa necessidade de construirmos uma sociedade fraterna? Aparentemente a resposta para ambas as questões é negativa, pois ao escolhermos as regras de mercado para representar a superioridade do todo sobre as partes nos desobrigamos de toda responsabilidade para atender quaisquer problemas comunitários, o que Amartya Sen identificou como o mais enganoso mote da reflexão pós-moderna, qual seja, que as pretensas virtudes dos mecanismos reguladores de mercado se mostram tão óbvias e obrigatórias que dispensam quaisquer argumentos para justificá-las. A sociedade fez-se cativa da ditadura do mercado. O autor argumenta que o capitalismo, ao tentar mostrar com incomparável riqueza de detalhes que a economia com base científica deve flutuar ao sabor do mercado, tem como objetivo defender não a democracia social, mas sim a liberdade de ações dos grandes capitais internacionais que a história recente comprovou que apenas determinaram enorme crescimento das desigualdades sociais com a mais perversa exclusão da cidadania na história da humanidade (Sen 1999). O fato mais característico da pós-modernidade é a extrema mobilidade do capital financeiro, que se desvencilhou das amarras das fronteiras nacionais e tornou-se leve, desembaraçado, ao cortar os laços territoriais originais, migrando com grande facilidade de um país para outro. Em conformidade com os interesses dos acionistas, desloca-se de um território para outro segundo as regras internacionais da livre iniciativa, o que traz como consequência a criação de um mercado de trabalho extremamente vulnerável. Hoje, o capital viaja por caminhos virtuais, as bolsas de valores espalhadas pelo mundo constituem os instrumentos modernos de dominação de companhias transnacionais, o itinerário do capital é estabelecido para atender exclusivamente aos interesses de rentabilidade, desconsiderando a força de trabalho humana, o que significa nenhum poder de controle local sobre o capital e a precariedade nas condições de manutenção das condições de emprego e disponibilidade de trabalho em qualquer país do globo. Na era da mais completa desregulamentação, desapareceram as barreiras para que em curtíssimo prazo de tempo toda a produção de uma fábrica de bens de consumo se desloque de um país asiático para um latino-americano ou vice-versa, o que transforma enormes contingentes de trabalhadores em mão de obra descartável. O sonhado modelo de Estado

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de bem-estar social concebido no período que sucedeu à Segunda Guerra Mundial transformou-se em castelo de areia, e os direitos trabalhistas tão arduamente conquistados perderam sua força de barganha nas negociações salariais. O capital globalizado atende apenas a interesses de investidores e acionistas anônimos espalhados pelo planeta e que desconhecem as situações de vulnerabilidade do trabalhador e suas necessidades familiares. Os Estados nacionais foram marginalizados como protagonistas e mediadores na elaboração das políticas de controle e geração de oportunidades de trabalho, figurando atualmente como espectadores passivos desse modelo econômico desregulamentado, que privilegia alguns especuladores do mercado financeiro e coloca na marginalidade enorme parcela de cidadãos. Bauman (2009) argumenta que a passagem da modernidade “pesada ou sólida” para a “leve ou líquida” constitui a estrutura na qual a história do movimento trabalhista moderno foi forjado, embalado pelo empurrão sedutor da sociedade de consumo e pelos efeitos soníferos da sociedade do espetáculo e do entretenimento. A subestimação do valor da dignidade humana, associada a problemas crônicos como fome, miséria, insalubridade e desemprego, tem permitido o desenvolvimento da violência em todos os níveis da sociedade, desde o doméstico até o global. Este mal-estar tem despertado grande produção acadêmica em busca de construção de uma sociedade que retome os ideais de solidariedade e paz. Adela Cortina, por exemplo, recupera o modelo universalista kantiano e a ética discursiva de Habermas e propõe a definição de mínimos de justiça para a sociedade global. Enfatiza a autora que tais mínimos não surgirão da tradição política liberal, mas sim por meio de diálogo includente a ser estabelecido entre diferentes protagonistas da sociedade humana. Alerta que um mundo injusto, não solidário e sem liberdades não reúne as condições mínimas para uma convivência harmônica. A solidariedade como valor moral não é portanto grupal, mas universal. Contrapõe-se ao individualismo fechado, aos nepotismos e aos comunitarismos excludentes. Esta solidariedade universal ultrapassa as fronteiras de grupos e países, estende-se a todos os seres humanos e nutre-se da paz, do acolhimento a habitantes de regiões subdesenvolvidas, e mantém respeito ao meio ambiente, o que torna evidente a insustentabilidade da teoria do individualismo possessivo, marca da economia de mercado (Cortina 2001). Alguns autores latino-americanos, entretanto, sugerem ações institucionais mais contundentes, apontando para novo modelo de ação política com a finalidade de alcançar efetiva inclusão social. Destacam-se no Brasil Garrafa, Porto e Schramm. Garrafa apresentou os marcos teóricos de uma bioética de intervenção na sessão de abertura do VI Congresso Mundial de Bioética da International

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Association of Bioethics, ocorrido em Brasília em 2002 (Garrafa, Porto 2003). Porto, na mesma linha de reflexão, defende a priorização de políticas e tomadas de decisão que privilegiem o maior número de pessoas durante o maior espaço de tempo possível e resultem em melhores condições de vida, sobretudo para os mais vulneráveis (Garrafa, Porto 2006). A bioética de proteção proposta por Schramm procura atender à categoria particular de conflitos morais que ocorrem na saúde pública da América Latina, apresentando-a como uma ferramenta que seja ao mesmo tempo marcada pela inteligibilidade e pela efetividade (Schramm 2006). O que parece indiscutível, entretanto, é que à bioética como ética aplicada não bastam atitudes puramente reflexivas sobre os problemas morais experimentados pela sociedade, mas sim uma busca ativa de propostas concretas de mudanças. Leopoldo e Silva (1998) sintetizam bem esta postura ao afirmar: “a tentativa de simplesmente explicar e compreender as desigualdades […] é profundamente antiética […]. É preciso conhecer a realidade e as situações sobre as quais se vai exercer o juízo ético, mas fazer […] que este juízo traduza uma mera justificação do que existe é propriamente renunciar à ética”. Não há como separar da subjetividade o componente individual e o social; em outros termos, não se concebe qualquer processo social comple­ xo sem a integração desses dois níveis de organização da personalidade humana. Nesta perspectiva de análise dos problemas humanos como perten­ cen­tes a um sistema de rede, o conceito de subjetividade social apreen­de o comportamento de um indivíduo ou grupamento social como parte inseparável de um amplo tecido de subjetivação em diferentes níveis e momentos da organização social. Embora a bioética considere com muito apreço a construção social mediante o método dialógico habermasiano, não deixa de reconhecer os alertas de Foucault sobre as práticas discursivas enganosas e assimétricas presentes nas comunidades reais de comunicação. Na percepção foucaultiana não há diálogo libertador, já que ele é sempre conduzido com o objetivo de impor discricionariamente o poder do mais forte. Parece indiscutível que viver em comunidade real é experimentar, cotidianamente, ações impositivas de umas pessoas sobre outras; assim, segundo o filósofo francês, imaginar uma sociedade humana sem relações assimétricas de poder é perigosa e inconsequente abstração (Foucault 1984). Para melhor compreender o alerta de Foucault, basta deter-se na constatação da violência gerada por diferentes regimes totalitários, como o fascismo e o comunismo nas versões hitlerista e stalinista, marcados pelo imperativo da negação do outro enquanto adepto de posições ideológicas divergentes da oficialmente imposta. Os mencionados regimes políticos perpetraram os mais cruéis e extensos genocídios que a história recente da humanidade registrou.

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Outrossim, a moderna economia de mercado praticada no mundo globalizado reservou para os países periféricos uma nova forma de violência, explicitada nas condições miseráveis de vida, representada por pobreza extrema, insalubridade, insegurança, falta de acesso mínimo à escolaridade e à saúde, o que caracteriza situação de total exclusão dos mais elementares direitos sociais. Esse enorme contingente de marginalizados sequer está contemplado com a primeira geração de direitos de cidadania. A falta de referenciais, a crise de legitimidade do Estado, o crescimento de vazios institucionais ocupados pelo crime organizado somente fazem crescer o desequilíbrio existencial de pessoas que, tomadas pelo medo, perdem o sentido de identidade pessoal por faltar-lhes adequado suporte social. A humanidade vive, no início desse milênio, um momento de perplexidade semelhante ao experimentado por ocasião do término da Primeira Guerra Mundial, assim descrito por Ralph Linton (1970): Este livro foi escrito numa época de confusão e de incertezas. Ainda é cedo para dizer se o mundo ocidental se restabelecerá das feridas que a si mesmo infligiu na Guerra Mundial ou [se será] o início de uma segunda e presumivelmente mais eficiente tentativa de suicídio. Já houve uma Idade de Trevas e não há razão para que ela se repita.

É óbvio que o cenário da guerra hodierna difere muito dos conflitos armados do passado; entretanto, guardadas as proporções, entramos no século XXI com o atentado de 11 de setembro de 2001, que pode prenunciar uma nova idade de trevas. O mundo que se anunciava globalizado surpreende-se com a novidade do terrorismo e do crime organizado e passa a buscar compreender os novos limites para reconhecimento da cidadania. Vemo-nos inseridos em uma sociedade cada vez mais complexa, com expressivos avanços tecnológicos e pequena parcela de pessoas detentoras de grande riqueza material convivendo com enormes contingentes de miseráveis, o que tem sido identificado por alguns economistas como “enriquecimento empobrecedor”. É possível identificar pessoas que vivem isoladas, fechadas em si mesmas, praticando um individualismo exacerbado e que, dominadas pelo medo, se encontram afastadas de quaisquer práticas comunitárias, descrentes de utopias e do poder de intervenção do Estado. Inviabilizada a vida em comunidade, buscam refúgio na fantasia do individualismo intimista. A identidade que deveria ser harmonicamente construída na riqueza da diversidade cultural é substituída pela lógica insensata do “eu isolado”, assim descrito por Allan Bloom (1989): O futuro indeterminado e a falta de um passado vinculante significam que a alma dos jovens se encontra em um estado semelhante ao dos primeiros

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homens: espiritualmente desnudos, desconectados, separados, sem relações herdadas ou incondicionais com nada ou alguém. Podem ser o que quiserem, mas não têm nenhuma razão particular para ser nada em especial.

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Em consequência dessa verdadeira tirania do “eu”, o “outro” passa a ser visto como elemento estranho a ser manipulado, violentado e excluído da comunidade dos iguais. Torna-se cada vez mais corriqueiro em grandes centros urbanos a destruição física do outro. A heterodestruição foi motivo de reflexão de Freud, que ele descreveu como pulsão de destruição ou morte. Quando indagado por Einstein, ao final da década de 1930, sobre o porquê da guerra, que havia dizimado comunidades inteiras na Europa, o pai da psicanálise retomou a tese de que a destruição e a guerra constituíam uma forma de exteriorização do impulso para a morte do outro como substituição do desejo de autoaniquilação e pelo prazer de dispor do poder de impor sofrimento a outrem (Freud 1981). A questão essencial que o estudo do ser humano histórico traz diz respeito à complexidade de sua vida e de seu destino, individuais ou sociais. Ao longo de vinte séculos a humanidade parece não ter se dado conta do valor intrínseco do homem. Quando, em 1783, Kant manifestou sua crença na racionalidade humana como “saída do homem de sua menoridade [que seria] a incapacidade de fazer uso de seu próprio entendimento sem a direção de outro indivíduo”, inaugurou uma nova proposta de humanidade (1993). Passados dois séculos, assistimos ao ideal kantiano da plena autonomia do homem ser reduzido ao que se convencionou chamar de “ética da realização”. Este modelo considera o indivíduo como única unidade de medida, e a prioridade passa a ser apenas a realização pessoal desobrigada de qualquer compromisso social. Pensadores contemporâneos propõem a substituição da cultura do eu isolado pela do eu integrado, uma pessoa orientada por consciência reflexiva e crítica que busca o reconhecimento do outro pela prática do “pluralismo implicado” (Castiñera 1995). Lévinas aponta para o transcender-se para o outro, numa relação imperiosa que denomina alteridade, e o faz não privilegiando o universo utópico kantiano, mas o aqui e agora da vida comunitária, unindo transcendência e cotidianidade, razão e prática. A relação com o outro seria efetivada no “face a face”, e o sentimento de alteridade não mais gerado pela forma ou natureza dos seres, mas revelado pela epifania do rosto do outro. A missão de cada ser humano não seria simplesmente ser, mas ser para. O modelo um-para-outro quebra a hegemonia do ser egoico e propõe a construção de uma sociedade humanizada pela fraternidade (Lévinas 2005). A questão que permanece viva atravessando séculos de história da humanidade é se este homem ideal que existe para o outro concebido por

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Desumano, demasiadamente desumano

Lévinas poderá subsistir numa sociedade crescentemente cognitivista, materialista, competitiva e individualista. Por outro lado, pela primeira vez na história, o século XXI coloca cada ser humano, cada nação e cada cultura diante da necessidade de elaborar soluções razoáveis e prudentes diante de tão complexos problemas morais. Tais decisões somente serão alcançadas pela deliberação realizada por pessoas de diferentes moralidades. Surge, portanto, a urgência de erigir novos marcos para uma ética de responsabilidade solidária, e torna-se óbvio que os modelos éticos fundados no sujeito isolado mostram-se incapazes de realizá-la. Impõe-se assim a tarefa prioritária de dar um sentido humano ao desenvolvimento global, e isso ocorre precisamente no momento em que a idolatria do mercado gerou um vazio ético e acelerou o fim das utopias comunitaristas. Nunca foi tão urgente atender ao desafio de recriar uma ética universal de solidariedade. No momento mesmo em que a globalização econômica derruba todas as fronteiras nacionais, a humanidade convive com insuportáveis índices de desemprego, fome, miserabilidade e a mais intensa e contínua violação dos princípios de dignidade humana (Lévinas 1993). Referências bibliográficas Bauman, Z. A sociedade individualizada. Rio de Janeiro, Zahar, 2009. Becker, E. The Denial of Death. New York, Free Press, 1997. Bloom, A. O declínio da cultura ocidental. São Paulo, Best Seller, 1989. Castiñera, A. Habitos del corazón, comunidad civil y pluralismo implicado. Rev. Sal Terrae 83(1) (1995). Castro, J. Geografia da fome. São Paulo, Civilização Brasileira, 2005. Cortina, A. Ciudadanos del mundo. Madrid, Alianza Editorial, 2001. De Masi, D. O ócio criativo. Rio de Janeiro, Sextante, 2000. Foucault, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1984. Freud, S. Mas allá del principio del placer. Madrid, Biblioteca Nueva, 1981. Garrafa, V., Oselka, G. (org.). Introdução à bioética. Brasília, Conselho Federal de Medicina, 1998. Garrafa, V., Porto, D. Intervention Bioethics: A Proposal for Periferical Countries in a Context of Power and Injustice. Bioethics, 17 (2003). ———. Bioética de intervenção: considerações sobre a economia de mercado. Bioética 13(1) (2006). Giannetti, E. Vícios privados, benefícios públicos?. São Paulo, Companhia das Le­tras, 2007. Giglio, E. M. O comportamento do consumidor. São Paulo, Cengage Learning, 2008. Kant, I. Immanuel Kant: textos selecionados. Petrópolis, Vozes, 1993.

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Kelly, K. News Rules for the New Economy: Radical Strategies for a Connected World. London, Penguin Books, 1998. Klein, M. Obras completas de Melanie Klein. Rio de Janeiro, Imago, 1996; v. I: Amor, culpa e reparação. Leopoldo e Silva, F. Da ética filosófica à ética em saúde. In: Costa, S. I. F., Garrafa, V., Oselka, G. (orgs.). Iniciação à bioética. Brasília, Conselho Fe­ deral de Medicina, 1998, p. 19-36. Levinas, E. Humanismo do outro homem. Petrópolis, Vozes, 1993. ———. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis, Vozes, 2005. Liboni, M., Siqueira, J. E. Competência moral do estudante de medicina. Rev. Assoc. Med. Bras. 55(2) (2009). Linton, R. O homem: uma introdução à antropologia. São Paulo, Martins Fontes, 1970. Morin, E. O método 6: ética. Porto Alegre, Sulina, 2005. Morin, E., Kern, A. B. Terra-pátria. Porto Alegre, Sulina, 1995. Morris, D. O macaco nu. Rio de Janeiro, Record, 2006. Nietszche, F. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo, Golden Books, 2009. Por que os franceses estão se matando. VEJA, São Paulo, 7 outubro 2009; disponível em: ; acesso em: 15 out. 2009. Ramozzi-Chiarottino, Z. Psicologia e epistemologia genética de Jean Piaget. São Paulo, EPU, 1988. Reale, M. Cinco temas do culturalismo. São Paulo, Saraiva, 2000. Roudinesnco, E. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Rio de Janeiro, Zahar, 2008. Rowland, M. D. Absolute Happiness: The Way to a Life of Complete Fulfillment. Carlsbad (CA), Hay House, 1995. Schramm, F. R. Bioética sem universalidade? Justificação de uma bioética latinoamericana e caribenha de proteção In: Garrafa, V., Kottow, M., Saada, A. (org.). Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. São Paulo, Gaia, 2006. Sen, A. A Development as Freedom. New York, Alfred Knopf, 1999. Skinner, B. F. Operational Analysis of Psychosocial Terms. Psychological Review 52(10) (1945). ———. Ciência e comportamento humano. São Paulo, Martins Fontes, 1998. Vygostky, L. S. The Collected Works of L. S. Vygotsky. New York, Plenum Press, 1993. Zimmermann, D. Fundamentos psicanalíticos. Porto Alegre, Artmed, 1999.

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Direitos humanos: a conquista ética do século XX Dora Porto Editora executiva da revista Bioética, Brasília

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noção de direitos humanos como rol de prerrogativas intrínsecas e inalienáveis de todos os seres humanos é absolutamente nova e vem se alastrando pelo mundo há menos de cem anos. Se atualmente a ideia de direitos humanos é quase corriqueira, moldada sob o arcabouço de representações afeitas à sensibilidade contemporânea, deve-se lembrar de que se trata de uma representação coletiva inédita na história. Até quase meados do século XX, não havia nenhum parâmetro de direitos coletivos que englobasse o conjunto da espécie humana. A ideia de direitos foi se expandindo paulatinamente na história, pas­ sando de privilégio de uma pessoa, o chefe, rei ou sacerdote, a conjuntos mais amplos das sociedades. No entanto, até 1948 circunscrevia-se a um grupo religioso, uma classe social ou, no máximo, aos cidadãos de um Estado-nação específico. Ou seja, os direitos eram prerrogativas de um segmento particular, ainda que extenso, como no caso dos nativos de uma nação ou país, decorrendo, portanto, das circunstâncias de nascimento, classe social, afiliação religiosa ou política do indivíduo. Em contrapartida, a ideia de direitos humanos que emergiu no século XX parte do pressuposto de que todas as pessoas são iguais em direitos, o que equivale a dizer que as diferenças individuais e culturais não podem ser consideradas fatores legítimos para dominar, subjugar ou aniquilar aquele que é mais fraco ou, simplesmente, diferente. Fruto dileto daquele século, essa noção expandida de direitos ainda se consolida na percepção e nas representações humanas, constituindo uma fonte de conflitos com os padrões de moralidade hierárquicos e particularistas que a precederam.

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Dignidade e igualdade

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Ainda que, como princípio, a ideia de direitos humanos possa ser remetida à Antiguidade ou ao início da Idade Moderna (especialmente em decorrência dos aportes ideológicos das revoluções francesa e estadunidense), só alcançou sua plena visibilidade e condição de exequibilidade no século passado, quando passou a ser associada à dignidade inerente a toda pessoa humana, tornando-se marco simbólico para pensar as relações de poder e as interrelações sociais, ao menos nas culturas ocidentais. A ideia de direitos humanos assenta-se, pois, no conceito de humanidade, tal como o entendemos, e no reconhecimento da “dignidade inerente a todos os membros da família humana”, considerando que “seus direitos iguais e inalienáveis são o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (ONU 1948). Embora os direitos humanos derivem da noção de dignidade humana, um atributo intangível considerado de difícil definição, pode-se constatar que essa ideia vem sendo perfeitamente reconhecida por pessoas de diferentes culturas ao longo da história. Muitos registros apontam esse reconhecimento, reafirmando quanto a noção de dignidade é inerente à consciência da própria humanidade. O fato de muitos povos classificarem sua própria sociedade como aquela criada pelos deuses exemplifica isso. Não obstante essa gênese reafirmar diferenças e sustentar a hierarquização, inclusive entre os respectivos deuses e sociedades, essas classificações podem ser associadas também à percepção da dignidade inerente ao conjunto da espécie humana (ainda que sintetizadas em um grupo específico) quando é considerada a função dos próprios mitos cosmogônicos, que atribuem a criação da humanidade (ou seja, daquele povo específico) à ação direta dos deuses. Sem aprofundar a discussão relativa às origens humana e divina — que pode ser sintetizada na dupla afirmação: ou em todas as partes os deuses criaram os homens ou, ao contrário, em todas as culturas estes criaram os deuses —, cabe enfatizar a relação entre as esferas sensível e suprassensível, que demonstra quanto a humanidade quer reconhecer em si mesma atributos que tornam os seres humanos hierarquicamente distintos dos demais. Identificar os seres humanos com os deuses ou mesmo considerá-los filhos destes reflete, implicitamente, a ideia de uma distinção, que pode ser associada à dignidade: “De modo geral, dignidade indica o status de uma entidade que, [devido a] suas qualidades intrínsecas ou seus méritos adquiridos, tem direito a, e merece, respeito” (Neri 2003, p. 165). Ainda que circunscrita a conjuntos específicos de povos, a percepção da dignidade inerente à espécie humana como decorrência de sua genealogia mitológica pode ser remetida às respostas que os seres humanos puderam articular diante das questões fundamentais da existência: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?. Nesse sentido, a percepção da dignidade

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pode até mesmo ser atribuída à capacidade de refletir e representar simbolicamente o mundo (e o universo), sendo, portanto, inerente à própria cognição. Também exemplifica o reconhecimento da dignidade intrínseca a análise semiótica da autonominação de alguns grupos e sociedades humanas, como é o caso dos indígenas brasileiros que conhecemos como ianomâmis, palavra cujo significado é “ser humano” na língua nativa. Assim, seja por processo arqueológico ou antropológico, pode-se perceber que a noção de dignidade manifesta-se como componente comum no reconhecimento de si mesmo como pessoa, bem como nas representações do grupo em várias culturas ao longo dos séculos. Ser de um determinado povo, grupo ou tribo, identificado com os deuses ou designado como a Humanidade espelha a ideia de ser distinto dos demais e, ao mesmo tempo, de ser o legítimo representante do gênero humano. Entretanto, se a atribuição de origem dos seres humanos à esfera suprassensível, em inúmeras culturas e civilizações, pode ser associada à percepção da dignidade inerente, tal distinção é marcada pela assimetria entre a esfera humana e a divindade, refletindo-se também no ordenamento social hierárquico das sociedades humanas, que espelham o cosmo. Desde muito acostumada a relacionar-se hierarquicamente com o poder, de deus ou do rei, a humanidade desenvolveu a uma atitude subserviente em relação à autoridade. Assim, se a genealogia desenhada pela mitologia das sociedades humanas permite vislumbrar a noção de dignidade como elemento intrínseco, não implica, da mesma forma, a noção de igualdade, que hodiernamente acompanha a ideia de direitos humanos. Ainda no século XVI, Ettiene de La Boétie refletia a respeito da desi­ gualdade nas relações sociais, admirando-se não do fato de alguém querer ser rei, mas da constatação de que muitos querem permanecer súditos: “Portanto, são o próprios povos que se deixam, ou melhor, se fazem dominar, pois cessando de servir estariam quites; é o povo que se sujeita, que se degola, que, tendo a escolha entre ser servo ou ser livre, abandona sua franquia e aceita o jugo; que consente seu mal — melhor dizendo, persegue-o” (La Boétie 2001, p. 14). Tal reflexão enfatiza a marca da relação profundamente assimétrica no exercício do poder (Foucault 1982; 2002) que conformava a representação da autoridade nas sociedades de então. Essa constatação, que só começa a ser respondida de fato pelo existencialismo (Sartre 2002), denota um padrão social de submissão total à autoridade, à qual se delega o poder da escolha sobre os destinos individuais e coletivos. Diante de tais concepções, que mostram a imemorial assimetria de poder gravada na história da humanidade e também reificam a desigualdade que dela decorre, choca-se frontalmente a noção de direitos humanos concebida no século XX, que se estende de maneira igualitária para todos os seres humanos.

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Berço da consciência contemporânea: a dialética entre o terror e o direito à vida

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Apesar de sua novidade histórica, a noção de direitos humanos conquistou nesses pouco mais de sessenta anos uma difusão e uma unanimidade incontestáveis. Talvez esse sucesso deva-se às circunstâncias que ensejaram seu surgimento, já que tal noção nasceu em resposta a um conflito longo e de proporções quase globais, a Segunda Guerra Mundial, a qual inflamou o mundo pelo uso de tecnologia bélica nunca antes experimentada. Tais aportes, que alteraram definitivamente a dimensão e as características das guerras, decorreram em grande medida do uso de aviões, que expandiram o espaço geográfico da trincheira. Permitindo velocidade no deslocamento da força ofensiva, as máquinas voadoras intensificaram ainda mais o efeito da tecnologia bélica desenvolvida no período, projetando diretamente sobre o inimigo a força do projétil, que também foi multiplicada pelo uso maciço de bombas. O consórcio entre capacidade de deslocamento e poder de destruição permitiu que cidades inteiras fossem bombardeadas e destruídas numa escalada crescente de terror entre a população civil. O processo de uso indiscriminado, predatório e genocida de mecanismos para controle e extinção de populações (bem como das próprias história e memória humanas, sintetizadas nas cidades, suas estruturas arquitetônicas e obras de arte) foi possível graças ao uso inconsequente da ciência e da tecnologia, que foram, durante a guerra, utilizadas indiscriminadamente por vencedores e vencidos, ensejando a corrida armamentista, que não se extinguiu ao término do conflito. O uso bélico da tecnologia, no qual a defesa da vida das pessoas e a existência mesma das nações eram justificadas pelo uso de ferramentas para aniquilação, culminou nos bombardeios sobre Hiroshima e Nagasaki. Cruzando a fronteira do horror entre os mecanismos e processos desenvolvidos para a extinção em massa e se aproximando velozmente do abismo da extinção da espécie, o lançamento da bomba atômica e o consequente holocausto daquelas duas cidades japonesas foram o ponto culminante da escalada do poder de destruição. A execrável objetivação do outro, implicada nessa agressão covarde e desmedida, traz à consciência a inelutável verdade de que o respeito à alteridade foi, por esse ato, subsumido no limbo ético da obsessão por possuir o controle do mundo e no desejo de reafirmação do poder. Por força dessa dimensão ampliada do terror, bem como da magnitude das armas desenvolvidas durante os quase sete anos de luta, pessoas em todo o mundo puderam perceber e sentir o sofrimento, a miséria física e moral do embate. O drama da guerra e a tragédia que semeava não se restringiam aos combatentes, de qualquer dos lados em confronto, nem se resumiam aos campos de batalha, mas atingiam a população civil, idosos,

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mulheres e crianças, que também foram envolvidos na disputa pelo poder de ditar a ordem mundial. A consciência forjada pela dor, pela perda, pela superação do desespero e pela luta pela sobrevivência, que emergiu na humanidade como consequência desse confronto com horror da guerra, suplantou fronteiras étnicas e nacionais e foi exatamente o que possibilitou o surgimento da noção de direitos humanos: uma resposta resoluta à barbárie generalizada, destinada a eliminar a atrocidade (representada então pela guerra) e garantir, dali por diante, o direito à vida para todas as pessoas no planeta. Humanos em tempos de paz

Essa inédita noção de igualdade de direitos entre os seres humanos que emergiu na consciência dos povos a partir da Segunda Guerra Mundial e consolidou-se com a Declaração Universal de Direitos Humanos passou lentamente a construir a sensibilidade e as moralidades desde então. Num primeiro momento, a resposta forjada pela Declaração pareceu suficiente para assegurar a existência de mecanismos que permitissem se contrapor ao conflito bélico. Entretanto, ao longo das décadas seguintes foi se percebendo que garantir a vida durante um conflito armado podia significar em tempos de paz a simples sobrevivência do indivíduo, não sendo suficiente para alicerçar para todas as pessoas a igualdade de direitos no cotidiano. As circunstâncias históricas que haviam forjado desigualdades entre homens e mulheres em todo o planeta, entre grupos étnicos da mesma ou de distintas nações e mesmo entre segmentos econômicos de uma mesma população permaneciam como pano de fundo na vida do dia a dia, impedindo que o projeto de igualdade, que começara a se esboçar a partir da Declaração, se tornasse realidade concreta para toda a humanidade. Se a desigualdade de direitos entre as pessoas podia ser apontada como elemento constante nos modelos relacionais dos grupos humanos ao longo da história, a percepção dessa desigualdade começou em meados do século passado a tomar a feição de problema e a delinear conflitos. Isso ocorreu, em grande medida, como reflexo da introjeção desse novo padrão para a autorrepresentação humana: o de um ser dotado de dignidade intrínseca, independentemente de sua origem social, étnica ou religiosa, que eram os construtos que ordenavam até então a noção de direitos. Passou a vigorar, portanto, um modelo para as relações entre pessoas baseado na ideia de simetria, inaugurando uma nova dimensão das representações simbólicas que descortinaria a horizontalidade como parâmetro para as inter-relações sociais. Assim, no contexto simbólico dos direitos humanos a igualdade passou a merecer a condição de patamar não só legítimo, mas principalmente

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desejável para as inter-relações humanas. A igualdade de direitos como reflexo de uma divisão mais equitativa de poder possibilitaria o exercício da escolha por todos, favoreceria a interação orgânica da coletividade e estimularia o florescimento da comunidade. Como consequência, a igualdade permitiria a criação e a consolidação de laços sociais e noções de pertencimento entre as pessoas, forjados em expectativas equânimes de dor e prazer, ao menos na dimensão de potência, entre todos os humanos. Esse novo pressuposto abriu uma vertente inédita de análise da realidade, pois trouxe à luz uma perspectiva diferente e mais equânime para vislumbrar o real. Desse ponto pôde emergir a reflexão cotidiana sobre a desigualdade e a consciência de que tal estado não correspondia à dignidade inerente à qual faz jus todo ser humano, o que constitui, por sua vez, o cerne da ideia de igualdade. Se devia ser garantida a vida, considerada unicamente como existência (ou vida nua = zoé) (Schramm 2009), como a prerrogativa essencial da condição humana, também não deveria ser assegurado a todas as pessoas aquilo que define a característica humana da vida, ou seja, a existência do ser humano com dignidade na dimensão cultural (simbólica e relacional)? Porque, se para alguns seres humanos em condições de paz os novos direitos nada acrescentavam àquilo que lhes parecia destinado por “direito natural”, a vida, a liberdade e a busca da felicidade, outros percebiam, comparativamente, que os papéis sociais que estavam destinados a desempenhar implicavam maior carga de dor e sofrimento. A estes, o mesmo “direito natural” parecia indicar apenas permanecerem envoltos na submissão. Ao ser obrigados a perpetuar esse papel, por força das contingências históricas, políticas, econômicas e sociais, eram menos iguais que aqueles, a quem parecia destinada a fatia mais saborosa e generosa do bolo da história. A ideia de igualdade e a percepção da desigualdade instilaram uma dialética existencial que desembocou na constatação de que para alcançar a dignidade para todos os seres humanos é fundamental assegurar aos viventes, além do direito à vida, as condições, os atributos e os elementos que os configuram como pessoas no âmbito social (ou seja vida de relação = bios). Isso implica, minimamente, garantir à pessoa a possibilidade de fazer escolhas no que diz respeito à sua própria existência. Isso implica, ademais, assegurar-lhe condições objetivas para o exercício dessas escolhas, nas dimensões individual e coletiva (Arendt 2000). A síntese da contradição entre a ideia da igualdade e a existência da desigualdade aponta para o fato de que para que a vida se constitua como processo (o que de fato é para o Eu que a experimenta) e não apenas co­ mo fe­nômeno (que é a forma como esse Eu percebe e classifica a existência) é imprescindível que o direito das pessoas não se restrinja a não ser morto por outrem, pressuposto que acabou sendo identificado como di­

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reito de primeira geração, mas se estenda ao viver, às condições e à situação de vida, que se consolidaram como direitos de segunda geração. Partindo dos direitos civis e políticos, que derivavam diretamente daqueles de primeira geração, os direitos de segunda geração englobaram pouco a pouco garantias de acesso a outros aspectos da vida social, estendendo-se aos direitos econômicos, sociais e culturais (ONU 1966). A crescente consciência sobre o significado da igualdade nas relações sociais implicou a busca de soluções diversas para superar a desigualdade endêmica. Entre elas pode-se identificar três modelos de resposta à invectiva em relação à igualdade. Em alguns Estados-nação emergiu um arcabouço legal, jurídico e administrativo que implementou uma série de medidas voltadas para assegurar o bem-estar da coletividade. Foi o que ocorreu nos países que adotaram o chamado estado de bem-estar social (welfare state), iniciativas voltadas para assegurar a igualdade de direitos no que concerne ao acesso às garantias sociais que dizem respeito à qualidade de vida. A noção de igualdade impregnou também alguns dos novos Estadosnação que surgiram da quebra da hegemonia colonial no pós-guerra. Foi o caso da Índia, cuja Constituição aboliu a perversidade do milenar sistema de castas, inaugurando um modelo de políticas públicas voltado para a inclusão social. Baseada em cotas, destinadas aos párias do sistema — os chamados intocáveis —, a Constituição indiana principia com preâmbulo que proclama que o povo indiano solenemente resolveu constituir o país em uma República Democrática Soberana Socialista Secular, de modo a se assegurar a todos os cidadãos a justiça, a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Essa declaração solene é de 1949, ano de promulgação da Constituição. Referiu-se à justiça, em suas dimensões social, econômica e política. Lembrou-se a liberdade, em suas percepções de pensamento, expressão, crença e religião. Concebeu-se a igualdade em termos de posição social e de oportunidades. A fraternidade foi premunida enquanto mecanismo para se assegurar a dignidade dos indivíduos junto à unidade e à integridade da nação, nas expressões consagradas no texto, para as observações vindouras, lido em sua versão inglesa (Godoy 2008).

O que merece ser lembrado é que a Constituição indiana foi escrita por um intocável, para um Estado cuja estrutura desenhava-se sobre princípios religiosos, dividido entre maiorias hindu e mulçumana, e fracionado ainda em minorias siques e budistas (Clément 2000). Profundamente marcado por dissidências internas entre os dois principais grupos religiosos, que conjuntamente se opuseram durante décadas ao governo colonial inglês, o processo de independência da Índia configurou-se na primeira transição do Estado religioso para o laico feito sob o emblema da igualdade de direitos.

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Em outros lugares, a ideia de igualdade serviu como pano de fundo à consolidação de regimes totalitários, de direita ou esquerda, que fomentavam e fortaleciam seu poder desigual sob a bandeira de uma ideologia cuja finalidade (última, em muitos casos) parecia ser a igualdade. Foi o que ocorreu em Cuba, na União Soviética e na China, por exemplo, onde os regimes comunistas revelaram no decorrer das décadas posteriores seu caráter totalitário e opressor. Sob a rubrica do nacionalismo, da moralidade burguesa e do positivismo (nesse momento já incorporando sem questionamento as regras do capitalismo), também foram consolidadas ou fomentadas ditaduras em quase todos os países periféricos, que dessa forma permaneceram subjugados e dependentes dos interesses dos países centrais. Estes também trocaram de posição no ranking de importância das nações, passando a ser capitaneados pelos Estados Unidos, o grande “vencedor” da guerra, que a partir do conflito passou a liderar a economia mundial. Além do fortalecimento econômico interno, a primazia foi conquistada pelos Estados Unidos como decorrência do poder representado por aqueles mesmos “avanços” bélicos que pontuaram o ápice da barbárie da guerra. Possuir e controlar o uso da bomba atômica foi o que conferiu o poder a partir desse período, configurando-se também no mote para a corrida armamentista que se seguiu entre os principais concorrentes ao podium do poder: o dicotômico jogo de forças instaurado no pós-guerra entre a União Soviética e os Estados Unidos, denominado guerra fria. Na condição de ditaduras forjadas e dependentes desse eixo central se encontravam, por exemplo, Portugal e Espanha, bem como Brasil, Argentina, Chile e Paraguai, entre outros na América Latina. Outros estados, como os Estados Unidos, a Inglaterra e a França, optaram pelo manutenção do status quo, seja porque as condições do pós-guerra lhes conferiam primazia, no primeiro caso, seja para tentar manter-se o mais possível na posição de poder, nos dois segundos exemplos, em uma circunstância em que a correlação de forças havia se alterado. Por diferentes razões esses países olvidaram as contradições entre a nova ideologia da igualdade e as velhas desigualdades, que construíam os papéis dos sujeitos sociais e delimitavam seu lugar de fala na arena das inter-relações. E por não buscarem respostas objetivas para responder a tal paradoxo foi neles que de maneira mais consistente e disseminada a igualdade de direitos consubstanciou as sensibilidades e construiu novas lentes para a interpretação do real. Assim, como em todo o mundo nesse período, também nesses lugares a desigualdade era a regra que pautava a existência cotidiana de parte da população, notadamente mulheres, negros e jovens. Esses segmentos puderam experimentar condições de vida diferentes durante o conflito, quer como consequência da luta direta nas trincheiras, como no caso dos jovens e negros, quer em decorrência de assumirem postos de trabalho e funções

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sociais anteriormente exclusivas ao sexo masculino, como ocorreu com as mulheres. A possibilidade de experimentar o cotidiano de uma nova perspectiva foi o que propiciou refletir sobre as condições de vida que até então haviam experimentado. Essa visão de si mesmo em outro papel ou patamar social foi o que estimulou o surgimento de movimentos coletivos entre esses segmentos. Tais movimentos explodiram a contradição entre teoria e prática, entre o novo ideário inerente aos direitos humanos e a constatação da desigualdade real, manifesta nas restrições ao acesso à qualidade de vida sob as quais viviam indivíduos, grupos, segmentos e populações. Eles mostraram ao mundo que era necessário alterar, ao menos um pouco, as estruturas hierárquicas que determinavam os lugares de fala na sociedade. Tal foi o caso dos Estados Unidos, que naquele período viram nascer no seio de sua sociedade o movimento negro, bem como se intensificar os voltados para os direitos das mulheres. Imbricados no núcleo da história estadunidense, esses movimentos se espalharam por todo o planeta, em maior ou menor grau, dando lugar a uma cada vez mais acurada particularização de direitos e especificação dos grupos aos quais se destinavam. De forma mais abrangente ainda, os movimentos de jovens espalharam-se pelo mundo (já que havia jovens em todas as partes do globo), assumindo diferentes facetas. Manifestaram-se como revolta estudantil em maio de 1968 na França (Prost 1992), como movimento artístico a partir da cultura pop na Inglaterra, exercendo forte influência no comportamento social durante toda aquela década, e ainda como movimentos de resistência e contracultura desde os anos 1950, exemplificados pelos beatniks e hippies, especialmente nos Estados Unidos. Cada um a seu modo, os movimentos encabeçados pela juventude denunciavam a desigualdade do status quo e propugnavam por novas correlações de forças, produzindo forte impacto social. Reafirmando os direitos culturais de povos, segmentos e grupos humanos e a particularização de direitos específicos, os movimentos sociais das décadas de 1950 e 1960 engendraram a visibilização da pluralidade, que marca a noção de si mesmas das sociedades contemporâneas. Essa pluralidade se expressa principalmente nos direitos culturais, que são justamente aqueles que apontam como os direitos econômicos e sociais devem ser providos para, ao mesmo tempo, respeitar as diferenças e promover a igualdade. Direitos culturais

Se cada vez mais os direitos culturais vêm ganhando importância nas últimas décadas, integrando a sensibilidade e fundamentando as moralidades contemporâneas, é indispensável apontar que desde 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos recomendava o cumprimento desse tipo

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de direitos, considerando-os essenciais ao pleno desenvolvimento dos seres humanos. O artigo XVIII da Declaração indica isso, acentuando que a liberdade de opinião e a de religião deveriam ser parte integrante do rol dos direitos humanos: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular” (ONU 1948). O artigo XIX também afirma que “toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras” (ONU 1948). Já o artigo seguinte propugna pelos direitos à liberdade de reunião e associação pacíficas, e a não ser obrigado a fazer parte de uma associação. O artigo XXII volta-se a assegurar que toda pessoa possa desfrutar dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade. Além destes, o artigo XXVII propõe “o direito de toda pessoa de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios, devendo ser-lhe assegurado ainda o direito à proteção de seus interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autora” (ONU 1948). Pode-se pressupor que o fato de estarem nitidamente definidos na De­­claração foi de fundamental importância para que viessem a adquirir a proe­minência que alcançaram nas últimas décadas do século XX. Por es­tarem claramente enunciados e serem consensualmente aceitos como di­reitos de todas as pessoas, as ideias por eles expressas puderam mais fa­cilmente consubstanciar-se nas reivindicações dos movimentos sociais, prin­cipalmente dos de mulheres e minorias étnicas. Os direitos de segunda geração foram reforçados, em 1966, pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc). O Pidesc reafirma, desde seu preâmbulo, que “os princípios enunciados na Carta das Nações Unidas, a liberdade, a justiça e a paz no mundo têm por base o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis”, reconhecendo, por conseguinte, que “não pode realizar-se o ideal do ser humano livre, liberado do temor e da miséria, a menos que se criem condições que permitam a cada pessoa gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, tanto como de seus direitos civis e políticos” (ONU 1966). Voltado às condições objetivas imprescindíveis para assegurar a dignidade e a qualidade de vida para todas as pessoas em todo mundo, o Pidesc centra seu foco em recomendações destinadas a garantir o acesso ao traba-

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lho e às condições para seu exercício pleno, tanto no que concerne ao fator econômico, à dinâmica laboral e às relações trabalhistas como no que diz respeito à higiene e à salubridade dos ambientes e condições de trabalho. Relacionado a estes, estão elencados também os direitos à livre associação profissional e os de seguridade social. O Pacto enuncia e particulariza também os direitos à saúde e à educação, apontando a importância do acesso universal a tais direitos e definindo-os como fundamentais à dignidade humana. No que concerne às condições subjetivas relacionadas ao desfrute por todas as pessoas de seus direitos humanos, esse instrumento, em seu artigo 15, recomenda que “os Estados-parte reconheçam o direito a participar da vida cultural” (ONU 1966). A falta de ênfase desse Pacto nos direitos propriamente culturais pode ser entendida quando se considera que se destinava a objetivos mais práticos e tangíveis: a vigência e a observância efetivas, por parte dos Estados-nação, do rol dos direitos humanos prescritos em 1948. Cabe salientar o que foi afirmado anteriormente: os direitos culturais são aqueles que apontam como os direitos econômicos e sociais devem ser providos aos diferentes povos e populações para que, ao mesmo tempo, se possa respeitar diferenças e promover a igualdade. Nesse sentido, não se pode desconsiderar que para a efetivação dos direitos culturais é imprescindível assegurar os direitos econômicos e sociais, que lhes servem de esteio. É a partir das garantias objetivas e reais relacionadas aos aspectos econômico e social dos direitos humanos que a especificidade cultural de um povo, segmento ou grupo pode se manifestar na realidade social, conformando-se em comportamento e visão de mundo e consubstanciando-se formalmente em direitos culturais. Considero importante enfatizar aqui a reflexão a respeito dos direitos culturais não apenas porque, como visto, vai ao encontro da pluralidade que emergiu dos movimentos sociais nos últimos sessenta anos, a partir do despertar da consciência para a ideia de direitos humanos. Além de responder a esse aspecto inolvidável da dinâmica social contemporânea, a discussão sobre os ângulos mais difusos dos direitos de segunda geração, que dizem respeito às particularidades culturais, permite trazer à baila a reflexão fomentada por Alves e Selli, que parece essencial para avançar no sentido da compreensão dos elementos menos tangíveis dos direitos culturais. Trata-se do artigo “Cuidado espiritual ao paciente terminal: uma abordagem a partir da bioética” (Alves, Selli 2007). Nesse artigo, do qual reproduzimos a seguir alguns trechos, a professora doutora Lucilda Selli e sua orientanda Joseane de Souza Alves colocam a religiosidade no rol dos direitos humanos, definindo-a, portanto, como um direito cultural: Considerando as recomendações dos tratados de direitos humanos como diretrizes para os padrões éticos que devem permear as relações entre as diversas

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sociedades e as inter-relações entre indivíduos que nelas vivem, a dimensão espiritual do ser humano, que é parte de seu arcabouço cultural, também precisa ser reconhecida, respeitada e respondida. Na área da saúde as distintas manifestações de crença na noção de transcendência devem ter espaço, da mesma forma que o reconhecimento do indivíduo como ser integral deve caracterizar as relações interpessoais e intergrupais no terceiro milênio, quando (se espera) cidadania e justiça passem a ser a tônica do novo paradigma para as relações sociais. Esta concepção hodierna, que fundamenta a noção de humanidade, prescreve o respeito à dignidade do ser humano, à vida física, à integridade corpórea e à saúde, já não em nome de um vitalismo biológico, mas em relação à essência da pessoa, que se manifesta na totalidade de seu ser. Se o valor essencial é a dignidade da pessoa humana, para todos que creem que a pessoa é constituída por uma corporeidade animada por uma espiritualidade, o reconhecimento da sua humanidade passa pela aceitação dessa espiritualidade. Nesse sentido, faz-se necessário salientar o papel da bioética, que aplica a reflexão ética nas ações concretas que envolvem o comportamento cotidiano e que propugna a aceitação tolerante ao outro e às diferenças, expressas e classificadas como pluralidade (ibid., p. 70-71).

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Optei por reproduzir esse longo trecho do citado artigo por considerar que o mérito dessa reflexão da professora Lucilda ainda não foi devidamente percebido na comunidade dos bioeticistas brasileiros. Além de inscrever o direito à liberdade religiosa no rol dos direitos culturais, feito por si só significativo, considerando que tem o poder de dirimir a já secular controvérsia entre parâmetros religiosos e laicos (ou ao menos apontar outras saídas para se chegar a isso), esse trabalho, em paralelo, também redimensiona a própria noção de religiosidade, retirando-a da posição de marco unívoco para a construção das moralidades sociais, condição na qual só poderia permanecer em um Estado religioso. Ao colocar a religiosidade entre os direitos humanos, na situação de um direito cultural a ser assegurado entre todos os demais, a reflexão induzida pelo artigo mostra que no Estado secular esta é a posição mais adequada para alcançar o equilíbrio no dilema ético que envolve as moralidades da vida civil. Indo além, as autoras trazem a discussão para o campo da bioética, reafirmando suas posições e indicando, inclusive, o papel de protagonista da disciplina na condução da reflexão sobre o assunto: A bioética, cumprindo seu papel de ponte para o futuro, pode promover a interface entre ciência e religião, que esconde a secular polêmica entre as “verdades” de ateus e religiosos. Exortando à reflexão e ao diálogo também aqueles que professam diferentes seitas e religiões, a disciplina pode contribuir para estabelecer padrões de convivência éticos, pacíficos e harmônicos […]. Assim, a análise dessa questão mostra a importância de encampar o cuidado espiritual

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como maneira de responder às necessidades do paciente que professa uma crença ou vivencia a dimensão da espiritualidade. Aponta para o fato de que só é possível uma atenção integral ao paciente terminal que prescinde desse tipo de atenção, assim como o respeito efetivo à sua dignidade humana, quando se considera a importância dessa dimensão […]. Ao apontar o benefício proporcionado por este tipo de cuidado e o conflito que pode decorrer de sua supressão, a bioética estará contribuindo não apenas para a incorporação da dimensão espiritual na concepção de ser humano, mas também para a ressignificação dessa dimensão como necessidade cultural e, assim, como elemento inerente à própria dignidade humana (ibid., p. 71-72).

Considerações finais

Embora não se possa ainda dizer que se trata de fato consumado, no que concerne ao exercício mesmo dos direitos humanos para todos os seres humanos, não se pode negar que seu surgimento mudou a face do mundo. Tal noção, que possibilitou lutas por igualdade em diversas direções, entre as nações, os povos, os sexos, bem como entre pessoas de diferentes cores e idades e, recentemente, também entre aquelas com distinta orientação sexual, trouxe em seu bojo novo significado para conceitos fundamentais como justiça e liberdade. No conflito intestino entre novos e velhos valores e moralidades que se observa hoje no âmago das sociedades ocidentais (e entre elas), os direitos humanos despontam como a crença coletiva capaz de arregimentar corações e mentes em torno de um futuro comum para a humanidade. Nesse sentido, quando se considera o futuro da humanidade, é fundamental nomear ainda os direitos difusos, ou de terceira geração, que dizem respeito, essencialmente, à preservação do ambiente para as gerações vindouras, mesmo não sendo este o foco central deste capítulo. A importância dos direitos de terceira geração decorre de sua condição de anterioridade ontológica em relação aos direitos que temporalmente precederam sua formulação, pois é a partir deles que o direito à vida, à qualidade de vida e à dignidade humana podem transmutar-se em efetiva prática social, para todos os seres humanos. No que diz respeito, especificamente, à professora Lucilda Selli, cabe nessas considerações finais sublinhar que tudo que me foi dado conhecer sobre seu percurso de vida aponta para a coerência ética entre as ideias que desenvolveu nos inúmeros trabalhos que publicou e suas opções de vida na prática cotidiana. Ainda que valorizar a importância de tal coerência não seja fato constante entre os bioeticistas brasileiros, parece-me que reconhecê-la e experimentá-la plenamente continua a ser essencial para todos os que se propõem trabalhar com ética aplicada.

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Referências bibliográficas

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Biopoder, biotecnologias e justiça José Roque Junges Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Unisinos, São Leopoldo

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s gregos tinham duas palavras para designar a vida: zoé, que se refere à vida biológica comum entre humanos e animais, e bios, que expressa a vida especificamente humana em sua dimensão moral e política. Até os tempos modernos a zoé dos humanos, isto é, sua vida física e sua saúde, era assunto privado do âmbito do pater familiae, não sendo preocupação da pólis. O âmbito público da política, ao contrário, se interessava exclusivamente pelo bios e não pela zoé de seus cidadãos. O movimento cultural da modernidade reduziu a vida moral e política da cidadania a questões, por um lado, técnicas desenvolvidas por expertos e não mais por cidadãos e, por outro, privadas, porque as restringiram a questões da consciência dos indivíduos. Assim o bios moral e político das pessoas, que para os gregos era uma realidade pública, passou por um processo de privatização, porque se tornou conteúdo da consciência subjetiva. Em contraste, a vida física e biológica, que antes era preocupação privada da família, passou a fazer parte do interesse público do Estado. Assim, a zoé, a vida que os humanos têm em comum com os animais, foi integrada na soberania e no poder do Estado, que começou a desenvolver estratégias políticas para a sua gestão. Esse fenômeno foi caracterizado por Michel de Foucault como surgimento do biopoder e da biopolítica. Esse conceito foi ampliado e aprofundado por autores como Giorgio Agamben, Michael Hardt e Toni Negri. Hoje o biopoder está sendo fortalecido pelas crescentes potencialidades econômicas das biotecnologias impulsionadas pelo mercado. A gestão técnica da vida cria poderes de agenciamento mercadológico que potencializam estratégias biopolíticas de grande poder econômico e simbólico na

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sociedade. O poder das atuais biotecnologias de gerar habilidades no domínio da vida é o desafio fundamental da bioética em sua tarefa de defender e proteger a vida em sentido amplo. Biopoder

O termo “biopolítica” apareceu pela primeira vez na obra do filósofo francês Michel Foucault numa conferência proferida em 1974 no Rio de Janeiro sob o título “O nascimento da medicina social”, em que ele afirma: com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrário; que o capitalismo desenvolvendo-se em fins do século XVIII e início do século XIX socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica (2001a, p. 80). 138

Portanto, a medicina antiga era um assunto de cunho particular, enquanto nos tempos modernos ela assumiu uma dimensão fortemente social, por força do Estado e motivada pelo desenvolvimento do capitalismo. Como aconteceu essa socialização da medicina? Foucault analisa três configurações da medicina social: a medicina de Estado desenvolvida na Alemanha no começo do século XVIII como fruto da unificação prussiana; a medicina surgida do ideário da revolução francesa no final do século XVIII, que não tinha como suporte a estrutura do Estado como na Alemanha, mas o fenômeno da urbanização; a medicina da saúde do trabalhador surgida na Inglaterra como fruto da industrialização e da necessidade da reprodução e da conservação da força de trabalho. A medicina de Estado na Alemanha estava fundada no princípio de que uma Nação forte depende de um povo forte e saudável. Por isso, o Estado normatizou e submeteu os médicos a uma administração central, instituindo a polícia médica como encarregada de controlar a saúde do povo. Dessa forma, os corpos dos indivíduos foram estatizados a serviço de uma nação forte. Na França, o que moveu a medicina social foi a preo­ cu­pação burguesa com a higiene urbana, que motivou o fechamento e a reestruturação de hospitais e cemitérios. Na Inglaterra, o foco da medicina social foram os efeitos da industrialização sobre os pobres que acorriam aos grandes centros em busca de trabalho, os quais deveriam ser socorridos para evitar a convulsão social.

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Em outro texto, “A política da saúde no século XVIII”, Foucault (2001b) mostra as características da nosopolítica instituída naquele século como uma tecnologia sanitária da população por meio do controle dos corpos e do incentivo de práticas de higiene e saúde. Essa política mostra-se em primeiro lugar como uma medicalização da família mediante o privilegiamento do cuidado das crianças por parte dos pais. O bem-estar das crianças e a criação de ambientes favoráveis para a saúde e a educação dos filhos tornam-se objetivos morais obrigatórios da família. Em segundo lugar existe uma medicalização dos ambientes pela preocupação com a higiene dos espaços urbanos e o correspondente funcionamento da medicina como instância de controle social. Por fim acontece uma medicalização da própria vida pela inserção dos indivíduos nas regras fundamentais da higiene quanto à alimentação, à habitação, ao vestuário e quanto ao próprio corpo. Assim, o corpo de médicos está espalhado pela sociedade como peritos para oferecer cuidados e conselhos para melhorar o corpo social, mantendo-o em permanente estado de saúde. É a função higienista do médico (ibid.). Contudo, foi em História da sexualidade que Foucault (1979) explicitou mais especificamente os conceitos de biopoder e biopolítica. Se antes o poder era um poder de morte, pois tinha a autoridade para causar a morte ou deixar viver através do direito de enviar para a guerra na defesa do território ou de aplicar a pena capital, nos tempos modernos o poder assumiu a tarefa de gerir a vida. A morte, que antes era objeto do poder, torna-se agora o ponto mais secreto e o mais privado da existência humana, e o poder passa a desenvolver seus pontos de inflexão na gestão da vida. Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se, segundo Foucault, em duas formas principais. A primeira centrou-se no corpo individual como máquina, ao qual são aplicados procedimentos de poder através de disciplinamento e de adestramento e por sua integração nas estruturas de controle, para haurir do corpo o máximo de força e de energia a serviço do sistema. Trata-se do que Foucault chamou de anatomopolítica do corpo humano. A segunda forma surgiu mais tarde, referida ao corpo-espécie pelos controles reguladores de nascimento, mortalidade, longevidade e saúde da população, e assumida como um todo pelo biopoder do Estado. Foi o que Foucault denominou biopolítica da população. As disciplinas do corpo e as regulações da população são as duas estratégias de biopolítica desenvolvidas pelo poder sobre a vida. A função do poder não é mais matar, mas investir sobre a vida. A velha potência da morte do poder soberano é substituída pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. Passou-se da disciplina ascética dos corpos dentro de instituições de ordenamento como escola, prisão, manicômio, para uma regulação sanitarista que atinge a sociedade inteira pelo controle da população (Foucault 1979).

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Para Foucault, o biopoder foi necessário ao desenvolvimento do capitalismo, garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e do ajustamento dos fenômenos da população aos processos econômicos. Contudo, não se tratava só de controlar o corpo e a população, mas de potencializá-los em suas forças e aptidões graças a técnicas sanitaristas anátomo e biopolíticas. Essa estratégia, para poder controlar e potencializar a vida, exigiu uma visão calculista da vida e de seus mecanismos. O conhecimento gerado deu origem a um saber-poder expresso no discurso científico da clínica e da epidemiologia. Tal saber a serviço do desenvolvimento do biopoder foi a base da crescente importância da norma sanitária que instituiu o normal e o anormal em saúde, assumindo o lugar do sistema jurídico da lei, referido essencialmente à morte (ibid.). A lei sempre é referida ao poder do gládio de morte, mas um poder que tem a tarefa de gerir a vida necessita de mecanismo reguladores e corretivos contínuos, expressos em normas. Dessa maneira, a lei jurídica está baseada na sanção e na pena, enquanto a norma sanitária tem apenas uma função reguladora. Para Foucault, uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida (ibid.). Sobre este fundo da biopolítica do corpo e da população, Foucault vai analisar os mecanismos de biopoder que articulam esses dois eixos em relação ao sexo. De um lado, o sexo faz parte das disciplinas do corpo, porque permite a intensificação e a distribuição de suas forças e o ajustamento e a economia de suas energias. Por outro, o sexo engloba a regulação das populações por sua dimensão procriativa e demográfica. Dessa maneira, pela regulação do sexo gera-se um micropoder sobre o corpo individual e o corpo social, pois o sexo é, ao mesmo tempo, o acesso à vida do corpo e à vida da espécie (ibid.). O italiano Giorgio Agamben (2004; 2007), filósofo do direito, retoma a temática do biopoder introduzida por Foucault pelo viés sociológico e histórico, dando-lhe um enfoque mais filosófico e político. Nessa análise toma como caso concreto de referência a concepção de poder desenvolvida pelo nazismo. Desde o início o governo de Hitler definiu seu poder soberano e a base jurídica de suas intervenções como estado de exceção. Agamben pretende mostrar que essa forma de governar baseada numa situação jurídica de exceção não é uma excrescência do nazismo, mas a própria essência do biopoder do Estado moderno. Para analisar o biopoder, Agamben recorre à enigmática figura jurídica do homo sacer do antigo direito romano, que designava o homem cuja vida era consagrada a Júpiter, e por isso sagrada e separada das restantes vidas, não podendo ser “sacrificada” no sentido religioso ou ritualístico. Essa vida, por ser sagrada e não sacrificável, era, por isso, excluída da lei jurídica, o que

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permitia que ela pudesse ser eliminada por qualquer indivíduo sem que esse assassinato fosse considerado um delito. O homo sacer caracteriza-se pelo veto de sacrifício e pela impunidade de sua morte. Portanto, trata-se de uma vida sagrada e não sacrificável, mas matável por estar excluída do sistema jurídico. Conforme Agamben, essa figura reaparece no século XX nos campos de concentração ou de extermínio, em que as pessoas são reduzidas à vida nua e precária do homo sacer por estarem excluídas da proteção jurídica da lei. Aqui ele retoma a distinção aristotélica entre bios e zoé, pois no campo os sujeitos foram esvaziados da vida política (bios), enquanto cidadãos, já que foram excluídos do âmbito da lei moral e jurídica e reduzidos à pura zoé, isto é, à vida nua e crua, condição na qual eles são matáveis, porque não têm mais a proteção do direito. Esses espaços de exclusão jurídica em que pessoas são reduzidas à precariedade de sua vida natural não são anomalias do passado, que podem ser circunscritas apenas à ideologia nazista, como se tenta fazer crer, mas são, ao contrário, a própria matriz oculta do espaço político atual, acontecendo em Guantánamo, em Abu-Graib, nos campos de refugiados, nas salas de repatriamento dos aeroportos etc. Agamben está convencido de que são esses campos de exclusão jurídica e não a cidade democrática que constituem o paradigma da soberania e do poder na modernidade. Por isso, ele relaciona intimamente poder/soberania e vida nua (vida puramente física/zoé), que é a existência despojada de todo valor político, de toda cidadania. O campo em suas diferentes configurações é o espaço mais radical, mas não o único, em que se executam as biopolíticas contemporâneas, onde a vida, privada de todas as garantias jurídicas, pode ser objeto de todos os experimentos e violações. O que possibilita o surgimento desse espaço de redução dos sujeitos à vida nua, isto é, à vida puramente física, e sua exclusão das garantias de proteção jurídica é a figura política do estado de exceção, que deixa de ser algo excepcional pensado para momentos de crise e torna-se a própria regra do exercício do poder soberano. Para Agamben, essa ficção jurídica sobre a qual se fundamenta toda regulamentação é a mesma que abre o caminho para instauração do estado de exceção como regra geral. Assim a força de lei torna-se a força do soberano, pela qual atos que não têm valor de lei adquirem, no entanto, legitimidade pela força. Agamben chama de “bando” essa potência da lei de manter-se na própria suspensão, isto é, de aplicar-se desaplicando-se. O bando é a base jurídica da soberania do poder. Assim a exceção torna-se a forma originária e específica do direito e não a sanção, como sempre se defendeu. A lei existe para ser quebrada, porque tem vigência sem significado. Em outras palavras, ela vigora sem significar, porque é puramente formal. Por isso, Agamben

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(2004, p. 66) pode concluir que “essa pura forma de lei não é mais lei, mas zona indiscernível entre lei e vida, ou seja, estado de exceção”. Aqui se encontra o cerne da tese central da visão agambeniana. Existe uma correspondência plena entre essa compreensão da lei como exceção e a redução da vida à sua nudez natural como zoé, porque só nessa situação de precariedade a exceção é possível. A exceção soberana, como indiferença entre natureza e direito, é a pressuposição jurídica para a suspensão da lei. Por isso, é impossível distinguir lei e vida, já que elas se exigem mutuamente, existindo um nexo essencial entre vida nua e violência jurídica. A partir dessa reflexão pode-se entender a riqueza hermenêutica da recuperação da figura do homo sacer e o correspondente conceito de vida nua para compreender a biopolítica atual. O professor americano de literatura Michael Hardt e o filósofo e cientista social italiano Toni Negri lançaram, em 2000, a importante e polêmica obra Império, na qual retomam a discussão sobre biopoder/biopolítica na perspectiva da globalização (Hardt, Negri 2002). O gradativo declínio da soberania dos Estados-nação identifica-se, conforme os autores, com o surgimento do Império. Em contraste com o imperialismo colonialista, fundado ainda na soberania moderna, o Império não estabelece um centro territorial de poder nem se baseia em fronteiras. Ele é um aparelho de descentralização e desterritorialização que incorpora gradualmente o mundo inteiro sem ter um centro de poder localizado. O império é a face jurídico-política da globalização econômica. Por isso não podemos aplicar velhos conceitos, válidos para o contexto das relações internacionais dos Estados-nação, para entender a nova ordem global. Além de não ter fronteiras territoriais, o Império tem como característica abolir as fronteiras temporais, pois não se compreende como um momento transitório, mas como a realização e o fim da história. Por colocar-se fora do tempo, o Império, embora provoque muita violência, se apresenta como promotor da paz perpétua à luz da antiga pax romana. Por isso instaura um poder policial para intervir em qualquer região a serviço da paz. Por fim, o poder do Império atinge todos os registros da vida social, descendo às profundezas do mundo sociocultural. Ele não só administra o território com sua população, mas cria o próprio mundo em que ela habita, regula as interações humanas e rege a própria natureza humana. Tendo como objeto de governo a totalidade da vida social, o Império apresenta-se como uma forma paradigmática de biopoder num mundo globalizado. Hardt e Negri insistem na dimensão produtiva do biopoder, pois o exercício do poder imperial acontece num contexto biopolítico. O sujeito é produzido dentro de um processo biopolítico de constituição social. Não existe apenas um controle sobre a vida, mas o próprio contexto biopolítico

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em que essa vida se desenvolve é constituído pela máquina imperial. A ontologia dessa produção mudou substancialmente na nova ordem mundial, pois não se trata mais de um controle do Estado. Hoje são as grandes corporações industriais e financeiras que produzem não só mercadorias, mas também subjetividades. Produzem subjetividades agenciais dentro do contexto biopolítico, produzindo necessidades, relações sociais, corpos e mentes; em outras palavras, produzem produtores do sistema. As indústrias de comunicação jogam um papel de destaque, como legitimadoras da máquina imperial, nessa produção de subjetividades. Como fruto desse processo integrador, o Império e seu regime de biopoder tendem a fazer coincidir produção econômica e constituição política.

Biotecnologias

Quais são as manifestações e as incidências do biopoder no âmbito da saúde? A proliferação de tecnologias médicas sempre mais sofisticadas de diagnóstico e de terapêutica clínica e as futuras possibilidades abertas pelo deciframento do código genético humano e a consequente medicina genômica, que, graças às terapias genéticas, intervirá no próprio gene para curar a doença em sua origem. Essas futuras possibilidades terapêuticas alimentam a utopia da saúde perfeita, que se transforma, aos poucos, numa ideologia de consumo. Dessa utopia faz parte pensar que um dia será possível eliminar todas as doenças pela intervenção no gene (Sfez 1996). A saúde, na modernidade tardia, passou a ser mais do que cultivada, ela tornou-se uma mania cultural coletiva de saúde, chamada por Nogueira (2001) de higiomania (do grego hugiês: sadio, saudável, robusto). O grande objetivo da higiomania é apartar da noção de saúde toda associação possível com doença, morte e envelhecimento. Seu narcisismo não lhe permite encarar essas contingências da vida humana. A higiomania é mais uma expressão da hubris moderna na pretensão de criar seres humanos imortais. Mas Nogueira se pergunta: “imortais para quê? Talvez para continuarem a ser consumidores para todo o sempre” (ibid., p. 71). A realização dessa utopia acontece pelo consumo de tecnologias que oferecem a saúde. Em outras palavras, a saúde transforma-se numa mercadoria a consumir. Essa dinâmica consumista já foi muito bem explicitada, tendo como referência o complexo médico-industrial da produção de medicamentos (Cordeiro 1985). Hoje, essa dinâmica é muito mais complexa, porque as ofertas de consumo de tecnologias que prometem saúde são simbolicamente muito mais marcantes e sofisticadas. É o que Teixeira (2001) chama de agenciamentos

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tecnossemiológicos de produção de subjetividade. As novas biotecnologias de saúde têm um grande poder de agenciar as subjetividades, porque manifestam um grande poder simbólico de sentido para a vida. Nesse sentido, esses produtos não são apenas produtos, mas signos que constroem a subjetividade das pessoas. Não se trata apenas de consumir um produto que vende saúde, mas de produzir um novo sujeito na saúde. A ideia de agenciamento aponta para o caráter de agente dos processos coletivos de produção de subjetividade, deixando de vê-los como pura exterioridade inerte em relação ao sujeito. As biotecnologias criam demandas de saúde que produzem subjetividade. Quando o autor adjetiva esses agenciamentos com uma fusão semântica de técnicas e signos, está afirmando que esses processos acontecem num meio tecnossemiológico que mistura meios técnicos com referenciais simbólicos de sentido. Esse meio determina os processos coletivos de produção cultural da subjetividade. Afirma assim Teixeira: “O que pomos efetivamente no mundo como objetos técnicos não são meramente tecnologias materiais, mas grandes sistemas compostos e complexos, indistintos e indissociáveis de técnicas e signos” (ibid., p. 56). As ofertas biotecnológicas de saúde dão origem a sistemas tecnossemiológicos complexos e potentes que são o meio cultural agenciador da nova subjetividade sanitária com novas demandas em saúde, obrigando a repensar o próprio direito à saúde. Esse investimento simbólico das técnicas a serviço da saúde dá uma nova configuração ao biopoder, porque possibilita o surgimento de um poder agenciador de demandas a quem detém as biotecnologias, devido à ligação entre técnicas e signos que dota a mercadoria saúde de eficácia simbólica. Se o biopoder manifestava-se antes como gestão calculista da vida biológica dos corpos e das populações por parte do Estado, hoje o biopoder revela-se como agenciamento simbólico das técnicas a serviço da saúde por parte das empresas multinacionais biotecnológicas. Nos dois casos está presente o controle do biopoder. O primeiro mais direto, numa perspectiva biológica, o segundo mais sutil, de cunho consumista e simbólico. Direito à saúde

Essa nova configuração do biopoder leva a entender o direito à saúde simplesmente como acesso e consumo de procedimentos tecnológicos, esquecendo-se dos determinantes sociais da saúde como um direito dos indivíduos e um dever do Estado. Essa perspectiva leva a entender, em outros moldes, o problema da universalização e da focalização dos serviços em saúde, tão discutido nos inícios da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). Tratava-se de focalizar as práticas em saúde em certas categorias de

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Biopoder, biotecnologias e justiça

pessoas para assim poder atingir a universalização do acesso. Era necessário focalizar nos grupos mais vulneráveis para poder construir a universalidade pretendida pelo SUS. A focalização nos serviços era a maneira de realizar a universalização do acesso, e não se tratava de uma díade de contradição, mas de complementação. Só era possível atingir a universalidade focalizando os serviços para determinados grupos sociais. Mas, devido ao biopoder, a universalização e a focalização podem estar sendo deturpadas pelos agenciamentos tecnossemiológicos, respondendo apenas a demandas particulares de consumo de tecnologias. Partindo dessa constatação, Amélia Cohen (2005) defende que a saúde deve ser pensada na perspectiva da pobreza, levando a relativizar o enfoque de demandas de consumo, introduzindo a díade exclusão e inclusão como mais adequadas do que a de universalização e focalização. A falta de acesso aos meios de saúde é determinada nos pobres pela falta da realização dos direitos econômicos, sociais e culturais como condições indispensáveis para a concretização do direito à saúde. Por isso pode-se perguntar se as políticas de inclusão social não podem ajudar mais na universalização e na integralidade da saúde do que apenas as políticas de focalização em demandas de consumo de mercadorias e tecnologias em saúde. A força do biopoder tecnossemiológico manifesta-se em profundidade ao introduzir a lógica do mercado — responder a crescentes demandas in­ dividuais de consumo em saúde — num sistema público como o SUS, mostrando que a simples denominação “estatal” não garante que um serviço tenha relevância pública (Heiman, Ibanhes, Barboza 2005). Ao sistema privado interessa insistir no direito à saúde como puro consumo de medicamentos e tecnologias sofisticados que vendem saúde, onerando o sistema público, obrigado em muitos casos a pagar por determinação judicial. Isso explica as crescentes ações judiciais que obrigam o Estado a importar medicamentos sofisticados, em muitos casos ainda não devidamente comprovados, inviabilizando, pela escassez dos recursos, ações de saúde mais básicas e necessárias. Assim fica desvirtuada a concepção integral de saúde que está na base do SUS, porque a saúde vai sendo reduzida ao seu aspecto curativo de consumo de procedimentos e medicamentos, relativizando aspectos de prevenção, educação e promoção da saúde. A lógica atual do biopoder esvazia aos poucos e sutilmente a perspectiva da inclusão sanitária que era o objetivo último da democratização da saúde. Por isso é necessário voltar a insistir nos determinantes sociais e culturais da saúde e lutar por políticas de inclusão na linha dos direitos econômicos, sociais e culturais como base para a concretização do direito à saúde. Por isso é necessário relacionar saúde e ambiente e explicitar como o biopoder aparece nessa relação.

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Justiça ambiental

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O movimento social denominado Justiça Ambiental nasceu nos Estados Unidos inspirado nas marchas em defesa dos direitos dos negros. Constatouse que os maiores índices de poluição industrial e de presença de resíduos tóxicos estavam situados em regiões habitadas por populações afro e latino-americanas. Empresas químicas poluidoras aproveitavam-se da vulnerabilidade e das baixas consciência e organização destes grupos para localizar-se nestas regiões, largando resíduos tóxicos e dejetos em cursos de água e aterros sanitários sem encontrar oposição organizada da população. Esse fenômeno de empurrar o ônus ambiental para as populações negras foi chamado de racismo ambiental. A constatação originou a articulação de denúncia e organização da população a não aceitar a injusta degradação de seu meio ambiente, lutando por medidas socialmente igualitárias de política ambiental. Essa movimentação formulou o princípio ético de que grupos sociais vulneráveis não devem arcar com o peso desproporcional das consequências ambientais negativas resultantes de operações comerciais, industriais ou municipais ou da execução de políticas públicas e programas federais, estaduais, locais e tribais (Bullard 2004). Inspirada no movimento socioambiental dos negros americanos, foi constituída em 2001 a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (www.justicaambiental.org.br), que teve seu manifesto fundacional no Fórum Social de Porto Alegre de 2002. Definiu como injustiça ambiental o mecanismo pelo qual sociedades social e economicamente desiguais destinam a maior carga dos danos ambientais às populações de baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis (Freitas, Porto 2006). O movimento da justiça ambiental está envolvido em conflitos socioambientais oriundos da conformação de territórios por processos produtivos industriais, agrícolas ou mineradores que ocasionam poluição que afeta a vida e a saúde das populações circunvizinhas. Leis ambientais dos países centrais não aceitam estruturas produtivas degradantes para o ambiente, que são exportadas para países periféricos sem legislações rígidas de proteção do meio ambiente. Essas externalizações de danos ambientais, possibilitadas pela economia globalizada, não são contabilizadas como valor nos custos. É o que a economia ecológica chama de metabolismo social, processo visível na Europa, onde países importam seis vezes mais do que exportam e, contudo, têm um lucro muito superior, embora a produção não aconteça em seu território, devido ao conhecimento agregado na precificação do produto. A degradação humana e ecológica, não contabilizada no custo final, fica por conta dos países periféricos (ibid.).

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Desconhecer os efeitos colaterais desses processos macroeconômicos sobre o meio ambiente seria maquiar o fenômeno da degradação ambiental nos países periféricos. Os países subdesenvolvidos são responsabilizados pela degradação ambiental em seus territórios, esquecendo-se de que ela é uma externalização de danos ambientais dos países ricos. A degradação, além de destruir ecossistemas e sua biodiversidade, afeta a saúde das populações, destruindo o meio ambiente natural e cultural, base para a reprodução social da vida. As chagas ambientais manifestam-se no uso da terra pela monocultura do agronegócio exportador, que espalha desertos verdes de soja, de canade-açúcar, de eucaliptos, com a correspondente exploração de trabalho sazonal em condições infra-humanas; na exploração de minerais que gera poluição e riscos para os ecossistemas e para as populações circunvizinhas; na produção de energia hidrelétrica por meio da construção de barragens, processo que extingue biomas e expulsa pequenos agricultores de suas terras; nos conflitos sociais que envolvem o acesso ao solo urbano para moradia e na localização da poluição industrial e de resíduos tóxicos na proximidade de bairros populares (ibid.). Por isso não se pode enfrentar a questão ambiental sem levar em consideração a íntima relação entre ambiente e saúde, pois os efeitos da degradação ambiental aparecem na saúde, já que o ambiente configura as condições para a reprodução da vida, e para compreender essa relação impõe-se uma visão ecológica da própria saúde humana. Conclusão

Muitas vezes as discussões sobre a defesa da vida ficam na periferia dos problemas, porque não alcançam os referenciais simbólicos que ali se manifestam. Discutir os desafios da preservação da vida à luz do conceito de biopoder presente na força simbólica das atuais biotecnologias ajuda a darse conta das dinâmicas de poder que determinam esse debate. Referências bibliográficas Agamben, G. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2004. ———. O estado de exceção. São Paulo, Boitempo, 2007. Bullard, R. Enfrentando o racismo ambiental no século XXI. In: Acselrad, H., Herculano, S., Pádua, J. A. (org.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de Ja­ neiro, Relume Dumará, 2004, p. 41-66.

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Cohen, A. O SUS e o Direito à saúde: universalização e focalização nas políticas de saúde. In: Lima, N. T. et al. (org.). Saúde e democracia. História e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz, 2005, p. 385-405. Cordeiro, H. A indústria da saúde no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro, Graal, 1985. Foucault, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1979. ———. O nascimento da medicina social. In: ———. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 2001, p. 79-98. ———. A política da saúde no século XVIII. In: ———. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 2001, p. 193-207. Freitas, C. M., Porto, M. F. Saúde, ambiente e sustentabilidade. Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz, 2006. Hardt, M., Negri, T. Império. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 2002. Heiman, L. H., Ibanhes, L. C., Barboza, R. (org.). O público e o privado na saúde. São Paulo, Hucitec, 2005. Nogueira, R. P. Higiomania: a obsessão com a saúde na sociedade contemporânea. In: Vasconcelos, E. M. (org.). A saúde nas palavras e nos gestos. Reflexões da Rede Educação Popular e Saúde. São Paulo, Hucitec, 2001, p. 63-72. Sfez, L. A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia. São Paulo, Loyola, 1996. Teixeira, R. R. Agenciamentos tecnossemiológicos e produção de subjetividade: uma contribuição para o debate sobre a trans-formação do sujeito em saúde. Ciência e Saúde Coletiva, v. 6, n. 1 (2001) 49-61.

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Vida e morte: uma questão de dignidade Leo Pessini Programa de Pós-graduação em Bioética, Centro Universitário São Camilo, São Paulo

Introdução

A

morte nunca deixa de ser atual e nos provocar em termos de vida. Ela sempre nos visita, mansamente nas perdas de entes queridos, obrigando-nos a refletir sobre nossa própria vida finita, ou então em situações inusitadas e inesperadas que nos amedrontam. Na arte, na literatura e na mídia temos um reflexo imediato dessa rea­ li­dade. Os filmes mais premiados de Hollywood para o Oscar em 2005 — entre outros, Mar adentro, melhor filme estrangeiro (que apresenta o drama de Ramom Sampedro — Espanha), e Menina de ouro — apresentam a eu­tanásia como solução para uma vida marcada pela dependência e pelo so­frimento. Já começaram a surgir as primeiras políticas públicas relacionadas com essa prática. Por exemplo, em 2002, Holanda e Bélgica legalizaram a eutanásia. Também no início de 2005, nos meses de março e abril, o caso norte-americano de Terri Schiavo mobilizou não só os EUA mas, via mídia, a opinião pública mundial, quando ela morreu de inanição (31 de março). Também nessa época João Paulo II se despedia da humanidade (2 de abril) após uma exposição de sua agonia em praça pública que gerou desconforto em muita gente. No final, sabiamente o papa recusou-se a voltar para o hospital e optou por passar os momentos finais em seus próprios aposentos. Ao mesmo tempo, a guerra no Iraque continuava, com inúmeros atentados diários, com dezenas de mortes, sem provocar nenhuma comoção na mídia, designadas simplesmente como pessoas “sem nome”, identificadas apenas como civis ou soldados. Contrastes e contradições. O presidente Bush se declarou defensor da “cultura da vida” ao se posicionar no caso Terri Schiavo, mas ele próprio era o promotor da guerra no Iraque!

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Com estes fatos de fundo, apresentamos neste texto algumas reflexões em torno da dignidade de morrer. Iniciamos com uma reflexão ética em torno do caso Terri Schiavo, questionando-nos a propósito dos doentes em estado vegetativo persistente. A seguir, discorremos sobre a importância dos cuidados paliativos, sua origem, seu conceito e sua filosofia. Perguntamos o que significa dizer adeus à vida com dignidade e elegância. Nesta trilha ética temos que sublinhar a importância do cuidado da dor e do sofrimento e do paradigma do cuidar em face do paradigma da cura, quando estamos diante de pacientes fora de possibilidades terapêuticas; finalmente, discutimos a questão da ortotanásia no Brasil.

O caso Terri Schiavo

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Um caso dramático mobilizou a opinião pública norte-americana e mundial no início de 2005. Tratou-se do caso Terri Schiavo, que faleceu em 31 de março de 2005, aos 41 anos de vida, e que nos últimos quinze anos permanecera em estado vegetativo (EV) causado por dano cerebral em 1990. Um duro conflito em torno de como lidar com esta situação médica eclodiu entre seu marido, os familiares de Terri, a justiça do estado da Flórida, o governador e a mídia. Michael Schiavo, marido de Terri, solicitou permissão à justiça para remover os tubos de alimentação, na crença e na certeza de que sua esposa não mais se recuperaria. Em 2003, a justiça determinou que fosse cumprida a solicitação de descontinuar o tratamento feita por Michael Schiavo. Desde o início os pais de Terri haviam se oposto a essa decisão. Em outubro de 2003, a pedido do governador Jeb Bush (irmão do presidente Bush), a justiça da Flórida aprovou uma lei dando poderes ao governador de bloquear a ordem judicial de remoção do tubo de alimentação de Terri. Em 18 de março de 2005 a justiça ordenou que o tubo de alimentação de Terri fosse removido. Então o caso de Terri se tornou nacional, envolvendo o Senado americano, que perante o clamor público se reuniu extraordinariamente num domingo; o presidente Bush voltou mais cedo de seu descanso semanal no Texas e assinou uma lei que passava o caso para a justiça federal. Os pais de Terri entraram com novo recurso para reconectar a alimentação, mas perderam em todas as instâncias jurídicas, e Terri morreu de inanição no dia 31 de março de 2005. Um drama familiar, médico e ético transformou-se numa questão pública e política. É preciso retificar as informações errôneas veiculadas na mídia de que ela estaria em morte cerebral e de que estava ligada a aparelhos. Na verdade ela se mantinha viva respirando sem a ajuda de aparelhos, somente conectada a um tubo de alimentação que evitava que morresse de inanição.

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Para além da simples questão de se ser “a favor” ou “contra”, existem alguns fatos e questões dificílimos que precisam ser discutidos e para os quais não se encontrou solução até o momento. Eis os mais dramáticos: 1. Quanto ao diagnóstico e ao prognóstico: Terri estava realmente em EV? Três neurologistas, um indicado pela justiça e dois escolhidos por Michael Schiavo, concluíram que o estado clínico de Terri atendia aos critérios de EV. Um neurologista e um radiologista escolhidos pelos pais de Terri afirmaram que a condição de sua filha era menos severa que a de um paciente em EV e defenderam que se deveria fazer mais testes para avaliar suas capacidades atuais. O prognóstico tornou-se outro ponto de discussão. Os médicos atestaram que Terri estava em “estado vegetativo persistente”, definitivo e irreversível. Parecer compartilhado pela Academia Americana de Neurologia. A princípio, os médicos do lado dos pais afirmavam que determinadas intervenções, tais como terapia hiperbárica ou terapia vasolidativa, ajudariam Terri. Mas nenhum desses procedimentos pôde ser comprovado cientificamente. 2. Que tratamento Terri escolheria se estivesse em condições de optar? Michael Schiavo, o tutor legal, insistia que sua ex-esposa (ele constituiu ou­ tra família e teve dois filhos) escolheria remover o tubo de alimentação e que teria ouvido dela que não desejaria viver nestas condições. Além disso, diziase que ele ganharia uma boa quantia de dólares do seguro com a morte de Terri. Para os pais, os Shindler, Terri certamente desejaria que os cuidados atuais continuassem; a mãe, para quem ela “estava viva”, suplicou que não lhe fosse negada a alimentação, sem a qual morreria de inanição em alguns dias. Além disso, eles não concordavam que sua filha desejaria o que o marido afirmava, diziam que não existia nenhum documento neste sentido e acreditavam mesmo na possibilidade de melhora na condição clínica. 3. Qual é o valor da vida nestas condições? Seu marido pensava que a vida de sua ex-esposa na atual situação não tinha valor e que seria mais respeitoso renunciar aos tratamentos e permitir que ela descansasse em paz, pois este teria sido seu desejo. Contrariamente, os pais acreditavam que a continuação da vida seria um benefício para sua filha. Nutrição e hidratação seriam um cuidado ordinário ou extraordinário? Michael Schiavo considerava o tubo de alimentação uma intervenção médica, similar à ressuscitação cardíaca e à administração de antibióticos. Por outro lado, para os pais de Terri o tubo de alimentação não era significativamente diferente de alimentação ordinária, tratava-se de um cuidado humano básico, não essencialmente de uma intervenção médica, e portanto deveria ser mantido. 4. Os acontecimentos em torno do caso Schiavo apontam para dilemas e conflitos éticos dificílimos na hora de se decidir perante situações de pacientes inconscientes. O caso normalmente é citado para demonstrar a

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importância de elaborar diretrizes avançadas de vida. A questão é se teria sido evitado este terrível conflito familiar caso Terri tivesse expressado sua vontade em relação a tratamentos de manutenção de vida. O caso lembra também a necessidade urgente de elaborar diretrizes éticas e políticas públicas que norteiem decisões de final de vida que respeitem a dignidade humana. Situações como a de Terri serão muito mais frequentes num futuro próximo, com o aumento da população de pessoas portadoras de doenças crônico-degenerativas, e exigirão atenção redobrada em relação a cuidados de saúde especializados e reflexão bioética. Doentes em estado vegetativo persistente: o que pensar e fazer?

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Assusta-nos a afirmação técnica, que tem seriíssimas consequências éticas, de que um paciente em estado vegetativo persistente é um “quebracabeça sem solução” (Hastings Center, EUA). A Federação Mundial de Associações Médicas Católicas e a Pontifícia Academia de Vida organizaram no início de 2004, em Roma (10-17 de março), um importante congresso internacional sobre “Tratamentos de manutenção de vida e estado vegetativo: avanços científicos e dilemas éticos”. Das conclusões podemos resgatar algumas afirmações importantes que nos ajudam a avaliar eticamente o caso Terri Schiavo, bem como os de todos os doentes que se encontram em estado vegetativo persistente. O que se entende por estado vegetativo? Trata-se de “um estado de não reação, atualmente definido como uma condição caracterizada pelo estado de vigilância, alternância de ciclos sono/vigila, ausência aparente da consciência de si e do ambiente circunstante, falta de respostas comportamentais aos estímulos ambientais, conservação das funções autônomas e de outras funções cerebrais”. O EV deve ser claramente distinto da morte encefálica ou coma. Em geral, o doente em EV não precisa de apoios tecnológicos para a manutenção de suas funções vitais e não pode ser de forma alguma considerado um doente terminal, podendo sua condição se prolongar estável e indefinidamente por muitos anos. Nenhum dos métodos de pesquisa atuais pode prever, em cada um dos casos, se os doentes em EV se restabelecerão ou não. Reconhece-se que cada ser humano possui a dignidade de pessoa, sem discriminação de raça, cultura, religião, estado de saúde ou condições socioeconômicas. Esta dignidade constitui um valor imutável e intangível, que não pode depender das circunstâncias existenciais concretas, nem ser subordinado ao juízo de ninguém. Mesmo reconhecendo como dever próprio da medicina, bem como da sociedade, a busca de uma qualidade de

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vida melhor para qualquer ser humano, ela não pode e não deve constituir o critério definitivo de juízo sobre o valor da vida do homem. Reconhece-se que a dignidade de cada pessoa também pode exprimirse pela realização de opções autônomas; contudo, a autonomia pessoal nunca pode chegar a justificar decisões ou atos contra a vida humana própria ou de outrem: de fato, sem vida não há qualquer liberdade! O doente em EV é pessoa humana e, como tal, merece respeito em seus direitos fundamentais, dos quais o primeiro é o direito à vida e à tutela da saúde. Em especial, o paciente em EV tem direito: a uma correta e aprofundada avaliação diagnóstica, a fim de evitar possíveis erros e para orientar intervenções de reabilitação; a uma assistência de base, que inclua hidratação, nutrição, aquecimento e higiene; à prevenção das possíveis complicações e ao controle de qualquer eventual sinal de restabelecimento; a um processo adequado de reabilitação, que favoreça a recuperação e a manutenção dos objetivos alcançados; a ser tratado como qualquer outro doente no que se refere aos cuidados. O documento do congresso da Federação Mundial das Associações Médicas Católicas e da Pontifícia Academia de Vida afirma que “a eventual decisão de suspender a alimentação e a hidratação, cuja administração no doente em EV é necessariamente assistida, tem como consequência inevitável e direta a morte do doente. Por conseguinte, ela configura-se como um verdadeiro e próprio ato de eutanásia por omissão, moralmente inaceitável” (o destaque é nosso). O Documento conclui dizendo que o doente em EV não pode ser considerado um “peso” para a sociedade; ao contrário, deve ser reconhecido como um apelo à realização de “modelos novos e mais eficazes de assistência e de solidariedade social”. Infelizmente, Terri foi vítima de um “complô de interesses”. Foi vítima de um conflito familiar, de uso político e de uma decisão final de justiça equivocada em nossa visão. Situações como esta deveriam ser resolvidas não em praça pública, mas no âmbito científico médico, ético e familiar. Perguntamo-nos a respeito da sorte dos milhares de pacientes que estão em estado vegetativo nos Estados Unidos, se não lhes serão negadas água e comida. Duvido de que ao negar água e comida a um ser humano — uma das ações mais necessárias em termos de solidariedade humana —, provocando a “morte por solidariedade”, estaríamos honrando a dignidade humana!

Cuidados paliativos: uma necessidade emergente e urgente no sistema de saúde

Desde o início dos tempos as sociedades oferecem apoio e conforto aos seus membros doentes e que estão morrendo. Normalmente, uma reve-

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rência e uma mística profundas envolvem a pessoa que está nesta fase. O período que se segue à morte é normalmente marcado pelo seguimento de rituais religiosos culturais. A necessidade de chorar a perda de um ente querido é reconhecida por muitas sociedades, embora as manifestações pela perda e o período formal de luto variem de uma cultura para outra. Os cuidados paliativos (CP) não se referem primariamente a cuidados institucionais, mas são antes uma filosofia de cuidados aplicável em todas as instituições (casa, hospice ou hospital). Nos tempos medievais, o termo hospice era usado para descrever o lugar de acolhida para peregrinos e viajantes. Na Europa, a associação entre hos­ pice e o cuidado dispensado a pacientes em fase final de vida data de 1842, com o trabalho de Jeanne Garnier, em Lyon, na França. Na Irlanda, as Irmãs Irlandesas da Caridade, instituição fundada por Mary Aikenhead, abriram hospices em Dublin e Cork (1870), e posteriormente o St. Joseph’s Hospice, em Londres (1907). Estas instituições cuidavam de pacientes que sofriam de doenças avançadas e incuráveis. Contudo, esforços para controlar a dor e outros sintomas não foram adiante devido à falta de compreensão da natureza destes sintomas e ainda pela falta de medicamentos. Nos anos 1950 teve início a introdução de uma gama importante de novas drogas, entre elas psicotrópicos, fenoliasinas, antidepressivos, antiinflamatórios, entre outros. Nesta época começou a haver uma melhor compreensão da natureza da dor provocada pelo câncer e do papel dos opioides no controle da dor oncológica. A disponibilidade desta nova medicação criou a possibilidade de cuidado e administração da dor. A medicina paliativa se desenvolveu em grande parte como resultado da visão e da inspiração inicial de Dame Cicely Saunders, fundadora do St. Christopher Hospice em Londres, em 1967. Durante séculos, “hospício” significava um lugar de repouso para viajantes ou peregrinos. A palavra sobreviveu em conexão com os hospitais conventuais ou asilos. Para a doutora Saunders, esta expressão foi importante, pois ela desejava proporcionar cuidados que combinariam as habilidades de um hospital com as da hospitalidade e do calor de uma pousada, deslocando o centro de interesse da doença para o doente e sua família. O conceito de cuidados paliativos

O que entender por cuidados paliativos? O que isso significa? A maioria dos profissionais da saúde em nosso país, sem falar do público em geral, praticamente desconhece o que significam, não sabe da existência de programas e serviços de cuidados paliativos em instituições de saúde no país e, quando ouve algo sobre uma ação ou medida paliativa, o entendimento

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vai no sentido de que se trata de uma ação ou medida que na verdade não resolve um determinado problema ou desafio, mas apenas “coloca panos quentes”, e a realidade permanece inalterada. Felizmente este horizonte de visão e compreensão está mudando com o surgimento de publicações pioneiras sobre o assunto em português. O termo “paliativo” deriva do vocábulo latino pallium, que significa manta ou coberta. Assim, quando a causa não pode ser curada, os sintomas são “tapados” ou “cobertos” com tratamentos específicos, por exemplo analgésicos. Em inglês palliate pode ser traduzido por aliviar, mitigar, suavizar. Refere-se ao care (cuidar) em vez de à cure (cura), segundo os pioneiros ingleses. Vejamos o que diz o Novo Aurélio: Paliar (do lat. tard. palliare, “disfarçar”, “dissimular”) significa: a. encobrir com falsa aparência, disfarçar, dissimular, encobrir; b. tornar aparentemente menos duro, menos desagradável, atenuar na aparência, entreter; c. remediar provisoriamente, aliviar. Paliativo. Adj. 1. que serve para paliar; 2. Terap. Que serve para acalmar, atenuar ou aliviar momentaneamente um mal. S.m. 3. Qualquer tratamento que apenas fornece alívio, de duração variável, a um doente.

É importante notar que os CP não devem ser vistos como essencialmente diferentes de outras formas ou áreas de cuidados de saúde. Isto tornaria difícil, se não impossível, a sua integração no curso regular dos cuidados de saúde. Muitos aspectos cruciais dos CP se aplicam perfeitamente à medicina curativa, bem como, de outro lado, o desenvolvimento dos CP pode influenciar positivamente outras formas de cuidados de saúde, ao valorizar aspectos esquecidos, tais como problemas espirituais. A definição de CP evoluiu ao longo dos anos à medida que o campo foi se desenvolvendo em vários países. Os CP foram definidos tendo como referência não um órgão, a idade, um tipo de doença ou patologia, mas antes uma avaliação de um provável diagnóstico e em relação a necessidades especiais da pessoa doente e sua família. Tradicionalmente, os CP eram vistos como aplicáveis exclusivamente no momento em que a morte era iminente. Hoje se aceita que os cuidados paliativos têm muito a oferecer no estágio inicial do curso de uma doença progressiva. Como lembra a etimologia de pallium, “manto”, a essência dos cuidados paliativos está em aliviar os efeitos de doenças incuráveis, ou prover um manto para aqueles que passam frio, porque não podem mais ser ajudados pela medicina curativa. Em 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu os CP como “cuidado ativo total de pacientes cuja doença não responde mais ao trata-

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mento curativo. Controle da dor e de outros sintomas e problemas de ordem psicológica, social e espiritual são prioritários. O objetivo dos CP é proporcionar a melhor qualidade de vida para os pacientes e seus familiares”. A OMS também define os CP para crianças (1998): Cuidados paliativos para crianças são o cuidado ativo total para o corpo, a mente e o espírito, e também envolvem o apoio para a família; têm início quando a doença é diagnosticada, e continuam independentemente de a doença da criança estar ou não sendo tratada; os profissionais da saúde devem avaliar e aliviar o estresse físico, psíquico e social da criança; para serem efetivos, exigem uma abordagem multidisciplinar, que inclui a família e a utilização dos recursos disponíveis na comunidade; podem ser implementados mesmo se os recursos são limitados; podem ser realizados em centros comunitários de saúde e mesmo nas casas das crianças.

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O conceito da OMS sobre CP de 1990 é louvável no sentido de que se centra no paciente, enfatiza a natureza multifacial da condição humana e identifica a qualidade de vida como seu objetivo último. Contudo, o uso do termo “curativo” não ajuda, uma vez que muitas condições crônicas não podem ser curadas mas podem ser compatíveis com uma expectativa de vida de várias décadas. Levando em conta estes desdobramentos, em 2002 a OMS redefiniu o conceito de CP, colocando ênfase na prevenção do sofrimento. Eis o novo conceito: Cuidados paliativos são uma abordagem que aprimora a qualidade de vida dos pacientes e famílias que enfrentam problemas associados com doenças ameaçadoras de vida, através da prevenção e do alívio do sofrimento, por meios de identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor, e outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual. A filosofia dos cuidados paliativos

A partir deste conceito podemos falar da filosofia dos CP, que aponta para os seguintes princípios fundamentais: a. Os CP valorizam o atingir e manter um nível ótimo de dor e adminis­ tração dos sintomas. Isto exigirá uma avaliação detalhada de cada doente, levando em conta sua história detalhada, exame físico e pesquisas se apropriado. Os doentes devem ter acesso imediato a toda medicação necessária, incluindo uma variedade de opioides numa gama de formulações. b. Os CP afirmam a vida e encaram o morrer como um processo normal. O que todos nós partilhamos é a realidade inescapável de nossa morte. Os

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pacientes que solicitam CP não devem ser vistos como falhas médicas. OS CP visam a assegurar que os doentes sejam capacitados e encorajados a viver sua vida de uma forma útil, produtiva e plena, até o momento de sua morte. A importância da reabilitação no que se refere a bem-estar físico, psíquico e espiritual não pode ser negligenciada. c. Os CP não apressam nem adiam a morte. Intervenções de CP não devem ser para abreviar a vida prematuramente. Da mesma maneira que as tecnologias disponíveis na moderna prática médica não são aplicadas para prolongar a vida de forma não natural. Os médicos não são obrigados a continuar tratamentos que são considerados fúteis e excessivamente onerosos para os pacientes. Da mesma forma, os pacientes podem recusar tratamentos médicos. Em CP, o objetivo é assegurar a melhor qualidade de vida possível. Quando o processo da doença conduz a vida para um final natural, os doentes devem receber conforto físico, emocional e espiritual. Especificamente, destaque-se que nenhuma definição de CP inclui a eutanásia e o suicídio assistido. d. Os CP integram aspectos psicológicos e espirituais dos cuidados do paciente. Um nível elevado de cuidado físico é certamente de vital importância, mas não suficiente em si mesmo. Não devemos reduzir a pessoa humana a uma simples entidade biológica. e. Os CP oferecem um sistema de apoio para ajudar os pacientes a viver tão ativamente quanto possível, até o momento de sua morte. Neste sentido, é importante ressaltar que o paciente estabelece os objetivos e prioridades. O papel do profissional da saúde é capacitar e assistir ao paciente para que ele atinja seu objetivo identificado. É evidente que as prioridades de um paciente podem mudar dramaticamente com o tempo. O profissional deve estar consciente dessas mudanças e responder consequentemente. f. Os CP ajudam a família a lidar com a doença do paciente e no luto. Em CP a família é uma unidade de cuidados. Neste sentido, os membros da família terão suas questões e dificuldades, que devem ser identificadas e trabalhadas. O trabalho em relação ao cuidado com o luto se inicia bem antes do momento da morte do doente. g. Os CP exigem uma abordagem em equipe. É evidente que do exposto até o momento nenhuma pessoa ou disciplina somente pode adequadamente lidar com a gama e a complexidade das questões que surgem durante o período de CP. Embora uma equipe central formada por um médico, uma enfermeira e uma assistente social possam prover o cuidado necessário, é necessária a colaboração de uma gama maior de profissionais da área médica, de enfermagem e outros aliados. Para que essa equipe trabalhe de forma coesa, é criticamente importante que se tenham as metas e os objetivos partilhados, bem como meios rápidos e efetivos de comunicação.

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h. Os CP visam a aprimorar a qualidade de vida. A questão da qualidade de vida atraiu muito interesse da pesquisa nos últimos anos. É importante reconhecer que este conceito não é simplesmente uma medida de conforto físico ou de capacidade funcional. Antes, trata-se de algo que somente pode ser definido pela pessoa doente, e é também algo que pode se alterar significativamente ao longo do tempo. i. Os CP são aplicáveis no estágio inicial da doença, concomitantemente com as modificações da doença e terapias que prolongam a vida. His­ toricamente os CP foram associados com os cuidados oferecidos a doen­ tes de câncer próximos da morte. Reconhece-se que os CP têm muito a oferecer aos pacientes e familiares no estágio inicial do curso da doença, mas quando se atinge o estágio avançado da doença a progressão já não pode ser evitada. Isto exige que os serviços de CP estejam intimamente integrados com toda a gama de serviços de saúde, seja no hospital ou em instituições comunitárias.

O cuidado da dor e do sofrimento humanos

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Buscamos de modo incansável a felicidade de viver plenamente com dignidade, e não apenas sobreviver. Fazemos de tudo para combater a doença, a dor, o sofrimento e vencer a própria morte. Estamos cada vez mais apare­ lhados com fantásticas inovações tecnológicas. Nesta empreitada pre­ veem-se transformações ainda mais profundas para um futuro não muito distante. Num momento de “ilusão utópica” chegamos até em acreditar que a realidade do morrer não faz parte de nosso existir, pensamos e agimos como se fôssemos imortais, e dificilmente aí poderíamos encontrar ou dar algum sentido à vida marcada pela mortalidade e pela finitude. Ousamos apontar um horizonte de sentido, realçando alguns aspectos éticos importantes ligados ao ocaso da vida, na compreensão e no cuidado do paciente terminal. É importante que saibamos o que é um paciente terminal no processo de cuidados. Trata-se do enfermo portador de uma enfermidade avançada progressiva e incurável, com ausência de possibilidades razoáveis de resposta a tratamento de cura, com múltiplos problemas relacionados e forte impacto emocional para o próprio doente, para a família e a equipe de saúde, e com um prognóstico de vida inferior a seis meses. A diferença entre dor e sofrimento tem um grande significado quando temos que lidar com a dor em pacientes terminais. O enfrentamento da dor exige medicamentos analgésicos, ao passo que o sofrimento solicita significado e sentido. A dor sem explicação geralmente se transforma em sofrimento. O sofrimento é uma experiência humana profundamente com-

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plexa, em que intervêm a identidade e a subjetividade da pessoa, assim como valores socioculturais e religiosos. Um dos principais perigos em negligenciar esta distinção é a tendência dos tratamentos a se concentrar somente nos sintomas e dores físicos, como se eles fossem a única fonte de angústia e sofrimento para o paciente. É a tendência a reduzir o sofrimento a um simples fenômeno físico que pode ser dominado por meios técnicos. Além disso, nos permite continuar agressivamente com tratamentos fúteis, na crença de que enquanto o tratamento protege os pacientes da dor física protege de todos os outros aspectos também. A continuação de tais cuidados pode simplesmente impor mais sofrimentos ao paciente terminal. O sofrimento tem que ser cuidado em quatro dimensões fundamentais. a. dimensão física — no nível físico, a dor funciona como um claro alarme de que algo não está bem no funcionamento normal do corpo; b. dimensão psíquica — surge frequentemente no enfrentar a inevitabilidade da morte. Perdem-se as esperanças e os sonhos, com a necessidade de redefinir o mundo que se está para deixar; c. dimensão social — é a dor do isolamento, que surge do ser obrigado a redefinir relacionamentos e a necessidade de comunicação; d. dimensão espiritual — surge da perda do sentido, do objetivo de vida e da esperança. Todos necessitam de um horizonte de sentido, uma razão para viver e uma razão para morrer. Pesquisas recentes nos Estados Unidos revelam que o aconselhamento sobre questões espirituais está entre as três necessidades mais solicitadas pelos doentes terminais e seus familiares.

Os paradigmas de curar e cuidar

A medicina paliativa se desenvolveu como uma reação à medicina moderna altamente tecnicista, que prioriza a cura em relação ao cuidado. O paradigma da cura inclui as virtudes “militares” de combater e perseverar na luta contra a doença. O paradigma do cuidado, pelo contrário, tem como valor central a dignidade humana, enfatizando a solidariedade entre o paciente e os profissionais da saúde, uma atitude que resulta numa compaixão efetiva. No ethos da cura “o médico é o general”, enquanto no paradigma do cuidado “o paciente é o soberano”. Não obstante a medicina paliativa ter sido descrita como “de baixa tecnologia e de alto contato humano”, ela não se opõe à tecnologia médica, mas busca assegurar que seja o amor, para além da ciência, a força motriz que determine o cuidar do paciente. As ações de saúde hoje são sempre mais marcadas pelo paradigma da cura, caracterizado por cuidados críticos, intensivos de medicina de alta tecnologia. É bom lembrar que a presença massiva da tecnologia é um

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fato necessário e legítimo na medicina moderna. O paradigma de curar facilmente torna-se prisioneiro da tecnologia. Se algo pode ser feito, logo deve ser feito, e se esquece de que nem tudo o que é possível realizar cientificamente é eticamente admissível. Também pode idolatrar a vida física e alimentar a tendência a prolongar a vida em condições simplesmente inaceitáveis. Este vitalismo ganha forma na convicção de que a inabilidade para curar ou evitar a morte é uma falha da medicina. A falácia desta lógica é que a responsabilidade de curar termina quando os tratamentos estão esgotados, e se não há mais cura diz-se que não se tem mais nada a fazer. Outro eixo de leitura, compreensão e cuidado começa a ganhar força. É o paradigma do cuidado. O crescente interesse público pela eutanásia e pelo suicídio assistido chama a nossa atenção para os limites de “curar” da medicina moderna. Cuidados de saúde sob o paradigma do cuidar aceitam o declínio, o envelhecimento e a morte como parte da condição humana, uma vez que todos nós “sofremos” de uma condição que não tem cura, isto é, somos mortais. A medicina não pode afastar a morte indefinidamente. A morte finalmente acaba por chegar e vencer. A pergunta fundamental não é se vamos morrer, mas quando e como teremos que enfrentar essa realidade. Quando a terapia médica não consegue mais atingir os objetivos de preservar a saúde ou aliviar o sofrimento, tratar para curar torna-se uma futilidade ou um peso, e mais do que prolongar a vida prolonga-se a agonia. Surge então o imperativo ético de parar o que é inútil e fútil, intensificando os esforços no sentido de proporcionar, mais que quantidade, qualidade de vida diante do morrer. A ação de cuidar é multidisciplinar, nela procura-se promover para o doente: seu bem-estar físico, cuidando da dor e do sofrimento; seu bem-estar mental, ajudando-o a enfrentar suas angústias, seus medos e inseguranças; seu bem-estar social, garantindo suas necessidades socioeconômicas e relacionais de ternura; e seu bem-estar espiritual, pela vivência solidária e com apoio nos valores de fé e esperança. Em nosso país começa-se a implantar programas institucionais de cuidados na área da saúde junto a pacientes com doenças crônico-degenerativas e pacientes terminais que operacionalizam esta visão, que em sua essência é a filosofia dos cuidados paliativos. O novo Código de Ética Médica brasileiro (res. CFM n. 1831/2009)

Partindo da perspectiva de que a morte é uma dimensão de nossa existência humana, pois somos finitos e mortais, assim como temos o direito de viver dignamente, temos implícito o direito de morrer com dignidade, sem sofrimentos ou prolongamento artificial do processo do morrer (distaná-

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sia), o que não nos dá, no entanto, o direito de abreviar a vida, o que seria a prática da eutanásia. A resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 1805/2006 vai contra a distanásia e a eutanásia e a favor da ortotanásia, isto é, do morrer natural, sem dor e sofrimentos, sem que em sua fase final a vida seja abreviada e muito menos prolongada. Vejamos: Art. 1º — É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. Art. 2º — O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurados a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurandolhe o direito de alta hospitalar.

O judiciário, no caso do juiz de Brasília que embargou a resolução no. 1805/96 sobre a ortotanásia, precisa de mais cultura ética e bioética para distinguir os conceitos de eutanásia e ortotanásia, que nos argumentos apresentados estão embaralhados. O entendimento de ortotanásia é o de que, se a pessoa está morrendo, portanto no momento final, não vamos abreviar a vida, praticando a eutanásia, muito menos prolongar o processo agônico, o que seria uma prática distanásica, a ser evitada. Numa rápida visão do Código de Ética Médica de 1988 em relação às questões éticas de fim de vida, passados vinte anos desde sua aprovação, percebe-se de imediato que vivíamos num contexto sócio-histórico-cultural de negação da finitude humana. Mas o que fazer então se na prática clínica do dia a dia nos encontramos, interagimos com pessoas reais que morrem? Isto faz parte do complô da negação da morte. Não se fala em término da vida e em como orientar o profissional médico a lidar eticamente diante da morte. No máximo, orienta-se o médico em como agir diante do “iminente perigo de vida” (art. 46, 56). O artigo 60 estabelece que é vedado ao médico “exagerar a gravidade do diagnóstico ou prognóstico, complicar a terapêutica […]”. O artigo 61, parágrafo 2º, dispõe que “o médico não pode abandonar o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável, mas deve continuar a assisti-lo ainda que apenas para mitigar o sofrimento físico ou psíquico”. O artigo 66 proíbe o médico de “utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que, a pedido deste ou de seu responsável legal”. Embora não seja utilizada a palavra “eutanásia”, esta é a questão em pauta e contra a qual se posiciona o Código (França 1987; 1994). O mais recente Código de Ética Médica brasileiro foi aprovado em 29 de agosto de 2009 e apresenta várias novidades, entre outras, uma no

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capítulo I, sobre princípios fundamentais, ao admitir a “finitude da vida humana”. Se analisarmos os dezenove princípios fundamentais do código anterior (1988), veremos que o paciente nunca morre! É no mínimo curioso, pois se nega em princípio a realidade da presença da morte, embora ela seja sorrateiramente introduzida na própria prática clínica. O novo Código de Ética Médica brasileiro tem um novo princípio (XXII) em relação a este silêncio do código anterior. Vejamos: “Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”. No capítulo V, que trata da “relação com pacientes e familiares”, norma­tizam-se procedimentos médicos dizendo que é vedado ao médico “exagerar a gravidade do diagnóstico ou prognóstico, complicar a terapêutica” (art. 35). O artigo seguinte, nº 36, diz que é vedado ao médico abando­ nar o paciente sob seus cuidados. O § 2 afirma que “o médico não abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável e continuará a assisti-lo, ainda que para cuidados paliativos”. Neste mesmo capítulo V, no artigo 41 diz-se não à eutanásia no caput, não à prática da distanásia e sim aos cuidados paliativos no parágrafo único: 162

É vedado ao médico abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único: em caso de doença incurável e terminal deve o médico oferecer os cuidados paliativos disponíveis, sem empreender ações diagnósticas e terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, de seu representante legal.

O novo código incorpora em seu bojo a essência da resolução 1805 de 28 de novembro de 2006, suspensa por decisão liminar nos autos da Ação Civil Pública da 14ª Vara Federal/DF. O legislador confundiu os conceitos de eutanásia e ortotanásia. Este novo Código de Ética Médica é um grande avanço na medicina brasileira, finalmente coloca-a em pleno século XXI, ao assumir com humildade a dimensão da finitude humana e também a preocupação de preservar a dignidade da pessoa humana neste momento crítico da vida, indo para além do mero biologicismo. É utilizar tecnologia com sabedoria, dizendo um grande não à “tecnolatria”, e reconhecer que toda vida humana chega a um final, final que deve ser coroado de respeito e dignidade. Mesmo em situações em que devemos utilizar ou deixar de usar determinados medicamentos ou equipamentos, e em que isso apresse a morte neste contexto, o que estamos procurando fazer é ajudar para que a pessoa não sofra. O que se visa é ao cuidado da dor e do sofrimento, e não a apressar a

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morte da pessoa, que é o efeito indireto e indesejado de tais ações. A Igreja católica defende isto desde Pio XII, em 1958. A prática da distanásia continua forte hoje e vai aumentar ainda muito mais no futuro à medida que formos introduzindo mais tecnologia no cuidado na vida em seu final. Aqui precisamos da sabedoria ética de perceber que em determinadas situações estamos diante de uma pessoa cuja vida humana está chegando ao seu final e que desconsiderar esta realidade é simplesmente um desastre. Por quê? Acaba-se por tratar a morte como uma doença para a qual se tem de encontrar a cura, e nós não somos doentes de morte. Esta dimensão da mortalidade precisa ser levada em conta. Por mais que progrida, e esperamos que continue a progredir, a tecnologia não nos dará o dom da imortalidade biológica. Dados do CFM dizem que temos hoje no Brasil 30% de pacientes em estado terminal em UTIs. Estes pacientes não deveriam estar em UTIs, mas sim recebendo a chamada medicina paliativa, a qual, se não é mais possível a cura, investe em conforto, cuidando das necessidades físicas, psíquicas, sociais e espirituais. Além de gastar desnecessariamente recursos caríssimos nestes casos, acaba-se por impor mais sofrimento aos pacientes e familiares. Que tal gastar menos investindo com sabedoria onde realmente se faz necessário — nos casos em que temos realmente a esperança de cura — e ter a coragem de reconhecer que em determinadas situações chegamos a um limite que precisa ser respeitado e o que podemos fazer é proporcionar mais conforto, para que a pessoa não sinta dor e sofra desnecessariamente? É esta a verdade que o sistema de saúde e os profissionais da saúde precisam entender. A esse respeito lembro o papa João Paulo II, que ao perceber que sua vida chegava ao seu momento final, quando lhe propuseram voltar para o hospital (Clínica Gemelli), para a UTI, disse não, recusou-se e simplesmente implorou: “Deixem-me partir, para o Senhor”. Se tivesse voltado para o hospital, ficado numa UTI, certamente a vida física, biológica do papa poderia ter sido prolongada por vários dias… Mas em que isso iria beneficiá-lo? E é interessante que não se diz que o papa optou pela eutanásia. O que se evitou aqui foi a prática da distanásia. O clamor do papa ao dizer “Deixem-me partir” não deixa de ser o clamor de centenas de milhares de doentes hoje que estão em fase final de vida. Concluindo: dizer adeus à vida com dignidade e elegância!

O desafio ético é considerar a questão da dignidade no adeus à vida, para além da dimensão físico-biológica e do contexto médico hospitalar, ampliando o horizonte com a integração da dimensão sociorrelacional.

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A mídia alardeia casos individuais que nos envolvem sentimentalmente e anunciam o direito de todo ser humano a ter uma morte feliz, sem sofrimento. Perguntamo-nos qual o significado de tudo isso diante da morte violenta de milhares por acidentes e violência em nossa sociedade. E as nossas Terri Schiavo de quem ninguém fala? Existe muito que fazer no sentido de levar a sociedade a compreender que o morrer com dignidade é uma decorrência do viver dignamente e não a mera sobrevivência. Se não se tem condição de vida digna, no fim do processo garantiríamos uma morte digna? Antes de existir um direito à morte humana, há que ressaltar o direito de que a vida já existente possa ter condições de ser conservada, preservada e desabroche plenamente. Chamaríamos a isto direito à saúde. É chocante e até irônico constatar situações em que a mesma sociedade que negou o pão para o ser humano viver lhe oferece a mais alta tecnologia para “bem morrer”! Não somos doentes nem vítimas da morte. É saudável sermos peregrinos. Não podemos passivamente aceitar a morte que é consequência do descaso pela vida, causada pela violência, por acidentes e pela pobreza. Diante deste contexto é necessário cultivar uma santa indignação ética. Podemos ser curados de uma doença classificada como mortal, mas não de nossa mortalidade. Quando esquecemos isso, acabamos por cair na tecnolatria e na absolutização da vida biológica pura e simplesmente. Insensatamente procuramos a cura da morte, e não sabemos mais o que fazer com os pacientes que estão se aproximando do adeus à vida. É a obstinação terapêutica (distanásia) adiando o inevitável, que acrescenta somente mais sofrimento e vida quantitativa, mais que qualidade de vida. Um pensamento de Cicely Saunders, a grande pioneira do movimento moderno do hospice, traduz com muita felicidade a essência da filosofia dos cuidados paliativos: “Eu me importo pelo fato de você ser você, me importo até o último momento de sua vida, e faremos tudo o que está ao nosso alcance, não somente para ajudar a você morrer em paz, mas também para você viver até o dia da morte”. Nasce uma sabedoria a partir da reflexão, da aceitação e da assimilação do cuidado à vida humana no adeus final. Entre dois limites opostos, de um lado a convicção profunda de não abreviar intencionalmente a vida (eutanásia), de outro a visão de não prolongar o sofrimento e adiar a morte (distanásia), entre o não abreviar e o não prolongar está o amar… É um desafio difícil aprender a amar o paciente terminal sem exigir retorno, com a gratuidade com que se ama um bebê, num contexto social em que tudo é medido pelo mérito! O sofrimento humano somente é intolerável se ninguém cuida. Como fomos cuidados para nascer, precisamos também ser cuidados para morrer. Não podemos esquecer que a chave para o bem morrer está no bem viver.

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Referências bibliográficas Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica — Resolução CFM n. 1246/88. Diário Oficial da União, 26 jan. 1988, seção 1, p. 1574-1577. ———. Código de Ética Médica — Resolução CFM n. 1931/2009. Diário Oficial da União, 24 set. 2009, seção 1, p. 90-91. França, G. V. de. Medicina legal. 2ª ed. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1987. ———. Comentários ao Código de Ética Médica. Rio de Janeiro, Guanabara Koo­ gan, 1994. Jonas, Hans. The Burden and Blessing of Mortality. In: Kass, Leon (ed.). Being Human: Core Readings in the Humanities. Readings from the President’s Council of Bioethics. Washington (D.C.), 2004, p. 413-425. Pessini, L. Distanásia: até quando prolongar a vida. São Paulo, Ed. Centro Uni­ versitário São Camilo/Loyola, 2002. ———. Eutanásia: por que prolongar a vida? São Paulo, Ed. Centro Universitário São Camilo/Loyola, 2004. ———. Como lidar com o paciente terminal? 5ª ed., Editora Santuário, Aparecida, 2004. Pessini, Leo, Bertachini, Luciana (org.). Humanização e cuidados paliativos. 3ª ed. Ed. Centro Universitário São Camilo/Loyola, 2008. Pessini, Leo, Bertachini, Luciana. O que entender por cuidados paliativos? São Paulo, Paulus, 2006. Pessini, Leo, Barchifontaine, Christian de Paul (org.). Bioética & longevidade humana. São Paulo, Loyola/Ed. Centro Universitário São Camilo, 2006.

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Aprender dos erros em serviços de saúde: uma aproximação bioética Márcio Fabri dos Anjos Programa de Pós-graduação em Bioética, Centro Universitário São Camilo, São Paulo

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prender dos erros em serviços de saúde é uma necessidade e ao mesmo tempo uma tarefa extremamente delicada, pois, à diferença de em vários outros campos em que o erro é mais facilmente reversível, o erro em saúde tem uma incidência variável em gravidade, mas sempre adversa para as pessoas de quem se cuida. Por isso, os erros não podem ser tomados com descaso. Não errar persiste como exigência para a habilitação e para o bom desempenho profissional. Os tempos tecnológicos atuais desenvolvem grande precisão e eficiência instrumental, propiciando uma forte associação entre os seres humanos e os instrumentos no exercício dos serviços clínicos. A cultura tecnológica traz com a eficiência um grande desafio para se manter nitidamente o profissional como um ser humano. Tal desafio se mostra em conceitos de habilitação profissional que privilegiam uma formação eminentemente técnica. Aparecerá de certo modo também na intolerância diante de erros e em sua forma de tratá-los. Entretanto, o humano se desenvolve historicamente, cercado de circunstâncias; se faz conduzir pela razão, mas também por emoções e desejos; fortalece-se em atitudes e escolhas; e, sobretudo, se alimenta de relacionamentos. Por isso, a habilitação humana para os serviços de saúde exige ir além dos aspectos técnicos, para ser capaz de preparar o ser humano em sua densa e complexa realidade. A necessidade constante de sempre aprender é uma das características do humano. Sua habilitação pode estar em algum momento fundamentada, ser amadurecida pela experiência, mas nunca estará concluída. Os códigos das diferentes classes de profissionais da saúde procuram in-

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cluir em suas diretrizes certas exigências quanto à periódica atualização profissional. Isto em geral se realiza formalmente pela frequência a cursos e eventos, além de pela condução de estudos e pesquisas. O aproveitamento dos erros como espaço de aprendizado, em tal contexto, se torna um desafio particular por diferentes razões, a começar pela compreensão do lugar do erro na condição humana. Tomá-lo como inadmissível é talvez um pressuposto básico para diferentes barreiras e condicionamentos no modo de se portar diante dos erros. Afastam-se as possibilidades de extrair deles um aprendizado explícito, em especial em aprendizados coletivos. Enquanto as instituições se preocuparem apenas com a punição dos erros, tanto mais impulsionados os indivíduos e seus grupos corporativos a aprender recursos e manhas para ocultá-los ou deixá-los na penumbra. Este quadro desenha o ensejo do presente estudo, desenvolvido como um ensaio conceitual que visa a subsidiar iniciativas concretas. O aprendizado dos erros em serviços clínicos de saúde tem uma história explícita recente, com raízes na década de 1970 e um fortalecimento a partir dos anos 1990 até nossos dias (Rosa, Perini 2003). Existem hoje interessantes revisões bibliográficas específicas (Coli 2009; Harada et al. 2006) e obras que buscam uma sistematização pedagógica do tema (La Torre 2007), às quais remetemos o leitor interessado em explicitar seus dados. Procurando somar quanto possível à bibliografia existente, nos atemos a uma seleção de enfoques conceituais, com uma breve referência a uma iniciativa concreta de organização institucional em vista do aprendizado diante de erros em área clínica. O enfoque bioético mencionado no título deste ensaio se dá particularmente pela consideração de diferentes aspectos implicados no aprendizado dos erros, o que representa um olhar interdisciplinar bastante ressaltado pela bioética.

O que são “erros”? Algumas conceituações básicas

Pela complexidade do humano no ser e no agir, não é simples definir o erro. Paradoxalmente, sua própria definição é passível de erro. Estamos diante de uma experiência humana de inúmeras faces. Entre suas possibilidades de aproximação, pode-se começar por situar o erro dentro do processo de conhecimento e suas correlativas escolhas no agir. Em uma conceituação geral se diria que o erro é um “juízo ou julgamento em desacordo com a realidade observada” (Houaiss 2001), ou “um julgamento objetivamente falso que é subjetivamente assumido como certo” (Walser 1996). Dois elementos aqui se destacam: a importância do sujeito agente e de sua relação com a realidade observada. Tanto o julgamento como a observação da

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Aprender dos erros em serviços de saúde

realidade dada como objetiva resultam de ação por parte de sujeitos concretos. O sujeito se entende aqui como o agente responsável na ação. Com frequência se confunde sujeito com indivíduo. No sentido aqui assumido, o sujeito moral pode ser individual, comunitário (equipe) ou institucional. O erro pode se dar no processo cognitivo, mas dificilmente ficará ali restrito, pois o conhecimento se desdobra em escolhas (voluntárias) para o agir, inclusive para buscar novos conhecimentos. O erro se dá sempre de forma histórica e situada, pois o ser humano é histórico e evolutivo por condição. Os sujeitos têm sempre consciência do erro? A certeza dos conhecimentos, tanto individuais como coletivos, evolui em meio a limites e circunstâncias históricos, e por isso a consciência que os sujeitos têm do erro pode se dar no ato, mas pode ser também tardia. Em outros termos, pode-se com o tempo eventualmente descobrir que dados assumidos como certos estavam errados, e vice-versa. Foi assim com a superação do geocentrismo, quando a coletividade popular e científica tomava como certo que o universo girava ao redor da terra. Em conhecimentos e práticas na área de saúde, guardadas as proporções, não faltariam exemplos dessa transformação. Os erros humanos são sempre voluntários? Pelo senso comum se dirá que não, pois há inúmeros modos de “errar sem querer”. Muitos erros decorrem das limitações do humano, isto é, de uma falta de liberdade nos processos de conhecimento, de escolhas e de atuações. Mas decorrem de limitações (falta de liberdade) ou de escolhas feitas antes do ato de erro? É uma boa questão, pois de fato há muitos elementos embutidos nas causas do erro; alguns são voluntários, outros não. Dentro desse quadro complexo, não é simples identificar o grau de liberdade de escolha com que se dão os erros, mesmo que a consciência psicológica do próprio sujeito ou de seu grupo muitas vezes insista em culpa. Estes elementos conceituais permitem entender que o erro carrega um significado maior do que o ato em que ele se verifica. Todo erro humano representa um desafio ao crescimento, à melhoria. Julgar os graus de voluntariedade e liberdade nos erros tendo em vista descobrir culpa é, assim, menos importante do que trazer para a esfera da responsabilidade a superação dos erros em suas diferentes representações. Além da reparação de seus danos, a grande tarefa é aprender deles, o que significa sondar suas causas e projetar novos caminhos.

Quem é quem nos erros

Os erros em geral são percebidos por seus efeitos adversos. A avaliação ética do erro toma este fato como ponto de partida principalmente porque

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tais resultados adversos nos serviços de saúde incidem sobre a saúde e a vida das pessoas. Mas é indispensável ir além dos efeitos do erro, procurando as causas de onde os erros decorrem e a responsabilidade humana que os envolve. Sem isto, os erros passam a ser tratados de forma inadequada, abrindo caminhos para a ocultação, a conivência ou a punição. Alguns termos, como “equívoco” e “engano”, servem de sinônimos atenuados para o erro. Aliviam sua carga de responsabilidade e diluem a necessidade de buscar outras causas. Esta forma relacional e amiga de se dizer serve em geral para o bom relacionamento, mas não poderia levar à desistência de análises mais aprofundadas. Na análise dos erros são necessários obviamente critérios e referências para a contraposição entre o certo e o errado e para a busca das causas do erro nos procedimentos. Para isto pode servir a consideração de quem são as pessoas e seu ambiente mais próximo na ocorrência dos erros. 1. A pessoa doente — O critério que fundamenta a exigência de analisar as raízes dos erros é a vida das pessoas em sua qualidade e sua dignidade, postas em risco. Neste sentido, em serviços de saúde, a pessoa doente é um centro de referência constante para se avaliar eticamente os erros. Por este critério pode-se distinguir os erros primeiramente por sua gravidade, isto é, conforme seus efeitos adversos afetam mais ou menos as pessoas. E consequentemente a maior gravidade significa também maior exigência de equacionamento do erro. Mas ao mesmo tempo o critério de pessoa doente se desdobra na prática, fazendo do serviço de saúde um encontro entre pessoas, o profissional e o doente. A pessoa doente persiste sempre como sujeito na doença; ela é quem deve ser ajudada a se entender em sua doença, a encontrar formas de superá-la ou de amenizar seus impactos (Bois 2008; Bois, Josso, Humpich 2008). Corrige tendências de priorizar as regras técnicas de procedimento, quase com o esquecimento de que as pessoas não são máquinas que se ajustam, mas sujeitos com os quais se interage. Sujeitos concretos carregam certamente pontos em comum pelos quais nos reconhecemos como semelhantes, mas se revestem também de características particulares que integram sua subjetividade. Nos serviços de saúde é indispensável agir com a percepção do conjunto de fatores que integram a ação, entre os quais é fundamental o bem do doente situado em suas condições subjetivas. A filosofia grega chamava isso de prudência. 2. O profissional e suas condições — Embora fundamentais, as necessidades de saúde e bem-estar do doente se compõem com as necessidades humanas e técnicas do profissional. É fácil notar que, se o lado subjetivo do profissional não é considerado, ele fica sobrecarregado e se torna forte candidato a ser o próximo doente. A habilitação do profissional é um lugar-

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comum quando se pergunta sobre condições para o exercício de sua atividade. Neste lugar-comum se privilegia a inegável importância de seu preparo técnico e científico mediante cursos, atualizações, experiência profissional. As deficiências em tal preparação chegam a assustar, como revela o alto índice de reprovação (56%) verificado no exame do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp 2009), que avalia anualmente, desde 2005, o desempenho dos estudantes do sexto ano de medicina das escolas médicas do estado. No conjunto desta habilitação parece indispensável ressaltar a subjetividade do profissional, isto é, suas características constituídas por dons e por limitações pessoais. Esta é a condição subjetiva a partir da qual se desenvolve e se situa a habilitação técnica e científica. Levando isto em conta, o preparo do profissional se abre, entre outras coisas, para subsidiar o autoconhecimento e a educação de sua personalidade, para a capacitação ao relacionamento com os doentes e com sua própria equipe de trabalho. O profissional não é um aparelho que se ajusta para um serviço mecânico, mas um sujeito que se educa. A partir de sua subjetividade, ele é sempre um sujeito que age e reage às informações que recebe e às situações em que se insere. Por isso, os resultados das habilitações são também subje­ tivamente diferenciados. Desta forma, na avaliação de um erro podem aparecer limitações pessoais quanto a habilidades técnicas (por exemplo, no manuseio de algum instrumento) ou quanto à interação com as situações ou o ambiente (por exemplo, menor suportabilidade ao estresse). Isto leva a analisar o erro do profissional incluindo a pergunta sobre a correta seleção da pessoa para o serviço e sobre as condições de seu ambiente de ação. 3. O ambiente — É praticamente impossível avaliar eticamente um erro em serviços de saúde fora do contexto ou das situações em que ele se dá, pois as situações mostram os diferentes fatores e causas que interferem no erro. Chamemos a isto de ambiente do erro. Uma observação muito citada sobre o erro humano, de James Reasons (1990; 2000), distingue pessoa e sistema (“the person approach and the system approach”) na gestão do erro. Esta oportuna distinção está suposta aqui, mas ao usar o conceito de ambiente queremos ressaltar o entrelaçamento que se dá entre pessoa e sistema, entre indivíduo, equipe e instituição. Para isto vamos considerar três aspectos: relacional; instrumental; institucional. 3.1. Ambiente relacional — O lado relacional do ambiente deve começar por uma consciência crítica do contexto social em que se situam os serviços de saúde. Sem isto se encobririam os erros nos serviços de saúde que ocorrem na esfera pública antes de chegar aos hospitais. Como também não se percebem as condições adversas que o ethos social pode estar criando para os serviços de saúde, para a mentalidade dos próprios profissionais

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e para as opções da estrutura institucional. Um exemplo disso se manifesta no estresse dos profissionais da saúde familiar, em contexto brasileiro, ao se verem exigidos por serviços que deveriam ser compartilhados por “outros atores envolvidos no processo: os gestores e os usuários” (Bagatini, Selli, Rivero 2006, p. 213). Na realidade, todos são desafiados a interagir com seus ambientes sociais concretos. Considerado este aspecto mais amplo, o ambiente relacional da equipe de profissionais se mostra como um fator básico para o bom ou o mau desempenho nos serviços de saúde. De fato, o bem-estar afetivo dos profissionais tem um reflexo direto na saúde do próprio profissional e traz consequências para todos os que dependem de seus serviços (Gouveia et al. 2009, p. 277). O ambiente frio ou tenso na equipe pode se reproduzir no estresse e no mau humor do profissional, e no consequente mau atendimento. Mas, ainda mais do que disso, o ambiente relacional faz pensar na educação para o trabalho em equipe, para as relações de poder e para uma partilha de motivações comuns na prestação dos serviços. Assim, os erros de uma equipe podem estar plantados bem antes de ela se formar. O ambiente relacional de uma equipe é fundamental para a solução dos erros e para o aprendizado deles. 3.2. Ambiente técnico — Entende-se por ambiente técnico todo o conjunto de instrumentos e infraestruturas que garantam o bom desempenho profissional nos serviços. Eles podem significar limites que tornam os serviços de menor qualidade ou que podem se prestar a erros, falhas técni­ cas. Instrumentos e infraestruturas obviamente só ganham razão de ser a partir das pessoas que os utilizam. As instituições são responsáveis por sua implementação, enquanto os profissionais e sua equipe são desafiados a saber lidar com os instrumentos e recursos disponíveis. Por isso, as falhas técnicas podem às vezes não ser defeito do instrumento, mas falha humana em seu manejo. Por outro lado, os profissionais e sua equipe são desafiados a lidar com os limites dos recursos, para que estes não se transformem em erros. Pensando em lugares de grandes carências, é preciso reconhecer que alguns profissionais e equipes fazem verdadeiros milagres em meio à precariedade de recursos. A qualidade do serviço pode não ser excelente, mas eles não erram dentro dos limites em que agem. 3.3. Ambiente institucional — A implementação de instrumentos e a organização geral dos serviços dependem, como se sabe, de instituições que lhes dão suporte. Há duas bases principais que compõem o ambiente institucional do ponto de vista dos erros e aprendizados: a implementação de instrumentos, infraestruturas e fluxos operacionais; e a organização humana, em que se inserem a gestão de pessoas e as diretrizes para a ação profissional. Há certamente uma diferença entre instituições públicas e privadas na construção deste ambiente.

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Em qualquer hipótese, os erros, mesmo que à primeira vista apareçam como individuais, devem ser sempre revisados também pelo viés de causas e implicações institucionais. A insuficiência de infraestruturas é um conhecido fato que pode não só inviabilizar os serviços, mas também propiciar erros frequentes. A instituição é em grande parte responsável pelo ambiente relacional dos profissionais e equipes, principalmente mediante as condições operacionais para os serviços e as diretrizes com que se regram os procedimentos. Para aprender dos erros é muito importante não apenas um apoio institucional aos profissionais, mas uma abertura da própria instituição para o reconhecimento de suas limitações e mesmo de seus erros institucionais.

Atitudes básicas para o aprendizado dos erros

O aprendizado dos erros supõe algumas condições particulares por parte das pessoas e instituições relacionadas com o erro. Com estas considerações, embora breves, já se pode começar a desenhar práticas concretas no aprendizado dos erros. 1. Reconhecer o erro — Um ensinamento imemorial atribuído a Con­ fúcio diz: “Se sabes que cometeste um erro e não o corriges, então sim cometes de fato um erro”. A tradição cristã, em outros termos, diz: “Errar é humano, mas permanecer no erro é diabólico”. O reconhecimento do erro é a primeira condição de sua superação e de seu aprendizado. Convém lembrar dois tipos entrelaçados de reconhecimento. Há um reconhecimento cognitivo que se dá na identificação de limites teóricos e/ou técnicos. Ele ganha evidência quando se percebe que os efeitos de uma ação se mostram contrários aos esperados pelos padrões teóricos ou dispositivos técnicos. Já mencionamos acima como a percepção do erro nesse âmbito pode acontecer tardiamente, com a evolução das ciências. Mas aqui estamos falando de percepções mais imediatas, em que os erros trazem maior impacto: há uma percepção de que “a máquina está falhando” ou de que “aquela regra de procedimento não está dando certo”. Outro será o reconhecimento ético ou moral, enquanto por ele se percebem os envolvimentos das pessoas nas causas dos erros. Seguindo o princípio socrático “conhece-te a ti mesmo” (nosce te ipsum), o reconhecimento ético depende de se conhecerem os modos e estruturas pessoais de sentir, de reagir ao ambiente, de se conduzir; descobrem-se aqui também as barreiras pessoais para reconhecer as falhas. Mas o reconhecimento ético do erro seria incompleto sem a abertura para o outro como critério na avaliação do erro. Embora por caminhos distintos, Kant e Lévinas ressaltam modernamente este critério da alteridade que, de longa data, já é uma herança da

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humanidade. Está presente na Bíblia e pode ser exemplificado neste dito atribuído a Confúcio: “Se te espelhas no cobre [o espelho da época] podes ver se as roupas te caem bem. Se tomas o espelho da história, podes ver a ascensão e a queda das dinastias. Se te espelhas nos olhos de outro ser humano, podes reconhecer os teus tropeços e acertos”. Além desta forma altruísta de reconhecimento, subsidiada de diferentes maneiras pela filosofia e pelas religiões, pode-se falar também de uma motivação pragmática para o reconhecimento do erro. De fato, reconhecer o erro é um passo para melhorar o próprio desempenho e a qualidade profissional. E ainda se poderia lembrar o método de provocar em pesquisas o erro exatamente para dele se aprender, o que obviamente se aplica em pesquisas e não diretamente nos cuidados de saúde (Torre 2007). 2. Superar a simples culpabilização — O reconhecimento do erro humano seria fácil se não encontrasse um enorme obstáculo em sua culpabilização rápida e radical. É bastante conhecida a tendência a associar imediatamente o erro a quem o cometeu: “de quem é a culpa?” (Rosa, Perini 2003). E parte-se daí para tentativas de enquadrar o culpado em formas de penalização. No fundo se entende que pela punição se repara o erro e se confere uma lição de moral, um “castigo exemplar”. Com isto se dá por encerrado o “caso do erro”. Culpa e punição estão implicadas em uma trama psíquica amplamente estudada em psicologia, o que não cabe desdobrar aqui. Entretanto, para as instituições a atribuição de culpas individuais ou bem localizadas é solução cômoda, pois exime o sistema de questionamentos institucionais (Padilha 2004). É ao mesmo tempo uma solução enganosa, não só porque não representa solução para o erro, mas também porque induz à sua ocultação. O erro provoca medo e gera uma consequente atitude de defesa, que leva a ocultá-lo e negá-lo sempre que possível. Em uma revisão bibliográfica, Rita Coli (2009, p. 69) verifica na área da saúde grande convergência de autores “em afirmar que o medo de medidas administrativas e sentimentos de culpa fazem […] que o envolvido não relate o erro”. Estudos chegaram a apontar que apenas 25% dos erros são relatados (Hackel, apud Carvalho, Cassiani 2002, p. 524). Este obstáculo é grande, pois constitui uma verdadeira “cultura da culpa” (Schuldkultur) que precisa ser revertida (Friederich 2009, p. 8). Para isto é preciso passar do “quem” para o “porquê” ou causas do erro. Não se foge com isto da responsabilidade quanto ao erro, mas se evita uma apressada atribuição de responsabilidade, e se abre o enfrentamento do erro para um aprendizado e uma reconstrução da ação. Em outras palavras, é preciso substituir a culpa pela responsabilidade, ampliando esta com a leitura das causas e o estudo de projeções para superar o erro. Neste

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sentido, o quem de um erro nunca estará sozinho diante da falha, embora as formas de ação responsável dos sujeitos sejam diferenciadas. Mas isto supõe superar a barreira da culpa, para a comunicação do erro. 3. Administrar os próprios sentimentos e superar a vergonha — O medo de profissionais da saúde de relatar o erro vem estreitamente relacionado com a vergonha pela falha cometida, segundo consta na bibliografia já referida. É interessante dar uma atenção diferenciada à vergonha, embora ela seja uma das razões do medo: o medo de ver a autoimagem quebrada, de ter abalado o prestígio de que se goza, de perder os sonhos de sucesso que a boa imagem promete. Os sentimentos que acompanham o profissional na ocorrência de seu erro são variados; incluem preocupação pelo bem do doente, às vezes também pânico e insegurança, além do medo e da vergonha (Santos et al. 2007, p. 483). O que queremos ressaltar é a importância de trabalhar eticamente os sentimentos pessoais para que os erros possam ser assumidos com uma responsabilidade construtiva. A “cultura da culpa” tem uma parceira na “cultura do faz de conta”, em que o desfile das vaidades é bem conhecido em nossas sociedades. Aprender dos erros exige uma atitude ética que implica examinar criticamente os próprios sentimentos diante do erro, assumindo um posicionamento consciente. 4. Revertendo a cultura da punição e da vergonha — A superação das barreiras para o reconhecimento do erro é algo que muitas vezes excede as capacidades individuais, devido à pressão cultural. E mesmo que isto pudesse ser feito individualmente o aprendizado do erro tem uma dimensão social implicada nos próprios serviços de saúde. Dessa forma, é importante trabalhar por um clima favorável para que os erros sejam assumidos comunitariamente em um sentido de aprendizado. Quatro elementos podem constituir linhas de força neste sentido. O primeiro reside no fato de ser humano errar. A consciência teórica e emocional de que, por sua condição, o ser humano é falível certamente deve ser uma referência constante, embora não a única, no enfrentamento do erro. O ciclo tecnocientífico em que vivemos vem transferindo para os humanos a exigência que se faz sobre o funcionamento das máquinas, em que o rótulo do mau funcionamento é uma desclassificação ontológica, isto é, rebaixa o próprio sujeito humano. Hanna Arendt lembra, em outro contexto, duas faculdades indispensáveis à condição humana que podem ser aproveitadas para a reflexão sobre o enfrentamento dos erros: a “faculdade de perdoar” e a de “prometer e cumprir promessas”. Sugere com isso que, se não tivéssemos força para o perdão, “nossa capacidade de agir ficaria, por assim dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre as vítimas de suas consequências, à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica

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para desfazer o feitiço” (Arendt 1981, p. 250). Nas faculdades de per­doar, de prometer e cumprir reside o poder de transformação e crescimento humano. Dizer, portanto, que é humano errar não representa um conformismo com o erro, mas se afirma como um natural ponto de partida para a construção de seu ser e sua história. A vergonha não deveria ocorrer propriamente pelo erro cometido, mas pelo descompromisso com a construção do humano. Tal compromisso se mostra exatamente quando se enfrenta o erro de forma construtiva. A psicologia diz como pode ser longa a elaboração pessoal destas formas de ver e de sentir, mas um “clima” favorável, buscado por um grupo nesta direção, sem dúvida irá favorecer muito. Um segundo aspecto consiste no desafio pedagógico implicado nos erros. Não é necessário errar para aprender, mas o erro é uma provocação ao aprendizado. Os erros revelam limites cuja percepção representa um dado prospectivo para a ação. Eles podem ser como espelhos do reverso, isto é, abrir a comparação entre o errado e o certo. O ensino formal reconhece hoje a importância de aproveitar essa força pedagógica do erro. Desloca-se do medo de errar para o ensaio de aprender o certo. Como frase de efeito se chegaria a esta chamada: “Já errou hoje? Que pena, ainda não aprendeu nada!” (Friederich 2009, p. 9). Isto obviamente não se aplica em serviços de saúde, onde o erro tem implicações adversas para terceiros. Mas uma vez cometido a análise do erro será proveitosa. Segundo anotamos acima, os diferentes sujeitos (individuais, comunitários, institucionais) podem ver nos erros suas limitações específicas, abrindo chances para uma ação mais consciente e transformadora. Um terceiro elemento se encontra no fato de que ao reconhecer os erros e tratá-los criticamente mostra-se responsabilidade e gera-se consequentemente confiabilidade. Matthias Schrappe (2009), presidente de uma associação alemã para a segurança dos pacientes, afirma que nos espaços adequados “a prontidão para falar abertamente sobre os próprios erros é o pontapé inicial para o estabelecimento de uma verdadeira cultura da segurança em assuntos de saúde”. A publicidade de um erro obviamente não se faz sem critérios que respeitem o bem das pessoas beneficiárias do serviço. Mas isso não impede que o erro tenha espaços de uma franca comunicação para ser analisado e estudado, resguardando-se o bem das pessoas. O quarto elemento consiste em iniciativas concretas que abrem caminhos, unem esforços e rompem com a possível inércia ou o medo de dar os primeiros passos. A criação de um clima favorável resulta de um esforço comum, e se sabe como são importantes para isso as lideranças. É preciso agir com criatividade, pois seria difícil copiar modelos entre a grande variedade dos contextos. Entretanto, descreveremos abaixo uma experiência concreta que pode apontar sugestões aproveitáveis.

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Práticas de aprendizado dos erros

Depois de um percurso conceitual e teórico, vejamos alguns aspectos mais práticos. Inicialmente é importante constar que em nenhum momento se pode fazer do aprendizado dos erros uma evasão das responsabilidades éticas e legais relacionadas ao erro, pois o aprendizado busca ser exatamente um exercício de responsabilidade ética. Mas seus princípios podem, além disso, ser úteis para a humanização de dispositivos institucionais que disciplinam os casos de erro. Em instituições, especialmente em hospitais, existem comitês de ética hospitalar, comissões de bioética, comitês de ética em pesquisa. Entre suas diferentes funções e práticas próprias de funcionamento é possível que os erros já estejam sendo estudados e de algum modo transformados em aprendizado. Aqui fica, aliás, a sugestão para uma pesquisa acadêmica que pudesse recolher e sistematizar as muitas experiências positivas certamente existentes nessa área. Sem menosprezar esse amplo espaço de práticas, vamos considerar mais de perto um projeto formalizado e desenvolvido no Inselspital, um complexo hospitalar universitário em Berna, na Suíça, com mais de 35 especializações clínicas. Este projeto, intitulado “Assumir e discutir ocorrências críticas” (“Erfassen und Bearbeiten kritischer Ereignisse”), decorre de uma associação pela segurança dos pacientes (Aktionsbündnis Patientensicherheit). Em um caderno intitulado “Aprender dos erros” (“Aus Fehlern lernen”) constam as condições, resumidas por Daniel Friedrerich (2009), das quais extraímos os dados que seguem. A iniciativa, que se volta para um aprendizado comunitário dos erros consta de: • Formação de um fórum para estudo das ocorrências, com membro representante de cada clínica. • O fórum recebe e conserva anônimas as notificações sobre erros ocorridos. • As ocorrências devem ser notificadas e são analisadas pelo fórum, buscando-se as providências adequadas à superação do erro. • Comunicam-se as ocorrências e os resultados do estudo para todas as equipes das diferentes clínicas. • Incidentes graves, como os relacionados com morte, ficam explicitamente excluídos da regra do anonimato.

Alguns comentários podem enriquecer a compreensão desse quadro. — Na experiência dada, o fórum é constituído por representantes de cada uma das clínicas, que são cerca de 35. À primeira vista este grupo seria gran-

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de para garantir um desempenho ágil, mas visa ao envolvimento de todo o conjunto clínico, com conclusões bem direcionadas. Em nossa percepção de bioética, como se pode depreender do que acima se expôs, a preferência seria por um grupo interdisciplinar que pudesse incorporar percepções de fora do ambiente clínico. — O anonimato da notificação de ocorrências obviamente não significa esvaziar as eventuais responsabilidades legais referentes aos casos, as quais são prévias à sua comunicação ao fórum. Este se ocupa do estudo das ocorrências e das providências para que os erros não se repitam. Na experiência descrita, em curso desde março de 2004, o sistema é facilitado pela possibilidade de notificação eletrônica sem identificação do remetente, visando a reduzir ao mínimo as barreiras para a notificação do erro.

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— O estudo sobre um erro com suas conclusões e providências resultantes tem uma finalidade primeiramente didática, isto é, aprender sobre os erros. Daí a importância de sua comunicação a todas as equipes. As providências indicadas teriam um tom disciplinar especial que, entretanto, escapam a um controle sobre sua adoção, uma vez que tal controle extrapola os objetivos do fórum. O aproveitamento do estudo e das providências resultantes depende assim do esforço de comunicação e interação dentro de cada equipe, para manter o aprendizado sobre os erros como uma atitude constante, que tenha resultados práticos.

Esta experiência naturalmente se dá no contexto de um grande complexo hospitalar e universitário. Talvez entre suas vantagens esteja a possibilidade de superar a possível fragmentação dos comitês de ética de cada clínica em separado, onde se perdem as percepções de outros grupos e o encontro com desafios comuns a todos. Contextos menores podem naturalmente ter uma organização mais ágil. Entretanto, para além destes aspectos organizacionais, o desafio maior é superar uma cultura da culpa e transformar a superação dos erros em análises frequentes, sob seus diferentes aspectos, tendo em vista providências e aprendizados individuais, comunitários e institucionais.

Referências bibliográficas Aktionsbündnis Patientensicherheit. . Acesso em: 20 dez. 2009. Arendt, Hanna. A condição humana. São Paulo, Edusp, 1981.

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Aprender dos erros em serviços de saúde

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Alocar e priorizar recursos escassos nos serviços de saúde: uma breve reflexão bioética Paulo Antonio de Carvalho Fortes Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo

Introdução

N

o campo da saúde, decisões têm de ser tomadas quanto à alocação e à priorização de recursos escassos no cotidiano das atividades realizadas em diferentes serviços de saúde — hospitalares, ambulatoriais ou relacionadas à atenção básica —, levando em conta valores e princípios morais, ou seja, decisões de natureza ética que afetam os indivíduos, as instituições e a coletividade. A reflexão bioética sobre o tema se orienta pelo princípio ético da justiça distributiva. Este é um princípio intersubjetivo, referente às relações do eu com os outros, abrindo a pessoa à coletividade. Relaciona-se à distribuição de bens, produtos ou serviços e/ou ao justo acesso aos recursos (Cortina, Martinez 2005; Durant 1997). Todavia, devemos lembrar que ao nos referirmos à justiça distributiva para questões voltadas à nossa vida cotidiana estamos utilizando conceitos muito recentes, pois somente a partir do século XVIII, e principalmente no século XX, se constrói o moderno conceito de justiça distributiva que demanda do Estado a intervenção nos campos social e econômico, e da sociedade a distribuição de bens ou produtos entre seus membros, principalmente os que têm maiores necessidades (Fleischacker 2006). A reflexão ética sobre a priorização de recursos no setor de saúde desenvolveu-se a partir dos anos 1970, juntamente aos diversos processos de reforma sanitária que ocorreram nos sistemas de saúde. Por reforma sanitária entende-se, segundo a formulação da Organização Panamericana de Saúde (1997), “um processo orientado a introduzir mudanças substantivas nas di-

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versas instâncias e funções do setor, com o propósito de aumentar a equidade na prestação de serviços, a eficiência na gestão e a efetividade de suas ações, para obter a satisfação das necessidades de saúde da população”. A necessidade das reformas sanitárias foi decorrente de vários fatores, entre eles a transformação epidemiológica, com a diminuição das moléstias infecciosas e parasitárias, o incremento de pessoas atingidas por doenças crônico-degenerativas e acidentes, a crescente urbanização acompanhada de migração rural em forte escala e a transição demográfica como resultante da diminuição das taxas de natalidade e aumento da expectativa de vida, com o progressivo envelhecimento da população, que vem ocorrendo mesmo em países do terceiro mundo. Também tem contribuído para ampliar a dicotomia “necessidades/recursos em saúde” a tendência à universalização do acesso aos serviços de saúde, a preocupante medicalização da sociedade, o aumento progressivo da força de trabalho no sistema e a persistência de um modelo assistencial de caráter curativo e hospitalocêntrico. Outro fator motivador da reflexão ética sobre alocação de recursos escassos se refere ao desenvolvimento tecnológico de equipamentos e procedimentos que não têm potencial de atendimento de todas as necessidades, sumamente nos períodos iniciais de incorporação aos serviços de saúde. A esse respeito, pode-se lembrar o caso — sempre citado na literatura bioética dedicada ao tema da microalocação de recursos escassos — ocorrido em Seattle nos anos 1960 em razão da introdução da hemodiálise. A demanda dos pacientes renais crônicos ultrapassava muito a capacidade operativa do instrumental disponível. Isso resultou na criação de um comitê no Swedish Hospital para que fossem estabelecidos critérios de acesso para os usuários da nova tecnologia, critérios de inclusão e exclusão de pessoas para o atendimento do instrumental tecnológico então disponível (McGough et al. 2005). É o desenvolvimento da tecnologia também, como no caso dos transplantes, que traz à tona a questão ética da priorização e da alocação de recursos escassos. Lembrando que o número de candidatos a transplantes inscritos em lista de espera cresce continuamente. Apenas no Brasil, no primeiro semestre de 2009 existiam cerca de 31.000 inscritos para transplante de rim e cerca de 4.700 para fígado. Todavia, no período foram realizados apenas 1.232 transplantes de rim e 602 de fígado (Brasil 2010). É denominada microalocação de recursos aquela referente à seleção individualizada de beneficiários de recursos disponíveis, não suficientes para o atendimento das necessidades de saúde de todas as pessoas, e em que se pode ter a identificação individual, com a personalização dos beneficiários ou dos não beneficiários.

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Alocar e priorizar recursos escassos nos serviços de saúde

Problemas bioéticos de microalocação de recursos de saúde apresentam-se: na seleção de pacientes para insuficientes vagas em hospitais, serviços de terapia intensiva ou de alta tecnologia; na escolha daqueles que deverão receber órgãos escassos para transplantes; também em situações relativas à utilização de quimioterapia, radioterapia, hemodiálise ou de no­ vas conquistas tecnocientíficas no campo da saúde. É também o recente caso da distribuição e da priorização de medicamentos e vacinas contra doen­ ças virais epidêmicas, tais como a dos vírus influenza A (H1N5 e H1N1). Cabe ressaltar que as decisões de macroalocação de recursos no setor de saúde têm repercussões diretas sobre a microalocação de recursos. Se não existe uma política pública que adéque a oferta de serviços às necessidades de atendimento de situações de emergências médicas da população, o resultante é que em um determinado serviço de pronto socorro poderão ocorrer problemas éticos na escolha de quem deverá utilizar as escassas vagas ou unidades de terapia intensiva existentes, problemas que não deveriam ocorrer caso fossem outras as políticas de saúde para o setor. Eis a questão-chave que nos é colocada: “Quais seriam os critérios éticos orientadores de uma boa e justa priorização de recursos referentes aos cui­ dados de saúde?”. Entenda-se que a priorização dos cuidados de saúde é rea­ lizada, mediante escolhas hierarquizadas entre alternativas de cuidados disponíveis, dentro dos limites de recursos do sistema, sem que haja restrições a priori orientadas por fatores ou critérios determinados (Fortes 2008). Refletindo sobre alguns dos critérios éticos para a microalocação de recursos escassos em saúde

Existem diversos critérios para a tomada de decisão de microalocação de recursos escassos no campo da saúde, envolvendo valores e princípios morais diversos que podem se completar ou se confrontar. Ressalte-se que toda tomada de decisão é de natureza ética e não se baseia em exclusividade de fatos científicos ou médicos. A objetividade tecnocientífica

Comporta avaliação de natureza técnica, baseada em análise dos candidatos aos recursos, realizada por profissionais de saúde, com fundamento em bases técnicas, objetivas, tais como: possibilidade de ação preventiva, vulnerabilidade individual à doença, gravidade, probabilidade de adoecimento e/ou de morte ou complicações, chances de sobrevivência, presença de comorbidades. Eficácia clínica, efetividade e eficiência também fazem parte desses critérios.

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Os critérios de objetividade tecnocientífica não são desprovidos de valores, não são neutros. Muitos deles têm natureza utilitarista e visam à maximização dos benefícios proporcionados pelos recursos, enquanto outros são orientados pela equidade e dão prioridade aos mais desafortunados, aos mais graves ou aos mais vulneráveis (White et al. 2009; Persad, Wertheimer, Emanuel 2009; Rawls 2003; 1997). Os critérios utilitaristas se orientam por proporcionar o “maior bemestar para o maior número possível de pessoas”, ou seja, a maximização do bem-estar. Quando são defrontadas duas ou mais opções, deve-se avaliar cada uma delas e escolher aquela que resulte em maiores benefícios e com a qual possam ser eliminados, evitados ou minimizados o dano, o sofrimento, a dor, ou seja, tudo o que for considerado em oposição ao “bem-estar”, à “felicidade” do maior número de pessoas envolvidas (Mill 2000). Ressalte-se que os critérios de efetividade, eficiência e eficácia clínica têm forte veio utilitarista, pois tendem ao melhor aproveitamento dos recursos (Lemos 2009). Já a equidade em saúde é entendida como aceitando a existência de necessidades pessoais diferenciadas, devendo proporcionar a cada pessoa a satisfação de suas necessidades. Todavia, nas últimas décadas do século XX popularizou-se o pensamento exposto por John Rawls (1997) da justiça enquanto equidade, que defende ser justa a ação que tenha consequências desiguais para os diversos envolvidos apenas quando resultam em benefícios compensatórios para cada um, e particularmente para os membros “menos favorecidos”, “mais vulneráveis”, “em pior estado de saúde”. No caso recente da influenza pandêmica (H1N1) a decisão tomada pela autoridade sanitária brasileira foi priorizar, nas suspeitas ou confirmações diagnósticas da doença, as pessoas que tivessem maior possibilidade de complicações ou risco de morte, como crianças menores de 2 anos e idosos, assim como os portadores de doenças crônicas pulmonar, cardiovascular, renal, hepática, hematológica, neurológica, neuromuscular, metabólica (inclusive obesidade: índice de massa corporal [IMC] maior que 35], e diabetes melito), assim como imunodeprimidos (aids; transplantados e tra­tamento crônico com imunossupressores). Logo, pode-se aventar que foram tomadas decisões de alocação fundamentadas em critérios objetivos, orientadas pela noção da equidade, favorecendo pessoas mais vulneráveis, pois mais de 50% dos óbitos verificados em 2009 tinham uma ou mais comorbidades (Brasil 2010). Também como exemplo de orientação de escolhas fundadas em critérios objetivos pode-se lembrar que no atual momento brasileiro, segundo as normas da portaria ministerial 1160, de 29 de maio de 2006, presidem a alocação de fígado para transplantes os critérios que avaliam a gravidade da doença, tais como o MELD (Model for End-stage Liver Disease) para adultos e o

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PELD (Pediatric End-stage Liver Disease) para crianças, assim como a histocompatibilidade imunológica (HLA – human leukocyte antigen system), o tipo sanguíneo, a compatibilidade anatômica por faixa etária. A emergência também é considerada por muitos como uma das variáveis objetivas na escolha dos beneficiários a limitados recursos, pois se deseja impedir a morte de pessoa que apresenta uma iminente necessidade do recurso. É um dos critérios aparentemente mais confortáveis para a utilização dos profissionais de saúde. Todavia, cabe cautela ao se utilizar esse critério como único e exclusivo se utilizado para priorizar pessoas que têm baixa probabilidade de vida ou que certamente irão falecer, ou para quem o recurso não seja eficaz. A esse respeito, autores como Rameniux (1996), Beauchamp e Childress (2002) e Lemos (2009) defendem que seja válida a perspectiva de sucesso de um procedimento, pois utilizar um recurso escasso sem obter uma razoável chance de benefício resultaria em um desperdício injusto. As filas ou listas de espera

Para distribuição de leitos hospitalares em terapias intensivas e casos de transplantes de órgãos, um dos critérios sugeridos é o da fila ou lista de es­ pera, first come, first served. O critério é baseado na noção da igualdade entre as pessoas e evitaria a descontinuidade de tratamento em paciente que já estivesse hospitalizado, por exemplo, retirando o apoio respiratório de ventiladores ou outros equipamentos escassos. Foi o critério no país com a lei federal 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que regulamentou a doação de órgãos e a realização de transplantes em nosso país, sob o princípio das “listas de espera”, oferecendo os órgãos disponíveis às primeiras pessoas que estejam inscritas nas listas oficiais de receptores, ou seja, por ordem de chegada. Apesar de sua tendência igualitária, considerando valiosas todas as pessoas, há críticas de que o critério possa prejudicar os mais pobres, as minorias, aqueles que têm menos acesso à informação, os que estão em piores condições econômicas e de saúde e os que não podem se deslocar de maneira mais rápida, por exemplo, e chegam “mais tarde” à fila. Outros sustentam que quando utilizado isoladamente o critério não abarcaria as necessidades clínicas mais urgentes (McGough et al. 2005). A loteria ética

O critério de utilização da aleatoriedade na escolha dos indivíduos que serão beneficiários dos escassos recursos é fundado na noção de que as vidas humanas são igualmente valiosas e as pessoas devem ter iguais oportunidades e

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os mesmos direitos de acesso à assistência à saúde. Sua utilização evita comparações entre vidas humanas (Persad, Wertheimer, Emanuel 2009). A reflexão sobre seu uso em microalocação de recursos vem do século passado, desencadeada pelo tribunal norte-americano responsável pelo julgamento do marinheiro Holmes. Em 1841, o navio estadunidense William Brown bateu em um iceberg e começou a afundar. A tripulação e metade dos passageiros deixaram o navio em dois botes salva-vidas. Após 24 horas no mar, um dos botes ameaçava soçobrar, levando a tripulação a decidir jogar ao mar parcela dos passageiros com o intuito de aliviar o peso na pequena embarcação. Foram inicialmente preservados todas as mulheres e todos os homens casados. Outros foram atirados ao mar. Horas depois os sobreviventes foram resgatados por outros navios que se encontravam na área. Retornando à Filadélfia, a tripulação, logo após o desembarque, desa­ pareceu, e a polícia conseguiu prender apenas um membro dela, o marinheiro Holmes. A decisão judicial do caso United States vs Holmes ficou marcada historicamente e constituiu-se em marco de referência jurisprudencial sobre a matéria, ao manifestar que em situação de igualdade entre os sujeitos a conduta correta deveria utilizar o critério da aleatoriedade, do sorteio (Ramsey 1975). Um caso vivenciado por uma dentista pode servir de exemplo de utilização da loteria ética. A profissional foi contratada para atuar no Programa de Saúde da Família em uma unidade básica de saúde de um dos municípios da região metropolitana de São Paulo. Quando lá chegou, no primeiro dia de trabalho, encontrou mais de quarenta adultos candidatando-se a seus serviços naquele dia. Certamente, as horas de trabalho para as quais ela havia sido contratada não permitiriam que atendesse todos naquele dia. Perguntou aos funcionários da instituição se haviam distribuído senhas ou feito anotações sobre ordem de chegada (first come, first served). Infelizmente, isso não havia sido realizado, em virtude da falta de organização. Propôs então aos usuários que estabelecessem critérios para o atendimento naquele dia, sendo os demais agendados para os posteriores. Iniciou perguntando se havia pessoas com sangramento dentário ou dor intensa no momento (objetividade tecnocientífica). Foram selecionados sete pacientes para o atendimento, e os demais entenderam que o critério era justo. Mas ainda seria possível atender mais uns sete ou oito. Propôs então que realizassem um sorteio, proposta que foi bem aceita pelos usuários, pois demonstrava a manutenção do princípio da igualdade, base da “loteria ética”. Como ponto vantajoso, afirma-se que a “loteria ética” não afetaria a confiança estabelecida entre os profissionais de saúde e sua clientela, e eliminaria a necessidade de comitês para a tomada de decisão de escolher. Contudo, como desvantagem, aponta-se que não incluiria outros fatores de relevância na tomada de decisão e poderia trazer angústias para pessoas por não te-

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rem certeza de que em algum momento seriam beneficiadas pelos recursos, como acontece com as filas ou listas de espera (Persad, Wertheimer, Emanuel 2009). A razão instrumental

O critério implica favorecer algumas pessoas conforme o estabelecimento de prioridades segundo uma meta identificada, que beneficie não o indivíduo em si mesmo, mas a coletividade. Tem origem em condições de guerra e catástrofes. Esse critério também é denominado por alguns autores dedicados ao estudo da temática “efeito multiplicador”. É de natureza utilitarista e acata a máxima do “maior benefício para o maior número de pessoas envolvidas”, com o objetivo salvar o maior número de pessoas (White et al. 2009; Emanuel, Wertheimer 2006). McGough e seus colegas (2005) lembram-nos que durante a Segunda Guerra Mundial desenvolveu-se a penicilina, antibiótico efetivo para ampla gama de infecções bacterianas naquele momento. Contudo, como os estoques do medicamento não eram suficientes para a cobertura de todas as necessidades, o governo norte-americano decidiu que os militares seriam priorizados em relação às necessidades dos civis, para que pudessem retornar às atividades militares. Por esse motivo, foi priorizado o atendimento de militares contaminados com gonorreia, pois a bactéria naquele momento apresentava alta sensibilidade à penicilina, que superava as sulfas. Também em relação às necessidades cirúrgicas no campo de batalha primeiramente deviam ser cuidados os pacientes menos graves, para que pudessem rapidamente aumentar o poder de luta. Em seguida, a prioridade deveria ser dada aos mais seriamente comprometidos, que necessitariam de imediata ressuscitação ou cirurgia, e finalmente aos que eram julgados sem condições de sobrevivência. No caso recente da influenza pandêmica (H1N1) as autoridades norte-americanas decidiram, seguindo o critério de razão instrumental, ainda no segundo semestre de 2009, que seriam priorizados para receber vacinas, cujo estoque não comportava o atendimento de todos estadunidenses, os profissionais de saúde e os trabalhadores de laboratórios de vacinas e indústria farmacêutica, em uma visão eminentemente utilitarista, maximizadora para beneficiar a coletividade, decisão respaldada por vários estudiosos do tema, como White e seus colegas (2009). Mérito e contribuição social

A noção de mérito implica que as pessoas são merecedoras em virtude de traços excelentes de caráter ou de ações virtuosas praticadas no passado ou de possíveis contribuições no futuro (White et al. 2009; Fleischacker 2006).

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Em nosso tempo, para a aceitação da validade ética do critério de merecimento social, afirma Macintyre (1991), seria necessário que se tivesse uma única visão orientadora da avaliação das contribuições pessoais para o projeto da sociedade e para a classificação das recompensas, o que se torna difícil em uma sociedade caracterizada pelo pluralismo moral. Por seu viés utilitarista, esse critério pode ser desfavorável a grupos sociais como o dos jovens, pois estes podem ainda não ter a oportunidade de demonstrar seu valor ou realizar ações meritórias perante a sociedade, ou para grupos minoritários não seguidores de tradições ou costumes hegemônicos em determinada sociedade. No caso da hemodiálise de Seattle, já citado, houve diversas críticas aos critérios meritórios utilizados pelo Comitê, entre 1961 e 1962, que decidiu quem seria priorizado no acesso à nova tecnologia. Os critérios levados em conta foram: sexo, estado marital, número de dependentes, renda, estabilidade emocional, nível educacional, natureza da ocupação, capacidade de adesão ao tratamento, residência no Estado e participação em atividades religiosas (McGough et al. 2005). Nos anos que se seguiram os critérios utilizados pelo colegiado suscitaram numerosos questionamentos de ordem ética, e muitos consideraram que levavam a uma discriminação negativa, enviesados por favorecerem homens, caucasianos, de classe média, e pessoas adeptas de determinadas correntes religiosas e ligadas a certas associações comunitárias. A visão utilitarista predominou, aceitando-se a noção de responsabilidade social, pois o número de filhos foi o critério utilizado para a priorização dos recursos. De forma inversa, poder-se-ia utilizar o critério de mérito negativo, de demérito como fator restritivo para o recebimento de recursos escassos. Trata-se, porém, de questão eticamente bastante problemática, pois uma pessoa que se considera ter uma atividade não meritória em um determinado momento histórico poderá não a ter em outro momento. Em 2009, na vizinha República do Uruguai, foi eleito o presidente José Mujica, que décadas atrás fora condenado como guerrilheiro, terrorista, no entender das autoridades da época. Assim, entende-se a dificuldade de estabelecer uma linha limítrofe, demarcatória do que é uma conduta social que deva ser negativamente valorizada, e esta avaliação não pode sempre ser feita com base num senso comum ou em posições prevalentes ou hegemônicas na sociedade. Nesta linha pode-se refletir sobre as situações que envolvem pessoas seguidoras de condutas de vida consideradas, em um determinado momento histórico, não saudáveis. Entre as pessoas que estariam levando estilos de vida tidos como não saudáveis são elencados fumantes, alcoólatras, usuários de drogas ilícitas, comedores de excesso de sal ou gordura, seden-

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tários ou ainda pessoas que realizam sexo sem utilização de preservativos. Também são, por vezes, relacionadas pessoas que se utilizam de formas de lazer que envolvem significativos riscos de vida, por exemplo “esportes radicais” como alpinismo, skate e asa-delta. A valoração negativa do estilo de vida “não saudável” é fundamentada na aceitação da responsabilidade do indivíduo por sua saúde, proveniente da noção de autonomia individual. Essas pessoas não seriam merecedoras dos recursos de saúde por terem contribuído “voluntariamente” para sua doença ou para o agravo à sua saúde, devendo ser preteridos numa situa­ ção de escassez de recursos, quando confrontadas com outras pessoas que tivessem conduzido sua vida por alternativas consideradas favoráveis à manutenção da saúde. Pode-se argumentar que é relativo e circunstancial o que se denomina estilo de vida não saudável e quão difícil é decidir quanto de risco pessoal à saúde poderá ser aceito sem que seja considerado injusto para a sociedade, pois, por exemplo, alguns esportes radicais são incentivados pela mídia, principalmente entre os jovens, assim como as corridas automobilísticas ou a prática do boxe ou outra forma de luta. Responsabilizar somente o indivíduo por práticas não saudáveis seria desresponsabilizar a sociedade que não cria condições sociais e culturais adequadas para que sejam evitadas. Resulta no que é denominado “culpabilização da vítima”. Lemos (2009) defende a tese da validade de uma responsabilidade moral intermediária, para que se evite a perda de recursos escassos, argumentando que um transplante de fígado realizado em uma pessoa alcoólatra deveria comportar a obrigatoriedade de que ela se mantivesse abstêmia, ou que um fumante, ao receber um novo pulmão, deveria se responsabilizar por evitar o fumo. A questão da idade

A idade pode ser utilizada tanto como fator positivo quanto como fator negativo para a priorização de recursos escassos. É o caso brasileiro representado pelas normas legais do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do Idoso. O Estatuto da Criança e do Adolescente, lei federal 8.069, de 13 de julho de 1990, afirma que deve ser assegurado atendimento médico à criança e ao adolescente através do Sistema Único de Saúde, devendo estes ter a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias e a precedência do atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública. No mesmo sentido, o Estatuto do Idoso, lei federal 10.741, de 1º de outubro de 2003, enfatiza a garantia de prioridade do idoso ao atendimen­

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to preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população. Ou seja, há fundamento legal para a priorização dessas faixas etárias na alocação e na distribuição de re­ cursos escassos, atendimento em serviços de saúde ou distribuição de medicamentos e vacinas. Todavia, se ambas as normas legais afirmam a prioridade de crianças, adolescentes e idosos, como priorizar em situação que envolva simultanea­ mente as três faixas etárias? Há defensores da tese de que a morte de um adolescente seja pior do que a de uma criança menor de 2 anos, em virtude do investimento social e do desenvolvimento da personalidade adolescente, ou de que a morte do adolescente seja mais sentida do que a de um idoso maior de 80 anos. Verifica-se que essas orientações são claramente utilitaristas (Persad, Wertheimer, Emanuel 2009). Nem todos concordam com critérios de distribuir vacinas contra as epidemias de influenza com base no maior risco de vida, caso das crianças e dos idosos, como decidido pelo Ministério da Saúde brasileiro. Diferentemente, defendem um critério de “equidade intergeracional”, que objetivaria dar a todos igual oportunidade de viver todas as fases da vida. Assim, as crianças e os adolescentes seriam priorizados em relação aos jovens, estes em relação aos adultos, e estes em relação aos idosos. Os defensores da tese afirmam que assim não se estaria valorizando desigualmente e injustamente as pessoas por características diversas, mas, visando à igualdade, se estaria proporcionando a todos que potencialmente pudessem viver todas as fases da vida humana (White et al. 2009). Emanuel e Wertheimer (2005), do Departamento de Bioética Clínica dos National Institutes of Health (Estados Unidos), discorrendo sobre a prio­ rização de vacinas contra a gripe aviária (influenza A, H1N5), defendem claramente o princípio de alocação baseado em ciclos de vida, entendendo que os adolescentes e adultos jovens devam ser priorizados (13-40 anos), e não crianças e idosos, como no caso brasileiro já mencionado, aliando a noção de prevalência da doença à possibilidade de anos de vivência. A exclusão por idade para fornecimento de cuidados nos parece errônea, pois se baseia apenas em estatísticas artificiais, que não levam em conta as individualidades. Aliás, pode-se argumentar: mesmo que fosse possível ser estabelecido um patamar natural de vida humana, como considerar que isso seja moralmente relevante? Cinco anos a ser vividos com qualidade por uma pessoa idosa têm diferente significado moral de quinze ou vinte anos a ser vividos por pessoas mais jovens? A resposta utilitarista seria positiva, porém outras orientações éticas teriam quais respostas? Diferente é a argumentação de que em determinadas circunstâncias a idade possa ser tomada como critério objetivo. Seria o caso em que se

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avalia que por ter uma idade muito avançada a pessoa não teria condições clínicas de suportar um determinado procedimento médico ou cirúrgico, ou seja, não haveria eficácia clínica. Isso seria tratar a idade como um critério de objetividade médica, e não como um critério social.

Considerações finais

A decisão sobre alocação de recursos é de natureza ética e deve levar em conta fatos, princípios, valores, emoções, ideias e crenças. A incerteza é intrínseca a nossos deveres morais concretos, por isso os julgamentos sobre os deveres não podem ser certos, mas somente razoáveis e prudentes, como nos ensina Gracia (2004). Em uma sociedade que tem como característica o pluralismo de valores morais, é necessário que as decisões públicas promovam o engajamento dos cidadãos e dos profissionais de saúde, que sejam transparentes para que as pessoas tenham confiança nos serviços e nos profissionais de saúde, pois estes são orientados fundamentalmente para o bem de seus pacientes, enquanto as políticas públicas devem sê-lo pelo princípio do bem comum; assim, pode haver orientações conflitivas, mas combinadas com alternativas possíveis de ser operacionalizadas. Esta é a alternativa que defendemos, apesar de considerar, como nos lembra Lemos (2009), que a participação dos interessados não leva a decisões necessariamente justas, como queria Rawls ao invocar o “véu de ignorância”, pois se apresentam valores e preconceitos e não há, portanto, neutralidade nas escolhas. Todavia, apesar das imperfeições, o processo participativo pode resultar em acordos eticamente aceitáveis para todos os segmentos representados sobre normas que dizem respeito à vida e à saúde.

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