\"Somos vítimas da nossa imaginação\": entrevista com Luísa Costa Gomes sobre \"As Criadas\" de Jean Genet

June 3, 2017 | Autor: Pedro Sobrado | Categoria: Theatre Studies, Jean Genet
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“Somos vítimas da nossa imaginação” Entrevista com LUÍSA COSTA GOMES. Por PEDRO SOBRADO. PS Leu pela primeira vez As Criadas há muitos anos atrás. Como foi relê-la agora e traduzi-la? LCG A peça mantém a mesma frescura provocatória, continua para mim tão misteriosa como quando me fascinou aos vinte anos, e isso não é dizer pouco. Um texto que não envelhece é um texto raro, o natural dos textos é ficarem datados, ligados à sua época, principalmente quando são pioneiros em alguma coisa. O seu destino é tornarem-se peças de museu… Como Genet era um “singular”, não pertencia a uma escola, a uma tertúlia, a uma corrente, era ímpar, mais facilmente convoca uma relação pessoal, uma leitura sem rede. Continuo a achar As Criadas uma peça de uma riqueza filosófica e dramatúrgica extraordinária. Traduzir a peça é a melhor maneira de nos apropriarmos de um texto: trabalhamos como os copistas, interiorizando aquilo que lá está. Melhor do que traduzir só mesmo encenar e representar, que é a forma por excelência de compreender um texto. Não é por acaso que se diz “vamos fazer Shakespeare”, ou “vamos fazer Genet”. Traduzir é uma espécie de preâmbulo dessa encarnação, é uma forma de pôr na nossa língua pessoal um texto que nos afeta. A versão que traduziu não coincide nem com a versão de Louis Jouvet – aquela que se tornou corrente e que tanto enfureceu Genet – nem com o mirífico original de uns palavrosos quatro atos. Que virtualidades encontrou nesta outra versão que Genet terá urdido com a colaboração de Cocteau? É uma versão mais crua, feita por um dramaturgo que não domina os cânones da “escrita para teatro” e cuja língua não foi domesticada pelo encenador que sabe que, se a Clara diz isto na primeira página, não pode dizer aquilo na quinta, porque é uma contradição não suportada pela personagem. Há nesta versão uma certa indiscriminação na atribuição das falas, o que dá uma sensação de maior abstração textual, uma fluidez desestabilizadora. Louis Jouvet procurou dar-lhe uma inteligibilidade que nesta primeira versão não parece tão importante. Para além desta maior abstração, a linguagem é, do ponto de vista poético, mais concreta, mais ligada a determinados gestos ou a coisas corporais. O que teve implicações na tradução, porque por vezes me fez optar por uma linguagem mais coloquial, até corriqueira, uma poética retoricamente pouco convencional e que me parece que o texto suporta muito bem.

Quer isso dizer que a tradução procurou moderar a grandiloquência discursiva da peça? Não, essa grandiloquência continua lá, mas é mais teatral. Aliás, na revisão que depois fiz com o Simão Do Vale, ele viu muito bem que devia continuar a haver diferença marcada entre a língua do ritual das criadas e a língua “não representada”. Ou seja: acaba por se perceber melhor a distinção entre os momentos de “teatro” das criadas e os momentos em que não há “representação”. Digamos que a mise en abîme acaba por ser, não direi mais nítida, mas mais sensível. Reli a tradução da Luiza Neto Jorge, que continua a ser esplêndida e que me evitou alguns disparates. O que lá está, está correto. Mas nesta tradução há texto que não consta da versão de Jouvet e maneiras de dizer que são necessariamente diferentes. O jogo duplo (ou de duplos) a que as irmãs se entregam desde a primeira cena parece exceder o esquema tradicional do teatro dentro do teatro. A circulação das identidades vai até ao ponto da fusão… Acaba por haver uma certa indistinção. É uma indistinção que é tematizada como violência: a fusão como uma violência que é feita à individualidade. O papel que é representado, e que é uma forma de potenciar esse teatro em que as criadas vivem, é também, ao mesmo tempo, a encenação de uma impotência permanente, de um obstáculo inultrapassável. A reflexão de Genet sobre a identidade e a representação, a incapacidade de ultrapassar uma situação de “fachada” em direção à autenticidade, parece-me muito contemporânea. Continuamos a rever-nos naquelas problemáticas, são problemas que não têm solução. Principalmente quando há, como acontece n’As Criadas, uma introjeção dos valores da Senhora, que se manifesta numa invasão dos valores da Senhora no espaço das criadas, o sótão. Curiosamente, as classes inferiores ocupavam os pisos de cima das casas, as chambres de bonne… A peça foi lida como um texto sobre a luta de classes, embora Genet tenha recusado essa hipótese. Disse que há sindicatos para defender os direitos das empregadas domésticas… As Criadas tornou-se um grande clássico da temática do bom velho tempo da luta de classes, mas lê-la assim é reduzir a peça a uma expressão muito pobre. É, sem dúvida, sobre o poder e é nela visível a revisitação da hegeliana “dialética do senhor e do escravo”, do modo como os senhores se tornam escravos dos seus escravos e os escravos interiorizam os valores dos senhores para os serem sem nunca poderem de facto sê-lo. Para mim, não é uma peça política per se, é uma peça de teatro. É uma peça sobre a linguagem, sobre a maneira como usamos a linguagem para transmitir uma certa representação de nós próprios, sobre a maneira como essa linguagem

é recebida, virtuada ou desvirtuada, apropriada ou alienada. A peça tem a ver com relações de linguagem, entre outras coisas. A peça transporta uma reminiscência do teatro de bulevar, com os seus enredos criminais e melodramas, mas evolui para uma coisa muito diversa. Uma das encenações que vi era completamente bulevardiana. Sob esse ponto de vista, o texto de Genet é absolutamente extraordinário: estava a começar a escrever teatro e é já o texto de um mestre, de um grande mestre dramaturgo. Mas o conceito que propõe no texto que escreveu sobre a encenação d’As Criadas é antinaturalista e de teatro formal. A peça ganha contornos de missa negra, de liturgia sacrificial, de sessão de hipnose. É uma peça sem programa, e por isso é viva e sempre nova. Há nesta versão qualquer coisa de barbaramente primário ao nível da emoção, uma raiva, um ressentimento, uma pulsão de destruição, que repassa todos os escritos de Genet. Essa pulsão de destruição progride até à autodestruição, à autoimolação. É a imolação do impotente: o final é patético, no sentido em que há uma grandeza teatral, uma grandeza de representação que é tanto maior quanto menor é o seu conteúdo real. É um mero gesto sem conteúdo, uma ilusão. A ilusão cómica da criança que imagina que, por calçar os sapatos da mãe, se torna a mãe. Genet conformou-se com a ideia de a peça ser representada por atrizes, mas a sua ambição inicial era precisamente que fosse representada por dois rapazes. É uma questão complexa, que já deve ter sido tratada… Não sei o que queria Genet, não estudei isso. Pode haver nessa intenção a procura de uma ligação a uma tradição teatral em que os homens faziam de mulheres. Mas duvido que seja isso. Podemos ler também essa intenção de uma forma misógina, como um certo horror à mulher e ao feminino. Puxa-se tudo para o masculino, como se o masculino tivesse várias gradações e uma delas fosse a representação do feminino. No fundo, é uma forma de erradicar as mulheres do mundo! [risos] Mas na verdade não sei do que falo. Que relação estas duas mulheres estabelecem entre si – amor incestuoso, aversão mútua? É uma relação feita de reflexos, como os reflexos na água. É uma união fluida, que refere bem a emoção primária, familiar, com aproximações, rejeições, protestos de amor, explosões de ódio. É o teatro familiar, a rivalidade das irmãs. Ou seja: é teatro. O que vejo na peça são duas personagens presas num palco, que é o palco da sua imaginação, como nós estamos todos presos na nossa imaginação. Somos vítimas da nossa imaginação. E é uma imaginação limitada e alimentada por um

desejo paradoxal: querem ser a Senhora, mas querem matar a Senhora. Querem ser aquilo que querem destruir. Daí o ritual, que é por natureza repetitivo: não tem saída. É sempre frustrante, porque não tem horizonte de ação. É só imaginação, é só teatro, e nós percebemos esse cansaço enorme, o cansaço das coisas que são solitárias, que não estabelecem uma relação produtiva com a realidade. O que elas põem em cena é a dinâmica da frustração permanente. Desse ponto de vista, o despertador, o telefone, a campainha assumem um papel importante: são chamamentos da realidade exterior. Sim, são chamamentos que as espantam imenso, mas que depois elas não integram no ritual. Quando a Clara fala com o Senhor ao telefone – que foi libertado e está já à espera da Senhora –, não temos absoluta certeza se é realmente assim ou se continua a fazer teatro para a irmã… Se há um nível de realidade, então é o nível proposto pelo telefone, pela campainha e pela entrada da Senhora. A Senhora não entra em modo teatral: ela é o modo teatral. É uma grande dramática, uma Sarah Bernhardt, uma diva que também faz teatro para as criadas, sedentas dele e de ideias cor-de-rosa, tal como as antigas e as novas gerações de “criados” e “criadas”, os novos domésticos domesticados por pequenos e grandes eletrodomésticos. Sedentas por “realidades” de capa-de-revista, por essa coisa mirífica que é o ombrear com a celebridade… Essa descrição lembra-me uma das criadas das Casas Pardas de Maria Velho da Costa, que a Luísa reescreveu para uma encenação do Nuno Carinhas [TNSJ, 2012]. Refiro-me à Lídia, uma criada que imita a sua Senhora e de quem recebe roupas, perfumes, etc. Curiosamente, cumpre também um ritual muito negro: enquanto se paramenta ao espelho para servir o jantar, lança uma espécie de maldição sobre os patrões. É curiosa essa referência porque me parece que As Criadas se disseminou na obra da Maria Velho da Costa numa miríade de referências, relações, comentários. A Lídia representa essa classe pequeno-burguesa que foi desaguando da classe média-alta e que vive dos restos das coisas das Senhoras, dos frasquinhos de Dior. As criadas das Casas Pardas, que são muito diversas das criadas da Madame,1 vivem a revolução a que estas não acederam. Mas é a Elvira, a irmã da Lídia, a criada que viveu a revolução e que, no final da adaptação que fizemos, tem aquele primeiro orgasmo cósmico… Seria talvez o sonho fantástico das criadas de Genet, mas não sei se elas sonham… Genet diz que elas são monstros, como nós somos monstros quando sonhamos. A palavra “monstro” significa “aquele que mostra”: alguém que mostra uma coisa primária e exacerbada, algo que não é domado pela civilização. Mas é preciso não esquecer que estamos a ver teatro e que esse teatro –

embora seja por vezes violento – é limitado à imaginação, está votado à repetição, ao ensaio. Nunca se consegue sair do script, nunca se consegue sair do protocolo. Cada fala provoca outra fala, que provoca uma contrafala, que provoca uma réplica, e esta outra réplica ainda – é uma máquina infernal, na qual elas estão permanentemente presas. Uma história de onde não se consegue sair, infantil, que rejeita o risco da inovação. É uma história consoladora, como querem as crianças à noite, sempre igual, sempre a mesma, com as mesmas modulações reconhecíveis. Aquilo a que sou sensível é ao desespero – no sentido de sem-esperança, não há saída para estas pessoas. Cada uma delas quer sair do ritual, porque o ritual é estéril, repetitivo, previsível, e ao mesmo tempo não deixa a outra sair dele, porque isso significa o risco de cair no caos da tomada de consciência de uma “individualidade” que não é apenas “senhora”, não é apenas “criada” e que tem de ser criada. A Winnie dos Dias Felizes cumpre uma série de hábitos ritualizados, repetindo a cada dia os mesmos gestos cronometrados e agarrando-se a um punhado de objetos como estratégia para adiar o suicídio, para não disparar o Brownie, esse seu revólver de estimação… Todos os nossos rituais são uma forma de denegação. Mas, nos Dias Felizes, o suicídio – se é possível dizer isto de Beckett – é mais moderado, mais “normal”, é uma hipótese latente, enquanto n’As Criadas o suicídio, a autodestruição, está sempre iminente. Aquilo a que as criadas se dedicam é uma brincadeira muito perigosa, e é isso que é excitante para elas: saber que a Senhora pode entrar a todo o momento e surpreendê-las. Fazem de propósito quando não deixam as coisas exatamente nos mesmos sítios, para poderem – como o criminoso – ser paradas. Querem ver se a Senhora percebe que se passa ali qualquer coisa de grave, se as despede. É só se a Senhora as puser na rua que elas têm uma possibilidade de viver. Elas vivem no fio dessa navalha. A sua condenação é a sua salvação. Exatamente. É como a criança omnipotente a que os pais não põem limites: “Alguém que me dê um estalo!” [risos] Organiza a cabeça. No fundo, o teatro das criadas é uma brincadeira que se vai transformando numa coisa cada vez mais monstruosa, elas ficam cada vez mais histéricas, um pouco como aquelas santas em êxtase… Imaginam que podem fazer tudo, mas afinal não podem, porque o espaço da liberdade de serem outra coisa é ao mesmo tempo o espaço da sua prisão. 1 Peça de Maria Velho da Costa, encenada por Ricardo Pais em 2000 (coprodução TNSJ/TNDM II), imagina o encontro de Maria Eduarda (de Os Maias, de Eça de Queirós) e de Capitu (de Dom Casmurro, de Machado de Assis), bem como das respetivas criadas.

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