Soprar ou não soprar, eis a questão

May 30, 2017 | Autor: Mariana de Siqueira | Categoria: Public Administration, Direito Administrativo, Droit administratif
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Soprar ou não soprar, eis a questão! Mariana de Siqueira 28/08/2016 A Organização Mundial da Saúde, em relatório publicado no ano de 20151 referente a períodos anteriores, apresentou dados que atestam ser o Brasil o país líder da América do Sul em números de acidentes de trânsito. Só no ano de 2013 mais de quarenta mil pessoas faleceram nas vias públicas brasileiras vitimadas por desastres veiculares. Foram inúmeros os fatores apresentados no documento como causas de tais acidentes, aparecendo, dentre eles, a infeliz ingestão de bebida alcoólica antes de dirigir. O legislador, na tentativa de oferecer resposta para os dados divulgados pelos estudos empíricos, atuou no sentido de promover sucessivas mudanças textuais para incrementar o rigor da lei com os motoristas alcoolizados. Em tal sentido, a normativa de trânsito foi sendo gradualmente convertida de uma lei não tão seca para uma lei cada vez mais seca. Destacaram-se, aí, as modificações colocadas no Código de Trânsito Brasileiro - CTB nos anos de 2008 e de 2012. As mudanças legislativas mencionadas ressaltaram o rigor na tipificação de condutas e na apuração de ilícitos ligados ao tema da direção sob efeito de álcool. Não apenas os tipos penais foram incrementados, mas também as infrações administrativas. E são estas infrações e a sua apuração que correspondem à abordagem central do presente escrito. O CTB, como consequência do novo, atualmente tipifica como infração administrativa gravíssima o ato de dirigir sob a influência de álcool, lhe direcionando a penalidade de multa no valor de dez vezes e a suspensão do direito de dirigir por doze meses, bem como as medidas administrativas de recolhimento do documento de habilitação e de retenção do veículo. Ainda no âmbito administrativo, segundo expõe o CTB, qualquer concentração de álcool por litro de sangue ou por litro de ar alveolar sujeita o condutor às penalidades apresentadas. E, no intuito de aferir tal fato, a legislação atesta que não apenas o bafômetro é meio idôneo, como também imagens, vídeos, a constatação de sinais que indiquem alteração da capacidade psicomotora ou a produção de quaisquer outras provas em direito admitidas. Como bem se pode notar, a política atual parece ser de tolerância zero! Dentre tantas mudanças escritas pelo legislador, uma em especial foi alvo de críticas reiteradas. A partir dela, a normativa passou a determinar que o condutor que se recusar a se submeter a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita 1

O relatório em questão pode ser encontrado no seguinte http://www.who.int/violence_injury_prevention/road_safety_status/2015/en/

endereço

eletrônico:

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certificar influência de álcool se sujeitará às penas e medidas do art. 165 do CTB. Ou seja, para a lei atual, a recusa em ser “investigado” equivale ao ato de dirigir embriagado. Com isso, perguntam os juristas: Estaria o motorista brasileiro sendo obrigado a produzir prova contra si? Tal obrigação é constitucional?

A modificação mencionada, a despeito de ser criticada, se mantém vigente e com o potencial de surtir os seus efeitos concretos. Ocorre, todavia, que por sua aparente fragilidade constitucional, costuma sofrer questionamentos judiciais e, em alguns casos, acaba por permitir a anulação daquilo que foi feito pela autoridade de trânsito em determinado contexto. A partir disso, visando sepultar debates e viabilizar a mais efetiva punição da recusa, o legislador nacional novamente escolheu o caminho de tipificação de condutas no CTB. A recusa recebeu um tipo para chamar de seu! O art. 165-A, hoje em vacatio legis e com data prevista para gerar efeitos práticos em novembro de 2016, possui conteúdo bastante similar aquele pertencente ao art. 165. Conforme o novo tipo, aquele que se recusar a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa comete infração gravíssima; se sujeitando à penalidade de multa de dez vezes e à suspensão do direito de dirigir por doze meses; bem como às medidas administrativas de recolhimento do documento de habilitação e de retenção do veículo. Em síntese, na atualidade, o sujeito que se recusa a produzir prova é remetido ao art. 165 e no futuro breve que virá possuirá tipo próprio especificando a sua conduta de recusa. O novo tipo, seguindo a linha daquele que foi a sua inspiração, já vem sofrendo críticas e questionamentos por sua aparente incompatibilidade com o nemo tenetur se detegere. De fato, a vedação à autoincriminação é elemento normativo de origens antigas, assentado na história jurídica de modo bastante abrangente, não sendo uma peculiaridade nacional como a jabuticaba. O Pacto de São José da Costa Rica o contempla na medida em que prevê em seu art. 8º, parágrafo 2º, alínea g, que “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada.” São inúmeros os desdobramentos que emanam da ideia de vedação à autoincriminação. Luiz Flávio Gomes, por exemplo, em texto facilmente encontrado no universo virtual, aponta nove de suas consequências: “(1) direito ao silêncio, (2) direito de não colaborar com a investigação ou a instrução criminal; (3) direito de não declarar contra si mesmo, (4) direito de não confessar, (5) direito de declarar o inverídico, sem prejudicar terceiros, (6) direito de não apresentar provas que prejudique sua situação jurídica. A essas seis dimensões temos que agregar uma sétima, que consiste no direito de não produzir ou de não contribuir ativamente para a produção de provas contra si

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mesmo. Esse genérico direito se triparte no (7) direito de não praticar nenhum comportamento ativo que lhe comprometa, (8) direito de não participar ativamente de procedimentos probatórios incriminatórios e (9) direito de não ceder seu corpo (total ou parcialmente) para a produção de prova incriminatória.”2 (grifos nossos) Notem que o sétimo item, bem como o nono e oitavo, aparentam se chocar diretamente com o conteúdo do novel tipo inserido na legislação e com a contemporânea interpretação dada à recusa. Há quem diga que justamente por isso a tipificação dessa nova infração se faz tão inadmissível quanto a atual interpretação dada à recusa pela Administração Pública em seus processos administrativos. Vejamos o que o tempo nos dirá, mais precisamente o que o STF dirá no caso de ser chamado a se manifestar a respeito. O Judiciário, em posicionamentos variados, tem sido receptivo à argumentação da vedação à produção de prova contra si. Explicando o óbvio, ressalto aqui que não sou favorável ao terrível ato de dirigir após a ingestão de álcool, o presente texto apenas objetiva abordar em viés científico a resposta dada pelo legislativo aos anseios sociais. Para mim, professora de Direito Administrativo, além das questões constitucionais já expostas outras vêm à mente, em especial as seguintes: o Direito Administrativo Sancionador comporta argumentações típicas do Direito Penal para fins de proteção dos réus em processos administrativos? É o Direito Administrativo Sancionador espécie do gênero Direito Penal? É ele ramo autônomo ou espécie do gênero jus puniendi estatal? A naturalidade com que alguns apontam a ideia de vedação à autoincriminação como fundamento de combate ao novo (art. 165 – A) e atual tipo administrativo ligado à recusa pode levar à precipitada conclusão de que as respostas aos questionamentos apontados são uniformes e lineares na doutrina e jurisprudência brasileiras, o que não é fato verídico. Penso que cada vez mais se faz relevante pensar com seriedade a unidade, sistematicidade e racionalidade das interpretações que envolvem sanções derivadas de máculas ao sistema jurídico administrativista. Trunfos argumentativos pontuais e de ocasião e casuísmos decisórios não são interessantes para a densidade científica do tema. É preciso encontrar a racionalidade e essência do jus puniendi em temas que envolvem o Direito Administrativo Sancionador, o Direito Administrativo Disciplinar e a própria interpretação e aplicação da lei de improbidade administrativa (tema que espero abordar em texto futuro). Aos meus olhos, ela, a Constituição, aparece como ponto de partida para a análise densa do tema e penso que não poderia ser diferente em um universo jurídico que a coloca como elemento central do Direito. É preciso formular uma profunda e 2

GOMES, Luiz Flávio. Princípio da não auto-incriminação: significado, conteúdo, base jurídica e âmbito de incidência. Disponível em: http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2066298/principio-da-nao-autoincriminacao-significado-conteudo-base-juridica-e-ambito-de-incidencia. Acesso em 28 de agosto de 2016.

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sólida teoria do jus puniendi estatal em casos envolvendo infrações administrativas com atenção especial ao texto constitucional, à doutrina e aos precedentes contemporâneos. Pensemos a respeito!

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