“SOU BLOGUEIRA DA CAPRICHO”: UM ENSAIO SOBRE FORMAÇÕES DISCURSIVAS

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“SOU BLOGUEIRA DA CAPRICHO”: UM ENSAIO SOBRE FORMAÇÕES DISCURSIVAS1 “SOU BLOGUEIRA DA CAPRICHO”: AN ESSAY ABOUT DISCURSIVE FORMATIONS Issaaf Karhawi2 Resumo: O caso da ―Blogueira da Capricho‖ – assim nomeado pelos públicos das mídias sociais digitais – foi o propulsor para a construção do presente problema de pesquisa: quais as condições de produção do discurso que possibilitam à autora de um blog se intitular como ―blogueira‖? Com base na teoria de Foucault e com ênfase no método arqueológico, este artigo aponta quais são os principais fatos discursivos que revelam a eclosão de um novo perfil profissional na Comunicação - o de blogueira de moda - e como se constitui uma formação discursiva capaz de acolher e sustentar regularidades e interditos para os discursos acerca das blogueiras no Brasil. Palavras-Chave: Blog de moda. Blogueira. Formação discursiva. Foucault. Abstract: The case of ―Capricho‘s blogger‖ – an event occurred on social media and named by its users – was the driving force for the construction of the present research problem: what are the speech production conditions responsible for the author of a blog to name herself a ―blogger‖? Based on Foucault‘s theory and mainly on his archaeological method, this article points out the main discursive facts that reveal the emergence of a new professional profile in Communication field - the fashion blogger - and also reveals how a discursive formation is capable of hosting and supporting regularities and speeches interdictions about bloggers in Brazil. Keywords: Fashion blog. Blogger. Discursive formation. Foucault.

Introdução Em 2013, a blogueira de moda Giovanna Ferrarezi, protagonista do caso ―Blogueira da Capricho‖, foi notícia em jornais e burburinho nas redes sociais digitais ao tentar entrar em uma festa apenas se apresentando como blogueira. O evento nos fez questionar: o que legitima a enunciação de Giovanna? Em outras palavras, quais momentos (ou condições de produção do discurso) possibilitaram à autora de um blog se intitular como blogueira?

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Trabalho apresentado na Divisão Temática Ibercom Comunicação e Cultura Digital do XIV Congresso Internacional IBERCOM, na Universidade de São Paulo, São Paulo, de 29 de março a 02 de abril de 2015. 2 Issaaf Karhawi é doutoranda em Ciências da Comunicação na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e mestre pela mesma instituição. É pesquisadora do COM+ (Grupo de Pesquisa em Comunicação, Jornalismo e Mídias Digitais) e bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]

Ao acompanhar os blogs de moda no Brasil, fica evidente a eclosão de um novo perfil profissional no campo da Comunicação que é instaurado não apenas economicamente, mas discursivamente. Portanto, o caso da ―Blogueira da Capricho‖ acompanha esse processo e nos faz questionar como demos sentido a essa nova profissional também a partir da linguagem. Assim, com base no método arqueológico de Foucault, este artigo revela o emaranhado de fatos discursivos que antecedem, explicam e determinam o acontecimento. Em nossa análise eclodem os fatos discursivos que sustentam o uso do termo blogueira e apontam que o enunciado de Giovanna não irrompe como um discurso anônimo ou deslocado. Mesmo que, a priori, o discurso sobre as blogueiras tenha sido apenas dispersão discursiva, quando Giovanna enuncia ―Sou blogueira da Capricho‖ existe aí o reconhecimento de uma regularidade que deve ser compreendida.

Formações Discursivas: o berço de um tempo Diferentes fases marcaram a obra de Michel Foucault. Em um primeiro momento, na fase ―arqueológica‖, o filósofo dedicou-se a investigar ―os saberes que embasam a cultura ocidental, de buscar o método arqueológico para entender a história desses saberes‖ (GREGOLIN, 2006, p. 55, grifos do autor), período no qual se dedicou à história da medicina, da loucura e de outros campos do saber. Na fase denominada ―genealógica‖, Foucault sistematiza a noção de micro-física do poder a partir de uma genealogia do poder (análise articulada dos saberes e dos poderes). Em um terceiro período, considerado da ―ética e estética da existência‖, conduziu estudos sobre a sexualidade na direção da subjetivação, do governo de si e dos outros (GREGOLIN, 2006). Todas as fases foucaultianas estão articuladas a uma reflexão sobre os discursos. Isso porque [...] as coisas não preexistem às práticas discursivas, Foucault entende que estas constituem e determinam os objetos. É, assim, no interior da reflexão sobre as transformações históricas do fazer e do dizer na sociedade ocidental que uma teoria do discurso vai-se delineando e encontra um lugar central na obra de Foucault‖ (GREGOLIN, 2006, p. 53-54).

Em seu livro ―História da Loucura na Idade Clássica‖, Foucault busca – de acordo com as observações de Gregolin (2006) – apreender o ―grau zero‖ da loucura e compreender como a nossa sociedade passou a considerar o louco um sujeito marginalizado. Não é a intenção

do filósofo, no entanto, estudar a ideologia da loucura ou o processo cronológico da ―civilização‖ dos tidos como loucos, mas seu objetivo é [...] analisar as condições de aparição desse discurso, buscando algo além do fenomenológico – uma ‗estrutura‘ que é da ordem do impensado. Por isso, ele vai em busca da estruturação dos saberes das epistemes que funcionam como o solo de possibilidade para os saberes que coexistem em um certo momento histórico (GREGOLIN, 2006, p. 69).

A partir do método arqueológico é possível compreender as condições de produção de um discurso e não estudá-lo em sua forma acabada, proferida, circulante. Ainda assim, não se trata de ―buscar origens‖ ou ―significados secretos‖, mas analisar o acontecimento discursivo, isto é, tratar os enunciados efetivamente produzidos, em sua irrupção de acontecimento, a fim de compreender as condições que possibilitaram a sua emergência em um certo momento histórico. [...] Apesar de ser uma irrupção brutal, o acontecimento discursivo obedece a uma combinação de regras, [...], e que determinam as condições de possibilidades de sua aparição. (GREGOLIN, 2006, p. 77)

Em outras palavras, o método arqueológico de Foucault busca fatos discursivos que antecedem o acontecimento analisado, explicando-o e determinando-o (GREGOLIN, 2006, p. 77). Há um grande desafio nesse método: os discursos são marcados pela dispersão. A arqueologia remete a ―conjuntos de enunciados que eram, na época de sua formulação, distribuídos, repartidos e caracterizados de modo inteiramente diferente‖ (FOUCAULT, 2014, p. 27). É na análise arqueológica que se torna possível articular o campo do discurso, constituí-lo, uma vez que, aceitam-se os enunciados como formas de repartição e sistemas de dispersão (GREGOLIN, 2006). No campo dos discursos, as unidades certas ou homogêneas devem ser consideradas com cautela. Na análise arqueológica, não há unidade natural ou universal. Afastar os discursos dessa concepção permite suspender a noção de formas imediatas de continuidade e enxergar, com mais clareza, todo um domínio. Trata-se de um domínio imenso, mas que se pode definir: é constituído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham sido falados ou escritos), em sua dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um. [...]. É uma população de acontecimentos no espaço do discurso em geral. Aparece, assim, o projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos como horizonte para a busca das unidades que aí se formam (FOUCAULT, 2014, p. 32-33, grifos do autor).

Mesmo nessa irregularidade e dispersão enunciativa, mesmo na ausência de uma unidade homogênea e imediata há regras para a formação dos discursos: No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (FOUCAULT, 2014, p. 47)

Assim, os enunciados não se constituem com base apenas na gramática, em uma função semântica ou lógica, mas na ―[...] relação que envolve os sujeitos, que passa pela História, que envolve a própria materialidade do enunciado‖ (GREGOLIN, 2006, p. 90). De forma bastante simplificada, as formações discursivas são como berços em que os enunciados se constituem e se estabelecem. A despeito das dispersões, é nesse espaço que encontram sentido, um lugar. Quando dizemos ―É preciso preparar o terreno‖ para alguma coisa, é como se nos referíssemos às formações discursivas: a ideia de pavimentar, providenciar condições de produção de algo. Neste caso; de um discurso, de um saber. Retomando às palavras de Foucault temos que [...] uma formação discursiva se define (pelo menos quanto a seus objetos) se se puder estabelecer um conjunto semelhante; se se puder mostrar como qualquer objeto do discurso em questão aí encontra seu lugar e sua lei de aparecimento; se se puder mostrar que ele pode dar origem, simultânea ou sucessivamente, a objetos que se excluem, sem que ele próprio tenha de se modificar (FOUCAULT, 2014, p. 54)

A partir dessa passagem, compreende-se como determinados saberes, assuntos, discursos, são possíveis em uma época e não em outra: ―não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem e, na superfície do solo, lancem sua primeira claridade‖ (FOUCAULT, 2014, p. 54). Em seu trabalho arqueológico, Foucault observa momentos distintos em que é permitido falar sobre a loucura de formas quase opostas. No final da Idade Média, por exemplo, a loucura era uma inquietação a ser compreendida. Já no Renascimento, a áurea da loucura é convertida em profana, a dominação do mundo ocidental pelo catolicismo atrela a loucura ao demoníaco. Mais adiante, com o nascimento da sociedade industrial e o consequente império da razão e da produtividade, o louco passa a ser aprisionado e encarado como ocioso ao lado dos doentes (GREGOLIN, 2006).

Esses diferentes períodos da história da loucura revelam diferentes formações discursivas. Os exemplos nos mostram que não seria possível dizer qualquer coisa em qualquer época. Outro ponto deve ser considerado; ao ter acesso à arqueologia do saber realizada por Foucault sobre a Loucura, os discursos parecem despontar de forma cronológica, imediata e homogênea e não dispersa e irregular como vimos, mas é preciso retomar e estabelecer uma vigilância epistemológica constante ao desenvolver uma análise arqueológica uma vez que o objeto não espera nos limbos a ordem que vai liberá-lo e permitir-lhe que se encarne em uma visível e loquaz objetividade; ele não preexiste a si mesmo, retido por algum obstáculo aos primeiros contornos da luz, mas existe sob condições positivas de um feixe complexo de relações (FOUCAULT, 2014, p. 54-55).

Não há termos, noções ou saberes há espera de um uso. Há, sim, condições de produção, formações

discursivas

em

constante

construção,

berços

sendo

acomodados

confortavelmente no quarto de uma época.

Articulação de um discurso: “sou blogueira” No final da década de 1990, os weblogs, ou apenas blogs, eram como catálogos da Internet. Os usuários da rede reuniam em seus sites links e comentários sobre suas navegações. Em 1997, Jorn Barger cunhou o termo ―logging the web‖ para essa atividade, algo como ―arquivar a Internet‖ que remetia aos ―[...] diários de navegação, em que os capitães informam as latitudes e longitudes [...]‖ (TRASEL, 2009: 94). Até então, os blogs eram de exclusividade daqueles que conheciam a linguagem HTML. É a partir da quebra da barreira técnica que os blogs se popularizaram entre os usuários da rede. A difusão da ferramenta deu origem a diferentes práticas, entre elas, a mais popular ficou conhecida como o diário virtual. Hoje, transcorrida mais de uma década, autores como Primo (2008), Trasel (2009), Lemos (2002), Amaral, Recuero e Montardo (2009) questionam a restrita definição que se dá aos blogs. Nas palavras de um dos autores: ―[...] o uso da interface de blogs para a escrita íntima e sigilosa é apenas um entre tantos processos interativos possíveis na blogosfera‖ (PRIMO, 2008, p. 122). A aceitação dos blogs como uma ferramenta da web disponível para múltiplos usos caracteriza o que Trasel (2009) chama de a ―era de ouro dos blogs‖.

Observou-se, no decorrer dos anos, que os blogs assumiam um caráter mais profissional, as apropriações eram variadas; desde um jornalista que mantinha um blog, à um blog corporativo ou, atualmente, blogs que se constituem como mídias. O fenômeno de profissionalização dos blogs tem sido observado pelo Technorati Media. O relatório State of the Blogosphere (2011) apontou que os blogueiros que se declaram ―profissionais‖ somam 18% na blogosfera, atrás dos 60% que dizem manter o blog por hobby. Do total de blogueiros profissionais, 13% usam o blog para complementar sua renda e os outros 5% trabalham em período integral com o blog3. Se inicialmente as blogueiras de moda, como apontam Rocamora e Bartlett (2009), almejavam apenas demonstrar seu amor pela moda e compartilhar informações sobre o assunto, hoje, elas definem novos nichos comunicacionais e de mercado. A revista Capricho – dedicada ao público adolescente feminino – está no mercado editorial há mais de 60 anos e tem investido fortemente no conteúdo para a internet. Acompanhando o fenômeno dos blogs de moda, desde 2013, a revista mantém em seu site um espaço chamado ―Blog Ring" que reúne blogueiras já conhecidas pelas leitoras da revista que tratam de assuntos do universo adolescente como moda, comportamento e beleza. Giovanna Ferrarezi, do blog ―Radioactive Unicorns‖, faz parte do time de blogueiras da revista Capricho e tem mais de 69 mil fãs em sua página no Facebook e 145 mil seguidores no Instagram4. Os números revelam a popularidade virtual da blogueira que em julho de 2013 protagonizou o ―escândalo virtual‖ nomeado ―Blogueira da Capricho‖. O ocorrido que tomou proporções compatíveis aos nós da web - começou com o post publicado na página pessoal da blogueira em seu Facebook no dia 27 de julho de 2013:

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Dados recuperados em 12 de setembro, 2013, de . 4 Dados obtidos pela autora em março de 2015.

Figura 1. Post completo publicado por Giovanna Ferrarezi em sua página no Facebook.

Após o post de Giovanna, as redes sociais foram tomadas por montagens e textos sobre a blogueira, como os exemplos que seguem:

Assim como Foucault não estava interessado na ideologia da Loucura, também não é esse o objetivo ao estudar a repercussão do caso ―Blogueira da Capricho‖. Mesmo que apenas em forma de ensaio ou esboço, faremos uma análise arqueológica em que nos interessa ―[...] o emaranhado de fatos discursivo anteriores a um acontecimento que, ao mesmo tempo, o explicam e o determinam‖ (GREGOLIN, 2006, p. 77). E ainda, uma ―[...] busca de elementos que possam ser articulados entre si e que forne[çam] um panorama coerente das condições de produção de um saber em certa época.‖ (GREGOLIN, 2006, p. 71) Nada pode ser dito fora de um momento específico. Há vários exemplos em nosso dia-a-dia que ilustram a noção foucaultiana: a legalização do aborto ou o casamento gay. E mesmo termos que encaramos apenas como substituições trazidas pelos novos tempos como o termo ―portador de necessidades especiais‖ em vez de deficiente; homossexualidade em vez de homossexualismo ou até a ideia de chacota ou brincadeira infantil substituída pelo conceito de Bullying. Nenhuma dessas noções ―[...] se indica a si

mesma, [mas] só se constrói a partir de um campo complexo de discursos‖ (FOUCAULT, 2014, p. 28), esse campo, como visto, é a formação discursiva. Ao dizer: Comentei que tinha um blog e que fazia trabalhos em parceria com a Capricho e perguntei se poderia dar uma olhada na festa antes de todo mundo pagar pra entrar [...], Giovanna Ferrarezi ampara-se em condições de produção de um discurso que lhe ―permitem‖ dizer o que ela disse. Para Foucault, ―a descrição de acontecimentos do discurso coloca uma outra questão bem diferente: como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar‖ (FOUCAULT, 2014, p. 33). Ainda no post em sua página no Facebook, Giovanna continua narrando o ocorrido: A hostess, que deveria ser a pessoa que recepciona o cliente e o trata da MELHOR maneira possível pra que no futuro ele retorne, me disse o seguinte: "A Capricho não acabou? Hahahahaha". A maneira como ela falou foi tão sarcástica e nojenta que senti vontade de vomitar na cara dela. Aqui, vemos as marcas de um tempo e as circunstâncias que possibilitaram (de maneira simplificada) o aparecimento do enunciado em questão e não outro em seu lugar. Giovanna não diz que trabalha na Capricho ou ainda que é jornalista na revista, pois não há mais espaço para esse enunciado, não há espaço para ser jornalista em uma revista impressa que vê suas vendas nas bancas caírem gradualmente5. Mas há, nesse mercado em constante renovação, a possibilidade de se apresentar como blogueira; articular aquilo que já é permitido dizer. Foucault explica que [...] todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito; e que este já-dito não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um ―jamais-dito‖, um discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu próprio rastro. Supõese, assim, que tudo que o discurso formula já se encontra articulado nesse meiosilêncio que lhe é prévio, que continua a correr obstinadamente sob ele, mas que ele recobre e faz calar. (FOUCAULT, 2014, p. 30)

Antes de prosseguirmos em nossa análise, cabe aqui um espaço para a repercussão também na mídia tradicional do ocorrido com a blogueira da Capricho:

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C.f. KARHAWI, I.; SAAD CORRÊA, E. TV Capricho: experimentações no jornalismo online. in: IV Congresso Internacional de Ciberjornalismo, 2014, Porto.

Figura 2. Matérias sobre o caso da ―Blogueira da Capricho‖.

Há vários pontos levantados pela mídia e pelas redes sociais: caso de carteirada que não funcionou, arrogância da jovem de 20 anos e mesmo um rancor de nosso tempo (cultura hater) proferido contra as blogueiras. No entanto, observa-se nas manchetes das matérias o uso do termo ―blogueira‖. Portanto, há uma legitimação e aceitação do termo. O que parece ocorrer é uma recusa ao aceitar, vindo da blogueira Giovanna, o status embutido no termo. Uma ressalva importante: neste artigo, nossa intenção não é questionar a integridade moral e ética da situação e da posição de Giovanna, mas apontar as relações do enunciado da blogueira com uma formação discursiva, compreender o que ela enuncia ―[...] na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui‖. (FOUCAULT, 2014, p. 34). Há pouco mais de dois anos tem-se observado na blogosfera de moda um movimento para a profissionalização. Atentemo-nos: os blogs de moda existem há mais de dez anos, mas

como um espaço para trocas de opiniões, um hobby, um passatempo. Hoje, essas novas mídias vivem o período de consolidação de seu processo de profissionalização. Cronologicamente; a) um internauta munido das ferramentas de produção da web cria um blog; b) o blog recebe atenção na rede, fideliza leitores e o seu autor passa a ter ―reputação virtual‖; b) o autor do blog ―perde‖ o status de internauta-produtor e passa a ser um blogueiro; c) o blogueiro também é visto como um especialista temático, especialmente pelas mídias tradicionais e o mercado que, direta ou indiretamente, alimenta; d) aquele internauta passa a consolidar um novo perfil profissional. Nesse processo, há um momento em que, não apenas os leitores, mas as marcas e as mídias tradicionais passam a trabalhar ao lado das blogueiras. A partir de um investimento financeiro, uma empresa é capaz de falar diretamente com seus consumidores pela voz da blogueira que, diferentemente de uma propaganda televisiva impessoal, é ―amiga‖ das consumidoras da marca. Por sua vez, as mídias tradicionais, especialmente as revistas direcionadas ao público feminino, aceitam as blogueiras de moda, não como ameaça ao trabalho do jornalista, mas como aliada do processo de disseminação de informação e aproximação de suas leitoras. Apesar de ocorrer na internet, espaço em que a velocidade é imperativa, esse processo não foi iniciado e concluído na mesma velocidade dos cliques. Durante o transcurso, as blogueiras - mesmo as com mais seguidores nas redes sociais e mais contratos com empresas de beleza - ainda tinham uma ―profissão formal‖ e respondiam tranquilamente a questões como ―qual o seu trabalho oficial?‖ ou ainda ―o que você faz além do blog?‖. Hoje, no correr dos anos, as blogueiras não buscam outras profissões para se apoiar, mas se denominam apenas blogueiras. E não há por trás desse discurso somente a possibilidade (recente) de se sustentar financeiramente com o blog ou a demissão do emprego formal, mas a possibilidade de ―falar‖. Quando Foucault (2014, p. 54) afirma que ―[...] não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova‖ e que nada está pronto a espera de um simples ato de fala, Foucault nos aponta que não se trata apenas de intitular-se como blogueira, mas perceber as condições de produção desse discurso em determinado período. Esse período, para as blogueiras de moda, é agora. Nossas reflexões até aqui nos trouxeram à seguinte conclusão (mesmo que ainda incipiente): Giovanna, a protagonista do caso ―Blogueira da Capricho‖, tinha a permissão para se intitular blogueira. Não irrompia de sua enunciação um discurso anônimo,

deslocado, desconexo. Mesmo que, a priori, o discurso acerca das blogueiras fosse apenas dispersão discursiva, quando Giovanna enuncia ―tenho um blog‖, na entrada de uma boate, há nesse momento o reconhecimento de uma regularidade discursiva, de uma formação. Foucault corrobora nossa afirmação: a proposta do autor não é desnudar um discurso, mas acompanhá-lo. O método arqueológico não seria válido se buscássemos o que está atrás de um discurso, mas aquilo que está nele agora. Nas palavras de Foucault, [...] não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário mantê-lo em sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é própria. [...] fazer uma história dos objetos discursivos que não os enterre na profundidade comum de um solo originário, mas que desenvolva o nexo das regularidades que regem sua dispersão (FOUCAULT, 2014, p. 58).

Avançaremos nossa análise com outro aspecto da teoria de Foucault. Ao mesmo tempo em que o autor afirma haver uma impossibilidade de falar sobre qualquer coisa em qualquer tempo, o autor expõe que: ―temos consciência de que não temos o direito de dizer o que nos apetece, que não podemos falar de tudo em qualquer circunstância, que quem quer que seja, finalmente, não pode falar do que quer que seja‖ (FOUCAULT, 1971, p. 2). É nesse ponto que partimos para outra nuance da formação discursiva em questão: os sistemas de interditos da linguagem. Parece ser, por meio dessas noções foucaultianas, que poderemos apontar hipóteses do motivo de a ―Blogueira da Capricho‖ ter causado tanto burburinho nas redes sociais.

Atravessamentos discursivos: quem enuncia o quê? É possível, a depender do ponto de vista, definir várias causas para o caso da ―Blogueira da Capricho‖ ter sido motivo de tantos deboches dos internautas e da imprensa. Podemos encarar o fato como uma tentativa mal sucedida de ―carteirada‖; um comportamento equivocado de uma jovem de 20 anos; um erro ao escrever um post em tom de desabafo e revolta em sua página pessoal no Facebook ou, simplesmente, o equívoco em se declarar blogueira. Mas onde estaria o equívoco uma vez que as formações discursivas, que fomos delineando ao longo do trabalho, nos permitiriam justificar a enunciação de Giovanna? Foucault (1971, p. 24) alega que ―[...] as figuras de controlo podem formar-se no interior de uma formação discursiva‖. Quando Foucault se deteve ao estudo da Loucura, o autor não apenas delimitou diferentes formações discursivas ao longo dos anos, mas também

identificou interditos e exclusões. Um apontamento importante é feito acerca da palavra do louco que ―[...] ou não era ouvida, ou então, se o era, era ouvida como uma palavra verdadeira. Ou caía no nada — rejeitada de imediato logo que proferida; ou adivinhava-se nela uma razão crédula ou subtil, uma razão mais razoável do que a razão das pessoas razoáveis‖ (FOUCAULT, 1971, p. 3). Há nesse episódio histórico não apenas um interdito, mas uma partilha e uma rejeição – como nomeia o próprio autor. Isso significa dizer que, apesar de uma formação discursiva assegurar o uso do termo blogueira, ainda assim a tomada da palavra não é desregrada. Nem todos podem enunciar; há espaços discursivos muito bem delimitados. Quando a hostess do Club Yacht em que Giovanna tenta entrar na festa questiona: ―mas a Capricho não acabou?‖, vê-se aí uma partilha e uma rejeição. Talvez a tentativa de Giovanna fosse bem sucedida se a revista a qual seu blog está vinculado não fosse descreditada. Há ainda um outro não-dito que aflora: ―quem é a blogueira da Capricho para dar carteirada?‖. Blogueira sim, mas da Capricho não. Giovanna teria possibilidades discursivas de se declarar blogueira, uma autoridade virtual permitida de olhar uma festa antes de decidir entrar na boate, mas a jovem é alçada a instância da não-blogueira. Ser blogueira significa algo além do blogar profissionalmente, ter muitos seguidores, ter reconhecimento em seu nicho virtual. Intitular-se blogueira faz parte de uma tomada da palavra que não foi concedida à Blogueira da Capricho. Para Foucault, há maneiras de controle dos discursos como ―[...] determinar as condições do seu emprego, de impor aos indivíduos que os proferem um certo número de regras e de não permitir, desse modo, que toda a gente tenha acesso a eles‖ (1971, p. 13). Não está muito claro, ainda, quais são os interditos definidos na formação discursiva que tentamos esboçar em nosso trabalho. É óbvio, no entanto, que da mesma maneira que Foucault acompanhou a história da Loucura por anos, não esgotaríamos a problemática proposta em um estudo de caso. Mas há algumas inferências possíveis de serem feitas. Foucault explica que um sistema de interdito de linguagem não é fixo, mas passível de mudanças: ―[...] de forma alguma se trataria de ver como é que esse sistema desapareceu progressivamente [...]; mas como é que ele se deslocou e rearticulou [...]. Os interditos não tiveram sempre o lugar que se imagina‖ (FOUCAULT, 1971, p. 22). Em um primeiro momento, ser ―apenas‖ blogueira de moda não se configurava profissão ou, caso configurasse, era uma função pouco louvável. Esse período foi marcado por anedotas e

uma tentativa de ignorar a ascensão da nova classe profissional da Web. Para ilustrar nossa afirmação, transcrevemos aqui um trecho da coluna da jornalista Nina Lemos na revista TPM, que mostra profissões dos anos 90 e suas correspondentes na contemporaneidade: A blogueira é a nova dona de butique! Sim, quem tinha pai rico ganhava uma butique. Hoje, faz um blog. Se for rica de verdade, faz os dois: um blog e uma butique. Um amigo nosso (quem disse foi ele, não a gente) chama essas profissões de “espera marido”6. Mas os blogs de moda e suas criadoras foram, com o passar do tempo, ganhando mais notoriedade na rede e, consequentemente, fora dela. Inaugurou-se, então, um novo discurso acerca da ascensão dos blogs como pode ser visto na figura 3.

Figura 3. Matérias e campanhas publicitárias repercutindo o trabalho das blogueiras de moda.

Já compactamos com a noção foucaultiana de que uma formação discursiva não existe apenas quando é enunciada, mas existe nas relações que dão base à enunciação. ―Essas relações são estabelecidas entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamentos, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação, modos de caracterização‖ (FOUCAULT, 2014, p. 55). É por esse motivo que uma manchete mais 6

―A blogueira é a nova dona de butique‖. Revista TPM (05/04/2013). Recuperado em 13 de março, 2015, de .

favorável aos blogs de moda não articula no tempo e no espaço um discurso, mas o coloca no campo da exterioridade: ―As coisas murmuram já um sentido que a nossa linguagem apenas tem de erguer; e a linguagem, desde o seu projecto mais rudimentar, fala-nos de um ser do qual ela seria a nervura‖ (FOUCAULT, 1971, p. 17). Mas é justamente a formalização de um discurso, o status da blogueira para-além do virtual, que desloca os interditos. Se inicialmente ―Eu sou blogueira‖ era uma interdição, na atualidade, criam-se formas de rejeição e de exclusão. Fazer parte de uma formação discursiva, tomar um discurso para si, não se restringe apenas à existência ou inexistência do mesmo, mas ao poder ou não de usá-lo. Outro exemplo pode ilustrar o ponto que levantamos: em novembro de 2013, o site da VejaSP divulgou a matéria intitulada ―Blogueiras de moda defendem criação de sindicato‖7. A intenção das blogueiras em criar um sindicato demonstra o jogo de saber e poder sobre o qual fala Foucault. Quando Thássia Naves, entrevistada na matéria e cujo blog tem cinco milhões de visitas mensais, defende que ―[nós, as blogueiras de moda] precisamos de regras‖, há aí a construção formal de um sistema de exclusão. Ainda, estipular regras e deveres no âmbito da lei determina sistemas de exclusão também no âmbito dos discursos. E desvela-se, nessa formação discursiva, marcas do poder, do interdito, da segregação, do desejo de fazer calar um discurso. O caso da ―Blogueira da Capricho‖ é sintoma desse movimento de realocação dos interditos na formação discursiva dos blogs de moda: é preciso ter o direito de fala que, aparentemente, a nossa blogueira em questão não detinha.

Algumas conclusões Antes de nossas conclusões teóricas, um ponto precisa ser retomado e frisado: nossa análise não se preocupou com o caráter ético ou, minimamente, com os bons modos (ou qual for a categoria em que se encaixe os atos de ―carteirada‖ ou, mais cotidianamente, ―furar filas‖). Desprendidos de qualquer juízo de valor para com a blogueira Giovanna, nosso trabalho almejou apenas pontuar momentos discursivos importantes para que o caso da ―Blogueira da Capricho‖ tomasse as proporções que testemunhamos.

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Recuperado em 13 de março, 2015, de .

Nosso trabalho permitiu observar sutilezas: uma nova profissão, uma nova palavra não se limitam ao seu uso, mas às milhares de relações (nunca completamente nomináveis) que a criam, sustentam, invadem, dispersam, regulam. Mesmo que não tenhamos consciência das formações discursivas e dos usos que fazemos dos discursos que circulam em nosso tempo, somos fruto desse berço invisível. Parece-nos que desvelar formações discursivas se faz necessário uma vez que aceitar a blogueira de moda como um novo perfil profissional da Comunicação não se restringe ao fato de os blogs terem alcançado o patamar de mídias rentáveis, mas de uma legitimação social e discursiva da prática. Mesmo que não haja consciência das formações discursivas e dos usos que fazemos dos discursos circulantes em nosso tempo, somos fruto desse berço invisível. A mesma situação se dá com as blogueiras de moda, suas leitoras e seu mercado de atuação. Não se trata apenas de uma profissão em acelerada consolidação, mas em processos de articulações discursivas constantes. Giovanna Ferrarezi, a blogueira da Capricho, é filha de seu tempo, de seus discursos, de sua profissão. E filha - não podemos ignorar! - dos nós da internet: esse ser tão invisível quanto as formações discursivas que o sustentam e com um poder de incluir e excluir tão veloz quanto os links que construímos com nossos cliques. REFERÊNCIAS FOUCAULT, M. (1971). A ordem do discurso - L‘Ordre du discours, Leçon inaugurale au Collège de France. Paris: Éditions Gallimard. FOUCAULT, M. (2014). Arqueologia do Saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. GREGOLIN, M. R. (2006). Foucault e Pêcheux na análise do discurso – Diálogos & Duelos. São Carlos: Claraluz. AMARAL, A.; RECUERO, R.; MONTARDO, S. (Eds.). (2009). Blogs.Com: estudos sobre blogs e comunicação. São Paulo: Momento Editorial, 2009. LEMOS, A. (2002). A Arte da Vida. Webcams e Diários Pessoais na Internet. Revista de Comunicação e Linguagens (pp. 305-319), Lisboa. PRIMO, A. (2008). Os blogs não são diários pessoais online: matriz para a tipificação da blogosfera (pp. 122-128). Revista FAMECOS, v. 36. ROCAMORA, A.; BARTLETT, D. (2009). Blogs de mode: les nouveaux espaces du discours de mode. Sociétés, n.104, p. 105-114. TRASEL, M. (2009). A vitória de Pirro dos blogs: ubiquidade e dispersão conceitual na web. In: AMARAL, A.; RECUERO, R.; MONTARDO, S. (Eds). Blogs.Com: estudos sobre blogs e comunicação (pp. 93-108). São Paulo: Momento Editorial,.

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