\"Sou brasileiro e não desisto nunca\": o nacionalismo e a comunicação de massa

July 1, 2017 | Autor: C. Miglioranza | Categoria: Identidade Nacional, Nacionalismo, Comunicação De Massa
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“Sou brasileiro e não desisto nunca”: O nacionalismo e a comunicação de massa Cristiane Miglioranza1 Resumo O sentimento de pertencer a um lugar, a uma sociedade, é básico no ser humano. Esta necessidade pode ser – e freqüentemente é – explorada pelo estado nacional, que visa à identificação de diferentes indivíduos com um plano comum como forma de subsistência. Sob a bandeira nacional co-existem diversas realidades, mas que podem assumir uma identidade comum: a nacional. A mídia, no que toca à sua característica aproximadora, é uma ferramenta de grande alcance e muito vantajosa na homogeneização e disseminação de idéias institucionais, cuja mística, se bem evocada, pode criar ícones e frases de ordem unificadores. O presente estudo de caso trabalha com estas premissas, aplicadas à campanha institucional “Sou brasileiro e não desisto nunca”, uma parceria entre o governo federal e entidades privadas, que alcançou grandes níveis de aceitação em todo o país. Palavras-chave: Nacionalismo. Identidade nacional. Comunicação de massa.

1 Um movimento pela auto-estima Tendo como objetivo principal incitar nos brasileiros um sentimento de determinação pessoal e pertencimento social, foi veiculada na mídia nacional em 2004 uma campanha publicitária organizada pela Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), Agência Lew, Lara e pela Secretaria de Comunicação do Governo Federal (Secom). Através da criação de um movimento com o tema “o melhor do Brasil é o brasileiro”, cujo lema – slogan, no jargão publicitário – é “sou brasileiro e não desisto nunca”, a campanha contou com peças para a mídia impressa, spots radiofônicos, outdoors em cidades de médio e grande porte e com uma aclamada série de comerciais para televisão. Fazendo uso de experiências de pessoas públicas – ou “celebridades” – como o jogador de futebol Ronaldo Nazário, o cantor Herbert Vianna e o maratonista Wanderlei dos Santos, e de “gente do povo” como Roberto Carlos Ramos, Maria José Bezerra e o senhor Francisco, o material teve, conforme o Ibope, aceitação de nove entre dez brasileiros. 1

Jornalista, formada em Comunicação Social pela Universidade de Passo Fundo (UPF), especialista em Gestão de Processos de Comunicação pela Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul (Unijuí) e mestranda em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Editora e membro do Conselho Editorial do Jornal Cultural Independente Cadafalso, de Passo Fundo. E-mail: [email protected]. Este trabalho foi produzido na disciplina de História Regional do Mestrado em História da UPF, sob a orientação da prof. Dra. Ana Luiza Setti Reckziegel [email protected].

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A pesquisa ouviu, entre 9 e 15 de dezembro de 2004, 2002 pessoas a partir de 16 anos de idade e com graus de escolaridade variados. A coleta de dados foi realizada após um recesso de 60 dias entre a primeira e a segunda veiculação da campanha e apontou um índice de lembrança – sharing – em 70% da amostragem. Destes, 26% sabia descrever em detalhes o teor do material veiculado, o que foi considerado extremamente positivo pelo Ibope. A margem de erro calculada foi de dois pontos para mais ou para menos e a confiabilidade no resultado em 95%. A informação foi comemorada pelo ministro-chefe da Secom na época, Luiz Gushiken, segundo quem “a valorização da identidade brasileira” foi uma mensagem que tocou empresas e sociedade. A valorização de um sentimento nacionalista é, conforme Monserrat Guibernau2, uma forma de discurso moderno da legitimidade política. A nação, exaltada neste tipo de propaganda, evoca comunidade, que, por sua vez, indica proteção. Ser “brasileiro” é ser diferente de quem pertence a uma outra nação, é distinto, é qualitativo, ou seja, “melhor”. Implica em fazer parte de uma comunidade que acolhe, ao mesmo tempo em que assegura, a preservação de seus integrantes frente aos interesses do resto do mundo. Ou seja, a garantia de uma proteção uterina por parte do Estado Nacional. É Guibernau quem ainda ressalta que o estado moderno pretende ser a expressão da “vontade do povo”, baseando seu discurso na soberania popular, o que daria legitimidade ao governante e ao sistema de governo. Ela define o estado nacional como:

Um fenômeno moderno, caracterizado pela formação de um tipo de estado que possui o monopólio do que afirma ser o uso legítimo da força dentro de um território demarcado, e que procura unir o povo submetido a seu governo por meio da homogeneização, criando uma

2

GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismos – O estado nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p. 55.

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cultura, símbolos e valores comuns, revivendo tradições e mitos de origem ou, às vezes, inventando-os3.

No caso de uma qualidade como a perseverança sob a adversidade, mensagem geral da campanha em estudo há a criação e o enaltecimento de um valor inerente ao ser “brasileiro”, que ao mesmo tempo também diz respeito ao país e seus governantes. Já foi dito pelo jornalista Marcelo Coelho, em artigo veiculado no jornal Folha de São Paulo e reproduzido pelo site Observatório da Imprensa4, que a campanha “sou brasileiro e não desisto nunca” também contém sua dose de homenagem ao presidente Lula, um homem que concorreu diversas vezes à presidência do país e que tem em sua trajetória um histórico de superação pessoal que remonta ao passado de retirante e de chão de fábrica. “A vantagem do slogan está precisamente aí: faz da paciência e da submissão do brasileiro um prodígio de combatividade e inconformismo. Todos se reconhecem como maratonistas olímpicos sem que precisem sair do lugar”, escreve Coelho. O “todos” de Coelho pode ser enquadrado, ainda, em uma categoria definida pelo sociólogo francês Edgar Morin: a do “grande público”. O grande público é formado pelo “homem médio”, ou “anthropos universal”, uma unidade idealizada com a função de facilitar aos emissores de mensagem a criação de conteúdos genéricos, ecléticos, de alcance homogêneo, de “máximo consumo”. Ou seja, “o lugar-comum, o meio de comunicação entre os diferentes estratos e as diferentes classes”5. Neste caso, a emoção é veículo para o enaltecimento de um sentimento nacionalista. A “homogeneização” de Guibernau.

3

GUIBERNAU, Op.cit., p. 56. COELHO, Marcelo. Brasileiro. In Observatório da Imprensa, 22/09/2004. http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=296ASP002 Acesso em 23/11/2007. 5 MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. Vol. 1: Neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária: 2005. p. 43. 4

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A criação de uma identificação/identidade como esta viria cumprir três funções básicas: ajudar a fazer escolhas, tornar possível a relação com os outros e conferir força e capacidade de adaptação. O que, citando novamente Guibernau, dá “poder” à cultura nacionalista, poder de criar identidade, algo sem o que os indivíduos não podem viver e que não pode mudar com facilidade6. A nação – o todo – é a soma das pequenas partes, e neste caso, não de regiões como definiu Anne Marie Thiesse7 falando do regionalismo francês, mas, sim, de indivíduos, seus cidadãos.

2 O uso das “celebridades” na edificação de um mito Voltando à pesquisa feita pelo Ibope, pode-se constatar algumas variáveis dentro da aceitação da campanha pela categoria definida, pelo próprio

instituto,

como

“brasileiros”.

A

referência

a

protagonistas

“celebridades” – Ronaldo, Herbert Vianna e Wanderlei dos Santos – responde pela quase totalidade das menções espontâneas de lembrança da campanha. Outro dado relevante é que o índice de jovens entre 16 e 24 anos que lembrou das peças publicitárias em detalhes é superior ao resto dos entrevistados, independente de escolarização. Isso vem a corroborar a tese de Morin de que a “cultura de massa é jovem” e “olimpiana”. E aqui, não se pode esquecer que o nacionalismo do século XX faz largo uso dos meios de comunicação, e que, por esta lógica inerente a eles, se insere nesse contexto. A cultura de massa é jovem para Morin porque, para compor o “grande público”, a mídia realiza uma mixagem de idades numa nota dominante, intermediária: a juvenil. “Uma homogeneização da produção se prolonga em homogeneização do consumo, que tende a atenuar as barreiras entre as

6

GUIBERNAU, Op.cit., p.89. THIESSE, Anne Marie. La petit patrie endosse dans la grande: regionalismo e identidade nacional na França durante a Terceira República. In Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 8, nº. 15, 1995. 7

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idades”8, explica. É olimpiana, em referência à antiga morada dos deuses gregos – o Monte Olimpo -, porque ressalta celebridades da grande imprensa, ou seja, astros de cinema e TV, esportistas, príncipes, reis, políticos, artistas e playboys. Para o sociólogo, “a informação transforma esses olimpianos em vedetes da atualidade. Ela eleva à dignidade de acontecimentos históricos acontecimentos destituídos de qualquer significação política”9. Ou seja, não é fenômeno nenhum, que a recuperação de Ronaldo após problemas no joelho e sua volta triunfal aos campos, assim como o retorno de Vianna aos palcos, paralisado após um acidente quando o monomotor que pilotava vitimou sua mulher, e a perseverança de Wanderlei em terminar uma prova de atletismo depois de ser interrompido por um padre irlandês nas Olimpíadas, alcançando o terceiro lugar ao invés do primeiro, sejam o carro-chefe de identificação com o “brasileiro não desiste nunca”. Os “heróis-modelo” encarnam os mitos de autorealização da vida privada. Outro ponto responsável pelo alto nível de identificação do público-alvo com a campanha – os 70% do Ibope – foi a aura de “happy end” das peças publicitárias. Para explicar este conceito, nos utilizamos novamente de Morin, que define o happy end não como reparação ou apaziguamento, mas como irrupção da felicidade:

A idéia de felicidade se torna o núcleo afetivo do novo imaginário. Correlativamente, o happy end implica um apego intensificado de identificação com o herói. Ao mesmo tempo em que os heróis se aproximam da humanidade quotidiana, que nela imergem, que se impõem seus problemas psicológicos, são cada vez menos oficiantes de um mistério sagrado para se tornarem os alter ego do espectador10.

8

MORIN, Op.cit. p. 39. MORIN, Op.cit., p. 105. 10 Idem, p. 93. 9

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A criação de uma identidade a partir de postulados como o otimismo da felicidade e o otimismo da rentabilidade do esforço e a sua seguinte extensão a toda uma nação, só pode, desta forma, ser bem sucedida. O objetivo da ABA e da Secom era mesmo o de “melhorar a auto-estima do país”11. Agora, por que a escolha deste viés para uma campanha institucional com fins nacionalistas? Por que aumentar a auto-estima do brasileiro? Isso pode ser explicado através da análise do modo de como se cria uma identidade nacional. Uma identidade é criada através da instituição de laços e do fomento destes com vistas ao sentimento de pertencer. Ainda, deve conter uma alta carga emocional. Para concluir, deve imprimir uma marca de diferença em relação ao “outro”, o estrangeiro. O brasileiro da campanha é membro de um povo que persevera mesmo sofrendo com o desemprego, inflação, violência, etc., e assim alcança o final feliz. Ele é brasileiro, e não cidadão de outro estado. E, acima de tudo, se emociona e se identifica com a redenção pela dor. A música “Tente outra vez”, sucesso do cantor Raul Seixas, mais a estética das peças, cuja produção é de alta qualidade, com uma edição digna de Hollywood, toca fundo no psicológico. Jovem ou não, homogeneizou o público, tanto que o lema “sou brasileiro e não desisto nunca” saiu do contexto institucional da campanha para figurar nas mais diversas situações cotidianas, de jogos de futebol à descrença na política, de conversas entre amigos a desilusões amorosas.

3 Considerações finais O nacionalismo já foi comparado à religião por vários estudiosos. E, como tal, além da instituição de mitos e rituais, precisa ser constantemente renovado. A identidade nacional deve ser continuamente recriada ou relembrada, os símbolos alimentados e os ritos repetidos, até serem sacralizados. No caso da campanha do governo federal em parceria com a ABA 11

Dito por Orlando Lopes, presidente da ABA na época, ao Ibope.

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e Lew, Lara, Ronaldo é o novo Pelé, um brasileiro que deu certo pelo esforço. “Sou brasileiro e não desisto nunca” já foi comparado por Marcelo Coelho ao “Brasil, ame-o ou deixe-o”, um dos lemas da ditadura militar. A campanha foi veiculada ao menos em duas temporadas diferentes. Também consta do material disponibilizado pelo Ibope na internet que os responsáveis pela campanha do “não desisto” usarão os dados da pesquisa para aprimorar o planejamento da comunicação e desenvolver novas ações para estimular a auto-estima da população12, o que eles definem como “principal objetivo do movimento”. A

“educação”

para

o

nacionalismo,

antes

desempenhada

preponderantemente pela escola, como demonstram os trabalhos de Thiesse e Guibernau, transfere-se para a mídia, com a vantagem de alcançar mesmo um público já fora dos bancos escolares. A cartilha, agora midiática, é repetida em doses homeopáticas, às vezes nem tanto, renovando a crença numa identidade nacional a cada momento. O que facilita, no pensamento de Guibernau, o poder do estado sobre seus cidadãos: os meios de comunicação e a educação, uma vez usados com maestria, exercem papel definitivo na reprodução e modificação da cultura, tornando-se cruciais na homogeneização da população sob a bandeira nacional. Recebido em julho de 2008. Aprovado em agosto de 2008.

12

Uma “coincidência” interessante é a propaganda institucional da empresa siderúrgica Vale – ex – Rio Doce – onde o sentimento nacionalista também é exaltado. A peça publicitária foi veiculada em dezembro de 2007 na TV e nos maiores veículos impressos do país, logo após o sucesso de outra campanha explicativa, nomeada “batismo”, que comunica o encurtamento do nome da empresa. No link “campanhas” da Vale na Internet, a empresa justifica que “planeja estrategicamente a comunicação com seus públicos, reforçando seu papel na transformação de recursos minerais em produtos essenciais para a vida de todos, enfocando seus valores e seu compromisso com o desenvolvimento sustentável”. Muito provavelmente o sucesso constatado pelo Ibope no caso do “sou brasileiro e não desisto nunca” teve influência na definição pelo tema valorização da auto-estima nacional. O filme e as peças para jornal e revista podem ser visualizados em http://www.vale.com/vale/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=13

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Referências bibliográficas COELHO, Marcelo. Brasileiro. In Observatório da Imprensa, 22/09/2004. http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=296ASP002 Acesso em 23/11/2007. GOVERNO FEDERAL. http://www.brasil.gov.br/pais/ Acesso em 23/11/2007. GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismos: O estado nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. IBOPE. Campanha “O melhor do Brasil é o brasileiro” tem recall positivo da população. http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=6&proj =PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=pesquisa_leitura&nivel=null&docid=3 71A136D98468A4C83256FAA0064D7C0 Acesso em 23/11/2007. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. Vol. 1: Neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária: 2005. THIESSE, Anne Marie. La petit patrie endosse dans la grande: regionalismo e identidade nacional na França durante a Terceira República. In Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 8, nº. 15, 1995. VALE. Campanhas. http://www.vale.com/vale/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=13 Acesso em 26/12/2007.

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