\"Sou criacionista, e agora? Como aplicar a crença às práticas da igreja.\" Foco Na Pessoa no. 3 (2016): 30-35

May 28, 2017 | Autor: Elmer Guzman | Categoria: Practical theology
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Por Elmer A. Guzman

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PRINCÍPIOS DE MOBILIZAÇÃO

A

hermenêutica criacionista é a área onde o adventismo encontra sua legitimidade ou falsificação.1 Além de pautar tópicos em cosmologia contrários ao espírito da época, a cosmovisão gerada deste entendimento condiciona toda a construção teológica adventista, com desdobramentos em diversas áreas.2 Proponho que uma prática eclesial moldurada pelas premissas criacionistas poderia se tornar em um argumento persuasivo ao demonstrar a incorporação da crença na vida. Neste artigo focalizarei três aspectos norteadores da atividade missionária, colocados em forma de pergunta, que podem ser aprimorados por uma hermenêutica criacionista: Como fazer a obra? Para quem? Para quê?

Como fazer a obra? Tão importante quanto o quê fazer é o como fazer a prática eclesial missionária. A missão é uma atividade em busca de atingir um determinado fim. Como qualquer outro tipo de atividade, ela demanda razões para sua prática, e é neste terreno misterioso das motivações humanas que levanto a questão das origens aplicada às formas de encorajamento. Como não existe um gatilho motivacional mágico para mobilizar tudo e a todos, atenho-me a uma das formas motivacionais populares: a prática da competição.3 A lógica da competição é o estabelecimento de parâmetros para avaliar e aferir valor. Esta forma de motivação gera resultados e impulsiona o desempenho, partindo do pressuposto referencial de que para existir ganhadores deve haver necessariamente perdedores. Ilustro com uma analogia esportiva. O que seria melhor: Fazer parte de um time vencedor na segunda divisão, ou do mesmo time, porém perdedor na primeira divisão? Embora o time seja o mesmo, a mudança de referência muda completamente a avaliação. Desta forma, a competição apenas existe quando os esforços de um agente são emoldurados em contraste com os de outro agente. Competente, neste entendimento, é aquele que se sobressai, ou, em termos darwinistas, o mais apto para sobreviver. O modelo evolucionista de competição biológica aplicado às relações humanas gerou um dos capítulos mais trágicos da civilização humana. O darwinismo so-

cial do partido nacional-socialista alemão tentou efetivar a soberania da raça ariana de forma catastrófica.4 Ecos desta lógica de higienização social são ouvidos em países onde a prática do genocídio ainda ocorre vergonhosamente. É bem verdade que a causalidade histórica é muito mais complexa, e outros fatores devem ser levados em conta, porém é inegável a influência evolucionista nessa mentalidade da sobrevivência do mais apto, que continua disseminada no Ocidente, mesmo que destituída dos machados e câmaras de gás. Embora a mentalidade competitiva também exista nas práticas de igreja, principalmente na objetificação de resultados, tal procedimento deve ser analisado à luz de parâmetros referenciais mais amplos e universais, diminuindo assim a retórica comparativa. Apesar de ser importante reconhecer o mérito do esquema competitivo em termos gerais, ainda assim ela é alheia à memória missionária registrada pela embaixada de mensageiros bíblicos (1 Cor 1:12, 3:4). Mesmo as metáforas esportivas usadas por Paulo para descrever a jornada cristã não enfatizam a competição em si5, mas sim, a disciplina e a obtenção da recompensa incorruptível (1 Cor 9:24–27). Na realidade, o próprio Mestre cortou na raiz a pretenção de alguns discípulos de gerar um ambiente competitivo de favoritismo e hierarquia, apontando para um modelo de lógica inversa (Mc 10:35–40). Nele, o mais forte não é o mais apto, mas o que mais serve (Mt 20:26); não é o mais sábio, mas o mais simples que se apega a Cristo

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Para quem? Um modelo evolucionista em busca da identidade e substância humana sustenta que o homem e mulher não passam de animais, diferentes apenas em grau, e não em natureza.6 No paradigma bíblico, embora o primeiro casal tenha sido criado no mesmo dia dos animais, o ser humano recebe valor elevado por ser criado à imagem e semelhança de Seu Criador, assim como compartilhando algumas responsabilidades divinas. O primeiro casal cria a realidade ao dar nome às coisas, serve e cuida da terra e, o mais sublime ato, eles procriam. Este elevado valor intrínseco do ser humano não aparece nem em explicações naturalistas tampouco em outras cosmovisões alternativas nas quais o ser humano é passível de estratificação social. Os exemplos dessa estratificação social abundam como no sistema de castas hindus e na estratificação social ainda presente na divisão de espaço interno dos aviões. Mas quando o mesmo sistema de estratificação social ocorre nas práticas da igreja, ou seja, quando o valor intrínseco do ser humano é substituido por outro critério (Tg 2:1–4), essa atitude infringe gravemente o argumento criacionista ao lançar por terra o alto valor intrínseco da vida humana. Mesmo quando essa estratificação social é construída involuntariamente.

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(1 Cor 1:27); não é o mais assertivo, mas o mais manso (Mt 5:5). Este modelo inverso é um forte protesto às práticas que tomam por base a lógica evolucionista da competitividade que preserva o mais apto e favorece o mais forte. Assim, implantar na prática eclesial uma mentalidade motivacional competitiva, natural do darwinismo social ou do neocapitalismo moderno, seria uma evidência de que a crença fundamental número seis, “A Criação”, não está integrada aos valores do dia-a-dia.

“Lindo, és, meu Mestre”

O viés implícito é um ponto cego que permite a emissão de juízo defeituoso involuntário.7 A correção desses juízos depende de uma conscientização autocrítica. Isto não implica na tentativa de ver a realidade sem pressuposições, mas apenas aponta para a necessidade de reflexão na elaboração de critérios que pautam as práticas eclesiais. Exemplifico esta questão de viés implícito com dois tipos relativamente comuns: viés étnico e viés estético. Primeiramente, o viés étnico foi notório na criação de campos locais (associações regionais) segregados nos EUA, que ainda mais de meio século depois, mantêm o paradigma de alienação racial no seio da estrutura eclesial. O movimento dos direitos civis americano trouxe à tona a existência de discriminação racial dentro da igreja, justificando assim a criação desses campos segregados como um paliativo à injustiça na mesma época.8 O objetivo dessa ação era fazer com que o viés implícito se tornasse explícito. Um segundo exemplo de viés implícito é o favorecimento involuntário de pessoas não necessariamente competentes, porém consideradas bonitas ou atraentes sob critério estético corrente. Para realizar a estratificação leva-se em conta a matriz cultural, altura, proporções corporais, sotaque, entre outras características. Apesar da estética ser persuasiva basta lembrar que o hino“Lindo, és, meu Mestre” é apontado como aquele em quem “não havia beleza nem formosura” segundo Isaías. Ora, se o viés continuar implícito, o mal se alongará, porém, se explicitado seu impacto, será controlado. Banaki e Greenwald propõem que a criação de mecanismos para limitar os nossos próprios pontos cegos é a maior ferramenta para superar nossos juízos de valor automáticos e debilitados.9 Estes mecanismos funcionam como complemento, e não substituto, da intervenção divina na renovação da mente (Rm 12:2). Então, quem é o meu próximo? A obra deve ser feita para quem? A questão da natureza humana deve ser considerada para que os males da narrativa do samaritano não continuem se repetindo, através de várias formas de estratificação social que, por vezes, nos fazem passar de largo às necessidades dos outros (Lc 10:25-37). Para Quê? Reiteirando a pergunta completa: A obra missionária serve para quê? A resposta rápida: para promover e gerar vida. A resposta longa é a explicação do plano da redenção começando com protologia (criação) e terminando com escatologia (fim), tendo no meio a queda, a expiação de Cristo e o comissionamento da igreja a ir a todo o mundo. No entanto, temo que, na sequência do ensino da mensagem cristã, a doutrina da criação seja tratada fortuitamente, ao passo que a doutrina do pecado (que-

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“A criação é linda apesar do acidente, e não feia, apesar da maquiagem.

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da, alienação) tenha deferimento especial para que a solução possa ser ainda mais gloriosa (expiação). Sugiro que um erro nas proporções possa pintar uma antropologia negativa fazendo a busca pela religião ser o medo da morte, ao invés das alegrias de uma vida plena na presença de Deus. Essa antropologia negativa propõe um ser humano totalmente depravado pela queda, sem o reconhecimento do devido valor do livre-arbítrio humano, reduzindo assim suas potencialidades. Contudo, cabe lembrar que a Bíblia não começa em Gênesis 3. A criação é linda apesar do acidente, e não feia, apesar da maquiagem.

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O tom criacionista deve impregnar a explanação da sequência da mensagem, com ênfase na promoção da vida plena e integral, existência frutuosa, ou seja, uma antropologia positiva com inúmeras potencialidades de efetivação da vida, sob o pensamento que o corpo humano pode fazer coisas incríveis (como correr uma ultramaratona), a mente pode explorar terrenos inexplorados nos campos da arte e das ciências, e acima de tudo, o ser humano pode ser restaurado segundo a imagem do Seu Criador. A hermenêutica criacionista propõe um estado de existência humana no qual a liberdade e livre-arbítrio

formam a premissa de todas as obrigações e enquadramentos sociais necessários para a construção da civilização, fazendo dos homens senhores, e não escravos, de seu próprio destino.10 Finalizando, neste texto sugeri que a Crença Fundamental número 6, A Criação, deve expandir seus desdobramentos em outras áreas da vida. Muito mais

do que um simples retorno às origens, a mentalidade criacionista não deve apenas ser o contorno da fronteira da existência humana, mas também uma mentalidade que ajude a descrever a densidade do ser humano, suas motivações, identidade, relações, propósitos, e, por conseguinte, implementar práticas que levem a sério as questões criacionistas.

1 Veja a obra de John Templeton Baldwin (ed.) Creation, Catastrophe, and Calvary: Why a Global Flood Is Vital to the Doctrine of Atonement (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000), que sustenta a plausibilidade da explicação criacionista à luz das doutrinas, texto bíblico e geologia. Esta obra propõe uma explicação alternativa tanto ao modelo macroevolutivo quanto aos modelos acomodativos de teísmo evolucionista. 2 Por exemplo: soteriologia, antropologia, escatologia e até mesmo uma justificativa para o estilo de vida vegetariano. Moskala esboça uma hermenêutica distintivamente adventista norteada pelo tema criacionista (Jiří Moskala, “Toward a Consistent Adventist Hermeneutics: From Creation through De-Creation to Re-Creation”, em Women and Ordination: Biblical and Historical Studies, ed. John W. Reeve [Nampa, ID: Pacific Press Publishing Association, 2015], 1-38), ao passo que Doukhan, de forma mais existencial, reflete sobre a identidade adventista levando em consideração a protologia e a escatologia (Jacques Doukhan, “The Tension of Seventh-Day Adventist Identity: An Existential & Eschatological Perspective”, Journal of the Adventist Theological Society 26/1 [2015]: 29-37). 3 Herbert L. Petri e John M. Govern. Motivation: Theory, Research, and Application, 6a ed. (Belmont, CA: Wadsworth, Cengage Learning, 2013). 4 Paul Lawrence Farber. The Temptations of Evolutionary Ethics (Berkeley: University of California Press, 1994), 3-4. 6 Desta forma, na visão naturalista, a razão e os instintos humanos emitem julgamentos éticos apenas como uma forma de facilitar sua sobrevivência e interesses próprios. Bauer oferece uma resposta crítica à ética evolucionista, partindo de um ponto de vista teísta, como endossado pelos Adventistas do Sétimo Dia (Stephen Bauer. “Moral Implications of Darwinian Evolution for Human Preference Based in Christian Ethics: A Critical Analysis and Response to the ‘Moral Individualism’ of James Rachels” [tese de PhD, Andrews University, 2006]). 7 Mahzarin R. Banaji e Anthony G. Greenwald. Blindspot: Hidden Biases of Good People (Nova York: Delacorte Press, 2013). 8 Gary Land. “Regional Conferenc”, Historical Dictionary of the Seventh-day Adventists (Oxford: Scarecrow Press, 2005), 243-244. 9 Banaji e Greenwald, 145-169. 10 Ellen G. White. Mensagens ao Jovens, 13a ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), p. 242. 5 Veja, por exemplo, outras metáforas esportivas paulinas em 1 Cor 9:24-26; Gl 2:2, 5:7; Fl 2:16; 2 Tm 2:5, 4:7 e Hb 12:1.

ELMER A. GUZMAN

Elmer A. Guzman é um educador adventista escrevendo sua tese de PhD em Teologia na Universidade Andrews, Estados Unidos. Contato: [email protected]

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