SOUNDWALKS EM BUENOS AIRES: um exercício de escuta estrangeira pelo espaço urbano e sua paisagem sonora

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SOUNDWALKS​ ​EM​ ​BUENOS​ ​AIRES:​ ​um​ ​exercício​ ​de​ ​escuta estrangeira​ ​pelo​ ​espaço​ ​urbano​ ​e​ ​sua​ ​paisagem​ ​sonora NEVES,​ ​MARCUS​ ​V.​ ​M.

1.​ ​Universidade​ ​Federal​ ​do​ ​Espírito​ ​Santo.​ ​Departamento​ ​de​ ​Teoria​ ​da​ ​Arte​ ​Música [email protected] [email protected]

RESUMO Este trabalho pretende refletir, a partir de questões ligadas à etnografia sonora, sobre quatro soundwalks registrados na cidade de Buenos Aires, Argentina, em Agosto de 2013. Pensaremos o espaço urbano e a paisagem sonora, captados na Calle Florida, Feira de San Telmo, em El Caminito e no traslado de metrô, sob a perspectiva do estrangeiro - este proponente, de naturalidade brasileira - que vai a passeio conhecer esses pontos turísticos urbanos que ao mesmo tempo refletem a delicada e enfraquecida situação social e econômica do país. As sonoridades fundamentais, as marcas sonoras, as relações sonoras humanas e arquitetônicas daqueles espaços gravados, potenciais fontes de poluição sonora, serão questões alvo da nossa discussão, assim como os sons que denunciam as carências sociais e econômicas menos perceptíveis aos outros sentidos. Toda proposta passará pela escuta e análise dos arquivos sonoros registrados, permitindo, assim, que a memória do pesquisador também contribua para o confronto com a memória sonora documentada em fonograma, possibilitando apontamentos de sensações e estranhamentos inerentes ao acesso ativo de​ ​uma​ ​escuta​ ​estrangeira​ ​a​ ​um​ ​espaço​ ​urbano​ ​e​ ​uma​ ​paisagem​ ​sonora​ ​que​ ​não​ ​lhe​ ​pertence. Palavras-chave:​ ​paisagem​ ​sonora;​ ​soundwalk;​ ​escuta.

 

 

Chegar em um novo lugar, principalmente quando se trata de um outro país, é se colocar defronte ao desconhecido em sua totalidade. Novos comportamentos e dinâmicas sociais, novos valores financeiros, sabores e cheiros, a língua, sua sonoridade e sentidos distintos do habitual, tudo constitui uma potente estranheza que nenhuma leitura de artigos, blogs ou visualizações no ​street view​, nenhum vídeo ou arquivo sonoro dão conta do choque que nos toma perante à nova realidade. Nos coube, no mês de agosto de 2013, chegar a Buenos Aires, capital da Argentina pela primeira vez, na condição de turista, porém o hábito da profissão não nos permitiu tal passagem sem nenhum registro sonoro. Tendo no bolso um pequeno gravador portátil profissional, Edirol R-09, durante as caminhadas pela cidade e por seus pontos turísticos realizamos alguns ​takes​. Entre cada ​rec e ​stop guardávamos pequenos ​flashes sonoros com dia e hora determinados que, ao serem escutados posteriormente,​ ​denunciariam​ ​o​ ​mote​ ​deste​ ​trabalho. Quer-se aqui re-escutar esta Buenos Aires captada e identificar nos quatro ​soundwalks destinados à análise, elementos sonoros que desvelam, somente pela via do som, situações e questões do cotidiano da paisagem urbana na qual estávamos inseridos. Para tanto, o ato da memória, a rememoração, também mediará a discussão e o acesso aos arquivos, pois a escuta in loco difere-se substancialmente do dado digitalizado no gravador. Não queremos aqui nem um análise nem uma escuta totalizante, objetivamos apenas uma ação reflexiva do registro​ ​pelos​ ​recursos​ ​da​ ​re-escuta​ ​e​ ​da​ ​memória. Edgar Allan Poe (1809-1849), em "O homem na multidão" (1840), já nos iniciou no ato de flanar pela cidade sem compromisso, sua personagem "mergulha sem cessar no meio do povo, ele nada, com delícias, no oceano humano" (BAUDELAIRE, 2003, p. 60). O autor expõe seus leitores ao ato de caminhar pelo novo ambiente urbano moderno que se consolidava no século XIX com a ascensão economia industrial levando ao drástico aumento da densidade demográfica das grandes cidades (MASSAGLI, 2008). Não sabemos nada sobre "o velho decrépito, de uns sessenta e cinco anos de idade" (POE, 1999) que mobiliza os sentimentos mais profundos do narrador e o faz sair da condição de observador passivo, sentado "ante à grande janela do café D.", para iniciar uma perseguição em meio à turba​ ​e​ ​ruas​ ​na​ ​tentativa​ ​de​ ​decifrar​ ​a​ ​"extraordinária​ ​história"​ ​escrita​ ​"naquele​ ​peito".

3​°​ ​COL​Ó​QUIO​ ​IBERO-AMERICANO​ ​PAISAGEM​ ​CULTURAL,​ ​PATRIM​Ô​NIO​ ​E​ ​PROJETO​ ​-​ ​DESAFIOS​ ​E​ ​PERSPECTIVAS Belo​ ​Horizonte,​ ​de​ ​15​ ​a​ ​17​ ​de​ ​setembro

  Para​ ​Massaglia,​ ​analisando​ ​a​ ​figura​ ​do​ ​flâneur: O f​ lanêur, ​portanto, é o leitor da cidade, bem como de seus habitantes, através de cujas faces tenta decifrar os sentidos da vida urbana. De fato, através de suas andanças, ele transforma a cidade em um espaço para ser lido, um objeto de investigação, uma floresta de signos a serem decodificados – em​ ​suma,​ ​um​ ​texto.​ ​(MASSAGLI,​ ​2008,​ ​p.​ ​57)

Beatriz​ ​Sarlo,​ ​escritora​ ​e​ ​crítica​ ​literária​ ​argentina,​ ​assim​ ​o​ ​descreve: Observar o espetáculo: um ​flâneur é um mirão mergulhado na cena urbana da qual, ao mesmo tempo faz parte: em abismo, o ​flanêur é observado por outro ​flâneur que por sua vez é visto por um terceiro e… O circuito do transeunte anônimo só é possível na grande cidade que, mais do que um conceito demográfico ou urbanísticao, é uma categoria ideológica e um mundo de valores (SARLO, 2005, p. 202-203)

Misturando-se à multidão em busca de uma resposta, o narrador de "O homem na multidÃo" se junta ao estado anônimo daqueles que compõe o "texto urbano" (CERTEAU, 2002, p. 171), deixa a observância, põe-se em ação para dar continuidade ao movimento do cotidiano e nos revela como o ato de flanar nos coloca diante do mundo. Todo ato de caminhar, antes de Poe e até hoje, nos exige o movimento, estabelece pontos de vista e escuta instáveis, cambiantes, e não nos permite criar vínculos com os objetos que não sejam aqueles que nos atraim em sua direção. Nossa apreensão sobre o tempo e o espaço se​ ​torna​ ​fragmentária​ ​e​ ​momentânea. Para Michel Certeau (2002) o ato de caminhar "está para o sistema urbano como a enunciação (o ​speech act​) está para a língua ou para os enunciados proferidos" (p. 177). Assim Certeau estabelece uma enunciação pedestre que tem por efeito uma tríplice função: [a] o processo de apropriação topográfica que o pedestre precisa estabelecer; [b] uma realização espacial do lugar; [c] e a implicação de "​relações entre posições diferenciadas, ou seja, 'contratos pragmáticos sob a forma de movimento'" (p. 177). Dá então uma primeira definição do ato de caminhar como "espaço de enunciação". Certeau dirige sua perquirição para a ideia de uma retórica ambulatória e, ao analisar a ​sinédoque e o ​assíndeto​, duas figuras de estilo descobertas por J.-F. Augoyard ao estudar relatos de práticas de espaços, aponta: "Do mesmo modo, na caminhada, seleciona e fragmenta e espaço percorrido; ela salta suas ligações e partes inteiras que omite. Deste ponto de vista, toda caminhada continua saltando, saltitando, como crianças, 'num pé só'. Pratica a elipse de lugares conjuntivos"​ ​(p.​ ​181). A caminhada compreendida como fragmentação e elipse, aproxima-se por demais tanto do ato de escolher o momento de apertar ​rec e ​stop de um gravador durante o caminhar, 3​°​ ​COL​Ó​QUIO​ ​IBERO-AMERICANO​ ​PAISAGEM​ ​CULTURAL,​ ​PATRIM​Ô​NIO​ ​E​ ​PROJETO​ ​-​ ​DESAFIOS​ ​E​ ​PERSPECTIVAS Belo​ ​Horizonte,​ ​de​ ​15​ ​a​ ​17​ ​de​ ​setembro

  quanto da própria escolha dos arquivos para análise posterior. Gravar um ​soundwalk é preservar e possibilitar que a qualquer momento poderemos acessar no presente um pequeno repertório da paisagem sonora compreendida em um espaço-tempo passado. A escuta aponta a necessidade de iniciar a gravação e qual o caminho a percorrer em busca de um registro que é, na verdade, uma mixagem de sons-espaços em tempo real. Posteriormente a (re-)escuta dos arquivos gravados, neste caso, potencializa não só a opção por uma edição e delimitação formal quando estamos pensando enquanto produto artístico, como o que, de fato, daquele material se evidencia informação relativa ao lugar que fora​ ​registrado. Por isso, escolher pela análise de quatro captações em lugares de apelo turístico é também fragmentar a memória do turista e delimitar uma impressão, não-totálitária nem enciclopédica, e assim, concentra-se somente nas questões sonoras impactantes e denunciantes de uma crise financeira, que entre picos e rarefações, abate o país visitado desde a década de 1990. Se o ​flâneur original, do século XIX, bucasva burlar as imposições urbanas da cidade moderna, na condição de ​turista/field recordista o circuito escolhido Calle Florida, Feira de San Telmo, El Caminito e Metrô - não escapa à política de acessibilidade privilegiada aos visitantes, contudo, o controle social não nos impede de ouvirmos​ ​as​ ​marginalizações​ ​ecoarem​ ​de​ ​dentro​ ​do​ ​próprio​ ​sistema.

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Soundscape é um neologismo vertido ao português como paisagem sonora, designa a possibilidade de pensarmos o som ao nosso redor e fora cunhado pelo compositor/educador Murray R. Schafer (1933-), no final dos anos de 1960. Schafer é autor de ​Tuning of the world​, publicado em 1977 e traduzido para o Brasil apenas em 2011 sob o título de ​Afinação do mundo​. Este livro traz as questões básicas sobre a temática desenvolvida por ele, Bruce

Davis, Peter Huse, Barry Truax e Howard Broomfield dentro do ​World Soundscape Project (WSP)​, projeto nascido na Simon Fraser University, no Canadá, oriundo do grupo de pesquisa​ ​de​ ​Schafer. A paisagem sonora urbana ainda é tema pouco discutido, privilegiando-se, nesse campo, estudos ligados sobremaneira às organizações sonoras que não tem o homem como interventor, como por exemplo, a ​biofonia​, sons gerados por fontes biológicas não humanas

e não domésticas, e a ​geofonia​, sons provenientes de fontes biológicas não naturais, 3​°​ ​COL​Ó​QUIO​ ​IBERO-AMERICANO​ ​PAISAGEM​ ​CULTURAL,​ ​PATRIM​Ô​NIO​ ​E​ ​PROJETO​ ​-​ ​DESAFIOS​ ​E​ ​PERSPECTIVAS Belo​ ​Horizonte,​ ​de​ ​15​ ​a​ ​17​ ​de​ ​setembro

  nomeclatura usada pelo pesquisador Bernie Krause (2013, p. 18). Porém, um estudo rigoroso ou mesmo uma escuta atenta (redundância necessária) da ​antropofonia - sons gerados pelos homens, como chama Krause - urbana ou, como queira Miguel Alonso Cambrón (2013), ​sociofonia​, nos apontaria caminhos importantes sobre o comportamento sonoro​ ​das​ ​urbes​ ​contemporâneas. Sobre​ ​o​ ​registro​ ​das​ ​paisagens​ ​sonoras​ ​naturais,​ ​Bernie​ ​Krause​ ​aponta: Mas, mesmo que curta, uma gravação não editada, bem captada, com ajustes corretos e abrangentes, não mente. As paisagens sonoras naturais estão repletas de informações ricas em detalhes, e embora uma imagem possa valer mais do que mil palavras, um panorama acústico vale mais do que mil imagens. Fotos representam fragmentos bidimensionais do tempo - eventos limitados pela​ ​luz,​ ​pela​ ​sombra​ ​e​ ​pelo​ ​alcance​ ​das​ ​lentes. As gravações da paisagem sonora, quando bem-feitas, são tridimensionais, dando a impressão espacial de profundidade, e, com o correr do tempo, podem revelar os menores detalhes e o desenrolar de histórias que os meios visuais jamais captariam sozinhos. Um ouvido bem-afinado e atenção às minúcias inseridas no contexto geral sempre revelarão qualquer tentativa de logro. (KRAUSE,​ ​2014,​ ​p.​ ​70-71)

À par das questões ligadas às formas de registro - existem diversas e o soundwalk é uma delas - e da qualidade dessas captações - pois muitas vezes a informação sonora gravada é mais relevante do que a qualidade com que o registro foi realizado -, nota-se que a apreensão do espaço e tempo no som é um fator preponderante para o estudo das dinâmicas sonoras de qualquer ambiente estudado. Porém, deixemos claro que há contributos que a fotografia opera impossíveis de verificação através do som, ou seja, cada meio​ ​de​ ​registro​ ​possui​ ​suas​ ​potencialidades​ ​e​ ​deficiências. Registrar e estudar a paisagem sonora urbana se faz necessário para a compreeensão da comunicabilidade acústica no seu interior e possibilita o reconhecimento de que toda cidade, por mais ruidosa que seja, carrega traços, ​sons fundamentais​, ​sinais e ​marcas sonoras (SCHAFER, 2001, p. 25-26) sociais, econômicas e afetivas particulares ao seu espaço. Dos sinos, buzinas, frenagens às línguas captadas com seus conteúdos semânticos ou não, seus timbres e qualidades de emissão, dos ​muzaks aos manifestos, todo som informa. O binômio ​hi-fi versus ​lo-fi defendido por Schafer (2001) no começo dos estudos em pasisagem sonora, quando os sons urbanos foram relegados à inferioridade qualitativa e informacional​ ​em​ ​relação​ ​aos​ ​naturais,​ ​necessita​ ​revisão. Bernie Krause, em ​A grande orquestra da Natureza (2013), chega a esboçar uma identificação mais precisa dos sons derivados da antropofonia em 4 tipos: [a] sons eletromecânicos - produsidos por meios de transporte, utensílios, objetos do dia-a-dia; [b] sons fisiliológicos - sons do corpo, inclui-se aqui a fala; [c] sons controlados - como "música 3​°​ ​COL​Ó​QUIO​ ​IBERO-AMERICANO​ ​PAISAGEM​ ​CULTURAL,​ ​PATRIM​Ô​NIO​ ​E​ ​PROJETO​ ​-​ ​DESAFIOS​ ​E​ ​PERSPECTIVAS Belo​ ​Horizonte,​ ​de​ ​15​ ​a​ ​17​ ​de​ ​setembro

  ao vivo ou gravada e os espetáculos teatrais"; [d] son incidentais - "são ruídos como passos e o farfalhar e o roçar das roupas, que também são controláveis e localizados (2013, p. 46-47). Mesmo com tal tipologia, é preciso identificar como esses sons constituem o texto sonoro​ ​urbano,​ ​em​ ​que​ ​circunstâncias​ ​ele​ ​se​ ​apresentam​ ​e​ ​quais​ ​relações​ ​eles​ ​constituem. Cambrón, acerca dos espaços públicos contidos dentro da esfera urbana - espaço onde majoritariamente o homem opera - aponta alguns caminhos para se vislumbrar o ruído da urbe​ ​como​ ​produtor​ ​de​ ​sentido​ ​(e​ ​nocividade): El espacio público vive por y para el ruido, es ruido aparente en constante decodificación, es nube de información por descifrar que estructura las acciones sonoras de sus usuarios. Ruido urbano es, pues, información en potencia, anomalía dispuesta para ser integrada. Es muestra de actividad y documento a ser analizado etnográficamente. Y el ruido en sentido amplio formaría parte del instrumentarium urbano que define Augoyard del mismo modo que de la sinfonía mundial a la que se refiere Schafer. Pero ruido (o sonido nocivo) y contaminación acústica aparecen también asociados a molestia, a deseo interrumpido de silencio y a imagen sonora de tranquilidad, relajación o concentración. Bienestar. (CAMBRÓN,2005)

Para o estudo desse ruído nos conglomerados urbanos Cambrón defende, em comparação com à ideia de biofonia descritiva por Bernie Krause em seu livro (2013), o termo ​sociofonia​, o qual entre suas finalidades atenderia também, dentro da experiência sonora sensível, aos estudos acerca do estado das relações interpessoais do hábitat humano, da interações sonoras​ ​na​ ​cidade.​ ​Assim: [...] la noción de ​sociofonía​, concepto que nos remite a lo interactivo de la experiencia sonora sensible. A la dimensión sistémica de la interacción pública sonora. Es parte integrante y conformadora de lo público, espacio social urbano por antonomasia. Es el sonido de la interactuación com el entorno lo que hace públicos nuestros movimientos, nuestra danza cotidiana. Se propaga en el espacio público como los movimientos de la superficie marina, no determina conjuntos cerrados por límites palpables sino eventos espacios-temporales que se rozan, se deforman, se invaden mutuamente, se mezclan… no existe una consistencia bioacústica en la ciudad más que enquanto tiene​ ​en​ ​cuenta​ ​la​ ​sociabilidad​ ​que​ ​acabamos​ ​de​ ​atribuir​ ​a​ ​la​ ​experiencia​ ​sensible​ ​de​ ​lo​ ​acústico.

Nosso trabalho segue portanto por este viés, uma discussão dessas interações sonoras apreendidas por uma escuta estrangeira defronte à inédita dança da ​soundscape portenha que nos era apresentada, cujas informações anteriores se davam apenas pelo lido e assistido na mídia brasileira: o tão comunicado estado crítico financeiro do país. Para a recolha deste material sonoro partimos da ideia de ​field recording​, a gravação de campo -

posteriomente ouvida sem edição -, o dar-se a captar os sons ​in loco​. Praticávamos tal ato no caminhar, o ​soundwalk​. Registrava-se no gravador, portanto, a direção, o movimento através da escuta. As aproximações, a velocidade dos passos, os ​crossfades entre os ambientes eram construídos em tempo real com o compromisso da ​flânerie de tentar ao 3​°​ ​COL​Ó​QUIO​ ​IBERO-AMERICANO​ ​PAISAGEM​ ​CULTURAL,​ ​PATRIM​Ô​NIO​ ​E​ ​PROJETO​ ​-​ ​DESAFIOS​ ​E​ ​PERSPECTIVAS Belo​ ​Horizonte,​ ​de​ ​15​ ​a​ ​17​ ​de​ ​setembro

  máximo escutar o marginal e o descomprometimento do turista com o movimento, trupicando​ ​pelos​ ​sons​ ​com​ ​o​ ​máximo​ ​idetismo​ ​que​ ​a​ ​rota​ ​turística​ ​no​ ​oferecia. A compositora canadense Hildegard Westerkamp (1946-), pertencente à segunda leva de pesquisadores​ ​do​ ​WSP​,​ ​descreve​ ​a​ ​prática​ ​do​ ​soundwalk​ ​como: Um passeio sonoro é qualquer excursão cujo objetivo principal é ouvir o meio ambiente. Ele expõe nossos ouvidos para todos os sons em torno de nós, não importa onde estamos. Podemos estar em casa, podemos estar caminhando em uma rua do centro, através de um parque, ao longo da praia; podemos estar sentados em um consultório médico, no saguão de um hotel, em um banco; podemos estar fazendo compras em um supermercado, uma loja de departamento, ou um supermercado chinês; podemos estar em pé no aeroporto, na estação de trem, na parada do ônibus. (2001, tradução​ ​nossa)

No passeio sonoro "o foco é redescobrir e reativar o nosso sentido da escuta" (2001). Além do ato individual ou coletivo de escutar em/no movimento o som ao redor, muitos optam por captar esse ato através da gravação, como nós, para várias finalidades, inclusive o acesso ao dado concreto registrado no arquivo digital daquele tempo-espaço sonoro, rememorar os percursos, dar à memória, mesmo que em apenas um fragmento capturado no passado, uma reatualização no presente das condições vivenciadas. Uma nova viagem, operada entre​ ​re-escuta​ ​do​ ​lugar​ ​e​ ​aquilo​ ​que​ ​ficou​ ​retido​ ​apenas​ ​na​ ​memória. Para Bauman, em "Turistas e vagabundos: os heróis e as vítimas da pós-modernidade", conferência proferida na Universidade de Virginia em 1995, a figura do atual turista é aquela que dar-se ao direito de "tropeçar com" as pessoas do lugar, sem compromisso, pois usufrui da "sensação recompessadora de 'estar sob controle'" (1998, p. 115).

Obtém-se um

"controle situacional" no qual prevalece "a aptidão para escolher onde e com que partes do mundo​ ​'interfacear',​ ​e​ ​quando​ ​desligar​ ​a​ ​conexão"​ ​(1998,​ ​p.​ ​115). O turista é aquele que por livre escolha decide deixar o conforto do lar para explorar, por-se em ​movimento​. Dono de suas decisões, prospecta aquilo que lhe é de interesse momentâneo, incluindo, sua escuta. Ouve com atenção o que deseja do lugar que não lhe pertence. Bauman coloca o turista como epítome do estado de não-"deter-se" e "evitar que se fixe" a identidade, ponto identificado como estratégia de vida na pós-modernidade. Aponta​ ​também​ ​para​ ​outra​ ​característica​ ​dessa​ ​figura: o turista guarda sua distância, e veda a distância de se reduzir à proximidade. É como se cada um deles estivesse trancado nunca bolha de osmose firmemente controlada; só coisas tais como as que o ocupante da bolha aceita podem verter para dentro, só coisas tais como as que ele ou ela permitem sair podem vazar. Dentro da bolha o turista pode sentir-se seguro: seja qual for o poder de atração do lado de fora, por mais aderente ou voraz que possa ser o mundo exterior, o turista está protegido. Viajando despreocupadamente, com apenas uns poucos pertences necessários à garantia contra a 3​°​ ​COL​Ó​QUIO​ ​IBERO-AMERICANO​ ​PAISAGEM​ ​CULTURAL,​ ​PATRIM​Ô​NIO​ ​E​ ​PROJETO​ ​-​ ​DESAFIOS​ ​E​ ​PERSPECTIVAS Belo​ ​Horizonte,​ ​de​ ​15​ ​a​ ​17​ ​de​ ​setembro

  inclemência dos lugares estrangeiros, os turistas podem sair de novo a caminho, de uma hora para a outra, logo que as coisas ameaçam escapar de controle, ou quando, seu potencial de diversão parece ter-se exaurido, ou quando aventuras ainda mais excitantes acenam de longe. O nome do jogo é mobilidade: a pessoa deve poder mudar quando as necessidades impelem, ou os sonhos o solicitam. (1998,​ ​p.​ ​114)

De fato, podemos averiguar inúmeras questões que permeiam tanto a ​perspectiva do turista quanto do ​field recordista​, principalmente no ato de registrar em movimento, como no caso

do ​soundwalk​. Aquele que grava tem o "controle situacional" sobre o ato de apertar o ​rec e o stop​, delimitando uma marca formal ao arquivo que ali fora registrado, tendo sido tal ação planejada mediante uma escuta prévia do lugar que pretendia ser registrado ou mesmo pelo impulso imediato e quase espontâneo de eleger em tempo real aquele instante como digno de um registro fonográfico. Ao passo que o turista evita a fixação no espaço-tempo e na identidade, o ​field recordista - seja em tomada fixa ou não - registra no suporte a identidade sonora daquele instante como produção de uma memória sonora que trará, na sua reprodução, elementos importantes para pensar sob várias perspectivas o porquê daqueles eventos​ ​sonoros​ ​naquele​ ​dia​ ​e​ ​hora. Estávamos nós na condição de ​turista field recordista - guardadas as distâncias identitárias e as escolhas de trajetos dentro de um nicho de locais especificamente frequentado pelos estrangeiros em passagem - registrando em movimento eventuais ​marcas que aos nossos ouvidos repercurtiam como dados ​sonoros relevantes à memória auditiva vinculada àquela cidade que nos acolhia. Cabe-nos agora recorrer à análise das gravações para evidenciar o que aqui se quer, perceber como esses registros corroboraram para, no âmbito da escuta, sensibilizar-se​ ​à​ ​crise​ ​alheia.

*​ ​*​ ​* Domingo,​ ​18​ ​de​ ​Agosto​ ​de​ ​2013,​ ​às​ ​10​ ​horas​ ​-​ ​Feira​ ​de​ ​San​ ​Telmo http://marcusneves.bandcamp.com/track/01-san-telmo

A Feira de San Telmo é um espaço onde se encontra uma das mais importantes e interessantes concentrações comerciais à céu aberto de antiquários, ​souvenirs​, discos, livros, entre tantos outros objetos e até mesmo animais. Ali também se concentram vários músicos de rua, grande parte devidamente amplificados, projetando suas canções e tangos à boas distâncias, interpenetrando-se no espaço sonoro, todos em busca do agrado financeiro que o turista pode depositar por sua exposição pública. A figura de Carlos Gardel, 3​°​ ​COL​Ó​QUIO​ ​IBERO-AMERICANO​ ​PAISAGEM​ ​CULTURAL,​ ​PATRIM​Ô​NIO​ ​E​ ​PROJETO​ ​-​ ​DESAFIOS​ ​E​ ​PERSPECTIVAS Belo​ ​Horizonte,​ ​de​ ​15​ ​a​ ​17​ ​de​ ​setembro

  em sua versão ​cover​, ali se encontrava, algo que marcou nossa memória visual. O apelo à imagem do ídolo portenho reflete a necessidade daqueles que ali disputam o espaço sonoro de se aproximarem ao máximo de seu público pela sensibilização e pela escolha do repertório. Os músicos de rua são uma das marcas sonoras ali localizadas assim como o vendedores de empanadas que disputam o mercado sonoro juntamente com todos vendedores de objetos sentados às calçadas e no meio da rua. Um polifonia do comércio ali se constituiu e, há muito, disputa na palavra a freguesia. O público local e os turistas também se manifestam, crianças choram e a massa sonora que ali se forma, no 300 metros registrados, está contida entre pequenos prédio que, com a estreiteza da rua nos permite ouvir uma sonoridade mais encorpada pelas reflexões que todas aqueles sons sofrem à todo momento. No centro da Plaza Dorrego, espaço aberto com maior concentração de barracas e pessoas, justamente quando ouvimos a maior intensidade de um grupo instrumental amplificado, aos 05:10 minutos, é que adentramos o espaço da praça e muda a qualidade sonora​ ​do​ ​ambiente​ ​registrado.

Domingo,​ ​18​ ​de​ ​Agosto​ ​de​ ​2013,​ ​às​ ​14h http://marcusneves.bandcamp.com/track/fixed-movement-iv

Após San Telmo, regressamos ao hotel, dentro do metrô, ao ouvir o músico que acabaar de entrar com seus equipamentos portáteis - uma caixa de som para amplificar seu microfone e seu violão - foi inevitável a dúvida entre sacar o gravador ou não. No ato de tomada de decisão, iniciamos o registro no meio da canção posteriormente identificada como "Mirenla" (2010), do grupo de rock ​Ciro y los persas​. A música fora sucesso nas rádios argentinas à época de seu lançamento, ou seja, a escolha do repertório daquele músico vagamente estava baseado na aproximação com o seu público pontual, encontrado a cada vagão acessado. O som caótico do metrô em movimento, suas portas abrindo e fechando por força da pressão de ar liberada, a alta campainha de alerta, as conversas entre passageiros que transformavam aquela execução ao vivo em um ​muzak costumeiro agraciado com poucas palmas,​ ​compunham​ ​aquele​ ​cenário​ ​sonoro. Ao fim da canção, após o breve agradecimento inicia-se a outra canção, não identificada e, com perverso grau de anempatia continuamos a ouvir ainda mais ruidoso o som do atrito entre o vagão e os trilhos, cuja a sensibilidade sonora acusa(vam) um problema que pertence a grande parte das redes de metrôs com baixo índice de manutenção, excessivo 3​°​ ​COL​Ó​QUIO​ ​IBERO-AMERICANO​ ​PAISAGEM​ ​CULTURAL,​ ​PATRIM​Ô​NIO​ ​E​ ​PROJETO​ ​-​ ​DESAFIOS​ ​E​ ​PERSPECTIVAS Belo​ ​Horizonte,​ ​de​ ​15​ ​a​ ​17​ ​de​ ​setembro

  ruído dentro do compartimento. Outra disputa sonora se dá ali: os passageiros se comunicam entre si, o música tenta se dirigir aos passageiros e o metrô, impassível, atropela qualquer possibilidade de comunicação e escuta minimamente saudável naquele espaço. Àquela altura, apesar das belas canções, já detectávamos que a ação dos músicos de rua, tanto em San Telmo, quanto no metrô da capital Argentina, denunciavam o f​azer musical em movimento como uma das tentativas de sobrevivência mediante a um cenário financeiro complexo. O ​ambulante sonoro é um ofício comumente encontrado nos grandes centros​ ​urbanos.

Segunda,​ ​19​ ​de​ ​Agosto​ ​de​ ​2013,​ ​às​ ​14h http://marcusneves.bandcamp.com/track/03-el-caminito

El Caminito é uma rua-museu e um dos mais famosos logradouros localizados no bairro La Boca, fora revitalizado para fomentar o turismo em uma região que tem grandes índices de periculosidade. De fato, durante o dia as ruas são tomadas por tursitas de diversas nacionalidades. Nesse pequeno fragmentos gravado em um espaço de 250 metros, podemos ouvir o som daquele momento do dia, o pico do horário de almoço. Sons de talheres dos mais diversos provenientes das mesas dispostas nas calçadas, junto à severa concorrência de ofertas realizada pelos garçons compõe as marcas sonoras daquela hora. São vários bares que usufruem da amplificação para difundir música gravada ou fomentar performances ao vivo de tango que se superpõe por toda a rua, do sapateado à voz e o acordeon, uma miscelânea de música baseada no repertório de tango, marca portenha. Evidentemente, o que deveria ser um atrativo, acaba por transformar-se em um excesso de informação sonora que persiste durante as horas do almoço, um desconforto acústico ao almoço. Tal evidência também pode ser apreendida como uma disputa sonora de âmbito financeira já que grande parte dos estabelecimento ali presentes são geridos por moradores locais ou os empregam diretamente. A revitalização em cores de um espaço imerso em uma região de periculosidade denunciada por todos que nos davam informações sobre o Bairro é uma tentativa política de usufruir das particularidades da cultura argentina para encobrir os problemas sociais que assolam a região, nada muito diferente da política adotada por tantos outros​ ​países,​ ​mas​ ​que​ ​ali​ ​opera​ ​através​ ​de​ ​uma​ ​colcha​ ​sonora​ ​de​ ​tangos​ ​e​ ​pratos.

Segunda,​ ​20​ ​de​ ​Agosto​ ​de​ ​2014,​ ​às​ ​10h 3​°​ ​COL​Ó​QUIO​ ​IBERO-AMERICANO​ ​PAISAGEM​ ​CULTURAL,​ ​PATRIM​Ô​NIO​ ​E​ ​PROJETO​ ​-​ ​DESAFIOS​ ​E​ ​PERSPECTIVAS Belo​ ​Horizonte,​ ​de​ ​15​ ​a​ ​17​ ​de​ ​setembro

  http://marcusneves.bandcamp.com/track/02-calle-florida

Talvez a Calle Florida, localizada no coração da Capital, seja o exemplo mais claro de como a crise financeira que assola o país desde 1999 pode ser escutada com maior vigor. Loteada de lojas cujas amplificações também provocam uma poluição sonora de anúncios e músicas típicas das grandes concentrações comerciais, assim como mais uma vez observamos a presença​ ​de​ ​músicos​ ​de​ ​rua,​ ​a​ ​Calle​ ​Florida​ ​se​ ​tornou​ ​o​ ​lugar​ ​do​ ​escambo​ ​financeira. Com a compra do dólar proibida desde 2011 e liberada apenas neste ano, 2014, todas as recomendações ligadas ao câmbio de moedas de forma rentável para quem possuía dólar, euro e/ou real o levariam à dica dada a todos os turista: troque seu dinheiro na Calle Florida. Qualquer fotografia esconderia facilmente no texto urbano um cambista como um transeunte qualquer, mas o arquivo sonoro ali apreendido nos denuncia uma polifonia do escambo ilegal. Como o canto da sereia, a chamariz "Cambio, cambio, cambio" ganha várias articulações e impostações que, no fundo, dão vazão ao histérico comércio financeiro ilegal que ali se realiza. O turista, captado pelo chamado, era levado ao subsolo das lojas para efetuar as transações a um câmbio superior às casa oficiais. Enquanto gravávamos, era facilmente localizável efetivos policiais que ali, sem qualquer reação, ouviam e visualizavam o que nos pareceu​ ​ser​ ​a​ ​sacralização​ ​da​ ​ilegalidade. Toda e qualquer conversa sobre troca de moedas tinha na Calle Florida o lugar exato para tal ação, logo, aquela rua estreita de grandes prédios, com alto índice de reflexão sonora, no coração da cidade era o lugar "legalizado" para a compra das moedas proibidas. Em meio à crise, em um ponto de apelo turístico, dado aos passos descompromissados que o turista requer, a escuta ​flâneur​, entre obras e transeuntes, dá-nos à chance de ouvir um coro marginal​ ​em​ ​meio​ ​à​ ​urbe​ ​desconhecida.

Referências

3​°​ ​COL​Ó​QUIO​ ​IBERO-AMERICANO​ ​PAISAGEM​ ​CULTURAL,​ ​PATRIM​Ô​NIO​ ​E​ ​PROJETO​ ​-​ ​DESAFIOS​ ​E​ ​PERSPECTIVAS Belo​ ​Horizonte,​ ​de​ ​15​ ​a​ ​17​ ​de​ ​setembro

  BAUDELAIRE, Charles. “o pintor da vida moderna.” ​Sobre a modernidade. S ​ ão Paulo: Paz e terra,​ ​2001. BAUMAN,​ ​Zygmunt.​ ​O​ ​Mal​ ​estar​ ​da​ ​pós-modernidade.​ ​Rio​ ​de​ ​Janeiro:​ ​Zahar,​ ​1998. CAMBRÓN, Miguel Alonso. Sonido y sociabilidad: consistencias bioacústicas em espacios públicos.

Revista

Quaderns-e,

2005.

Disponível

em

.​ ​Acesso​ ​em​ ​Jan​ ​2014. CERTEAU, Michel de. A inveção do cotidiano: artes de fazer. 8. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2002. KRAUSE,​ ​Bernie.​ ​A​ ​grande​ ​orquestra​ ​da​ ​natureza.​ ​Rio​ ​de​ ​Janeiro:​ ​Zahar,​ ​2013. MASSAGLI, Sérgio Roberto. Homem da multidão e o flâneur no conto "O Homem da Multidão" de Edgar Allan Poe. Disponível em .​ ​Acesso​ ​em​ ​Jan​ ​2014 POE, Edgar Allan. ​Os melhores contos de Edgar Allan Poe. ​trad. oscar mendes e milton amado. 3. ed. São Paulo: globo, 1999 SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-cultra na Argentina. Rio​ ​de​ ​Janeiro:​ ​Editora​ ​UFRJ,​ ​1997. ​ ​______.​ ​Paisagens​ ​imaginárias.​ ​São​ ​Paulo:​ ​EDUSP,​ ​2005. SCHAFER,​ ​M.​ ​Raymond.​ ​Afinação​ ​do​ ​Mundo.​ ​São​ ​Paulo:​ ​Unesp,​ ​2001.

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