SOUSÂNDRADE E O DEVIR-MINORITÁRIO DA LÍNGUA EM \"O INFERNO DE WALL STREET\"

May 23, 2017 | Autor: A. Cernicchiaro | Categoria: Philosophy Of Language, Literature, Language and Politics, Joaquim de Sousândrade
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SOUSÂNDRADE E O DEVIR-MINORITÁruO ON úrucun EM "o INFERNo DE WALL srREET"

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Ana Carolina Cernicchiaror

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RESUMO: Este trabalho propõe pensar o multidiomático, a polissemia, o hibridismo, o caos, os fragmentos e as dissonâncias de "O Inferno de WalI Street", o emblemático fragmento do poema épico O Guesq de Joaquim de Sousândrade, como uma resposta aos horrores do capitalismo especulativo que se desenvolvia intensamerlte no Íinal do século XIX. É como se, diante da visão antecipadora do inferno do capital, o poeta necessitasse de uma nova sintaxe, desviada, tensionada, uma utopia da linguagem, um língua dentro da própria língua, um devir-menor da línguamaior que abala a signiÍicação convencional dos signos e nos faz sall do automatismo, colocando em questão as naturalizações homogêneas e excludentes de nossa cultura, num devir-outro que é capat, de despertar outras percepções sobre o mundo, ou melhor, de nos fazer ver outros mundos, de criar linhas de fuga que se dão na e pela linguagem. combate com

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Palavras-chave: Sousândrade. "O Inferno de Wall Street". Linguagem

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Em 1877, Joaquim de Sousândrade publica em Nova York a primeira versão de "O Inferno de WaIl Street", o mais emblemático fragmento do poema épico O Guesa, que narra a chegada do protagonista - um índio muísca que perambula pelas Américas 1

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Ana Carolina Cemicchiaro é professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

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fiiginclo do sacriflcio a que estava predestinad oe - ao centro do i:api . talismo financeiro especulativo. Ali, em meio a polÍticos corruplor e barões ladrões, enquanto negóciros fraudulentos são fecl"raclos t' o deus do dinheiro é cultuado, o Guesa é sacrificado pelos Úrirrt# especuladores da bolsa:

lembraGiorgioAgamben,ocapitalismonâoaPel)zrsóumarcque iigino, como iu-be-- é a mais feroz, implacável e irracional jaL*it existiu, "porque não conhec" t'"rr{ redenção nem trégua' "Ela e celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho

Dêfesa contra o Indio-E s'escangalha De Wall-Street ao ruir toda New-York : (O GUESA, tendo atravessado as ANTILHAS, crê-se livre dos XÊQUOS e penetra em

NEW-YORK-STOCK-EXCIIANGE ; a Voz, dos desertos Dante, -4Eneas, ao inferno

-OrPheu, Desceram; o Inca ha de subir

..

:)

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= = O gni s?' ranza laciate'

Cheentrate... ha mundo Porvir ? p. 247)

-swedenborg, (SOUSÂNDRADtr,

^oos,

Nesta primeira estrofe do fragmento, às portas do inferno, a inscrição dantesca - "Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate" (violada como todas as citações sousandradinas) - orienta o Ieitor a deixar de iado todas as suas esperanças, pois o mundo porvir, os céus do filósofo e téologo sueco Emanuel Swedenborg (taaalzlz) - os que mais adiante aparecem no poema sousandradino como república e cristianismo - se tornaram um inferno de corrupção e hipocrisia: "são mundos -presentes: Patentes, Vanderbilt-North, Sul-Seraphim" (SOUSÂN»naOE., zoos, p. 264). O mundo presente é um mundo pós-apocalíptico onde o O Guesa era uma criança roubada dos pais que, quando completasse 15 anos, após sua peregrinação pela.,estrada do suna", deveria ser oferecida em sacriflcio ao deus-sol. bm §ousândráde, o guesa errante vai muito além da estrada muisca e faz o percurso do próprio poeta, com quem se confunde no heroísmo sacrificial por uma América una, ietiiada de uma filiação luso-hispânica ou britânica, livre da colonização-exploração e da imoralidade do capitalismo liberal que aparecia nos Estados unidos do flnal do sécu1o XIX. O fragmento que narra a chegada do guesa a Nova York recebeu esse título de Haroldo e Augusto de Campos a partir de expressões do próprio poeta e teve de Sousândrade duai diferentes versões: a primeira publicada em Nova York, em 1877, com 106 estrofes no corpo do Canto VIII, e, a segunda, publicada em Londres, com certa polêmica a respeitode sua data (a esse respeito cf. LOBO, 1986, p' 57), com 176

3

estrofes no Canto X. Jargão da Bolsa de Nova York na segunda metade do século que provoca uma queda artificial dos preços'

XiX,

(lnico dcrrs ó o lt!..t'r:ltt[, o t] $[pltlltrttio rur tttf ntttt lllllH r§tlHlãtl' ('rttl t S)' t1Ê{} pêrEsna rcligiã«r t1trp, ll('i lettthrfl Wnlter llt'tr,inttrlrr (' 11.rtttllt'(l llrp(1if{o mitc expiação - ntlrr:ll ç()lttltllnim(lH o §iiÍi(:i(lttttt, tl,s tlt:sl«rtltttl's, eornpr; mais - co,dcrra o$ q*cr cstl1o à lllargcln, (lottÍirrttttl tt«rs inÍ'erno' os excluídos, os desvâliclos às peIl⧠do

cujo objeto é o dinheiro": com Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro' O Banco o assumiu especialistas e os seus cinzentos funcionários crédito o e' governa.ndo iugar da Igreja e dos seus padres crédito dos Estados' que docilmente abdi1ut? rr",*Io o escassa' caram de sua soberania), manipula e gere a Íé - a consigo' traz ainda tempo nosso que o incerta conÍiançaAlém disso, o fato de o capitalismo ser hoje uma religião'

nada o mostra melhor do que o título de um grande

Iil:

e] iilxxT'"ff '$:1 ;ffi::i [::iTl'* * *1H "a quaiquer preço"P Até ao

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significa

religioso, p."io d" "sacriÍicar" vidas humanas? Só numa perspectiva feitas religiosa (ou melhor, pseudo-reiigiosa) podem ser desumanas e absurdas evidentemente ahÃações tão

(AGAMBEN,2or5)'

para Desse inÍêrno, onde vidas humanas são sacrificadas balbucios' que moddas e ações da bolsa sejam salvas' saem os uma Street" Wall de "O Inferno ,rro. e gritos que fazem de fugidia' experiência única da ê na linguagem'PT tlu semântica (e o poema se torna o espaço ão desvatido, do desclassif,rcado está que do desclassificável), do qre sai da lógica capitalista' do delirante (em latim' delirare fora do centro (o "*-"e'trico), o sair dà lira, dos sulcos, das regras)' uma saída para

significa balbucio ou Para o grito:

refere-se ao especulador

165 1,64

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AxÁr,rsri

ull Rl'uti: CulruR,r r MÍnta - Vonrue 2

ANÁr-lsc »l' I)tscuxso

á d'le - organ ; rin g d' ur s o s entenciando -s PHARSALIA ; da architecto o p".ro-últi-, :) odyrre,, phantasma nas chammas dos incendios d'Albion Bear Bear ber'beri, é "' . Bear .. "' -Bear I ==Mammumma' mammumma, Mammão

(Magnetico

han

" Bear''' ber'''' Pegàsus''' -Bear. Parnasus ' ' '

==Mammumma, mammumma, MaÍnmão'

(sousÂNDRADE, 2ooe, P' 2't 7) o Mammumma é esse grito, esse choro, esse gemido de dor' é quando rofrimento do índio no mJmento de seu sacrifÍcio ritual, bolsa' ;apturado pelos b e ars,pelos ursos-bruxos-especuladores da Street", "O Wall Inferno de qàssa estàfe que feJha o ciclo de Pegasus' o cavalo alado' por clamam que )coam gritos dá socor.o monte ;ímbolã na mitologia grega da inspiração poética' e pelo como Jarnaso da antiga Grécia, consagrado a Apolo e às Musas' Mammão ;e só a poesia prd".t" defender o Guesa do demônio personificação da riqueza, do dinheiro e ido grego Mamonas), io tí"ro] Como se, dianle da visão antecipadora do horror que é poética c capitalismo especulativo, o poeta necessitasse de uma que abale a violência ''do de um verso que rodopie, de uma "aor, analisa Luiz sintaxe para que se liberte do iminente falseamento"' Costa L\ma (zooz, P. +96).

Sousândracleaindatentadesviarosoihos...voltemosos

seguinte olhos desgostosos/ D'este circ'1o...", afirma ele no verso p' 277) zoog' ao "Inferão de Wall Street" (SOUSÂNDRADE, "o artista -, mas já é tarde: como bem definiu Jacques Ranciêre' e á aqueie que viu a visão excessivamente forte, insustentáve1, mundo o qr., u pu.ti, de então, nunca mais se conciliará com neste du ,"pr.u.ntaçâo" (RANCIàRE, 2ooo, p' 5t t)' Também diante que' á,iáo, Agamten defende em O que resta de Auschwitz feito de do horror dos campos, o suieito da enunciação - que é falar' pode discurso e pelo discurso - nao pode dizer nada' não veu que §e §itua semprc «le rnatrcira que Ú a palavra po6tica, uma e* pofiiçfl* áer restã, âqtlel$ (ltle Po4e texteurunhâr' "f'oír Poet⧠Íilndsn ln lengúa,ton"' lo que r§ãta' lo qtte so'

- t,,t t*ttigofl aú__

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or Drscunso

ul,r Rupu:

Cutruna n MÍnt.r - \ron.r,ran 2

brevive en acto a la posibilidad (AGAMBEN,2ooz, p. 6z).

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o la imposibilidad

-

de hablar"

Justamente porque o real não é representável, porque é o impossível que escapa ao discurso e que não pode ser incorporado à ordem simbólico-imaginária da significaçáo, é que a literatura - a arte de maneira geral - existe. Afinal, se o real é aquilo que não cessa de não se dtzer, mas que, no entanto, precisa ser traduzido - ainda que se trate sempre de uma tradução impossível, inacabada e inÍinita -, somo* sempre empurrados à linguagem (e à arte) na tentativa de dar conta desse real: "o Real persiste como uma dimensão eterna de falta, e toda construção simbólica-imaginária existe como uma certa resposta histórica a essa falta básica", €xplica Glyn Daly (apud ZlZtrK, zoo; p.tt).

Assim, os horores-excessos do inferno explodem no poema de Sousândrade de inúmeras formas informes, inclusive no polissêmico ou no sem-sentido, na multiplicidade de línguas, vozes e personagens, no horror do sacrifício da Ienda, na mestiçagem do personagem, na monstruosidade do inferno, de maneira que esse jogo da escritura se dá não mais como comunicação, não mais como racionalidade política, mas como elemento detonador de sua Iógrca, inoperando o significado, combatendo a Iíngua dentro da própria língua. E como se, diante da irrepresentabilidade do real, o poeta precisasse de uma nova sintaxe, desviada, tensionada, uma utopia da linguagelrl- para usar a expressão de Roland Barthes. Em sua aula inaugural da cadeira de semioiogia no Collêge de France em 1977, o crítico francês ensina que foi justamente nessa segunda metade do século XIX, "num dos períodos mais desolados da infelicidade capitalista", eue a literatura concebeu, com Mallarmé, utopias de linguagem, ou seja, a escritura como discurso do desejo, onde as palavras não são usadas como instrumentos, mas explosões, vibrações, sabores: "'Mudar a língua', expressão mallarmeana, é concomitante com'Mudar o mundo', expressão marxiana" (BARTHES, qooí, p. %).

Vinte anos antes do lance de dados mallarmaico, Sousândrade .jír assumia essa

tarefa utópica de mudar o mundo com

a

lÍngua. Isso

L67

ÂNÁr-rso t;.u l)lscunso Enr Ruoc: Cuuruna a MÍorl - Yor,uua g

fica evidente nas duas descidas do Guesa ao inferno: a primeira, no Canto II, ao inferno amazônico, que foi intitulada pelos irmãos Campos de "O Tatuturemi' e retrata a decadência da população indígena nas mãos de colonizadores e missionários imorais; a segunda, o inferno capitalista do Canto X que é analisado aqui. Em ambos os infernos, o poeta torce a iíngua materna e insere outros idiomas, fragmenta, urra, gagueja, hibridiza, cria cacofonia, dissonância e contraste, choque, aspereza e concisão. Reina o caos, o informe, a polissemia, a polifonia, a multiplicidade de vozes e idiomas. Do francês ao quíchua, do inglês ao italiano, do holandês ao grego, do tupi ao latim, tudo está ali, a Babel repieta de suas confusões pós-intervenção divina. (Ao fragor de JtrRICHÓ encalha HENDRICK - HUDSON; os INDIOS vendem aos HOLLANDtrZtrS a ilha de MANHATTAN malassombrada:) A Meia-Lua, proa p'ra China, Está crenando em Tappan-Zee . . . Hoogh moghende Heeren . . . Pois tirem Por guildzns sessenta . . . Tea ! Tea ! (SOUSÂNDRÂDE, zoos, p. 265)

lHH:i:ili:,:§u###' *U com a BIBLIA debaixo Yrry llestamento Antigo tem tudo

do braço:)

!

O Novo quer sanctas de pau. . . Co' o Boo

Ci$

k,jubilante Adelante,

bell's, ao lager anyhow !

(sousÂNDRADE, zoos, p. z 5o). Palavras são criadas e recriadas numa morfologia impensável, própria sintaxe da frase é importada de outras lÍnguas, palavras em português são compostas como se fossem inglesas ou alemãs, invertendo a ordem substantivo-adietivo. Nessa mistura de diferentes gramáticas se apresentam construções lexicalizadas ou semilexical rzadas, aglutinaçõe s, p alaaras-montagem, que funcionam como palavras-metdforas, para usar expressões caras a Augusto e Haroldo de Campos quando analisam a estilística sousandradina ern Re aisão de Sousândrade (zooz, p. 31-85). Na maioria das vezes, esses compostos são híbridos de diferentes línguas, mas, mesmo quando numa mesma lÍngua, eles se dao de forma absurda, misturando nomes próprios, verbos e substantivos. Diante da abundância destas construções, nos detemos em algumas mais signiÍicativas: Freeloae s -Calfornias, puffs-puritanos, Ring-negro, s afe-guardando, a

Tunka-Tankee, Robber-Índio, attorney - Cuj ás, Butl-furacão, All-bro kers,

Hall-bruto. Diálogos poliglóticos exibem uma galeria de idiomas e invencionices, rimas impossíveis ou entre diferentes idiomas transformam a fonética não apenas da sua língua, mas até das línguas que estão ali para subvertê-la, desmanchando a própria ideia de sistema fechado da lÍngua. Dos vários exemplos que o texto fornece, seleciono aqui: odes/ Railroads; santas-de-pau/ anyhorry Kag -Dids / vides; S acre d-He art/ dar-te; per dã,o / go dam; Judas / burglars; sol/ w aterfalfi rouxinol / Court-hall; ninguém/ gentlernén; pagar/ dollár, que rimam palavras em português e em inglês. Mas essa miscigenação vai muito além e chega a conjugar holandês com português (Heeren/tirem), holandês com inglês (Tappan-Zee/ Tea),inglês e latim (spokesman/ aruLen),português e francês (bebeu/ Dieu), entre outros.

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(Yankee protestante em paraense egreja catholica :)

Que stentor I que pancadaria Por Phallus,

Urubú, Pará-engenheiro

Mylitta

!

:

Nelvyorkeiro Robber-Indio . . . barTo o tatú ! (SOUSÂNDRADE, zooe, p. q5t).

Repleto de pontos de exclamação, reticências, grifos e nomes em caixa-alta, "O Inferno de Wall Street" também estranha pela sua tipografia e pontuação. Os travessões simples e duplos anunciam a sobreposição de vozes, que se multiplicam numa profusão caótica. São sacerdotes incas, empresários e políticos corruptos, especuladores, escritores, prostitutas, falsários, personalidades religiosas, filósofos, entre tantos outros personagens que dialogam

L69

,\t't.\t.r:;l trt,l)t',r r nri(r | \r lll trl ('lrltlt I{ t t \llt,t r Vor r rrr "

r\N,\1-rsE DE L)1s(rLrrtso EÀr IIEDu:

(lul.t rrnt r. \'lí»t,r -

Voi-r;rvn:

I

rabelicamerlte, num verdadeiro pandemônio, numa literatura de 'esíduos, reverberando a incompreensível voz das multidões e sua nÍinidade de línguas.

»::;:?'4ttornel';coDEZo'inaentor;YOUNG'Esq'' ATKINSON, agent ; ARMSTRONG, agent ; RHODES, agent;P. OFFMAN & VOLDQ agents; algazarra, miragem; ao meio, o GUtrSA ') !trez !cinco mi1 !se jogardes, -Dois Serrhor, tercis cinco milhoesl ==Ganhou ! ha ! haa ! haaa !

-Hurrah!ah!.. . . seriamladrões

?.

-Sumiram. (SOUSÂNDRA.DE, 2ooe, p. e{t)

.

caráter caótico e informe da linguagem nos fragmentos nfernais contrasta com a regularidade rnétrica do poema. De naneira geral, O Guesa respeita uma estrutura homogênea de luartetos decassí1abos, rimas cruzadas (abab) ou enlaçadas (abba). ) que evidencia a tensão entre uma (quase) ordenação métrica lo sistema retórico poético e um caos linguístico, uma desordem ônna1(um verdadeiro informe)que a todo tempo corrói a ordem. rleste sentido, a ordem é aquilo mesmo que evidência o caos, a luebra, o desmanchar, a destruição, o corroer da língua dentro da rrópria língua, instaurando uma confusão labiríntica, um sentido ;arregado de non-sense. O poema gera uma tensão na língua que é » próprio fora da linguagem: "quando a língua está tão tensionada : ponto de gaguejar ou de murmurar, balbuciar..., a linguagem nteira atinge o limite que desenha o seu fora e se confronta com r silêncio", aÍirma Gi11es Deleuze. (tooz, p. 12s). E,sse

Esse silêncio, essa fala que o público não pode ouvir é, para iusan Sontag, urn gesto extraterreno do artista, de protesto ou cusaç:ão, através do qual se liberta do "cativeiro servil face ao rrtrrrdo" (SONTAG, 1987, p. 14.). Como bem percebeu Haroldo de larnpos, a poesia de Sousândrade se inscreve toda ela num espaço Ir. ruptrrra: "Ruptura, primeiro com o cânon rorqântico, logo com o

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gêniodalÍnguaportugucsa(1rt't'(rrrlrlrrllll)()r'su:ri rr(,\,r(,,r",',rrltrlr caseléxicas) eenfimcomapr(rpriirlitrclrrirl;r,lt'r,,1r,,urr,r\rrl,r'1, ,1,, pensamento lógico de modelo ocidental" ((lAM l'( )S,,.'r x )'', |,,','i r J

O poema sousandradino f,ragiliza as hierar«1rriirs, .rs lrrr;rr rr, mos e dicotomias da racionalidade política que se irnpôs íro lonr,,, da história das sociedades ocidentais e nos domina no firlirr t' rr,, calar, no trabalhar e no consumir, enfim, no simples existir'. Síio saberes, valores, ftrmas de pensar, "verdades" que, nos rnostra Michel Foucault em As palaaras e as coisas, herdamos da episterne clássica e que impregnam o pensamento ocidental desde o século XVIL Entre estas verdades está nosso senso comum de linguagem como instrumento transparente, natural, inocente, capaz de representar o significado universal e inequívoco das coisas. Essa maneira de pensar - ou melhor, de deixar de pensar a linguagem - tem suas raízes na ciênciapositivista dos seiscentos que passou a usar a linguagem como instrumento de classificação, nomeação, taxonomia, ordenação (FOUCAUIjI, 1999). Nas palavras de Roland Barthes, "a linguagem é uma legislação, a 1íngua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressíva: rtrdo quer dizer, ao mesmo tempo repartição e cominação"

(BARTHtrS, zoo5, p.t2). Conforme nos mostram Deleuze e Guattari, enquanto transmissão de palavras de ordem, a linguagem revela, em seu cerceamento, ordenação e obediência, um caráter realmente político e violento. A própria unidade de uma língua é poIítica, "não existe língua-mãe, e sim tomada de poder por uma língua dominante", que se impõe àqueles que falam, homogeneizando a linguagem e impondo regras sintáticas,lexicais, gramaticais, mas também morais, nacionais, identitárias. Daí eles concluírem que os marcadores sintáticos são marcadores de poder, pois formar frases gramaticalmente corretas é a condição prévia para qualquer submissão às leis sociais (DELtrUZE; GUATTARI, 1995, p.Í!9).

Mais do que suprimir uma desordem, a linguagem é a própria ordem das coisas e tem como função primeira a classiÍicação,

L71

r\N;{t.tsn DF l-}r-cclr}{srl tll tritttttt: {-lr.itr-r.;n,r r. \rii»t.,r - \/lrt.utr.tl ll

r normalização e a padronização da vida: "a Iinguagem não é a

rida, e1a dá ordens à vida" (DtrLtrUZE; GUATTARI, tog5, p. t3). trssa ordenação violenta é ainda mais implacáve1 porque é a inguagem que ensina a deÍinição do homem e o constitui como sueito - como alerta Foucault, estamos "inextricavelmente ligados ros acontecimentos discursivos. Em um certo sentido, não somos rada além do que aquilo que foi dito, há séculos, meses, semanas..." FOUCAULI, 2oo3, p. 258). Segundo a polêmica expressão de facques Derrida, "náohâ nada fora do texto" (zoo+), ou seja, a vida 1ue acreditamos ser uma existência espontânea está mediada pela inguagem, pela Iógica que a rege, pelo conhecimento que a funda, : esse conhecimento, os saberes que temos como dado empírico e rbjetivo, nos mostra novamente Foucault, são na verdade cons.ruídos por estruturas de poder. trm'A vida dos homens infames", r fi1ósofo demonstra que a dominação não se dá rnais pelo poder le um monarca todo-poderoso, mas através de uma rede fina, dii:renciada, contínua, que utiliza a linguagem da observação e da reutralidade (FOUCAUI:T,2oo3, p. z t 9). Daí Barthes concluir que r signo que se pretende natural, que apaga sua condição de signo rzrra alimentar a ilusão de que estamos percebendo a realidade ;em a sua intervenção, é autoritário e ideológico.

Contudo, defende e1e, existem os signos saudáveis, aqueles chamam a atenção para a sua própria arbitrariedade, que não 1ue .entam se passar por naturais, mas que, no momento mesmo de .ransmitirem um signiÍicado, comunicam algo de sua própria ;ondição relativa e artificial, ressaltando sua existência material. \ estes signos Barthes chama de poéticos: "a escritura tem o conlão de abolir arnâ-fé que se liga a toda linguagem que se ignora" IIARTHtrS , 2oo4, p. 9). Ao tomar sr-ra própria forma e não seu :onteúdo por ob.jeto, o signo "poético" permite à linguagem uma 'claq;ão autoconsciente consigo mesma, colocando em questão a ransparência dos significados, a uaturalizaçáo dos valores da nossa :rrltura e a racionalidade dicotôrnica e hierárquica que os regem: Tecnicamente, pela deÍinição de Romar-r Jakobson, o "poético" (quer dizer, o literário) designa esse tipo de mensagem

Al^r.l,t trt I )t',r r l ,r r r \t llt r,l ('rtt tr ttt t \llt,tr |rrr | ,il (ltlc tolllil

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Enquanto outros discursos (história, direito, ciência, jorttitlismo)- que são tão ficcionais, ambíguos e figurativos quanto lt literatura- se constróem como saberes universais, como verdades inquestionáveis, a literatura se apresenta em toda sua ficcionalidade, assume seu caráter retórico. trstá aÍ sua potência de desconstrução: a desnaturahzaçáo do signo inocente, transparente e instrumental, enfim, a hiperartificialização das línguas. A literatura como forma de contestar a função significativa da linguagem que, como vernos em Foucault e seu As palaaras e as coisas, desde o sécuIo XVII foi reduzida ao discurso e à sua lógica do sentido. Segundo o Íilósofo, a partir da literatura do sécuio XIX, a linguagem poética passou a se desprender das outras linguagens, "na medida em que constituiu uma espécie de 'contradiscurso"', ou seja, na medida em que abandonou sua função representativa. De maneira que a literatura passou a ser, desde a idade moderna, "o que compensa (e não o que confirma) o funcionamento significativo da iinguagem". Por isso, defende o filósofo, a literatura não deve "em nenhum caso ser pensada a partir de uma teoria da signiÍicação" (FOUCAUIÃ 1999, p. 60-61).

literatura como representação ou "O Inferno de Wall Street"P Como a significação, como pensar Se não devemos pensar a

própria ilegibilidade, como o próprio gesto de romper com a ordem da representação discursiva, num contrapelo do discurso, que o mina profundamente e a todo tempo. O multidiomático se torna um escape e o balbucio, os urros e os gritos tentam trapacear a linguagem, uma trapaça que "permite ouvir a 1íngua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem" (BARTHtrS,2oo5, p. 16).O ritmo uão se apresenta mais como

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ordem, mas como batida, como deformação, não mais a yoz, ntas o grito, o gesto, a desarmonia ou ainda a dilaceração de toda harmonia. Como escreveu Deleuze, o poeta "talha na sua lÍngua uma língua estrangeira que não preexiste", faz "a 1íngua gritar, gaguejar, balbuciar, murmurar em si mesma" (DELEUZF,, tgg7, p. tz4). Para o crítico francês, essa sintaxe em devir é inseparável de um fim que leva a linguagem a seu limite, "jâ náo é sintaxe formal ou superficial que regula os equilíbrios da 1íngua, porém uma sintaxe em devir, uma criação de sintaxe que faz nascer a língua estrangeira na Iíngua, uma gramática do desequilíbrio" (DtrLtrU ZE, 7s97, p. tzl).

Trata-se de um devir-minoritário da linguagem, uma forma de cavar uma 1íngua menor na língua maior, dominante, padrão. Segundo Deleuze e Guattari, a 1íngua maior é a 1íngua da maioria, no sentido político e não quantitativo do termo, ou seja, a língua do "homem-branco-rnasculino-adulto-habitante das cidades-falante de uma língua padrão-europeu-heterossexual" (DtrLEUZE; GUATTARI, t995, p. frí).Fazer a língua materna devir-menor é, portanto, desestabiltzar a língua do poder e da dominação, levando a linguagem a escapar de seu uso maior, "uso de E,stado, Iíngua oficial" (PtrLBART, eooo, p. 70) As línguas menores são agentes potenciais parafazer a língua maior entrar em um devirminoritário, para coiocá-la em variação contínua (DtrLtrUZE; GUATTARI, lgg5, p. 56). Desta forma, elas expõem as regras fixas da Iíngua à agramaticalidade e desterritorializam a línguamãe, seus binarismos e dicotomias, denunciando a linguagem dos estereótipos pelos quais os valores dominantes são veiculados (BARTHtrS, zooS). Como diz Barthes, em "Da obra ao texto": o Texto tenta colocar-se exatamente atrás do limite da dóxa (a Opiniao corrente, constitutiva das nossas sociedades democráticas, poderosamente auxiliada pelas comuni,cações de massa, acaso não se define por seus limites, sua energia de exclusão, sr-ra censura?); tomando-se a palavra ao pé da letra, poder-se-ia dizer que o texto é sempre paradoxal (BARTHES, zooa, p. 68).

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Como esttl tt'xto lritlit ,!,,1;rl, ,t 1rilr''ilrl 'írilrrllt'lt,t'litt,t enfrenta O diCiOnáfio () S(' trlrrr;r lr lrlrt,t lulit, ;t lrr!lrlr l,l ilr rlt'ir1 ticulação do sistema, rornpctttlo os li'r'torr rl;t llllllltrtltr'111, 'ir'l'illll do a máxima barthesiana de etlc "li tto ittllt t,l ,l;r llttlltt,l {llll rt língua deve ser cornbatida, desviada" (ltAlt'l'l ll':S, '.'(x)/', lr l'i ). Ao assumir este combate, resgata a plL.rralitlirtltr, ltlroll il l)(ll'('rit do sentido, arrasta a língua para fora de selts stll(ros t:osttttttt'itos forçando a iíngua maior a descarrilar, desfazendo as sigttil.it:irçiit's estabelecidas, desfamiliarizando nossas percepções e dcl t tt l ttri lt ttl tr a artiÍicialidade dos valores que são constantemente naturitlizaths pela iinguagem: o capitalismo, a opressão, o Estado, o Inercado, tt nação, o território, a identidade nacional (e, portanto, a proprictlnde privada*), o etnocentrismo, o classismo, diferentes espécics dcr microfascismos cotidianos. Afinal, nesta profanação da lin guascttl, que abala a significação convencional dos signos, a poesia Íbrça nossa atenção para o processo material da própria língua, uos Íhz sair do automatismo, nos abre para outros pontos-de-vista e coloca em questão as naturalizações homogêneas de nossa cultura, ttLtttt devir-outro que é capaz de despertar outras percepções sohrc o mundo, ou melhor, de nos fazer ver outros mundos (os muntlos dos outros), de criar linhas de fuga que se dão na e pela linguagcrn. r

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