\"Souto da Carpalhosa: Primeiros Dados de uma Necrópole Moderna\", Cadernos de Estudos Leirienses, N.º 1, pp. 149 a 158.

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SOUTO DA CARPALHOSA PRIMEIROS DADOS DE UMA NECRÓPOLE MODERNA

António Ginja* Mónica Ginja** * Arqueólogo, licenciado em Arqueologia e História, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. ** Arqueóloga, licenciada em História, variante de Arqueologia, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Localização do sítio intervencionado, sobre planta da freguesia.

SINOPSE Pela comemoração do seu 8º centenário, promoveu a Junta de Freguesia do Souto da Carpalhosa, concelho e distrito de Leiria, uma série de investigações arqueológicas, históricas e etnográficas, que resultariam na publicação de uma monografia, em Setembro de 2013.

Entre os diversos estudos arqueológicos realizados, a escavação de uma sondagem no adro da igreja matriz da povoação do Souto da Carpalhosa seria aquele que, sem margem para dúvidas, resultaria no mais relevante conjunto de resultados. A imponência desta igreja, erguida sobre destacado promontório a que se acede por escadaria monumental, não deixa ninguém indiferente. A robustez da sua construção e a magnitude da sua escala impõem-se na paisagem, assinalando de forma muito eficaz o centro administrativo desta freguesia.

Igreja matriz do Souto da Carpalhosa e respectiva escadaria.

Não obstante a grandeza do seu templo, as origens da freguesia permaneciam por esclarecer, ainda que a mesma se encontrasse documentalmente registada já desde 1210, ano em que habitantes locais doaram um terreno no Souto ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, para aí se erguer um pequeno templo (GOMES, 2009, 100), motivo pelo qual decidimos avançar com a escavação de uma sondagem naquele local. A ausência de outras evidências sugeria que o templo de que fala o documento de 1210 tivesse sido erguido onde hoje se encontra a igreja matriz do Souto, que poderá ter sido sucessivamente reconstruída até atingir a dimensão que hoje lhe conhecemos. Assim, em Agosto de 2012 procedemos à escavação de uma sondagem arqueológica no adro da igreja matriz do Souto da Carpalhosa, removendo as camadas estratigráficas pela ordem inversa à da sua deposição. A escavação revelaria dados inéditos, nomeadamente a existência de uma necrópole que recua ao século XVI.

Igreja matriz do Souto da Carpalhosa, fachada principal.

Para além dos arqueólogos signatários, participaram na escavação desta sondagem vários habitantes locais, em regime de voluntariado, assim como a antropóloga Cláudia Santos.

UMA NECRÓPOLE DE ÉPOCA MODERNA

A sondagem arqueológica, implantada com 4 m2, iniciar-se-ia com a remoção da calçada que actualmente constitui o piso do adro da igreja. Sob este nível estrutural detectaríamos o primeiro nível arqueológico, identificado como aterro, criado com entulhos de obras decorridas entre os séculos XIX e XX. Terá sido este aterro responsável pelo alteando do nível de circulação anterior, em cerca de 40 centímetros. Entre os elementos culturais recolhidos nesta camada contam-se fragmentos de azulejos iguais aos que revestem actualmente o interior da igreja, mas também cinco numismas de cronologia bem mais recuada, provenientes de camadas mais antigas, revolvidas durante a abertura de covas – um III reis de D. João V (17061750), datável de 1710/22, dois 3 reais de D. João III (1521-1557) e dois ceitil de D. João III (?) (1521-1557).

Ceitil de D. João III ? (1521 – 1557).

3 reais de D. João III (1521 – 1557).

Removida a camada de aterro, atingiríamos o primeiro nível de enterramentos, compreendidos entre os séculos XVII e XIX, sendo identificados treze indivíduos. Todos se encontravam dispostos em decúbito dorsal e em posição canónica, ou seja deitados sobre as suas costas e orientados para nascente. Um indivíduo conservava sob as suas mãos uma moeda, respeitando uma tradição herdada do povo romano, segundo a qual o defunto teria de pagar ao barqueiro Caronte para atravessar os rios mitológicos Aqueronte e Estige, a fim de atingir o reino dos mortos.

Registo em planta do primeiro nível de enterramentos detectado na sondagem. A: Pendente em azeviche. Século XVII; B: Argolas (Brincos ?). Posterior a 1557; C: V reais de D. Sebastião (1557 – 1578) ou 10 reais de D. António (1580-1583).

Apesar de pouco legível, o numisma aparentava um V reais de D. Sebastião (15571578) ou um 10 reais de D. António (1580-1583). Outro indivíduo, provavelmente uma mulher, foi enterrado com um pendente em azeviche. O pendente, em forma de coração, exibia a característica cor negra do azeviche e continha inscrita a palavra ‘Maria’, talvez invocando devoção mariana. Pelo estilo da grafia adoptada, supomos datar-se do século XVII.

Pendente em azeviche. Século XVII.

Sob este primeiro nível de enterramentos desenvolvia-se uma camada de terra de cronologia compreendida entre os séculos XVI e XVII, que corresponde ao primitivo nível de circulação do adro da igreja, cerca de 90 centímetros abaixo do actual. Esta camada de terra, por sua vez, selava um nível de enterramentos mais antigo, que se prolongava por debaixo da própria torre sineira da igreja. Neste nível inferior de enterramentos, compreendido entre a segunda metade do século XVI e meados do século XVII, foram detectados cinco indivíduos, todos também em posição canónica e em decúbito dorsal. Dois indivíduos conservavam ainda moedas sob as suas mãos, respectivamente um 3 reais de D. João III (1521-1557) e um ceitil, numisma cunhado praticamente durante toda a segunda dinastia, mas que neste caso, pelas suas características estilísticas, deverá enquadrar-se entre os reinados de D. Afonso V e de D. João III (de 1438 a 1557). Sob o último nível de enterramentos desenvolvia-se o geológico. Abaixo do geológico não haveria, naturalmente, nenhum vestígio humano, pelo que demos assim por concluída a escavação da sondagem.

Registo em planta do segundo nível de enterramentos detectado na sondagem. A: 3 reais de D. João III (1521-1557); B: Brinco. Segunda metade século XVI – meados século XVII; C: Ceitil provavelmente de D. Afonso V a D. João III (de 1438 a 1557) ?.

Entre os dezoito enterramentos identificados, apenas treze foram integralmente escavados, contando-se entre estes sete indivíduos adultos e seis indivíduos não adultos. Entre os adultos, quatro eram do sexo masculino e três do sexo feminino.

Distribuição etária dos indivíduos da amostra exumada.

A área intervencionada, de reduzidas dimensões, conduziria à detecção de um igualmente reduzido número de indivíduos, não sendo por isso possível tecer conjecturas muito alargadas quanto à paleobiologia da população aqui inumada. Ainda assim, foram detectadas algumas patologias relativamente comuns. Entre as paleopatologias orais detectaram-se perdas dentárias ante-mortem, cáries, abcessos e desgastes dentários severos, denunciando a má higiene oral, associada a fraca composição da sua dieta e respectiva confecção dos alimentos. Entre as paleopatologias ósseas, associadas a agentes virais ou bacterianos, bem como a condicionantes genéticas, registam-se a osteofitose, processos espinhosos, periostite, anquilose, um caso de nódulo de schmorl e um caso de cribra orbitalia. Registaram-se ainda alguns casos associados a estilos de vida desgastantes e a acidentes, como hérnias discais ou fusão inter-óssea, assim como casos associados à degeneração etária, como porosidade óssea.

Trabalhos de antropologia: identificação, escavação e análise dos enterramentos detectados na sondagem.

SOBRE A POPULAÇÃO MODERNA DO SOUTO E SUA IGREJA

Com a abertura desta sondagem, confirmámos a utilização do adro da igreja como necrópole, ocorrência que de resto já seria expectável. A utilização da área envolvente de igrejas ou capelas para enterramentos, sobretudo nas mais antigas, é de facto uma ocorrência frequente, dado que os cemitérios, tal como os conhecemos hoje, murados e organizados, generalizam-se no nosso país a partir apenas do século XIX.

A escavação arqueológica revelaria dois momentos distintos para esta necrópole, o mais antigo posicionado entre a segunda metade do século XVI e meados do século XVII e o mais recente entre os séculos XVII e XIX. Foi possível perceber que não existia diferenciação espacial entre inumações de adultos e de não adultos, ou entre indivíduos masculinos e femininos, assim como que os enterramentos mais antigos se depositavam em covas simples, ao passo que os mais recentes se faziam já com recurso a caixão.

Trabalhos de antropologia: identificação, escavação e análise dos enterramentos detectados na sondagem.

Pelo modo como vários enterramentos surgiram cortados, deduz-se que o espaço tenha sido sucessivamente utilizado, colmatando a necessidade de inumações posteriores. Sobre o perfil da população, percebemos, com as devidas reservas que uma reduzida amostra motivam, tratar-se de um conjunto atingido pelas árduas condições que caracterizam a vida destas sociedades modernas, que resultavam invariavelmente em fracos hábitos de higiene, sérias carências alimentares, exercícios profissionais duros e mortes jovens ou relativamente jovens. Conseguimos ainda remeter a construção da torre sineira da igreja para o século XIX, muito provavelmente entre os anos de 1862 e 1864, época em que comprovadamente a igreja foi submetida a obras de requalificação de grande envergadura. Não recolhemos contudo evidências do primitivo templo, referido no documento de 1210, ou de uma ocupação anterior à fundação desse templo. O adro, porém, estendese por uma área significativa, a que se junta todo o espaço ocupado pela própria igreja. A sondagem aberta contou com uns singelos 4 m2, pelo que a probabilidade de que a

sua posição coincidisse com os vestígios que pretendíamos alcançar era, à partida, muito baixa.

Perfil norte da sondagem. A: Fragmento de faiança decorada com ‘grinalda oriental’. Segunda metade do século XVII; B e C: 3 reais de D. João III, monarca entre 1521 e 1557; D e E: Ceitis provavelmente de D. João III, monarca entre 1521 e 1557; F: III reis de D. João V, cunhada entre 1710 e 1722; G: Fragmento de azulejo hispano-árabe. Finais século XV/inicio século XVI.

Não obstante as limitações dos resultados obtidos, os vestígios detectados na sondagem permitem-nos olhar directamente para o passado da freguesia do Souto da Carpalhosa e para aqueles que o viveram. Os objectos com que foram sepultados, a tipologia das suas inumações e as características patológicas detectadas, reflectem o estilo de vida e as tradições da sua população moderna, espelhando a forma como os seus antepassados encaravam a morte, revelando-nos como regiam a sua vida.

*** Os autores optam pela antiga grafia da língua portuguesa.

BIBLIOGRAFIA GINJA, A. e GINJA, M. (2013) – “Souto: Subsídios Arqueológicos”, Souto da Carpalhosa – Oito Séculos de História, Junta de Freguesia do Souto da Carpalhosa, Souto da Carpalhosa, pp. 51 a 94. BERNARDES, J. (1981) – Leiria no século XIX, aspectos económicos, Assembleia Distrital, Leiria. CASTRO, A. (1991) – ‘Leiria e a sua Região no Processo Histórico Português’, Colóquio sobre a História de Leiria e da sua Região, Câmara Municipal de Leiria, Leiria, pp. 295 a 340. GOMES, S. A. (2013) – “Souto da Carpalhosa das origens medievais ao século XVIII”, Souto da Carpalhosa – Oito Séculos de História, Junta de Freguesia do Souto da Carpalhosa, Souto da Carpalhosa, pp. 97 a 186. GOMES, S. A. (2009) – Notícias e Memórias Paroquiais Setecentistas - 8. Leiria, Centro de História da Sociedade e da Cultura, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Palimage, Coimbra. GOMES, S. A. (2004) – Introdução à História do Castelo de Leiria, Câmara Municipal de Leiria, Leiria. GOMES, S. A. (1992) – ‘Organização Paroquial e Jurisdição Eclesiástica no Priorado de Leiria nos Séculos XII a XV’, Lusitania Sacra, 2ª Série, 4, Lisboa. MECO, J. (1985) – Azulejaria Portuguesa, Bertrand Editora, Lisboa. PARRA (1994) – Azulejos – Painéis do século XVI ao Século XX, Colecção Património Artístico, Histórico e Cultural da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, vol. I, Santa Casa da Misericórdia, coord. SILVA, N., Lisboa, 149 p. SILVA, A. (2006) – Souto da Carpalhosa, Subsídios para a sua História, Ed. Autor, Souto da Carpalhosa. TEIXEIRA, C. e ZBYSZEWSKI, G. (1968) – Notícia explicativa da Folha 23 – C: Leiria, Carta Geológica de Portugal, Serviços Geológicos de Portugal, Direcção-Geral de Minas e Serviços Geológicos, Secretaria de Estado da Indústria, Ministério da Economia, Lisboa.

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