“Souto: Subsídios Arqueológicos”, Souto da Carpalhosa – Oito Séculos de História, Junta de Freguesia do Souto da Carpalhosa, Souto da Carpalhosa, pp. 51 a 94.

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Souto: Subsídios Arqueológicos

SOUTO: SUBSÍDIOS ARQUEOLÓGICOS

António Ginja* Mónica Ginja**

Que o Souto da Carpalhosa fosse ocupado já nos alvores da Época Moderna, como testemunham os seus antigos templos cristãos, parece inquestionável. Mas se no período em que as caravelas portuguesas cruzavam o globo, a freguesia do Souto, à época bem mais extensa que nos dias que correm, contava já com múltiplas povoações, como terão elas tido origem? Que motivos terão conduzido à fixação dos nossos antepassados nesta região? Poderá a ocupação humana desta freguesia remontar a períodos mais antigos? Com estas questões em mente, partimos em busca dos vestígios arqueológicos da freguesia do Souto da Carpalhosa, averiguando a antiguidade da sua ocupação humana. Para tal, optámos por uma batida ao terreno, chamada prospeção arqueológica, identificando à superfície dos terrenos vestígios de ocupação antiga, como fragmentos de cerâmica ou estruturas arruinadas. Dada a considerável dimensão da área da freguesia do Souto, optámos por uma prospeção seletiva, tendo os locais prospetados sido previamente escolhidos mediante critérios muito diversificados, que insinuam probabilidade de ocupação antiga, como o seu nome, as suas características geográficas ou as lendas que lhes estão associadas. Muitos foram os locais que visitámos, observando com cuidado a superfície do solo em busca de vestígios dos nossos antepassados, ainda que as densas florestas que cobrem a nossa freguesia nem sempre tenham facilitado o trabalho. Os achados são, todavia, significativos e comprovam a presença humana na freguesia do Souto desde tempos pré-históricos. Complementarmente, abrimos uma sondagem arqueológica junto da igreja do Souto. Pretendíamos esclarecer os motivos inerentes à escolha daquele local para implantação da igreja matriz e, consequentemente, para sede da freguesia, então paróquia. A sondagem revelaria vestígios inéditos e espólio patrimonialmente relevante. A cada camada de terra removida, recuávamos significativamente no tempo. Quando terminámos esses trabalhos, havíamos atingido a centúria de 1500.

*Licenciado em Arqueologia e História pela FLUC **Licenciada em História Variante de Arqueologia pela FLUC

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Lítico do sítio de Quinta.

1. ECOS DA PRÉ-HISTÓRIA Os primeiros testemunhos de ocupação humana na bacia do Lis remontam ao Paleolítico, também conhecido por Idade da Pedra, e traçam um cenário de grupos humanos deambulando nas margens de canais entrançados no rio Lis, onde procuravam seixos que pudessem talhar para obter as suas ferramentas (CUNHA-RIBEIRO, 2005). É um período histórico caracterizado por sociedades nómadas de caçadores recolectores, que deixaram para trás ferramentas em pedra lascada, também conhecidas por utensílios líticos. SOUTO DA CARPALHOSA O Museu Nacional de Arqueologia tem à sua guarda dois objetos da Pré-história, provenientes do Souto da Carpalhosa, aparentemente descobertos a 100 m da igreja matriz (CUHA-RIBEIRO, 1999), embora não se saiba exatamente onde. São constituídos por dois bifaces sobre quartzito, que remontam ao Paleolítico inferior, e talhados portanto há mais de 100 000 anos. Embora a discussão em torno do início do Paleolítico inferior em território português permaneça em aberto, a maioria dos autores prefere atualmente posicioná-lo em torno de 1,5 milhões de anos antes do presente. Mais consensual é a cronologia atualmente aceite para o final deste período, que terá coincidido com o último período interglaciário, cerca de 120 000 a 100 000 anos antes do presente (CARDOSO, 2007). Os bifaces são pedras talhadas com golpes simples em ambas as faces, que eram utilizadas como machados, numa época em que era ainda desconhecida a metalurgia. Junto dos dois bifaces, o Museu Nacional de Arqueologia guarda ainda seis lascas e núcleos sobre quartzito, naturalmente vestígios de talhe, provenientes do mesmo local.

Bifaces provenientes do Souto da Carpalhosa.

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SÃO MIGUEL Sempre que o Homem pré-histórico talhava os seus utensílios em pedra, sobras desse talhe eram deixadas para trás. Lascas e núcleos de pedra são por vezes tudo o que detetamos da sua existência. Assim sucedeu a oeste da capela de São Miguel, onde foi detetado um conjunto de núcleos, lascas e nódulos em sílex e em quartzito, a par de um instrumento lítico com retoques marginais, atualmente à guarda da Câmara Municipal de Leiria.

Núcleos, lasca e instrumento lítico provenientes de São Miguel.

CHÃ DA LARANJEIRA Embora geograficamente o lugar de Quinta se aproxime mais de São Miguel, muitos são os que defendem que se encontre no termo de Chã da Laranjeira. Foi nas imediações da Quinta que detetámos dois objetos pré-históricos, um núcleo e uma raspadeira, ambos em sílex. Como já referido, os núcleos são a parte sobrante de uma pedra de onde foram remodidas lascas para fabrico de utensílios. Já as raspadeiras são objetos feitos sobre lascas, em cuja margem são aplicados pequenos golpes, chamados retoques, que tornam o objeto mais cortante, funcionando como uma faca serrada. Pensa-se que as raspadeiras fossem utilizadas para diversas funções, como cortar ou dessoçar carne ou para raspar das peles carne e gordura, antes que de serem convertidas em indumentária.

Raspadeira. Quinta – São Miguel/Chã da Laranjeira. À direita: reconstituição do modo de utilização; À esquerda: registo gráfico.

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Cabeço da Moira.

2. SÍTIOS COM NOME O nome de um sítio, ou topónimo, encerra em si um significado que pode ter origens bastante distintas, conforme a intenção daqueles que originalmente o nomearam. O estudo dos topónimos permite por isso descobrir histórias e tradições por vezes há muito esquecidas, como acontece com as povoações e os sítios da freguesia do Souto. Nomes como Chã da Laranjeira, Picoto ou Conqueiros, revelam uma natureza topográfica. A palavra chã, feminino de chão, provém do latim planu, refletindo a natureza plana do local em que aquela povoação se encontra. Pelo contrário, Picoto deriva de pico, denotando a natureza elevada do local em que se insere. Conqueiros deriva de conca, do latim concha ou do grego kókhe, denunciando o caráter encovado do terreno. Uma vez que a povoação de Conqueiros se encontra em local elevado, outra explicação se perspetiva, a de que possa derivar do latim conchariu, o fabricante de concas, ou tigelas (FERNANDES, 1995). Povoações como São Miguel ou São Bento recebem o seu nome a partir de um santo, dizendo-se neste caso hagiotopónimo, e refletem certamente a devoção religiosa dos que nestas povoações habitam. Outros locais, como Várzeas, Arroteia ou Vale da Ucha, em São Miguel, refletem atividades agrícolas. Várzea é sinónimo de terreno aplanado e rico em húmus, cultivado nas margens de um rio, derivando do pré-romano varcena (FONSECA, 2007), e daí para o latim barcina. Já a povoação de Arroteia obteve o seu nome da ação arrotear, que significa desbravar terrenos para cultivo. A palavra Ucha, por seu turno, deriva do latim ustula, que consiste em queimar terrenos de mato para consequente arroteamento ou simplesmente para fertilizá-los (FERNANDES, 1995). Certos sítios da freguesia do Souto possuem ainda nomes que revelam atividades ou tradições de que há muito não há memória. Vejamos alguns casos. OUTEIRO DE SÃO MARTINHO Erguendo-se a sudeste dasVárzeas, o Outeiro de São Martinho é atualmente um local ermo e densamente florestado. Disponibiliza uma vista privilegiada sobre a ampla área aplanada em que se insere aquela povoação. O amplo domínio visual sobre a paisagem e o fácil acesso à água da ribeira das Várzeas, a norte, tornam este cabeço propício à ocupação humana antiga. O transcritor oitocentista do ‘Couseiro’ faz referência à existência, no Outeiro de São Martinho, da primeira capela de invocação a este santo, de que eram visíveis, no ano de 1868, “restos do edifício”, alegadamente associado a uma gafaria, ou hospital de leprosos, “mais abaixo, n’um sitio que ainda tem esse nome”. Apesar da lepra estar documentada em território nacional desde tempos bem anteriores, as gafarias proliferariam no nosso país apenas a partir dos séculos XI (ROCHA, 2011). Embora por norma se estabelecessem à margem da comunidade geral, forçados que estavam os gafos ao isolamento, localizavam-se mais frequentemente perto de centros urbanos. Não será portanto expectável que se tenha escolhido o Outeiro de São Martinho para a localização de uma gafaria. De resto, das

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Memórias Paroquiais do Souto da Carpalhosa, escritas em 1758, denota-se claramente a ausência de hospitais na freguesia (in GOMES, 2009). Por outro lado, a atribuição de um nome de santo, ou hagiotopónimo, a determinado local ermo suscita justificada curiosidade. A escolha de um santo para nomear um cabeço, assim como a edificação de ermidas em cabeços isolados, deriva amiúde do desejo de cristianizar locais com ocupações pagãs, sendo frequente a apropriação cristã de sítios de cronologia islâmica, romana ou ainda mais antiga. Dado o sugestivo nome do local, a sua adequada topografia e a tradição registada no ‘Couseiro’ não será de descartar a possibilidade de o Outeiro de São Martinho, agora ermo, ter sido ocupado em tempos idos. A tipologia e a cronologia dessa ocupação, contudo, permanece vendada pela densa floresta do local. PENEDO – CABEÇO DA FRAGA – CHEDAS O lugar de Penedo parece ter recebido o seu topónimo a partir de uma singularidade geográfica, já que a palavra penedo se traduz por rochedo de consideráveis dimensões. No entanto, não há notícias na região da existência de um elemento desta natureza. A norte do lugar, contudo, ergue-se o Cabeço da Fraga. O topónimo fraga, por seu turno, traduz-se diretamente para penhasco, sinónimo de penedo. Deste modo, perspetiva-se a possibilidade de Penedo ter a sua origem no Cabeço da Fraga, algo que a proximidade entre os dois locais, que distam entre si cerca de 800 metros, parece corroborar. A ser verdade, Penedo descenderia de uma povoação anterior localizada no Cabeço da Fraga, justificando-se a transferência do topónimo com a deslocação da povoação.

Fragmento de loiça ratinha. Século XIX. Cabeço da Fraga.

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Fragmento de faiança. Século XVIII. Cabeço da Fraga.

Fragmento de faiança. Século XVIII. Fraga.

O Cabeço da Fraga é constituído por amplo cume, a partir do qual se desenvolve, a norte, esporão com vertentes bastante acentuadas, contornadas pelo ribeiro da Carpalhosa. O local apresenta todas as condições propícias a ocupação humana antiga, como sejam ampla visibilidade paisagística, defensibilidade natural e fácil acesso a água. Foi na encosta voltada a nascente que detetámos os primeiros vestígios. Fragmentos de telhas de canudo, de tijolos maciços e de argamassa de cal ainda com reboco caiado, fragmentos de cerâmica doméstica comum, de cerâmica vidrada a chumbo e de faianças, espalhavam-se por uma área significativa. Entre as cerâmicas encontravam-se um fragmento de prato em faiança com motivos decorativos conhecidos por arabescos, datável do século XVIII, e um fragmento de loiça designada ratinha, datável do final do século XIX. No local foram ainda encontradas evidências de extração de cal, atividade a que poderia ter estado associada a ocupação humana responsável pelos vestígios detetados. A quantidade e qualidade desses vestígios atestam inegavelmente uma ocupação humana neste local, cujo abandono poderemos posicionar com relativa certeza entre o século XVIII e o final do século XIX. A noroeste de São Miguel, em local atualmente ermo e de forte ocupação florestal, situa-se, por seu turno, o sítio de Chedas, para onde a tradição local remete a existência de uma antiga aldeia. As Memórias Paroquiais do Souto da Carpalhosa, escritas em 1758, corroboram a existência de uma povoação neste local, assinalando à época trinta habitantes (in GOMES, 2009). De origem etimológica difícil de descortinar, chedas designa atualmente as pranchas laterais do leito dos carros de bois onde se aplicam os fueiros, embora se possa atribuir-lhe também uma origem céltica, a partir de cleta, que remete para sítio de caniçadas. Independentemente da explicação para o topónimo, a verdade é que não detetámos nas imediações deste local qualquer evidência estrutural ou material da ex-

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tinta povoação, facto que se compreenderá tendo em consideração a densidade do coberto vegetal que se verifica nesta área da freguesia. Cerca de um quilómetro a sudoeste do Cabeço da Fraga, num local denominado Fraga, não muito distante de Chedas, detetámos vestígios de fornos de cal, lamentavelmente destruídos. No terreno, recentemente lavrado, eram visíveis os tijolos maciços que constituíram em tempos o aparelho dos fornos, blocos de argamassa de cal e fragmentos de cal. Distribuíam-se entre dois conjuntos isolados, sugerindo dois fornos. Como referido a montante, no Cabeço da Fraga são ainda visíveis as marcas de extração de cal, sendo expectável, pela proximidade entre os dois locais, que estes fornos tenham obtido dali a sua matéria-prima. Junto aos vestígios dos fornos detetámos um significativo conjunto de fragmentos cerâmicos, entre eles cerâmica doméstica comum, vidrados de chumbo e faianças, enquadráveis num período cronológico que poderá remontar aos séculos XVII/XVIII. Dado que as evidências da desaparecida povoação deChedas permanecem, por enquanto, fora do nosso alcance, torna-se impossível caracterizá-la, nomeadamente quanto aos seus períodos de ocupação e de abandono. Não obstante, transparece desde já uma proximidade, senão vinculativa pelo menos geográfica, entre oCabeço da Fraga, o local de implantação dos fornos e o local tradicionalmente atribuído a Chedas. ASSENHA Apesar de na memória dos habitantes de Assenha estar ainda bastante presente a existência de azenhas até meados do século XX, de onde de resto a povoação recebeu o seu nome, perspetiva-se a antiguidade destes engenhos naquele lugar, dado que o mesmo se encontra refiro documentalmente desde pelo menos a centúria de 1600. Naturalmente, as azenhas, que utilizam a força motriz da água para moer os

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O ‘Couseiro’ faz também referência ao “Porto de Santo Ildefonso”, no lugar de Casal, embora não especifique a sua localização exata. A configuração da freguesia sofreu significativas alterações desde a época em que foi redigido o ‘Couseiro’, não havendo portanto garantias de que este local corresponda ao sítio de Santo Ildefonso de que agora tratamos. Na referência em questão, diz-se haver aí uma capela edificada em 1618 e de “invocação de S. Bento”, santo que atualmente se venera em Chã da Laranjeira. Da leitura do ‘Couseiro’ e das Memórias Paroquiais, parece resultar a identificação do sítio de Porto de Santo Ildefonso com o sítio de Casal de Jã da Rua. Não obstante, da prospeção conduzida no sítio a que hoje dão o nome de Santo Ildefonso não foram porém detetadas evidências de qualquer edifício.

Mós de azenhas. Assenha.

grãos, só poderiam encontrar-se instaladas junto da ribeira da Assenha, a única linha de água nesta área. Consequentemente, prospetámos as margens desta ribeira, embora em vão, já que não detetámos quaisquer vestígios à superfície. Ainda assim, encontrámos na povoação vestígios da atividade de moagem em Assenha, sob a forma de duas mós, presentemente em propriedade privada. SANTO ILDEFONSO Se a atribuição de um hagiotopónimo a um local é justificável pela devoção religiosa daqueles que o habitam, como vimos para os casos de São Miguel e de São Bento, o mesmo não pode aplicar-se a um local ermo. É o caso de Santo Ildefonso, sítio totalmente desertificado, localizado na bifurcação da estrada que parte de Colónias Agrícolas para as que seguem para Jã da Rua e Marinha da Carpalhosa. De acordo com a tradição local, foi ali que surgiu pela primeira vez a imagem de Santo Ildefonso que hoje se encontra na capela de Conqueiros, tendo o sítio recebido o seu nome a partir deste fenómeno. Contudo, muitas lendas relacionadas com a aparição miraculosa de imagens religiosas derivam de fenómenos bem mais terrenos, como sejam a descoberta, através da lavra de terrenos, de estatuária antiga que o tempo se havia encarregado de enterrar. Quer a imagem tenha efetivamente surgido neste local, quer tenha em tempos idos existido aí uma povoação devota a Santo Ildefonso, a possibilidade de detetarmos vestígios à superfície do terreno adivinhava-se grande. Por outro lado, as Memórias Paroquiais do Souto, escritas em 1758, enumeram as ermidas existentes à data na freguesia, referindo uma capela votada a São Bento no “Cazal de Joam da Rua, fora do Cazal”, pertencente a “Francisco Joam da Carpalhoza” (in GOMES, 2009, 545).

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RASAS Sendo sinónimo de ruínas, o nome Rasas, atribuído a local ermo a nascente de Estremadouro, suscitou-nos curiosidade, tendo motivado igualmente uma prospeção. Por se encontrar densamente florestado, tornou-se inviável uma correta prospeção, ficando por esclarecer as razões inerentes à atribuição de um topónimo tão sugestivo a este local. FIDALGAS Por definição, um fidalgo é alguém que possui títulos de nobreza, embora de forma mais generalista se utilize o termo para descrever alguém abastado, que não necessite de trabalhar para auferir os seus rendimentos. A sul do lugar de Conqueiros encontra-se o sítio de Fidalgas, onde são desde há muito conhecidas ruínas. Numa visita a este local, constatámos a existência de diversas estruturas, entre elas um muro de propriedade em aparelho de pedras e argamassa de cal, que se desenvolvia por vários metros, e o remanescente de um edifício, de que sobram duas paredes em alvenaria de pedras e argamassa de cal, suportando ainda um vão de porta com molduras em calcário e um vão de armário embutido. No local encontrámos ainda diversos fragmentos cerâmicos, dos quais se destaca um fragmento de cerâmica designada ratinha, datável do final do século XIX. Foram ainda detetados nas imediações um fragmento de mó e um peso de lagar. Próximo das ruínas encontra-se ainda uma fonte, de construção recente, cuja mina, em abóbada de tijolos ao cutelo, aparenta todavia alguma antiguidade. No seu conjunto, os vestígios detetados apontam para uma propriedade agrícola abastada, hipótese que o topónimo Fidalgas parece corroborar. Características como tipologia, dimensão e cronologia desta propriedade são, à vista desarmada, impossíveis de clarificar. Uma vez que o local é ainda hoje utilizado para a exploração de hortas, há que ser cauteloso quanto à interpretação dos materiais cerâmicos encontrados, que a terem pertencido àquela propriedade poderão fazer remontar o seu abandono a finais do século XIX.

Ruínas do sítio de Fidalgas, com muro de propriedade, em cima, e o remanescente de edifício, em baixo. Conqueiros.

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Fragmento de cerâmic+ ratinha. Século XIX. Fidalgas.

Fragmento de faiança. Século XVIII. Fidalgas.

CABEÇO DA MOIRA A nascente da entrada sul de Picoto ergue-se o Cabeço da Moira. Com notável domínio visual sobre a paisagem, principalmente a oeste e a sul, o cabeço possui todas as características ideais para ocupação humana antiga, incluindo defensibilidade natural e fácil recurso a água, já que se situa a escassos 700 metros do leito atual do Lis. A estas condições associa-se a lenda de uma moira encantada, que também se encontra relacionada com a Mina da Moira, um aqueduto localizado a poente.Como adiante se refere, as lendas de moiros, que pelo nosso país proliferam, têm amiúde origem na memória coletiva de algo antigo, ainda que não necessariamente islâmico. Por todos estes motivos conduzimos uma prospeção intensiva a todo o cabeço.O local, densamente florestado e parcialmente ocupado por um edifício recente, revelou-se contudo isento de quaisquer vestígios antigos, pelo menos nas áreas em que as condições de visibilidade ao solo possibilitaram a sua prospeção. Associado a este sítio poderá no entanto ter estado uma manifestação rupestre, situada mais a sul, junto do campo de futebol do Campo da Moura.Tratar-se-ia de um conjunto de petróglifos, comummente designados por covinhas ou fossetes, pequenas covas escavadas na rocha, normalmente circulares. Existe memória destas manifestações num rochedo ali localizado, mas o sítio foi entretanto amputado pela construção da via de acesso à autoestradaA17, sem que se tivesse acautelado a sua proteção. As covinhas são bastante frequentes em toda a Europa e conhecidas desde o Paleolítico Médio à Idade do Ferro, havendo diferentes hipóteses interpretativas para a sua criação, tais como recipientes para oferendas em local considerado sagrado, símbolos de fertilidade feminina ou tabuleiros para jogos. Escória de ferro. Porto de Jã da Rua.

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PORTO DE JÃ DA RUA Seguindo a estrada da saída sul de Jã da Rua, mais propriamente junto da bifurcação para São Bento e Pêga, encontra-se o sítio conhecido localmente por Porto de Jã da Rua. Apesar da lenda que relaciona este local com um naufrágio, o topónimo porto deve ser aqui interpretado na sua vertente rural, enquanto ponto de passagem por entre a vedação de uma propriedade, dado que a única linha de água ali presente, o ribeiro da Carpalhosa, não é nem deverá ter sido nunca, navegável. No local são, desde há muito conhecidos vestígios arqueológicos, detetados por Lacerda, Ruivo e Bernardes. Os três autores detetaram escória de ferro, ou borras

de fundição, assim como fragmentos cerâmicos, embora sejam divergentes quanto à cronologia dos vestígios, remetendo-os respetivamente para o período romano, Época Medieval e Época Moderna (LACERDA, 1913; RUIVO, BYRNE e MELO, 198?; BERNARDES, 1996). Numa visita ao local detetámos, na margem nascente da estrada, e administrativamente já na freguesia de Bidoeira, uma enorme quantidade de escória de ferro, assim como vestígios de um edifício em adobes e tijolos maciços, fragmentos de telha de canudo e duas lajes calcárias de formato semicircular. Não foram detetados elementos datáveis. Na margem oposta da estrada, contudo, identificámos escassos fragmentos de cerâmica doméstica comum e de cerâmica vidrada de chumbo. Em reduzida quantidade, esta amostra suscita cuidados na atribuição cronológica, embora nos pareça mais compatível com a Época Medieval. ALTO DOS NICHOS Entre os lugares de São Miguel e de Arroteia, num local ermo assinalado por uma alminha de construção aparentemente recente, situa-se o Alto dos Nichos. Sendo nicho um nome tão especifico, designativo de pequena cavidade, visitámos o local. Trata-se de um sítio ermo, sem evidências de ocupação humana antiga, que se desenvolve a altitudes que rondam os 100 metros, proporcionando por este motivo amplo domínio sobre a paisagem circundante. Não obstante, a prospeção revelar-se-ia infrutífera, não tendo sido detetados quaisquer vestígios. Como referido, o local faz-se assinalar por uma alminha, há muito desprovida de orago, pelo que, face à aparente inexistência de vestígios arqueológicos, interpretamos esta ocorrência como responsável pela sua atribuição toponímica.

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Epigrafe de Carpalhosa.

3. PEDRAS QUE FALAM Como muitas vezes acontece, os objetos do nosso quotidiano contam uma história, refletindo vontades e intenções que ecoam no tempo, muito para além do fim da sua vida útil. As pedras trabalhadas pela mão humana são, pela sua durabilidade, veículos privilegiados para a interpretação do passado. Algumas pedras escritas, chamadas epígrafes, falam metaforicamente, ao passo que outras murmuram costumes e hábitos antigos, há muito esquecidos. Da análise estilística da caligrafia utilizada ou das formas dadas às pedras podemos inferir os propósitos e as épocas em que foram criadas, como aconteceu com alguns exemplares que detetámos na freguesia do Souto da Carpalhosa.

Marco de propriedade, registo gráfico. Carpalhosa. Nele se lê: Co(n)fr(ari)a Do SS(antíssi)mo.

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CARPALHOSA As confrarias e as irmandades têm uma origem bastante recuada. Inicialmente cumpriam funções religiosas, como a organização de procissões, embora tenham surgido essencialmente para cumprir funções mortuárias, providenciando ritos funerários dignos aos seus associados mas também aos pobres desamparados (BEIRANTE, 1990). De tradição romana, as confrarias foram paulatinamente cristianizadas pela Igreja Católica, que nelas reforçou o sentido de caridade e de evangelização. Contudo, permaneceria o seu caráter laico, sendo constituídas por leigos que se protegiam mutuamente, sobretudo na doença, na velhice e na morte (BEIRANTE, 1990). Em Portugal, as mais antigas confrarias de que há registo remontam ao século XII (BEIRANTE, 1990). Tendo florescido por toda a Idade Média, atingiram seguramente a ordem dos milhares, não havendo paróquia que não contasse com pelo menos duas, a Confraria do Santíssimo Sacramento e a Confraria das Almas (GOMES, 1996/97). Não raramente, as confrarias acumulavam bens e terrenos, sobretudo fruto de doações, que geriam em proveito das suas causas. Assim, não será de estranhar que certos indícios testemunhem a presença de confrarias, ou das suas posses, na freguesia do Souto. Será seguramente esta a justificação para a Rua da Confraria, em Moita da Roda. No Souto surge descrita já nas Memórias Paroquiais de 1758 a Confraria do Santíssimo Sacramento (GOMES, 2009), embora estimemos que esta confraria remonte a tempos mais remotos, conforme testemunha um marco de propriedade detetado em Carpalhosa. Trata-se de um marco em calcário claro com cerca de 50 cm de altura (fragmentado na base), 40 cm de largura e 15 cm de espessura, de faces irregulares e topo ligeiramente abaulado. Na superfície anterior lê-se: Co(n)fr(ari)a Do SS(antíssi)mo. A análise estilística da caligrafia usada permite apontar o século XVI como a sua provável cronologia. Atualmente em posse privada, esta pedra escrita, ou epígrafe, encontra-se descontextualizada. Terá sido recuperada da soleira do portão de uma casa arruinada

em Carpalhosa, onde foi aplicada depois de recolhida em parte incerta pelo dono dessa casa. O seu contexto original é portanto desconhecido. Contudo, não é espectável que provenha de local distante, sendo razoável admitir que marcasse uma propriedade na freguesia ou até mesmo em Carpalhosa. SOUTO DA CARPALHOSA No adro da igreja de Souto da Carpalhosa, na parede nascente do cemitério, encontra-se atualmente uma bica de água que, embora seja de construção recente, inclui uma pedra esculpida cujas características estilísticas permitem recuá-la ao século XVII. Embora esta escultura tenha sido reaproveitada, sabemos tratar-se de uma peça que integrava o antigo chafariz deste adro, cuja localização exata é hoje desconhecida. Trata-se de uma escultura em calcário representando em relevo uma carranca imberbe, entre duas filacteras, com cabeleira de madeixas caindo sobre ambos os lados da face até às orelhas. O rosto exibe maçãs salientes, olhos vazados, nariz achatado e boca aberta, por onde, em tempos idos, a água escoaria. Chafariz. Souto da Carpalhosa.

PICOTO No limite oeste da freguesia, a nascente da linha-férrea que a separa de Monte Real, localiza-se a Quinta do Picoto, que alberga a designada Mina da Moira. Trata-se de um aqueduto de tipo qanat, penetrando o interior de uma elevação a nascente, chamada Cabeço da Moira, para obtenção de água. Apesar de hoje se en-

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tra-se uma escultura em calcário, com aproximadamente 40 cm de altura e 44 de largura, representando em relevo uma carranca aparentemente barbada, entre duas volutas, com maçãs do rosto, olhos e nariz salientes. Da boca, amplamente aberta, escoaria em tempos a água. No topo, a fachada exibe igualmente um nicho abobadado, com molduras em calcário, de ombreiras lisas apoiadas em socos quadrados. Presentemente vazio, o nicho deveria albergar alguma imagem, eventualmente o orago local. Apesar de envoltos pela lenda local que relata aparições de uma moira encantada, tanto o cabeço como a mina encontram-se desprovidos de quaisquer vestígios islâmicos. As lendas que referem moiros estão frequentemente relacionadas com a memória coletiva de algo antigo, embora não necessariamente islâmico. A análise estilística da estrutura da mina e das respetivas peças esculpidas permite-nos atribuirlhe uma cronologia que remontará ao século XVII. Não obstante, a estrutura atual pode ter as suas origens numa estrutura anterior, entretanto renovada. A mera análise estilística desta mina não chega portanto para lhe atribuir cronologia de edificação original, que poderá eventualmente ser desvendada apenas com uma intervenção arqueológica mais interventiva.

Mina da Moura. Picoto. Fachada do chafariz (em cima) e carranca por onde escoaria a água (em baixo).

contrar desativado, o aqueduto conduziria a água até um chafariz posicionado a sudeste da estação de caminhos férreos. Atualmente, é visível a estrutura do chafariz, assim como cerca de 20 m do aqueduto, antes do mesmo penetrar o solo. O aqueduto, retilíneo, é constituído por túnel abobadado, de paredes e couraça exteriores em alvenaria de pedras unidas por argamassa de cal. O chafariz, por seu turno, é composto por estrutura paralelipipédica, com fachada simples retangular, em alvenaria de pedras unidas por argamassa de cal, rematada lateralmente por cunhais em cantaria simples de calcário. Na base da fachada encon-

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VÁRZEAS Na região sul de Várzeas, junto da estrada EN109, situa-se um arrabalde a que dão o nome de Serrado da Capela. Ao local, cujo topónimo é já por si bastante sugestivo, associa-se a tradição, fortemente enraizada localmente, de que este terá sido o local da primitiva capela da povoação de Várzeas, antes da sua transferência para onde atualmente se encontra. Lamentavelmente, o sítio foi recentemente sujeito a aterros, o que inviabilizou a sua prospeção. Não obstante, alguns habitantes de Várzeas garantem ter constatado a existência de vestígios estruturais no local, que de tempos a tempos eram expostos pelas lavras. Em posse privada está, por exemplo, a cantaria que se segue, cujo proprietário garante ter sido recolhido no Serrado da Capela. A análise estilística desta cantaria não chega infelizmente para lhe atribuir uma cronologia, nem para afirmar contundentemente que integrasse uma capela. Mas uma peça desta natureza estaria com certeza relacionada com uma edificação de qualidade. Nas proximidades do local erguem-se ainda um lagar de azeite e paredes de uma casa solarenga, atualmente integrados em habitações privadas, pelo que não será de descartar a possibilidade de existência de uma antiga quinta agrícola no Serrado da Capela ou nas suas proximidades. Como tantas vezes acontecia em propriedades ricas, uma capela privada poderia estar associada a esta quinta, sendo esta uma explicação razoável para o topónimo Serrado da Capela.

Cantaria em calcário, com voluta em relevo. Serrado da Capela, Várzeas.

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Souto da Carpalhosa. Oito Séculos de História

Souto: Subsídios Arqueológicos

Casa alpendradra em São Miguel

4. A CASA TRADICIONAL A casa tradicional que podemos encontrar representada em praticamente todas as povoações do Souto da Carpalhosa não é exclusiva desta freguesia, mas antes a podemos ver em toda a região compreendida nos distritos de Aveiro, Figueira da Foz e Leiria (OLIVEIRA e GALHANO, 1998). Falamos da casa alpendrada, ou casa de alpendre, de que restam ainda 41 exemplares na nossa freguesia (contando apenas as que ainda exibem o alpendre, total ou parcialmente preservado). De piso térreo e planta retangular, a casa alpendrada dispõe-se longitudinalmente face à estrada ou caminho com que confronta. Na fachada abrem-se pequenos vãos de janela, por vezes não mais do que diminutos postigos, mas também o característico alpendre, por onde se acede à porta de entrada. Casa alpendrada. Moita da Roda. Na chaminé lê-se: 10-1921-11 (em cima). Alpendre de casa alpendrada. Conqueiros (em baixo).

O alpendre, a que também se dá o nome de varanda, exibe dois cubos à entrada, úteis para pousar cargas antes de entrar na casa ou enquanto se travam dois dedos de conversa com os vizinhos. Por vezes o alpendre encontra-se decorado, com a viga do telhado trabalhada e garridamente pintada, sustentada por pilares em madeira, também trabalhados e pintados. O telhado da casa alpendrada, constituído por telhas de meia cana apoiadas sobre travejamento de madeira, é sempre de duas águas e de cumeada paralela à fachada. É profundamente marcado pela chaminé, de grandes dimensões e onde por vezes se encontram datas e anagramas. A chaminé, geralmente posicionada ao lado do alpendre, serve no interior ampla lareira, que encontramos invariavelmente na cozinha. As paredes são erguidas em adobes moldados, técnica ancestral que consiste na compressão da terra dentro de um molde de madeira, secando depois o adobe ao sol (FERNANDES, 2006). Os adobes assentam sobre sapatas em pedra argamassada, sendo rebocados com argamassa de terra e o reboco caiado, geralmente de branco. Sem uma intervenção arqueológica mais incisiva, torna-se impossível atribuir a estas casas uma cronologia de edificação, já que a utilização do adobe ocorre desde tempos muito recuados, mantendo-se praticamente até aos nossos dias. Todavia, se considerarmos o número de gerações que nelas habitaram, facilmente recuamos a construção de muitas delas até à primeira metade do século XIX, não sendo de descartar a possibilidade de serem ainda mais antigas. Paralelamente à casa alpendrada, surge na região do Souto a casa gandareza, de estilo arquitetónico similar, embora sem o característico alpendre. A casa gandareza, ou casa da Gândara, é mais frequente na região compreendida entre Figueira da Foz e Monte Redondo, escasseando daí para sul (OLIVEIRA e GALHANO, 1998). É natural portanto, face à proximidade a Monte Redondo, que a influência deste estilo arquitetónico se faça sentir fortemente na freguesia do Souto da CarCasa alpendrada. Casal Telheiro.

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Souto da Carpalhosa. Oito Séculos de História

Souto: Subsídios Arqueológicos

CASAS ALPENDRADAS NA FREGUESIA DO SOUTO DA CARPALHOSA Quantidade de casas alpendradas existentes na freguesia do Souto da Carpalhosa (exemplares que ainda exibem o alpendre, total ou parcialmente preservado).

Localidade

Quantidade

Casal Telheiro

1

Arroteia

Localidade

Quantidade

São Bento

1

4

Moita da Roda

Chã da Laranjeira

2

São Miguel

4

Estremadouro

1

Souto da Carpalhosa

4

Conqueiros

Marinha da Carpalhosa Várzeas TOTAL

3 1

2

Sargaçal Picoto

15

1

2

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palhosa. Esta casa exibe igualmente piso térreo e planta retangular, dispondo-se também longitudinalmente face à estrada ou caminho com que confronta. Na fachada abrem-se vãos de janela que ladeiam um ou mais vãos de porta, sendo os vãos geralmente emoldurados por cantarias de calcário. Frequentemente, a fachada prolonga-se para a fachada do pátio, a que se acede por portão geralmente abobadado. O telhado é igualmente composto por duas águas em telhas de meia cana, com cumeada paralela à fachada, embora os exemplares mais recentes exibam já telhado em quatro águas. Persiste nele a forte presença da chaminé, também de grandes dimensões mas agora posicionada no alinhamento da porta, ostentando por vezes datas e anagramas, à semelhança das suas congéneres das casas alpendradas. Estima-se que a casa gandareza se tenha divulgado na região litoral do centro do país a partir da primeira metade do século XIX (OLIVEIRA e GALHANO, 1998),

devendo remontar a este período pelo menos um exemplar na freguesia do Souto. Em Marinha da Carpalhosa ergue-se ainda uma casa cuja contagem de gerações que com ela coexistiram indica uma construção em meados do século XIX. O seu telhado original foi entretanto substituído, todavia exibe ainda paredes em adobe e em taipa. Sendo também uma técnica ancestral de construção, a taipa, uma raridade na freguesia, consiste na prensagem de terra entre taipais, sistema de cofragem posteriormente desmontado (FERNANDES, 2006). Apesar da antiguidade deste exemplar, a maioria das casas de influência gandareza na freguesia do Souto remontarão à primeira metade do século XX, sendo muitas delas ainda habitadas por aqueles que as construíram. Precisamente por se tornar difícil distinguir as casas gandarezas antigas das mais recentes, seguramente com significativas adaptações aos tempos modernos, nomeadamente ao nível dos materiais adotados e da disposição interna dos compartimentos, optámos por não coligir o número de exemplares destes edifícios na freguesia do Souto. Casa gandareza. Marinha da Carpalhosa (em cima). Casa gandareza. Moita da Roda (em baixo).

Casa gandareza. Chã da Laranjeira.

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Indivíduo 11, sondagem no adro da igreja matriz do Souto da Carpalhosa.

Local da implantação da sondagem arqueológica.

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5. UMA NECRÓPOLE NO ADRO Para quem se aproxima do Souto da Carpalhosa pelo seu lado nascente é impossível permanecer indiferente à imponência da sua igreja matriz e da escadaria que lhe dá acesso. A robustez da sua construção e a magnitude da sua escala impõem-se num destacado promontório, assinalando de forma totalmente eficaz o centro administrativo da freguesia. Não obstante a grandeza do seu templo, o Souto da Carpalhosa não é, todavia, nem o centro geográfico da freguesia, nem a sua maior povoação. É certo que o território da freguesia e o tamanho das suas povoações terão mudado significativamente ao longo dos séculos, mas ainda assim a eleição do Souto para centro da freguesia suscita curiosidade. Afinal, como aconteceu a escolha deste local para sede de freguesia? A questão parece simples mas as respostas são difíceis de obter. A pesquisa documental recua até 1210, ano em que alguns habitantes da então paróquia do Souto doaram um terreno ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, para aí se erguer um pequeno templo (GOMES, 1992). A ausência de outras evidências parece indicar que aquele templo terá sido erguido onde hoje encontramos a igreja matriz do Souto, que terá sido sucessivamente reconstruída até atingir a dimensão que hoje lhe conhecemos. Impunha-se portanto uma escavação arqueológica que comprovasse a construção do primitivo templo no promontório da atual igreja matriz mas, acima de tudo, que permitisse recolher evidências de uma ocupação deste local anterior ao ano de 1210. Evidências capazes de incidir alguma luz sobre os motivos inerentes à escolha desse local para a construção do primitivo templo. Por todo o país são frequentes os exemplos de templos cristãos erguidos à época da fundação da nacionalidade sobre as ruínas de ocupações anteriores, islâmicas, romanas ou ainda mais antigas, como se a construção de um templo cristão reclamasse para a jovem nação os espaços antes ocupados por outros povos. Com todas estas questões em mente implantámos uma sondagem no adro da igreja matriz do Souto da Carpalhosa, adjacente à torre sineira, e em agosto de 2012 abrimos uma janela para o passado. Em termos gerais, uma sondagem arqueológica consiste na remoção das camadas de terra pela ordem inversa à da sua deposição, partindo da mais recente, no topo, e terminando na mais antiga, ao fundo. A datação de cada camada é dada pelo estudo dos materiais dela exumados, como os fragmentos de cerâmica ou as moedas. Entre a calçada que recentemente cobriu o piso do adro e o geológico, a cerca de 1.80 metros de profundidade, removemos quatro camadas de terra, que oscilavam entre a segunda metade do século XVI e o século XX. Uma vez removida a calçada, escavámos a primeira camada de terra, permitindonos identificá-la como um aterro criado com entulhos de obra, alteando o nível de circulação em cerca de 40 centímetros. Desta camada recolhemos, entre outros materiais, fragmentos de azulejos iguais aos que revestem o interior da nave da

Perfil norte da sondagem aberta junto à torre sineira. A: Fragmento de faiança decorada com ‘grinalda oriental’. Segunda metade do século XVII; B e C: 3 reais de D. João III, monarca entre 1521 e 1557; D e E: Ceitis provavelmente de D. João III, monarca entre 1521 e 1557; F: III reis de D. João V, cunhada entre 1710 e 1722; G: Fragmento de azulejo hispano-árabe. Finais século XV/inicio século XVI.

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De cima para baixo: 3 reais de D. João III (1521 – 1557). Ceitil de D. João III (?) (1521 – 1557).

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igreja, assim como cinco moedas antigas, ou numismas: um III reis de D. João V (1706 -1750), datável de 1710/22, dois 3 reais de D. João III (1521 – 1557) e dois ceitis de D. João III (?) (1521 – 1557). No seu conjunto, o espólio aponta para um nível criado entre o século XIX e XX, devendo as moedas ser provenientes de camadas mais antigas, revolvidas durante a abertura de covas. Com efeito, ao remover esta primeira camada de terra, detetámos os primeiros enterramentos. A utilização da área envolvente a igrejas ou capelas para enterramentos, sobretudo nas mais antigas, é uma ocorrência frequente, dado que os cemitérios, tal como os conhecemos hoje, murados e organizados, generalizam-se no nosso país apenas a partir do século XIX. Por este motivo, estas ocorrências denominam-se necrópoles e não cemitérios. Os enterramentos escavados, num conjunto de treze indivíduos, encontravamse todos dispostos na posição canónica, ou seja voltados para nascente. Acreditando que Cristo viria no dia do Juízo Final com o sol nascente, para ressuscitar os mortos, desde cedo que os cristãos começaram a enterrar os seus defuntos com esta orientação. Trata-se portanto de uma tradição antiga, mas não a mais antiga que detetámos entre os enterramentos. Um indivíduo tinha ainda, sob os ossos da sua mão, uma moeda pouco legível, aparentando tratar-se de um V reais de D. Sebastião (1557 – 1578) ou um 10 reais de D. António (1580 – 1583). O costume de enterrar os mortos com uma moeda, ou numisma, é muito antigo, remontando ao período romano. Os romanos acreditavam que os recém-defuntos tinham que atravessar os rios mitológicos Estige e Aqueronte, que separavam o reino dos mortos do reino dos vivos. Apenas Caronte, o barqueiro, poderia fazer a travessia, cobrando aos mortos o devido pagamento. Aqueles que não tivessem consigo forma de pagar, vagueariam para sempre como almas perdidas. Por este motivo os romanos, que já haviam adquirido esta tradição dos gregos, enterravam os seus mortos com uma moeda, ga-

Registo em planta do primeiro nível de enterramentos detectado na sondagem. A: Pendente em azeviche. Século XVII; B: Argolas (Brincos ?). Posterior a 1557; C: V reais de D. Sebastião (1557 – 1578) ou 10 reais de D. António (1580 – 1583).

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Trabalhos de antropologia: identificação, escavação e análise dos enterramentos detectados na sondagem.

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Pendente em azeviche. Século XVII.

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rantindo-lhes o descanso eterno. A tradição perdurou, muito para além do colapso do império romano, sendo utilizada até recentemente, ainda que o propósito inerente tenha há muito caído no esquecimento. Outro indivíduo, provavelmente uma mulher, foi enterrado com um pendente em azeviche. O pendente, em forma de coração, exibia a característica cor negra do azeviche, nele se lendo a palavra ‘Maria’, talvez invocando devoção mariana. Pelo estilo da grafia adotada, supomos datar-se do século XVII. Sob a primeira camada de enterramentos, uma camada de terra de cronologia compreendida entre os séculos XVII e XIX corresponderia ao primitivo nível de circulação do adro da igreja, a cerca de 90 centímetros abaixo do atual. Esta camada de terra, por sua vez, selava um nível de enterramentos mais antigo, que se prolongava por debaixo da própria torre sineira. Neste nível inferior de enterramentos, foram detetados cinco indivíduos, que julgamos terem sido sepultados entre a segunda metade do século XVI e meados do século XVII. Encontravam-se todos também em posição canónica, dois deles guardando ainda uma moeda sob as suas mãos, respetivamente um 3 reais de D. João III (1521 – 1557) e um ceitil, numisma cunhado praticamente durante toda a segunda dinastia, mas que pelas suas características estilísticas deverá enquadrar-se entre os reinados de D. Afonso V e de D. João III (de 1438 a 1557). Um destes indivíduos encontrava-se depositado diretamente sobre o geológico, estando parcialmente debaixo da torre sineira. Trata-se naturalmente do mais antigo vestígio detetado na nossa sondagem, já que abaixo do geológico nada de humano haverá a registar. Será também obviamente anterior à construção da torre sineira, que o cobriu ao nível dos membros inferiores. Sob o último nível de enterramentos detetámos o geológico. Como referido, não haverá nenhum vestígio humano a registar abaixo do nível geológico, pelo que demos por concluídos os trabalhos de escavação, tendo atingido a profundidade de 1.80 metros. Com a abertura desta sondagem, confirmámos a utilização do adro da igreja como espaço de enterramentos, ocorrência que de resto já seria expectável. São agora claros dois momentos distintos para esta necrópole, o mais antigo posicionado entre a segunda metade do século XVI e meados do século XVII e o mais recente entre os séculos XVII e XIX. Da sondagem aberta foi possível perceber que não existia diferenciação espacial da localização das inumações de adultos e de não adultos. Pelo modo como vários enterramentos surgiram cortados deduz-se que o espaço tenha sido sucessivamente utilizado, com os enterramentos mais antigos depositados em covas simples e os mais recentes já com recurso a caixão. Entre os treze enterramentos escavados contavam-se sete indivíduos adultos e seis indivíduos não adultos. Entre os adultos, quatro eram do sexo masculino e três do sexo feminino. Conseguimos ainda remeter a construção da torre sineira para o século XIX, muito provavelmente entre os anos de 1862 e 1864, época em que comprovadamente a igreja é submetida a obras de requalificação de grande envergadura.

Registo em planta do segundo nível de enterramentos detectado na sondagem. A: 3 reais de D. João III (1521 – 1557); B: Brinco. Segunda metade século XVI – meados século XVII; C: Ceitil provavelmente de D. Afonso V a D. João III (de 1438 a 1557) (?).

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Não recolhemos contudo evidências do primitivo templo referido no documento de 1210 ou de uma ocupação anterior à fundação desse templo. O adro, porém, estende-se por uma área significativa, a que se junta todo o espaço ocupado pela própria igreja. A sondagem aberta contou com uns singelos 4 m2, pelo que a probabilidade de que a sua posição coincidisse com os vestígios que pretendíamos alcançar era, à partida, muito baixa. Sucessivamente sujeita a obras de requalificação e de ampliação, a igreja matriz do Souto foi gradualmente ocupando mais espaço no adro em que se insere, sendo possível que os vestígios do templo primitivo, ou mesmo de uma ocupação anterior a este, se encontrem atualmente debaixo do templo que conhecemos. Não obstante, os vestígios detetados na nossa sondagem permitem-nos olhar diretamente para o passado e para aqueles que o viveram.Os objetos com que foram sepultados, e as tradições que lhes são inerentes, descrevem a forma como os nossos antepassados encaravam a morte, contando por isso histórias sobre o modo como regiam a sua vida. Enterramento coberto pela sapata de fundação da torre sineira (na imagem, à direita).

Distribuição etária dos indivíduos da amostra exumada.

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Fuso de lagar em Conqueiros.

6. ECONOMIA LOCAL Para o estabelecimento de uma povoação em determinado local em muito contribuem os recursos naturais aí disponíveis. A água, os solos férteis e os minérios são três dos recursos naturais mais explorados e por isso determinantes para a fixação de povoações antigas e atuais. Com a industrialização passámos contudo a auferir os nossos rendimentos de forma indireta, sendo hoje possível viver em determinado local sem que tenhamos obrigatoriamente de subsistir à conta da exploração dos seus recursos naturais.Antigamente porém a grande industria escasseava e a pequena industria, de caráter muitas vezes familiar, subsistia quase invariavelmente à custa da exploração dos recursos locais. Determinar as características da economia local tradicional contribui portanto para o conhecimento das formas de exploração dos recursos naturais regionais e, consequentemente, para o discernimento dos hábitos de trabalho e dos estilos de vida dos nossos antepassados. Uma vez que a exploração, utilização e transformação dos recursos naturais locais é frequentemente transversal a diversos períodos históricos, mantendo-se muitas vezes desde tempos remotos até aos nossos dias, o seu estudo pode torna-se uma plataforma para o cruzamento da arqueologia e da etnografia. Sendo o Souto da Carpalhosa uma freguesia em que abundam os solos férteis, compreende-se que a maior parte das atividades económicas locais se desenvolva em torno da agricultura. Em tempos idos eram várias as quintas agrícolas de considerável dimensão que existiam na área desta freguesia, mas proliferavam também as azenhas, os moinhos e os lagares de azeite e de vinho. Certos minérios eram, e em alguns casos são ainda, igualmente explorados, como o ocre, a areia, a cal, a argila e o gesso. Dependendo quer destas matérias-primas, quer de matérias-primas importadas, oficinas e indústrias artesanais instalaram-se na freguesia, como as olarias, as ferragens e os fornos de cal e de pez. Na freguesia proliferam também, à imagem do que acontece ainda, as matas e florestas, que de resto estão na origem do próprio topónimo Souto. Até recentemente se exploravam por isso as resinas dos pinhais um pouco por toda a freguesia. Não detetámos indícios da sua exploração em tempos mais recuados, mas deixamos aqui referência à notícia de dois armazéns de resina, ou âmbar, alegadamente existentes em período medieval em Carpalhosa e em Moita da Roda (SILVA, 2006). AZENHAS E MOINHOS As azenhas aproveitam a força motriz da água para mover as suas mós, ao passo que os moinhos aproveitam o vento para o mesmo efeito. Na freguesia doSouto laboraram engenhos de ambos os tipos, sendo conhecidos simplesmente por moinhos, não obstante a existência do topónimo Assenha, que, como referido, tem a sua origem em azenha. Foi precisamente em Assenha que descobrimos os únicos vestígios de azenhas na freguesia, duas mós já removidas do seu contexto original. Alguns moradores mais velhos recordam ainda os engenhos em laboração na ribeira da Assenha, imediata-

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Moinho de vento. Casal Telheiro.

mente a sul da povoação. O mesmo, testemunham os mais velhos, ocorria na Jã da Rua, ao cabo da Rua do Vale, sobre a ribeira da Carpalhosa, e ainda a poente da Travessa do Moinho em Marinha da Carpalhosa, sobre uma linha de água afluente da mesma ribeira da Carpalhosa. Destes engenhos não foram contudo detetados já quaisquer vestígios, subsistindo apenas na memória dos mais velhos. Foram-nos descritas edificações em madeira, cuja natureza perecível talvez explique a ausência de vestígios, embora a densidade com que o mato se ergue atualmente junto das linhas de água também tenha dificultado a prospeção das áreas em questão. Muito naturalmente, consideramos a possibilidade de existência de azenhas noutros locais da freguesia, face à grande abundância de ribeiras que nela correm, embora não tenhamos recolhido mais informações a este respeito, além das que agora expomos.Assim, é com alguma reserva que constatamos a predominância, talvez errada, destes engenhos a nascente da área da freguesia. Sendo certo que o assoreamento das linhas de águas lhes altera grandemente a configuração e caudal ao longo dos séculos, consideramos plausível alterações na quantidade e na localização das azenhas na área da freguesia. Dos testemunhos orais recolhidos surte a ideia de que algumas poderão ter laborado sazonalmente, hipótese corroborada pelo fraco caudal das ribeiras nas estações mais secas do ano. Considerando que o inverno se sucede à estação das colheitas, a laboração sazonal das azenhas nos meses mais chuvosos, com ribeiras mais caudalosas, faria assim bastante sentido. Não sabemos ao certo quantos moinhos terão laborado na freguesia do Souto, tendo sido detetado apenas um caso, em Casal Telheiro. O edifício encontra-se já bastante alterado e completamente desprovido de qualquer engenho, mas exibe ainda as características planta circular e cobertura cónica. Encontra-se erguido em alvenaria de tijolos maciços unidos por argamassa de cal e é servido por vão de porta abobadado, com os tijolos ao cutelo, assim como por um pequeno vão lateral, abaixo da cobertura, por onde seguramente passaria a trave das velas, chamada mastro.

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MINÉRIOS As explorações de minérios e de inertes são de antiguidade difícil de determinar, mormente se se mantêm até aos nossos dias, como acontece em alguns casos na freguesia do Souto. Com efeito, as técnicas de extração resultam não raras as vezes na abertura de túneis ou buracos que, sendo tantas vezes os únicos vestígios das explorações, não nos permitem aferir cronologias de exploração ou de abandono. Embora se mantenham em exploração os areeiros da Camarneira, regista-se o recente abandono da exploração de gesso no Outeiro de São Martinho, Várzeas, bem como dos barreiros do Vale da Ucha, São Miguel. Na vertente nascente do Outeiro de São Martinho era igualmente explorado o ocre, ou oca, como é localmente conhecido, de que os mais velhos terão ainda memória. A exploração deste minério, utilizado como pigmento para coloração da cal, fazia-se mediante a abertura de túneis horizontais, alguns dos quais ainda visíveis neste local. Ainda visíveis são também os buracos deixados pela exploração de barro na Moita, Estremadouro, em Santo Ildefonso, Jã da Rua, e junto à Cerâmica do Centro, Várzeas, para além do já referido caso de Vale da Ucha, São Miguel. A cal, recurso muito procurado em tempos sobretudo pelo setor da construção, foi também explorada na freguesia do Souto. No Cabeço da Fraga, Penedo, como já referido, são ainda visíveis as marcas de talhe no calcário que ali aflora. OFICINAS Associadas aos minérios e inertes explorados localmente, surgiram na freguesia do Souto diversas oficinas, embora algumas delas tenham laborado com recurso a matérias-primas importadas de regiões mais ou menos próximas. Os casos mais paradigmáticos serão porventura a SIVAL e a Cerâmica do CenOficina de ferreiro. Estremadouro.

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São de considerar ainda os casos de Conqueiros e de Casal Telheiro como hipotéticos locais de antiga produção oleira. Como já referido, o topónimo Conqueiros poderá denunciar a existência de produtores de concas, ou tigelas, ao passo que Telheiro poderá referir-se a algum produtor de telhas. De resto nas Cartas Militares de Portugal mais antigas, o nome desta última povoação aparece ainda como Casal do Telheiro, tendo na prática entretanto caído em desuso a preposição do. Fazemos ainda menção a um forno de oleiro em Moita da Roda, de que não detetámos vestígios, descrito porém por Ginja (GINJA, 1999).

Chaminés de olarias. Santo Ildefonso, à esquerda; Souto de Cima, à direita.

tro, localizadas entre Várzeas e Souto, ambas ainda em laboração. Dada a dimensão destas fábricas, recorrem atualmente a matéria-prima externa, embora em tempos idos devam ter obtido o gesso e a argila, de que respetivamente dependem, maioritariamente nas explorações acima referidas. Excetuando estes dois casos, as fábricas da freguesia nunca alcançaram a dimensão de verdadeiras indústrias, tendo dependendo de mão de obra essencialmente familiar, senão mesmo unipessoal. Em Estremadouro encontram-se ainda, embora extintas, duas oficinas de ferreiro (uma delas em espaço que administrativamente integra já a freguesia vizinha de Bajouca). Acedemos a uma delas, onde encontrámos toda a estrutura e todos os utensílios ainda in situ, num local que seguramente merecia ser musealizado. O ferro era, ao que consta, proveniente da Siderurgia Nacional, em Lisboa. Em Jã da Rua, num sítio conhecido localmente por Porto da Jã da Rua, detetase à superfície do terreno grande quantidade de escória de ferro, a que também dão o nome de borras, denunciando atividade metalúrgica. Como exposto anteriormente, são atribuídas a estes vestígios distintas cronologias, que variam entre o período romano e a Época Moderna. Não existe memória de qualquer metalurgia a funcionar neste local, pelo que assumimos a sua antiguidade, apesar de os vestígios detetados serem ambíguos quanto a atribuições cronológicas. Associadas aos barreiros já descritos encontravam-se diversas olarias. No Estremadouro há notícias de duas olarias, respetivamente de cerâmica doméstica e de cerâmica de construção, das quais ainda há memória mas de que já não são visíveis quaisquer vestígios. Também em Santo Ildefonso, Jã da Rua e no Souto de Cima, Souto da Carpalhosa, laboraram duas olarias de cerâmica de construção, de que subsistem apenas as chaminés e muitos fragmentos de cerâmica à superfície do solo.

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FORNOS Existe também memória de fornos de cal e de um forno de pez na freguesia do Souto. Junto ao Cabeço da Fraga, Penedo, conheciam-se até há bem pouco tempo vários fornos de cal, com certeza associados à exploração desta matéria-prima que, como já referido, se verificava naquele cabeço. Como é sabido, a cal era um produto muito procurado, quer para pintura e impermeabilização de paredes, quer para adicionar às argamassas usadas na construção de edifícios, conferindo-lhes maior firmeza. Cerca de um quilómetro a sudoeste do Cabeço da Fraga, perto do local conhecido por Chedas, detetámos os vestígios de dois destes fornos, tal como acima exposto. Também no sopé doOuteiro deSão Martinho,Várzeas, junto da ribeira doSouto, existiriam fornos de cal, desmontados aquando da construção do setor sul da fábrica SIVAL. No lugar de Relvinha, no extremo nordeste da freguesia, existe ainda uma edificação antiga que estaria associada a um forno de pez, de que já não se encontram vestígios. O pez consiste numa substância de cor negra com origem na destilação de petróleo ou de resinas, sendo muito procurado pelas suas capacidades impermeabilizantes, já que endurece ao arrefecer. Era por isso bastante utilizado na construção mas também no fabrico de sapatos. Anexo associado a extinto forno de pez. Relvinha.

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Pesos de lagares de vinho. De cima para baixo:: São Miguel, Moita da Roda, Conqueiros.

Lagar de vinho. Conqueiros.

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LAGARES Mesmo que não tenhamos em conta as quintas agrícolas que comprovadamente existiram na freguesia do Souto, a agricultura para consumo próprio exerce e deverá ter exercido sempre grande domínio na região. Os lagares de vinho e de azeite que detetámos na freguesia, invariavelmente particulares, atestam esta mesma realidade. Naturalmente, possuir um lagar próprio seria sinónimo de abastança, não só pela despesa associada à edificação destes engenhos mas sobretudo pela quantidade de produção agrícola que justificava possuir um lagar próprio. A utilização dos lagares era por vezes cedida aos que os não tinham, para ali transformarem os seus próprios produtos mediante determinado pagamento, normalmente parte do produto obtido no lagar, assim contribuindo para aumentar ainda mais a riqueza dos seus proprietários. Todos os lagares até agora detetados recorriam à prensagem por vara ou trave, um sistema atribuído aos gregos, posteriormente adotado e difundido pelos romanos a partir do século I a.C. (PEREIRA, 2005).Trata-se de um sistema comum aos lagares de azeite e de vinho, que consiste no uso do peso de um tronco fixo numa das extremidades, a vara ou trave, e movido verticalmente na outra mediante o acionamento de um parafuso, o fuso. São vários os vestígios de lagares de vinho na freguesia do Souto. Na atual Rua de São Miguel, numa zona antigamente chamada Celeiro, São Miguel, no cruzamento entre a Rua Principal e a Rua da Galhardia, Moita da Roda, assim como na Rua dos Conqueiros, Conqueiros, foram identificadas pedras que apoiavam os fusos de lagares extintos, chamadas pousos ou pesos, todas deslocadas do seu contexto original. A avaliar pelas informações orais recolhidas, todas integrariam lagares de vinho particulares, localizados nas imediações. Registe-se que o peso detetado em Moita da Roda terá provindo de um lagar próximo da escola primária da povoação, tendo existindo um segundo lagar na povoação, no Rossio, de que não subsistem vestígios. Já o peso detetado em Conqueiros poderá, pela sua proximidade, provir da quinta agrícola de Fidalgas, de que tratámos a montante.

Lagar de vinho. Arroteia (em cima). Certã de lagar de azeite. Várzeas (em baixo).

Ainda no lugar de Conqueiros, mas também no de Arroteia, encontrámos dois exemplares de lagares de vinho substancialmente preservados, mantendo ainda in situ pesos, varas e fusos. Registamos igualmente um lagar de vinho no lugar de Quinta, ao termo de Chã da Laranjeira, destruído num dos incêndios que assolaram a área na última década, tendo deste engenho sobrado apenas a pia. Já no lugar de Várzeas detetámos um lagar de azeite, em notável estado de preservação, o único dedicado à extração de azeite de que tivemos conhecimento em toda a freguesia. Seria constituído por dois corpos de vara, fuso e peso, embora no local permaneça apenas um único conjunto. Dada a proximidade deste lagar ao Serrado da Capela e ao remanescente de uma casa solarenga ali existente, julgamos provável que este engenho tivesse em tempos integrado uma propriedade agrícola abastada, cuja eventual capela privada possa, como já referido, estar na origem daquele topónimo.

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Janela de cerca de propriedade (em cima). Picoto. Possível reconstituição (em baixo).

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QUINTAS AGRÍCOLAS Surgem um pouco por toda a freguesia os vestígios e memórias de grandes quintas agrícolas, das suas dependências e dos seus domínios. Propriedades abastadas, munidas de casas solarengas, de capelas privadas e de robustas infraestruturas, de que a Quinta dos Alves de Mattos, Conqueiros, recentemente convertida em unidade hoteleira, será porventura o exemplo mais proeminente. Tais propriedades foram em tempos dominantes no registo económico local, empregando a maioria da mão de obra regional e, consequentemente, ditando o ritmo de vida das povoações locais. Os seus abastados proprietários permanecem ainda hoje como figuras lendárias, sendo riquíssimo o conjunto de histórias que na memória popular lhes são atribuídas. Certamente que estas propriedades terão porventura deixado para trás testemunhos documentais. O caso de Quinta, geograficamente mais próxima de São Miguel mas que alguns defendem situar-se ao termo de Chã da Laranjeira, surge já referida no ‘Couseiro’, documento dado como redigido no início do século XVII. Não nos competiu contudo analisar a documentação correspondente às quintas agrícolas da freguesia do Souto, mas antes procurar os seus vestígios materiais. Acima fizemos já referência à Quinta do Picoto, em Picoto, cuja mina, então descrita, foi um dos poucos vestígios detectados.As Memórias Paroquiais do Souto da Carpalhosa, de 1758, referem a capela de “Sancta Anna, na Quinta do Picoto”, pertença de “Nicoláo Cardozo” (in GOMES, 2009, 545), corroborando a relevância económica desta propriedade. Mas da prospecção ao local resultaria também a detecção de uma cerca de propriedade em alvenaria de pedras, com aproximadamente 130 metros de comprimento. Sensivelmente ao centro da cerca erguia-se ainda um vão de janela com monduras em cantarias lisas de calcário e templete decorado com volutas e motivos vegetalistas. Na

extremidade sul da cerca erguia-se ainda o remanescente de portal, com ombreira emoldurada com silhares almofadados, ladeado por vão de porta, já emparedada. As características estilísticas da janela e do portal denotam gosto neo-clássico, típico do século XIX. Já antes abordámos também os casos de Fidalgas, em Conqueiros, e de Serrado da Capela, emVárzeas, como prováveis quintas agrícolas. Se no caso da primeira subsistiam ainda vestígios estruturais e materiais, eventualmente passíveis de remontar o seu abandono a finais do século XIX, já no segundo caso não subsistem vestígios suficientes para inegavelmente confirmar a existência de uma quinta. Em Fidalgas, detetámos um conjunto estrutural constituído por muro de propriedade e por edifício habitacional, passíveis de ter pertencido a uma eventual propriedade agrícola abastada, que tanto os vestígios materiais de superfície como o seu próprio topónimo parecem, como acima defendido, corroborar. No caso de Serrado da Capela, confiámos, como também já exposto, nas informações orais, no topónimo e na magnitude de um lagar de azeite que ainda se encontra erguido nas imediações daquele local, para propor a existência de uma propriedade abastada. A estes indícios junta-se uma pedra tumular implantada à porta da igreja matriz do Souto, assinalando a última morada de Emília do Santíssimo Sacramento Crespo, falecida em 1895. Segundo informações orais, Emília pertenceria a uma abastada família, proprietária de uma quinta localizada precisamente junto do referido lagar. A julgar pelo lugar de destaque ocupado pela sua sepultura, terá sem dúvida constituído figura de destaque na sociedade local, com certeza concordante com o estatuto de proprietária abastada. Uma vez que foi sepultada em 1895, consideramos que a influência da família se tenha preservado pelo menos até finais do século XIX, não sendo de descartar a possibilidade da quinta em questão ter persistido até este período. Solar da família Alves de Mattos e capela de Conqueiros, em segundo plano. Conqueiros.

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Ruínas de capela. Quinta – São Miguel/Chã da Laranjeira.

Também à porta da capela de Conqueiros encontramos seis pedras tumulares, assinalando o local de enterramento de diversos elementos da família Alves de Mattos, na mais antiga de todas lendo-se a data de 1831. A propriedade abastada desta família é desde há muito conhecida localmente e o solar em que habitavam preservase ainda, agora convertido em unidade hoteleira. Uma vez que a propriedade em questão se encontra atualmente no centro da povoação de Conqueiros, não existem mais vestígios de superfície que permitam retirar ilações cronológicas sobre a fundação desta quinta agrícola. Não obstante, a própria capela de Conqueiros poderá estar relacionada com a fundação da quinta, sendo o templo já referido no seiscentista ‘Couseiro’. Por seu turno, os vestígios de superfície são bastante abundantes na Quinta, um sítio que muitos defendem situar-se no termo de Chã da Laranjeira, embora se aproxime bastante mais da povoação de São Miguel. O próprio topónimo denuncia a existência de uma propriedade abastada, sendo desde há muito conhecidas naquele local ruínas de um solar brasonado, de uma capela privada e de um lagar de vinho. Destas ruínas subsistem apenas as paredes da capela e a pia do lagar, assim como algumas cantarias recolhidas numa habitação vizinha. Do solar brasonado, assim como do portão abobadado, de que há ainda memória, não restaram quaisquer vestígios. Deverá ser a esta quinta que faz referência o ‘Couseiro’, quando menciona uma ermida de invocação a Santo António no lugar de Chã da Laranjeira. Como é de conhecimento geral, na atual capela de Chã da Laranjeira, votada a São Bento, nunca houve invocação àquele santo, para além de o referido documento seiscentista fazer clara referência a uma quinta e ao respetivo administrador “Lourenço Mendes d’Abreu”. Para mais, em São Miguel persiste a tradição de ter sido desta quinta transferido o culto a Santo António para a atual capela do lugar, antes votada a Nossa Senhora da Portela.

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As Memória Paroquiais de 1758 voltam a fazer referência à Quinta e à sua capela de invocação a Santo António, referindo-se a ela como “Quinta da Laranjeira” e atribuindo a sua propriedade “ao Doutor Jozeph Lopes Coelho”. No parágrafo seguinte fazem as memórias alusão a outra capela de invocação a Santo António, desta feita “fora de povoado”, perto de um “lugar intitulado S. Miguel”, pertença de “Alberto Homem de Vásconcellos” (in GOMES, 2009, 545). Deduzimos, portanto, ter a atual capela de São Miguel sofrido transferência de invocação de Nossa Senhora da Portela para Santo António entre inicios do século XVII, altura em que terá sido redigido o ‘Couseiro’, e 1758, altura em que se escreveram as Memórias Paroquiais. A capela exibe grande simplicidade construtiva, sendo composta por quatro paredes retas, dispostas em planta retangular, com entrada orientada para poente.A sua cobertura, totalmente ruída, seria composta por caixotões em madeira, de que há ainda memória. No local identificámos ainda um significativo conjunto de cerâmicas, composto por fragmentos de cerâmica doméstica comum, cerâmica vidrada de chumbo e faianças, cuja cronologia pode recuar até finais do século XVII. Uma capela em ruínas é tudo o que subsiste também de uma antiga quinta agrícola no lugar de Graveto, junto do limite norte da freguesia do Souto. Graveto situase atualmente na freguesia de Monte Redondo, embora a sua proximidade ao termo da freguesia sustente a possibilidade de pelo menos parte do território que lhe era afeto se preservar dentro da atual área da freguesia do Souto. A capela, bastante alterada, apresenta-se em planta retangular, com três naves separadas por arcaria de volta completa e cabeceira destacada da nave central por

Fragmento de faiança. Século XVIII. Quinta – São Miguel/Chã da Laranjeira.

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Fachada da capela.Graveto (à esquerda). Interior da capela. Graveto (à direita).

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arco também de volta completa. Preserva ainda a fachada, onde se abre o vão de porta em arco abatido ladeado por dois vãos de janela elípticos, denunciando um gosto estilístico classicista. As prospeções na área eventualmente afeta a esta quinta foram impossibilitadas pela densidade do coberto vegetal, pelo que não foram identificados vestígios adicionais que nos permitiam atribuir ao sítio cronologias de ocupação e de abandono. Problema semelhante tivemos no Souto de Cima, em Souto da Carpalhosa, quando tentámos prospetar as imediações de um edifício arruinado que ali se ergue. O edifício, de arquitetura imponente, tem despertado na população local as mais diversas lendas e tradições. São-lhe atribuídas a localização de uma antiga escola, de uma casa monástica, de uma prisão e ainda de um massacre levado a cabo pelas tropas napoleónicas. Não obstante, a sua arquitetura denuncia um caráter meramente habitacional. Trata-se de um edifício de duplo piso e planta retangular, com fachada orientada para sul. A fachada é ritmada no rés do chão por duas janelas quadrangulares, ladeando uma entrada já alterada, e no piso superior por duas janelas ladeando sacada, de topos em arco abatido. A sacada do nível superior abre para varandim resguardado por guarda-corpos em ferro. As paredes internas encontram-se rebocadas apenas a partir do nível superior, exibindo o aparelho em alvenaria de pedras e argamassa de cal no rés do chão. O rés do chão encontrar-se-ia separado do nível superior por sobrado de madeira, já desaparecido, que apoiaria numa arcaria, ainda presente, composta por três arcos de volta completa em tijolo de palmo ao cutelo. O acesso ao piso superior fazia-se pelas traseiras da habitação, onde ainda são visíveis os vestígios de uma escadaria.

Casa arruinada Souto da Carpalhosa.

O distinto cuidado com que se ergueram os dois pisos sugere um nível inferior funcional, que poderia ser usado como armazém ou estábulo, e um nível superior nobre, onde se disporiam os diversos compartimentos habitacionais. Naturalmente, uma habitação desta natureza terá pertencido a uma família abastada, cuja fonte de rendimento poderá ter estado também associada à lavoura. Da prospeção realizada nas suas imediações não resultou a deteção de qualquer vestígio que apontasse cronologias de ocupação ou de abandono, embora o estilo arquitetónico do edifício denuncie um gosto pelo classicismo característico dos séculos XVIII e XIX. Uma última referência ao caso denunciado pelo topónimo Quinta Nova, entre Relvinha e Estremadouro, que como expusemos a montante, sugere a existência de uma quinta velha. Apesar das prospeções realizadas no local, que incluíram a área conhecida por Rasas, não foram detetadas quaisquer evidências de uma quinta agrícola.

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Casa arruinada em Souto de Cima.

7. O SILÊNCIO DOS TEMPOS No que concerne ao longo período que entremeia a Pré-história e a Época Moderna, pesa sobre a freguesia do Souto um denso silêncio, não obstante as intensas prospeções que promovemos. É como se o tempo se calasse, recusando-se a contarnos para já as suas histórias, escondendo-as sob um opaco manto de vegetação. A escassez de elementos pré-históricos detetados dificulta a caracterização destes recuados tempos, permanecendo totalmente por definir a tipologia de ocupação dos seus períodos mais recentes, como o Neolítico e o Calcolítico, em que se dominaram a agricultura, a domesticação do gado e a metalurgia do cobre. É certo que uma região, ao caso a freguesia do Souto, não tem obrigatoriamente que ter sido ocupada durante todos os períodos históricos conhecidos, mas face aos diversos vestígios arqueológicos conhecidos na região, temos grande dificuldade em aceitar o despovoamento da área em estudo durante tão longo período. Praticamente às portas da freguesia, o cenário altera-se substancialmente. São conhecidos desde há muito vestígios do Neolítico, constituídos por ossadas humanas e objetos líticos, no lugar de Milagres, assim como em Monte Real, onde foram exumados alguns objetos de uma Anta, como um machado em pedra polida, uma lamela em sílex e um ídolo em placa de xisto. Também nas freguesias vizinhas deOrtigosa, Monte Redondo e Bajouca são conhecidos alguns vestígios deste período, geralmente constituídos por achados isolados. Desde a incipiente metalurgia do cobre no Calcolítico, ao domínio das técnicas metalúrgicas da Idade do Bronze e alvores da Idade do Ferro, períodos em que ao território português chegam fortes influências atlânticas e orientais, nomeadamente célticas, fenícias e gregas, volta a fazer-se sentir em toda a região um carregado silêncio. Não apenas na freguesia do Souto mas em todas as freguesias vizinhas são praticamente inexistentes os vestígios destes períodos. É apenas no período romano, em plena Idade do Ferro, que ressurgem os vestígios arqueológicos na região. Foi Plínio, autor clássico do séc. I d.C., quem primeiro se referiu a Collippo, cidade romana de suma importância, que hoje sabemos localizar-se em São Sebastião do Freixo (Batalha). Algumas epígrafes comprovam que Collippo ascendeu a municipium, revelando que o território desta cidade confrontaria necessariamente com os territórios de Eburobrittium, Scallabis, Sellium e Conimbriga (BERNARDES, 1999). No território das cidades romanas localizavam-se grandes e abastadas quintas agropecuárias, as villae, assim como povoados mais humildes, associados à exploração dos mais variados recursos, os vici. São conhecidas villae em Regueira de Pontes e em Marrazes, assim como um vicus em Milagres. Também em Monte Real se descobriram vestígios romanos associados ao culto da deusa Fontana. Trata-se de um conjunto de cipos e de uma árula votiva, debaixo da qual se encontravam moedas datáveis dos séculos II e III d.C.. Os cipos e as árulas constituíam altares para oferendas, assumindo diversas formas e dimensões. Podiam ser mandados executar a título individual e, dependendo da intenção, destinavam-se ao culto de divindades, ao pagamento de promessas ou à homenagem de antepassados.

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Com o desmembramento do império romano, ficou o ocidente à mercê das invasões bárbaras do século V, a que se seguiu, no século VIII, a invasão islâmica da Península Ibérica. Destes povos, porém, não são conhecidos vestígios na região em que se insere a freguesia do Souto. Neste caso, contudo, levanta-se a possibilidade da não ocupação efetiva desta região por aqueles povos. Com efeito, a ocupação do território português pelos suevos e visigodos ocorreu de forma muito diferenciada, circunscrevendo-se maioritariamente aos núcleos urbanos de algumas das antigas cidades romanas. Já os mouros, admite-se atualmente que não tenham chegado a fixar-se na região de Leiria. Se, por um lado, os textos documentais árabes da época, ricos em informações geográficas e administrativas, não fazem referência à existência de qualquer pólo populacional em Leiria (GOMES, 2004), os anais crúzios do século XII, por outro lado, classificam esta região como locus vastae solitudinis, tendo o próprio Afonso Henriques a descrito como “terra deserta”, em missiva enviada ao papa Adriano IV no ano de 1156 (GOMES, 2004; CRISTINO, 1983). Admitimos contudo a fixação de alguns povoados na região do Souto e sua periferia, no decurso do período alto-medieval, como comprovam os vestígios associados a escória de ferro detetados em Marinha do Engenho (Bajouca), em Escoura (Monte Redondo), mas também em Porto da Jã da Rua, caso acima tratado. A própria povoação do Souto remonta pelo menos a este período, estando, como acima se expõe, documentalmente referida desde inícios do século XIII. Só admitindo ocupações alto-medievais, ainda que ténues, se compreende a profusão de aldeias a que esta região assistiu logo a partir dos alvores da Época Moderna. Várzeas, São Miguel e Chã da Laranjeira, por exemplo, possuem templos cristãos que remontam à Época Moderna, ao passo que Souto (da Carpalhosa), Mouta da Roda, Cunqueiros, João da Rua, Picoto, Arroteia, Carpalhoza, Casal Tilheiro, para além dos referidos Vargeas ou Varzias, Sam Miguel e Cham ou Chaã da Larangeira, surgem já referidos em documento do final do século XVII, atualmente à guarda da casa paroquial. Se o tempo se encarregou de silenciar as estórias da freguesia do Souto da Carpalhosa, despontam agora, fruto dos trabalhos despoletados pelo presente projeto monográfico, sons que espelham na nossa direção os ecos do passado. Da passagem dos homens pré-históricos à fundação das povoações que compõem atualmente a freguesia, muito permanece contudo ocultado. Sobre o vasto território da freguesia do Souto ergueram-se edifícios e estradas que, a par das densas florestas, muito ajudam a ocultar aquilo que o tempo teima em reservar para si. Só a vontade inapta que temos em descobrir o desconhecido motivará a continuação das explorações arqueológicas nesta região. Só assim colmataremos as lacunas que ensombram o nosso passado e o passado daqueles que antes de nós chamaram lar ao Souto da Carpalhosa.

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AGRADECIMENTOS Junta de Freguesia do Souto da Carpalhosa Câmara Municipal de Leiria MUNIS – Trabalhos de Arqueologia, Lda. Lar Padre Jacinto António Lopes Professor Doutor Saúl Gomes Professora Doutora Luisa Trindade Professora Doutora Lurdes Craveiro Dr.ª Vânia Carvalho Dr.ª Cláudia Santos Dr.ª Gabriela Domingues Inês Silvério Rodrigo Pereira do Vale Serenela Duarte

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