Stelarc, Steve Mann e Neil Harbisson: as representações do ciborgue na cibercultura

June 20, 2017 | Autor: Aline Corso | Categoria: Wearable Computing, Posthumanism, Wearable Technology, Ciborgs
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MANIFESTAÇÕES CULTURAIS: OBJETOS E PERSPECTIVAS DISTINTAS

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JURACY ASSMANN SARAIVA | CRISTIAN LEANDRO METZ ORGANIZADORES

Associação Pró-Ensino Superior em Novo Hamburgo - ASPEUR Universidade Feevale

MANIFESTAÇÕES CULTURAIS: OBJETOS E PERSPECTIVAS DISTINTAS ORGANIZADORES

Juracy Assmann Saraiva Cristian Leandro Metz

Novo Hamburgo 2015

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JURACY ASSMANN SARAIVA | CRISTIAN LEANDRO METZ ORGANIZADORES

PRESIDENTE DA ASPEUR Luiz Ricardo Bohrer REITORA DA UNIVERSIDADE FEEVALE Inajara Vargas Ramos PRÓ-REITORA DE ENSINO Denise Ries Russo PRÓ-REITORA DE EXTENSÃO E ASSUNTOS COMUNITÁRIOS Gladis Luisa Baptista PRÓ-REITOR DE INOVAÇÃO Cleber Cristiano Prodanov PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO João Alcione Sganderla Figueiredo PRÓ-REITOR DE PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO Alexandre Zeni COORDENAÇÃO EDITORIAL Denise Ries Russo EDITORA FEEVALE Celso Eduardo Stark Graziele Borguetto Souza Adriana Christ Kuczynski PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Adriana Christ Kuczynski

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Universidade Feevale, RS, Brasil Bibliotecária responsável: Sabrina Araujo – CRB 10/1507 Manifestações culturais [recurso eletrônico] : objetos e perspectivas distintas / organizadores Juracy Assmann Saraiva, Cristian Leandro Metz. – Novo Hamburgo: Feevale, 2015. Dados eletrônicos (1 arquivo : 3.22 megabytes). Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader. Modo de acesso: Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7717-188-0 1. Cultura - Manifestações. 2. Educação. 3. Moda. 4. História. 5. Identidade cultural. I. Saraiva, Juracy Assmann. II. Metz, Cristian Leandro. CDU 008

Universidade Feevale Câmpus I: Av. Dr. Maurício Cardoso, 510 – CEP 93510-250 – Hamburgo Velho Câmpus II: ERS 239, 2755 – CEP 93352-000 – Vila Nova Fone: (51) 3586.8800 – Homepage: www.feevale.br © Editora Feevale – Os textos assinados, tanto no que diz respeito à linguagem como ao conteúdo, são de inteira responsabilidade dos autores e não expressam, necessariamente, a opinião da Universidade Feevale. É permitido citar parte dos textos sem autorização prévia, desde que seja identificada a fonte. A violação dos direitos do autor (Lei n.° 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

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FACES DA CULTURA E DE SEUS PROCESSOS

O livro Manifestações Culturais: objetos e perspectivas distintas resulta de atividades de pesquisa efetivadas por alunos, sob a orientação de professores, do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais, da Universidade Feevale. Como tal, a presente publicação articula-se ao objetivo basilar do Curso, que visa à investigação de manifestações humanas a partir de uma perspectiva interdisciplinar, com o intuito de desenvolver o conhecimento científico do âmbito da cultura. Devido à variedade dos objetos de análise e à multiplicidade de perspectivas teóricas sob as quais esses objetos são visualizados, os artigos, aqui reunidos, reafirmam a complexidade dos processos e das manifestações culturais, além de apontar para a importância de sua valorização como parte da dinâmica de congraçamento e de interação social dos indivíduos. Nesse sentido, os autores dos artigos não só assumem a função de disseminar o conhecimento, mas também de tornar mais perceptíveis aspectos da sociedade contemporânea, cujo reconhecimento pode conduzir a atitudes de aceitação ou de repúdio. O artigo de Aline Corso abre a sequência de reflexões, chamando a atenção para a utilização de tecnologias que, na sociedade contemporânea, ampliam a capacidade do corpo humano de interagir com seu contexto; a autora constata que duas representações de ciborgue – o protético e o interpretativo – se destacam, influenciando novos modos de viver na cibercultura. A manifestação da identidade nacional, na música popular brasileira, é o foco de Cláudia Santos Duarte, que se detém na canção “Jack Soul Brasileiro”, criada por Osvaldo Lenine Macedo Pimentel, para demonstrar que a composição musical destaca aspectos da cultura regional brasileira como uma forma de resistência à cultura de massa, cuja submissão denuncia por meio do uso da língua inglesa. Relacionando-se, igualmente, a traços identitários, Cristian Leandro Metz aborda, sob o ponto de vista histórico e sociológico, ritos funerários, presentes na cultura hinduísta, judaica e cristã, para salientar suas transformações na pós-modernidade, conferindo a seu artigo o título “As transformações do fenômeno morte no contexto das práticas de ritos funerários na sociedade pós-moderna”. O tema do bullying recebe a atenção de Cristiane Weber, cujo artigo analisa a convergência de meios e de discursos na construção de uma reportagem, veiculada no programa A Current Affair, da rede australiana ABC, que se apropriou de um vídeo da internet para transformar o protagonista, que reage a uma prática de bullying, em um herói. Vinculando-se, também, aos meios de comunicação, o artigo de Daiane

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Pires orienta-se pelo ponto de vista segundo o qual a TV é um aparelho criador de representações e ferramenta para a construção da memória, abrindo uma discussão sobre uma das reportagens apresentadas pela Rede Globo, durante as Jornadas de Junho de 2013. Cristine Marqueto investiga políticas voltadas para a cultura, detendo-se no “vale-cultura”, que faz parte do “Programa de Cultura do Trabalhador”, implementado pelo Governo Federal em 2013. O vale-cultura é definido conceitualmente e analisado sob o ponto de vista de sua aplicabilidade, para aferir sua influência nos circuitos de desenvolvimento cultural. Com base em editoriais de moda masculina, Daniel Keller busca explicitar traços que contribuem para transformar indivíduos em heróis sociais e como esse processo reproduz estruturas estabelecidas no arquétipo do soldado, além de identificar relações que, integradas a essa perspectiva, são importantes para a afirmação da masculinidade. Sob distinta perspectiva, a moda também é foco do artigo de Nelson Zimmer: a partir da globalização mercadológica, ele relaciona a presença do estilo Chanel, em lojas de departamentos e em mercados populares de Porto Alegre, à adesão a padrões identitários múltiplos, o que comprovaria a pluralidade e o esfacelamento do sujeito moderno. Eliane Davila dos Santos centra-se, com seu artigo, na atuação do professor universitário na sociedade contemporânea e estabelece, a partir do filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989), a distinção entre uma educação tradicional e uma inovadora, destacando a importância da ação humanizadora do professor. Tiago Silva, também se preocupa com o espaço educacional, relatando sua experiência com a comunidade da Escola de Ensino Fundamental Waldemar Carlos Jaeger, do município de Sapiranga. Por meio da coleta de reminiscências dos moradores, ele transformou a memória coletiva em uma peça teatral, mostrando que, para além de cronologias, listas dinásticas e biografias políticas elitizadas, a História faz parte da subjetividade de todos os sujeitos e grupos sociais. O artigo de Daniela Schmitt, intitulado “Museu e educação: o projeto de ação educativa do Museu da República,” estabelece uma reflexão sobre ações museológicas no âmbito da educação, defendendo o ponto de vista de que o museu é importante ferramenta para o processo de aprendizagem dos alunos, bem como para a preservação da memória cultural de uma comunidade. Em uma linha de investigação semelhante, o artigo “Itinerários culturais, memória e turista cidadão”, de Jamile Cezar de Moraes, trata dos itinerários culturais como uma liturgia da recordação, que visa à valorização do patrimônio cultural, e propõe práticas que aproximam os membros de uma comunidade de seus bens culturais. O artigo de Natashe Carolina Kich também se articula à temática da preservação da diversidade cultural, visto que analisa a “Festa da Colônia de Gramado”, concluindo que celebrações locais são formas de reação à homogeneização das culturas, fenômeno decorrente da globalização.

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Em “Análise teórico-ergo-discursiva: um percurso para compreender os discursos organizacionais”, Gislene Haubrich apresenta o modelo teórico-ergo-discursivo para análise de organizações e, para tanto, expõe concepções metodológicas e o dispositivo de análise e sua operacionalização, além de desenvolver uma reflexão sobre as limitações do modelo e as possibilidades de sua adaptação a outros estudos. Portanto, abrangendo elementos relacionados à cibercultura, à defesa da identidade nacional, a ritos funerários, aos processos de veículos de comunicação, às políticas públicas voltadas para a cultura, a estratégias da moda, à educação, aos museus, a itinerários culturais, a festas populares ou a modelos gerenciais, Manifestações Culturais: objetos e perspectivas distintas oferece aos leitores a oportunidade de refletir sobre a variedade e a diversidade das faces que a cultura assume seja sob o ângulo da multiplicidade de objetos, seja sob a variedade das perspectivas de sua análise.

Juracy Assmann Saraiva Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais

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STELARC, STEVE MANN E NEIL HARBISSON: AS REPRESENTAÇÕES DO CIBORGUE NA CIBERCULTURA

STELARC, STEVE MANN E NEIL HARBISSON: AS REPRESENTAÇÕES DO CIBORGUE NA CIBERCULTURA 12

Aline Corso

Bacharela em Tecnologias Digitais (UCS), Mestranda em Processos e Manifestações Culturais (FEEVALE) e bolsista Prosup/Capes. Atua como professora na FTEC e UNISINOS. E-mail: [email protected].

Sandra Portella Montardo

Doutora em Comunicação Social (PUCRS), professora e pesquisadora da FEEVALE. E-mail: [email protected].

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1 INTRODUÇÃO Como enfatizou Edvaldo Couto (2012, p. 174), o corpo sempre foi mutável: “mais que um objeto da natureza ele sempre foi um objeto da cultura e todas as épocas e civilizações promoveram mutações corporais de acordo com os seus limites tecnocientíficos”. Já Paula Sibilia (2002, p. 10) propõe que “plástico, moldável, inacabado, versátil, o homem tem-se configurado de diversas maneiras pelas histórias e pelas geografias”. A partir das proposições acima expostas, podemos pensar em questões referentes à alteração do conceito de humano, assim como a ciborguização1 do corpo e a sua importância na cibercultura. De modo geral, o ciborgue é um híbrido de homem e máquina surgido na literatura de ficção científica, época marcada por medos e incertezas quanto ao avanço tecnológico em decorrência da Revolução Industrial. Naquele período, a figura do ciborgue era utilizada para questionar conceitos relativos à moralidade e livre-arbítrio e, na perspectiva de Oliveira (2003, p. 179) é a figura que melhor incorpora as complexas questões do humano em suas novas conexões com mundo. Tal discussão é o ponto inicial deste trabalho, que busca compreender as representações do ciborgue na cibercultura, observando, principalmente, a questão das modificações corporais e de que forma os indivíduos percebem (e são influenciados por) estas mudanças. Nossa hipótese é que o ciborgue da cibercultura, ser pós-humano, ainda mantém resquícios de sua representação original, advinda da ficção científica, porém opera de maneiras diversas devido às novas tecnologias de comunicação e difusão da informação mediada por computador. Uma segunda hipótese aponta para o sentido de que o ciborgue contemporâneo também existe no campo informacional, ou seja, a fusão de carne e máquina não é o ponto-chave para o processo de ciborguização do humano2. Para tal, o presente artigo analisa as representações dos ciborgues na ficção científica e compara com as características presentes nos ciborgues dos tempos atuais. O trabalho está dividido da seguinte forma: em um primeiro momento, os conceitos de representação e cibercultura são apresentados para, em um segundo momento, discutir-se questões ligadas à ciborguização do corpo humano. O passo seguinte envolve a reflexão acerca da Transformação em ciborgue. “Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, a relação homem-máquina não incorpora apenas as questões de definição do humano e da técnica, refere-se também à capacidade de intervenção do homem sobre os mecanismos da vida e da realidade” (OLIVEIRA, 2003, p. 183).

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vida e obra de três ciborgues contemporâneos: Stelarc, Steve Mann e Neil Harbisson. Por fim, serão traçadas algumas considerações finais e perspectivas futuras.

2 BREVE CONCEITUALIZAÇÃO: CIBERCULTURA E REPRESENTAÇÃO SOCIAL A palavra cibercultura advém da fusão dos termos cultura e cibernética (RÜDIGER, 2011) e, conforme descrevem Amaral e Montardo, pode ser compreendida sob diversas abordagens teóricas: Há definições que privilegiam aspectos contraculturais de sua história, como Turner (2006), e há descrições mais fluidas, voltadas aos aspectos sociais dos fenômenos culturais emergentes, como Lévy (1999) e Lemos (2002). Alguns estudos consideram o tema um integrante da noção de tecnologias do imaginário, como Silva (2003), ou um subcampo emergente da comunicação, como Felinto (2007). Macek (2005), Felinto (2008) e Amaral (2008) tematizam o estudo das práticas culturais e os estilos de vida em sua relação com as tecnologias. Foot (2010) faz uma aproximação na qual o foco são as relações, os padrões, os meios e os artefatos de trocas de produção cultural online, enquanto Trivinho (2007) e Rüdiger (2011) centram nas vinculações com a indústria cultural e a teoria crítica (AMARAL; MONTARDO, 2013, p. 333).

Já para o filósofo Pierre Lévy (1999, p. 17), a cibercultura é o “conjunto de técnicas (materiais e intelectuais) de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem com o crescimento do ciberespaço”3. De cunho interdisciplinar, a cibercultura poderia ser definida descritivamente como o conjunto de fenômenos de costumes que nasce à volta das novíssimas tecnologias de comunicação (RÜDIGER, 2008, p. 26). Já o conceito de representação pode abarcar diversos significados, porém, de maneira inteligível, o antropólogo argentino Gustavo Blázquez destaca que: Nos dicionários de língua portuguesa o significado de representação é construído em torno de quatro eixos: 1) A representação é “o ato ou efeito de tornar presente”, “patentear”, “significar algo ou alguém ausente”; 2) A representação é “a imagem ou o desenho que representa um objeto ou um fato”; 3) A representação é “a interpretação, ou a performance, através da qual a coisa ausente se apresenta como coisa Lévy caracteriza o ciberespaço como uma rede: “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores” (LÉVY, 2011, p. 94). O termo ciberespaço surgiu, pela primeira vez, na literatura de ficção científica no livro Neuromancer (1984) de Willian Gibson.

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presente”; 4) A representação é “o aparato inerente a um cargo, ao status social”, “a qualidade indispensável ou recomendável que alguém deve ter para exercer esse cargo”; a representação também se torna “posição social elevada” (apud COELHO DOS SANTOS, 2011, p. 30).

A teoria da Representação Social (RS) foi introduzida, em 1961, por Serge Moscovici no livro A psicanálise: sua imagem e seu público4. O autor estudou as formas como a teoria psicanalítica se difundiu no pensamento popular na França (MOSCOVICI, 2003), afirmando que o importante na RS é elucidar fenômenos a partir de um âmbito coletivo, sem deixar de lado a individualidade, ou seja, as representações são uma forma de interpretar e refletir sobre a realidade cotidiana. As representações que fabricamos – de uma teoria científica, de uma nação, de um objeto, etc. – são sempre o resultado de um esforço constante de tornar real algo que é incomum (não familiar), ou que nos dá um sentimento de não familiaridade. Através delas, superamos o problema e o integramos em nosso mundo mental e físico, que é, com isso, enriquecido e transformado. Depois de uma série de ajustamentos, o que estava longe, parece ao alcance de nossa mão; o que era abstrato torna-se concreto e quase normal [...] as imagens e ideias com as quais nós compreendemos o não usual apenas trazem-nos de volta ao que nós já conhecíamos e com o qual já estávamos familiarizados (MOSCOVICI, 2003, p. 58). 15

Para Jodelet (2001, p. 17), seguidora dos postulados de Moscovici, as representações sociais são “uma modalidade de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático e contribuindo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” e são habitualmente apontadas como senso comum, ou seja, um saber não-científico. As RS surgem como uma forma de refletir sobre a realidade: A representações sociais surgem quando os indivíduos debatem temas de interesse mútuo ou quando existe o eco dos acontecimentos selecionados como significativos ou dignos de interesse [...] além disso, as representações sociais têm uma dupla função: “fazer com que o estranho pareça familiar e o invisível perceptível”, já que o insólito ou o desconhecido são ameaçadores, quando não se tem uma categoria para classificá-los (TAVARES, 2004).

Jodelet elenca cinco características fundamentais da representação social: 4

Conceito originalmente proposto por Émile Durkheim.

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É sempre representação de um objeto; Tem sempre um caráter imagético e a propriedade de deixar intercambiáveis sensação e a ideia, a percepção e o conceito; Tem um caráter simbólico e significante; Tem um caráter construtivo; Tem um caráter autônomo e criativo (JODELET apud SÊGA, 2000, p. 129).

Neste artigo utilizaremos o termo cibercultura a fim de nos remeter à contemporaneidade e às práticas advindas da relação do homem com as tecnologias digitais - período também denominado “pós-modernidade”, “sociedade informática”, “era digital”, “sociedade em rede” ou “sociedade do conhecimento”5. A teoria das representações sociais, aqui, não será explorada extensivamente. Cabe salientar que pretendemos tomar emprestado o conceito geral de representações sociais (tornar real algo incomum, interpretando e refletindo sobre a realidade cotidiana) de modo a pautar o seguinte questionamento: a partir da realidade social de cada época, como o ciborgue é representado na ficção científica e na cibercultura?

3 CIBORGUES: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE “As fronteiras entre a ficção científica e a realidade social são uma ilusão de ótica”. (HARAWAY apud COUTO, 2012, p. 47)

O termo ciborgue (ou cyborg) deriva da ligação das palavras inglesas cybernetic organism, ou seja, organismo cibernético, e foi trazido pela primeira vez em 1960 por Arthur Clark e Manfred Clynes no artigo Cyborgs and Space6. O estudo apresentava os resultados de um experimento realizado em laboratório: um rato7 teve uma bomba osmótica implantada em seu corpo cujo objetivo era injetar substâncias químicas que alteravam seus padrões fisiológicos. O rato era, então, parte animal, parte máquina (KUNZURU, 2009, p. 121). Disponível em: Acesso em: 2 fev. 2015. Disponível em: Acesso em: 23 dez. 2014. 7 A cobaia ficou conhecida como rato de Rockland pois os experimentos foram realizados no Hospital Estadual de Rockland, New York (KLYNES; CLINE, 1960). 5 6

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O contexto de criação do texto é a corrida espacial e o experimento buscava comprovar que o ser humano poderia sobreviver livremente ao espaço sideral, pois era dotado de componentes exógenos que estendiam a função de auto-regulação de controle do organismo. Os autores afirmavam que “se o homem no espaço, além de fazer voar seu veículo, deve continuamente verificar coisas e fazer ajustes apenas para manter-se vivo, ele torna-se um escravo da máquina”. Um ciborgue, dotado de seus próprios sistemas homeostáticos, é livre para “explorar, criar, pensar, e sentir” (KLYNES; CLINE, 1960). Com isso, os autores demonstravam a possibilidade de uma aproximação entre seres biológicos e máquinas sintéticas. Em 1972, o escritor norte-americano Martin Caidin - inspirado nas ideias de Cline e Klynes - lança o romance Cyborg. No livro, a personagem principal é um piloto de aeronaves da Força Aérea americana que, após sofrer um grave acidente, tem seu corpo reconstruído através de próteses biônicas que dão suporte à vida. Com o sucesso do livro, foi criada uma adaptação para a televisão em formato de minissérie, intitulada O Homem de Seis Milhões de Dólares8. Para transformar a carcaça de um humano mutilado não apenas em um novo homem, mas em um tipo totalmente novo de homem. Uma nova raça. Um casamento da biônica (biologia aplicada à engenharia de sistemas eletrônicos) e cibernética. Um organismo cibernético. Chame-o de ciborgue (CAIDIN apud KIM, 2004, grifo dos autores).

Seres híbridos já eram representados na literatura desde o século XIX. O gênero Ficção Científica (FC) é uma categoria de ficção que lida, principalmente, com o avanço (real ou imaginado) da ciência e da técnica9. Seu surgimento é demarcado pelo lançamento da obra Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de Mary Shelley, em 1818. Na história, Victor Frankenstein10 constrói um ser monstruoso a partir de pedaços de cadáver humano costurados e reanimados através de uma descarga elétrica, criando o primeiro registro ficcional a respeito da fusão do corpo humano com a tecnologia. Não podemos limitar o gênero FC apenas a narrativas fantásticas de viagens ao espaço sideral, invasões extraterrestres e guerras contra robôs colossais. Como definiu Isaac Asimov, a FC é o “ramo da literatura que trata das respostas do homem às mudanças ocorridas ao nível Também chamada de O Homem Biônico, foi lançada em 1974. “No século XIX a ficção científica ganha popularidade com as histórias de Júlio Verne, H. G. Wells e Edward Bellamy. Em 1929 surge o nome ficção científica” (OLIVEIRA, 2003, p. 180). 10 Frankenstein na verdade não é o monstro, mas sim o cientista que constrói o monstro. Ver SHELLEY, Mary. Frankenstein ou o moderno Prometeu. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004. 8 9

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da ciência e da tecnologia” (ASIMOV, 1984, p. 46). Oliveira (2003, p. 181) corrobora a ideia de Asimov, afirmando que as mudanças também podem ser no espaço, no tempo, no homem e em seu modo de perceber e atuar sobre a realidade, visto que “associam desenvolvimento tecnológico a novas experiências do sujeito e, consequentemente, novas formas de organizações sociais”. Na ficção científica existe o subgênero cyberpunk, caracterizado basicamente pela união de alta tecnologia e caos urbano (AMARAL, 2006). A estética cyberpunk, sob a ótica de Amaral, “reconhece o espaço público onde as pessoas são tecnologizadas e reprimidas ao mesmo tempo, mostrando a tecnologia como a mediadora de nossas vidas sociais” (2003). Já o imaginário encontra-se na “intersecção entre a tecnologia, o cientificismo e os elementos anteriores à técnica como o desejo de perfeição e de imortalidade” (AMARAL, 2006, p. 30). Outros elementos característicos desse subgênero, ainda recorrendo a Amaral, são suas raízes góticas, de horror e noir11 mixadas com o conceito de biotecnologia. Para Amaral (2006, p. 33) “a figura do não-humano, [...] ciborgue ou andróide12, aparece como figura recorrente no cyberpunk”. As máquinas, além de ampliar nossos músculos, membros, sentidos e partes do cérebro, promovem um diálogo contínuo com o humano (COUTO, 2012, p. 155). O corpo, para os autores cyberpunk, é cada vez menos orgânico e mais artificial e a extensão da mente também é retratada - é possível, por exemplo, fazer download dos sonhos para acessar posteriormente e conectar seu cérebro a um computador para ter uma experiência de imersão em realidade virtual (é importante observar a tendência quanto à obsolescência do corpo humano). Ao longo dos anos, diversos autores anteciparam certos saltos tecnológicos, com especial olhar sobre o corpo humano e suas extensões. Tanto as personagens de [Willian] Gibson quanto as de [Pat] Cadigan, [Neal] Stephenson ou [Bruce] Sterling, apesar de diferentes - seres híbridos em sua maioria, entre o humano e a máquina - perambulam com suas próteses pelas ruas escuras e sujas de alguma metrópole entre o Japão e os Estados Unidos ou vagueiam no ciberespaço sem serem incomodadas. Em uma sociedade - assim descrita pelos autores - que estimula as transformações corporais, seja pelas drogas sintéticas, pelas cirurgias plásticas, pelos piercings e tatuagens, pela engenharia genética ou pelos implantes de lentes reflexivas, garras ou músculos de metal, esses seres fazem parte do cenário urbano e quem causa o estranhamento são os humanos em sua falta de extensões (AMARAL, 2006, p. 56, grifo dos autores).

Film noir é um estilo de filme associado a história de suspense policial, normalmente com ambientação nos anos 30 ou 40. “O uso atual do termo andróide em geral denota robôs que reproduzem a aparência humana (...) autênticas reproduções humanas, os andróides são considerados seres mais evoluídos que os robôs, e frequentemente alcançam níveis de complexidade mental - e até emocional - que rivalizam com os humanos” (OLIVEIRA, 2003, p. 189). 11 12

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William Gibson, renomado autor desse subgênero, certa vez disse: “quem achar que a Ficção Científica é sobre o futuro é ingênuo. A ficção científica não prediz o futuro; ela o determina, o coloniza, o pré-programa à imagem do presente13”. O objetivo, portanto, não é predizer o futuro, mas extrapolar o presente14. Amaral (2006, p. 68) defende que, apesar de o futuro parecer ser a temática central da FC, na verdade, ele é uma metáfora do presente. Podemos falar em antecipação de inovações tecnológicas, criadas a partir do conhecimento científico da época e aliadas a imaginação dos autores. A FC não nos projeta para o futuro, ela nos relata estórias sobre o nosso presente, e, mais importante, sobre o passado que gerou o presente. Contra-intuitivamente, a FC é um modo historiográfico, um meio de escrever simbolicamente sobre história (ROBERTS apud AMARAL, 2006, p. 69).

A FC, como assinalado, não é de toda forma futurista ou profética, mas conforme Roberts (apud AMARAL, 2003), é nostálgica e principalmente diz mais a respeito da sociedade do tempo em que foi escrito, do que sobre as possibilidades de visão de futuro. Os textos de FC estão situados em um tempo futuro e induzem um deslocamento do autor em relação ao seu contexto histórico15. Embora tenham sido escritos em determinado contexto, podem ganhar novos significados com o passar do tempo. Toda criação literária está associada ao seu tempo, mixando elementos inventados com a realidade social existente no momento da criação da obra: o discurso literário cyberpunk é compatível com o discurso científico e acompanha a evolução da técnica no contexto histórico-social pós-guerra fria. Todas essas obras, bem como toda produção literária, guardam em seu bojo aspectos, características e relações sócio-culturais do universo em que é produzida [...] Neste sentido, torna-se importante destacar o fato de que a produção da obra literária está associada ao seu tempo, refletindo em suas narrativas angústias e sonhos de agentes sociais contemporâneos à sua criação e mesclando elementos de ficção e das possíveis realidades existentes no momento da criação literária. Dessa forma, a obra de ficção lida com ações sonhadas, com sentimentos compartilhados, com intermediação entre o real e as aspirações coletivas. A obra literária constitui-se parte do mundo, das criações humanas, e transforma-se em relato de um determinado contexto histórico-social. Por isso, “qualquer obra literária é evidência histórica objetivamente determinada – isto é, situada no processo histórico”[...] A literatura passa então a fornecer uma versão da “história real” pelos olhos de um observador privilegiado – o escritor, que mesmo quando não possui o objetivo explícito de “fazer história” com sua obra, acaba por fornecer uma junção de elementos e características capaz de “dizer a história” em que se insere (SENA JR, 2015, p. 5). Disponível em: Acesso em: 30 jun. 2014. Disponível em: Acesso em: 6 jul. 2014. 15 Disponível em: Acesso em: 17 mar. 2015. 13 14

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Para Bukatman (apud AMARAL, 2003), a Ficção Científica ganha cada vez mais importância no presente por ser este um momento que vê a si próprio como ficção-científica. O tempo histórico narrado no cyberpunk assemelha-se muito com a nossa realidade pós-moderna. O homem pós-moderno, o ser pós-humano, utiliza constantemente as novas tecnologias para se ressignificar e transpõe as barreiras entendidas como humano. Existe, portanto, uma tênue linha entre ficção e realidade. Já no ensaio Manifesto Ciborgue: Ciência, Tecnologia e Feminismo no Final do Século XX, publicado originalmente em 1985, a filósofa feminista Donna Haraway utiliza metaforicamente a figura dos ciborgues como crítica em favor das diferenças, condensando as transformações políticas e sociais ocorridas no ocidente na virada do século16. Essas transformações referem-se principalmente à ciência e à tecnologia, pois com elas as fronteiras entre real e virtual, orgânico e inorgânico, carne e máquina são colocadas em xeque. Segundo a autora, o ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, possuidor de uma parte dada e outra construída (HARAWAY, 2009). A carne humana já se fundiu com as máquinas e este ser humano melhorado, questiona e rompe com dualismos tradicionais: entre o humano e o animal, entre o humano e a máquina e entre o físico e não físico (COUTO, 2012, p. 49-55). O ciborgue surge em meio à cultura contemporânea como um transgressor das fronteiras construídas, desconstruídas e vencidas (COUTO, 2012, p. 20). As tecnologias de comunicação e informação constroem esse novo corpo, equiparando-se a uma máquina de alta-performance. Nas palavras de Tomaz Tadeu da Silva, organizador do livro Antropologia do Ciborgue: as Vertigens do Pós-humano: Implantes, transplantes, enxertos, próteses. Seres portadores de órgãos artificiais. Seres geneticamente modificados. Anabolizantes, vacinas, psicofármacos. Estados artificialmente induzidos. Sentidos farmacologicamente intensificados: a percepção, a imaginação, o tesão. Superatletas. Supermodelos. Superguerreiros. Clones. Seres artificiais que superam, localizada e parcialmente (por enquanto), as limitadas qualidades e as evidentes fragilidades humanas. Máquinas de visão melhorada, de reações mais ágeis, de coordenação mais precisa. Máquinas de guerra melhoradas de um lado e outro da fronteira: soldados e astronautas quase artificiais; seres artificiais quase humanos. Biotecnologias. Realidades artificiais. Clonagens que embaralham as distinções entre reprodução humana e reprodução artificial. Bits e bytes que circulam, indistintamente, entre corpos humanos e corpos elétricos, tornando-os igualmente indistintos: corpos humano-elétricos (TADEU, 2009, p. 12).

Para Couto, Souza e Neves (2013) os ciborgues podem ser classificados em protéticos e interpretativos: o primeiro diz respeito à performance fisiológica amparada ou dependente de aparelhos mecânicos ou digitais e o segundo relaciona-se à sociedade do espetáculo17, 16 17

Disponível em: Acesso em: 31 jan. 2015. Ver DEBORD, Guy. A Sociedade de Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

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quando o ciborgue “se constitui pela influência dos mass media18” (LEMOS, 2008, p. 172). O ciborgue interpretativo, sujeito-conectado, é um potencial fortalecedor das redes, pois se organiza multidirecionamente, cria e interpreta modos de viver na cibercultura (COUTO; SOUZA; NEVES, 2013), exercendo múltiplas identidades online. A partir destas reflexões, tecem-se observações (Quadro 1) quanto as representações do ciborgue a partir do século XIX: Período Representação

Representantes

Ficção científica: de 1818 até 1990

Cibercultura: 1990 em diante

· Compreende o período clássico da FC (1818 - 1938), a época dourada (1938 - 1950), a nova onda (1960 - 1970) e o cyberpunk (1980 - 1990), (AMARAL, 2006); · O ciborgue era comumente retratado como parte integrante de um universo distópico, visto que a sociedade vivia no pós-guerra e acompanhava grandes saltos tecnológicos; · O horror ao desconhecido era representado na figura do ciborgue - medo que as máquinas subjugassem a humanidade; · Puramente mecânicos, híbridos de carne e máquina; · Figuras criadas para refletir acerca de conceitos como a liberdade, moralidade, livre-arbítrio, etc.

· Período pós-moderno; · Não existe um único tipo de ciborgue: a) o ciborgue protético surge através dos computadores vestíveis, próteses e implantes (biônicos ou robóticos); b) o ciborgue interpretativo, sujeito-conectado, cria novos modos de viver na cibercultura (COUTO, 2012); · Tecnologia para (re) configurar e ampliar as capacidades humanas (reengenharia do corpo); · Indústria do design corporal: imperativos da aparência e juventude, qualquer coisa pode ser modificada, de acordo com o desejo do sujeito. Qualquer sinal indesejado pode ser eliminado, qualquer forma pode ser redesenhada e prontamente exibida (COUTO, 2012, p. 107); · A medicina atual transforma o humano em ciborgue (COUTO, 2012 p. 48); · Histórias de ciborgues da FC são adaptadas para o cinema (ex.: Minority Report e Total Recall) e jogos de videogame (ex.: Crysis e Mortal Kombat); · Ocupam lugar de destaque na mídia: são cantores, esportistas, artistas e cientistas; · Surgem organizações para defender os direitos dos ciborgues (ex.: Cyborg Foundation); · * Possibilidade de hackear o corpo (biohacking/biopirataria);

Frankenstein, Rato de Rockland, etc.

Stelarc, Steve Mann, Neil Harbisson, etc. Quadro 1 – Representação do ciborgue Fonte: Elaborado pelas autoras, 2015

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Segundo a Infopédia são os meios de comunicação social, como sistemas organizados de produção, difusão e recepção de informação. Ver Acesso 25 nov. 2014.

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A partir desse quadro, observa-se que as representações do ciborgue acompanham a evolução da ciência e que, com o passar do tempo, o medo das máquinas é praticamente superado, dando lugar a um relacionamento de mutualismo entre homem e máquina. A fácil transformação do humano em ciborgue é possível graças aos novos procedimentos da medicina e farmácia e o ciborgue interpretativo existe nas redes digitais, é a nossa identidade viva e operante no ciberespaço. O próximo item apresenta três ciborgues contemporâneos, demonstrando a importância destas figuras para a tecnociência.

4 CIBORGUES CONTEMPORÂNEOS 4.1 STELARC, O (CIBER)ARTISTA CIBORGUE Stelios Arcadiou, ou Stelarc, é um artista nascido em 1946, no Chipre (Figura 1). Como (ciber)artista performático é seguidor dos postulados de Marshall McLuhan21, visto que cria obras que concentram-se na extensão das capacidades do corpo humano através da tecnologia. 19

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Para Diana Domingues “a ciberarte está ligada à produção artística que circula no ciberespaço, no espaço de computadores e redes”. Disponível em: Acesso em: 14 nov. 2014. 20 Alguns críticos de arte contemporânea classificam suas obras como “body-art cibernética”. Ver: FRANCO, Edgar. Stelarc: Arte, Tecnologia, Estética e Ética. In: Revista Educação e Linguagem, a. 2010, v. 13, n. 22. 21 Marshall McLuhan foi um teórico da comunicação canadense conhecido pelas máximas “o meio é a mensagem” e “aldeia global”. No livro Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, defende que os meios são extensões dos sentidos dos homens, como o telefone é a extensão da fala, a pinça é a extensão das mãos, os óculos são a extensão da visão, etc. Ver: MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2007. 19

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Figura 1 – Stelarc Fonte: STELARC, 2014

Stelarc tem feito apresentações desde a década de 1960 onde conecta/pluga/estende o próprio corpo, utilizando as tecnologias avançadas da robótica, realidade virtual e medicina. Para o artista, o corpo humano é ultrapassado e está fadado ao fracasso caso não se renda às possibilidades da tecnologia para expandir-se física e cognitivamente. É hora de se perguntar se um corpo bípede, que respira, com visão bonicular e um cérebro de 1.400 cm³ é uma forma biológica adequada. Ele não pode dar conta da quantidade, complexidade e qualidade de informações que acumulou; é intimidado pela precisão, velocidade e

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poder da tecnologia e está biologicamente mal-equipado para se defrontar com seu novo ambiente extraterreste. O corpo é uma estrutura nem muito eficiente, nem muito durável. Com frequência ela funciona mal e se cansa rapidamente; sua performance é determinada pela idade. É suscetível a doenças e está fadado a uma morte certa e iminente. Seus parâmetros de sobrevivência são muito limitados - o corpo pode sobreviver somente algumas semanas sem comida, dias sem água e minutos sem oxigênio. A ausência de projeto modular do corpo e de seu sistema imunológico que reage exageradamente dificulta a substituição de órgãos defeituosos. Considerar o corpo obsoleto em forma e função pode ser o auge da tolice tecnológica, mas mesmo assim ele pode ser a maior das realizações humanas (STELARC apud COUTO, 2012, p. 156, grifo dos outroes).

Couto (2012, p. 158) afirma que, para estender as capacidades corporais, o ser pós-humano “pluga seu corpo nos computadores, acopla em seu braço outro braço mecânico, uma mão robótica, instala seu olhos a laser, utiliza sistemas sonoros, e o seu corpo passa a funcionar de acordo com o ritmo das máquinas”. Para Stelarc, o homem não é definido pelo natural, nem pelo animal (COUTO, 2012), mas pela tecnologia: Pode parecer poético quando eu falo da obsolescência do corpo humano atual, mas a visão que eu tenho não é utopia. Se já se pode fertilizar fora do corpo humano e alimentar um feto fora do útero feminino, então - tecnicamente falando - podemos ter vida sem nascimento. E se até podemos substituir partes do corpo humano que funcionam mal e colocar lá componentes artificiais, então - mais uma vez, tecnicamente falando - não há necessidade de morte. Chegamos a uma situação em que a vida já não é mais condicionada pelo nascimento e pela morte. O corpo não necessita mais ser “reparado”, pode simplesmente ter partes substituídas (STELARC apud FRANCO, 2010, p. 104).

Em suas performances, Stelarc procura aliar a experiência física intensificada pelo uso das próteses com a expressão artística (COUTO, 2012, p. 159). Suas obras mais famosas são Stomach Sculpture (1993), The Extra Ear ou an ear on an arm (2007), The Third Hand (1986) e Exoesqueleton (1997 - 2006). Em algumas performances, seu corpo nu por muitas vezes é ligado a eletrodos, cabos e próteses, personificando a figura do ciborgue protético.

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4.2 STEVE MANN, O PAI DA COMPUTAÇÃO VESTÍVEL Steve Mann (Figura 2) é pesquisador da Universidade de Toronto e popularmente reconhecido como o pai da computação vestível, uma área interdisciplinar cujo principal objetivo é estudar como a tecnologia pode se integrar ao corpo humano e vem sendo apontada como um dos assuntos de maior relevância tecnológica dos últimos anos.

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Figura 2 – Steve Mann Fonte: MANN, 2014

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Os computadores vestíveis (wearable computers) são um tipo de computador “adicionado ao corpo do usuário, controlado por ele e sempre ligado e acessível, permitindo o acesso às informações de forma direta e instantânea enquanto realiza as suas atividades cotidianas, auxiliando em atividades motoras e/ou cognitivas” (DONATI, 2005). Frequentemente confundidos com gadgets ou dispositivos móveis, os computadores vestíveis têm a possibilidade de aprender informações tanto do usuário quanto do ambiente, tornando o seu funcionamento mais interativo (DONATI 2005), melhorando a qualidade de vida dos usuários e o aperfeiçoamento de sua capacidade de resolver problemas e de se comunicar com outros indivíduos (QUEIROZ, 1999). Para Mann, os computadores vestíveis funcionam como uma sobreposição, como uma segunda pele, e não como uma ferramenta a ser ligada e desligada22 (MANN, 2001, p. 11). Desde os anos 1980, Mann vem trabalhando no Wearcomp/Eye Tap, um computador vestível em formato de óculos inteligente, que possibilita a manipulação de conteúdos digitais através de comandos visuais, de voz, etc23. Sob sua perspectiva, através de seu computador vestível, é possível ser homem, computador, câmera e telefone - todos em uma única entidade. Utilizando diariamente seu computador vestível, Mann não imagina como “funcionaria” sem ele, sentindo-se, muitas vezes, nu. Ele afirma que todos os dias decide de que forma verá o mundo, [...] um dia, eu ponho meus olhos atrás da minha cabeça. Em outros dias, eu adiciono um sexto ou sétimo sentido, como a habilidade de sentir objetos que não estou tocando. As coisas aparecem diferente para mim. Eu vejo objetos cotidianos como hiper-ícones (similares aos que aparecem no computador). Eu posso escolher a visão estroboscópica para `congelar` o movimento das rodas de um carro que vai a cem quilômetros por hora, permitindo-me a contar os sulcos na banda de rodagem. Eu posso bloquear a visão de objetos em particular - evitando distrair-me, por exemplo, no vasto mar da propaganda que nos rodeia24 (MANN; 2001, p. 3).

Steve Mann continua desenvolvendo a sua pesquisa, estando a frente de diversos laboratórios de pesquisa em computação vestível25, contribuindo para o avanço dos estudos de corpos ciborguizados e, em 2011, um documentário intitulado Cyberman foi lançado, mostrando o dia-a-dia ciborgue de Mann através das lentes de seu computador vestível. Tradução nossa. Do original: "(Wearcomp) functions as an overlay, as a second skin, not a tool to be turned on and off”. O WearComp de Mann surgiu muito antes do Google Glass. 24 Tradução nossa. Do original: "Every morning I decide how I will see the world. One day, I give myself eyes in the back of my head. On other days I add a sixth or seventh sense, such as the ability to feel objects that are not touching me. Things appear diferente to me than they do to other people. I see everyday objects as hyper-icon I can click on and bring to life (similar to the way you click on a icon on a Web site). I can choose stroboscopic vision to freeze the motion on the spinning wheels of a car going a hundread kilometers an hour, allowing me to count the grooves in the tread. I can block out the view of particular objects – sparing myself the distraction, for example, of the vast sea of advertising that surround us”. 25 Mann é diretor do EyeTap Personal Imaging (ePi) Lab e do FL_UI_D Laboratory. 22 23

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4.3 NEIL HARBISSON, O PRIMEIRO HUMANO RECONHECIDO OFICIALMENTE COMO CIBORGUE Neil Harbisson (Figura 3) é um artista visual portador de acromatopsia, ou seja, tem a incapacidade de distinguir cores e vê o mundo apenas em preto e branco. Em 2003 cria o Eyeborg, computador vestível26 que possibilita ouvir as cores27. Um sensor, (implantado) atrás da cabeça, recebe as frequências de luz e transforma-as em frequências sonoras. A captação da cor fica a cargo de uma câmera, situada acima da testa e, depois, possibilita que (Neil) recorra aos ossos – do crânio – para ouvir as cores (HARBISSON apud BÁRTOLO, 2012).

Esta sinestesia artificial28 amplia também o seu potencial artístico: por perceber o tom de uma cor através de notas musicais, a luz pelos olhos e a saturação pelo volume (BÁRTOLO, 2012, online), dedica-se a criação de retratos sonoros29, ou seja, cria composições musicais a partir de figuras e rosto de pessoas e também desenhos a partir das cem primeiras notas de uma música30. 27

Em 2003 o Eyeborg era um dispositivo eletrônico vestível, acoplado a cabeça de Neil. Em 2014, o Eyeborg passou a ser implantado no crânio do artista. Palestra no TED “I listen to color”. Disponível em: . Acesso em: 23 dez. 2014. No vídeo, Harbisson mostra o funcionamento do Eyeborg. 28 No sentido de ser provocada, construída. 29 Alguns retratos sonoros criados por Harbisson: Leonardo Di Caprio, Daniel Radcliffe, Gael Garcia Bernal, Princípe Charles, entre outros. Disponível em: Acesso em: 23 dez. 2014. 30 Disponível em: Acesso em: 23 dez. 2014. 26 27

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Figura 3 – Neil Harbisson Fonte: CYBORG FOUNDATION, 2014

Em 2004, o Reino Unido reconheceu o Eyeborg como parte do corpo de Harbisson, ou seja, o artista foi reconhecido oficialmente como um ciborgue. A partir disso, criou a Cyborg Foundation, organização sem fins lucrativos dedicada a auxiliar pessoas se tornarem ciborgues, defendendo os seus direitos e incentivando a utilização da arte cibernética31.

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Fundada em 2010 por Neil Harbisson e Moon Ribas.

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5 RESULTADOS OBTIDOS Tomando como base a seguinte premissa de Moscovici (2003): “as representações que fabricamos (...) são sempre o resultado de um esforço constante de tornar real algo que é incomum (não familiar), ou que nos dá um sentimento de não familiaridade”, podemos analisar o contexto das primeiras representações do ciborgue. Tavares (2004) afirma que a Revolução Industrial e a revolução das tecnologias da informação “geraram descontinuidades profundas nos mais variados setores da vida em sociedade”: Essas novas formas de organização social e os novos espaços de vida, advindos com a revolução industrial, ocasionaram profundas alterações nos estilos de agir e de ser de seus contemporâneos. O cotidiano, nesses novos espaços, introduzia novos elementos na vida do urbanita: o excesso de estímulos, a divisão entre locais de trabalho e de moradia, a separação entre os domínios do público e do privado, os diferentes círculos de conhecimento, a racionalidade, a frieza, o anonimato, a reserva, o isolamento, o cálculo, a mobilidade, a pontualidade, etc. A essas novidades correspondiam novos comportamentos e novos traços psíquicos (TAVARES, 2004).

Evocar a figura do ciborgue, no período da Revolução Industrial, foi uma tentativa da sociedade interpretar o mundo de radicais transformações em que vivia: o trabalho braçal foi substituído por máquinas, o que gerou, entre muitos outros problemas, o desemprego. O ciborgue era a máquina que poderia dominar o mundo e representava também a desvalorização do corpo (e do trabalho) humano. Francisco Rüdiger (2008) afirma que não podemos falar em cibercultura sem evitar certas referências advindas da literatura e do cinema de ficção [...] quer num, quer noutro, a matriz é esse artefato cibernético que, desafiando o humano, faz interagir organismo e artifício (...) Em ambos, significativo é o fato de a matriz assim o fazer pela mediação do onírico, do imaginário, da subjetividade, o fato do mundo ser vivido nela como gigantesco sonho gerado artificialmente - mas isso tudo foi precedido ficcionalmente por outras soluções referentes à maneira de compor a relação entre homem e máquina como mundo e, portanto, o universo da cibercultura (RÜDIGER, 2008, p. 39, grifo dos outrores).

Os três ciborgues da cibercultura aqui apresentados demonstram que ciência e ficção sempre andaram lado a lado, visto que a ficção científica não existiria sem alguns conhecimentos técnicos e, de igual forma, não existe o fazer científico sem antes existir o ficcional, o imaginado. Para Stelarc, o corpo sempre foi um local de experimentação artística e poética, visto que defende que não é muito eficiente nem durável. O artista afirma que o corpo é obsoleto, fadado ao fracasso caso não se renda as capacidades e possibilidades de expansão física

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e cognitiva proporcionadas pela tecnologia. Este ciborgue, da ordem do protético, expressa o sentido de (re)configuração das capacidades motoras através do uso de próteses e revela que o corpo é uma construção inacabada e está sujeito a novas intervenções (COUTO, 2012, p. 175). Na performance Exoskeleton32, o artista utiliza um exoesqueleto33 pneumático para se locomover, como uma espécie de aranha robótica e esteticamente relembra o vilão Doutor Octopus, da ficção Homem-Aranha. Com isso, ficção e realidade novamente se entrecruzam e tornase cada vez mais difícil distinguir o que é prótese no humano e o que é carne na máquina (COUTO, 2012, p. 160). Já Steve Mann contribuiu seminalmente para o campo de estudo em computação vestível, principalmente por constantemente reinventar e reconsiderar sua relação com a tecnologia, refletindo no aprimoramento do WearComp. Mann “tornou-se gradualmente mais confortável com sua identidade ciborgue, porque a própria cultura estava se infundido com ideias sobre a transformação física e melhoramento do corpo”34 (RYAN, 2014, p. 73) e exprime a simbiose homem-máquina como modo de ser (COUTO, 2012, p. 175) ao relatar situações cotidianas em seu blog35. Recentemente, Mann foi agredido fisicamente no restaurante McDonalds, na França36, apenas por estar utilizando o WearComp (ou, apenas, sendo o ciborgue que é). Na ocasião, ao ser abordado pelos atendentes, explicou que o óculos era aparafusado ao seu crânio e, mesmo assim, foi atacado. Esta situação nos mostra que, embora os ciborgues já estejam inseridos na sociedade há quase duzentos anos, ainda há estranhamento quanto ao uso de próteses e implantes. Seria Steve Mann a versão (pós)moderna do monstro criado pelo Dr. Frankenstein? Por fim, Neil Harbisson, o homem que escuta as cores e fundador de uma ONG internacional que promove o direito dos ciborgues, destaca que pessoas com deficiência não são as únicas que podem se beneficiar da extensões tecnológicas para modificar o seu corpo, mas que qualquer ser humano pode (e deve) explorar estender os seus próprios sentidos e percepções. Como ciborgue que criou e implantou um dispositivo em seu crânio, Harbisson levanta questões referentes ao biohacking37 e a Cyborg Foundation disponibiliza, gratuitamente, principalmente em seu site oficial, pesquisas e códigos-fonte para que a população crie o seu próprio Eyeborg e demais computadores vestíveis. Disponível em: . Acesso em: 1 fev. 2015. Espécie de armadura robótica. 34 Tradução nossa. Do original: "He gradually became more comfortable with his human-machine identity, because culture itself was becoming infused with ideas about physical transformation and body enhancement". 35 Disponível em: . Acesso em: 1 fev. 2015. 36 Relato da agressão. Disponível em: Acesso em: 1 fev. 2015. 37 Prática que une a biologia com práticas de hacking. No português, usa-se o termo biopirataria. 32 33

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: REFLEXÕES E PRÓXIMO PASSO Neste artigo, discutimos algumas representações do ciborgue desde 1818 (ano de lançamento do livro de ficção Frankenstein ou o Moderno Prometeu) até os dias atuais (cibercultura). De acordo com o levantamento bibliográfico realizado, é possível depreender que as dicotomias natural X artifical, animal X máquina, humano X inumano perdem sentido quando observamos a figura do ciborgue já que, para Lemos (2008), o ciborgue é “capital para a cibercultura, visto que simboliza o processo simbiótico da cultura contemporânea com o advento das tecnologias digitais”. Ao observar o corpo ampliado e (re)configurado pelas novas tecnologias de comunicação e informação, percebemos duas categorias de ciborgues: o protético – “aquele indivíduo cujo funcionamento fisiológico depende de aparelhos eletrônicos ou mecânicos”38 – e o interpretativo – o sujeito conectado que se faz presente nas redes digitais, exercendo suas múltiplas identidades39. Desta maneira, através das figuras de Stelarc, Steve Mann e Neil Harbisson - e a metáfora do ciborgue - podemos refletir acerca da nossa própria humanidade e, assim como destacou Paula Sibilia (2002, p. 11): “novas formas de pensar, de viver, de sentir; em síntese: novos modos de ser”. Como perspectiva futura, as presentes reflexões serão incorporadas à dissertação da autora Aline Corso, sob orientação da Prof ª. Dr ª. Sandra Montardo, que está em andamento e que pretende problematizar os computadores vestíveis, as próteses e os implantes na cultura do pós-humano. Assim, a partir dos apontamentos teóricos aqui apresentados, espera-se contribuir com os estudos acerca das representações do ciborgue na cibercultura, em especial no contexto brasileiro. Afinal, como já previu Donna Haraway (2009), nós somos ciborgues!

Disponível em: . Acesso em: 31 jan. 2015. “Na cultura digital o corpo físico desaparece. O que temos agora é um meta-corpo, um corpo além do corpo, um hiper-corpo por meio do qual os sujeitos, em rede, se conectam uns aos outros, narram e interpretam as suas vivências efêmeras no ciberespaço. O corpo se transforma num grande hipertexto simbiótico, se constitui no corpo-rede rizomático, aberto, não centralizado. Este corpo-rede do ciborgue interpretativo está presente nas redes sociais, nos blogues, na efervescência das comunidades e vitrines virtuais onde cada um se pavoneia. Paula Sibilia (2008) destaca que dia após dia, minuto após minuto, os fatos reais são relatados por um “eu real” que por meio de palavras, fotos, imagens, e de maneira instantânea, tem sido visível nas telas de todos os cantos do planeta”. Disponível em: Acesso em: 31 jan. 2015. 38 39

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REFERÊNCIAS AMARAL, Adriana. Visões Perigosas: uma arque-genealogia do cyberpunk – comunicação e cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2006. ______. Cyberpunk e Pós-modernismo. BOCC, Biblioteca Online de Ciências da Comunicação [online]. Portugal, 2003. Disponível em: . Acesso em: 26 dez. 2014. AMARAL, Adriana; MONTARDO, Sandra. Mapeamento temático da história da cibercultura no Brasil. In: BARBOSA, M. C.; MACHADO, M. B.; SACRAMENTO, I. (Org.). Panorama da comunicação e das telecomunicações no Brasil: 2012/2013. v. 4. Memória. 1. ed. Brasília: IPEA, 2013, v. 4, p. 331-348. ASIMOV, Isaac. No mundo da ficção científica. Francisco Alves: Rio de Janeiro, 1984. BÁRTOLO, Pedro. Neil Harbisson é o primeiro humano oficialmente reconhecido como “cyborg”. Disponível em: . Acesso em: 23 dez. 2014. COELHO DOS SANTOS, Dominique Vieira. Acerca do conceito de representação. Revista de Teoria da História. Goiânia, a. 3, n. 6, dez. 2011, p. 27-53. COUTO, Edvaldo Souza. Corpos Voláteis, Corpos Perfeitos: estudos sobre estéticas, pedagogias e políticas do pós-humano. Salvador: EDUFBA, 2012. COUTO, E. S; SOUZA, J. S.; NEVES, B. C. Acepções de Tecnologia: Ciborgues Protéticos e Interpretativos. Artefactum – Revista de Estudos em Linguagem e Tecnologia. A. 5, n. 1, mai. 2013, p. 1-15. CYBORG FOUNDATION. Site oficial. 2014. Disponível em: . Acesso em: 22 dez. 2014.

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MANIFESTAÇÕES CULTURAIS: OBJETOS E PERSPECTIVAS DISTINTAS

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