Stephen Law: Cidadãos esclarecidos versus cordeirinhos morais

August 10, 2017 | Autor: Flavio Williges | Categoria: Filosofía, Ética, Ensino de Filosofia
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Cidadãos esclarecidos vs. cordeirinhos morais[1]
Stephen Law
Tradução de Flavio Williges (Departamento de Filosofia/UFSM)

Como sou o autor de vários livros populares de filosofia, incluindo
três livros de filosofia para crianças, e também o editor da revista Think,
do Royal Institute of Philosophy, que visa alcançar o público em geral,
penso que devo falar um pouco das razões que me levam a crer que envolver
jovens com a filosofia pode ser interessante.
Duas das organizações de filosofia para crianças mais conhecidas da
Inglaterra são chamadas de Saper e Aude. Não é uma coincidência que
'Sapere Aude' –Ouse saber!- seja o lema do Esclarecimento (Iluminismo). Mas
como o Esclarecimento e a filosofia para crianças estão vinculados?
Os representantes do Iluminismo, Diderot e d'Alembert, definiram o pensador
iluminista como alguém que,

Passa por cima dos preconceitos, da tradição, do convencionalismo
universal, da autoridade, em uma palavra, de tudo aquilo que escraviza
a maioria das mentes, encorajando-nos a pensar por nós mesmos.

Kant, em um pequeno artigo chamado 'O que é o esclarecimento?' diz que
Esclarecimento é:


É a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A
menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a
direção de outro indíviduo. O homem é o próprio culpado dessa
menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento,
mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a
direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu
próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.

Para Kant, cidadãos esclarecidos não são somente intelectualmente capazes
de pensar por conta própria; eles também têm a coragem de fazê-lo. O
contraste é com os indivíduos que, embora intelectualmente capazes, são, ao
mesmo tempo, intelectualmente submissos: temerosos de questionar aquilo que
a autoridade e a tradição ditam.

Muitos defensores da filosofia nas escolas são a favor de promover
cidadãos que sejam, no sentido de Kant, esclarecidos. Permitir que jovens
envolvam-se com filosofia é uma forma óbvia de deixá-los pensar de maneira
crítica e independente sobre algumas das crenças mais fundamentais que
trazem consigo para a sala de aula, incluindo suas crenças religiosas e
morais.

Porém, por que pode ser uma coisa boa promover pensadores críticos e
autônomos, preparados para confiar em seus próprios intelectos, em vez da
autoridade e da tradição?

De fato, de forma alguma todos pensam que é uma boa idéia. Não há
nenhum consenso quanto a devermos criar cidadãos esclarecidos. Alguns temem
que haverá conseqüências terríveis. Eles argumentam que se as pessoas são
encorajadas a confiar em seus próprios intelectos, em vez de seguir a
bússola moral confiável que a autoridade religiosa tem tradicionalmente
fornecido, elas terminarão ficando desorientados moralmente, sujeitas a
qualquer capricho ou influência maligna que soprar seu caminho. Eles serão
provavelmente levados à catástrofe moral.
 
Eu não quero me envolver agora, pois não há tempo, com essas e outras
críticas. Em vez disso, irei esboçar rapidamente três razões, em virtude
das quais penso que visar o desenvolvimento de cidadãos esclarecidos é,
feitas as contas, uma coisa boa.

A primeira razão é que, gostando ou não, nós já somos, cada um de nós,
inevitavelmente responsáveis por fazer nossos próprios juízos morais. Se
uma autoridade em química me instrui a misturar alguns elementos químicos e
a explosão resultante mata várias pessoas, eu posso me desculpar dizendo
que estava apenas seguindo instruções. Mas se uma autoridade religiosa me
diz para sair e matar alguns descrentes, e o faço, eu não posso me
desculpar do mesmo jeito. Eu tenho uma responsabilidade inevitável ao fazer
meus próprios juízos morais, uma responsabilidade que não posso abrir mão
em nome de supostos especialistas, do mesmo modo que posso razoavelmente
abrir mão da minha responsabilidade de fazer juízos relativos à química,
física ou hidráulica. Dado que cada um de nós tem essa responsabilidade
inevitável por fazer nossos próprios juízos, o nosso sistema educacional
não deveria tanto nos instigar a fazê-lo, quanto assegurar que tenhamos a
maturidade intelectual e emocional necessária para cumprir essa tarefa
adequadamente? Isso, penso eu, é algo que a filosofia, quando bem
conduzida, é capaz de fazer bem.

Uma segunda razão para encorajar as gerações futuras a voltarem atrás
e perguntarem o que temos defendido moralmente, percebendo, talvez,
conseqüências previamente não-reconhecidas de nossas crenças mais
fundamentais é que é por meio de tal tipo de raciocínio que o progresso
moral acontece. Grandes avanços morais em nossas atitudes em relação às
mulheres, aos gays e outras raças aconteceram no último século e até mesmo
antes disso, em função de estarmos preparados para questionar as opiniões
morais recebidas, exatamente como a filosofia requer.
 
E aqui vai uma terceira sugestão pela qual pode ser uma coisa boa criar
cidadãos esclarecidos. A abordagem tradicional, a abordagem baseada na
autoridade da educação moral e religiosa, a qual encoraja atitudes de
submissão e de aceitação mais ou menos acrítica, tende a produzir
cordeirinhos morais. Cordeirinhos morais podem fazer a coisa certa, mas
somente se isso for o que seu rebanho estiver fazendo.
Uma sociedade de cordeirinhos morais pode ser muito satisfatória.
Enquanto o rebanho segue uma autoridade benigna, crimes poderão não existir
e as ruas estarão limpas. Mas uma sociedade de cordeirinhos é uma coisa
perigosa. Quando alguma figura de autoridade nova, talvez mais carismática
e menos benevolente, surgir, nosso rebanho a seguirá, talvez até mesmo
enfurnando-se com algum aliado perigoso.

Como podemos nos precaver disso?

O Professor Jonathan Glover, Diretor do Centro de Medicina Legal e de Ética
do King's College em Londres, conduziu uma pesquisa em torno das origens
daqueles que foram mais ávidos em se juntar a assassinatos em lugares como
a Alemanha nazista, Ruanda e Bósnia, e também que daqueles que trabalharam
para salvar vidas, às vezes colocando-se em grande risco. Como Glover
explicou numa entrevista no The Guardian, (cito-o aqui)


Se você observar as pessoas que abrigaram judeus durante o nazismo,
você descobrirá uma série de coisas sobre elas. Uma dessas coisas é
que elas tendiam a ter uma tipo diferente de educação em relação a
maioria das pessoas; elas foram educadas de um modo não autoritário,
cresceram tendo empatia com outras pessoas e discutindo coisas, em vez
de só fazer o que lhes era dito.


Glover acrescenta, 'eu creio que ensinar a pensar racional e criticamente
realmente pode contribuir para diminuir a susceptibilidade das pessoas às
falsas ideologias'.
 
Em seu livro A personalidade altruísta: resgatadores de Judeus na Europa
Nazista, os analistas também relataram que uma das diferenças mais
significativas entre os pais daqueles que resgataram e daqueles que não
resgataram estava na ênfase que eles davam ao raciocínio.Cito:

[P]ais de resgatores usavam significativamente menos punição física e
significativamente mais raciocínio.

Os pais de resgatores diferiam dos não-resgatadores em sua confiança no
raciocínio, nas explicações, nas sugestões de modos de reparar danos
feitos, na persuasão e conselhos.

Os analistas acrescentaram que 'o raciocínio comunica uma mensagem de
respeito e confiança às crianças que lhes permite experimentar um
sentimento de eficácia pessoal e amabilidade em relação aos outros.' Em
oposição, os não-resgatadores tendiam a se sentir 'meros joguetes, sujeitos
ao poder de autoridades externas'.

Incidentalmente, os analistas perceberam que a 'religiosidade foi só
minimamente associada com a preocupação em ajudar'.
 
CONCLUSÃO
 
Alguns acreditam que se quisermos imunizar as gerações futuras de uma
contaminação pelo tipo de catástrofe moral que marca o século XX, nossa
melhor aposta é a religião. Eu sugiro que a melhor aposta é a filosofia.

Se você quiser, você pode criar suas crianças de acordo com uma
confissão religiosa determinada. Mas eu recomendo que nenhuma criança seja
educada numa escola que desencoraja a independência de pensamento, que
torne certas crenças religiosas intelectualmente indiscutíveis ou que
encoraje as crianças a suporem que seja qual for a crença religiosa que
elas forem ter, não será uma questão da sua livre escolha.
Certamente todos nós todos queremos influenciar o que nossas crianças
acreditam e, em particular, o que as próximas gerações irão acreditar. Eu
não quero que a próxima geração de cidadãos cresça racista ou sexista. Eu
certamente não quero vê-las deixarem-se levar por aqueles que lhes inculcam
ideologias violentas e extremistas.
Minha sugestão é que se quisermos proteger jovens de serem doutrinados
por tais sistemas de crenças perigosas, nossa melhor defesa é não deixar
nossa própria doutrinação vir primeiro, mas dar-lhes algum tipo de
imunização contra esse tipo de doutrinação.
Elas precisarão essa habilidade para reconhecer quando elas estiverem
sendo emocionalmente manipuladas, quando lhes estiver sendo vendido algum
veneno de cobra intelectual e assim por diante.
Certamente há um risco associado em criar indivíduos que tenham esse
tipo de habilidade e a coragem de aplicá-las. Eles podem terminar usando
suas habilidades intelectuais recém-adquiridas para racionalizar seus
próprios preconceitos ou preparar justificações para qualquer coisa que
eles gostariam que fosse verdade. Isso é um risco. Mas creio que um risco
maior virá de criar uma geração de cordeirinhos morais.

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[1] Esse texto é a fala do Prof. Stephen Law na British Academy em Londres,
em 15 de fevereiro de 2015. Ele foi um dos seis painelistas e o evento
tinha como título 'Qual a relevância da filosofia?'.
Disponível em
http://www.centerforinquiry.net/blogs/entry/enlightened_citizens_vs._moral_s
heep
Acesso em: 23 de fevereiro de 2015.
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