Subjetivação como resistência: um olhar deleuziano sobre Michel Foucault

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Subjetivação como resistência: um olhar deleuziano sobre Michel Foucault Andrea Moreira Streva Resumo O presente artigo busca traçar um mapa do conjunto do pensamento de Michel Foucault através de um olhar deleuziano. Para tal, será utilizado centralmente o livro “Foucault” de Gilles Deleuze, além de livros e cursos prestados por Foucault ao longo de sua vida. O interesse na montagem desse mapa é demonstrar que a subjetivação aparece na pensamento de Foucault, não como uma quebra incoerente, mas como uma forma de resistência aos segmentos do saber-poder.

Palavras-chave: poder-saber, sujeição, subjetivação, resistência, liberdade.

Introdução O filósofo francês Gilles Deleuze foi um leitor atento da obra de Michel Foucault. Após a morte deste em 1984, Deleuze se lançou em um trabalho intenso que deu origem ao livro “Foucault” em 1988. Nesta obra, Deleuze busca o conjunto do pensamento foucaultiano 1, esclarecendo e organizando muitos pontos e descontinuidades no percurso do autor francês. A partir desse livro, desenvolver-se-á uma análise da subjetivação como meio de resistir às amarras do saber-poder. No presente trabalho, tratar-se-á, primeiramente, do tema do saber-poder com o intuito de montar a problemática da sujeição. Afinal, é através das camadas sedimentares do saber-poder que os indivíduos são assujeitados e individuados. Foucault, preso nas amarras do saber-poder, irá pensar, no final de sua vida, em formas de resistência ao problema que ele mesmo colocou. É essa busca que levará Foucault a se debruçar sobre o estudo dos gregos antigos. Encontrará nos processos de subjetivação dos gregos uma maneira de resistir aos segmentos duros do saber-poder. Assim, a subjetivação aparece como a dobra do poder; a torção que permite a autoafetação da força no engendramento de uma resistência e da criação de um espaço de liberdade.

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DELEUZE, Gilles. Rachar as coisas, rachar as palavras. Em: DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2013. p. 110.

I. Nas amarras do saber-poder Tomando o pensamento de Foucault como um conjunto, pode-se detectar três dimensões fundamentais: o saber, o poder e a subjetivação. Nos primeiros trabalhos de Foucault (no que seria sua fase arqueológica), há a predominância do tema do saber como o centro de seus questionamentos. O que é o saber? O saber é trabalhado por Foucault como a dimensão das formas: a forma de ver e a forma de dizer. Através do saber, distribuem-se aquilo que vemos e o que dizemos, não existindo nada lhe seja anterior2. Trata-se, portanto, do nível das formações históricas, dos estratos, do arquivo. Segundo Deleuze, o saber tem por objeto as “multiplicidades anteriormente definidas, ou melhor, a multiplicidade exata que ele mesmo descreve, com seus pontos singulares, seus lugares, suas funções”3. Nos anos 60, buscando desenvolver a dimensão formal do saber, Foucault trata dos enunciados e das visibilidades. Distanciando-se de uma filosofia analítica da linguagem que busca analisar frases e proposições, Foucault, enquanto novo arquivista, se empenhou em tornar legíveis os enunciados4. Eles não se confundem com frases ou proposições; estas, na verdade, os supõem implicitamente. Os enunciados são os formadores das palavras e das proposições, sendo, portanto, anteriores a elas5. Deleuze afirma que o enunciado é uma multiplicidade que atravessa os níveis, que “cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que as faz aparecer, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço”6. No enunciado, tudo é real no sentido de que nele próprio toda a realidade está manifesta. Isto quer dizer que não há um estado de latência nos enunciados, pelo contrário, estes só se referem ao efetivamente dito. Eles se caracterizam por sua positividade, ou seja, pela emissão de singularidades que se distribuem em um espaço que lhes é correspondente. Cabe salientar que apesar de real e acessível, o enunciado não é uma forma visível. É nesse sentido que Deleuze afirma que “o enunciado, a um só tempo, não é visível e não é oculto” 7. Apesar de não serem ocultos, os enunciados não são imediatamente perceptíves, estando sempre encobertos por palavras, frases e proposições 8. O trabalho do arqueólogo é justamente atentar para a função que as palavras exercem em cada conjunto com o inuito de, então, quebrar as frases e as proposições em busca dos enunciados que se escondem atrás deles. Em outras palavras, a função do novo arqueólogo é extrair das palavras e das proposições os enunciados. Mas no que consiste quebrar palavras e frases em busca do enunciado que lhes corresponde? 2 3 4 5 6 7 8

 ROIT, Roger-Pol. Foucault, Deleuze et la pensée du dehors. Em: Le Monde, 5 de setembro de 1986. D DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2005. p. 30.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 13.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 24.  DELEUZE, Gilles. Ibid. pp. 25-26.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 27.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 27. 

Não se deve buscar uma média de regularidade dos enunciados, pois eles funcionam através de uma curva de regularidade. Ora, o enunciado se mostra através do comportamento da curva, que passa na vizinhança das singularidades que ele emite e supõe. Mais ainda, o enunciado é legível através das regras inatas à reprodução e distribuição das singularidades que ele produz 9. Dessa forma, pode-se afirmar que a questão da originalidade, da criação e do fundamento não é pertinente; o novo arqueólogo deve se ater à regularidade enunciativa. Em sua análise sobre os enunciados, Foucault se aproxima dos escritos de Maurice Blanchot ao tratá-los de forma despersonalizada, retirando o Sujeito do centro do discurso e situando os lugares do sujeito na “espessura de um murmúrio anônimo” 10. No enunciado, o sujeito só subsiste na terceira pessoa, como função derivada, um Diz-se. “Não é necessário ser alguém para produzir um enunciado, e o enunciado não remete a nenhum cógito, nem a algum sujeito transcendental que o tornasse possível, nem sequer a um Eu que o pronunciasse pela primeira vez (...)” 11. O fato de os enunciados se produzirem sem pressuporem um Sujeito criador não anula a existência de lugares do sujeito em cada enunciado – lugares estes, bastante variados 12. Longe de repetir a ideia de contexto, a novidade trazida por Foucault é afirmar que “se pode dizer uma frase ou formular uma proposição sem que se ocupe sempre o mesmo lugar no enunciado correspondente, e sem reproduzir as mesmas singularidades”13. Nesse sentido, Deleuze nos convida a considerar as formações históricas enquanto multiplicidades que escapam “tanto ao reino do sujeito quanto ao império da estrutura” 14. Ora, o enunciado nada mais é do que “o objeto específico de um acúmulo através do qual ele se conserva, se transmite ou se repete” 15. Isto quer dizer que o enunciado se conserva em si mesmo, mantendo sua realidade pelo período em que o espaço que criou para si durar. Esses espaços que envolvem um enunciado podem ser dividos em: espaço colateral, espaço correlativo e espaço complementar. O espaço colateral diz respeito à relação do enunciado com outros enunciados; é o espaço adjacente. As margens de um enunciado estão sempre povoadas por outros enunciados, havendo uma reatualização de um nos outros. O espaço correlativo refere-se à relação do enunciado com seus sujeitos, objetos e conceitos. Finalmente, o espaço complementar é onde o enunciado remete a um meio institucional, ou seja, trata-se da relação dos enunciados com as formações nãodiscursivas (instituições, acontecimentos políticos, processos econômicos, etc). Entre as formações 9 10 11 12

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 ELEUZE, Gilles. Op. Cit. p. 16. D DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 19.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 16.  O enunciado não remete a formas únicas como nas frases em que há sempre remissão a um EU, como pessoa linguística, que dá início ao discurso. Pelo contrário, o enunciado remete a posições variáveis e intrínsecas, que compõem o próprio enunciado. Deleuze dá como exemplo o fato de um contrato remeter a um fiador ou de uma coletânea remeter a um compilador. Esses fatos são abrangidos pelos enunciados, mas não pelas frases. Um mesmo enunciado pode ter várias posições de sujeito. É uma função derivada da primitiva – sujeito, objeto e conceito são apenas funções derivadas do enunciado (função primitiva). DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 22.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 25.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 16. 

não-discursivas e as formações discursivas há uma relação que não é de paralelismo vertical ou de causalidade horizontal, mas é uma relação política. Relação esta que não é dada, mas construída de forma diversa em cada formação histórica. Essa relação não é intrínseca aos enunciados, mas constitui um limite. Nas palavras de Deleuze, esse limite seria “o horizonte determinado sem o qual tais objetos de enunciados não poderiam aparecer, nem tal lugar ser reservado dentro do próprio enunciado”16. Ao desenvolver tal temática, Foucault afirma que uma instituição comporta ela mesma enunciados, enquanto os enunciados, por sua vez, “remetem a um meio instituicional sem o qual os objetos surgidos nesses lugares do enunciado não poderiam ser formados, nem o sujeito que fala de tal lugar”17. Um enunciado se define, então, através de uma relação específica com outra coisa de mesmo nível que ele, isto é, uma coisa que concerne a ele próprio (e não a seu sentido ou seus elementos). Essa coisa pode ser um enunciado (caso em que há repetição) ou uma formação nãodiscursiva (nesse caso há uma situação limite, um encontro com o “lado de fora”). A diferença entre as formações discursivas e as não-discursivas é a bifurcação do saber em dois planos de exterioridade: o visível (luminosidade observável) e o dizível (os enunciados). Em ambos os planos do saber, pode-se observar que eles se mostram através de formas no mundo, formas que se combinam de maneiras diversas em cada estrato. Os estratos são como camadas sedimentares que não são dadas de antemão, mas construídas. A constituição dos estratos gira em torno do que se pode ver (o visível – ser-luz) e dizer (o dizível – ser-linguagem) em uma determinada época. É nesse sentido que podemos afirmar que o saber, em Foucault, constitui um agenciamento concreto que conjuga as dimensões heterogêneas dos enunciados e das visibilidades. Estas não se confundem e não se representam. Em outras palavras, os enunciados não nos fazem ver alguma coisa, assim como as visibilidades não tornam algo legível. Entre o ser-linguagem e o ser-luz não há uma relação causal, mas uma “não-relação” em que ambas as formas se capturam, se conjugam e se combatem mutuamente. Assim, apesar de não haver isomorfismo ou causalidade entre ambas formas, uma está inserida dentro da outra. Essa dissociação entre ver e falar tem efeitos diretos no modelo clássico da representação que, grosso modo, entende que as palavras desempenham a função primordial de representar as coisas. Esse modelo é quebrado a partir do momento em que Foucault afirma que as palavras não dizem as coisas e as coisas não são representações das palavras. Ora, o que representa o quê quando as palavras não mais dizem as coisas? Os enunciados e as formações não-discursivas têm suas próprias leis e autonomias, porém um está constantemente se insinuando no outro de forma que no plano do saber falamos e vemos ao mesmo tempo. O que é preciso sublinhar é que não falamos o 16 17

 ELEUZE, Gilles. Op. Cit. p. 21. D DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 21. 

que vemos e nem vemos o que falamos18. (…) por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem.19

Em Arqueologia do saber, Foucault propunha a distinção entre duas espécies de formações políticas, as “discursivas” (os enunciados) e as “não-discursivas” (os meios), porém sem desenvolver com profundidade a última. Em Vigiar e punir, o autor avança sua teoria realizando um trabalho sobre a instituição prisional. Neste livro, o século XVIII é apresentado ao leitor como o período em que o direito penal passou a enunciar os delitos e as penas em função de uma defesa da sociedade, se opondo à função de vingança ou reparação do soberano 20. O direito penal refere-se ao que é enunciável em materia criminal: “é um regime de linguagem que classifica e traduz as infrações, que calcula as penas; é uma família de enunciados e também um limiar” 21. Por sua vez, a prisão expõe o visível: “ela não apenas pretende mostrar o crime e o criminoso, mas ela própria constitui uma visibilidade, é um regime de luz” 22. O panoptismo é, nessa conjuntura, um agenciamento visual e luminoso onde o vigia pode ver tudo sem ser visto e os detidos podem ser vistos a cada instante sem verem a si próprios 23. A prisão é tratada, então, como um dispositivo panóptico que une uma formação de meio (o carceráreo) e de enunciado (a delinquência). Mas nem a forma de visibilidade, nem a forma de expressão separados designam o que é uma prisão. Esta se dá exatamente onde essas formas se entrelaçam, no dispositivo. Deleuze entende que a obra Vigir e punir (1975) representa um marco na transição da fase arqueológica para a genealógica. É nesse livro que Foucault começa a analisar as práticas de poder com centralidade e esse será o objeto de sua atenção até A vontade de saber (1976). O poder em Foucault não é uma forma visível ou dizível a que se tem acesso. Diferentemente do plano de saber que, como foi visto, é constituído por formas, o plano do poder é formado por relações de força. Em outras palavras, enquanto os saberes se dão por formas (enunciados e visibilidades) em estratos (formações históricas), o poder se dá por relações de forças em diagramas. Devido ao fato de as relações de força não serem estratificadas, elas não podem ser conhecidas por nós. Só temos acesso ao que está no domínio do saber, plano que guarda uma exterioridade (as formas). Por isso, segundo Foucault, não faz sentido buscar a origem do poder ou definí-lo ontologicamente, mas investigar como ele se exerce em cada época. O autor se volta, 18 19 20 21 22 23

 EVY, Tatiana Salem. A experiência do fora. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasiliense, 2011. p. 79. L FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1999. p. 12.  DELEUZE, Gilles. Op. Cit. p. 41.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 42.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 42.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 42. 

então, sobre as práticas e táticas do poder, já que o poder só existe em ação. O poder, enquanto ação, aparece sempre como um afeto, ou seja, como o poder da força de afetar outras forças. O conceito de poder foucaultiano é central para o entendimento de sua obra e se afasta de todas as antigas conceituações de poder tramadas. Este não é mais definido como propriedade, mas como uma estratégia. Nesse sentido, as práticas disciplinares, analisadas em Vigir e punir, não podem ser identificadas com uma instituição ou aparelho, exatamente pelo fato de ela ser “um tipo de poder, uma tecnologia, que atravessa todas as espécies de aparelhos e de instituições para reunílos, prolongá-los, fazê-los convergir, fazer com que se apliquem de um novo modo” 24. Em Foucault, o poder é local e difuso, não sendo, portanto, passível de ser localizado ou pensado como um grande ente à nível global 25. Não se trata de um atributo, mas de uma relação: “a relação de poder é o conjunto das relações de forças, que passa tanto pelas forças dominadas quanto pelas dominantes, ambas constituindo singularidades” 26. Isto quer dizer que o poder não está nas mãos dos opressores, mas que ele atravessa a relação que constitui alguém como opressor e como oprimido de maneira transversal. É o poder que produz indivíduos e não o contrário. Assim sendo, não se pode pensar o poder como repressão ou ideologia, já que, sendo relação, o poder está constantemente produzindo realidade. Nas palavras de Deleuze, “um poder não procede por ideologia mesmo quando se aplica sobre as almas; ele não se opera necessariamente através da violência quando se dirige aos corpos” 27. Muito antes de alcançar um caráter repressivo, o poder produz realidade. Assim como “produz verdade antes de ideologizar, antes de abstrair ou de mascarar”28. Aí se encontra verdadeiramente sua potência. Mas como o poder opera? Para explicar tal fenômeno, Foucault recorrerá ao que chamou de diagrama. Trata-se de um mapa, de uma cartografia que coexiste ao campo social. O diagrama ignora qualquer distinção de forma entre uma expressão e um conteúdo. “Todo o diagrama é uma multiplicidade espaço-temporal” 29. Isto significa que não se trata de um conceito dado ou imutável, mas altamente instável e que não cessa de constituir mutações através da composição de matérias e funções. Para explicitar esse ponto, basta analisar a diferença nas relações de poder na sociedade antiga (soberania) e na sociedade disciplinar que se afirma no final do século XVIII: não se pode dizer que na primeira não havia uma relação onde forças se exerciam umas sobre as outras, porém essa relação se dava “mais para realizar um levantamente prévio do que para combinar e compor; mais para dividir as massas do que para recortar o detalhe; mais para exilar do que para enquadrar”30. Segundo Deleuze, na sociedade antiga havia um diagrama que se aproximava mais ao 24 25 26 27 28 29 30

 ELEUZE, Gilles. Op. Cit. p. 35. D DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 36.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 37.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 38.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 38.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 44.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 44. 

teatro que à fabrica. Mapa das relações de força, mapa de densidade, mapa de intensidade (que procede por ligações primárias não localizáveis) e que passa a cada instante por todos os pontos. O diagrama age como causa imanente não-unificadora, estendendo-se por todo o campo social: a máquina abstrata é como causa dos agenciamentos concretos que efetuam suas relações; e essas relações de forças passam, “não por cima”, mas pelo próprio tecido dos agenciamentos que produzem31.

Exposição das relações de forças que constituem o poder, o diagrama é sempre intersocial e em devir32. As relações de força não estão vinculadas à figura do Estado e da Lei, mas são relações que se dão na capilaridade social; são, por isso, relações microfísicas, difusas e táticas que determinam singularidades e constituem formas através de um processo de atualização. As relações de forças se atualizam ganhando forma e se integrando em dispositivos. Deleuze afirma que a atualização-integração é também uma diferenciação no sentido de que a “multiplicidade diagramática não pode atualizar-se, o diferencial das forças não pode integrar-se, a não ser tomando caminhos divergentes repartindo-se em dualismos, seguindo linhas de diferenciação sem as quais tudo ficaria na dispersão de uma causa não-efetuada” 33. Ora, “o que se atualiza só pode fazê-lo por desdobramento ou dissociação, criando as formas divergentes entre as quais se divide” 34. É no processo de atualização que as diferenças centrais formam as matérias visíveis e formalizam as funções enunciáveis. É nela, portanto, que se diferenciam a forma do visível e do enunciável. Entre o ser-luz e o ser-linguagem há um não-lugar “onde penetra o diagrama informal, para se encarnar nas duas direções necessariamente divergentes, diferenciadas, irredutíveis uma à outra” 35. Dentro dessa lógica, podemos pensar nos dispositivos de saber como modos de entrelaçamento entre o visível e o enunciável, sendo o poder sua causa pressuposta. Porém, esse mesmo poder, inversamente, provoca o saber enquanto bifurcação – “diferenciação sem a qual ele não passaria a ato” 36. Isto se mostra de forma clara na afirmação de Foucault de que “não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” 37. Ora, todo saber vai de um visível a um enunciável, havendo uma relação de força que o atravessa transversalmente e que age exatamente na dualidade das formas. II. A dobra: subjetivação como resistência Bom, foi visto que o diagrama, mapa da organização do poder em uma sociedade, por coexistir ao campo social se encontra preso ao complexo saber-poder. Deleuze vai nos falar, então, 31 32 33 34 35 36 37

 ELEUZE, Gilles. Op. Cit. p. 46. D DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 45.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 47.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 47.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 47.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 47.  FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Ed. Vozes, 2009. p. 32. 

de uma figura que se põe à margem desse complexo, a “linha de fora”. O que seria essa linha? Foucault retirou essa temática de textos onde Maurice Blanchot aborda o que chama de a “experiência do fora”. Em Foucault, o fora é o espaço onde as forças circulam; “o que pertence ao lado de fora é a força, porque em sua essência ela é relação com outras forças: em si mesma, ela é inseparável do poder de afetar outras forças (espontaneidade) e de ser afetada por outras (receptividade)”38. A linha do fora aparece em Foucault como uma possibilidade de sair dos limites do saber-poder. O fora é o reino do devir, do não estratificado, uma tempestade de forças. Na linha do fora, as singularidades não têm forma e, portanto, não há corpos visíveis ou enunciados dizíveis. Ao se atualizarem, as relações de força se diferenciam solidificando formas ao mesmo tempo que as colocam em questão. São, por isso, figuras de resistência que podem alterar relações estratificadas. Como não-relação, como não-lugar, o fora é o que está sempre resistindo ao complexo saber-poder. O lado de fora não é um limite fixo, mas uma matéria móvel, “animada de movimentos peristálticos, de pregas e de dobras que constituem um lado de dentro: nada além do lado de fora, mas exatamente o lado de dentro do lado de fora” 39. Por ser um espaço de virtualidades, de devires permanentes, o fora constitui um fora do poder que é sempre sua resistência. “É pela relação com o de fora que a força – considerada agora como força de resistência – é capaz de pôr em questão os poderes estabelecidos”40. Apesar de a linha do fora representar na filosofia de Foucault uma possibilidade de resistência, ela, ao mesmo tempo, representa perigos mortais. Segundo Deleuze, não é possível viver nessa linha, mas transitar entre ela e outras linhas segmentárias. A problemática da subjetivação aparece justamente nesse ponto. Como tornar a linha do fora vivível, praticável ou, em outras palavras, como fazer dela uma arte de viver? A subjetivação é o processo de dobra da linha do fora, uma maneira de curvar a linha de forma a permitir que uma vida nela seja possível. Assim como Foucault, Deleuze vê a vida como potência do lado de fora. Nas palavras do autor, “o ponto mais intenso das vidas, aquele no qual se concentra sua energia, é exatamente onde elas se chocam com o poder, se debatem contra ele, tentam utilizar suas forças ou escapar às suas armadilhas”41. A todo o momento a força do lado de fora não para de subverter e de derrubar diagramas. Porém, o fora representa o perigo do vazio e das linhas suicidárias das quais alerta Deleuze em sua obra produzida conjuntamente com Félix Guattari, Mil Platôs. Dessa forma, só haveria resistência possível aos processos de assujeitamento operados pelo saber-poder se o lado de fora “fosse tomado num movimento que o arrancasse ao vazio, lugar de um movimento que o

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 ELEUZE, Gilles. Op. Cit. p. 108. D DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 104.  MACHADO, Roberto. “Por uma genealogia do poder” In Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1985 p.  198. DELEUZE, Gilles. Op. Cit. p. 101. 

desvia da morte”42. É nesse ponto que Foucault elabora um novo eixo, distinto ao mesmo tempo do saber e do poder, que será chamado de subjetivação. Foucault retomará os escritos dos gregos antigos para pensar os processos de subjetivação. Nesses estudos que datam do final dos anos setenta, Foucault sublinha uma novidade trazida pelos gregos: os exercícios que permitem governar-se a si mesmo. Tais práticas descolavam-se tanto do poder como relação de forças quanto do saber como forma estratificada; tratava-se de um verdadeiro código de virtude. É importante esclarecer que, apesar de a subjetivação ser sempre uma relação consigo, a forma como essa relação é travada não apresenta uma fórmula única. Assim, não é possível afirmar que o modo de subjetivação grega é a maneira de resistir ao complexo saberpoder por excelência. Cada época traz suas possibilidades de resistência e seus modos de subjetivação. Ao separar-se dos estratos do saber e dos diagramas do poder, as relações com o lado de fora se dobram para formar um forro que permite a relação consigo – “construir um lado de dentro que se escava e se desenvolve segundo uma dimensão própria” 43. Daí surge a figura emblemática da dobra – a invaginação da linha do fora que cria um espaço de autoafetação do poder. “A dobra permite uma relação de força consigo, um poder de se afetar a si mesmo, um afeto de si por si” 44. Através de exercícios práticos como a Enkrateia 45, os gregos foram responsáveis por vergar o lado de fora. Na Enkrateia, “é preciso duplicar a dominação sobre os outros mediante um domínio de si. É preciso duplicar a relação com os outros através de uma relação consigo. É preciso duplicar as regras obrigatórias do poder mediante regras facultativas do homem livre que o exerce” 46. A ideia fundamental para Foucault, segundo Deleuze, é que há uma dimensão da subjetividade que deriva do poder e do saber, mas não depende deles. A relação consigo é irredutível às formas do saber e às relações de poder 47. É nesse sentido que os gregos inventaram um sujeito que não é um ente dado de antemão, mas um produto da subjetivação. Subjetivação esta que não se impõe, como nas redes de poder-saber, como norma obrigatória, mas como uma regra facultativa do homem livre – é isso que chamam de uma existência estética 48. Assim como as relações de poder, as relações consigo só se afirmam se efetuando, ou seja, no ato, na ação, na prática. As relações consigo entram nas relações de poder e nas relações de saber, reintegrando-se nesses sistemas. Nessa reintegração há sempre o risco dessa subjetividade ser

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 ELEUZE, Gilles. Op. Cit. p. 103. D DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 107.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 108.  A Enkrateia dos gregos era a relação consigo como um domínio. Tratava-se de um poder que se exerce sobre si mesmo dentro do poder que se exerce sobre os outros. Afinal, na concepção dos gregos, para pretender governar os outros era preciso antes saber governar a si próprio. DELEUZE, Gilles. Op. Cit. p. 108.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 108.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 109. 

capturada, estratificada e transformada novamente em sujeição ou assujeitamento 49. Apesar dos riscos de captura, a dobra permite um espaço de liberdade para o indvidíduo que busca se relacionar de modo diferente com as estratificações do saber-poder. Quando a reintegração vira assujeitamento é como se a dobra fosse desdobrada e a subjetivação do homem livre transformada em sujeição. Há nos processos de assujeitamento, por um lado, a “submissão ao outro pelo controle e pela dependência”, com todos os procedimentos de individualização e de modulação que o poder instaura, atingindo a vida quotidiana e a interioridade daqueles que ele chama de seus sujeitos; por outro lado, há “o apego (de cada um) à sua própria identidade mediante consciência e o conhecimento de si” 50, com todas as técnicas das ciências morais e das ciências do homem que vão formar um saber do sujeito. Esse duplo movimento é responsável por constantes capturas de modos de subjetivação que acabam se territorializando e virando estratos do saber-poder. Vê-se, assim, que é a relação consigo que permite reverter o assujeitamento, mas que ela não está imune ao desdobramento da dobra, já que é uma prática que deve ser constantemente mantida. A luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência às duas formas atuais de sujeição, uma que consiste em nos individualizar de acordo com as exigências do poder, outra que consiste em ligar cada indivíduo a uma identidade conhecida e bem determinada. A luta pela subjetividade se caracteriza, então, como direito à diferença, à variação e à metamorfose 51. A subjetivação como resistência é justamente o processo de constituição de um ser-Si que não é assujeitado pelos estratos do saber-poder, mas que mantém com eles uma relação de nãodependência. O “eu” não designa um ente imutável e universal, mas “um conjunto de posições singulares ocupadas num Fala-se/Vê-se, Combate-se, Vive-se” 52. A busca por resistência é também a busca por flexibilidade nas posições em que transitamos, por desestratificação e por autoafetação. A liberdade criada pelos processos de subjetivação não diz respeito ao livre arbítrio, mas a ser causa de seus próprios afetos.

Conclusão Michel Foucault apresentou aos seus leitores um quadro aparentemente sem escapatória em que a individuação mais se assemelha a um assujeitamento ao complexo saber-poder. Somos constituídos e atravessados pelo poder, somos objetos de análise do saber que nos consitui. Como sair desse nó que nos estratifica e engessa? É no final de sua vida que Foucault se debruçará sobre esse problema. O autor francês se volta, então, ao estudo dos processos de sujetivação dos gregos 49

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O indivíduo assujeitado é aquele que ocupa a posição de objeto de saber, codificado num saber moral, e de alvo do poder, diagramatizado. DELEUZE, Gilles. Op. Cit. p. 110.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 113.  DELEUZE, Gilles. Ibid. p. 122. 

antigos como maneira de pensar a resistência aos estratos do saber-poder. É nesse sentido que a subjetivação aparecerá como o processo no qual o poder dobra a si mesmo e garante um espaço de liberdade. Relação consigo ou técnica de si que não elimina a relação do indivíduo com as outras forças e saberes, mas garante maior grau de liberdade nessas relações.

Bibliografia consultada: DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2005. _________________. Rachar as coisas, rachar as palavras. Em: DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2013. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1999. _________________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1985. _________________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Ed. Vozes, 2009.

LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasiliense, 2011. REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos : Claraluz, 2005.

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