Subjetividade e Educação

June 8, 2017 | Autor: Eduardo Chagas | Categoria: Subjectivity, Educação e subjetividade
Share Embed


Descrição do Produto

SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO

ORGANIZAÇÃO Eduardo F. Chagas Hildemar Luiz Rech Raquel Vasconcelos Vilson da Mata

SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO

3

EDIÇÕES UFC

© 2012 Copyright by os autores

CAPA/PINTURA E PROJETO GRÁFICO/GRAPHICS EDITORS Raquel Célia Silva de Vasconcelos APRESENTAÇÃO Lígia Regina Klein EDITORAÇÃO/DESKTOP PUBLISHING

COMISSÃO CIENTÍFICA/SCIENTIFIC COMMITTEE: Eduardo Ferreira Chagas Hildemar Luiz Rech Lígia Regina Klein NORMALIZAÇÃO DE TEXTO/ TEXT NORMALIZATION

REVISÃO/ REVIEW

IMPREESÃO/PRINTING

Todos os direitos reservados .....

________________________________________________________________________________________________________ CHAGAS, Eduardo F., RECH, Hildemar Luiz, VASCONCELOS. Raquel Célia Silva de e MATA, Vilson Aparecido da Subjetividade e Educação/organizado por Eduardo Ferreira Chagas, Hildemar Luiz Rech, Raquel Célia Silva de Vasconcelos e Vilson Aparecido da Mata. Fortaleza: Edições UFC, 2012. 208p. ISBN: 1. Filosofia 2. Subjetividade 3. Educação. I Título

CDU

4

Sumário

06

14

Apresentação Lígia Regina Klein

“Quem não conheceu as obras dos Antigos tem vivido sem conhecer a beleza”: Hegel e a proposta neo-humanista de educação Marcos Fábio Nicolau

26

O Pensamento de Marx Sobre a Subjetividade Eduardo Ferreira Chagas

43

Trabalho, Subjetividade e Educação em Marx Vilson Aparecido da Mata

58

A Lógica da Exceção na Reflexão Política de Walter Benjamin Tereza Castro Callado

72

Mímesis e ritual: Performance do Corpo e Linguagem Simbólica (elementos para re-criação cultural) Raquel Célia Silva de Vasconcelos

87

Os livros e os brinquedos no pensamento de Walter Benjamin Conceição Ribeiro Guimarães

98

123

Slavoj Zizek: Real, Fantasia, Objetos Sublimes da Ideologia, Ato Político e Educação Hildemar Luiz Rech Reflexões sobre a Sociedade Tecnicamente Administrada (Capitalista) e suas Correlações com a Educação em Adorno Pedro Rogério Sousa da Silva

137

Educação e Subjetividade em Theodor W. Adorno Maria Socorro Gomes

146

Metafisica da vontade de poder e maquinação em Martin Heidegger Homero Luis Alves de Lima

161

Formação Discursiva da Plenitude em Educação: desconstruindo a sagrada condição do homem Karina Míriam da Cruz Valença Alves

178

Empreendedorismo, Concorrência e Educação: faces da governamentalidade neoliberal e da biopolítica contemporânea Sylvio Gadelha

193

Educação Profissional: a normalização biopolítica da subjetividade produtiva Samuel Brasileiro Filho

5

Apresentação Lígia Regina Klein1

O livro que ora temos a honra e a satisfação de apresentar aos leitores trata de uma questão absolutamente candente no debate contemporâneo, com inequívoca repercussão no campo educacional: a subjetividade. O tema se impõe, seja porque a subjetividade se reveste de uma importância não desprezível na interpretação das conquistas e das vicissitudes do gênero humano, merecendo

maior

ênfase

nas

teorizações

orientadas

para

uma

perspectiva

revolucionária, seja porque seu tratamento encontra, nas perspectivas reformistas ou francamente reacionárias, um privilégio caracterizado por um claro esvaziamento do seu conteúdo. Com efeito, basta um breve exemplo para realçar sua relevância: Marx (1982, p.202), ao precisar a categoria “trabalho em geral”, patenteia que o processo de trabalho, que está na base da mais consistente concepção de homem, envolve imaginação, vontade, atenção e, inclusive, prazer, fruição: No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto menos se sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método de execução de sua tarefa, que lhe oferece por isso menos possibilidade de fruir da aplicação das suas próprias forças físicas e espirituais.

Trata-se, entretanto, de tema áspero, oferecendo dificuldades inauditas aos que dele se aproximam insuficientemente armados. Uma dificuldade de vulto reside na necessidade de tratar da subjetividade sem perder de vista, dialeticamente, seus determinantes objetivos. Ao meramente contrapormos subjetividade e objetividade como esferas excludentes, sem atentarmos

1

Licenciada em Letras e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná, mestre e doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atua como professora e pesquisadora no Curso de Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. Coordena o Núcleo de Pesquisa Educação e Marxismo/UFPR.

para sua unidade ontológica, ou ficamos nos infecundos limites do materialismo vulgar, ou bem descambamos para um deletério idealismo. Neste sentido, Marx e Engels alertam que: La producción de las ideas y representaciones, de la consciencia, aparece al principio diretamente entrelazada com la actividad material y el comercio material de los hombres, como el lenguaje de la vida real. Las representaciones, los pensamientos, el comercio espiritual de los hombres se presentam, todavia, aquí, como emanación directa de su comportamiento material. Y lo mismo ocorre com la producción espiritual, tal y como se manifiesta em la lenguaje de la política, de las leyes, de la moral, de la religión, de la metafísica, etc., de un pueblo. (MARX y ENGELS, 1972, p. 25-26).

Entretanto, sobre a dificuldade mencionada acresce a condição de alienação posta pelo modo de produção capitalista, cuja determinação máxima – a mercadoria – unificase na sua expressão monetária – o dinheiro –, equivalente de toda mercadoria, que se corporifica como objeto por excelência, a galvanizar os recônditos da subjetividade humana. Marx, não raro acusado de não tratar da subjetividade, é quem nos dá a chave para a compreensão atual desse espinhoso tema, ao nos apresentar o dinheiro como “o alcoviteiro entre a necessidade e o objeto, entre a vida do homem e os meios de subsistência”, que não só mediatiza a vida do indivíduo, como também mediatiza, para ele, a existência dos outros homens. O dinheiro é, assim, sob as leis objetivas do capitalismo, a outra pessoa. (MARX, 1989, p. 230, grifos do autor). Comentando brilhantes passagens de Goethe e de Shakespeare sobre a natureza do dinheiro, o autor de O Capital expõe contundente reflexão, que nos permitimos reproduzir, a despeito de longa, para preservar a integridade do pensamento marxiano: O que para mim existe através do dinheiro, aquilo que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, sou eu, o próprio possuidor do dinheiro. O poder do dinheiro é o meu próprio poder. As propriedades do dinheiro são as minhas – do possuidor – próprias propriedades e faculdades. Aquilo que eu sou e posso não é, pois, de modo algum determinado pela minha própria individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher. Por conseguinte, não sou feio, porque o efeito da fealdade, o seu poder de repulsa, é anulado pelo dinheiro. Enquanto indivíduo, sou coxo, mas o dinheiro fornece-me vinte e quatro pernas; portanto, não sou coxo; sou um homem detestável, indigno, sem escrúpulos e estúpido, mas o dinheiro é objeto de honra, por conseguinte, também o seu possuidor. O dinheiro é o bem supremo, e deste modo também o seu possuidor é bom. Além disso, o dinheiro poupa-me ao esforço de ser desonesto; por consequência, sou tido na conta de honesto; sou estúpido, mas o dinheiro constitui o espírito real de todas as coisas: como poderá o seu possuidor ser estúpido? Ademais, ele pode comprar para si as pessoas talentosas: quem tem poder sobre as pessoas inteligentes não será mais talentoso do que elas? Eu, que por meio do

7

dinheiro possuo tudo o que o coração humano ambiciona, não possuirei todas as capacidades humanas? Não transformará assim o dinheiro todas as minhas incapacidades no seu contrário? Se o dinheiro é o vínculo que me liga à vida humana, que liga a sociedade a mim, que me une à natureza e ao homem, não será ele o laço de todos os laços? Não poderá ele soltar e unir todos os vínculos? Não será ele, portanto, o meio universal de separação? Constitui o verdadeiro meio de separação e união, a força galvano-química da sociedade. (MARX, 1989, p. 232, grifos do autor).

Ademais, na sua vocação alienada e alienante, o dinheiro tem o poder de perverter e inverter as qualidades humanas e naturais, capaz de estabelecer a fraternidade entre os incompatíveis, posto que assume, nesta sociedade, a condição de síntese objetiva de todas as qualidades humanas, não se permutando com uma específica faculdade humana, mas com todo o mundo objetivo, nas suas dimensões humana e natural. Entender a subjetividade humana implica, pois, conhecer a constituição do homem, na interação entre o orgânico e o inorgânico. Se é verdadeiro que o homem é criatura de si mesmo, ele o é por aquilo que produz e o que produz existe como uma realidade objetiva, externa a ele, mas que, no entanto, integra o sujeito, integrando assim a sua subjetividade. A condição alienada dos sujeitos é a grande questão da contemporaneidade, nesta sociedade de classes em que se intensificam, por um lado, a produção social e, por outro, a apropriação privada. Se o ser social, como gênero, é produtor e detentor de uma riqueza extraordinária – e entenda-se por riqueza o conjunto dos recursos historicamente produzidos para expandir as capacidades da espécie – o mesmo não ocorre com o indivíduo, a quem é negada a incorporação dessa riqueza na sua condição de existência cotidiana. Em outros termos, a sua individualidade é pobre, é carente em relação ao que é seu próprio gênero. Contribuindo, com o seu trabalho, para o progresso do gênero – progresso material e espiritual -, ele é mantido nos limites da espécie, posto que a riqueza – tudo aquilo que é constitutivo do gênero - dele se encontra separada, seccionada, cortada. Só a posse do dinheiro logra sua re-ligação com o gênero. Evidente, entretanto, que as causas dos males do mundo não estão no dinheiro, que já existiu em outras sociedades, sem o conteúdo que hoje detém. Conhecer e combater essas causas implica uma incursão pelos meandros do capitalismo, essa forma de organização da sociedade que reduz tudo à mercadoria e transforma todas as relações constitutivas do humano em um grande e universal mercado. Nesse mercado, todas as

8

trocas são mediadas pelo dinheiro e “no dinheiro se apagam tôdas as diferenças das mercadorias, justamente porque êle é a forma equivalente comum delas tôdas” (MARX, 1983, p. 49). Em outros termos, o trabalhador, com o seu trabalho, faz progredir as capacidades da espécie de socar, levantar, separar, triturar, rasgar, juntar, arranhar, etc. desenvolvendo os mais variados instrumentos, ferramentas e máquinas; faz progredir a visão da espécie, desenvolvendo, óculo, microscópios, telescópios, lentes diversas, a televisão; faz progredir a capacidade de marcha e transporte da espécie ao domesticar o cavalo, o camelo, ao inventar a roda, ao desenvolver a charrete, o trenó, a carruagem, o automóvel, o trem, o avião, o navio; faz progredir a capacidade de voz e audição da espécie, inventando a escrita, o telégrafo, o rádio, o telefone; faz progredir a capacidade de pensar da espécie, inventando os signos, a linguagem, a língua escrita, os códigos em geral; faz progredir as capacidades de julgamento, de interpretação, de gozo, etc., da espécie, ao inventar e desenvolver diferentes formas de representação, que vão do simples rabisco mal traçado de um desenho bruto ao requinte das artes em geral – a música, o teatro, a literatura; faz progredir, na espécie, a capacidade de intervenção na natureza, desenvolvendo o conhecimento, a ciência e a tecnologia. E assim, cansativamente, poderíamos arrolar inúmeros outros exemplos de como o trabalho criador aumenta as possibilidades da espécie, transformando-a naquilo que conhecemos: o gênero humano. Entretanto, sob o capitalismo, a riqueza do gênero é separada dos produtores e criada já com destinação ao mercado. Lá, somente se torna acessível pela mediação do dinheiro, que se obtém ou pela venda de força de trabalho ou pela exploração do trabalho excedente de outrem. Desnecessário comentar a obviedade de que a força de trabalho, em tendo um valor de uso que transcende seu valor de troca, é explorada ao máximo no seu valor de uso, e retribuída apenas pelo justo valor de troca, ou seja, pelo valor necessário à recomposição da energia consumida. Daí a imensa desigualdade, para o trabalhador, entre a riqueza produzida e a riqueza consumida por ele. Daí a imensa diferença nas possibilidades de desenvolvimento da individualidade e da subjetividade dos sujeitos. Este desnudamento da forma capitalista do ser social nos obriga a transcender as quimeras relativas a uma suposta subjetividade natural, que precisa ser preservada em si mesma para “desabrochar”, a supostas “tendências” naturais que, se respeitadas, ou seja, deixadas intocadas, incontaminadas de vida, comporiam uma subjetividade melhor.

9

Ademais, vale lembrar que, ao tudo converter em mercadoria, o capital necessariamente igualiza todas as coisas enquanto mercadoria. Assim, rompe com qualquer fronteira entre o justo e o injusto, o saudável e o pernicioso, o belo e o feio, o ético e o antiético, o corrupto e o incorruptível. É o que explica a impossibilidade de qualquer avanço ou solução ética dos tempos atuais, como bem ilustra a magistral “digressão” marxista, sob o título “Concepção apologética da produtividade de toda profissão”, onde o autor demonstra como, sob o capital, o criminoso é um sujeito de alta produtividade, absolutamente necessário ao sistema. O texto é longo e citamos apenas pequenos excertos, convidando o leitor a prosseguir a leitura, na fonte: Filósofo produz idéias, poetas poesias, pastor prédicas, professor compêndios e assim por diante. Um criminoso produz crimes. Se mais de perto observarmos o entrosamento deste último ramo de produção com a sociedade como um todo, libertar-nos-emos de muitos preconceitos. O criminoso não produz apenas crimes, mas também o direito criminal e, com este, o professor que produz preleções de direito criminal e, além disso, o indefectível compêndio em que lança no mercado geral “mercadorias”, as suas conferências. [...] o criminoso produz também toda a polícia criminal, beleguins, juízes e carrascos, jurados, etc., e todos aqueles diferentes ramos que constituem outras tantas categorias da divisão social do trabalho, desenvolvem capacidades diversas do espírito humano, criam novas necessidades e novos modos de satisfazê-las. Só a tortura suscitou as mais engenhosas invenções mecânicas e ocupou na produção de seus instrumentos muitos honrados artífices. [...] o criminoso produz uma impressão com gradações morais e trágicas dependentes das circunstâncias, e assim presta um “serviço” ao despertar os sentimentos morais e estéticos do público. Não só produz compêndios sobre direito criminal, códigos penais e portanto legisladores penais, mas também arte, literatura, romances e mesmo tragédias, tais como Schuld de Müllner, Raüber (Salteadores) de Schiler, Édipo de Sófocles e Ricardo III de Shakespeare. (MARX, 1987, p. 382-383, grifos do autor).

Eis que, abandonar as fantasias da moral burguesa – “impotência posta em ação”, dizia Marx – e enfrentar as raízes das assombrosas impertinências da alienação constituem condições para uma aproximação consequente do tema, o que envolve, necessariamente, uma clara disposição crítica. Efetivamente, sem o aporte de uma perspectiva que questione os fundamentos da sociedade contemporânea, dificilmente se alcançará o cerne de um tema que, seguramente, está na base de qualquer reflexão educacional. Esse esforço encontrará sua recompensa na contribuição à superação de condições objetivas em que impera a alienação. Um vislumbre de como será uma

10

subjetividade liberta podemos apreender no retrato das assembleias dos operários socialistas franceses, traçado ainda por Marx: Quando os artífices comunistas se reúnem, seu objetivo é, em primeiro lugar, a instrução, a propaganda, etc. Mas, ao mesmo tempo, uma nova necessidade desperta neles, a de ter comércio com seus semelhantes, e, o que havia parecido um meio, torna-se um objetivo. Os resultados brilhantes que esse movimento prático deu podem ser observados nas assembleias dos operários socialistas franceses. Fumar, beber, comer, etc., não são mais os meios para estarem reunidos, não são mais laços. A comunhão, em seu círculo, a conversação, cujo objetivo não é ainda senão comunhão, lhes bastam. Em seus lábios, a fraternidade humana não é uma frase, mas uma verdade, e, dos rostos que o trabalho tornou rudes, emana toda a beleza do humano. (Marx, 1946, p. 282).

Os leitores atentos hão de observar que, nos capítulos que compõem o presente livro, o enfrentamento do tema geral que os une se faz por essa via da segura superação dos limites do positivismo e do idealismo. Esta coletânea, inegavelmente, coloca e avança para o entendimento de questões da maior relevância. O leitor que nela mergulhar, vai emergir, à frente, com uma consciência mais aguda das condições de produção da subjetividade no mundo contemporâneo. Por todas essas razões, entendo-a mais do que recomendável.

Seus autores, com evidente competência, transitam por

vários aspectos da questão em tela, articulando-a, ainda, com os problemas mais significativos da educação. O capítulo que abre a coletânea, “Quem não conheceu as obras dos Antigos tem vivido sem conhecer a beleza”: Hegel e a proposta neo-humanista de educação, de Marcos Fábio A. Nicolau, analisa a incursão de Hegel pelo debate pedagógico, destacando a presença da pedagogia no seu sistema, inobstante a inexistência de obra específica sobre o tema, em seu sistema da ciência e avança proposta de se atentar para a fecundidade de Hegel no enfrentamento contemporâneo da crise da educação. Eduardo F. Chagas desenvolve, no capítulo “O Pensamento de Marx sobre a Subjetividade”, uma instigante reflexão sobre a relação entre subjetividade e objetividade, em Marx, a partir de um cotejamento de sua crítica à filosofia especulativa de Hegel e ao empirismo da economia clássica. O terceiro capítulo, de autoria de Vilson Aparecido da Mata, sob o título “Trabalho, Subjetividade e Educação em Marx”, apresenta uma rigorosa imersão no pensamento marxista, em busca de sua concepção de subjetividade. A partir da refutação das críticas que apontariam o determinismo econômico e a submissão da subjetividade à atividade econômica na obra de Marx, aponta a indispensável apreensão 11

da totalidade para adequado tratamento da questão da subjetividade no referido pensador. O capítulo que se segue, intitulado “A lógica da exceção na política de Walter Benjamin”, da lavra de Tereza de Castro Callado, enfrenta a difícil questão da moralidade e da legalidade, a partir do conceito de estado de exceção de Walter Benjamin. Raquel Célia Silva de Vasconcelos lança-se a uma instigante articulação entre as categorias de ritual, em Peter McLaren, e mimese em Walter Benjamin, no quinto capítulo deste livro, sob o título “Mimese e Ritual: performance de um corpo e a linguagem simbólica na re-criação cultural”. Apresenta-nos fundamentação para a ideia de que o corpo é expressão de resistência e de renúncia às práticas repressoras em curso na sociedade. Slavoj Zizek é o autor que Hildemar Luiz Rech toma como objeto de seu estudo, no capítulo sexto - “Real, Aparelho, Fantasia, Interpretação e Objetos Sublimes da Ideologia, conforme Slavoj Zizek”. A ideologia, a política e a educação na perspectiva zizekiana, são temas de seu qualificado texto. O sétimo capítulo – “Os Livros e os Brinquedos no Pensamento de Walter Benjamin” - mais uma vez retoma o pensamento de Walter Benjamin, pela pena de Conceição Ribeiro Guimarães, que analisa o tratamento que o pensador frankfurtiano concede aos livros e brinquedos. “Reflexões sobre a Sociedade Tecnicamente Administrada (Capitalista) e suas Correlações com a Educação em Adorno” compõe o capítulo assinado por Pedro Rogério Sousa da Silva, que analisa criticamente as relações entre a racionalidade técnica e a educação, sob a perspectiva teórica de Theodor Adorno. As teorizações frankfurtianas de Adorno são novamente objeto de reflexão no capítulo de autoria de Maria Socorro Gomes: Educação e Subjetividade em Theodor W. Adorno”. A autora investiga, com bastante propriedade, a inserção de Adorno na obra freudiana, argumentando sobre sua importância na formulação de propostas educacionais que se proponham levar em consideração a subjetividade. Homero Luís Alves de Lima assina o capítulo “Metafísica da Vontade de Poder e Maquinação em Martin Heidegger”, em que expõe uma instigante confrontação entre Heidegger e Nietzsche, em torno do pensamento calculador. “Formação Discursiva da Plenitude em Educação: desconstruindo a sagrada condição do homem” foi o desafiador título que Karina Mirian da Cruz Valença Alves 12

atribuiu ao capítulo de sua lavra. Nele, a autora analisa a constituição de uma nova formação discursiva, por ela denominada de “formação discursiva da plenitude”, calcada em um "reencantamento" do mundo que se caracteriza pela religação homemnatureza e se institui como fundamento para a ação no presente. Sylvio Gadelha assina o capítulo “Empreendedorismo, Concorrência e Educação: faces da governamentalidade neoliberal e da biopolítica contemporânea”, em que aproveita um tema bastante atual na economia e, inclusive, na educação - o empreendedorismo – confrontando-o com o caráter concorrencial das relações econômicas, em sua manifestação nos debates educacionais. Sob o título “Educação Profissional: a normalização biopolítica da subjetividade produtiva”, Samuel Brasileiro Filho se debruça sobre o contexto histórico da transição da sociedade industrial para a sociedade pós-industrial para, com apoio em Marx e Foucault, realizar um estudo sobre as condições de existência da subjetividade produtiva e suas implicações com a relação trabalho e a educação. O conjunto dos artigos, unificados pelo foco na subjetividade e educação, descortina um generoso veio de relevantes questões a serem enfrentadas pelos teóricos e educadores brasileiros, ao mesmo tempo que indica um itinerário de abordagens e, a leitura o confirmará, apresenta-nos um trajeto extremamente fecundo já realizado pelos autores, aos quais não falta conhecimento e sobejam qualidades críticas. Assim, só posso concluir apostando na certeza de que os leitores encontrarão, na sua leitura, a mesma satisfação que tive em aprender com tão consistentes pesquisadores.

Curitiba, março de 2012.

Referências MARX, Karl.Trechos Escolhidos sobre Filosofia. Rio de Janeiro: Calvino, 1946. __________. O Capital, Livro I. São Paulo: DIFEL, 1982. __________. O Capital, Livro 2, vol. 3. São Paulo: DIFEL, 1983. __________. Teorias da mais valia. O Capital, Livro 4, Volume 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987. __________. Manuscritos Económico-Filosóficos. Lisboa/Portugal: Edições 70,1989. __________e ENGELS, F. La Ideologia Alemana. Montevideo: Ediciones Pueblos Unidos/ Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1972. 13

“Quem não conheceu as obras dos Antigos tem vivido sem conhecer a beleza”: Hegel e a proposta neo-humanista de educação.

Marcos Fábio A. Nicolau Ciente da falta de um tratamento específico do problema pedagógico no sistema hegeliano, busco encontrar nos Discursos (1809-1815) a apreensão de um modelo educacional cujo autor crê ser apto a formar o homem. Para tal, o filósofo assumirá a pedagogia neo-humanista proposta por I. Niethammer, sob a qual estenderá suas reflexões quanto a Bildung (formação cultural), elaboradas na, então recentemente publicada, Fenomenologia do Espírito (1807). Porém, para compreender sua perspectiva sobre a educação, deve-se antes apreender o cenário vivenciado por Hegel neste período, pois, cabe salientar, sua vinda a Nüremberg e o exercer de tais funções se devem ao convite de seu amigo e protetor I. Niethammer, que já fora o responsável por sua temporada em Bamberg (1807-1808), como redator do Bamberger Zeitung, e que, ao assumir o posto de Conselheiro Escolar Central para a confissão protestante, convida Hegel para exercer as funções de professor e diretor do Ginásio de Nüremberg. Em discurso proferido em 1809, por ocasião do fim de seu primeiro ano à frente do Ginásio de Nüremberg, Hegel afirmara que o bom funcionamento dos povos pressuporia dois ramos primordiais: 1. uma boa administração da justiça e, 2. bons centros de ensino, pois, segundo Hegel, “em nenhum outro âmbito os indivíduos percebem e sentem os efeitos de forma tão rápida e imediata” (HEGEL, 2000, p. 73). Se nos lembrarmos do que o filósofo diz em suas Lições de Filosofia do Direito, em nota ao §153, compreenderemos bem o que tem mente: Diante da pergunta de um pai sobre a melhor maneira de educar eticamente seu filho, um pitagórico deu a resposta (que é também colocada na boca de outros): quando tu fazes dele um cidadão de um Estado de boas leis. (HEGEL, 2010, p. 172)

A proposta hegeliana de uma educação para a cidadania perpassa toda sua obra, e, diferentemente da proposta original de Rousseau, no Emílio, Hegel vê na educação o



Universidade Federal do Ceará, Fortaleza. Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia do ICA/UFC. Atualmente é Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da FACED/UFC. E-mail: [email protected].

14

objetivo de superar o estado de natureza. Só a formação e a educação fazem do homem o que deve ser: um ser que se realiza na ruptura com o natural. Em seus discursos como reitor do Ginásio, Hegel nunca deixou de salientar a função social da educação, nem a participação do Estado na mesma. Em seus discursos Hegel tinha a dupla intenção de expor, aos representantes do Estado e aos pais e responsáveis, o que fora o ano escolar, bem como apresentar seu parecer sobre a questão educacional. Para isso, se utiliza dos fatos, comprovando com os resultados suas perspectivas. Neste discurso proferido em 1809, aproveitando o fato do recém-criado Ginásio de Nüremberg ter completado seu primeiro ciclo escolar, Hegel analisa como se dá o processo educacional, em seus avanços e dificuldades, pois “dado que a coisa mesma acaba de surgir pela primeira vez, sua substância constitui, todavia, o objeto da curiosidade e da reflexão pensante” (HEGEL, 2000, p. 74). Ao defrontar o impacto social que dito centro de estudos causou sobre a sociedade nüremberguiana, o filósofo busca articular em suas idéias o projeto proposto a tal instituição, apresentando-o e justificando-o. A defesa hegeliana dos estudos clássicos é um dos principais tópicos do discurso de 1809:

O espírito e a meta de nosso Centro é preparação para o estudo culto, e certamente uma preparação que está cimentada sobre os gregos e os romanos. Desde alguns milênios este tem sido o solo sobre o qual se assentou toda cultura, desde o que tem germinado e com o que tem permanecido em conexão permanente. [...] toda arte e toda ciência tem brotado daquele solo. (HEGEL, 2000, p. 74-75)

Na verdade, Hegel faz disso mais que um desejo, pois para ele esse é um elemento necessário a um processo de formação, sendo sua afirmação uma verdadeira constatação, pois “todo novo impulso e consolidação da ciência e da cultura tem aberto seu caminho mediante o retorno à Antiguidade.” (HEGEL, 2000, p. 75). Convicto disto, Hegel irá criticar aqueles que propõe rechaçar e eliminar os estudos clássicos, alegando certa insuficiência e desvantagens dos princípios e instituições antigas, louvando o Governo Prussiano por sua “sabedoria” que, “elevando-se por sobre este recurso aparentemente fácil, responde de forma verdadeira às necessidades da época ao pôr o antigo em uma nova relação com o conjunto e, desta forma, conservar o essencial do mesmo, que por sua vez o muda e o renova” (HEGEL, 2000, p. 75).

15

A defesa hegeliana do estudo de línguas clássicas, grego e latim, vêm ao encontro deste ideal. Dessa forma, reclama o fato de o latim ser tido como um estudo “extra”, ministrado apenas em centros expressamente para isso, e não como parte mais essencial do estudo culto, pois para Hegel o estudo do latim era o “único meio de formação superior oferecido a quem não queria permanecer no ensino geral, totalmente elementar” (Ibidem). Segundo Hegel, o ensino do latim era primordial a quem quisesse obter os conhecimentos que são “úteis para vida civil, ou que são válidos em e para si mesmo” (Ibidem); ora, as línguas clássicas não constavam como um “meio formativo” no tempo de Hegel. Porém, neste período defendia-se que seria o trato da própria língua nacional que deveria ser cultivado, em lugar do latim, pois “se fez valer o sentimento de que não pode considerar-se como formado um povo que não pode expressar em sua própria língua todos os tesouros da ciência e mover-se livremente nela com qualquer conteúdo.” (Ibidem). Ora, tal sentença é demonstrada por Hegel em seu próprio sistema (Cf. HEGEL, 1993), mas reconhece que existem certos termos científicos que somente são compreensíveis e legitimados em uma determinada língua e tradição – o que será percebido em trabalhos como os de Scheleimacher. A riqueza do latim e do grego, bem como de todas as línguas antigas, somente pode ser descoberto se estudado e lido no original, o que põe o problema da tradução no “olho do furacão”: Esta intimidade, com a qual nos pertence a língua própria, está ausente daqueles conhecimentos que só possuímos em uma língua estranha; ditos conhecimentos se encontram separados de nós mediante um muro divisório que não lhes permite ser verdadeiramente familiares ao espírito. (HEGEL, 2000, p. 75-76)

Logo após essa reflexão, Hegel voltará a louvar o governo, responsável, na sua visão, pelo “aperfeiçoamento das escolas alemãs”, posto cumprir aquilo que entende como sendo a função da escola: 1. Proporcionar a todos os meios para aprender o que lhe é essencial como homens e o que lhes é útil para sua condição social (Cf. HEGEL, 2000, p. 76), ou seja, o ideal de uma educação para todos, equitativa. Uma verdadeira justiça como equidade na educação, para usar a expressão de Rawls. A escola, assim, assume a função social, servindo àqueles que até agora se haviam visto privados de algo melhor, lhes acaba garantido dessa forma; e aqueles que para conseguir algo melhor que o insuficiente ensino geral somente podiam tomar mão do mencionado meio

16

formativo, estes se lhes tem feito menos necessário podendo ser substituído mediante conhecimentos e habilidades mais adequados (HEGEL, 2000, p. 76).

Dessa forma a escola pode ser considerada como responsável pelo progresso social e, como dirá em seu discurso proferido em 1811, pela qualificação dos funcionários públicos. 2. Outra função escolar é o ensino das “ciências e a consecução de habilidades e práticas mais elevadas”, o que será efetivado pelo Real Institüt. 3. Por fim, a conservação do “estudo das línguas antigas”. Hegel defende uma liberdade intelectual no Ginásio, dando possibilidade para os diversos campos do saber desenvolverem suas pesquisas: A verdadeira liberdade e o vigor característicos de uma organização consiste em que os diferentes momentos contidos nela aprofundem-se em si mesmos e se constituam como sistemas completos, nos quais realizem conjuntamente sua tarefa e venham desenvolvê-la sem inveja nem temor, e em que todos novamente sejam não mais que partes de um grande conjunto. (HEGEL, 2000, p. 77)

A harmonia proposta por Hegel aos setores, ou, como ele denomina, momentos, nos dá uma boa visão do Hegel reitor/administrador, além de evidenciar sua leitura dialética da realidade. A realidade tida como o âmbito da contradição, tem nas instituições e seus setores as partes constituintes de seu todo, no qual se encontra apreendida a sociedade civil. No âmbito escolar, a liberdade de pensamento surge como condição sino qua non da Bildung, por isso a ênfase hegeliana na autonomia das ciências, ou momentos, vislumbradas nesse processo. Porém, tal processo necessita de bases concretas em seu erigir-se, fundamentação que Hegel encontrará no domínio das línguas clássicas: o grego e, principalmente, o latim. Já respondendo à possível contra-argumentação, o filósofo concede toda importância à língua materna, expressando-se nos seguintes termos: Parece uma exigência justa a que a cultura, a arte e a ciência de um povo repousem sobre seus próprios pés. Não temos de pensar a respeito de nosso Iluminismo e dos progressos de todas as artes e as ciências que tem vindo substituir as formas infantis dos gregos e dos romanos, que se tem liberado de seus andadores podendo repousar sobre um fundamento e solo próprios? As obras dos antigos poderiam conservar em todo momento o valor que lhes atribui, maior ou menor, porém deveriam acabar convertidas em uma série de lembranças, de curiosidades eruditas de caráter ocioso, dentro do âmbito do meramente histórico, que caberia aceitar ou não, porém que não poderiam

17

constituir sem mais o fundamento e o começo de nossa formação espiritual. (HEGEL, 2000, p. 78)

Em seguida, porém, explicita a defesa das línguas clássicas: Porém, se aceitamos como válido que em geral se tem de partir do excelente, então a literatura grega, de um modo especial, e, depois também a latina, hão de constituir, e permanecer como tais, os fundamentos dos estudos superiores. A perfeição e a excelência dessas obras deve constituir o banho espiritual, o batismo profano, que conceda a alma sua primeira e imborrável tonalidade e cor a respeito do gosto e da ciência. E para esta iniciação não é suficiente um conhecimento geral de caráter externo, dos Antigos, senão que devemos nos entregar a eles de corpo e de alma para aspirar sua atmosfera, suas representações, seus costumes, inclusive, se se quer, seus erros e prejuízos, para familiarizarmo-nos com este mundo – o mais belo que existiu. Assim como o primeiro paraíso foi o paraíso da natureza humana, assim este é o mais elevado, o segundo paraíso, o do espírito humano que se mostra em sua naturalidade, liberdade, profundidade e serenidade mais belas, tal como a noiva sai de seu quarto. A primeira magnificência selvagem no Oriente acaba circunscrita pelo esplendor da forma e atemperada em ordem à beleza; sua profundidade já não reside na confusão, na aflição ou na arrogância, senão que se manifesta em uma claridade imperturbada; sua serenidade não é um jogo infantil, senão que se difunde sobre a melancolia que conhece a dureza do destino, porém sem ser desviada por ela da liberdade sobre si e da medida. Creio que não exagero quando digo que quem não conheceu as obras dos Antigos tem vivido sem conhecer a beleza. (HEGEL, 2000, p. 78)

Vê-se nesse relato a paixão hegeliana pela Antiguidade e a importância que esse período possui em seu pensamento, sendo imprescindível tal contato para a formação da bela alma. Porém, Hegel não deixa de considerar tais estudos como uma propedêutica à ciência, já que sempre se deve começar pelo mais excelente. Hegel ressalta a importância do estudo das línguas clássicas mostrando a insuficiência que a tradução representa: A língua é o elemento musical, o elemento da intimidade, que desaparece na tradução – o fino aroma através do qual a simpatia da alma se oferece ao gozo, porém sem o que uma obra dos Antigos só tem um sabor semelhante ao de um vinho de Rhin que se tenha evaporado. (HEGEL, 2000, p. 80)

Para Hegel o estudo dos Antigos é uma imposição do destino – o Absoluto assim fora desvelado na cultura –, e se alguém reclamar dos esforços que se deve dispensar a tal estudo, o que o tornaria desencorajante, que este cobre contas do próprio destino que não legou tal saber universal em nossa língua materna. (Cf. HEGEL, 2000, p. 80). Hegel expõe no Discurso de 1809, quase que exclusivamente, a estrutura basilar a partir da qual erige o currículo proposto no Ginásio, essa é a função que o estudo dos antigos assume em tal projeto pedagógico. 18

Para Hegel, a Bildung, é o resultado do processo de desenvolvimento do espírito: o Espírito Absoluto, ao longo do processo histórico, compreende a si mesmo e a natureza, tornando-se livre, ou seja, autoconsciente.2 Do mesmo modo, o homem, que é espírito e matéria, torna-se espírito completo – livre – mediado por uma teoria da educação (Erziehung), a qual tem por objetivo a Bildung. Assim, para Hegel, o homem culto é aquele que sabe conferir a tudo o selo da universalidade: “um homem cultivado em geral não tem limitado de fato sua natureza a algo particular senão que a tem capacitado para tudo” (HEGEL, 2000, p. 89). Não é, pois, o que se conhece, mas como se conhece e, assim, a Bildung dá a forma do pensamento. E essa é a forma por meio da qual o espírito torna-se consciente de si mesmo ao constantemente superar o imediato estado natural, corporificado no objeto que se lhe antepõe e no qual se aliena (Cf. HEGEL, 2000, p. 81). Sendo assim, esse processo toma, então, a subjetividade imediata – um estado natural sem mediação, indeterminado em si mesmo, mera singularidade, ou individualidade – para, do exterior, conduzi-la à subjetividade mediatada – isto é, ao homem educado ou cidadão –, determinada pela racionalidade que se manifesta no Estado (Staat)3, ou naquilo que Hegel denominou o Espírito de um Povo (Volksgeist).4 Nesse sentido, formação é um processo em que há a presença constante de uma angústia de aperfeiçoamento e mudança – pois é inconclusiva. Mas é característico do homem culto o fato de estar em um processo reflexivo, imerso em um conhecimento voltado para si mesmo e que não se deixa instrumentalizar. Por isso o processo educativo proposto por Hegel em sua compreensão do problema pedagógico somente se pode dar na experiência vivida pelos indivíduos, no espírito do povo. Não sendo esse processo de formação “um tranqüilo prolongar de uma corrente” (HEGEL, 2000, p. 80), uma vez que o verdadeiro educador do povo são suas 2

Como bem afirma na Fenomenologia do Espírito: “A tarefa de conduzir o indivíduo, desde seu estado inculto até ao saber, devia ser entendida em seu sentido universal, e tinha de considerar o indivíduo universal, o espírito consciente-de-si na sua formação cultural.” (HEGEL, 2001, p. 35). 3 Cf. HEGEL, 2010, p. 212-272, § 257-286. O estado hegeliano é o momento em que o indivíduo supera o quadro constituído pelo egoísmo generalizado para se elevar à universalidade da cidadania. Enquanto a família constitui uma comunidade que amalgama naturalmente as pessoas que a integram, a sociedade civil-burguesa atomiza os indivíduos, separa-os, pulveriza-os, coloca-os uns contra os outros, torna-os autônomos, mas danifica a dimensão comunitária, própria do humano. É no Estado como comum-unidade que os indivíduos se reintegram, voluntariamente, numa opção madura e refletida, como cidadãos: a liberdade, guiada pela razão, os leva a reconhecer e assumir essa necessidade. Cf. KONDER, 1991, p. 6263. Por isso, nas palavras de Hegel, “O Estado é a efetividade da idéia ética”. (HEGEL, 2010, p. 229, § 257) 4 Ao analisar a Bildung hegeliana, Gadamer afirma que: “A formação como elevação à universalidade épois uma tarefa humana. Exige um sacrifício do que é particular em favor do universal. O sacrifício do particular, porém, significa negativamente: inibição da cobiça e, com isso, liberdade de seu objeto (Gegenstand) e liberdade para sua objetividade”. (GADAMER, 1999, p. 52).

19

experiências, pelas quais o Espírito se manifesta na história, o processo educativo em seus âmbitos escolar e familiar torna-se, necessariamente, processo formal e complementar. Assim, reconhecer que a criança e o jovem são subjetividades imediatas que precisam ser conformadas à eticidade própria do espírito do povo, se configura, na visão de Hegel, como uma proposta reconhecidamente fundamental ao processo educacional. Se a educação escolar só pode ser inicialmente disciplina formal, uma vez que deve ajustar, de maneira externa, cada singularidade à eticidade do povo, devemos reconhecer a experiência histórica vivenciada por um determinado povo em suas tradições, em sua cultura, como um dos principais elementos do processo educacional. Isso é, em uma perspectiva hegeliana, uma necessidade do humano. Hegel defende a possibilidade de a racionalidade guiar a consciência crítica para que as situações de fragmentação sejam desveladas e, assim, pela práxis transformadora o homem possa formar-se, construir o poder de pensar, agir e falar autonomamente (autoconsciência). A concepção de dever para consigo mesmo (Cf. HEGEL, 1989, p. 310-316), fundada por Kant, de um sujeito ativo, que assume uma reivindicação de responsabilidade total mas acrescenta o elemento dialógico, intersubjetivo, como constitutivo, também será contemplada na proposta hegeliana (Cf. GADAMER, 1999, p. 48-49). Sendo a maioria das propostas pedagógicas nos séculos XVIII-XIX uma espécie de ressonância do projeto kantiano do Sapere aude!5 Pensa-se um sujeito com a liberdade e poder de fazer frente às fragmentações impostas à formação do indivíduo, e capaz de transformar situações de alienação, opressão e ignorância. Em tal proposta a dignidade humana é constitutiva, o homem possui valor intrínseco, é fim em si mesmo (Cf. KANT, 1974, p. 228-229). As reflexões filosófico-educacionais hegelianas se voltam criticamente sobre os modelos sociais e educacionais promotores de formação fragmentária, refletindo sobre os caminhos para a Bildung. Para Hegel a pedagogia é a arte de fazer éticos os homens, levando-os a romper com o natural, transformando essa sua primeira natureza em uma segunda natureza, de caráter espiritual – o que marca sua crítica a sistemas pedagógicos como o de Rousseau, formas de “educação negativa”, pois em Hegel o natural é transcender esse estado de natureza. Nesse sentido, encontramos em Hegel uma educação voltada para um processo de auto-conscientização, na qual o homem possa fazer-se a partir de um projeto

5

“Ouse saber!”, famosa expressão latina utilizada por Kant para expressar o ideal da Aufklärung.

20

universal, marcado pelo retorno a si mesmo do Espírito Absoluto, que é proposto de forma racional e livre. O ser humano é inconcluso, e enquanto inconcluso precisa humanizar-se, o que abre a possibilidade de ser livre, de construir-se a si mesmo, mas, ao mesmo tempo, o torna um ser responsável por si mesmo, pois nele o projeto hegeliano de desvelamento do absoluto se efetiva. Por isso, uma educação que busca promover a autoformação do educando precisa educar para a auto-responsabilidade. Nas palavras de Hegel: Porém, para que o ensinamento oferecido na escola produza seus frutos naqueles que estudam, para que eles realizem realmente progressos mediante o mesmo, sua própria aplicação pessoal resulta tão necessária como o próprio ensinamento [...]. Pois o aprender, enquanto mero receber e translado da memória, constitui um aspecto sumamente incompleto do ensino (HEGEL, 2000, p. 90).

Ao falarmos em educação para o exercício racional da formação humana, não entendemos racionalidade como racionalidade instrumental6, mas a pensamos, juntamente Hegel, enquanto totalidade, como um poder de criticidade e esclarecimento. Como a razão em Hegel é absoluta e histórica, as lições das experiências humanas devem estar aliadas à racionalidade. A vivência das tendências sensíveis, desde que concordem com a razão, pode representar experiências de formação. Tal perspectiva é assumida no gênero literário criado por J. W. von Goethe (1749-1832), o Bildungsroman, romance de formação, onde é colocada no centro a questão da formação do indivíduo, o desenvolvimento de suas potencialidades sob condições históricas concretas. Desse gênero surge como principal referência Os anos de

6

Segundo Wellmer: “Uma forma de racionalidade que caracterizam [...] pela confluência de racionalidade formal e racionalidade instrumental. A racionalidade formal se exterioriza no impulso de produzir sistemas, unitários e sem contradições, de ação, explicação e conhecimento. Segundo Adorno e Horkheimer, essa força da razão é capaz de instaurar unidade e consistência, ao que se refere o conceito de racionalidade formal, surge das condições básicas de todo pensamento conceitual: na medida em que o pensamento, o uso da linguagem, estão vinculados à lei de não contradição – considerada quase como núcleo de racionalidade necessariamente operante em todas as culturas enquanto formas de interação simbólica mediada –, já se instala em todas as realizações cognoscitivas e modos de operar dos homens, desde seu começo, essa pressão que os força a estabelecer consistência e ordem sistemática no saber e no fazer. A razão, encadeada à lei de não contradição, já está encarada desde sempre para a racionalização formal e a sistematização do saber e do fazer. «Pensar, en el sentido de la ilustración, es producir orden científico y unitario, y deducir conocimientos factuales a partir de principios, ya se interpreten éstos como axiomas arbitrariamente establecidos, ideas innatas, o abstracciones de grado superior... Las leyes lógicas instauran las relaciones más generales en el seno del orden, y lo definen. La unidad se halla en la unanimidad. El principio de contradicción es el sistema in nuce... La razón nada aporta sino la idea de unidad sistemática, el elemento formal de un sólido sistema conceptual»''. La difícil tesis de Adorno y Horkheimer es entonces que racionalidad formal, en último término, significa lo mismo que racionalidad instrumental, esto es, una racionalidad «cosificadora» que apunta al control y manipulación de procesos sociales y naturales. (WELLMER, 1993, p. 139-140)

21

aprendizagem de Wilhelm Meister (1795-1796), que traz no capítulo VI as “Confissões de uma bela alma” (Cf. GOETHE, 2006, p. 347-404), capítulo possuidor de um caráter largamente autônomo, um verdadeiro processo de formação, que expressa bem a compreensão da Bildung nesse espaço intelectual que é a Alemanha nos tempo de Hegel. Por isso, a educação para a racionalidade não pode suprimir as experiências sensíveis. O que propomos a partir de Hegel, nesse sentido, é a formação para a autodeterminação inteligente da vontade, ou seja, a conformação da vontade particular para com a vontade universal, o que envolve guiar-se por princípios racionais e pelas tendências que concordam com a razão, a fim de que a vontade não permaneça determinada por impulsos ou por coações externas. Por isso o processo educativo é a tomada de consciência da necessidade de limitar meus impulsos para me realizar como ser ético: Já a formação geral se encontra, enquanto sua forma, em conexão mais estreita com a formação moral; pois não devemos limitar esta a alguns princípios e máximas, a uma honra geral, uma benevolência, e uma disposição honesta, senão que temos que pensar que só o homem formado em geral pode ser também um homem formado eticamente. (HEGEL, 2000, p. 94)

A educação promotora da formação cultural é a que promove a formação da totalidade do humano, o que além da capacitação técnico-científica, envolve formação política, ética e estética (Cf. HEGEL, 2000, p. 89-90). A compreensão de Hegel de que o espírito universal requer que cada indivíduo se ultrapasse enquanto vivente, enquanto desejo impulsionado pela matéria que ele também é, para vir a ser espírito completo, universal, que sabe quais são as suas necessidades e, por isso, sabe conter-se, limitar-se, é a compreensão do próprio processo educativo. A Bildung não é, de fato, algo que ocorre apenas nas escolas, uma vez que é a expressão necessária da eticidade do espírito do povo, pois O trabalho de formação do indivíduo não é um assunto exclusivamente pedagógico, mas também filosófico: trata-se de educá-lo para a universalidade que o espírito engendrou no movimento de formação da perfectibilidade do gênero humano. Nesse processo formador, cada indivíduo deve passar por diversas etapas que modelaram o homem segundo um plano de realização histórica do espírito. (RAMOS, 2003, p. 43-44)

22

Assim, o papel da escola é o de manter e desenvolver a eticidade, contribuindo com a formação do indivíduo em conjunto com a sociedade e a família. Ora, essa necessidade hoje suscitada pela escola da participação da família e da sociedade civil na formação do aluno nos leva a compreensão hegeliana da necessidade da idéia do Estado (Cf. HEGEL, 2010, p. 229, §257). Para Hegel, o homem educado efetiva a universalidade que se objetiva completamente no Estado composto por homens livres – conscientes de suas necessidades, e, portanto, capazes de se auto-limitar, e aqui entra a relevância do problema pedagógico.7 Mas, como supracitado, somente no Estado o homem tem existência racional. Toda educação procura fazer com que o indivíduo não continue sendo algo subjetivo, mas que se faça objetivo no Estado. A verdade é a unidade da vontade geral e da vontade subjetiva; e o universal está nas leis do Estado, nas determinações universais e racionais. Por isso, aplicar tal perspectiva no processo escolar, surge como o principal desafio que Hegel enfrentara em Nüremberg: a partir do processo de formação educacional e cultural, interiorizar o universal após a recordação da trajetória da sua constituição. O indivíduo precisa pedagogicamente ser preparado para fazer seu o saber e elevar-se à universalidade da cultura, paradigma da condição humana. Sendo a vida moral a essência do Estado, e este a unificação da vontade universal com a subjetiva, tem-se que a vontade é uma atividade e o princípio pelo qual se estabelece a vida social. Daí o Estado ser indivíduo espiritual, o qual, como um todo orgânico, não é apenas a sociedade política. Mas note-se que a vida do Estado implica a necessidade da cultura formal e, por conseguinte, do nascimento das ciências, assim como de uma poesia e uma arte culta em geral. Estas atividades humanas formais necessitam ser cultivadas nas escolas, o mesmo se dando com a filosofia, que é o pensamento do pensamento. Uma vez que o pensamento universal é destruidor, mantendo apenas o princípio do espírito – a liberdade –, tem-se que a tarefa educativa é a que destrói a subjetividade imediata para que a universalidade do pensar siga seu curso – alienação determinada pelo espírito do povo. Mas esse não é um percurso infinito, pois tem um fim, que é o voltar-se para si mesmo. Daí a tese hegeliana de que todo indivíduo necessita percorrer em sua formação distintas esferas, as quais fundamentam seu conceito de espírito e se formam e

7

Ramos chamará a atenção para esse aspecto da proposta hegeliana, afirmando que “o hegelianismo legitima uma ação pedagógica conservadora marcada pela disciplina e pela autoridade”. (RAMOS, 2003, p. 41-42).

23

desenvolvem cada uma por si, independentemente, em uma determinada época. A educação escolar é, então, a forma da cultura (Kultur) e o homem educado-formado é o que vive a universalidade da cultura. O grande desafio da educação – e, ao mesmo tempo, o seu enigmático paradoxo –, consiste em conciliar dois pólos aparentemente irreconciliáveis: a liberdade e a autoridade. O espírito juvenil irrequieto, que se encontra em nossas escolas, deve ser coibido, na visão de Hegel, por um ardil pedagógico, conduzido através dos estudos literários clássicos à compressão da eticidade que tem seus princípios no espírito do povo grego e romano (cf. HEGEL, 2000, p. 74). O que suscita a seguinte questão: até que ponto nosso sistema educacional conduz seus alunos a esse contato com as fontes de nossa civilização ocidental? Buscando dar ao processo da Bildung uma base sólida, Hegel ratifica a ação do governo que se predispõe, quanto à educação, em responder, como fora mencionado acima, da forma mais verdadeira às necessidades da época, pondo o antigo em uma nova relação com o conjunto (Cf. HEGEL, 2000, p. 75). Tal reflexão nos impõe pensar a proposta hegeliana como uma relevante crítica a nosso sistema educacional, ainda que não seja possível realizá-la aqui, pelas limitações que nos impõe a estrutura de um capítulo. No entanto, fica aqui registrada a necessidade de compreender, através dos conceitos de processo educativo (Erziehung) e formação cultural (Bildung) de Hegel, quais os conteúdos de uma eficaz prática docente, que deve ser problematizada antes da mera aplicação de métodos pedagógicos. Embora esteja referindo-se estritamente ao ensino de filosofia, a crítica de Hegel encontrada em um parecer sobre O Ensino de Filosofia nos Ginásios, de 1812, pode muito bem ser estendido à própria ação pedagógica, por isso concluímos com essa sua denúncia, que marca bem sua posição quanto ao problema pedagógico: Segundo a mania moderna, sobretudo da pedagogia, não importa tanto instruir-se no conteúdo da filosofia quanto aprender a filosofar sem conteúdo; isto significa mais ou menos: é preciso viajar sempre, sem chegar a conhecer as cidades, os rios, os países, os homens, etc. (HEGEL, 1989, p. 371)

Referências HEGEL, G. W. F. Escritos Pedagógicos. Trad. Arsenio Ginzo. México/Madrid/Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2000. 24

_____________. Propedêutica Filosófica. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1989. _____________. Fenomenologia do Espírito. 2 vol. Tradução de Paulo Menezes com colaboração de Karl-Heinz Efken. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001. _____________. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em Compêndio. Tradução, notas, glossário e bibliografia de Paulo Meneses et alli. São Paulo: Loyola; São Leopoldo: UNISINOS, 2010. GADAMER, H.-G. Verdade e Método – traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3ª ed. Tradução de Flavio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1999. GINZO, A. Hegel y el problema de la educación. In: HEGEL, G. W. F. Escritos Pedagógicos. Trad. Arsenio Ginzo. México/Madrid/Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2000. GOETHE, J. W. Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister. Tradução de Nicolino Simone Neto. São Paulo: Editora 34, 2006. KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. In: ________. Crítica da Razão Pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1974 (coleção Os Pensadores). KONDER, L. Hegel – A Razão Quase Enlouquecida. Rio de Janeiro: Campus, 1991. RAMOS, C. A. A Pedagogia de Hegel e a ação formadora da alteridade cultural. In: Revista de Filosofia, Curitiba, v.15 n.16, p. 41-55, jan./jun. 2003. SUARÉZ, R. Nota sobre o Conceito de Bildung (Formação Cultural). In: KRITERION, Belo Horizonte, nº 112, Dez/2005, p. 191-198. WEBER, J. F. Autoridade, singularidade e criação: sobre o problema da formação (Bildung) em Sobre o Futuro de nossos Estabelecimentos de Ensino, de Nietzsche. In: Educ. Soc., Campinas, vol. 29, n. 103, p. 515-532, maio/agosto 2008.

25

O Pensamento de Marx Sobre a Subjetividade

Eduardo F. Chagas*

A questão da subjetividade no pensamento de Marx permanece, ainda hoje, amplamente inexplorada, sendo, inclusive, tratada, por determinadas correntes no interior do pensamento marxista, de forma preconceituosa, como uma questão secundária a ser desconsiderada.8 Alguns autores apontaram-na como uma deficiência, tendo em vista que, para estes, há na obra de Marx um forte traço economicista e determinista, à medida que ele compreende os mecanismos internos, as atividades da consciência, como um fenômeno secundário, mero reflexo das determinações materiais, das relações de produção, inviabilizando, assim, uma reflexão rica e complexa sobre a subjetividade humana. Tais posições se baseiam, de forma apressada, em algumas passagens na obra de Marx, particularmente em A Ideologia Alemã (Die deutsche Ideologie) (1845-1846), em que ele afirma que é a vida que determina a consciência, e não o contrário, e no Prefácio (Vorwort) à obra Para a Crítica da Economia Política (Contribuição) (Zur Kritik der politischen Ökonomie) (1859), em que ele reafirma tal posição, dizendo que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência.”9 Ser um ser social quer dizer aqui não mais vida em geral, abstrata, mas uma qualidade de vida, a vida social humana. E o ser social, que determina a consciência, está, por sua vez, condicionado pelo modo de produção, pela vida material. Isto foi interpretado por aquelas “posições críticas” como uma debilidade no pensamento de Marx, levando a um rude objetivismo, a um mecanicismo entre a esfera da produção da existência (determinante) e a esfera da subjetividade, das ideias e da consciência (determinada), sem uma ideia de unidade ou de práxis como mediação entre o material (o econômico) e o espiritual, entre a base e a superestrutura. Na verdade, essa crítica feita a Marx é, ao meu ver, insatisfatória, pois ela se baseia em um suposto objetivismo marxiano ou em conceitos metafóricos,

*

Doutor em Filosofia; professor da graduação e da pós-graduação do Curso de Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFCE) e colaborador do programa de pós-graduação da Faculdade de Educação (FACED) da UFC. 8 Cf. SILVEIRA, Maria Lídia Souza da. Algumas notas sobre a temática da subjetividade no âmbito do marxismo.In: Revista Outubro, Nº. 7, 2002, p. 103. 9 MARX, K. Vorwort zur Kritik der politischen Ökonomie. In: MARX/ENGELS, Werke (MEGA). Berlin: Dietz Verlag, 1983, v. 13, p. 9.

26

infraestrutura e superestrutura, tomados a partir de um fator determinante diante dos demais, que são arbitrários e falhos (imprecisos) para explicar a especificidade dos momentos como partes de um todo. E isto não pode ser atribuído a Marx, tendo em vista que ele não considera a produção material e a produção espiritual como dois momentos cristalizados, estáticos, mas sim como dois instantes que se operam ao mesmo, como partes integrantes da totalidade social. Marx deixa claro isto, ao dizer, nas Teorias da Mais-Valia (Theorien über den Mehrwert), que há uma conexão entre a produção intelectual e a material e que esta última não deve ser considerada “como categoria geral, mas em forma histórica determinada. [...] Se não se concebe a própria produção material em sua forma histórica específica, é, então, impossível compreender o que é determinado em sua produção espiritual correspondente e a ação recíproca entre ambas.”10 Portanto, não há em Marx uma supervalorização do aspecto sócio-econômico em relação à dimensão da “superestrutura”, ou seja, para Marx não se trata de uma valorização, em que uma é mais importante do que a outra, ou em que uma é determinante e ativa e a outra determinada e passiva, mas de uma recíproca influência de uma sobre a outra.11 Marx não compreende a subjetividade como um mero produto do econômico, e sim como um componente inseparável dos processos de formação da vida humana. O seu pensamento não pode ser reduzido a um objetivismo, a um mero determinismo econômico, unilateral, visto que a objetividade é impensável sem uma íntima correspondência com a subjetividade. Não há, para ele, objeto sem sujeito, como não há sujeito sem objeto. Nenhum dos polos dessa relação, sujeito e objeto, é posto como um dado a priori; eles se constituem na relação. Quer dizer, Marx não considera o indivíduo humano apenas no seu caráter objetivo, determinado, mas em seu vir-a-ser. E é nesse vir-a-ser, nesse processo, que se criam novas formas de objetivação que possibilitam, por sua vez, novas formas de subjetivação.12 O que Marx quer mostrar é, na verdade, que a subjetividade não é nem uma instância própria, autônoma, independente, abstrata, nem posta naturalmente, dada imediatamente ao indivíduo, mas construída socialmente, produzida numa dada formação social, num determinado tempo

10

. MARX, K. Theorien über den Mehrwert. In: MARX/ENGELS Werke (MEGA). Berlin: Dietz Verlag, 1965, v. 26.1. p. 257. 11 Cf. BERINO, Aristóteles P. Elementos para uma teoria da subjetividade em Marx. Dissetação de Mestrado. Niterói/RJ, 1994 (mimeo). 12 Cf. SILVEIRA, Paulo e DORAY, Bernard. Elementos para uma teoria marxista da subjetividde. São Paulo: Vértice, 1989. Cf. também BERINO, Aristóteles P. Op. cit., p. 11.

27

histórico. Portanto, a sua reflexão sobre a subjetividade não pode deixar de lado, por exemplo, uma análise da sociedade capitalista que a forja. Não há, todavia, uma obra específica de Marx acerca da subjetividade, mas, no conjunto de seus escritos, desde suas primeiras reflexões até as formulações mais amadurecidas, há passagens, elementos básicos, constitutivos, para uma teoria da subjetividade. Penso que ele refletiu, sim, em diversos momentos, sobre a subjetividade humana, momentos esses que podem ser evidenciados, entre outras, nas seguintes obras: Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução (Zur Kritik der hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung) (1844), A Questão Judaica (Zur Judenfrage) (1844), Manuscritos Econômico-Filosóficos (Ökonomisch-philosophische Manuskripte) (1844), Teses sobre Feuerbach (Thesen über Feuerbach) (1845-1846), A Ideologia Alemã (Die deutsche Ideologie) (1845-1846), O 18 Brumário de Luís Bonaparte (Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte) (1852), os Fundamentos (Grundrisse) (1857-1858), Para a Crítica da Economia Política (Zur Kritik der politischen Ökonomie) (Prefácio) (1859) e O Capital (Das Kapital) (1867). Ao longo de sua obra, Marx desenvolve elementos constitutivos para se entender a subjetividade humana, como: 1. a subjetividade não como autônoma, abstrata; 2. a subjetividade não como dada naturalmente, imediatamente ao indivíduo; 3. a subjetividade como construída historicamente; 4. a importância da presença da subjetividade na construção, na transformação, na apreensão e na interpretação cognitiva do mundo. E para entender a subjetividade no âmbito da sociedade capitalista, Marx nos dá diversos conceitos, como: ilusão, trabalho, estranhamento, “base” e “superestrutura”, ideologia, ocultação, inversão e fetichismo da mercadoria. Nos primeiros textos de Marx é muito importante os conceitos de ilusão, fragmentação e cisão, que eram também centrais no pensamento de Ludwig Feuerbach. Para este, o homem é, na modernidade, um ser fragmentado, separado de sua essência, e é, precisamente, essa separação que se explica o processo subjetivo da fé, da crença religiosa. Esta Feuerbach vê como um produto da subjetividade humana marcada pela cisão entre sua essência, o gênero, o universal, e sua existência singular, individual. Como o homem não pode efetivar, na sua existência singular, o gênero, o universal, ele o projeta para fora de si, num ser exterior a ele (= em Deus). Resulta daqui que o objeto (o homem) torna-se sujeito, e o sujeito (o gênero, Deus) torna-se objeto, pois não foi Deus que criou o homem, mas o homem quem criou subjetivamente Deus à sua imagem e semelhança. Mas, na religião, essa verdade antropológica não é evidente, pois o que 28

aparece é uma inversão: Deus como sujeito (como criador), e o homem como predicado (como criatura). A pretensão de Feuerbach é inverter essa inversão e mostrar que a discórdia, a oposição, entre Deus (o divino, o sagrado) e o homem (o humano, o profano) é ilusória, porque o conteúdo da religião é inteiramente humano. Portanto, o homem só tomará consciência que Deus é uma projeção de sua subjetividade, de sua própria essência subjetiva, tomada de forma absoluta, quando converter a teologia em antropologia.13 Embora também, para Marx, o homem, na modernidade, encontre-se isolado, separado de sua essência, esta não é, para ele, uma essência subjetiva, tal como o é para Feuerbach. Isto Marx deixa claro na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução, quando ele afirma que a essência do homem é “o mundo do homem”, a sua sociedade. E, nas 6ª e 8ª Teses sobre Feuerbach, enfatiza ele que a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo, como uma generalidade interna, muda, nem é dada naturalmente, mas sim uma construção do próprio homem a partir do conjunto das relações sociais. Neste sentido, Marx não se limitará, como fê-lo Feuerbach, a criticar a religião como necessidade subjetiva da ilusão, desconsiderando a base material que a produz, ou seja, a miséria do mundo real “que necessita de ilusões.”14 Marx pretende aqui estabelecer uma relação indissociável entre a base real (a sociedade) e as criações subjetivas resultantes dessa base, por isto, para ele, o enfrentamento das ilusões subjetivas não pode dá-se a partir de soluções imaginárias ou fantásticas, postulando uma felicidade ilusória num mundo melhor, numa outra vida, pois enquanto a raiz social (a sociedade) da fragmentação, da mutilação humana, não for superada, a dor, o sofrimento subjetivo não pode ser aliviado, sossegado. Numa outra obra ainda de juventude, A Questão Judaica, Marx polemiza com Bruno Bauer, para quem a base da fragmentação humana e das ilusões religiosas seria o Antigo regime (o Estado religioso), no qual o homem encontra-se mutilado entre a sua vida singular e o seu ser genérico, universal. Para Bauer, a solução para a fragmentação humana e para as ilusões subjetivas seria a política democrático-burguesa, que, ao garantir a cidadania e a liberdade, reintegraria o universal à singularidade de cada indivíduo numa particularidade histórica. Marx mostra, contra Bauer, que o Estado 13

Cf. BERTRAND, Michele. “O homem clivado – A crença e o imaginário”. In____: Elementos para uma teoria marxista da subjetividde. Op. cit., p. 16. Veja também CHAGAS, Eduardo F. “Religião: O homem como imagem de Deus ou Deus como imagem do homem.” In: Formação Humana: Liberdade e Historicidade. Fortaleza: Edições UFC, 2004, Coleção Diálogos Intempestivos, v. 16. p. 86-105. 14 Marx, K. Zur Kritik der hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung. In: MARX/ENGELS, Werke (MEGA). Berlin: Dietz Verlag, 1957, v. 1, p. 379.

29

moderno, longe de suprimir, eleva ao máximo a fragmentação humana, como também aparece como religioso, embora ele seja profano e laico. No Estado moderno, a universalidade, a genericidade, localiza-se na cidadania, nos direitos humanos, mas não permite ao sujeito fragmentado reencontrar a sua unidade, pois a universalidade presente nele não é concreta, efetiva, mas abstrata, formal. No Estado moderno, o sujeito é reconhecido como cidadão, como um ser universal, mas esta idealidade universal está separada, abstraída, de sua existência real e particular. Diz Marx: “Onde o Estado político alcançou seu verdadeiro desenvolvimento, o homem leva, não só no pensamento, na consciência, mas na realidade, na vida, uma dupla vida – celeste e terrestre – a vida na comunidade política, em que ele vale como ser comunitário, e a vida na sociedade burguesa, em que ele é ativo como homem privado.”15 “No Estado [...], onde o homem vale como ser genérico, ele é o membro imaginário de uma soberania quimérica, está despojado de sua real existência individual e repleto de uma universalidade irreal.”16 O Estado moderno faz abstração do homem real e só o satisfaz de forma imaginária, abstrata. Tal Estado não pode, pois, suprimir as raízes da fragmentação e da ilusão humana; ele é, antes, a fonte da religiosidade, à medida que ele aparece, agora, como uma comunidade ilusória, como um universal abstrato, tal como o Deus cristão, como um ser ilimitado, todo poderoso, sem o qual o sujeito não pode subsistir. Como objeção a uma possível teoria da subjetividade em Marx, muitos autores destacam ainda a seguinte passagem de Para a Crítica da Economia Política: “O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor nos meus estudos, pode ser formulado resumidamente assim: na produção social da sua vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas de consciência determinadas socialmente. O modo de produção da vida material condiciona em geral o processo de vida social, político e espiritual. [...] Com a transformação da base 15

MARX, K. Zur Judenfrage.In: MARX/ENGELS Werke (MEGA),Berlin, Dietz Verlag, 1957, v. 1. p. 354-355. 16 Ibid., p. 355. Sobre a crítica de Marx à política liberal-burguesa e ao Estado moderno, cf. também CHAGAS, Eduardo F. “A crítica da política em Marx”. In___: Trabalho,Filosofia e Educação no Espectro da Modernidade Tardia. Fortaleza: Edições UFC, 2007, p. 67-82.

30

econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material, que se pode constatar fielmente na ciência natural, das condições econômicas de produção e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim. Assim como não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se pode julgar tão pouco uma época tal de transformação pela sua consciência, mas, pelo contraio, deve-se explicar a esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças sociais produtivas e as relações de produção.”17 É preciso esclarecer que as referências de Marx, nesta passagem, aos conceitos de “base econômica” e “superestrutura” apontam para questões de método, e não para uma suposta supremacia mecânica da vida material sobre a vida espiritual. Sua intenção é demarcar seu método18 como distinto do método empirista da economia política, que parte, sim, do real, mas permanece no seu nível simples, aparente, empírico-imediato, sem, contudo, cair, por outro lado, no método especulativo-hegeliano, que concebe o real apenas como um resultado da atividade de conceber, como um produto do pensamento, fechado e concentrado em si mesmo. E, embora faça valer a prioridade ontológica desse real ante ao real construído só idealmente, abstratamente no pensamento, Marx não nega, de maneira nenhuma, o momento em que o real, a partir do próprio real, deva ser reconstruído pela subjetividade (pelo pensamento) como concreto pensado. Portanto, ao dizer que o ser social determina a subjetividade (a consciência), Marx não quis dizer que a subjetividade (a consciência) é uma atividade secundária, já que, para ele, é, precisamente, a partir da consciência das circunstâncias em que a vida é produzida, que o sujeito reconstrói, transforma e apreende o mundo e adquire para si a sua liberdade. Também em O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852), vê-se referências de Marx à relação entre a base econômica e a superestrutura. Sobre isto diz ele o seguinte: “Sobre as diferentes formas de propriedade, sobre as condições sociais de existência ergue-se toda uma superestrutura de sensações, ilusões, modos de pensar e visões de vida distintas e peculiarmente formadas. A classe inteira cria-os e forma-os a partir das

17

MARX, K. Vorwort zur Kritik der politischen Ökonomie. Op. cit., p. 8-9. Sobre o método de Marx, cf. CHAGAS, Eduardo F. “O Método Dialético de Marx: investigação e exposição crítica do objeto.” In: Síntese – Revista de Filosofia. Belo Horizonte, v. 38, nº 120, 2011, p. 55-70. 18

31

suas bases materiais e das relações sociais correspondentes”19. Marx designa aqui como superestrutura os preconceitos, as ilusões, as convicções, os princípios, ou seja, a visão de mundo de uma classe social, o seu modo de pensar, criado a partir de suas condições materiais de vida. A superestrutura não pode, neste sentido, ser compreendida, tal como no Prefácio à obra Para a Crítica da Economia Política, como um mero reflexo da base econômica, já que ela constitui um campo complexo em que se formam os símbolos, os valores, os sentimentos, as ideias, as imagens, as representações, nas quais uma dada sociedade é reconhecida. E é através dessas representações, no âmbito “superestrutural”, que os indivíduos assumem seus interesses, expressam a maneira de enxergar a sua existência na sociedade, a consciência que eles têm das condições reais da sua existência, não ocultando, pois, os seus interesses, as suas reais motivações. “O que os [os lojistas] fazem representantes da pequena-burguesia é que eles não ultrapassam na cabeça os limites dos quais esta não ultrapassa na vida; que eles, portanto, são teoricamente impulsionados para as mesmas tarefas e soluções, para as quais o interesse material e a posição social impulsionam, na prática, aquela [a pequena-burguesia]”.20 Os burgueses e pequenos burgueses defendem ideias que não ultrapassam o mundo do capital, e quando almejam transformações, estas se dão via democracia liberal-burguesa, dentro dos limites das instituições sociais existentes. O problema é que o sujeito trabalhador, que faz parte do mundo do trabalho, tem uma representação de sua existência, uma compreensão de sua vida, que não corresponde à sua real circunstância, justamente porque tal representação não expressa a sua existência e o seu mundo, mas a existência e o mundo do burguês, a “visão de mundo” do capital. Por isso, diz Marx: “E assim como na vida privada se distingue entre o que um homem pensa e diz de si próprio e o que ele realmente é e faz, assim nas lutas históricas deve-se distinguir mais ainda as frases e as imaginações dos partidos de seu organismo efetivo e de seus interesses efetivos, sua representação de sua realidade”.21 Ou ainda:“A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo sobre o cérebro dos vivos. E, precisamente, quando estes parecem ocupados em revolucionar a si e as coisas, em criar algo que ainda não existe, é precisamente nestas épocas de crise revolucionária que eles evocam temerosamente em seu favor os espíritos do passado, pedem emprestados os seus nomes, as suas palavras de guerra, a sua 19

MARX, K. Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte. In: MARX/ENGELS, Werke (MEGA). Berlin: Dietz Verlag, 1960, v. 8, p. 139. 20 Ibid., p. 142. 21 ___., p. 139.

32

roupagem, para, neste venerável disfarce tradicional e com esta linguagem emprestada, representar a nova cena na história universal”.22 Mas “A revolução social do século XIX não pode tirar a sua poesia do passado, mas apenas do futuro. Não pode começar consigo mesma antes de se desfazer de todas as superstições do passado. As revoluções anteriores precisaram das reminiscências da história universal, para se anestesiarem de seu próprio conteúdo. A revolução do século XIX tem que deixar os mortos enterrarem os seus mortos, para chegar ao seu próprio conteúdo. Lá, a frase ultrapassava o conteúdo; aqui o conteúdo ultrapassa a frase”.23 Longe de negar a subjetividade, Marx dá-lhe importância central no processo de transformação24. Para que haja emancipação, revolução social, é necessária não só uma transformação das condições materiais, mas também da subjetividade humana que, para agir crítico e emancipadamente sobre o mundo, terá que renunciar as referências, as imagens, do passado que não ultrapassam a ordem social do capital. No que se refere à subjetividade em Marx, a partir de uma suposta determinação da base econômica sobre a superestrutura ideal, é importante citar ainda A Ideologia Alemã (1845-1846). Nesta obra, inicialmente, Marx e Engels criticam os neohegelianos, principalmente Bruno Bauer, Max Stirner e Ludwig Feuerbach, pelo fato de admitirem a autonomização da consciência e de defenderem a modificação do mundo a partir tãosomente da negação subjetiva das ilusões da consciência. Assim se expressam Marx e Engels: “Os ideólogos jovens hegelianos são, apesar de suas frases que pretensamente „abalam o mundo‟, os maiores conservadores. Os mais jovens dentre eles encontraram a expressão correta para a sua atividade, quando afirmam que lutam apenas contra „frases‟. Eles esquecem, apenas, que opõem a estas frases nada mais do que frases, e que eles, quando combatem apenas as frases deste mundo, não combatem, de forma 22

___., p. 115. ___., p. 117. 24 A crítica de Marx, em 1845-46, ao materailismo de Feuerbach é, entre outras questões, porque este deixou de lado a atividade subjetiva humana. Na primeira Tese ad Feuerbach, afirma Marx: “A insuficiência principal de todo materialismo até os nosso dias (o de Feuerbach inclusive) é que o objeto, a realidade, a sensibilidade foi tomado apenas sob a forma de objeto ou de intuição; mas não como atividade humana sensível, como práxis, não subjetivamente.”. Cf. MARX, K. Thesen über Feuerbach. In: MARX/ENGELS, Werke (MEGA). Berlin: Dietz Verlag, 1958, v. 3. p. 533. E em A Ideologia Alemã, Marx evidencia, de forma mais articulada, que Feuerbach tem o mundo como algo já constituído, estático, imutável, a-histórico, desconhecendo as modificações que a subjetividade implementou nele: Feuerbach “não vê que o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa dada imediatamente da eternidade, uma coisa sempre igual a si mesma, mas antes o produto da indústria e do estado em que se encontra a sociedade, e, na verdade, no sentido de que ele é um produto histórico, o resultado da atividade de toda a uma séria de gerações”. E mais adiante enfatiza Marx: “que Feuerbach, em Manchester por exemplo, vê apenas fábricas e máquinas, onde há cem anos atrás havia apenas rodas de fiar e teares manuais”. Cf. MARX, K. Die deutsche Ideologie. In: MARX/ENGELS, Werke (MEGA). Berlin: Dietz Verlag, 1958, v. 3, p. 43 e 44. 23

33

alguma, o mundo real existente.”.25 Para Marx e Engels, ao contrário, o ponto de partida para a transformação efetiva do mundo não está na atividade isolada da consciência, mas nas condições materiais dos indivíduos, condições estas dadas pelo trabalho, pela produção de seus meios de vida. E são nessas condições materiais, reais, de produção da existência que os indivíduos formam a sua consciência, a sua visão de mundo. Como eles afirmam: “Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens reais, ativos, como eles são condicionados por um desenvolvimento determinado de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a eles corresponde até chegar às suas formações mais amplas. A consciência nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo real de vida. Se em toda ideologia os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara obscura, é porque este fenômeno deriva do seu processo histórico de vida, da mesma maneira que a inversão dos objetos na retina deriva imediatamente do seu processo físico de vida.”26 Marx e Engels designam aqui como ideologia a consciência invertida, a consciência fracionada do mundo, tal como a inversão das imagens na câmara escura, isto é, a totalidade das formas de consciência social que inverte a relação entre ela e as contraditórias condições de produção da existência, tomando a si mesma como condição geradora do mundo, e não o contrário. Mas, como dizem eles: “Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência. No primeiro modo de consideração, parte-se da consciência como indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos vivos reais e considera-se a consciência apenas como a sua consciência”.27 Embora as formas de ideologias - que se expressam através das instituições criadas pelo homem para a sua organização social, como as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas - sejam formas de consciência apartadas do mundo, que deixam de corresponder à base material de sua existência, de sua própria criação, isto é, esferas superestruturais que não permitem ao indivíduo uma consciência crítica, coerente, acerca das condições sociais existentes, nem das contradições da realidade, conservando e reproduzindo, assim, a ordem social estabelecida, elas têm, na verdade, seu fundamento não em si mesma, na consciência apartada do mundo, mas na base material da sociedade. Por isso, Marx e Engels dizem que a visão de mundo

25

MARX, K. Die deutsche Ideologie. Op. cit., p. 20. Ibid., p. 26. 27 ___., p. 27. 26

34

predominante, as ideias dominantes, são as ideias produzidas pela classe hegemônica e expressam, sim, as condições materiais, através das quais essa classe realiza seu domínio. Assim, expressam-se eles: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe, que é o poder material dominante da sociedade, é, ao mesmo tempo, seu poder espiritual dominante. A classe, que tem à sua disposição os meios para a produção material, dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, de modo que a ela estão, assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam uma classe dominante, portanto, as ideias de seu domínio. Os indivíduos, que constituem a classe dominante, têm, entre outras coisas, também consciência, e, por conseguinte, pensam; à medida que eles dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua extensão, e, portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores, de ideias; que regulam a produção e a distribuição das ideias do seu tempo, que, portanto, as suas ideias são as ideias dominantes da época.”.28 Essas ideias hegemônicas, propostas pelas classes dirigentes, são apresentadas para toda a sociedade como um ideal comum, pertencentes a todos. Dando sequência às bases de uma teoria da subjetividade no pensamento de Marx, é importante citar aqui também Os Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844), nos quais se pode perceber a influência do trabalho na constituição da subjetividade humana. Nesta obra, Marx, ao tratar da categoria trabalho, toma-a, inicialmente, como uma categoria fundante da produção e reprodução da vida humana – a atividade primária, necessária e natural do homem. Precisamente, o que especifica a essência de um ser vivo é a forma como vive, produz e reproduz sua vida. Marx afirma: “No modo da atividade vital encontra-se o caráter inteiro da espécie, seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem.”29 A atividade dos demais animais se reduz exclusivamente ao consumo dos objetos de suas próprias necessidades imediatas. Essa forma de atividade, mesmo a mais deslumbrante, é repetição instintiva e 28

___., p. 46. MARX, K. Ökonomisch-philosophische Manuskripte. In: MARX/ENGELS Werke (MEGA). Berlin: Dietz Verlag, 1990, v. 40, p. 516. Sobre a diferença entre alienação e estranhamento nos Manuscritos de 1844, cf. CHAGAS, Eduardo F. “Diferença entre alienação e estranhamento nos Manuscritos EconômicoFilosóficos (1844), de Karl Marx”. In: Revista Educação e Filosofia. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, Junho/Dezembro de 1994, v. 8, n.º 16, p. 23-33. 29

35

quase mecânica, e, por isso, norteada apenas a uma necessidade específica, restrita e impulsionada de acordo com a própria estrutura orgânica. Frisa Marx: “Na verdade, o animal também produz. Constrói para si um ninho, habitações, como a abelha, o castor, a formiga etc. Mas só produz o que necessita imediatamente para si ou para sua cria; produz unilateralmente [...]; o animal produz apenas sob o domínio da necessidade física imediata [...]; ele produz apenas para si mesmo [...]. O animal forma apenas segundo a medida e a necessidade da espécie a que pertence”.30 Tais operações deslumbrantes não constituem, segundo Marx, trabalho, pois são realizadas sem pressupor um momento subjetivo, sem um fim subjetivo, sem uma teleologia, sem uma idealidade, tal como acontece com o trabalho humano. O trabalho não é um simples fazer fortuito, mecânico e restrito, mas uma atividade voltada para um fim, que é uma determinação da subjetividade humana, uma atividade livre e consciente, subordinada à vontade, pois o sujeito, antes de fazer, constrói subjetivamente sua obra, imprimindo nela o projeto que tinha a priori na sua subjetividade31. Através do trabalho, o sujeito manifesta-se como ser genérico, suplanta a atividade muda dos animais, produz sua existência, cria a consciência de que é um ser social e, assim, atinge a existência de um ser universal e livre. Por isso, o sujeito só se constitui como ser universal e livre à medida que é sujeito de uma atividade livre e consciente. Mas o que fundamenta o ser genérico do sujeito é, precisamente, o trabalho, que, nas condições da sociedade capitalista, torna-se estranhado. Marx evidencia quatro conexões em que se apresenta o trabalho estranhado: 1. a do sujeito com seu produto, 2. do sujeito com sua atividade produtiva, 3. do sujeito com sua vida genérica e, por fim, 4. do sujeito com outros sujeitos. Marx mostra que, na produção burguesa, o produto, resultado da objetivação do trabalho, deixa de ser, para o sujeito, seu próprio ser objetivado, para ser apenas um objeto estranho que o enfrenta e escraviza. O objeto produzido pelo sujeito – seu produto – opõe-se a ele como ser estranho, volta-se contra seu produtor e passa a dominá-lo. O sujeito exterioriza suas qualidades subjetivas no objeto, põe sua vida nele, porém, agora, esta não lhe pertence, mas ao objeto. Assim, quanto mais objetos o sujeito produzir, tanto menos pode dele se 30

MARX, K. Ökonomisch-philosophische Manuskripte. Op. cit., p. 517. Cf. MARX, K.: “Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele constrói em sua mente sua construção, antes de construí-la em realidade. [...], ele imprime igualmente ao material a sua finalidade, pois ele sabe que ela determina o modo e a maneira de seu fazer como lei e a ela ele subordinar a sua vontade.” . (MARX, K. Das Kapital. In: MARX/ENGELS, Werke (MEGA). Berlin: Dietz Verlag, 1962, v. 23, p. 193). 31

36

apropriar e mais se subjuga ao domínio de seu produto; “quanto mais formado o seu produto, tanto mais deformado o trabalhador, quanto mais civilizado o seu objeto, tanto mais bárbaro o trabalhador.”32 A essa objetivação estranhada corresponde uma subjetivação estranhada, pois a perda do objeto produzido, da produção dos meios necessários à própria produção, enfim, de tudo o que significa produção pelo trabalho humano, não é só material, mas recai também no mundo interior, na subjetividade humana. Há, pois, uma inversão de valores: um empobrecimento da subjetividade, uma desvalorização do sujeito diante de uma valorização da coisa, de um enriquecimento do objeto, do produto do trabalho. À medida que o produto é estranho ao sujeito, a própria atividade produtiva se lhe torna alheia; o próprio trabalho se converte em atividade externa, que lhe produz deformação e unilateralização. Por isso, o sujeito só pode sentir-se em si fora do trabalho, porque neste está fora de si; agora, sua realização evidencia-se nas funções puramente animais – comer, beber, procriar etc. Nessas condições, o elemento humano torna-se animal e o animal, humano. Desse modo, quando o sujeito se confronta com o trabalho estranhado – como uma atividade não típica de sua espécie, não própria de seu gênero – o seu ser genérico (tanto no que diz respeito à sua natureza física como às suas faculdades espirituais específicas) converte-se num ser alheio a ele próprio. De fato, o trabalho, como atividade livre e consciente, que especifica a genericidade do sujeito e o distingue do animal, é-lhe negado e se transforma em simples atividade de subsistência e contraposta aos demais seres humanos. Nessa atividade específica, que é repetitiva, fatigante e negadora da essência humana, o sujeito, assegura Marx, “não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se a si mesmo; não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente nenhuma energia física e espiritual, mas mortifica sua physis [seu corpo] e arruína seu espírito.”33 Afastado de seu ser genérico, da vida de sua espécie, o sujeito, como mercadoria, como força de trabalho, restringe-se a uma existência corpórea, biológica, preso às condições mais elementares e menos desenvolvidas de sua própria espécie, ou seja, àquelas condições de sobrevivência imediata e de reprodução física. O que se considera com relação ao estranhamento do sujeito ante ao seu produto, à sua própria atividade e à sua vida genérica, evidencia-se também na relação dele com os outros sujeitos. Diz Marx: “quando o homem está frente a si mesmo, defronta-se a 32 33

MARX, K. Ökonomisch-philosophische Manuskripte. Op. cit., p. 513. Ibid., p. 514.

37

ele o outro homem.”34 Trata-se aqui do estranhamento interno ao próprio sujeito, que implica num estranhamento intersubjetivo, isto é, numa relação estranhada do sujeito com outros sujeitos. O sujeito, reduzido à força de trabalho, à mercadoria, relacionandose com outros sujeitos, vistos também como coisas, meramente como sujeitos físicos, é isto o princípio que conduz as relações intersubjetivas, inter-humanas, nas quais se expressa o estranhamento dos próprios sujeitos. Mas, se “o produto do trabalho me é estranho e enfrenta-me como um poder estranho, a quem pertence ele então? Se minha própria atividade não me pertence, mas é uma atividade estranhada, forçada, a quem ela pertence então? A um outro ser que não eu. E quem é esse ser? Os deuses?”35. Este outro ser a quem pertence o produto do trabalho é, na verdade, também um sujeito, um outro sujeito que não o trabalhador, ou seja, o capitalista. Este momento evidencia-se, por um lado, pelo fato de que certo número de sujeitos produz para outros e, por isso, não tem o controle sobre o produto de seu próprio trabalho; por outro, pelo fato de um número reduzido de sujeitos – os capitalistas - que não trabalham, apropriarem-se do produto alheio. Desse modo, podemos dizer que tanto os trabalhadores quanto os capitalistas são estranhos um em face do outro; contudo, as consequências são diversas: o estranhamento para o sujeito trabalhador evidencia-se como miséria, sofrimento e desumanização, enquanto, para o sujeito capitalista, como riqueza, deleite e satisfação. Se o trabalho estranhado afasta do sujeito o produto de seu trabalho, a reconciliação do sujeito com o objeto de sua atividade dá-se, nessas condições, através da posse, do dinheiro. E o sujeito mesmo expressa seu ser não em si, mas fora de si, no ter, na posse do dinheiro. Também os seus afetos, carinho, desejo, amor, para com os demais sujeitos se afirmam apenas no dinheiro. Como diz Marx: “o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são as minhas – de seu possuidor qualidades e forças essenciais. Aquilo que eu sou e posso não é, portanto, de modo algum determinado por minha individualidade. Eu sou feio, mas posso comprar para mim a mulher mais bela. Portanto, eu não sou feio, pois o efeito da feiúra, sua força repelente, é anulado pelo dinheiro. Eu – segundo minha individualidade – sou coxo, mas o dinheiro me proporciona vinte e quatro pés; eu não sou, portanto, coxo; eu sou um ser humano mau, sem honra, sem escrúpulos, sem espírito, mas o dinheiro é

34 35

___., p. 517-518. ___., p. 518.

38

honrado e, portanto, também o seu possuidor.”36 Já a ausência de dinheiro tem o significado humano de o ser não ser sem o ter, ou seja, de o ser não ter em si qualquer objetivo, pois, “se não tenho dinheiro para viajar, não tenho necessidade alguma, isto é, nenhuma necessidade efetiva e que se realize para viajar. Eu, se tenho vocação para estudar, mas não tenho dinheiro algum para isto, não tenho nenhuma vocação para estudar, isto é, nenhuma vocação efetiva, verdadeira ”37 Nessas condições, em que o mundo humano é apropriado pelo dinheiro, pela posse, o sujeito torna-se estranho à sua própria sensibilidade. Pois, quando ele vê um objeto e almeja tê-lo em sua vida, fica sensível apenas na possibilidade de tê-lo para si como capital, de utilizá-lo ou possui-lo diretamente. Por exemplo: “O comerciante de minerais vê apenas o valor mercantil, mas não a beleza e natureza peculiar do mineral; ele não tem sentido mineralógico algum”.38 Assim, para Marx, o capitalismo, a fim de aumentar a produção de capital, de satisfazer a sua objetividade por acúmulo de riqueza, reduz o ser ao ter, as necessidades humanas em necessidade de possuir dinheiro, empobrecendo, assim, o sujeito em suas faculdades intelectuais, subjetivas. A relação de propriedade privada, isto é, do sujeito com ela, implica uma apropriação limitada da vida. Os objetos somente são tidos como do sujeito na condição exclusiva de pertencimento como propriedade. Os sentidos do sujeito, físicos e intelectuais, deixam de expandir, quando restritos às delimitações impostas pela posse. Por isso, diz Marx: “A suprassunção da propriedade privada é, pois, a emancipação completa de todas as qualidades e sentidos humanos; mas ela é esta emancipação precisamente porque esses sentidos e qualidades tornaram-se humanos, tanto subjetiva quanto objetivamente. O olho tornou-se olho humano quando seu objeto se tornou um objeto humano, social, proveniente do homem para o homem”.39 Portanto, os sentidos tornam-se humanos, quando os sentidos do sujeito encontram nos seus objetos uma satisfação liberta da propriedade privada e passam a refletir o trabalho como uma atividade cooperativa, de mútuo intercâmbio, que não condiciona o sujeito trabalhador ao estranhamento do produto do trabalho. Neste caso, os objetos do trabalho deixam de ser cobiçados como propriedade para adquirirem uma nova forma, em que se confirmam as forças essenciais, as capacidades subjetivas do sujeito, a fim de lhe satisfazerem plenamente. 36

___., p. 564. ___., p. 566. 38 ___., p. 542. 39 ___., p. 540. 37

39

A temática da subjetividade humana pode ser apreendida também nos Grundrisse e em O Capital. Na primeira obra, Marx parte da produção material, socialmente determinada, e demonstra que ela é um todo orgânico, dinâmico, uma rica totalidade de relações diversas, na qual seus momentos constitutivos, a distribuição, a troca e o consumo, estão concatenados entre si, formando unidade sintética, embora contraditória: a produção oferece, na forma material, o seu objeto, isto é, os elementos materiais do consumo, pois sem objeto não há consumo. A produção determina, porém, não só a forma objetiva, como também subjetiva do objeto, isto é, ela não só fornece o objeto material à necessidade do consumidor, como também “cria subjetivamente” o consumidor, a sua necessidade, ao determinar o modo, a forma específica em que o objeto deve ser consumido. Como diz Marx: “A fome é a fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, comida com faca e garfo, não é a mesma fome que devora a carne crua com ajuda da mão, da unha, do dente.”40 Do mesmo modo: “O objeto de arte – tal como qualquer outro produto – cria um público sensível à arte e capaz de desfrutar a beleza.”41 Portanto, a produção cria não só um objeto para o sujeito (para o consumo), mas também um sujeito para o objeto, ao determinar o modo de consumir o objeto e a necessidade no sujeito desse objeto (o apetite, o desejo do consumo). E o consumo é o móbil que impulsiona a produção, que põe em movimento o processo produtivo, à medida que ele produz a necessidade de um novo objeto, de uma nova produção. Entre a produção e o consumo situa-se a distribuição, que não pode ser uma repartição coletiva, igualitária, dos produtos, porque ela não é independente, e sim determinada inteiramente pela estrutura da produção, que é privada, particular. Nesse sentido, a distribuição dos produtos é determinada pela forma da produção (privada), da distribuição dos instrumentos de produção (privados) e da função (capital e trabalho) dos membros da sociedade na produção. Do mesmo modo, a troca não é independente e indiferente à produção, e, se a produção é privada, a troca também o é. Portanto, produção, distribuição, troca e consumo são elos de um todo único; eles não são idênticos nem exteriores um ao outro, mas momentos diferentes, embora recíprocos, no interior de uma unidade, de uma totalidade orgânico-dialética. Na obra indicada, os Grundrisse, Marx diz que o que especifica a sociedade capitalista é o valor de troca, o capital, e este determina o nexo da sociedade, o convívio

40

MARX, K. Grundrissen der Krtik der polistischen Ökonomie”. In: MARX/ENGELS Werke (MEGA). Berlin: Dietz Verlag, 1983, v. 42, p. 27. 41 Ibid., p. 27.

40

social entre os sujeitos, fazendo com que estes assumam a forma de coisa. Diz ele: “A dependência mútua e generalizada dos indivíduos reciprocamente indiferentes forma a sua conexão social. Esta conexão social está expressa no valor de troca [...], isto é, num universal, no qual toda individualidade, toda particularidade, é negada e cancelada.” 42 E mais: “O caráter social da atividade, tal como a forma social do produto e a participação do indivíduo na produção, aparece aqui como algo estranho e com caráter de coisa frente aos indivíduos; não como seu estar reciprocamente relacionados, mas como seu estar subordinados a relações que subsistem independentemente deles e nascem do choque dos indivíduos reciprocamente indiferentes. O intercâmbio geral das atividades e dos produtos, que se converte em condição de vida para cada indivíduo particular e é sua conexão recíproca com os outros, aparece a eles próprios como algo estranho, independente, como uma coisa. No valor de troca, o vínculo social entre as pessoas transforma-se em relação social entre coisas; a capacidade pessoal, em uma capacidade das coisas”.43 Marx destaca aqui a indiferença, o alheamento, como a característica particular do sujeito na sociedade capitalista. É o capital, o valor de troca, o dinheiro, que medeia as relações sociais, eliminando as diferenças sociais dos sujeitos ou tornando-as indiferentes. Essa indiferença entre os sujeitos, na sociedade capitalista, é uma consequência do modo de produção capitalista que elimina não só as determinações particulares em relação aos sujeitos e as diferenças qualitativas dos produtos, das propriedades, dos atributos particulares das coisas (cor, cheiro, peso etc.), isto é, daquilo que distingue materialmente os valores de uso particulares das coisas, tornando-as meras mercadorias, como também as formas específicas do trabalho útilconcreto, reduzindo-os, assim, a uma única espécie de trabalho, o trabalho humano abstrato.44 Portanto, nas condições do capitalismo, o sujeito se determina como força de trabalho, como mercadoria, como coisa. E como coisa, as relações entre os sujeitos se transformam em relações entre coisas; cada um é indiferente ao outro, está separado dos demais, levando o sujeito a um completo isolamento social, a uma ausência de sociabilidade. Um texto importante sobre a subjetividade reificada é, precisamente, “O Caráter Fetichista da Mercadoria e o seu Segredo”, publicado em O Capital. Investigando o 42

___., p 90-91. ___., p 91. 44 Sobre a distinção entre trabalho útil-concreto e trabalho abstrato em Marx, cf. CHAGAS, Eduardo F. “A natureza dúplice do trabalho em Marx: Trabalho útil-concreto e trabalho abstrato.” In: Revista Outubro, nº. 19, 2011, p. 61-80. 43

41

fetichismo da mercadoria, Marx observa que o caráter “místico”, “enigmático”, da mercadoria não provém de seu valor de uso, mas da forma do valor, do valor de troca. Assim ele descreve o fenômeno do fetichismo da mercadoria: “O mistério da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais de seu próprio trabalho como características objetivas dos produtos do trabalho mesmo, como qualidades naturais sociais destas coisas, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social de objetos, que existe fora deles. Por meio desses quiproquós os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, sensíveis e suprasensíveis. [...] É apenas a relação social determinada dos próprios homens, tomada aqui por eles como a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.” “Já que os produtores somente entram em contato social mediante a troca dos produtos de seu trabalho, também as características especificamente sociais de seus trabalhos privados só aparecem dentro dessa troca. [...] Por isso, aos últimos [aos produtores], as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como o que elas são, isto é, não como relações imediatamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas, pelo contrário, como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas.”45 Marx enfatiza, aqui, a condição trágica da subjetividade no mundo, pois, no processo produtivo de mercadorias, cria-se uma objetividade que anula os próprios sujeitos. Marx destaca a presença de uma objetividade sem subjetividade, ou de uma subjetividade mutilada, esvaziada, para qual a realidade aparece como um mundo exterior; quer dizer, o sujeito desconhece o mundo, a sua própria atividade, as condições pelas quais se produzem a sua própria existência, percebendo o mundo, a existência real, como fora dele, externa e alheia a ele, e não como um produto de seu próprio trabalho, de sua própria subjetividade. Marx vê aqui o anúncio da “morte” do sujeito, pois, nessas condições fetichizadas, os sujeitos enquanto sujeitos são abolidos e se tornam coisas vivas (de ordem mercadológica), e os produtos de seu trabalho, as mercadorias, aparecem como atributos de si mesmas, autonomizadas, dotadas de um poder sobrenatural, ocultando, assim, a sua origem, a sua fonte, isto é, o trabalho social que as fundamenta.

45

MARX, K. Das Kapital. Op. cit., p. 86-87.

42

Trabalho, Subjetividade e Educação em Marx Vilson Aparecido da Mata

Introdução

A questão da subjetividade é candente na atualidade e uma leitura dos clássicos sobre o tema é capaz de esclarecer algumas questões que carecem de melhor aprofundamento e discussão. Para este texto, procurar-se-á utilizar o referencial de Marx a fim de contribuir com o debate sobre a subjetividade e a educação. Entre as muitas “acusações” que se fazem a Marx, duas se destacam: a primeira delas é em relação ao suposto determinismo econômico do autor alemão; a segunda é que, por conta deste determinismo, ele desconsideraria a subjetividade ao conceber o homem como “produto do meio”. Em uma sociedade em que há contradição entre trabalho e capital, ou seja, entre trabalhadores e proprietários dos meios de produção, a questão da subjetividade impõese à análise. A especialização contínua da força de trabalho, a produção planificada Just in time, o desenvolvimento de tecnologias capazes de tornar o próprio corpo humano mais cibernético, as tecnologias da informática, a comunicação em tempo real, etc., contrastam com o avanço da miséria, da pobreza, do embrutecimento dos sentidos, da violência e da fratura entre indivíduo e sociedade. Se, por um lado, jamais se produziu tanto e com tamanha eficiência, por outro, nunca houve tantos seres humanos vivendo nas mais abjetas condições. Para o desenvolvimento do tema, o texto foi organizado como segue: a organização do texto será a seguinte: na primeira parte, discute-se a questão do determinismo econômico em Marx, explicando suas bases e demonstrando a infelicidade e o equívoco desta “acusação”; na segunda parte, a questão da subjetividade será analisada, tomando as obras de Marx e dos autores da tradição marxiana; por fim, na terceira parte, serão expostas reflexões a respeito da relação entre trabalho, subjetividade e educação.



Professora da Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Mestre em Fundamentos da Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UEM, Área de concentração em Fundamentos da Educação. Doutorando em Educação Brasileira da FACED/UFC. E-mail: [email protected]

43

O Fator Econômico

Marx teria sido um defensor do determinismo do fator econômico sobre a vida humana. O homem seria, segundo tal tese, pura e simplesmente um reprodutor das exigências econômicas, reduzido ao patamar de relações em que o dinheiro dita as normas de convivência e as ambições humanas. Esta é uma acusação inverídica. Antes de tudo, é preciso compreender que Marx analisou, em sua obra, a Economia Política, que, essencialmente, é algo diferente da economia conforme a concebemos na atualidade. A Economia Política foi uma ciência da qual a própria burguesia, em vias de ascensão na Inglaterra, utilizou-se a fim de fundamentar as conquistas do “homem livre”, em contraposição às concepções medievais e absolutistas. Entre os pensadores mais eminentes da Economia Política, estão Adam Smith e David Ricardo. Para a Economia Política, mesmo alinhada com os interesses da burguesia ascendente, todo movimento econômico da sociedade é resultado e resultante das ações políticas. O desenvolvimento do capital não pode ser efetivado sem a implementação do desenvolvimento econômico, mas também não é possível sem o desenvolvimento de uma política que represente os interesses da classe dos proprietários privados dos meios de produção. A Economia Política constituiu-se, assim, no estandarte de uma nova ordem social, representando, do ponto de vista científico, os interesses de uma classe social que se apresentava como revolucionária. Para Marx, o econômico diz respeito à produção dos meios que garantem a existência. Em última instância, aquilo que define o humano e o modo como satisfaz suas necessidades fundamentais é o fator econômico, entendido como a produção dos meios de existência, nas palavras do próprio autor: As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens transformam o seu modo de produção e, ao transformá-lo, alterando a maneira de ganhar a sua vida, eles transformam todas as suas relações sociais. O moinho movido pelo braço humano nos dá a sociedade com o suserano; o moinho a vapor dá-nos a sociedade com o capitalista industrial. (MARX, 2009, p. 125).

O que Marx quer dizer quando se refere ao modo de produção? Ele fala dos indivíduos reais, sua ação, suas condições materiais de existência, as que já se encontram prontas ou as que os próprios homens constroem. (MARX e ENGELS,

44

2007). O modo como o ser humano estabelece sua relação simbiótica com a natureza não garante somente sua reprodução física, mas também sua produção cultural, histórica, social, econômica e, por conseguinte, subjetiva. Sendo ação teleológica, a atividade produtiva do homem é essencialmente subjetiva na medida em que, como ser genérico, aquilo que ele é depende fundamentalmente do modo como produz e o modo como produz depende da natureza, ou, das condições materiais de existência. A produção de idéias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção espiritual, tal como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas idéias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência (bewusstsein) não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente (bewusste Sein), e o ser dos homens é o seu processo de vida real. (MARX E ENGELS, 2007, p. 93-4).

As idéias, representações e a consciência são inevitavelmente ligadas à base material. Elas são emanações diretas do comportamento real, subjetivo, humano. A partir daí, a complexa relação do homem com a natureza é a chave para a compreensão da sua produção intelectual (formação da subjetividade), representada pela linguagem, pelas leis, pela política, pela moral, pela religião, pela metafísica, etc. A construção da subjetividade (consciência, linguagem, intelectualidade, sensibilidade) constitui a expressão das atividades e das ações, que são determinadas e determinantes, causas e causadoras, transformadas e transformadoras. Só é possível aceitar o contrário se se supor a existência de um espírito absoluto e a-histórico. Ao refletir sobre a economia, o desenvolvimento de forças produtivas, o trabalho como fundamento ontológico do ser social, Marx não está se referindo ao movimento financeiro do capital, mas às forças produtivas que dão origem à sociedade, não se deve compreender, por força produtiva, apenas o trabalho assalariado, que é uma forma histórica do trabalho, mas a capacidade do homem de antecipar na mente aquilo que quer ver realizado no mundo material. O pensamento humano é também uma força produtiva, assim como as instituições sociais criadas pela humanidade. Se o modo como as forças produtivas estão organizadas na atualidade respondem ou não aos problemas sociais, é outra questão. 45

Subjetividade, Trabalho e Alienação Nesta parte do texto, discute-se a segunda “acusação” que se faz a Marx: do seu suposto determinismo econômico emanaria a falta de sensibilidade do filósofo para com as questões relativas à subjetividade. É fato que Marx não se ocupou de um tratado sobre a subjetividade, mas teceu muitas reflexões que tornam possível entender que o autor alemão não apresenta a subjetividade de acordo com as concepções clássicas, e isto leva ao equívoco de se julgar inexistente, nele, reflexões sobre o tema. Para pontuar a diferença, expõe-se duas concepções clássicas de subjetividade e, após, o pensamento de Marx sobre o tema. A primeira das concepções clássicas é a escolástica, que entende o subjetivo como designação do ser, atuante e determinante, conforme a vontade e o arbítrio do sujeito em relação ao ser representado, ou, o objeto. O homem é o ser subjetivo, criado à imagem de Deus e dotado por Ele de poder sobre todas as coisas representadas no mundo material. O homem, pelo seu arbítrio, teria o poder e a permissão divina para agir sobre o mundo, mudá-lo ao seu talante, retirar dele, ainda que à força, os meios de que necessita para viver. Não se entende, na concepção escolástica, a subjetividade como simbiose do homem com a natureza, mas como domínio. Outra concepção clássica, iluminista e metafísica, entende que o “subjetivo” designa o que se encontra no sujeito como sujeito cognoscente. Neste caso, o subjetivo é o representado e não o real ou substancial. O subjetivo é o ser capaz de conhecer, entender, perscrutar e dominar. A representação do ser cognoscente está na razão que a tudo desvenda. A subjetividade, então, passa a ser entendida de duas maneiras: ou ela é a característica do ser do qual se afirma algo, ou do próprio ser que afirma. A diferença de significado obedece ao fato de que, num caso, a relação considerada é a relação sujeito-predicado e, no outro caso, é a relação sujeito cognoscente - objeto do conhecimento. Do ponto de vista desta concepção, uma realidade é substancial porque emergem dela certas propriedades que lhe são inerentes. Por isso, a realidade substancial é sujeito, e sua característica é a “subjetividade”. O sujeito é um sujeito humano individual e o seu ponto de vista é um ponto de vista particular. Para as concepções clássicas, as manifestações e elementos especificamente humanos não colocam o ser humano no mundo, mas antes, o separam dele, constituem uma muralha entre o homem e o mundo. Esta muralha está no entendimento de que a 46

subjetividade humana não depende da natureza, do mundo material, para seu desenvolvimento e complexificação. Por outro lado, também aparta o homem dos demais homens, uma vez que, desconsiderando a externalidade como determinante, desconsidera também os demais seres humanos, que são externos ao indivíduo. A essência humana é considerada como independente da forma societária porque não necessita que outros seres humanos influam no desenvolvimento dos talentos e gostos, sentimentos e sensibilidade do indivíduo, a subjetividade seria atemporal. O entendimento de Marx sobre tais questões é bem diferente. A subjetividade não se apresenta como algo natural e centrado unicamente no indivíduo atomizado e cindido com a totalidade das relações sociais e históricas, mas é produto social, porque se desenvolve junto com a cooperação entre os homens, é a relação que se estabelece com tudo aquilo que está à volta. Não pode haver, para Marx, uma consciência pura, apartada da simbiose com a natureza e com a cooperação entre os homens e, portanto, não pode haver subjetividade que aparte o homem do mundo, pois ela só se torna subjetividade humana na relação com o mundo e com os outros homens: “Desde o início, portanto, a consciência já é um produto social, e continuará sendo enquanto existirem homens”. (MARX e ENGELS, 2007, p. 35). Em outras palavras, a subjetividade em Marx não é a qualidade exclusiva do sujeito cognoscente, ou aquilo que diz respeito unicamente ao sujeito: qualidades pessoais, de ordem afetiva, arbitrária e relativa. Em Marx o sujeito cognoscente não se desvincula das condições objetivas, históricas, que são constituídas no movimento das forças produtivas. A subjetividade não é um dado a-histórico, uma essência atemporal do sujeito, mas uma qualidade desenvolvida em interação com a totalidade das relações sociais em determinado tempo, em determinado lugar.

[...] mas os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. No primeiro modo de considerar as coisas, parte-se da consciência como do indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se considera a consciência apenas como sua consciência. (MARX e ENGELS, 2007, p. 94).

O desenvolvimento de um determinado modo de produção está ligado a um determinado modo de cooperação entre os homens, um determinado modo de organizar os talentos e potencialidades; temperamentos e caráter de cada indivíduo; a fim de 47

melhor garantir a satisfação das necessidades e carências. A premissa fundamental é a atividade vital, a partir dos seres humanos e seu processo de desenvolvimento real, teleologicamente concretizado. Esta é a base sobre a qual se deve compreender a construção da subjetividade: na vida real começa a consciência real. A subjetividade é, então, material e histórica. Aquilo que é humano é o mundo material que minha época produziu. Não existe uma essência eterna, a-histórica e independente da forma societária. Se a subjetividade é histórica, então ela é transitória, o que é humano em uma determinada época pode não ser considerado assim em outra. O que é subjetivo tem de ser a unidade do sujeito com toda a sociedade (usufruto dos bens produzidos pela sociedade). Tudo aquilo que é produzido pela sociedade humana é humano, até mesmo as desumanidades produzidas em determinados períodos, são obra humana. A subjetividade em Marx é a compreensão de que tudo aquilo que é produzido historicamente constitui a essência humana (meios de produção, bens, técnicas, conhecimentos, arte, cultura, educação). A essência do homem é social, aquilo que o homem faz e como ele faz o constrói como humano, é sua ontologia. Com isso, temos uma relação clara entre trabalho e subjetividade. Se a atividade produtiva do homem é sua ontologia, se ela só pode existir em interação e simbiose com a natureza, se a partir desta interação e simbiose o ser humano desenvolve os meios de produção e sua própria história, então, a partir do trabalho, entendido aqui como categoria especificamente humana, a subjetividade é constituída e constituinte da essência humana. O trabalho é a capacidade humana de, por sua ação consciente, transformar o mundo natural em coisas não naturais que satisfazem necessidades e carências, mas é também transformação do próprio ser que transforma, pois o mundo natural impõe ao homem que se modifique. Mudar o meio natural é condição de existência para o homem, que o faz através de mediações (instrumentos) que constrói utilizando os próprios elementos já dispostos na natureza. Essas mediações são potencializações do humano, aumentam a força, o alcance, a velocidade, etc. O homem não se relaciona com a natureza de forma imediata, mas de forma mediada, produzindo suas relações com os outros homens também de forma mediada. O ser humano necessitou transformar elementos da natureza em instrumentos de sua vontade, “desse modo, faz de uma coisa da natureza órgão de sua própria atividade, um órgão que acrescenta a seus próprios órgãos corporais, aumentando seu próprio corpo natural, apesar da Bíblia”. (Marx, 2008, p. 213). O trabalho é a transformação permanente da natureza pelo homem. Cada produto do 48

trabalho, cada invenção, é extensão e potencialização das capacidades humanas. A partir delas, o homem passa a distinguir-se da natureza. Contudo, permanece natureza. Por sua limitação biológica, o homem obrigou-se a conhecer as leis da natureza, e, ao produzir potencializações de suas capacidades atribuiu funções não naturais às coisas da natureza, criou a tecnologia. Utilizar instrumentos, conscientemente, para aumentar força, velocidade, visão, etc., é coisa que nenhuma outra espécie faz tal como o homem. Tecnologia é expansão das capacidades humanas, só se efetiva pela transformação da natureza. Além disto, a fragilidade do indivíduo faz com que ele precise, também, da cooperação. A constituição do homem pelo trabalho põe como exigência a cooperação, criando a necessidade da comunicação, da linguagem. Graças à cooperação da mão, dos órgãos da linguagem e do cérebro, não só em cada indivíduo, mas também na sociedade, os homens foram aprendendo a executar operações cada vez mais complexas, a se propor e alcançar objetivos cada vez mais elevados. O trabalho mesmo se diversificava e aperfeiçoava de geração em geração, estendendo-se cada vez a novas atividades. À caça e à pesca veio juntar-se agricultura e, mais tarde, a fiação e a tecelagem, a elaboração de metais, a olaria e a navegação. Ao lado do comércio e dos ofícios apareceram, finalmente, as artes e as ciências; das tribos saíram as nações e os Estados. Apareceram o direito e a política e, com eles, o reflexo fantástico das coisas no cérebro do homem: a religião. (ENGELS, 2004, p. 24-5).

Com Engels pode-se afirmar que o trabalho funda o mundo dos homens, não é possível a este relacionar-se com a natureza sem produzir materialmente sua existência, sem prover para si a satisfação de necessidades fundamentais. Agindo sobre a natureza, desenvolve um conjunto de conhecimentos que pode ser extrapolado para outras coisas necessárias. A cada nova construção, cria-se o novo e criam-se novas necessidades. A materialidade do trabalho é o elemento essencial que desenvolve a práxis e, através dela, relações sociais e, a partir delas, a cultura, a arte, a filosofia, a educação, produtos necessários e inevitáveis, em última instância, do trabalho. A partir do trabalho, foi possível refinar os membros e a sofisticação dos sentidos. (ENGELS, 2004). No primeiro caso, o ser humano foi capaz de criar extensões do corpo: o machado, a lança, o arco e a flecha, por exemplo, potencializaram o alcance e a força dos membros humanos, transformando o homem de caça em caçador. A força humana foi expandida e, com ela, a potencialidade humana de planejar e agir, de sentir e fazer, de entender as forças da natureza e a si mesmo. No segundo caso, os sentidos humanos e os órgãos dos sentidos, fundamentais para a formação da subjetividade, foram aperfeiçoados pela influência do trabalho, 49

elevando-os a níveis que nenhum outro ser pôde alçar (LEONTIEV, 1978). O olho humano vê mais coisas em um objeto do que o olho de qualquer outra criatura; o ouvido humano diferencia e dá sentido a sons como nenhum outro na natureza; o paladar humano tornou-se extremamente sensível; o olfato humano é capaz de identificar odores os mais variados e o tato ganhou sentidos e significações que não existem para os demais animais. Pelo trabalho, pela cooperação, pelas potencializações criadas socialmente, as capacidades do ser humano tornaram-se mais complexas. A mediação da cultura humana tornou também mais complexa a subjetividade humana: O sentido musical do homem só é despertado pela música. A mais bela música nada significa para o ouvido completamente amusical, não constitui nenhum objecto, porque o meu objecto só pode ser a confirmação de uma das minhas faculdades. Portanto, só pode existir para mim na medida em que a minha faculdade existe para ele como capacidade subjectiva, porque para mim o significado de um objecto só vai até onde chega o meu sentido (só tem significado para um sentido que lhe corresponde). Por conseqüência, os sentidos do homem social são diferentes dos do homem associal. Só através da riqueza objectivamente desenvolvida pelo ser humano é que em parte se cultiva e em parte se cria a riqueza da sensibilidade subjectiva humana (o ouvido musical, o olho para a beleza das formas, em suma, os sentidos capazes de satisfação humana e que se confirmam como faculdades humanas). (MARX, 1989, p. 199).

Marx explica o indivíduo e a subjetividade como expressão do ser social. Os órgãos da individualidade (audição, tato, paladar, olfato, visão) são resultado da apropriação humana da natureza, da relação homem-natureza. Mas só se tornam mais complexos na relação com os demais seres humanos, com a sociedade e a cultura desenvolvida pelas gerações de homens e mulheres que trabalham em cooperação, tornando o mundo mais humano. A apropriação das objetivações das gerações anteriores, das habilidades e funções que não tinha ao nascer, fez o homem aprender a ser homem, a produzir suas potencialidades socialmente, pelo trabalho. É a sociedade que produz a capacidade de inventar o navio, o avião, o trem. Por esta razão, quando a propriedade privada dos meios de produção exclui frações humanas do gozo livre desses bens, o que resulta são homens mutilados, expropriados de uma força que lhes é vital. (KLEIN, 2007). Se, na sociedade humana, há propriedade privada, retiram-se os avanços criados socialmente de uma significativa parcela da humanidade. Quando há apropriação privada, há brutalização e alienação daqueles que estão apartados das conquistas históricas. A propriedade privada tornou-nos tão estúpidos e parciais que um objeto só é nosso quando o temos, quando é utilizado. Os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos os 50

sentidos, pelo sentido do ter. (MARX, 1989). O ser humano reduziu-se a esta absoluta pobreza subjetiva a fim de produzir toda riqueza exterior. Marx revela tal pobreza ao falar da sociedade do nosso tempo: Trata-se do tempo em que as próprias coisas que, até então, eram transmitidas, mas jamais trocadas, oferecidas, mas jamais vendidas, conquistadas, mas jamais compradas – virtude, amor, opinião, ciências, consciência etc. –, trata-se do tempo em que tudo, finalmente, passa pelo comércio. O tempo da corrupção geral, da venalidade universal ou, para expressá-lo em termos de economia política, o tempo em que todas as coisas, morais ou físicas, tornando-se valores venais, devem ser levados ao mercado para que se aprecie o seu mais justo valor. (MARX, 2009, p. 48).

A ferrenha crítica de Marx à sociedade capitalista deve-se, entre outras coisas, ao fato de que tudo é reduzido ao seu valor de troca, a sua venalidade, e, portanto, tudo pode se reduz a um equivalente universal (dinheiro), até aquilo a que não se pode atribuir valor, como a virtude, o amor, etc. Com o autor alemão, pode-se compreender que, na sociedade da propriedade privada, as coisas produzidas socialmente são separadas dos indivíduos, mutila o sujeito e produz a consciência humana como separada do conjunto da sociedade. A consciência alienada é mutilada e mutilante, é distanciada daquilo que humaniza e reproduz os males sociais. Esta lógica cria uma sociedade que produz desigualdade, a despeito do discurso da igualdade, ou do respeito às diferenças. A sociedade da venalidade universal transformou os sentidos humanos em sentidos do ter, as potencialidades humanas em mercadorias. O homem tornou-se desumano e alienado das potencialidades que foram produzidas socialmente. A subjetividade humana determinada como valor de mercado, determinada pelo movimento do capital, não é uma premissa de Marx, mas objeto de sua mais aguda crítica, de seu mais atento escrutínio e de sua mais profunda negação.

Formação Humana, Educação e Subjetividade

As idéias de Marx a respeito da subjetividade são atuais e candentes. Não se trata, em hipótese alguma, de uma concepção que despreza ou condiciona o ser humano ao mero movimento econômico do capital, mas, ao contrário, eleva o homem a ser que se constrói na medida em que constrói sua própria história no mundo. A subjetividade não se desenvolve à revelia da sociedade e do tempo histórico.

51

A partir das reflexões feitas até aqui, pode-se entender que o trabalho é vida: vida porque é intercâmbio e simbiose do ser humano com a natureza e com os demais seres humanos; é vida porque por ele os homens produzem e reproduzem genericamente a espécie humana; é vida porque a cada necessidade satisfeita pela ação teleológica dos homens, novas necessidades desenvolvem-se e novas ações se tornam indispensáveis; é vida porque, através da transmissão dos conhecimentos acumulados por uma geração à geração mais jovem, o trabalho humano torna-se acumulativo, mais complexo e cria a sociedade e as relações sociais. No decorrer dos séculos, o processo de transformar o mundo e transformar-se a si mesmo levou o ser humano a construir a civilização, a fundar o mundo humano a partir do trabalho. A riqueza produzida pelo trabalho tendo como fonte primeira a natureza não é, simplesmente, riqueza material ou monetária, é também riqueza espiritual, pois o trabalho resulta em coisas que vão muito além de sua finalidade imediata, que é prover o sustento. O trabalho humano cria também: a cultura, a arte, a filosofia, a religião, a educação. Entendida no contexto das múltiplas determinações que compõem o homem, a educação é essencial para a manutenção, aperfeiçoamento e transformação das civilizações. Em diferentes momentos, a transmissão do acúmulo de conhecimentos por uma geração à próxima assumiu diferentes formas, contudo, sua função permaneceu sempre a mesma. O único aspecto da educação que independe da forma societária é exatamente a sua função de formar adultos capazes de operar a manutenção da sociedade. O produto da atividade humana, seja material, intelectual ou ideal, exprime e reflete o seu saber fazer, a sua capacidade produtiva. A cada nova geração, o acúmulo do conhecimento necessário é transmitido. A progressiva complexificação dos modos de produção desenvolveu práticas sociais também mais complexas, exigindo que instituições com a função específica de transmitir o conhecimento acumulado se formassem, e, depois, se especializassem; o tempo destinado à educação das gerações mais jovens aumentou; conhecimentos específicos sobre o modo como funciona a natureza e a sociedade ganharam importância, foram constituídos os diferentes ramos científicos e, a partir deles, a educação ganhou função formal de transmissão dos conhecimentos cientificamente importantes para a produção. “Esta relação entre o progresso histórico e o progresso da educação é tão estreita que se pode sem risco de errar julgar o nível geral do

52

desenvolvimento histórico da sociedade pelo nível de desenvolvimento do seu sistema educativo e inversamente”. (LEONTIEV, 1978, p. 267). Cada geração, além de recriar o mundo de objetos, idéias e moral da geração anterior, avança construindo novos objetos, tendo novas idéias e aprimorando a moral. Formal ou informalmente, os conhecimentos acumulados no curso de uma vida são transmitidos aos mais jovens, que, então, podem avançar, rejeitar, reformular, aperfeiçoar e retransmitir o acúmulo histórico dos conhecimentos. Antes de tudo, a nova geração chega a um mundo já repleto de significados, culturalmente desenvolvido até os limites das forças produtivas historicamente constituídas. Cabe ao mais jovem apropriar-se daquilo que se tornou importante o suficiente na civilização para cristalizar-se e permanecer. Somente após a apropriação dos produtos sócio históricos de sua civilização é que a geração mais jovem terá condições de avançar, quer pela concordânca quer pela divergência. A educação, como necessidade fundamental do homem, também está conectada com a produção e reprodução dos meios de existência. Toda sociedade necessita reproduzir os elementos que garantem sua manutenção, bem como aqueles que introduzem as transformações. Quando os meios de produção são transformados pela ação humana, as relações sociais também sofrem mudanças. São os homens ativos, reais, que produzem e reproduzem uma forma societária. Neste sentido, a consciência do homem individual só pode ser forjada em sua relação social. Contudo, o modo como a sociedade se produz e reproduz é historicamente determinado pelo desenvolvimento de suas forças produtivas. A subjetividade é forjada socialmente. Isso significa que, embora ela seja, de fato, individual, só se constitui como tal na relação social, que é inevitavelmente histórica e cultural. Ao desenvolver sua produção, os homens produzem um modo de pensar, este pensar é também um produto do trabalho humano que, uma vez criado pela relação social do trabalho volta-se para o próprio trabalho a fim de modificá-lo, transformá-lo, torná-lo mais complexo. A ação viva do ser humano sobre o mundo é que desenvolve suas potencialidades, e são os indivíduos reais, históricos, que determinam os modos como as novas gerações deverão ter seus potenciais, caráter e inclinações formados para dar continuidade à forma societária vigente. Todas as mediações produzidas historicamente são objetos a serem aprendidos e ensinados. Apropriar-se de potencializações eleva a capacidade humana, eleva o ser humano. O papel da educação está exatamente na elevação do ser humano pela 53

apropriação das mediações, dos instrumentos do pensamento, do refinamento dos sentidos, do conhecimento das leis da natureza, da capacidade de expressar e comunicar sentimentos e ideias aos demais homens, enfim, a educação é o campo que deveria contribuir para a formação de indivíduos subjetivamente mais humanos. Entretanto, em uma sociedade baseada na sociedade privada, a consequência é a desigualdade em todas as esferas da vida humana. Quando há apropriação privada sobre o produto do trabalho social, a desigualdade no gozo das conquistas humanas torna, por um lado, alguns homens ricos (não só materialmente, mas também culturalmente e, como consequência, subjetivamente) e, por outro lado, uma multidão de trabalhadores expropriados em homens pobres (também não só materialmente, mas culturalmente e subjetivamente). A educação torna-se reforçadora da condição de desigualdade entre os homens. Para Marx (1989), os sentimentos e paixões do homem são verdadeiras afirmações ontológicas do ser, que, porém, só se afirmam na medida em que o objeto se torna objeto sensível, que constitua característica viva da existência humana e que também os sentimentos sejam afirmações do outro: Suponhamos que o homem é homem e que sua relação com o mundo é humana. Então, o amor só poderá permutar-se por amor, a confiança com a confiança, etc. Se alguém deseja saborear a arte, terá de tornar-se uma pessoa artisticamente educada; se alguém pretende influenciar os outros homens, deve tornar-se um homem que tenha um efeito verdadeiramente estimulante e encorajador sobre os outros homens. Cada uma das suas relações ao homem – e à natureza – tem de ser uma expressão definida, correspondendo ao objeto da vontade, da sua vida individual real. Se alguém amar, sem por sua vez despertar amor, isto é, se o seu amor enquanto amor não suscitar amor recíproco, se alguém através da manifestação vital enquanto homem que ama não se transforma em pessoa amada, é porque o seu amor é impotente e uma infelicidade. (MARX, 1989, p. 234-5).

A subjetividade é produzida e produtora daquilo que o homem faz e de como o faz. Nesta relação, produto e produtor estão entrelaçados num abraço que dura enquanto houver humanidade. A formação humana pela educação, seja formal, não formal ou informal, é determinada e determinante das condições objetivas, históricas, construídas a partir do desenvolvimento social das forças produtivas. A subjetividade individual não é desprovida dos elementos históricos que dão a ela significação, sentido, validade e qualidade. Quando há desigualdade, quando há apropriação privada sobre o produto do trabalho social, então, a subjetividade humana é fragmentada e os potenciais humanos tornam-se limitados pela relação social da exploração do trabalho. Na sociedade da propriedade privada dos meios de produção e do trabalho assalariado, para se garantir a 54

vida, deve-se permutar trabalho por alimento diariamente, pois sem alimento, a vida desvanece e morre. Nesta lógica, se o trabalho é mercadoria, e se essa mercadoria é o que garante a vida, então a vida do trabalhador é mercadoria: “[...] „para que a vida do homem seja uma mercadoria, deve então admitir-se a escravatura‟. Por conseguinte, se o trabalho é uma mercadoria, surge como mercadoria da mais miserável espécie”. (MARX, 1989, p. 116). Sendo o trabalho uma mercadoria da mais miserável espécie, a venda da força de trabalho torna-se a condição existencial do trabalhador, que se torna, ele mesmo, uma mercadoria embrutecida na lógica imposta pelo mercado de trabalho. Na atualidade, a brutalização da vida e a cisão entre o indivíduo e aquilo que o faz humano tornou-se tão profunda, tão perigosa à própria ordem social, que a educação passou a ser tida e vista como o instrumento capaz de transformar a sociedade. Embora seja uma instituição fundamental à superação da alienação e à conquista da emancipação humana, a educação não é suficiente para redimir a sociedade das mazelas constituídas historicamente. Se por um lado, é capaz de identificar as limitações e contradições sociais do capitalismo, por outro lado, opera em favor da manutenção das instituições existentes, sugerindo a emancipação na liberdade de escolha e na melhor adequação ao mercado de trabalho. Assim, além da reprodução, numa escala ampliada, das múltiplas habilidades sem as quais a atividade produtiva não poderia ser levada a cabo, o complexo sistema educacional da sociedade é também responsável pela produção e reprodução da estrutura de valores no interior da qual os indivíduos definem seus próprios objetivos e fins específicos. As relações sociais de produção reificadas sob o capitalismo não se perpetuam automaticamente. Elas só o fazem porque os indivíduos particulares interiorizam as pressões externas: eles adotam as perspectivas gerais da sociedade de mercadorias como os limites inquestionáveis de suas próprias aspirações. É com isso que os indivíduos “contribuem para manter uma certa concepção do mundo” e para a manutenção de uma forma específica de intercâmbio social, que corresponde àquela concepção do mundo. (MÉSZÁROS, 2007, pp. 263-4).

Tomada isoladamente, como instituição capaz de transformar a sociedade toda, a educação passa a ser idealizada como redentora dos valores que a sociedade deixou de realizar. Quanto mais profunda a separação entre idealidade e realidade, maior o clamor por uma educação/formação „moral‟ do homem. Isolada, a educação só pode ser tida como formação técnica do trabalhador para ingressar no mercado de trabalho, mantendo a concepção capitalista do mundo e forjando uma subjetividade embrutecida, de sentidos adormecidos para aquilo que humaniza. A concepção da educação como 55

redenção social parte da mesma base material cujas manifestações procura denunciar, criticar e negar: a ordem social da propriedade privada dos meios de produção. Ao perceber a alienação do homem a partir do ponto de vista do capital, a educação não tem condições de propor sua superação a não ser no quadro dos postulados morais mais gerais e na conformação reformista do Estado capitalista, procurando melhorá-lo ou humanizá-lo. Assim, o enriquecimento da subjetividade na direção da humanização do homem é também uma tarefa educacional, porém, apenas quando esta tarefa assume o caráter de ruptura profunda. Nos limites da modificação política ou do clamor moral pela melhoria das capacidades técnicas do trabalhador, a educação reforça e alimenta a desigualdade e a formação de uma subjetividade pobre, incapaz de superar a atomização do indivíduo, de entender o homem como ser genérico, de superar as mazelas sociais e, por fim, contribuindo para manter a concepção de mundo interiorizada na sociedade do capital. A transcendência das relações sociais alienadas só pode ser concebida no quadro geral das relações sociais construídas, não apenas em uma de suas formas. A formação de seres humanos subjetivamente ricos é impossível no contexto que pressupõe a brutalização dos sentidos e a cisão do indivíduo com a sociedade civil. Enquanto houver a propriedade privada e a expropriação da maior parte da humanidade daquilo que humaniza, a subjetividade permanece em xeque.

Referências

ENGELS, Friedrich. Sobre o Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem. IN: ANTUNES, Ricardo (ORG). A Dialética do Trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 13 a 34 KLEIN, Lígia Regina. Fundamentos para uma Proposta Pedagógica para o Município de Campo Largo. Campo Largo, PR: PM/SED, 2007. LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. Lisboa: Editora Alfa-Ômega, s/d. MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Lisboa; Edições 70, 1989. MARX, Karl. O Capital: o processo de produção do capital. Vol. I, Livro 1. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 2008 (25ª. Ed.) 56

MARX, Karl. Miséria da Filosofia: resposta à filosofia da miséria, do Sr. Proudhon. São Paulo: Expressão Popular, 2009. MÉSZÁROS, István. A Teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2007.

57

A Lógica da Exceção na Reflexão Política de Walter Benjamin

Tereza de Castro Callado O rei é o mais justo (dikaiotatos). O mais justo é o mais legal (nominotatos). Sem justiça ninguém pode ser rei, mas a justiça é sem lei (aneu nomou dikaiosyne). O justo é legítimo e o rei, que se tornou causa do justo, é uma lei viva (nomos empsychos)” Tratado de Diotogene parcialmente conservado por Stobeo)

A Lógica da Exceção na Reflexão Política de Walter Benjamin

Em 1920 aparece o ensaio de Walter Benjamin Zur Kritik der Gewalt que antecipa, por 12 anos o que aconteceria ao ordenamento jurídico da República de Weimar. As oscilações daquele sistema parlamentar são visíveis na substituição incessante de primeiros ministros. O panorama caótico generalizado da inflação, do desemprego, do descrédito da juventude em relação ao futuro, na verdade a desilusão radical em relação ao século, é caracterizada pela “volta silente das trincheiras”, na Primeira Guerra, dos soldados, sem nenhuma experiência a comunicar. Esses sintomas, acrescidos à frustração de uma revolução proletária que não realizou sua síntese dialética, mas sem que cessasse de ameaçar, na ótica de segmentos da comunidade católica, uma nova erupção, levaram a Alemanha a encontrar saídas no doutrinamento que teve como estofo a pureza da raça ariana. O massacre ideológico concluído pelo totalitarismo na monstruosidade da “solução final” foi o espólio deixado como herança por esse estado de exceção fatídico, se for possível resumir em poucas palavras o panorama da deliquescência moral em que naufragou uma civilização em seu estágio avançado. Não sabemos de que forma, mas essa hecatombe já tinha sido pressentida inconscientemente pelo pensador Walter Benjamin, quando, em 1920, se decide a “prevenir” sobre a ambiguidade do termo Gewalt, que em língua alemã tanto pode significar poder como 

Professora de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará. Pós-Graduação em Munique-Alemanha. Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e Doutora em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP). Dirige o “Grupo de Pesquisa Walter Benjamin e a Filosofia Contemporânea”. Editora de Cadernos Walter Benjamin, acessível no site: http://www.gewebe.com.br/cadernos.htm

58

violência. Benjamin vai buscar explicações para os sintomas que condicionaram aquele ambiente político em uma psicologia de massas do fascismo para compreender sua extensão no culto da personalidade, nas noções falsas de heroísmo de guerra e no caráter dogmático que tomaram de assalto os comandos alastrando-se para o resto da população esmagada pelo medo e tendo que sublimá-lo na ovação. E conclui que a degradação que vitimou o sistema legislativo de Weimar só poderia ser explicada em suas raízes míticas. Portanto o foco da análise sobre o poder derivado do mito deve repousar sobre a relação do direito com a violência. A análise de Benjamin sobre a decadência dessa instituição incide no trânsito entre meios e fins, que nem o direito natural nem o direito positivo conseguem contornar. Isso leva Benjamin a decidir-se por uma análise à luz da filosofia da história. O ensaio, traduzido para o português por Willi Bolle, com o título enfático de Crítica da violência, crítica do poder, mostra, já no seu início, a necessidade de um olhar acurado sobre a interferência do direto em relações éticas. Enquanto o direito natural busca legitimar os meios pela justiça dos fins, a lei positiva alcança à justiça dos fins pela legitimidade dos meios (BENJAMIN, 1986, p. 160). Ao filósofo, além da necessidade de se perguntar: “mas serão os meios do poder sempre justos?” resta a interrogação sobre o que existiria por trás da palavra “legitimidade”, levando-nos a duvidar se essa instância – a da legitimidade - garantiria a justiça. De qualquer forma, inicialmente, a violência, diz o filósofo, só pode ser encontrada na esfera dos meios, não na dos fins (im Bereich der Mittel, nicht der Zweck aufgesucht werden kann).46 Para investigar o desenvolvimento de ambos os direitos, Benjamin recorre à filosofia da história do poder, para a qual a crítica à violência pode ser definida como a apresentação de suas relações com o direito e a justiça (Recht und Gerechtigkeit).47 Sobressai-se nessa leitura um calafrio que perfura o nosso entendimento, pois trata-se da violência do sistema jurídico, que deveria ter em foco o caráter “sagrado da vida”. Na análise sobre ele são auscultados em princípio os meios, ficando em aberto “ironicamente” o questionamento “se a violência como princípio é moral (sittlicht) mesmo como meios para fins justos (zu gerechten Zwecken)” 48 quando ela tenta descredenciar a lei. Encontra-se na análise da ilação meios e fins o tom premonitório do ensaio com relação aos fatos funestos que vitimaram a constituição de 46

Cf. Walter Benjamin. “Zur Kritik der Gewalt” in: Aufsätze, Essays, Vorträge-Gesammelte Schriften, Band II, 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1991, S. 179-203. 47 “Die Aufgabe einer Kritik der Gewalt lässt sich als die Darstellung ihres Verhältnisses zu Recht und Gerechtigkeit umschreiben.” Walter Benjamin. Opus cit. S. 179. 48 “Offen blieb immer noch die Frage, ob Gewalt überhaupt, als Prinzip, selbst als Mittel zu gerechten Zwecken sittlich sei”. Benjamin. Opus cit. S 179

59

Weimar e o povo alemão, a partir da assinatura, por Hitler, do decreto para a proteção do povo e do estado (Verordnung zum Schutz von Volk und Staat ) em 28 de Fevereiro de 1933. Esse ordenamento caracterizado como medida “provisória” e que perdurou 12 anos feriu a constituição de Weimar e a dignidade do país, na medida em que sua instituição era legislar em causa espúria. De tudo isso se pode deduzir a falácia da norma transbordando da subjetividade sob o pretexto de “salvaguardar o povo alemão”. Aparte o absurdo da afirmação de que o direito natural não vê nenhum problema no uso da violência, por exemplo, no caso em que foi aplicada à Revolução Francesa, e onde a violência é justificada como “um produto da natureza”, resta ainda a ironia. Benjamin lembra que no direito natural as pessoas abrem mão do próprio poder para entregá-lo ao poder do Estado, pois na realidade o indivíduo, antes de firmar seu contrato, como adverte Espinoza, o realiza pelas leis do bom senso e da razão, por possuir um poder que na realidade exerce de fato (jede beliebige Gewalt, die er de facto innehabe) para dele abdicar em favor da comunidade. Alerta Benjamin que a filosofia darwinista mostra, a partir do dogma da violência da natureza - reconhecida pela história natural apenas um pequeno fosso a transpor até o dogma abstruso da filosofia do direito, “segundo o qual todo poder adequado só a fins naturais é, por isso mesmo, também legítimo.”

49

Mas Benjamin não deixa de observar outra força ao lado do poder mítico.

Trata-se do poder puro – divino – ao qual subjaz a existência do homem. Ao contrário, “a institucionalização do direito entre os homens”, é também “institucionalização do poder e nesse sentido um ato de violência” Portanto, enquanto “a justiça é o princípio de toda instituição divina de fins, o poder (Macht) é o princípio de toda institucionalização mítica do direito” 50 Onde o sistema jurídico atua, fica claro o uso do direito como uma brecha para a manutenção do poder. O direito seria uma oxigenação do poder, digamos assim, na medida em que as restrições de um poder avassalador se concretizariam na concessão a outrem de um direito. Quando esse ato se realiza dissolve-se o pacto com o nomos da terra, e abandonada se vê a justiça (dikê), uma vez que ela não se autoapresenta na coerção: “o espírito é liberal. Ele não suporta coação externa nem adaptação de seus resultados aos caprichos de um poder qualquer. (HORKHEIMER, 1983, p. 141). Essa observação que não deixa de ter sua lógica primorosa não deve se entusiasmar com a plenitude de seus efeitos, é o que pensa também Horkheimer quando 49

“...dass jene Gewalt, welche fast allein natürlichen Zwecken angemessen, darum auch schon rechtmässig sei.” Walter Benjamin. Opus cit S. 180 50 Walter Benjamin. “Crítica da Violência, crítica do poder” in: Documentos de Cultura documentos de barbárie (Trad. e Org. Willi Bolle), São Paulo, Cultrix, 1986. p. 172.

60

complementa o pensamento na frase seguinte: “todavia o espírito não está separado da vida da sociedade, não paira sobre ela”. Essa desarticulação bem colocada visa menos a uma crítica social do que a abstração de um pensamento que elegeu o espírito como liberdade, selando com essa afirmação a atuação da razão na história. Para concluir a crítica continua o filósofo com seu argumento: “que construção teórica por mais equivocada que seja, não pode preencher o requisito de exatidão formal?” Portanto a manifestação abstrata da lei e sua adequação ao ato interpretativo deixa claro o caráter hesitante da constituição do poder que precisa estar oculto para se efetivar. A guerra é concebida como um arquifenômeno do poder instituinte do direito, quando se torna notório que esse poder é a garantia do poder em si. São concedidos direitos ao vencido mesmo quando o adversário vencedor dispõe do mais amplo poder, o que significa que o direito é uma concessão feita pelo poder, de onde se pode concluir que o direito não nasceu da liberdade, como diz expressamente Horkheimer em Teoria crítica, teoria tradicional.

51

Podemos acrescentar à afirmação do fundador da Zeitschrift für

Sozialforschung a resposta de que o direito nasceu do poder. Pois mesmo o direito cedido ao vencido é uma forma de perpetuação do poder através do artifício ilusório da concessão – uma manifestação de superioridade que humilha. Ao contrário, a manifestação do poder divino encontra-se no poder educativo em sua forma perfeita, fora da alçada do direito: passar pela existência é a maneira divina de educar. O poder mítico – “em sua forma arquetípica como manifestação dos deuses” - institui o direito, mas o poder divino o destrói, pois os limites impostos por aquele são arrebentados por este. O poder mítico, através de sua filha dileta - a ideologia - abre um abismo entre o ser e a existência para preenchê-la com a fantasmagoria da metrópole moderna gerida pelo capital e o lucro (BENJAMIN, 2006). Aqui também, como no sistema jurídico, atuam as engrenagens fantasmagóricas do mito ocultando as paixões. No direito uma delas produz a culpa. Por ser derivado do poder mítico o direito impõe-se entre os viventes, produzindo culpa e seu antídoto – a penitência para provar sua eficácia no mundo das pessoas.52 Enquanto o poder mítico através do direito “exige sacrifícios”, o 51

Max Horkheimer. Teoria Crítica, teoria tradicional (Trad. Edmar Afonso Malagodi e Ronaldo Pereira Cunha), São Paulo, Cultrix, 1983. P. 141. 52 “O desencadeamento do poder jurídico remonta (...) ao processo de culpa da vida pura e natural, o qual entrega o ser humano inocente e infeliz à penitencia, com a qual “expia” sua culpa – e também absolve o culpado, não de uma culpa, mas do direito. Pois com a vida termina a dominação do direito sobre os vivos” Tanto isso é verdade, que aquele que atenta contra o próprio corpo, no ato suicida, não é julgado. “O poder mítico é poder sangrento sobre a vida, sendo esse poder o seu fim próprio, ao passo que o poder divino é um poder puro sobre a vida toda, sendo a vida o seu fim”. Walter Benjamin. Crítica da violência crítica do poder (Trad. Willi Bolle) Opus cit. p. 173.

61

poder divino os “aceita”. Essa constatação prova que o direito não possui existência em si, mas se utiliza da existência dos homens para se articular, pois o mal não possui objeto. Ao contrário, o poder divino, é “insígnia e chancela”, possui a distinção de “absolver a culpa”. Com a reflexão sobre o poder mítico do ordenamento jurídico Benjamin não tem dúvida de que “a solução de conflitos é um princípio possível” e exemplifica esse fenômeno nas relações entre as pessoas particulares.

53

As leis da

espontaneidade e da afetividade são vinculadas a uma postura que prescinde do contrato e da interferência de qualquer norma institucionalizada. Para Benjamin “a norma é desqualificada enquanto instância crítica”. A normatização que o direito exige estabelecendo limites e os circunscrevendo desafia o caráter da justiça (dikê). O reestabelecimento do equilíbrio, após a infração, era concebida, em tempos arcaicos, como leis não escritas: o homem pode transgredir esses limites, sem o saber e assim ficar sujeito à penitência, o que é distinto da punição. Com esse estofo os antigos construíram o gênero trágico. A essa ordem da concepção antiga do destino que vitima o ignorante, Hermann Cohen chamou de “conhecimento inescapável”. Talvez tenha sido esse desconhecimento que sujeitou Édipo a descoberta de sua tragédia na “solidão gélida” de seu ser. Tal armadilha não poupou Édipo da penitência. Com certeza essas raízes míticas da culpa foram fortes suficientes para ilustrar a necessidade de uma lei escrita, a partir de então “entendida como uma rebelião contra o espírito dos decretos míticos”,54 pelo menos é assim que o direito institucionalizado nos faz crer. A reflexão crítica sobre o par direito e violência tem como objetivo desenvolver o conceito de exceção (Ausnahmezustand) que também é vinculado ao direito, ou tem no direito sua inclusão-exclusão. Essa categoria política cara à modernidade está relacionada a outras duas teorias, imprescindíveis às articulações significativas que tangenciam o enfoque benjaminiano, uma simultânea ao aparecimento do ensaio e outra interpretativa. A primeira delas é a de Carl Schmitt, a posterior, de Giorgio Agamben. Reagindo a assertiva do primeiro em que “soberano é aquele que decide em um estado de

53

“será que a solução não-violenta de conflitos é em princípio possível? Sem dúvida. As relações entre pessoas particulares fornecem muitos exemplos. Um acordo não violento encontra-se em toda parte, onde a cultura do coração deu aos homens meios puros para se entenderem. Aos meios legítimos e ilegítimos de toda espécie – que são todos, expressão da violência – podem ser confrontados como meios puros os não-violentos. A atenção do coração, a simpatia, o amor pela paz, a confiança e outras qualidades a mais são seu pressuposto subjetivo. Sua manifestação objetiva é determinada pela lei (...) de que meios puros não sirvam jamais a soluções a soluções imediatas, mas sempre a soluções mediatas.” Walter Benjamin. Opus cit, p. 168. 54 Walter Benjamin. Crítica da violência… Opus cit. p. 172.

62

exceção”,55 a teoria da soberania de Benjamin o supera, na medida em que adapta à análise o embasamento de uma reflexão política (teológica), pois o autor da teologia política56 aborda o problema da soberania em função da forma jurídica e da doutrina, embora ele observe que esse método formalista possa despertar a aspiração de “subtrair a especulação jurídica a mudanças de situação política, para alcançar a objetividade científica através do estudo formal das questões problemáticas.” Tanto Benjamin como Schmitt, como bons leitores de Jean Bodin, desconhecem as razões para quaisquer considerações sobre a normatividade da política, a não ser para Benjamin que esse ordenamento possua as “razões”, com as quais ele não concorda, de uma “estrutura mística da autoridade”, como nos alerta Montaigne. Desse fato parece derivar o decisionismo schmittiano, quando confunde decisão e soberania. Benjamin concorda com Schmitt quanto à afirmação de que a categoria da soberania parte da decisão, mas se Schmitt acredita na validade do Direito, para Benjamin todo Poder, enquanto meio, é ou instituinte ou mantenedor de um Direito que é violência e essa violência advém do poder Mítico.57 Para Schmitt, o conceito de político tem uma origem no par amigoinimigo (hostilis)

58

que a filosofia política de Benjamin supera. Pois o autor de

Ursprung des deutschen Trauerspiels não deixa de vislumbrar a questão da possibilidade do que a política venha a ser, o que faz de forma especial neste livro, na análise interpretativa do conteúdo de verdade da arte no Trauerspiel. Aquela estética funciona como uma historiografia inconsciente da mentalidade do tempo, deixando vislumbrar o fenômeno de uma soberania política liberta dos condicionamentos da moral luterana e seu rigor, quando desconsidera o espaço mítico da pregação da função sacrossanta dada por Deus ao rei para substituí-la por uma ação de outra natureza. Nessa emancipação consegue ver no homem comum – o súdito - um semelhante. E essa reviravolta na ordem institucionalizada do absolutismo barroco, que desloca a percepção para outro ângulo desfigura o Direito Constitucional da época. Sua prescrição

55

“Souverän ist, wer über den Ausnahmezustand entscheidet.¨ Carl Schmitt. Politische Theologie – vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. Berlin: Duncker & Humblot, 1996. S.13 56 Carl Schmitt. Politische Theologie –vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. Berlin: Duncker & Humblot, 1996. 72 Seiten. 57 “Alle Gewalt ist als Mittel entweder rechtsetzend oder rechtserhaltend”. Benjamin cita Erich Unger para falar da essência do sistema jurídico advinda do poder mítico: “Não reivindicando nenhum desses dois atributos...” ou seja, se o direito , renuncia a qualquer validade (Wenn sie auf keines dieser beiden Prädikate Anspruch erhebt, so verzichtet sie damit selbst auf jede Geltung). Walter Benjamin. Zur Kritik der Gewalt, Opus cit. S. 190 58 “Carl Schmitt uses the language of friendship and enmity to convey the essence of the political as apart from the economic, social, and religious aspects of life”. Frank Vander Valk. Decisions, Decisions:Carl Schmitt on Friend and Political Will. Rockfeller College Review, Volume 1, Nº 2. P. 38

63

para o ato de governar consistia na instalação - com poderes ditatoriais - de um estado de exceção por ocasião de um conflito civil religioso do tempo da Reforma, onde só se via, no nível pragmático desse ordenamento, a insubmissão da figura régia e portanto seu assenhoramento (Herrlichkeit) incondicional. A infração benjaminiana a este status quo se dá no domínio psicológico de um inconsciente que transfigura os privilégios daquela ordem social corrigindo as imperfeições do domínio rígido da norma. O soberano abre um estado de exceção na alma. Sua inclinação ao outro é antes um registro de uma auto configuração da própria interioridade do que submissão e sujeição ao inferior. Assim é infringido e superado o estado de exceção ditatorial do absolutismo barroco. A estrutura que ele exige se condiciona à prática da solidariedade. É sua ausência, no Trauerspiel que leva o príncipe a indecisão (Unentschlossenheit), apesar de saber que sua função é decidir. Ele sucumbe ao abismo entre esses dois polos. A designação por Deus para exercer seu domínio sobre o reino não se compatibiliza com a pequenez de sua condição de mortal, descoberto no olhar que lança à própria interioridade, onde o confinamento da alma é exacerbado. Impossibilitado de decidir pelas leis prescritas no Direito Constitucional, é nesse espaço que habita a loucura. Incapacitado pela falta de experiência em lidar com os fatos, se torna vítima da própria aspiração ao trono, conduzindo a si mesmo e o reino à catástrofe. Essa estrutura realçada pelas pinceladas gritantes do cenário barroco não deixa de impressionar pelo ato de julgamento histórico, o que inocenta a transparência política do drama de Calderón de la Barca, nesse sentido superior ao Trauerspiel – quando o soberano lançando mão de artifícios internos, salva o reino da catástrofe com a compaixão (Mitleid). Nesse paralelo entre as duas concepções escorrega a “legitimidade” do sistema jurídico do principado barroco, apenas formalmente hábil pra generalizações. A percepção política de Benjamin o constrange a um outra ordem: é a indissociabilidade da moral na mão que dirige, que prova a capacidade de governar - o que não ocorre em Carl Schmitt, que continua insistindo na separação entre Política e Moral. Em Benjamin a vontade estará a serviço da moral que tem sua sede em um voluntarismo divino 59

exercido pelo homem através da sua frágil força messiânica.

59

60

Emitido do passado

O fenômeno do tzim tzum descrito por Isaac Luria representa o fenômeno da criação do mundo, que acontece quando a irradiação da luz divina contida em um vaso gigante, o fragmenta em mil pedaços deixando ao mundo a tarefa da recriação, momento em que Deus recua, para legar essa responsabilidade ao homem. “Para os cabalistas da escola de Luria tzimtzum não significa a concentração de Deus em um ponto mas sua retirada de um ponto.” Essa ideia do descentramento tem uma repercussão valiosa nas reflexões de Benjamin com relação a constituição de uma nova totalidade, da qual deve participar

64

em um index misterioso que impele à salvação, o apelo é recepcionado pela frágil força messiânica (eine schwache messianische Kraft). Esse apelo “não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso”. Apoiado na convicção de que as épocas de decadência não perduram, a articulação memória-esperança acolhida da mística judaica testemunha uma sintonia entre as gerações: “alguém na terra está a nossa espera”. É possível observar o itinerário freudiano do inconsciente incluído como método. Nessa óptica uma época distante pode ser a pré-história de um tempo atual, que deverá atender a um apelo à salvação (Erlösung), construindo com ele o verdadeiro estado de exceção (den wirklichen Ausnahmezustand). Para Schmitt a racionalidade jurídica ou institucional própria do catolicismo romano determina-se por assentar no desempenho rigoroso do princípio da representação,61 exemplificada na mais elevada figura do vaticano. 62Para Benjamin a transgressão a essa lei se dá quando a frágil força messiânica que sobrevive em cada homem advindo do poder puro, poder de Deus, dispensa a representação. É nesse ponto que sua teoria recepciona Lutero. O recorte que essa análise pretende fazer na tese do estado de exceção o evidencia em conjunto com a reflexão gnoseológica defendida na Vorrede, Prefácio do Trauerspielbuch - Noções preliminares para uma crítica do Conhecimento - onde é defendido um método com vistas à exigência de construção de uma outra tematização para

a política,

compreendida lato sensu. Com vistas à possibilidade de uma ação política para a salvação (Erlösung)

63

da humanidade o filósofo judeu-alemão propõe a articulação de

uma coincidência entre ato moral e ato racional, conjugados à sensibilidade e ao entendimento para realçar o valor do singular e o respeito à diferença que negam a subjetividade. O deslocamento da posição do sujeito é feito ao se recorrer aos próprios condicionamentos de sua aparição, na consciência esclarecida, sob o olhar crítico de alguns filósofos contemporâneos da fenomenologia do espírito de Hegel, como Schlegel também o isolado e o periférico. Gershom Scholem. A Mística Judaica (Trad. Dora Ruhman et allii), São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 263. 60 Emitido do passado em um índex misterioso que impele a salvação o apelo é recepcionado pela frágil força messiânica. Ele não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso. Walter Benjamin. “Über den Begriff der Geschichte” – Tese 2 in: Illuminationen, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1977. S. 252. 61 “Von der mittelalterlichen Fähigkeit zur Bildung repräsentativer Figuren – der Papst, der Kaiser, der Mönch, der Ritter, der Kaufmann – ist sie in der Gegenwart das letzte vereinsamte Beispiel, von den vier letzten Säulen, die ein akademiker einmal aufzählte (englisches Oberhaus, preussicher Generalstab, französische Akademie ud Vatikan) sicher die letzte; so einsam dass, wer in ihr nur äussere Form sieht, mit epigrammatischem Spott sagen muss, sie repräsentiere überhaupt nur noch die Repräsentation. Cf. Carl Schmitt. Römischer Katholizismus und politische Form. Stuttgart: Klett-Cotta, 2002. 62 Cf. Carl Schmitt. Catolicismo romano e forma política (tradução Alexandre Franco de Sá), Lisboa: Hugin Editores, 1990, p. 10. 63 Walter Benjamin. “Über den Begriff der Geschichte” Tese 3 in: Illuminationen, Opus cit. S. 252

65

e Novalis. Simultaneamente à legitimação do sujeito lógico, analítico, transcendental, a óptica autocrítica da filosofia do século XVIII observa que este já se achava destinado à fragmentação. A lucidez desafiadora de Benjamin ao renunciar a uma categoria de sujeito vai optar pelo desenvolvimento do particular, onde a força de sua unidade interfere com o respeito às diferenças, na visualização da possibilidade de uma prática política.

O fenômeno

dessa neutralização

deve desarticular

a

política de

homogeneização e dos códigos de calculabilidade do sistema, na medida em que o tempo homogêneo e vazio (homogene und leere Zeit)64da história oficial seja rompido em um agora (Jetztzeit) messiânico.65A constituição de uma nova totalidade a partir da ideia e não do elemento cognitivo objetificante do conceito se dá com base nas observações sobre a crise de um universal extraído da média para assegurar o caráter de demonstrabilidade do conceito, pois ele desconhece a verdade uma vez que os seus métodos de indução e dedução “degradam as ideias em conceitos na medida em que as colocam em um continuum pseudologico66 que não atende às pressões da contingência, da fragmentação e da imprevisibilidade que caracterizam o cotidiano. Em segundo lugar a categoria política da exceção se veicula a uma reação ao estado de exceção negativo vivido na realidade dos anos 20 e 30 da Alemanha Social-Democrata, ou seja, está relacionado à catástrofe do período entre-guerras, dominada pela incógnita quanto ao destino do povo judeu. Assim o filósofo nos convida a exercitar o verdadeiro estado de exceção na tese 8 de Über den Begriff der Geschichte,

67

procedimento que elege um

outro parâmetro para uma teoria política, levando em conta a intelecção e a decisão soberana na práxis de uma resistência, na política de convivência, mas com o olhar à estrutura do modus vivendi com base nas contingências do poder experimentado e apreendido da história. O motivo da opção de Benjamin por uma política lato sensu, argumenta o filósofo, consiste na ameaça à sobrevivência frente ao impacto de forças emergentes obscuras sob a aparência de legalidade instaladas na lei e que aceleraram o desmoronamento da Constituição de Weimar. Para resistir ao totalitarismo que fez Weimar sucumbir à subjetividade, a crítica de Benjamin direciona-se ao recurso normatizador da lei positiva, pois reconhece na norma, uma vez estabelecida, a perpetuação da violência em imanência com o poder mítico cuja ameaça paira sobre o direito desde sua fundação. Da constatação desse fato Benjamin é levado a avaliar o 64

Walter Benjamin. “Über den Begriff der Geschichte” Tese 14 in: Illuminationen, Opus cit. S. 258. Walter Benjamin. “Über den Begriff der Geschichte” Tese 14 in: Illuminationen, Opus cit, S. 258. 66 Walter Benjamin. Origem do Drama Barroco Alemão. Opus cit. p. 65 67 “Über den Begriff der Geschichte” Tese 8 in: Illuminationen, Opus cit. S. 254 65

66

caráter mítico do código “legiferante”, elegendo, enquanto método, a dialética na imobilidade (Dialektik im Stillstand). Observa que a síntese da fundação idealista não consegue mais contornar o peso das vicissitudes em épocas de maior domínio ideológico. Essa tirania advinda de um método que se baseia no princípio da negatividade, não existe mais em um mundo de onde a crítica foi expatriada, e onde a realidade é concebida na lei de antinomias e oposições. Benjamin investiga, na história política, a confirmação da possibilidade de se governar sem o amparo da norma viciada do direito, que sucumbe ao fenômeno de mera codificação do cânone. E descobre no século XVII vestígios de sua existência. Agamben confirma os cuidados do filósofo alemão, encontrando, na pesquisa sobre o direito romano o espaço de um estado de exceção exercido em uma situação emergencial por quelconque68 disposto a salvar, frente a uma catástrofe, os seus semelhantes, conceito este extensivo, em Benjamin, a alteridade e disposto em nível teológico-político. Os dispositivos para sua afirmação, Agamben vai encontrar no conceito político de iustitium do direito romano onde auctoritas e potestas são colocadas lado a lado, instância essa que deve “suspender o direito através do senatus consultum ultimum e a consequente proclamação do iustitium.” Para Benjamin a autoridade foi substituída pelo poder, inscrito sobre o emblema e a convenção reguladora do comportamento, uma vez distanciados os critérios de justiça baseados na espontaneidade e nas leis da afetividade que constroem a convivência, através dos bons hábitos e da atenção. E por outro lado o princípio da competência que assegurava a autoridade é substituída hoje pelo autoritarismo. Uma vez perdido o elo com o compromisso desfazem-se os laços de coração no espaço das interações. Esses elos se encontravam na experiência acumulada na tradição e passada de geração a geração, sedimentando o inconsciente, até desabrochar na expressão de um conhecimento para lidar com a realidade, em forma de sabedoria, que por sua vez concretizaria a competência de onde provinha todo o sentido da autoridade. A falência atual da autoridade, com o fim da Experiência (Erfahrung) deixa um vazio levianamente preenchido pelo espírito autoritário nos totalitarismos modernos – dique contra a reminiscência (Eingedenken) nas contingências da aceleração atual propiciada pela máquina. Uma vez fragilizada a memória, se desvanecem os traços de um passado que poderia se atualizar em forma de experiência. É lamentável que a tradição não tenha legado à modernidade a experiência (Erfahrung) acumulada ao longo dos tempos e

68

Giorgio Agamben. La Comunità che viene, Turin: Giulio Einaudi Editore, 1990.

67

transmitida aos mais jovens pelos mais velhos na forma de um conselho: “a reminiscência funda a cadeia da tradição que transmite os acontecimentos de geração a geração.” Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Benjamin considera “a memória, a mais épica de todas as faculdades”.69 A reminiscência é o registro do que passou, o rastro das vivências absorvidas pela construção histórica da singularidade de cada povo, que fazem do “narrador a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo”.70 Benjamin considera igualmente a sabedoria “o lado épico da verdade” 71uma vez que ela tem a capacidade de agregar as camadas do que é edificante na representação do pensamento de cada época. Uma vez perdidos esses elos com a tradição, se dilui a força da arte de narrar e enfraquecido se torna o patrimônio cultural a que as gerações posteriores poderiam recorrer. O soberano barroco do Trauerspiel vivencia esse dilema. A alegoria de que Benjamin lança mão para exemplificar esse transtorno – precisa ser compreendida como armadura da modernidade: o exemplo é extraído da incapacidade de decifrar as vicissitudes históricas, quando frente à situação emergencial das guerras de religião, o homem se deixa abater pela pressão da fatalidade (Verhängnis) sucumbindo ao próprio poder ou quando é incapaz de defender-se das investidas do cortesão intrigante, descreve o Trauerspiel (drama enlutado do século XVII barroco). A incapacidade do estadista para conduzir o reino é o resultado da fragilidade a que se expôs devido à falta de conhecimento e de experiência em saber lidar com os fatos. A dialética na imobilidade, ao contrário, poderá sanar esse impasse, tornando possível, com base na transformação da dinâmica histórica em ação política, pela experiência, alcançar a estabilidade do reino. Esses dados descobertos pelo trabalho filológico de Benjamin no Trauerspiel não podem ser negligenciados na tentativa de refletir a exceção (Ausnahmezustand). Sua relação direta com o conceito político de soberania desenvolvido no Trauerspielbuch (Origem do Drama Barroco Alemão) leva às últimas consequências a falência da lei quando inscrita como mera convenção. Pensando com Deleuze que “a soberania não reina a não ser sobre aquilo que ela é capaz de interiorizar”, podemos complementar o comentário do que significaria o estado de exceção construído por Benjamin, para dialetizar a política totalitarista de opressão e medo, a política dos vencedores (Herrschenden). Nesse caso precisamos levar em consideração as contingências históricas da formação da teoria da 69

Walter Benjamin. “O Narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” in: Magia e Técnica, Arte e Política (Trad. Sérgio Paulo Rouanet), São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 210. 70 Walter Benjamin. Idem, p. 221. 71 Walter Benjamin. Idem, p. 201.

68

soberania segundo o livro da dramaturgia barroca (Trauerspielbuch), por ocasião da fixação, no portal da catedral de Wittemberg das teses de Lutero que protagonizam o momento reformista, e pelo rigor que se seguiu à divulgação da condenação da ação caridosa, mobilização concebida caoticamente por uma ordem enviesada, que Benjamin irá contestar afirmando que o mal não se encontra na ação e sim no conhecimento que é posse: “o modo de existência mais autêntico do mal é o saber, e não a ação”. 72 Para Benjamin o Mal reside na miragem de uma espiritualidade absoluta”, pois o espírito não pode existir no mundo real senão através da matéria que ele hostiliza. Sua função é concebida nas próprias coisas do mundo, na medida em que ele se integre a elas para a doação ao outro, pela palavra, na ordem da nomeação – essa esfera da verdade visada pela linguagem. Benjamin propõe a filosofia imergir no “pormenor do conteúdo material”, pois é nas coisas pequenas que a vida saltita com sua “indestrutibilidade”. Lutero enganara-se ao frustrar o objeto da caridade, para fazer realçar a fé. Ele não conseguir visualizar o valor da exceção. O luto que percorreu o espírito advindo dessa iniciativa de rompimento com o sagrado, tem sua antítese na ilusão de liberdade. Na “ ilusão de autonomia” e de “infinito” transparece o abismo vazio do Mal. Isso explica porque é próprio da virtude, só possível na alma corporal do homem, ter um modelo a sua frente – Deus. A exceção representa a salvação instalada em uma fissura na catástrofe contínua. Ela é construída com a argamassa que a poesia revolucionária de Baudelaire utiliza para atacar a barbárie das convenções de sua época, demolindo os quadrantes que contabilizam no relógio da metrópole, o tempo cronológico da opressão, para instalar o instante oportuno do Kairós, aberto para a prática política. A exceção é o estofo da narrativa que sabe conciliar a experiência de cada época, de forma descontínua, no inconsciente e com essa sabedoria abrir a possibilidade de libertar o pensamento . Se para Descartes a reflexão era aprisionada nas cadeias (catenas) de razões, no desenrolar axiomático do método dedutivo, a cadeia de reflexões sobre a modernidade se deixa romper abruptamente para emancipar o pensamento do “preceito doutrinário imperativo”. O claro-escuro do barroco, ao invés de obnubilar o pensamento, o torna mais nítido pelo contraste. Enquanto o excesso de luz do Esclarecimento provoca a hipnose instantânea ou a vertigem, o lusco-fusco da arte seiscentista conduz à verdade da imagem. Na moldura desse contraste aparecem os momentos únicos que fazem a exceção para transformá-la em instância de redenção. A

72

Walter Benjamin. Origem do drama barroco alemão. Opus cit. p. 253.

69

exceção é a política das minorias, dique contra o estabelecido que não se renova, é o encontro dos desamparados com uma saída. A exceção existe para manter a indestrutibilidade da existência, por isso é rompimento com o status quo, quando a desconstrução tem lugar no intervalo que separa a indesconstrutibilidade da justiça e a desconstrutibilidade do direito,

73

diz Derrida. A exceção é possível com a experiência

do impossível, quando desorienta por incomodar o estabelecido. Nesse caso a desconstrução que ela inaugura na estrutura do direito e da lei se chama justiça. 74

Referências AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti, São Paulo, Boitempo Editorial, 2004. _________________. O reino e a Glória: uma genealogia teológica da economia e do governo, Tradução de Selvino J. Assmann Boitempo Editorial, 2011. BENJAMIN. Walter. Ursprung des deutschen Trauerspiels, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1977. ________________. Illuminationen, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1977. ________________. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main : Suhrkamp Verlag, 1999. CALLADO. Tereza de Castro. “O comportamento ex-officio do Estadista na teoria da soberania em Origem do drama barroco alemão” in: Ética e Metafísica, Coleção Argentum Nostrum, Fortaleza, Eduece, 2007. pp. 111-142. CALLADO. T. de Castro. “O drama da alegoria no século XVII barroco” in Kalagatos – Revista do Mestrado Acadêmico em Filosofia, Fortgaleza, Eduece, 2004, pp. 133-165. CALLADO. T. de Castro. Walter Benjamin - A Experiência da Origem, Fortaleza, Eduece, 2006. CALLADO. T. de Castro. As metamorfoses da consciência burguesa e a imagem dialética in: Cadernos Walter Benjamin. N.4. Janeiro-Junho 2010 site: http://www.gewebe.com.br/cadernos.htm DERRIDA, Jacques. Força de Lei- o fundamento místico da autoridade (Tradução de Fernanda Bernardo), Porto: Campo das Letras Editores S.A. 2003. PALMIER, Jean-Michel. Walter Benjamin – Lumpensammler, Engel und bucklicht 73

Jacques Derrida. Força de Lei - o fundamento místico da autoridade (Tradução de Fernanda Bernardo), Porto: Campo de Letras, 2003. p. 26. 74 Jacques Derrida, idem.

70

Männlein – Ästhetik und Politik bei Walter Benjamin, Übersetzt im Auftrag der Hamburger Stiftung zur Förderung von Wissenschaft und Kultur, Suhrkamp, 2009. REICH. Wilhelm. Psicologia de Massas do Fascismo (Trad. Maria da Graça Macedo), São Paulo, Martins Fontes, 2001. SCHMITT. Carl. Politische Teologie – vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität, Berlin: Duncker & Humblot, 1996. _____________. Catolicismo romano e forma política (Trad. Alexandre Franco de Sá), Lisboa: Hugin Editores Ltda, 1990. _____________. Römischer Kathotizismus und politische Form, Stuttgart: Klett-Cota, Fünfte Auflage, 2008. SCHOLEM, Gershom. A cabala e seu simbolismo (Trad. Hans Borger e J. Guinsburg, São Paulo, Perspectiva, 1988. __________________. A Mística Judaica (Trad. Dora Ruhman et allii), São Paulo, Perspectiva, 1972 WEIGEL. Sigrid. Walter Benjamin – Die Kreatur, das Heilige, die Bilder, Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 2008.

71

Mímesis e Ritual: Performance do Corpo e Linguagem Simbólica (elementos para re-criação cultural) Raquel Célia Silva de Vasconcelos

As reflexões de Peter McLaren sobre o ritual e de Walter Benjamin sobre a mimese (mímesis), a partir das esferas da cultura e da sociedade, propõem transcender os processos de observação e se inscrevem na ordem do simbólico, da comunicação e da cultura. Benjamin analisa a mimese como um mecanismo que possibilita a apropriação da cultura e das tradições burguesas, facilitando, através da linguagem, sua legitimação mediada pelo adulto. E, no entanto, ele também aponta que a mimese, praticada pela criança sem a intervenção direta do adulto, facilita a criança mergulhar na criação e recriação sempre que ela retorna as coisas. Ele percebe que o Iluminismo retoma a mimese numa perspectiva de controle social e cultural para fazer valer o ethos de quem está no centro das decisões. A mimese é utilizada como pressuposto de locação da ideologia a partir do paradigma burguês de significação simbólica da cultura atrelada à linguagem oriunda do ethos legitimador do processo de legalização da sociedade burguesa. Benjamin salienta a importância da mimese, não como mero decalque da realidade, mas como uma re-criação da vida porque corresponde à ação histórica e, nesse sentido, a obra de arte se torna a possibilidade da re-criação. O desenvolvimento da mimese converge com a origem da linguagem que emerge na infância através do despertar da faculdade mimética, cuja função é estabelecer a comunicação da criança com o mundo. Para McLaren, o processo de dominação e a resistência dos alunos se dão através dos rituais e práticas que estão presentes nas relações dentro da escola. Ele propõe aos pesquisadores e educadores uma leitura profunda do conceito de ritual para que possam compreender como se dá o controle sócio-cultural no interior das escolas, muitas vezes, alimentado pelo currículo proposto. 

Mestra em Filosofia e doutoranda da FACED/UFC, bolsista Demanda-Social/Capes. Integra o grupo de Pesquisa Walter Benjamin e a Filosofia Contemporânea e o Projeto PROCAD – CAPES: 137/2007“Biopolítica, escola e resistência: infância e resistência para a formação de professores” do Eixo Filosofia da Diferença, Antropologia e Educação. Bolsa Demanda Social Capes. [email protected]

72

Assim, os rituais praticados no espaço escolar demonstram forças antagônicas: de um lado, os professores que insistem em impor conteúdos vazios de significados para os alunos; e do outro lado, os alunos com rituais de resistência diante dessa imposição. Para McLaren (1992, p. 33), a cultura é um sistema de símbolos, uma vez que, “a cultura é uma construção que permanece como uma realidade consistente e significativa através da organização abrangente de rituais e sistemas simbólicos”. Fica perceptível que mimese e ritual são tratados pelos autores como fenômenos que permeiam a vida social do homem. Do ponto de vista dos autores, esses fenômenos devem ser vistos como elementos básicos do próprio processo de socialização e aprendizado, porque permitem a identificação e o sentimento de integração social. E nesse sentido, a mimese e o ritual são habilidades que permitem ao homem o reconhecimento do grupo e de si mesmo por meio da vivência compartilhada nos códigos de comunicação, de comunhão, de gestos e das experiências de semelhanças. Enquanto fundamento simbólico, eles concebem e carregam a própria memória social porque possibilitam registrar, na memória individual e coletiva, os valores e hábitos que registram um comportamento apreendido e repleto de significados compartilhados por todos. Assim, quando se analisa a aprendizagem que se dá através dos comportamentos mimético e ritualístico, a reflexão dos autores remete às práticas pedagógicas, situandoas para além dos espaços (escolas e centros de aprendizagem) formais de aprendizagem. Para eles, a aprendizagem entre jovens e crianças se dá em qualquer espaço, porque o corpo é responsável pelos processos cognitivos, construído na ação corporal como dimensão das práticas sociais. Para os autores, o corpo humano, sobretudo nas fases da infância e da juventude, se expressa através de gestos e de movimentos que possibilitam a comunicação e a comunhão das experiências de semelhança presentes no grupo. E nesse sentido, o corpo é a expressão de resistência e de renúncia às práticas repressoras que através da cultura, como observa McLaren (1992, p. 32), impõe rituais “inter-relacionados e sistemas de rituais” à ação social. E para Benjamin, as ações miméticas constroem o mundo simbólico, material, prático e corporal na constituição do saber.

73

A mimese (mímesis75) e os fenômenos que permeiam a aprendizagem significativa como re-criação cultural Walter Benjamin em, A doutrina das semelhanças (Lehre vom Ähnlichen), analisa a mimese enquanto categoria antropológica, cujo princípio é o aprendizado criativo e diferenciado que se dá através da linguagem enquanto possibilidade de apreensão simbólica do mundo. Benjamin a concebe [concebe a mimese como um “bem mimético” por participar na elaboração de conceitos produzidos a partir da semelhança que estabelecem com os objetos aos quais se referem e, sobretudo, na produção de semelhança entre os conceitos, ou seja, a mimese é primordial para produção de “semelhanças não-sensíveis”, A presença da mimese no processo civilizatório foi primordial, sobretudo, na fase de transição do nomadismo ao sedentarismo. Do ponto de vista histórico, o homem sempre usou a mimese para facilitar uma relação empática com as forças naturais e, por meio dela, manter uma harmonia com a natureza através da relação subjetiva entre homem e natureza como condição de possibilidade de realização da convivência em comunidade. A percepção que os antigos tinham dos fenômenos naturais conduziu-os, na Modernidade, à elaboração racional mais refinada da própria existência e, este refinamento, por sua vez, só foi possível com a evolução dos sentidos onto e filogenético que delimitaram a elaboração racional da linguagem. E nesse sentido, o corpo humano é o núcleo original da produção de semelhanças, uma vez que, consegue expressar na dança, no gesto, na fala e na imaginação, uma dimensão da linguagem que só foi possível seu refinamento com a evolução dos sentidos onto e filogenético. Esses sentidos aguçaram a percepção humana a tal ponto que não seria possível qualquer elaboração conceitual de apreensão do mundo e da vida na contemporaneidade. O corpo como instrumento de representação e expressão constitui as relações miméticas do homem com o mundo e com a vida. Para Benjamin, a

75

A mímesis é o princípio teórico básico na criação da arte que se dá na relação de configuração e/ou aproximação por semelhança do homem com o objeto propiciando a representação do mesmo. Sua origem remonta à Grécia quando foi desenvolvido por Platão e Aristóteles. Na Modernidade ela é discutida por diversos autores: Benjamin, Adorno, Derrida, Blumemberg, Arbosgast Schmitt, Jean-Pierre Vernant e tantos outros. Embora a mímesis seja estudada por muitos autores, meu enfoque está centrado na análise de Benjamin, que salienta a importância da semelhança produzida pelo homem e estabelecida através da relação com as coisas e a natureza. Ele não a concebe como mero decalque da realidade, mas como uma recriação cultural que se dá através da ação histórica, cujo critério de recriação está na obra de arte.

74

mimese se realiza por meio da “Faculdade Mimética” (Uber das Mimetische Vermögen) que permite a imaginação romper fronteiras ideológicas. A Faculdade Mimética permite a identidade entre homem e natureza, quando valoriza os símbolos no ritual de semelhança porque a mimese facilita uma espécie de comunicação, que proporciona a cada sujeito abrir-se a outras subjetividades contidas na natureza mediante um processo de “assimilação ritual”. Este processo se transforma com a expansão do Iluminismo na Modernidade, tornando a mimese uma relação desnecessária para o homem compreender a natureza a partir da produção de semelhanças. Assim, a eliminação do antropomorfismo pelo Iluminismo ocasiona a extinção dos rituais miméticos e faz a natureza sair da condição de sujeito ao estado de objeto, eliminando a mimese. O Iluminismo rompe com o saber popular, responsável pela comunicação simbólica entre homem e natureza. Os povos antigos, ao utilizarem a comunicação simbólica, deixavam predominar na relação homem e natureza a dimensão ontológica de característica direta e espontânea. Com o Iluminismo, a comunicação do eu com o outro é feita por signos elaborados pelo sujeito pensante mediado pela linguagem matemática, estabelecendo uma relação de identidade no âmbito conceitual. Portanto, toda comunicação entre homem e natureza, para o Iluminismo, ocorre no plano da abstração e isso proporciona uma relação unilateral absoluta do homem em direção à natureza, o que ocasiona sua objetivação. Do ponto de vista histórico, a faculdade mimética tem sua origem vinculada ao sentido “filogenético” (Phylogenetische Bedung) e “ontogenético” (Ontogenetische Sinn) presentes na comunicação do homem com o mundo. Ambos são processos de desenvolvimento e adaptação do homem à natureza, o que proporciona o próprio desenvolvimento de sua capacidade racional de adaptação ao mundo para própria sobrevivência. Eles possibilitam ao homem apreender a vida e o mundo através da ordem simbólica e imaginária, o que facilita a compreensão dessa apreensão na consciência. Os

sentidos

ontogenético

e

filogenético

estendem-se

ao

estudo

do

desenvolvimento do homem e de sua relação com a natureza, que se inicia na fecundação e se segue na infância, com as brincadeiras e os jogos infantis, estes funcionam como princípio de constituição da faculdade mimética. Os sentidos

75

ontogenético e filogenético têm a função de aprimorar no homem sua capacidade compreensiva em relação à natureza e seus fenômenos. Na dimensão social, a faculdade mimética possibilita a relação de alteridade que deve se iniciar na infância através das brincadeiras e jogos infantis porque remete à dimensão social expressa na relação ontológica que a criança estabelece com o adulto através do brincar. A brincadeira permite a criança transcender a imitação porque aproxima a criança da percepção lúdica, facilitando a criatividade e a inovação. Na ideação de Benjamin, “os jogos infantis são impregnados de comportamentos miméticos, que não se limitam de modo algum à imitação de pessoas, mas também a objetos e fenômenos naturais76”. Os jogos facilitam a experiência no aprendizado da criança e permitem a elaboração da linguagem na fase inicial. Eles são simbólicos e neles se encontram a origem da linguagem e dos hábitos, despertando a criança para inclinação de convivência em comunidade. Isto pressupõe que os jogos e as brincadeiras infantis facilitam a criança produzir semelhanças através da apreensão e conhecimento das coisas, da natureza e das pessoas, que se dá inicialmente através da mímica e, esta se desdobra no sentido ontogenético do brincar infantil. E nesse sentido, o adestramento da atitude mimética, iniciado na infância através da brincadeira, só pode ser compreendido por meio dos significados ontogenético e filogenético do comportamento mimético da criança. A ontogênese e a filogênese do comportamento mimético da criança são co-determinantes para o desenvolvimento da Faculdade Mimética e, esta, por sua vez, é responsável pela produção da semelhança. A Faculdade Mimética e a ontogênese e filogênese da linguagem: processos de assimilação e produção de semelhança extra-sensível Por certo, pensar o processo de produção da semelhança significa compreender a manifestação do dom mimético, cuja função é estimular e despertar na criança a Faculdade Mimética. Sabe-se que, para os antigos, o dom mimético pressupõe a força de apreensão mimética da semelhança, cuja origem remete ao momento do nascimento, enquanto fenômeno responsável pelo ajustamento da ordem cósmica, que acontecia no instante. Daí se atribui ao recém-nascido a plenitude do “dom mimético” por se manifestar nele o “gênio mimético” no instante do momento do nascimento.

76

BENJAMIN, Walter. “A doutrina das semelhanças”. IN: Obras escolhidas, Magia e Técnica, Arte e Política: editora brasiliense, 4ª ed., São Paulo, p. 108.

76

No mundo moderno, dom mimético é atribuído à força mimética da linguagem, que se torna responsável pela produção de semelhança, sob a influência da Faculdade Mimética. Assim, enquanto os antigos imitavam os processos celestes para produzir semelhança, processos esses, que já continha em si prescrições “para o manejo de uma semelhança preexistente77” que ocorria na dimensão dos sentidos. Com os modernos, o próprio conceito de semelhança muda quando a linguagem se torna a principal produtora de semelhança, cuja co-determinação é da Faculdade Mimética. A linguagem se torna a produtora de semelhança extra-sensível e, isto pressupõe que a Faculdade Mimética passa por um processo de metamorfose e, coincidentemente, a própria consciência do homem moderno. Do ponto de vista ontogenético, a brincadeira infantil é o principio para o desenvolvimento da Faculdade Mimética porque através do brincar a criança experiência suas frustrações e alegrias, manifestando-se assim, o comportamento mimético, determinante para o aprendizado individual e coletivo. No que concerne o significado filogenético, a semelhança pressupõe uma determinação externa apreendida pela Faculdade Mimética que se dá de forma consciente e não consciente. E isso demonstra que essa faculdade é co-determinante na produção de semelhanças porque ela é responsável pelas correspondências naturais entre homem e natureza. Trata-se de correspondências entre subjetividades, ou seja, na sociedade pré-moderna, as relações que o homem estabelecia com a natureza se davam na dimensão de uma determinação da natureza, isto é, a natureza também participava dessa relação na condição de sujeito. Diferentemente do homem moderno, que estabelece com a natureza uma relação de dominação e controle da mesma. Assim, a experiência presente na relação homem-natureza foi determinante na produção da semelhança, conduzindo a humanidade ao processo civilizatório através da constituição do sentido da existência. E isso demonstra a importância da Faculdade Mimética nessa produção, propiciando ao homem ler os símbolos presentes no mundo. E nesse sentido, a Faculdade Mimética só se desenvolve por meio da relação harmoniosa entre homem e natureza, aproximando-o da origem que se torna o fundamento para o sentido da própria existência.

77

Idem, p. 109.

77

Como se vê, o sentido de semelhança tornou-se muito mais vasto, no entanto, a semelhança natural somente assume sua significação decisiva quando a natureza consegue estimular e despertar a Faculdade Mimética do homem. Para Benjamin, não se deve esquecer de que houve uma metamorfose das “forças miméticas”, das “coisas miméticas” e seu objeto com o passar do tempo. E, com a passagem de um século a outro, a “energia mimética” transitou para a linguagem, que assume o poder de significação. Assim, verifica-se que a relação mimética do homem com o mundo transitou para escrita e para linguagem, cuja função é arquivar as semelhanças não-sensíveis. Benjamin não concebe a mimese somente numa dimensão semiótica. Mas, numa dimensão antropológica fundamental, cuja mediação está no sentido e no significado da existência através da aprendizagem. Por certo, não houve extinção da Faculdade Mimética, mas uma transformação porque a apreensão que os antigos faziam das constelações não é a mesma apreensão dos modernos. Fazia parte da cultura dos antigos imitarem os processos celestes, para o aprendizado e a virilidade, tanto no aspecto do homem quanto no da comunidade. Assim, a imitação dos antigos assegurou à “astrologia o seu caráter experimental78”. O “gênio mimético” como força determinante para os antigos foi atribuído ao recémnascido, este possuía a plenitude do “dom mimético”, concebendo o equilíbrio perfeito à ordem cósmica. O nascimento seria um entre vários instantes por ser o momento decisivo de percepção da semelhança, que sempre definiu a origem e o sentido de existência para os antigos, pois o nascimento representa uma nova vida que se firma na relação de semelhança estabelecida entre a criança e a mãe, numa dimensão natural de percepção sensível mediado pela experiência natural. A onomatopéia é uma prova, ainda presente na linguagem, da existência de uma relação entre o objeto e a fala, que ocorre através da apreensão da semelhança entre som emitido pela criança quando balbucia os ruídos dos animais e a palavra. O fim da onomatopéia pressupõe o fim da produção de semelhança entre conceito e objeto. Na infância, a onomatopéia significa a imitação dos sons no âmbito da gênese da linguagem alheia à convenção de signos, aproximando a linguagem de sua essência presente nas teorias onomatopaicas e, assim, facilita a criança na elaboração das

78

BENJAMIN, Walter. “A doutrina das semelhanças”. Opus cit., p. 109-110.

78

primeiras palavras. Logo em seguida, a palavra é concebida numa dimensão conceitual, enquanto identificação a partir da semelhança presente num grupo de seres, coisas e/ou objetos. À medida que a criança desenvolve a linguagem, ela formula os conceitos a partir da “semelhança extra-sensível”, cuja elaboração se dá pelo entendimento. Este possibilita a identificação entre as palavras que não têm nenhuma semelhança, mas que se dá numa dimensão extra-sensível. Nas teorias místicas ou teológicas, o conceito de semelhança extra-sensível é encontrado num grupo de palavras de línguas diferentes. Nesse grupo de palavras, percebe-se um significado central que não sai do âmbito da “Filologia Empírica79”, embora, essas palavras agrupadas não tenham entre si a menor semelhança, mas, podese afirmar que o significado central estabelece a relação de semelhança entre elas. As teorias místicas da linguagem se preocupam em submetem a palavra oral à dimensão reflexiva e à palavra escrita, ou seja, existe uma preocupação das teorias teológicas em estabelecer uma relação de semelhança entre o que se fala e o que se escreve. E nesse sentido, Benjamin observa que a Filologia Empírica esclarece a essência das semelhanças extra-sensíveis, melhor que a onomatopaica porque a palavra escrita facilita a, observa Benjamin,

relação entre a imagem escrita de palavras ou letras com o significado, ou com a pessoa nomeadora. Assim, a palavra beth tem o nome de uma casa. É, portanto, a semelhança extra-sensível que estabelece a ligação não somente entre o falado e o intencionado, mas também entre o escrito e o intencionado, e entre o falado e o escrito. E o faz de modo sempre novo, originário, irredutível80.

A Filologia traz a experiência mimética da linguagem no campo não sensível porque estabelece a relação entre a fala e a escrita através do pensamento enquanto processador da imagem apreendida do objeto, permitindo a experiência “profana” e “mágica” da palavra escrita e falada. E nesse aspecto, a faculdade mimética fortaleceu a simetria entre o falado e o escrito, transformando “a escrita ao lado da linguagem oral, num arquivo de semelhanças, de correspondências extra-sensíveis81”. Assim, a linguagem se tornou a mais alta aplicação da faculdade mimética quando recebeu o dom mimético, propiciando a dimensão mágica da linguagem oral e escrita, cujo fundamento e desenvolvimento permeiam a dimensão semiótica e comunicativa da 79

BENJAMIN, Walter. “A doutrina das semelhanças”, p. 111. Idem, p. 111. 81 Idem, p. 111. 80

79

linguagem. Como afirma Benjamin, “o contexto significativo contido nos sons da frase é o fundo do qual emerge o semelhante, num instante, com a velocidade do relâmpago82”. Isto é, a leitura perpassa o domínio da capacidade contemplativa do homem, pois define a relação de reciprocidade entre a palavra escrita e a linguagem oral. Assim, a força mimética presente na linguagem facilita a produção de semelhanças extra-sensíveis, tornando-a um medium da faculdade mimética que possibilita a coincidência entre a “leitura mágica” e a “leitura profana” da linguagem. Essa coincidência se faz no instante de manifestação do espírito, o momento de clarividência do homem, porque o espírito participa do segmento temporal, fazendo a semelhança emergir do fluxo das coisas num relampejar por intermédio da faculdade mimética, momento em que o pensamento intensifica a imagem do objeto. E dessa forma, a semelhança é captada pelo espírito que fornece à leitura seu significado mágico e profano, porque a reflexão ocorre por meio da dimensão mágica, semiótica e comunicativa da linguagem. Somente a reflexão, na concepção de Benjamin, liberta o homem do mito produzido pelo sonho moderno, responsável pela instrumentalização da razão. Por certo, a confiança dos modernos na ciência, que se transforma em tecnicismo, ajuda na fundamentação do mito moderno que sempre esteve preso à convicção da realização do conceito moderno de autoconsciência, de autonomia e de liberdade. O Antropocentrismo conduz a ciência moderna ao controle da natureza que culmina em sua objetivação, facilitando sua dissecação em laboratório. Vale ressaltar, a abstração da natureza, das coisas e do próprio homem tem como pressuposto a auto-afirmação do sujeito transcendental, cuja origem está vinculada ao sujeito lógico-analítico presente no discurso moderno de uma consciência fragmentada. E esta se constitui “na medida em que o homem ocidental perdeu sua identidade, assim como a linguagem capaz de conceitualização e negação foi substituída por uma linguagem capaz somente de atuar como um instrumento do status quo83”. A ciência moderna imita a magia dos rituais miméticos dos antigos, quando objetiva a natureza por meio do sujeito lógico-analítico e transcendental, que destaca o objeto da realidade e o disseca em laboratório. Embora a ciência moderna utilize o ritual mimético para estabelecer a relação de identidade (sujeito-objeto), ela o faz a partir de 82 83

Idem, p. 112. MATOS, Olgária Chain Féres. Os arcanos do inteiramente outro. Opus cit., p. 154 e 155.

80

uma imposição do sujeito lógico-analítico, que forja uma identidade de pressuposto conceitual. Nesse sentido, o progresso da ciência significa o fim das diversas formas de manifestação da mimese como possibilidade de realização da verdadeira identidade através da produção de semelhança entre a palavra fala e palavra escrita. O homem abandona os ritos sacrificais para permanecer vinculado ao ego, evitando a dissolução do si, porque o sujeito do conhecimento busca o controle racional do mundo. Do ponto de vista pragmático, o Iluminismo observa que a astúcia humana é essencial para tal controle, por ser pragmática, egocêntrica, ordenadora da cultura, contratual e jurídica. Verifica-se na Modernidade o inumano atuando em todos os campos do conhecimento. Na História Natural observa-se a relação de imanência entre natureza e história, substituída pela história do progresso. Assim, a busca pelo desenvolvimento do espírito absoluto (Hegel) resulta na subordinação da natureza e da história ao sujeito lógico-analítico transcendental que prioriza a informação e a comunicação no âmbito das relações intersubjetivas, as quais anulam a consciência do homem histórico; uma comunicação intencional que distancia a contemplação da verdade porque tem a pretensão de convencer, manipular e não parte de relações afetivas. Na concepção de Benjamin, os fatos não podem ser determinantes na vida do homem, pois produzem um mundo de opiniões, de imagens vazias de significados. Isto está presente no Pragmatismo, cuja característica é o poder dos fatos fundamentando as convicções para a realização de uma vida prática. A relação entre fatos e convicções deve ter reciprocidade, pois o homem “tem de cultivar as formas modestas, que correspondem melhor a sua influência em comunidades ativa84”. O Pragmatismo dificulta as relações afetivas presentes nas convicções por priorizar a velocidade do progresso determinando a vida e eliminando a memória coletiva quando afasta o homem da experiência e da tradição. Na concepção de Benjamin, conhecer pressupõe refletir na realidade precária a verdade. A moral e o conhecimento burgueses afastaram o homem do processo de criação da própria identidade, dificultando sua realização pessoal e coletiva. A burguesia, ao projetar o discurso de emancipação da humanidade pelo viés da economia apenas desperta no homem o inumano. Do ponto de vista prático, o humanismo não se efetiva quando se forja, através da cultura, uma identidade entre o homem e a 84

BENJAMIN, Walter. “Posto de gasolina”. IN: Obras escolhidas II, Rua de mão única: Editora Brasiliense, 5ªed., 3ª reimpressão, 2000, São Paulo, p. 11.

81

mercadoria – deificada pelos modernos aponto de determinar as dimensões moral, política e social. E isto leva a crer que a cultura sobrecarrega o homem com os conceitos abstratos (liberdade, autonomia, identidade e individualidade) criados pela relação de identidade entre homem e natureza forjada pela consciência burguesa, alimentando a nova barbárie através da cultura de massa, o que implica na neutralização da praxis social firmada a partir da relação teoria-pratica, onde a teoria deve se adaptar à realidade e, não o contrário. A sociedade moderna elimina a experiência social presente na narrativa da tradição, facilitando a perda do ethos histórico, sobretudo, com o avanço da técnica que facilitou o aparecimento do inumano com a fragmentação do homem no interior das fábricas. Assim, é necessário perceber que a mimese presente na aprendizagem infantil se faz de forma espontânea e natural, pois o corpo é gestual, comunicativo e social. E nesse sentido, retomar a mimese na dimensão do aprendizado significa perceber que a cultura moderna é mimética e, enquanto tal, ela facilita um maior controle sobre as massas. Entretanto, é necessário repensar a mimese numa dimensão ontológica de significado da relação estabelecida entre a criança e as coisas do mundo, bem como na dimensão da filogênese que se encontra presente na linguagem quando consegue estabelecer a relação entre a criança e os conceitos, enquanto representação simbólica do mundo, cuja função é dar sentido e significado à existência.

A escola: espaço de rituais de resistência e dominação

A Tese de Peter MacLaren, em alguns pontos, coincide com o pensamento de Benjamin quando afirma que a cultura institucionalizada contribui para “o ethos filosófico da cultura dominante”. Uma vez que “a cultura da escola é informada por determinantes específicos da classe social, ideologias e estruturas da sociedade maior85”. Ademais, o processo de dominação cultural e ideológico se firma por meio dos rituais presentes no espaço escolar. Em sua tese, Rituais na escola: em direção a uma economia política de símbolos e gestos na educação, MacLaren está preocupado com a questão de como os 85

MACLAREN, PETER. A educação como um sistema cultural. In: Rituais na escola: Em direção a uma economia política de símbolos e gestos na educação. p. 33.(manter o mesmo tipo de letra)

82

rituais são utilizados, muitas vezes de forma inconsciente, pelos professores e por toda estrutura escolar, legitimando uma educação para servidão coletiva ao sistema vigente. Sua pesquisa reforçou a compreensão de que, nós somos ritualizadores inveterados [...] Os rituais não estão confinados a um palco compacto, santuário de igreja ou repartição governamental; na realidade, a “aldeia global” moderna está repleta de sistemas e rituais novos e altamente intricados86.

De forma consciente ou inconsciente a sociedade contemporânea é ritualista, embora o ritual se constitua a partir da ordem determinada pelas convenções sociais. MacLaren percebe na escola St. Ryan (nome fictício utilizado para determinar a escola pesquisada) a presença do ritual dominante (ou ideológico) no comportamento dos professores. Para ele, o ritual dominante se perpetua na escola porque consegue remeter um significado simbólico à cultura através do paradigma básico subjacente: torna-se católico ou trabalhador. Para melhor compreender o conceito de ritual e como o mesmo se realiza no espaço escolar, Maclaren analisa os principais antropólogos articuladores que estudam os rituais, Victor Turner e Ronald Grimes, entre outros. É através deles que MacLaren dá sua definição de ritual, afirmando que se trata de um sistema cultural de comunicação simbólica, uma constituição de seqüências ordenadas e padronizadas de palavras e atos, uma expressão realizada por multimeios (verbais e não-verbais), cuja característica se dá por uma ação performativa. Assim, os rituais presentes na escola pesquisada representam o fazer e o dizer repletos de significado ideológico e se firma, muitas vezes, de forma aleatória. Isto pressupõe que para MacLaren, O ritual é um evento político e, como tal, é parte das distribuições objetificadas do capital cultural que é dominante na escola. Os rituais simbolicamente transmitem as ideologias culturais e sociais; são transmissores de códigos culturais (informação cognitiva e gestual) 87.

Portanto, os rituais estão presentes no cotidiano escolar utilizados como instrumentos para realizar uma formação do alunado que atenda aos interessem do capital. Eles se constituem em atividades naturais desempenhadas pela sociedade fora

86 87

Idem, p. 70-71. Idem, p. 30.

83

do espaço religioso, ou seja, eles saem do espaço (igrejas, templos e santuários) sagrado e transitam para o espaço (a escolas, institutos de aprendizagem e outros) profano. Na dimensão do sagrado, muitas vezes, o corpo, em alguns momentos, não expressa a real vontade do sujeito, mas no espaço profano esse mesmo corpo é utilizado com maior liberdade como recurso de fuga ou aceitação da cultura imposta. Na dimensão do profano, o corpo reage através de gestos e movimentos para estabelecer uma comunicação e/ou comunhão de aceitação, sobretudo, de resistência. Nesse sentido, quando a sala de aula se torna um ambiente sagrado e os professores assumem a imagem de cristo, todas as formas de punição estão presentes nos gestos dos professores para com os alunos. E estes ao saírem da sala de aula para ocuparem outros espaços (corredores, pátios, rua e entre outros), saem do mundo da representação, para se firmarem em si mesmo e no grupo. No espaço profano eles praticam de fato seus rituais. É justamente nos ambientes fora sala de aula, que os alunos centram-se em si e/ou no grupo com o qual se identificam. E são nesses ambientes que o corpo, enquanto instrumento de significação e expressão de palavras e ações, demonstra resistência. McLaren denomina de “Estado” a oscilação do corpo em busca de identificação consigo e com o grupo, transitando entre os espaços sagrado e profano. Dividindo-o em “Estado de esquina de rua” – os alunos assumem seus valores culturais e sociais, eles afirmam seu caráter, mostrando quem são em si; “Estado de estudante” – nesse momento, os alunos incorporam um comportamento que atenda a coerção dos professores; “Estado de santidade” - é a ocasião que os alunos assumem a postura de santidade na missa e nas orações, demonstrando devoção; e o “Estado do lar” – nesse estado os alunos se identificam com seus valores, crenças sócio-culturais, pois estão no lar junto da família onde comungam experiências semelhantes. McLaren através dos Estados reafirma seu conceito de ritual, e que, dependendo do estado em que se encontram os alunos, os rituais podem ser a única saída para estabelecer a resistência, cuja função é trazer a tona como determinados conteúdos aplicados na escola determinadas posturais dos professores em sala de aula não correspondem à realidade dos alunos. Com isso, os rituais de resistência expressam através do corpo os gestos, os movimentos, a comunicação e a imaginação dos alunos, o que demonstra que o corpo é o espaço de fuga. São alunos oprimidos por um currículo que impõe uma educação formal de exclusão social por se tratar de estrangeiros que desembocam em um país que 84

vende a imagem de uma nação democrática. E numa democracia de fato todos que ali se encontram têm os mesmos direitos: exercer atividades diferentemente do que seus pais estão acostumados a fazer, terem carreira promissora na profissão que escolherem e não serem vistos como estrangeiros, mas membros da nação. No entanto, o dia a dia na escola demonstra que não é bem assim, sobretudo, quando se pensa no conteúdo exigido no currículo escolar que alimenta a diversidade cultural, escamoteando as diferenças, eliminando a formação de alunos críticos. Uma vez que, os alunos não participam com criatividade e participação das aulas, eles são meros reprodutores de saberes estabelecidos. Contrapondo-se a isso, McLaren propõe o ensino de arte e de teatro como forma de expressar a criatividade e produzirem novos rituais de emancipação para um aprendizado constituído a partir de experiências concretas, facilitando aos alunos uma apreensão significativa da própria existência e de sua relação com o mundo cultural. É esse o aspecto positivo do ritual, porque ele cria alternativa de ruptura com a hegemonia na sala de aula, permitindo aos alunos refletirem com criticidade acerca da realidade, facilitando sua apreensão e compreensão. E nesse aspecto, é necessário perceber qual a finalidade dos rituais e para quem está a serviço. Para os autores aqui analisados, o agir social e cultural é determinado pelos paradigmas estabelecido conforme grupo, através de uma dinâmica que busca conservar ou transformar a sociedade. Isto pressupõe que os processos miméticos e ritualísticos produzem imitação e representação, adaptando o homem ao mundo através da representação de si mesmo e do grupo.

Considerações finais

Trazer a discussão a respeito da mimese e do ritual implica afirmar que o homem participa como re-criador do próprio símbolo, uma vez que o símbolo facilita a relação de significado e aceitação junto ao grupo social. E é nesse processo de re-criação que o homem se vê pertencente a si mesmo e ao conjunto de significado presente no ritual e na mimese, conduzindo-o à apreensão da memória individual e coletiva, firmando a própria identidade. A reflexão de Benjamin sobre a mimese e de McLaren acerca dos rituais presentes na escola contribui para os fundamentos da própria sociabilidade humana e da importância na dimensão do simbólico como condição de possibilidade de realização da 85

comunicação no grupo social. Ambos percebem que a aprendizagem se realiza no domínio do gesto e da manifestação do corpo no primeiro momento de aquisição do saber. Nesse sentido, a mimese e o ritual nascem das relações interpessoais, evidenciando que os processos cognitivos sensório-motores estão diretamente ligados aos processos sociabilizadores, o que permite afirmar: mimese e ritual se escrevem na ordem de uma saber corporal que se constrói no agir. Os autores acreditam que o ritual e a mimese presente na escola agem como agentes produtores de significado e sentido para cultura imposta, mas também podem se tornar dispositivos que apontam poder da resistência.

Referências

BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. IN: Obras escolhidas I, Magia e técnica, arte e política, ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed., 10 reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1996, 253p. GEBAUER, Günter e WULF, Christoph. Mimese na cultura: agir social, rituais e jogos e produções estéticas. Tradução: Eduardo Triandopolis. 1ª ed. São Paulo: Annablume, 2004. MACLAREN, Peter. Rituais na escola: em direção a uma economia política de símbolos e gestos na educação. Petrópolis: Vozes, 1992.

86

Os livros e os brinquedos no pensamento de Walter Benjamin Conceição Ribeiro Guimarães

Introdução A escolha de Walter Benjamin como objeto deste trabalho se deu pela percepção da relevância de seu pensamento para a contemporaneidade e, em especial, na obra Reflexões: a criança, o brinquedo e a educação. Este trabalho, fruto da leitura de Benjamin, consta de uma análise bibliográfica cujo objetivo é apenas elucidar sua concepção acerca do ser criança através dos livros infantis e dos brinquedos, como também se coloca como crítica do teórico à influência do racionalismo na educação das crianças, crítica ao capitalismo que influenciou a produção de objetos ligados à infância. O pensamento benjaminiano é atual e, como tal, pode dar sua contribuição para uma vivência pacificadora, em que as pessoas possam contribuir para uma sociedade diferente, onde a criança, o adulto e o idoso tenham espaço. A sociedade atual tem muito o que aprender com o pensamento de Walter Benjamim em relação à convivência humana, mas, sobretudo, na maneira de ver, respeitar e cuidar das crianças.

O que nos ensinam os velhos livros infantis Os livros infantis escritos nos séculos XVII e XVIII tornaram-se verdadeiras obras de arte, por todo o cuidado e dedicação que os autores dispensavam às ilustrações, às cores. Estas características eram por si só suficientes para atraírem as crianças para o mundo de magia e encantamento. Mas o livro infantil não vislumbrava só as crianças, os adultos também eram atraídos para essa experiência. Benjamim (1984) enfatiza em seus escritos sobre a cultura da criança e a importância de boas e requintadas obras infantis, como também fala de um episódio curioso de sua época, referindo-se a um colecionador de livros infantis. A propósito, assim se expressa o pensador: Quando Karl Hobrecker (1924) há 25 anos começou sua coleção, os livros infantis antigos eram usados como papel de embrulho. Ele foi o primeiro a lhes abrir um asilo, onde estivessem a salvo, por um tempo determinado, da 

Graduada em Filosofia PUC/PR; Especialista em Filosofia Social UECE. Mestranda em Educação Brasileira/ UFC. E-mail: [email protected]

87

fábrica de papel. É possível que entre os milhares de livros que lotam suas estantes algumas centenas encontram-se apenas com ele, como último exemplar.88

O livro infantil alemão começou a sua história com o Iluminismo, que o colocou à prova utilizando-se dos livros como canais de formação humanitária, buscando educar a criança tendo como referência o adulto. Com influência do Iluminismo, o livro infantil tornou-se, nos seus primeiros decênios, moralista e edificante, variando entre a doutrinação (moral) e a interpretação dos seus significados. Esses livros não responderam as expectativas da criança, pois estes tolhiam a sua possibilidade inventiva, criativa, como também não despertavam sua curiosidade. A criança não se sentindo atraída por eles rejeita-os, pois ela tem o controle sobre o brinquedo e a brincadeira e sabe o que quer. Walter Benjamin critica as obras infantis inadequadas, que não são produzidas levando em conta o mundo da criança, a magia, o encantamento e a sutileza, e que não dão espaço para criatividade e imaginação. Mas o filósofo também reconhece os escritores que fazem do livro infantil uma obra de arte, dentre esses Benjamin destaca: Bilderbuch (1819), Livro de gravuras para crianças. Esta obra é composta de doze volumes, com centenas de gravuras em cobre, coloridas. Neste contexto de aprimoramento e dedicação ao mundo infantil, citamos também os contos de fadas, as canções, o livro folclórico e a fábula. As crianças agilmente entenderam a mensagem, deixando de lado o direcionamento de pedagogos racionalistas. Foi significativo o fato de que o século XIX, em razão do avanço do conhecimento, sacrificou muitos bens culturais do século anterior; no entanto, o livro infantil não sofreu perdas, nem quanto ao texto, nem quanto às ilustrações. Contudo, percebemos que, após 1810, deixaram de surgir obras tão finamente bem feitas, elaboradas, com todo o aprimoramento como as Fábulas de Esopo, obra bastante elogiada por Walter Benjamin. O encanto do livro infantil do século XIX não é em relação ao refinamento do texto e das imagens coloridas, pois isto faz parte do seu passado; mas seu encanto, em geral, deve-se pelo registro de uma época em que a antiga manufatura confronta-se com o início de novas técnicas. Com a Revolução Industrial, vieram também novos instrumentos para a produção e para a comunicação, novos paradigmas surgiram e a 88

BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo, Summuns. 1984. Pág. 49-50.

88

sociedade mudou seu enfoque em que a arte e os aprimoramentos das obras deram lugar ao aspecto técnico, num retorno ao aspecto racional, sem ter a devida preocupação com a idade, com o significado que este deveria ter para a criança. Não é pelo fato da criança pequena ainda não ter densidade lógica, pensamento abstrato desenvolvido e capacidade elaborativa, que se deva infantilizá-la preconceituosamente. O trato com as crianças também deve ter em conta critérios éticos. Segundo Benjamin, o livro infantil do século XIX ainda continuou com o propósito de impressionar, de chamar atenção da criança por motivos que os adultos achavam interessante, envolvendo, inclusive, o colorido e as ilustrações. No intuito de atrair as crianças, Andersen (1875) escreve uma história em que fala sobre um determinado livro. Nele, tudo estava vivo. Os pássaros eram ativos, cantavam e os homens andavam, saíam do livro e falavam. Contudo, ele não capta o que tem de mais essencial aqui, pois não são as coisas que saltam das páginas em direção à criança que contempla; pelo contrário, a própria criança é que as penetra na história envolvendo-se num momento de grande contemplação e criatividade. Diante disso, a partir do livro ilustrado, a criança vence a parede ilusória da superfície das narrativas ficcionais, e, entre tapetes e bastidores coloridos, penetra em um palco onde acontece o conto de fadas em um mundo encantado, adornado de cores, móvel, onde a cada instante as coisas mudam de lugar. A criança é acolhida como companheira e co-autora da obra. Ao criar histórias, as crianças agem livremente sem se deixarem censurar pelo sentido. Benjamin nos fala das muitas vantagens que uma criança tem ao se deparar com as possibilidades criativas: Que se indiquem quatro ou cinco palavras determinadas para que sejam reunidas em uma frase curta, e virá à luz a prosa mais extraordinária: não uma visão panorâmica do livro infantil, mas um indicador de caminhos. De repente as palavras vestem seus disfarces e em um piscar de olhos estão envolvidas em batalhas, cenas de amor e brigas. Assim as crianças escrevem, mas assim elas também lêem seus textos 89.

A xilogravura em preto e branco, como técnica reprodutiva da arte, da qual Benjamin se debruça em outra obra, também tem seus efeitos, a reprodução moderada e em prosa chamam atenção da criança. Por terem um conteúdo discreto, essas ilustrações despertam nela a palavra. Ao descrever as imagens com palavras, a criança o faz de fato 89

Ibid. p. 55-56

89

com rabiscos. Essas ilustrações, por sugerirem algo, despertam a imaginação da criança, que cria asas. E aquela projeta então sua fantasia no jogo. Com as ilustrações, ela aprende ao mesmo tempo a língua e a escrita. Benjamin critica, também, o excessivo racionalismo usado nos livros infantis e sua maneira de tratar as crianças. Segundo o autor, o valor autêntico desses livros infantis, quais sejam: simplicidade, grafismo (foco na imagem), ilusão, não está adequado à pedagogia racionalista, em razão de sua falta de dramaticidade e rigor cognitivo, próprios dessa visão. Nas ilustrações, nos desenhos das páginas dos livros infantis, a criança cria seus personagens, não apenas imitando-os, mas assumindo-os de fato. Para ela, eles existem mesmo. Benjamin (1984) nos informa que nos desenhos-enigma a criança percebe o “ladrão”, o aluno “preguiçoso” ou o professor “escondido” de uma forma menos sistemática, mais caprichosa e vivaz. Na primeira metade do século XIX, Renner, desenhista gráfico, publicou em Nuremberg uma sequência de 24 folhas que apresentavam as próprias letras através de disfarces, por assim dizer: “F aparece sob o disfarce de um franciscano, P como professor, C como camponês. Este jogo despertou um prazer tão grande que até hoje se pode topar com esses velhos motivos, em todas as variantes possíveis.”90 Tal interesse, porém, se voltou mais tarde para um jogo em que palavras, letras ou até mesmo frases eram representadas através de desenhos, sinais, sílabas ou letras que se desejasse dar destaque ou eliminar para formar qualquer outra palavra ou frase, que recebeu o nome de Rebus. A euforia anterior, então, foi logo silenciada, contestada, intimada a morrer, pois o Rebus veio e de maneira cativante dava o seu recado atraindo centenas de crianças. Benjamin (1984) questiona os livros infantis porque não respeitam, não levam em consideração a capacidade imaginativa e fantasiosa da criança, o que lhe permite criar e construir conhecimento. A imaginação, portanto, tem um papel de suma importância na constituição do conhecimento. O autor critica os critérios vulgares que criam um muro entre fantasia e realidade, ou entre paixão e razão. Para o senso comum, imaginação e fantasia são irreais, não se ajustam à realidade, carece de valor prático e de racionalidade. Essa afirmação pode ser refutada quando aceitamos que a imaginação, sendo a base de toda a atividade criadora, manifesta-se por igual em todos os aspectos 90

Ibid., p. 56

90

da vida cultural, favorecendo a criação artística cultural, científica e técnica, além de favorecer o desenvolvimento humano. Sendo assim, tudo o que nos rodeia e que tenha sido criado pela mão humana, toda a cultura, tudo é produto da criação e imaginação do homem. Na experiência da criança não há barreiras, nem limites entre a imaginação e a realidade. A maneira singular com que a criança é capaz de enfrentar o mundo objetivo nos permite uma melhor compreensão do processo da ação criadora no homem. Na infância, a imaginação, a fantasia, o brinquedo não são atividades que apenas dão prazer. Para a criança, o brinquedo satisfaz uma necessidade; por conseguinte, a imaginação e a atividade criadora são para ela, efetivamente, partes integradoras de regras do convívio com a realidade. A brincadeira faz a ponte entre o real e o imaginário e ajuda a criança a revelar-se como pessoa. Em seus jogos, as crianças podem até reproduzirem muito de suas experiências do dia a dia, mas as atividades infantis não consistem na mera reprodução, pois quando elas brincam, reelaboram criativamente, combinando-as entre si e edificando com elas novas possibilidades de interpretação e representação do real, de acordo com suas necessidades, seus desejos e suas paixões. Os velhos brinquedos despertam sentimentos

Os velhos brinquedos tinham grande importância para as crianças. Estas muitas vezes ajudavam a criá-los, pois o material usado em sua confecção era de fácil acesso e manuseio. Sobre este assunto, Walter Benjamin narra a exposição de velhos brinquedos no museu distrital de Brandenburgo, de Berlin. A exposição se deu em uma sala de tamanho médio, pois ela foi organizada em vista de produtos de tamanho natural, como bonecas, trenzinhos elétricos quilométricos, cavalos de madeira. Mas não foram expostos só brinquedos no sentido estrito do termo, mas também muitos objetos que estariam ligados a esse campo. Em outro espaço do local, juntaram-se jogos de sociedade, blocos de construção, pirâmides de natal, livros, ilustrações e outros. Todos esses detalhes, em geral um tanto insólitos, proporcionaram um conjunto muito mais vivo do que se fosse uma exposição sistematicamente rígida. A mesma mão que organizou a sala podia ser percebida no catálogo, o qual tinha um texto coerente, cheio de indicações precisas sobre cada um dos objetos que faziam parte da lista, e ainda mais

91

informações exatas quanto à idade, produção e difusão de grupos inteiros de brinquedos. Nessa exposição, onde havia uma diversidade de atrações infantis, o soldadinho de chumbo foi o mais pesquisado. Não só os soldadinhos podiam ser vistos, como também outras figurinhas de chumbo burguesa, dispostas em cenas de gênero. Em Berlim, a sua fabricação floresce tardiamente: durante o século XVIII, a comercialização dos produtos do sul da Alemanha ficava a cargo dos comerciantes de ferragens. A partir desse fato, conclui-se que o comerciante de brinquedos propriamente dito surge lentamente ao final de uma dedicada especialização comercial. Ao lado destes outros brinquedos, foi criada como monumento construído de açúcar e figura de pão de mel, a boneca de confeitaria, conhecida ainda hoje pelos contos de Hoffmann (1818). Paralelo aos brinquedos citados anteriormente, as crianças podiam se divertir com humor em brincadeiras como o teatro mecânico de marionetes e outras que causavam suspense e, muitas vezes, até medo nos pequenos. E dando continuidade ao universo lúdico, tinham as caixas escuras, dioramas, mirioramas e panoramas, cujas imagens eram produzidas, em sua grande maioria, em Augsburgo. Com todos esses atrativos, o material ilustrativo encontrado no sótão de uma escola distrital feito para surdos-mudos foi o que atraiu um número significante de pessoas a ponto da sala de exposição ficar sempre cheia, pois sua dramaticidade impressionava e passava uma sensação de realidade, criando um efeito aterrorizador nas pessoas. Todas essas atrações já citadas servem de estímulo para o adulto assim também como as cenas da família reunida ao pé da árvore de natal, onde vemos, por exemplo, o pai brincando com o brinquedo que acaba de dar ao filho. Não se trata de uma regressão ao mundo infantil, quando o adulto se vê tomado de um impulso para brincar. Com certeza brincar significa sempre libertação. Ao brincar, as crianças criam para si um pequeno mundo próprio; porém, o adulto que se vê acuado por uma realidade desafiadora, ameaçadora, sem perspectivas de solução, liberta-se das mazelas do mundo através da reprodução miniaturizada. Com a banalização de uma vida insuportável, o interesse por jogos e brinquedos cresceu após o final da I Guerra Mundial. Para Benjamin, há um grande equívoco na maneira como a sociedade do século XVIII concebia a criança, pois esta era vista como um ser humano em dimensão reduzida, como um protótipo de gente. Podemos ter a ilusão de que o século XX deu um passo muito à frente, mas o que se vê é que este reluta em aceitar as crianças como 92

pequenos seres humanos e além de que passa uma visão distorcida e alienante delas, sem considerar que seres sociais determinados historicamente, num espaço de tempo, interagindo, influenciando e sofrendo influência do meio que vivem. Continuando a reflexão sobre o brinquedo nos escritos de Benjamin, ele narra a história cultural dos brinquedos. Em seus primórdios, eles não foram feitos por fabricantes especializados, mas nasceram nas oficinas de entalhadores em madeira, fundidores de estanho e outros materiais que julgavam certo utilizá-los. Seguindo a lei da manufatura, antes do século XIX, a produção de brinquedos era dividida em várias indústrias, pois cada uma era incumbida de fabricar aquilo que competia a seu ramo. Aqui já vemos claramente a influência do capitalismo na produção dos brinquedos. Na Alemanha do século XVIII, quando começaram a florescer os primórdios de uma fabricação especializada, as indústrias entraram em conflito contra os limites colocados pelas corporações. Estas queriam impedir que o próprio marceneiro pintasse suas bonequinhas; para a fabricação de brinquedos de diversos materiais, impunham às indústrias a dividirem entre si os trabalhos mais simples, isto fazia com que o produto encarecesse muito. Contudo, percebe-se que a venda e a distribuição de brinquedos não era no começo função de comerciantes especializados. Era comum encontrar brinquedos de madeira com o marceneiro, como também o soldadinho de chumbo com o caldeireiro, figuras de doce com o confeiteiro, bonecas de cera com o fabricante de velas. Mas o mesmo não ocorria com o comércio intermediário, que assumia o papel de grande distribuidor. Em Nuremberg, apareceu a primeira editora. Naquela cidade, os exportadores deram início à compra de brinquedos que vinham das manufaturas da cidade, e, sobremaneira, da fabricação doméstica do entorno da cidade de Nuremberg, para serem distribuídos entre os pequenos comércios. Nesse mesmo período, com as mudanças ocorridas pela Reforma, muitos artistas foram obrigados a direcionarem sua produção para objetos artesanais que tinham demanda, pois até então produziam para a Igreja. Com isso, eles substituíam as grandes obras por objetos de arte menores, os quais eram mais fáceis de serem adquiridos. Deuse, desse modo, a esplêndida difusão de coisas minúsculas, as quais traziam muita alegria, festa para as crianças ao se depararem com as estantes de brinquedos; já os adultos se alegravam nas salas de arte. Com toda essa efervescência da difusão do artesanato de coisas minúsculas em Nuremberg, foi favorecido o predomínio dos brinquedos alemães no mercado mundial, o que é comprovado até hoje.

93

Considerando a história do brinquedo em sua totalidade, percebemos que o tamanho, o formato, tem muita importância a qual nem sempre imaginamos. Contudo, na segunda metade do século XIX, quando se acentua a decadência dessas coisas pequenas, percebe-se como os brinquedos tornam-se maiores, vão deixando para o passado o elemento discreto, minúsculo e agradável. A criança ganha, com isso, a possibilidade de ter sua estante de livros e de brinquedos em seu quarto; pois os antigos livros, em virtude do tamanho, eram necessários muitos volumes. O mesmo ocorre com os brinquedos, pelo tamanho minúsculo que tinham, era necessária a presença da mãe de maneira mais efetiva, de modo a acompanhar mais intimamente as brincadeiras dos filhos. O brinquedo se emancipa, impõe-se com o requinte da industrialização avançando. Aquele se libera do controle da família, tornando-se cada vez mais estranho das crianças e de seus pais. Os brinquedos modernos apresentam uma falsa simplicidade, na qual manifesta o autêntico desejo de reconquistar a afinidade com o primitivo, com a maneira de fabricação doméstica. Porém, sabemos que hoje a perspectiva de existência dessas coisas minúsculas de outrora, feitas, sobretudo, de madeira, são raras. O material usado nos brinquedos antigos foi sendo substituído por outros. Interpretando, a seu modo, a sensibilidade infantil, os adultos imaginam para as crianças bonecas de bétula ou de palha, berços de vidro ou navios de estanho. Madeira, ossos, tecidos, argila representam nesse mundo criativo materiais mais importantes, os quais já eram usados em tempos antigos, quando brinquedo significava o elo que a produção tinha no seu processo que aproximava pais e filhos. Com o tempo, vieram os metais, o vidro, papel, alabastro. Tudo era feito com esmero, com luxo até, mas em contrapartida, os brinquedos tinham uma existência fugaz. Mas a história do brinquedo não nos esclarece só a respeito do material usado na confecção, seu significado para a criança, mas também o que filosoficamente precisamos saber: o naturalismo não deixava perspectiva em fazer valer o verdadeiro rosto da criança que brincava. Hoje, temos esperança de superação efetiva desse equívoco essencial para o reconhecimento da criança enquanto sujeito de suas brincadeiras, pois esse equívoco passava como verdade a ideia de que o conteúdo imaginário do brinquedo determinava a brincadeira da criança, mas na verdade acontece o contrário, é a criança quem determina a brincadeira conforme seu desejo e necessidade. Por exemplo, a criança quer puxar algo então se torna um cavalo, quer

94

brincar com a areia torna-se um padeiro, quer brincar com pedras e folhas e torna-se cozinheiro etc. No entanto, não podemos ver o brinquedo, seu conceito só pelo espírito da criança. Esta não vive só, isolada, mas faz parte de um povo e de uma classe social. Da mesma forma, os brinquedos, não têm vida independente, autônoma, pois suas vidas não significam em si mesmas, mas é utilizando-se do diálogo mudo com aqueles, que acontece a comunicação da criança com o povo. Nesse diálogo, a criança passa a sua maneira de responder e ver a realidade que lhe cerca. Brincar não é um fato isolado, sem consequência, mas tem repercussão na vida da criança e da sociedade onde vive. Por suas implicações na vida das pessoas, na sociedade, brinquedos, jogos são temáticas atuais nos debates e não apenas coisa do passado. Nas pesquisas, nas observações feitas em obras expostas no museu alemão de Munique, no museu de brinquedos de Moscou, retratam que o interesse por brinquedos autênticos está sendo despertado. Bonecas com traços realistas, época em que os adultos se valiam de supostas necessidades infantis para satisfazer as próprias necessidades pueris, chega ao fim; bem como o individualismo expresso no artesanato e a imagem de criança apresentada pela psicologia individual, os quais formavam uma força, foram rompidos internamente. Simultaneamente a essa realidade, foram dados os primeiros passos para o rompimento com a influência da psicologia e do esteticismo. O artesanato popular e a concepção do mundo infantil querem ser aceitos como configurações efetivas. Tanto o mundo da percepção infantil como os seus jogos estão marcados de todos os lados pelos vestígios da geração mais velha, com os quais ela se defronta no seu dia a dia, quer seja nos momentos de brincadeiras ou não. Por exemplo, o brinquedo, mesmo quando não imita os instrumentos dos adultos, é confronto, na verdade, não tanto da criança com os adultos, mas destes para com as crianças. E são os próprios adultos que dão à criança os seus primeiros brinquedos, de certo modo impositivamente como objetos de culto. O que só mais tarde, com a força da imaginação e criatividade, transformam-se em brinquedos. É equívoco se pensar que são as crianças movidas pelas suas necessidades que determinam a sua forma de brincar e os seus brinquedos. O mundo adulto é imposto ao da criança, haja vista que as bonecas até o século XIX vestiam-se com trajes de adultos. Isso demonstra que a criança não era respeitada no seu mundo, não era concebida e tratada como criança. Para fundamentar o que foi dito, citamos Philippe Ariès (1978): 95

Assim, partindo do século XV, em que a criança se vestia como os adultos, chegamos ao traje especializado da infância, que hoje nos é familiar... O que é certo é que isso aconteceu apenas nas famílias burguesas ou nobres. As crianças do povo, os filhos dos camponeses e dos artesãos, as crianças que brincavam nas praças das aldeias, nas ruas das cidades, ou nas cozinhas das casas continuaram a usar o mesmo traje de adulto.91

O mundo ideal era o mundo dos adultos, no qual o educador tinha que formar a criança ideal, à semelhança daquele. A criança era vista como um ser em miniatura, sem nenhuma autonomia, pois os valores impostos às crianças são todos pertencentes ao mundo adulto. Enfim, a criança não é vista como um ser histórico que produz cultura, que pensa, que sente as maravilhas que a vida oferece, como também sente as lacunas, dor, fome, frio, violência etc. Mas a criança tem a sua subjetividade, ela quebra toda a imposição adulta, desviando a função do brinquedo

dada pela sociedade

e na

brincadeira impõe a sua, pois brinca com o brinquedo como acha melhor e, através dele, dá sua resposta ao seu entorno. Por exemplo, com um pedaço de papel ela habilmente cria um avião. A criança não se inibe pelo autoritarismo dos adultos, mas, de maneira criativa, inventiva ela diz não usando o que de melhor sabe fazer: brincar.

Consideração Finais

Como educadores, devemos buscar elementos que venham acrescentar qualidade fazendo a diferença no exercício, não só da profissão, mas também nas relações com as crianças, com o nosso entorno. O pensamento de Benjamin é atual e como tal pode contribuir para uma vivência harmoniosa onde as pessoas possam somar sua colaboração para um mundo melhor que possibilite à criança, ao adulto e ao idoso um espaço próprio e aberto à convivência de uns com os outros. Que apesar dos exageros da tecnologia, do virtual, as pessoas vivam a experiência, sintam cada momento das suas vidas, deem tempo para ouvir a outra em profundidade. Sabe-se que, nas brincadeiras, as crianças repetem e, nessa repetição, elas se renovam. Por isso, as brincadeiras são sempre pertinentes, pois a criança volta a criar para si o que já foi vivido. Como também no contato com os livros infantis, as crianças não se cansam de ouvir ou ler as mesmas histórias, os mesmos contos, mas isto tem sabor de novo, é um renovar constantemente. Os brinquedos e as brincadeiras 91

Philipe Arèis, História da criança e da família. Rio de Janeiro, Guanabara, 1978. p. 51

96

possibilitam à criança desenvolvimento da sua subjetividade, pois ela brinca de acordo com sua capacidade criativa, fazendo do brinquedo o que deseja, ou seja, a criança tem o controle sobre o brinquedo e a brincadeira. Como o pensamento de Benjamim não é fechado, a reflexão sobre esta temática continua atual em nossos dias.

Referências AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência da história. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1978. BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984. _________________. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, Vol. 1. _________________. Obras escolhidas. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987, Vol. 2 GHIRALDELLI, Júnior, Paulo (org.). Estilos em Filosofia da Educação. Rio de Janeiro: DPS Editora, 2000. JOBIM E SOUZA, Solange. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas, São Paulo: Papirus, 2000. KIMMERLE, Gerd. Denegação e Retorno: uma leitura metodológica de “Para além do Princípio de Prazer”, de Freud. Piracicaba. São Paulo: Editora Unimep, 2000

97

Slavoj Zizek: Real, Fantasia, Objetos Sublimes da Ideologia, Ato Político e Educação

Hildemar Luiz Rech

Ainda que uma ideologia não seja falsa, quanto a seu conteúdo positivo e consciente, ela pode manter sua função ideológica, pois o que importa realmente não é o conteúdo afirmado como tal pelo Sujeito do enunciado, mas o modo como este conteúdo se relaciona com a postura subjetiva inconsciente envolvida em seu próprio processo de enunciação. Desse modo, estamos no espaço da ideologia quando este conteúdo, seja ele falso ou verdadeiro, é funcional a uma relação de dominação ou exploração social não transparente, cuja eficácia situa-se justamente no caráter oculto de sua lógica de legitimação. Ademais, a ideologia também funciona como uma forma de regular certa distância do encontro com o Real, com a Coisa (Zizek 1996A). Já no que tange ao campo social, a crença, longe de ser um estado puramente mental, é sempre encarnada em nossa atividade social efetiva. Ou seja, a crença sustenta a fantasia que regula o funcionamento libidinal da realidade social (Zizek, 1996B).

Uma breve explicação sobre dois conceitos psicanalíticos: O Real e a Coisa Para Zizek, o Real não pode ser confundido com a realidade, pois esta é construída simbolicamente, enquanto que o Real – mesmo que imanente ao Simbólico – é o resto que excede o simbólico, é o próprio princípio da distorção da realidade, enfim é núcleo traumático oculto que não pode ser simbolizado, mas que não cessa de deixar sua marca traumática nos furos da realidade simbolizada. O Real, portanto, não é nenhuma espécie de substancialidade consistente que aparece como pano de fundo da realidade, mas funciona muito mais como um núcleo traumático vazio que deixa a própria realidade – de modo incontornável mediada simbolicamente – distorcida e incompleta. Desse modo, o Real é o espectro do fantasma, que em si mesmo distorce a 

Doutor em Ciências Sociais pelo IFCH da UNICAMP/SP e pela Universidade de Manchester, Inglaterra. Professor associado III no Depto. Fundamentos da Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação na FACED-UFC. Pesquisador nos Programas PROCAD/CAPES e do LABOR/UFC. Integrante da linha de pesquisa e ensino “Filosofia e Sociologia da Educação”, no eixo Filosofia, Política e Educação.

98

nossa percepção da realidade. Ademais, em seu nível mais radical o Real lacaniano, na interpretação de Zizek, é o X desmentido e repudiado, em nome do qual nossa visão da realidade é anamorficamente distorcida: ele é a Coisa (Ding) – o objeto primordial perdido – à qual o acesso direto não é possível e, ao mesmo tempo, o obstáculo que impede esse acesso direto, ou seja, ele é a Coisa que foge à nossa compreensão e a tela distorcedora que nos faz deixar de ver a Coisa. Em termos mais exatos, o Real, em última análise, é a própria mudança de ponto de vista, do primeiro para o segundo lugar na observação, que parece quase como uma antinomia kantiana que não pode ser resolvida em uma „síntese dialética‟ mais elevada, mas que, ao contrário, eleva a sociedade à Coisa-em-si inacessível. (Cf. Zizek, 2008, p.43-44; e 2011, p.139-140). Entretanto, numa segunda abordagem, segundo Zizek, devemos apenas observar como essa antinomia radical, que parece impedir nosso acesso à Coisa, já é a própria Coisa, visto que a característica fundamental da sociedade de hoje é o antagonismo inconciliável entre a totalidade e o indivíduo. Isso significa que, em última análise, a condição do Real é puramente paralática e, como tal, não substancial: não tem em si nenhuma densidade sólida, é apenas a lacuna entre dois pontos de vista, perceptível apenas na passagem de um ao outro. O Real paralático, portanto, opõe-se à noçãopadrão (lacaniana) do Real como aquilo que “sempre volta a seu lugar”, ou seja, como aquilo que continua o mesmo em todos os universos (simbólicos) possíveis; o Real paralático é antes aquele que explica a própria multiplicidade de aparências do mesmo Real subjacente – não é o núcleo rígido que persiste como o Mesmo, mas o osso duro do conflito, o núcleo oculto traumático que pulveriza a mesmice numa miríade de aparências. Num primeiro passo, o Real é o núcleo rígido impossível que não podemos confrontar diretamente, mas só pela lente de uma miríade de ficções simbólicas, de formações virtuais. Num segundo passo, esse mesmo núcleo rígido é puramente virtual, na verdade inexistente, um X que só pode ser reconstruído retroativamente a partir da miríade de formações simbólicas que é tudo o que realmente há. (Zizek, 2008, p.43-44). Portanto, o Real intervém por meio da anamorfose. Ou seja, o Real é o núcleo duro e oculto do antagonismo social que distorce a visão que as pessoas têm do antagonismo real na sociedade. Ou seja, o Real lacaniano não só é distorcido, como ele é o próprio princípio da distorção da realidade (Cf. Zizek, 2011, p.290-291). As teorias das ciências positivas não refletem totalmente a realidade e não são apenas provadas por fatos, pois os „fatos objetivos‟ aos quais se referem não são a realidade pré-simbólica, visto que esta é inacessível diretamente, o que significa que não 99

se pode sair do conhecimento e do registro simbólico com a expectativa ingênua de abordar e entender diretamente a realidade sem a mediação das constelações da linguagem. Aliás, o núcleo traumático oculto da realidade – que não é a positividade do Real inacessível fora do Simbólico – é totalmente inerente ao Simbólico, pois é sua fissura ou impossibilidade imanente. Ou seja, o Real não é a realidade substancial transcendente que, de fora, perturba o equilíbrio simbólico, mas ele é o obstáculo imanente, a pedra no caminho do próprio Simbólico (Zizek, 2011, p.319-320). Conforme Zizek (2011), no registro do Real não falta nada, pois a falta é introduzida pelo Simbólico. É por isso que a negatividade não é o Real a minar o Simbólico de fora para dentro, mas o próprio Simbólico, o processo de simbolização com sua violenta abstração, com sua redução da riqueza da experiência ao traço unário (freudiano), significante que comporta a negatividade. Lacan inclusive se inspira em Hegel ao lembrar que a palavra é o assassinato da coisa (sache) que ela designa. Enfim, a forma elementar de negatividade não é o excesso de experiência além da simbolização, mas a própria lacuna que separa a simbolização da realidade vivenciada. O Real lacaniano é mais reducionista que todas as estruturas simbólicas: nós o tocamos quando subtraímos de um campo simbólico toda a riqueza de suas diferenças, reduzindo-o a um mínimo de antagonismo. Isso se deve a esse estatuto “minimalista” – puramente formal e insubstancial – do Real, em que, para Lacan, a repetição precede o recalque. Não é que, primeiro, recalcamos um conteúdo traumático e, depois, por sermos incapazes de lembrá-lo e, portanto, de esclarecer nossa relação com ele, esse conteúdo continua a nos perseguir, repetindo-se de forma disfarçada. Se o Real é a diferença mínima, então a repetição (que estabelece essa diferença) é primordial; a primazia do recalque surge com a “reificação” do Real numa Coisa (Ding) que resiste à simbolização – só então vemos que o Real excluído/recalcado insiste e repete-se. O Real, primordialmente nada mais é do que a lacuna que separa a Coisa de si mesma, a lacuna da repetição. (Ver Zizek, 2011, p.320-321). Aqui ainda cabe observar que a Coisa, que é o núcleo do Real, está na origem da constituição do psiquismo. O nó entre Real e Simbólico é análogo ao nó que existe entre Lei e desejo, ou seja, a Coisa está na origem da instituição da Lei, enquanto Lei da palavra que não se resume à proibição, mas também envolve a lei positiva que ordena o desejo como verdade parcial, a partir da castração (do recalcamento). Por outro lado, na última fase de sua produção teórico-psicanalítica, Lacan define a “pulsão de morte” como o próprio sistema simbólico que opera de forma 100

autônoma, ignorando a realidade; finalmente, a “pulsão de morte” é concebida como o Real que resiste à simbolização, o Real permanece imanente ao Simbólico, como seu âmago traumático inerente: não há Real sem Simbólico, é o surgimento do Simbólico que introduz na realidade a lacuna do Real. (Zizek, 2011, p.320). Por outro lado, conforme as interpretações costumeiras e mais recorrentes sobre a teoria lacaniana referente à idéia de a Coisa (das Ding) é que, com base em Freud, esta é o objeto originário para sempre perdido da espécie humana, e que é visto como algo distinto do objeto perdido da história individual de cada sujeito, o objeto causa do desejo, designado por Lacan de “objeto pequeno a”. Este último poderá ser reencontrado de alguma forma nos diversos objetos substitutos do desejo, constituídos ao longo da vida de cada sujeito, mas, no fundo destes objetos substitutos reaparecerá incessantemente a Coisa originária perdida para sempre da espécie humana. No seminário VII, Lacan destaca que apesar de ser inassimilável, a Coisa serve de referência para o desejo, na medida em que permite ao aparelho psíquico atentar para o mundo das percepções. Enfim, a Coisa – que é algo vazio e apanhado como um furo na subjetividade – funciona como índice de exterioridade ou da realidade (Zizek, 2006). Segundo Zizek (2006, p.84-85), cabe chamar atenção para o fato de que a visualização usual sobre a teoria de Lacan é de que ela tem um traço transcendentalista. Ou seja, nesta perspectiva enfatiza-se que, segundo Lacan, a entrada na Ordem simbólica comporta uma castração simbólica ou um recalcamento traumático, o que significa que o objeto primitivo do desejo se perde, transformando-se numa coisa impossível e ausente, que está para sempre perdida, a ponto de todo objeto empírico do desejo com que nos deparamos ser apenas um mero substituto suplementar do objeto primário perdido. Ou seja, a tese recorrente – mas problemática segundo Zizek – sobre Lacan é que o próprio fato da subjetividade significa que o objeto do desejo se perde e que a ilusão imaginária do sujeito, que se impõe aí, consiste precisamente na possibilidade de recuperar o objeto perdido, como forma de não aceitar o trauma da perda. Portanto, é aí que, segundo esta perspectiva de análise, se impõe a ilusão de tornar o „Real impossível‟ possível, o que resultaria assim em uma suspensão da impossibilidade primordial de encontrar a Coisa (Ding). É também aí, contra todas essas tendências relativamente enganosas, que aparece a tese de diversos estudiosos lacanianos, segundo a qual temos de aceitar a perda primitiva como um a priori, pois, confrontar diretamente o Real da Coisa seria uma experiência incestuosa e autodestrutiva, insuportável e dolorosa demais pelo fato de o Real ser o Outro 101

traumático ao qual nunca se pode responder adequadamente. Assim, a idéia de Real pressuposta aqui, é a do Real como impossível, no sentido da grande ausência: ele sempre nos falta, é um vazio básico, e a ilusão é que podemos recuperá-lo, mas isto é impossível porque o Real é traumático demais para ser encontrado e é por isso que temos que aceitar a perda primitiva como um a priori. Porém, para Zizek esta é uma tese problemática, embora não teoricamente errada (Zizek, 2006). Para Zizek, o verdadeiro foco do Real lacaniano é que a idéia de “pulsão de morte” que está aí presente não pode ser interpretada nesses termos transcendentais, ou seja, em termos de uma perda a priori em que os objetos empíricos nunca coincidem com das Ding, a Coisa – com a lógica do Real como inexoravelmente impossível, uma idéia do objeto inatingível, marcado por um funcionamento do desejo estruturando-se em torno de um vazio primordial, ou seja, em termos de uma perda a priori em que os objetos empíricos do desejo não coincidem jamais com a Coisa (das Ding). Porém, conforme Zizek, além de aceitar a lacuna entre o vazio da Coisa e o objeto contingente que vem preenchê-la, é preciso considerar que a cisão não está entre a realidade empírica e a Coisa impossível, mas que o objeto do desejo está cindido nele mesmo, ou seja, a questão é que o objeto é ele mesmo e, ao mesmo tempo, é outra coisa: “A questão é que os objetos da pulsão são esses objetos privilegiados que, de algum modo, são um duplo deles mesmos. Lacan se refere a isso como la doublure [ o avesso, a outra face]. Há uma espécie de distância segura, mas é uma distância segura dentro do próprio objeto: não é a distância entre o objeto e das Ding” (Zizek, 2006, p.86). Quando o “para-si” da ideologia atua no cerne da realidade extra-ideológica Na contemporaneidade, como observa Zizek, em sua obra “Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia” (1992), apesar das declarações disseminadas de que vivemos um período histórico pós-ideológico, a ideologia não desapareceu do cenário político. Ao contrário, é por causa do seu sucesso que a ideologia pôde aparentemente ser descartada no cerne da opinião política hoje mais aceita. Na sociedade do capitalismo contemporâneo os novos meios de comunicação de massa e eletrônico-cibernéticos facilitaram a penetração de conteúdos simbólicos, de marketing e de propaganda com substrato ideológico em todos os poros da sociedade, conduzindo ao enfraquecimento do próprio peso da ideologia, de modo que hoje os indivíduos não agem mais prioritariamente em função de suas crenças e convicções, 102

sendo que a reprodução do sistema se dá muito mais via sujeição osmótica às premissas da sociedade de consumo e do espetáculo, e via eficácia da coerção e da aplicação das normas legais e de controle estatais adequadas aos interesses do capital globalizado. Nestas circunstâncias as coisas ficam bem mais opacas e embaralhadas, pois um campo obscuro, em que a realidade torna-se indistinguível da ideologia, impõe-se, de modo que o “para-si” da ideologia entra em ação no cerne da realidade extra-ideológica. Este novo quadro sócio-econômico, político e cultural, contudo, não significa a emergência de uma realidade que aponta para o desaparecimento da ideologia, pois os mecanismos de coerção econômica e de coação da norma legal sempre mobilizam e materializam crenças que são implicitamente ideológicas. Assim, por exemplo, o direito à inviolabilidade da propriedade capitalista implica a crença de que isso é um pressuposto inquestionável para o pleno funcionamento da sociedade. Ademais, segundo Zizek (1996A), a forma de consciência reflexiva que se adéqua à chamada sociedade “pós-ideológica” do capitalismo tardio continua a ser, strictu sensu, um comportamento ideológico, pois implica uma série de pressupostos ideológicos sobre a relação entre os “valores” e a “vida real”, necessários à reprodução das relações sociais existentes. Assim, a atitude cínica, que se mostra indiferente frente às expressões ideológicas mais patéticas, preferindo dar importância apenas às suas motivações consumistas, utilitaristas e hedonistas, não escapa deste tipo de incidência ideológica. No ambiente capitalista tardio emerge, portanto, um contingente “sui generis” de fenômenos ideológicos que difere da ideia de ideologia como doutrina explícita – com convicções e valores articulados sobre as características do homem, da sociedade e do universo – e que é diferente também da ideologia em sua existência material mediante as instituições, rituais e práticas que lhe dão corpo. Trata-se, enfim, de uma rede elusiva e esquiva de pressupostos e atitudes implícitos, quase “espontâneos”, que formam um momento irredutível da reprodução de práticas “não ideológicas” (econômicas, legais, políticas, sexuais, etc.), representando a noção marxista de “fetichismo da mercadoria” um destacado exemplar para este tipo de fenômeno ideológico. A propósito, segundo Zizek (1996A, p.21): A noção marxista de “fetichismo da mercadoria” (...) designa, não uma teoria burguesa da economia política, mas uma série de pressupostos que determinam a estrutura da própria prática econômica [efetiva] das trocas de mercado – na teoria, o capitalista agarra-se ao nominalismo utilitarista, mas, na prática da troca etc., segue „caprichos teológicos‟ e age como um idealista especulador. Por essa razão, a referência direta à coerção extra-ideológica (do mercado, por exemplo) é um gesto ideológico por excelência: o mercado e os meios de comunicação (de massa) estão dialeticamente interligados; vivemos

103

numa „sociedade do espetáculo‟ (Guy Debord) em que a mídia estrutura antecipadamente nossa percepção da realidade e a torna indiscernível de sua imagem „esteticizada‟.

O elemento espectral, o Real do antagonismo, o fetichismo da mercadoria, a luta de classes e a ideologia Ademais, quando se analisa criticamente a complexidade dos fenômenos ideológicos contemporâneos, deve ser levado em consideração também o elemento espectral e o Real do antagonismo que os acompanha, em sua operação puramente formal que promove o efeito de profundidade da ideologia. Estes fatores, talvez constituam, segundo Zizek (1996A), a célula elementar ou a expressão mais pura da ideologia e que tem estreita ligação como o conceito lacaniano de Significante Mestre (S1), que representa a dimensão verdadeiramente essencial e fundamentalmente inconsciente, sobre a qual não é preciso fazer nenhuma afirmação positiva, pois o S1 é um significante sem significado, que, entretanto, de forma desmedida faz parte da ordem simbólica como tal, obrigando a localização da ideologia na lacuna entre as afirmações positivas da „cadeia comum de significantes‟ e os lapidares e emblemáticos „significantes Mestres‟ vazios de significado. Mesmo que não haja nenhuma linha demarcatória evidente que separe a ideologia da realidade e embora a ideologia já esteja imperceptivelmente em ação em tudo o que é vivido como realidade, ainda assim se mantém uma tensão entre ambas que confere uma atualidade à crítica da ideologia. De outro lado, segundo Zizek (1996A), Karl Marx concebeu a ideologia como uma máquina radicalmente não espontânea, que distorce de fora para dentro a autenticidade da nossa experiência de vida. Desse modo, a ideologia só surge quando as ideias distorcidas perdem seu caráter imediato e são sofisticadamente elaboradas por „intelectuais orgânicos‟ a fim de servir de legitimação das relações de dominação e de exploração existentes. Em consequencia, nesta perspectiva, a ideologia propriamente dita só surge com a divisão do trabalho, a cisão das classes sociais e o estado moderno. Sob este prisma, a ideologia não brota da „vida em si‟, mas só passa a existir na medida em que a sociedade é regulada por um Estado atrelado às relações sociais capitalistas. Ou seja, para Marx, o “fetichismo da mercadoria” não integra o universo da ideologia, mas mesmo assim, este elemento idolátrico falso, esta fantasia teológica, este “elemento espectral obsceno”, que acompanha a matéria espiritualizada da mercadoria, enfim, este universo “sui generis” da mercadoria proporciona o suplemento fetichista necessário à 104

doutrina oficial, sendo a sua base real a idolatria do Bezerro de ouro, o dinheiro, entronizado ilusoriamente como tendo propriedades especiais e sublimes, independentes das relações sociais de força, de exploração e de dominação na sociedade. Por sua vez, também Jacques Derrida, em seu livro “Espectros de Marx”, apresentou uma importante reflexão ao empregar o termo “espectro” para indicar a fugidia pseudo-materialidade que subverte as oposições ontológicas clássicas entre realidade e ilusão. Este aspecto talvez represente o cerne pré-ideológico ou a matriz formal em que são enxertadas as diversas formações ideológicas, tendo em vista que o círculo da realidade somente pode ser fechado mediante um estranho suplemento espectral. Mas, por que o elemento espectral é indissociável da existência da realidade? A propósito, segundo Zizek (1996A, p.26):

Lacan fornece uma resposta precisa e essa pergunta. [Ou seja,] (o que vivenciamos como) realidade não é a “própria coisa”, é sempre já simbolizado, constituído e estruturado por mecanismos simbólicos – e o problema reside no fato de que a simbolização, em última instância, sempre fracassa, jamais consegue “abarcar” inteiramente o “real”, sempre implica uma dívida simbólica não quitada, não redimida. Esse “real” (a parte da realidade que permanece não simbolizada) retorna sob a forma de aparições espectrais. Conseqüentemente, não se deve confundir “espectro” com “ficção simbólica”, com o fato de que a realidade em si tem a estrutura de uma ficção, por ser simbolicamente (ou como dizem alguns sociólogos, “socialmente”) construída; as noções de espectro e ficção (simbólica) são codependentes em sua própria incompatibilidade (...). Dito de maneira simples, a realidade nunca é diretamente “ela mesma”; só se apresenta através de sua simbolização incompleta e falha. As aparições espectrais emergem justamente nessa lacuna que separa perenemente a realidade e o “real”, e em virtude da qual a realidade tem o caráter de uma ficção (simbólica): o espectro dá corpo àquilo que escapa à realidade – simbolicamente estruturada (Zizek,1996A, p.26).

Sob esta perspectiva crítica, a aparição espectral, que preenche o buraco do “Real” em relação à realidade (que como tal nunca é toda), consiste no cerne préideológico da ideologia. Para que possa emergir aquilo que vivenciamos como “a realidade”, algo tem que ser “foracluído” dela. Ou seja: “A realidade, tal como a verdade, nunca é, por definição, „toda‟. O que o espectro oculta não é a realidade, mas seu „recalcamento primário‟, o X irrepresentável em cujo „recalcamento‟ fundamenta-se a própria realidade” (Zizek, 1996A, p.26). A própria elaboração conseqüente do conceito de luta de classes no capitalismo, por exemplo, nomeia o “real” traumático do antagonismo que impede a realidade social objetiva de se constituir como um todo fechado em si mesmo:

105

O grande paradoxo da noção de „luta de classes‟ é que a sociedade „mantémse coesa‟ pelo próprio antagonismo ou cisão que impede permanentemente seu fechamento num Todo harmonioso, transparente e racional – justamente pelo empecilho que mina qualquer totalização racional. Embora a „luta de classes‟ não esteja diretamente dada (...) como uma entidade positiva, ela funciona, em sua própria ausência [imediata], como ponto de referência que nos permite situar qualquer fenômeno social (...), ao concebê-lo como mais outra tentativa de remendar a brecha do antagonismo entre as classes, de apagar seus vestígios (Zizek, 1996A, p.26).

Desse modo, a luta de classes faz parte do “Real” porque é “foracluída” do todo simbolizado, no sentido lacaniano restrito. Ou seja, ela é um empecilho ou uma dificuldade que origina simbolizações sempre renovadas, mediante as quais não são medidos esforços para preencher os furos que não cessam de se reinscrever na realidade a partir deste nó, tentando-se, desse modo, integrar ou domesticar a própria luta de classes, a fim de evitar seu núcleo traumático. De acordo com esta perspectiva restrita: A luta de classes não é nada mais do que o nome limite imperscrutável que é impossível de objetivar, situado dentro da totalidade social, já que ela mesma é o limite que nos impede de conceber a sociedade como uma totalidade fechada. Ou [seja], (...) a “luta de classes” designa o ponto em relação ao qual “não existe metalinguagem”: na medida em que toda posição dentro do todo social é sobredeterminada, em última instância, pela luta de classes, não está excluído da dinâmica desta última nenhum lugar neutro de onde seja possível localizá-la dentro da totalidade social (Zizek, 1996A, p.27).

Desse modo, segundo Zizek (1996A), a situação paradoxal da luta de classes pode também ser articulada mediante a crucial distinção hegeliana entre Substância e Sujeito. Assim, a luta de classes envolve o plano social objetivo em nível da Substância, funcionando, desse modo, apenas como uma indicação secundária de uma contradição mais basilar neste processo, uma desarmonia incômoda regulada por mecanismos positivos que independem da luta de classes e que estão relacionados aos problemas intrínsecos ao desenvolvimento das forças produtivas, sendo que nesta perspectiva a luta de classes irrompe como uma decorrência da contradição e da inadequação entre o estágio de desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção. Mas, quando passamos para o nível do Sujeito percebemos que a luta de classes não é o efeito de um mero processo objetivo, mas já está sempre atuante no próprio cerne desse processo. Ou seja, o valor da força de trabalho em si não é objetivamente dado, mas resulta da própria luta de classes e é no cerne desta luta que os capitalistas criam novos meios de produção com nova base tecnológica, visando reduzir o valor relativo e absoluto da força de trabalho. Portanto, não é possível isolar nenhuma dinâmica social objetiva que não implique a presença subjetiva da luta de classes. “A própria „paz‟, a 106

ausência da luta, já é uma forma de luta, é a vitória (temporal) de um dos lados da luta. [Ou seja], (...) a própria invisibilidade da luta de classes (...) já é um efeito (...) da hegemonia exercida por um lado da luta” (Zizek, 1996A, p.28). Por outro lado, ao se considerar a interpretação da luta de classes na perspectiva lacaniana de um antagonismo social integrando o “Real”, que não faz parte de modo explícito da realidade social objetiva, emerge a compreensão de que a própria constituição da realidade social implica o “recalcamento primário” de um antagonismo. Assim, “... o esteio fundamental da crítica da ideologia – o ponto de referência extraideológico que nos autoriza a denunciar o conteúdo de nossa experiência imediata como „ideológico‟ – não é a „realidade‟, mas o „Real‟ recalcado do antagonismo” (Zizek, 1996A, p.30). Ou seja, o que emerge das distorções da representação exata da realidade é o “Real”, o trauma em torno do qual se estrutura a realidade social. Assim: “A „realidade‟ em si, na medida em que é regulada por uma ficção simbólica, oculta o „Real‟ de um antagonismo – e é esse „Real‟, foracluído da ficção simbólica, que volta sob a forma de aparições espectrais” (Zizek, 1996A, p.32). Em Karl Marx, por exemplo, na análise do “segredo da forma-mercadoria” é importante o desmascaramento do sentido oculto, por trás da forma-mercadoria, pois o valor de uma mercadoria não depende do puro acaso de uma interação acidental entre a oferta e a procura, por exemplo. Mas isto não basta, pois a própria economia política burguesa clássica já descobrira o segredo da forma-mercadoria. Então o verdadeiro segredo não é o segredo por trás da forma, mas o segredo da própria forma, sua gênese e a prática que cria esta forma. Ou seja, a economia política clássica nunca se perguntou: “Por que esse conteúdo assumiu tal forma particular, isto é, por que o trabalho se expressa num valor, e por que a mensuração do trabalho por sua duração se expressa na magnitude do valor produto?” (Sohn-Rethel, apud Zizek, 1996B, p.301).

O alcance universal da forma-mercadoria

Segundo Zizek (1996B), o estudioso que apresentou a reflexão mais aprofundada quanto ao alcance universal da forma-mercadoria foi Alfred Sohn-Rethel, integrante da Escola de Frankfurt. Segundo este interprete, não somente a chave da crítica da economia política, o segredo oculto do valor trabalho, integra a análise formal da mercadoria, mas também o elemento fulcral da explicação histórica do modo de pensamento conceitual abstrato e da divisão entre trabalho intelectual e manual, que 107

passou a existir juntamente com ele. Desse modo, nas palavras de Zizek, o esqueleto do próprio sujeito transcendental kantiano – isto é, a rede de categorias transcendentais que constitui o arcabouço a priori do conhecimento científico “objetivo” é articulada de antemão pela própria estrutura da forma-mercadoria. O paradoxo da forma-mercadoria, esse fenômeno patológico intramundano, em linguagem kantiana, consiste em ela fornecer-nos uma senha de acesso para solucionar a questão fundamental da teoria do conhecimento: Como é possível um conhecimento objetivo com validade universal? Posteriormente, a série de análises de Sohn-Rethel levou à seguinte conclusão: O método científico (o da ciência newtoniana da natureza) pressupõe um aparato de categorias, uma rede de noções através das quais ele capta a natureza; tal aparato já está presente na efetividade social, já está em ação no ato da troca da mercadoria. Antes que o pensamento pudesse chegar à pura abstração, a abstração já atuava na efetividade social do mercado. A troca de mercadorias implica uma dupla abstração: a abstração do caráter mutável da mercadoria durante o ato de troca e a abstração do caráter concreto, empírico, sensorial e particular da mercadoria (Sohn-Rethel, apud, Zizek, 1996B, p.302).

Portanto, o sine qua non da ciência moderna, expresso na quantidade pura, já estava em ação no dinheiro – essa mercadoria que possibilita a comensurabilidade do valor de todas as outras mercadorias, a despeito de sua determinação qualitativa particular –, antes que o próprio pensamento pudesse chegar à idéia de uma determinação puramente quantitativa. O ato social da troca já havia realizado um movimento abstrato “puro” mediante a transferência de propriedade das mercadorias, deixando totalmente intactas as propriedades sensório-concretas do objeto apanhado em movimento, antes que a física pudesse articular a noção de um movimento puramente abstrato, ocorrendo num espaço geométrico, independentemente de quaisquer determinações qualitativas dos objetos em movimento. Ou seja, na efetividade social do mercado, as moedas sempre foram tratadas como se elas consistissem numa substância imutável e sublime, em relação à qual o tempo não exerce nenhum poder e que se situa num contraste antitético com qualquer material encontrado na natureza. A propósito: O sujeito transcendental, esteio da rede de categorias a priori, confronta-se com o fato inquietante de que depende, em sua própria gênese formal, de um processo “patológico” intramundano – um escândalo, uma impossibilidade absurda do ponto de vista transcendental, na medida em que o a priori formal-transcendental é, por definição, independente de todos os conteúdos positivos: um escândalo perfeitamente correspondente ao caráter escandaloso do inconsciente freudiano, que também é intolerável do ponto de vista transcendental-filosófico. Ou seja, se examinarmos de perto o status ontológico do que Sohn-Rethel chama de “abstração real” [das reale Abstraktion] (isto é, o ato de abstração que opera no próprio processo efetivo

108

da troca de mercadorias), verificaremos ser impressionante a homologia entre seu status e o do inconsciente, dessa cadeia significante que persiste numa “outra Cena”: a “abstração real” é o inconsciente do sujeito transcendental, o suporte do conhecimento científico objetivo-universal (Zizek, 1996B, pp. 302-3).

Segundo Zizek (1996B), o problema de qual é o caráter material sui generis do dinheiro não foi solucionado por Karl Marx. Aqui evidentemente não se trata da matéria empírica de que o dinheiro é feito, mas do material sublime, daquele outro corpo intocável e não degradável que persiste para além do corpo físico. Zizek observa o seguinte a este respeito: “Esse outro corpo do dinheiro é como o cadáver da vítima sádica, que suporta todas as torturas e sobrevive com sua beleza imaculada. Essa corporalidade imaterial do „corpo dentro do corpo‟ dá-nos uma definição precisa do objeto sublime, e é somente nesse sentido que a idéia psicanalítica do dinheiro como um objeto „pré-fálico‟, „anal‟, é aceitável – desde que não nos esqueçamos de como essa existência postulada do corpo sublime depende da ordem simbólica [da injunção do „Grande Outro‟]” (Zizek, 1996B, pp.303-304).

Ou seja a injunção de que a moeda deve servir como meio de troca e não como objeto de uso está estampado no corpo da própria moeda. E a autoridade emitente assegura a reposição plena do peso e da pureza metálica da moeda quando esta é atingida pelo desgaste da circulação. “Sua matéria física tornou-se, visivelmente, mera portadora de sua função social” (Sohn-Rethel, apud Zizek, 1996B, p.304). A abstração da troca não tem nada a ver com as propriedades efetivas de um objeto e, como tal, não se trata de uma “abstração do pensamento” que ocorre no interior do sujeito pensante. A abstração pertinente ao ato de troca é irredutivelmente exterior e descentrada. Ou seja: “A abstração da troca não é o pensamento, mas tem a forma do pensamento” (Sohn-Rethel, apud Zizek, 1996B, p.304). Segundo Zizek, a forma de pensamento apresenta um status ontológico que não é o do pensamento porque é externa a ele, constituída por uma “Outra Cena”, mediante a qual a forma já é externamente articulada de antemão. E essa forma, anterior e externa ao pensamento, é, em suma, a ordem simbólica, que precisamente é “(...) uma ordem formal desse tipo que suplementa e/ou rompe a relação dual da realidade factual externa com a experiência interna” (Sohn-Rethel, apud Zizek, 1996B, p.304). Portanto, a abstração da troca não pode ser concebida como um processo que ocorre no campo do conhecimento por que a forma de pensamento que envolve a abstração é anterior e externa ao pensamento, integrando a ordem simbólica. 109

A relação entre a efetividade social da troca de mercadorias e a consciência dela envolve um paradoxo crucial que consiste no seguinte: o não-conhecimento da realidade é parte da própria essência dessa relação. Ou seja, se viéssemos a „saber demais‟, a ponto de ficarmos totalmente cientes do verdadeiro funcionamento da realidade social, essa realidade se dissolveria. Essa, provavelmente é a dimensão fundamental da „ideologia‟, pois a ideologia não é simplesmente uma „falsa consciência‟, uma representação ilusória da realidade; antes, é essa mesma realidade que já deve ser concebida como „ideológica‟. Segundo Zizek (1996B, p.305-6): “Ideológica” é uma realidade social cuja própria existência implica o nãoconhecimento dos participantes, ou seja, a efetividade social cuja própria reprodução implica que os indivíduos “não sabem o que fazem”. “Ideológica” não é a “falsa consciência” de um ser (social), mas esse próprio ser, na medida em que ele é sustentado pela „falsa consciência‟.

Como Marx inventou o sintoma?

De modo semelhante, outra formação cuja consistência e funcionamento implica um certo não-conhecimento por parte do sujeito é a dimensão do sintoma, pois o sujeito somente pode gozar com o sintoma se a lógica deste lhe escapa. Tendo em conta isto, Zizek (1996B) então se pergunta de como podemos definir o sintoma marxista? A partir de uma perspectiva lacaniana, Marx “inventou o sintoma” mediante a identificação de uma fissura, de uma assimetria, de um certo desequilíbrio patológico que desmente o universalismo dos “direitos e deveres burgueses”. Longe de estabelecer o anúncio de uma realização parcial e ainda inacabada dos direitos e deveres universais, esse desequilíbrio funciona como o próprio momento constitutivo desse universalismo. Ou seja, o sintoma, no sentido estrito, é um mecanismo particular que subverte seu próprio fundamento universal. Como argumenta Zizek, a este respeito: Esse processo implica, pois, uma certa lógica da exceção: todo Universal ideológico – por exemplo, a liberdade, a igualdade – é “falso”, na medida em que necessariamente inclui um caso específico que rompe sua unidade, que expõe sua falsidade. A liberdade, por exemplo: é uma noção universal que abrange várias espécies (liberdade de fala e de imprensa, de consciência, de comércio, [civil] política, etc.), mas também, por uma necessidade estrutural, uma liberdade específica (a de o trabalhador vender livremente sua força de trabalho no mercado), que subverte essa noção universal. Ou seja, essa liberdade é o próprio oposto da liberdade efetiva: ao vender “livremente” sua força de trabalho, o trabalhador perde sua liberdade – o conteúdo real desse livre ato de venda é a escravização do trabalhador ao capital. O aspecto

110

crucial é que essa liberdade paradoxal, a forma de seu oposto, é precisamente o que fecha o círculo das “liberdades burguesas” (Zizek, 1996B, p.306).

O ideal do mercado capitalista que é a chamada “troca de equivalentes”, apresenta uma lógica de exceção semelhante. A propósito, tão logo que prevalece a produção para o mercado na sociedade, emerge de modo disseminado um novo tipo de mercadoria que é a força de trabalho, como resultado da necessidade dos trabalhadores de a venderem no mercado para a sua própria sobrevivência. Porém, com essa nova mercadoria a troca de equivalentes torna-se uma negação, por que a força de trabalho apresenta uma peculiaridade oculta, cujo uso produz a “mais-valia”, um excedente que ultrapassa o valor contratado da força de trabalho e é apropriado pelos capitalistas. Como observa Zizek (1996B, p.307) a este respeito:

Aqui temos, mais uma vez, um certo Universal ideológico (o da troca eqüitativa de equivalentes) e uma troca paradoxal particular (a da forca de trabalho por seus salários) que, precisamente como um equivalente, funciona como a própria forma de exploração. O desenvolvimento “quantitativo” em si, a universalização da produção de mercadorias, promove uma nova “qualidade”, a emergência de uma nova mercadoria que representa a negação interna do princípio universal da troca equivalente de mercadorias: em outras palavras, ela acarreta um sintoma (...), [o ponto de exceção que funciona como negação interna do princípio universal da troca equivalente de mercadorias].

Aliás, é com base neste paradoxo que Marx tece uma acerbada crítica à noção hegeliana da sociedade como uma totalidade racional, apontando o proletariado como o ponto em que a Razão incorporada na sociedade moderna vigente nutre a sua desrazão. Ainda no que se refere ao “fetichismo da mercadoria” cabe observar que apenas em uma primeira aproximação ele é “uma relação social definida entre os homens, que assume aos olhos deles a forma fantasiosa de uma relação entre coisas”. Em seu funcionamento efetivo, o valor das mercadorias é uma insígnia de uma rede de relações sociais que assume uma propriedade quase “natural” de outra coisa-mercadoria que é o dinheiro. Desse modo, o aspecto central do “fetichismo da mercadoria” não consiste em uma relação fantasiosa de coisas, mas antes, numa determinada inconsciência (desconhecimento) da relação entre um elemento particular e uma rede estruturada de elementos da qual ela é seu elemento paradoxal de articulação. “Aquilo que é realmente um efeito estrutural, um efeito da rede de relações entre os elementos, aparece como uma propriedade imediata de um dos elementos, como se essa propriedade também lhe pertencesse fora de sua relação com os outros elementos” (Zizek, 1996B, p.308). 111

Em sua argumentação sobre o “fetichismo da mercadoria”, Marx observa uma homologia entre uma mercadoria A e outra mercadoria B, sendo esta somente um equivalente na medida em que A se relaciona com B “como sendo a “forma da aparência” de seu próprio valor, somente dentro dessa relação. Zizek emenda a seguinte observação, introduzindo uma maior complexidade para esta linha de argumentação: Mas a aparência – e nisso consiste o efeito de inversão que é característica do fetichismo –, a aparência é exatamente oposta: Aparece relacionar-se com B como se, para B, ser um equivalente de A não correspondesse a ser uma “determinação reflexiva” (Marx) de A – ou seja, como se B já fosse, em si mesmo, equivalente a A; a propriedade de ser “equivalente” parece pertencerlhe até mesmo fora de sua relação com A, no mesmo nível de suas outras propriedades efetivas “naturais” que constituem seu valor de uso (Zizek, 1996B, p.309).

A teoria lacaniana do estádio do espelho apresenta uma forma de elaboração semelhante. Somente na medida em que outro ser humano oferece a imagem de unidade ao eu (moi), ou seja, somente quando o eu se refletir num outro é que ele pode chegar à sua auto-identidade, de modo que a identidade e a alienação são estritamente correlatas. Retomando aqui a análise do pensamento de Marx, cabe estabelecer uma ponderação mais clara sobre a sua descoberta da dimensão do sintoma. A relação Senhor e Escravo, dominante no contexto das relações servis de dominação, passou por um determinado tipo de deslocamento no capitalismo. A desfetichização das relações entre os homens ocorreu como se sua efetivação devesse que ser paga com o fetichismo nas “relações entre as coisas”. Desse modo, desapareceu a transparência imediata das relações sociais mais cruciais, as de produção. Assim, o lugar do fetichismo apenas se desloca das relações intersubjetivas e interpessoais para as relações entre mercadorias, enfim entre os produtos do trabalho. Então, é na maneira como Marx abordou a passagem do feudalismo para o capitalismo é que ocorre a descoberta do sintoma. A propósito como argumenta Zizek (1996B, p.310): Com o estabelecimento da sociedade burguesa, as relações de dominação e servidão são recalcadas: formalmente, parecemos estar lidando apenas com sujeitos livres, cujas relações interpessoais estão isentas de qualquer fetichismo; a verdade recalcada – a da persistência da dominação e da servidão – emerge num sintoma que subverte a aparência ideológica de igualdade, liberdade e assim por diante. Esse sintoma, o ponto de emergência da verdade sobre as relações sociais, são precisamente as “relações sociais entre as coisas”: “Em vez de aparecer em quaisquer circunstâncias como suas próprias relações [intersubjetivas], as relações sociais entre os indivíduos disfarçam-se sob a forma de relações sociais entre as coisas” – aí temos uma definição precisa do sintoma histérico, da “histeria de conversão” que é própria do capitalismo.

112

Como a razão cínica deixa intacto o nível fundamental da fantasia ideológica, o nível em que a ideologia estrutura a própria realidade social Em sua obra “Crítica da Razão Cínica”, Peter Sloterdijk estabelece a observação de que o modo dominante de funcionamento da ideologia é cínico, o que tornaria impossível o clássico método crítico-ideológico. Porém, para Zizek (1996B, p.313):

O sujeito cínico tem perfeita ciência da distância entre a máscara ideológica e a realidade social, mas, apesar disso, continua a insistir na máscara. A fórmula, portanto, tal como proposta por Sloterdijk, seria: “eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim o fazem” [e não a fórmula de Marx em o Capital: “disso eles não sabem, mas o fazem”]. A razão cínica já não é ingênua, mas é o paradoxo de uma falsa consciência esclarecida: sabese muito bem da falsidade, tem-se plena ciência de um determinado interesse oculto por trás de uma universalidade ideológica, mas, ainda assim, não se renuncia a ela.

Ou seja, o cinismo reconhece e leva em conta o interesse particular que acompanha a universalidade ideológica, mas mesmo assim ainda encontra justificativas para conservar a máscara. Portanto, frente à razão cínica já não funciona mais submeter o texto ideológico a uma leitura ancorada na dimensão do sintoma, pois suas lacunas desconhecidas já estão conscientes por uma falsa consciência esclarecida, de modo que não se estabelece mais um confronto com o que ele tem de reprimir para se organizar, para preservar sua coerência – a razão cínica leva antecipadamente em conta essa distância, de modo que a própria mentira é vivenciada como verdade. Contudo, é preciso estabelecer uma distinção entre o sintoma e a dimensão da fantasia, pois a versão da sociedade pós-ideológica é apressada em demasia em suas conclusões: “A razão cínica, com todo o seu desprendimento irônico, deixa intacto o nível fundamental da fantasia ideológica, o nível em que a ideologia estrutura a própria realidade social” (Zizek, 1996B, p.314). Desse modo, segundo Zizek (1996B), o clássico caso marxista do “fetichismo da mercadoria”, mais uma vez é um interessante modelo de análise. Neste caso o dinheiro é apenas uma incorporação, uma condensação, uma materialização de uma rede de relações sociais, de modo que o fato de ele funcionar como equivalente universal no palco de troca de todas as mercadorias é ocasionado por sua posição na trama das relações sociais. Mas, a função de ser a encarnação da riqueza aparece aos olhos dos participantes do mercado como se o dinheiro em si, em sua materialidade imediata, já incorporasse naturalmente a riqueza. Entretanto, temos que considerar que a distorção é 113

constituída no próprio fazer da realidade social. O equívoco da formulação marxista é que ela ignora uma ilusão, uma distorção que já está em funcionamento na própria dinâmica da realidade social, no plano do que os indivíduos fazem e não do que pensam ou sabem estar fazendo: O problema é que, em sua atividade social, naquilo que fazem, eles agem como se o dinheiro, em sua realidade material, fosse uma encarnação imediata da riqueza como tal. Eles são fetichistas na prática e não na teoria. O que “não sabem”, o que desconhecem, é o fato de que, em sua própria realidade social, em sua atividade social – no ato de troca de mercadorias –, estão sendo guiados pela ilusão fetichista (Zizek, 1996B, p.315).

Portanto, é preciso encontrar uma nova maneira de ler a fórmula marxista “disso eles não sabem, mas o fazem”. É preciso dar-se conta de que a ilusão está em primeiro lugar do lado da própria realidade, do que as pessoas fazem. Assim, o que as pessoas desconhecem é a ilusão que estrutura sua atividade social, de modo que sabem muito bem como as coisas realmente são e funcionam, mas continuam a agir como se disso não soubessem. “A ilusão, portanto, é dupla: consiste em passar por cima da ilusão que estrutura nossa relação real e efetiva com a realidade. E essa ilusão desconsiderada e inconsciente é o que se pode chamar de fantasia ideológica” (Zizek, 1996B, p.316). Esta é uma fantasia inconsciente que estrutura nossa própria realidade social. É tendo presente esta dimensão que se pode dizer que a distância cínica é apenas um modo de permanecer cego para o poder estruturador da fantasia ideológica: mesmo que mantenhamos uma distância irônica ou sarcástica, mesmo que não levemos a sério as coisas, mesmo que saibamos que em nossa atividade estamos seguindo uma ilusão, continuaremos a fazê-la da mesma forma. Se a ilusão estivesse simplesmente pelo lado do saber a postura cínica seria realmente pós-ideológica, sem ilusões, mas como o lugar da ilusão está na realidade do próprio fazer mediante o poder estruturador da fantasia ideológica inconsciente, o processo ideológico se mantém sutilmente vivo. Assim, por exemplo, as pessoas sabem que sua idéia de Liberdade mascara uma forma particular de exploração [do trabalho], mas, mesmo assim, continuam a seguir essa idéia de Liberdade, movidos que são por uma fantasia ideológica inconsciente (Zizek, 1996B). Por outro lado, cabe aqui ainda ressaltar a objetividade da crença e o poder subversivo da abordagem de Marx que está na maneira como ele estabelece a oposição entre as pessoas e as coisas. A propósito, como observa Zizek (1996B, p.317):

114

O sentido da análise de Marx é que as próprias coisas (mercadorias) acreditam em lugar dos sujeitos: é como se todas as suas crenças, superstições e mistificações metafísicas, supostamente superadas pela personalidade racional e utilitarista, se encarnassem nas “relações sociais entre as coisas”. Os sujeitos já não acreditam, mas as coisas acreditam por eles.

O ritual ideológico dos gestos repetidos, a crença, a fantasia ideológica e a rede simbólica intersubjetiva alienante De maneira muito singular, segundo Zizek (1996B), foi Blaise Pascal quem já formulou a argumentação de que tão logo se perde a crença a própria configuração do campo social se desintegra. Desse modo, Pascal antecipou a própria definição lacaniana do inconsciente como o autômato, a letra morta do significante sem sentido e sem significado, que inconscientemente leva a mente consigo. Assim, a absurda “máquina” externa, o automatismo do significante inconsciente, ou seja, a rede simbólica intersubjetiva alienante em que os sujeitos são apanhados, antes de qualquer convicção e escolha, imprime um forte condicionamento à interioridade de nosso raciocínio. Por isso não devemos alimentar enganos e ilusões a respeito de nós mesmos: “Somos tanto autômato quanto mente (...). As provas convencem apenas a mente; o hábito fornece as provas mais sólidas, e aquelas em que mais se acredita. [O hábito] dobra o autômato, que inconscientemente leva a mente consigo” (Pascal, apud Zizek, 1996B, p.318). A resposta incisiva de Pascal para aquele que tem dificuldades para crer consiste em sugerir-lhe que se submeta de corpo e alma ao ritual ideológico e deixe de lado a argumentação racional: “Entorpeça-se repetindo os gestos sem sentido, [faça a genuflexão e o sinal da cruz, seguindo o costume], aja como se já acreditasse [sem explicações], e a crença virá por si só” (Pascal, apud Zizek, 1996B, p.320). Dentro desta perspectiva a Lei é sem sentido em seu modo constitutivo, mas a sua estrutura inconsciente diz que devemos obedecer a ela, não porque seja justa, sábia benevolente e civilizadora, mas simplesmente porque ela é a lei, residindo o fundamento último de sua autoridade em seu processo de enunciação inconsciente: “O costume é a eqüidade inteira, pela simples razão de que é aceito. É essa a base mística de sua autoridade. Qualquer um que tente levá-lo de volta a seu princípio original o destruirá” (Pascal, apud Zizek, 1996B, p.318). Como observa Zizek (1992), a posição de Pascoal não é equiparável a qualquer proto-behaviorismo, pois a mensagem mais profunda da diretiva pascalina é que no momento em que os indivíduos passam a acreditar através das práticas da oração, da 115

genuflexão e do sinal da cruz, eles também verão retrospectivamente que o ato de orar e de ajoelhar-se foi conseqüência do fato de que eles já acreditavam de alguma forma, sem que eles soubessem ou tivessem consciência disso. Sob o prisma pascalino, estabelece-se, portanto, não apenas a importância do conhecimento e da materialidade das instituições, mas também a relevância da “interioridade” e da prática na constituição da crença política por si só. As práticas da crença sob a forma de rituais e costumes, no entanto, só são efetivas em termos de consolidação da crença, porque um processo de transferência inconsciente garante a repetição do círculo vicioso da crença. Argumentando de modo ainda mais preciso a este respeito, Zizek observa: O que [é recalcado] “(...) não é a origem obscura da Lei, mas o próprio fato de que a Lei não tem que ser aceita como verdadeira, mas apenas como necessária – o fato de que sua autoridade é desprovida de verdade. A ilusão estrutural necessária que move as pessoas a acreditarem que a verdade pode ser encontrada nas leis descreve, precisamente o mecanismo da transferência que é a suposição de uma Verdade, de um sentido por trás da realidade estúpida, traumática e incoerente da Lei. A “transferência” é o nome do círculo vicioso da crença: as razões por que devemos acreditar só são persuasivas para os que já acreditam (Zizek, 1996B, p.319-320).

As explicações racionais que ajudam a consolidar as crenças e a obediência aos mandamentos religiosos só se apresentam para aqueles que já acreditam, de modo que as razões somente confirmam a crença porque ela já é anteriormente vivenciada e praticada. Como argumenta Zizek (1996B, p. 319): A obediência “externa” à Lei, portanto, não é a submissão à pressão externa, à chamada “força bruta” não ideológica, mas sim a obediência ao Mandamento na medida em que ele é (...) não compreendido (...) e conserva um caráter “traumático”, “irracional”: longe de esconder sua autoridade plena, esse caráter traumático e não integrado da Lei é uma condição positiva dela. É esse o aspecto fundamental do conceito analítico de supereu: uma injunção vivenciada como traumática e “absurda” – isto é, que não pode ser integrada no universo simbólico do sujeito. Mas, para que a Lei funcione “normalmente”, esse fato traumático de que “o costume é a eqüidade inteira, pela simples razão de que é aceito” – [que coloca] a dependência da Lei em relação a seu processo de enunciação [inconsciente], ou, [aponta] (...) seu caráter radicalmente contingente – deve ser recalcado no inconsciente, através da experiência ideológica imaginária do “sentido” da Lei, de sua fundamentação na Justiça, na Verdade.

O caráter externo da máquina simbólica que funciona como um verdadeiro automatismo significante, como uma aparelhagem maquinal estatal e social, é ao mesmo tempo o lugar em que o destino de nossas crenças mais sinceras e “íntimas”, é encenado e decidido de antemão. Quando nos sujeitamos à máquina ou ao aparelho do 116

ritual religioso, por exemplo, de antemão, sem o saber, já acreditamos nas crenças em jogo. Nossa crença já se materializa no ritual externo inconscientemente, e é precisamente desde o caráter externo da máquina simbólica que é possível explicar o status do inconsciente como sendo radicalmente externo – o de uma letra morta. Como observa Zizek (1996B, p.321): “A crença é uma questão de obediência à letra morta e não compreendida. Esse curto circuito entre a crença íntima e a „máquina‟ externa constitui o núcleo mais subversivo da teologia pascalina”. Na versão pascalina, a máquina simbólica, o automatismo significante, ou o que seria o “Aparelho ideológico de Estado (Althusser) em uma versão mais moderna, comporta um vínculo com a interpelação ideológica em Pascal, que permite a internalização subjetiva do automatismo maquinal, produzindo o efeito da crença ideológica numa Causa e o efeito de interligação da subjetivação, do reconhecimento da posição ideológica que cada um ocupa. A propósito, na linha da reflexão pascalina (e não na versão de Althusser, que não conseguiu discernir adequadamente o vínculo entre os Aparelhos ideológicos de Estado e a interpelação ideológica, visto que também não discerniu o que é constitutivo da lacuna entre o Aparelho ideológico e sua internalização): “Essa „máquina‟ externa dos Aparelhos ideológicos de Estado só exerce sua força na medida em que é vivenciada, na economia inconsciente do sujeito, como uma injunção traumática e sem sentido [sem significado]” (Zizek, 1996B, p.321). A internalização da máquina simbólica, que ocorre por uma necessidade estrutural, nunca será coroada de pleno êxito, como nos ensina Pascal, pois sempre se mantém “um resíduo, um resto, uma mancha de irracionalidade e um absurdo traumático” que se agarra a essa internalização: “Esse resto [espectral], longe de prejudicar a plena submissão do sujeito à ordem ideológica, é a própria condição dela: é precisamente esse excedente não integrado de trauma (...) que confere à Lei sua autoridade incondicional (Zizek, 1996B, p.321). O sujeito barrado lacaniano ($), antes de ser capturado por uma interpelação e antes de ser captado na identificação, no reconhecimento/desconhecimento simbólico – que possibilite a identificação subjetiva com uma grande Causa em correspondência com o chamamento do “Outro” lacaniano –, ele é captado pelo Outro (a máquina significante) através de um paradoxal objeto-causa do desejo em meio a isso, (o objeto pequeno a, para sempre perdido), mediante o segredo supostamente oculto no Outro: $◊a – a fórmula lacaniana da fantasia. Isso também significa que de acordo com a concepção fundamental de Lacan, existe a possibilidade de o sujeito adquirir alguns 117

conteúdos, algum tipo de consistência positiva, fora do “Grande Outro” – fora da rede simbólica intersubjetiva alienante. Essa outra possibilidade é a oferecida pela fantasia, equacionando o sujeito com um objeto da fantasia. Outro aspecto a ser considerado aqui é que a fantasia ideológica é uma função que envolve tanto o Imaginário como o Real. O “Real imaginário” é algo insondável que permeia as coisas com um pedaço do sublime (Cf. Zizek, 1996B, p.321-322). A propósito, o Imaginário encontra-se situado ao nível da relação do sujeito consigo mesmo. É como o olhar do Outro na fase do espelho. Manifesta-se aí uma falta nesse reconhecimento ilusório de si mesmo. Ademais, cabe considerar que o Imaginário é a fantasia fundamental que é inacessível à nossa experiência por ser aquela fantasia que se eleva do espectro fantasmático em que encontramos objetos de desejo. Enfim, o Imaginário e a fantasia a partir dele projetada nunca podem ser agarrados, porque todo discurso sobre eles sempre estará localizado no Simbólico. Por outro lado, aquilo que é chamado de “realidade” também é articulado através da significação (o Simbólico) e da padronização característica das imagens (o Imaginário). O que diferencia estes dois registros, visto que ambos funcionam dentro da ordem da significação, é que, enquanto o primeiro, o Simbólico, é aberto em princípio, o segundo, o Imaginário, procura domesticar o Simbólico, prendendo-o em torno de certas fantasias e impondo uma paisagem fantasística peculiar, com seu específico cunho ideológico, a cada indivíduo. Por fim cabe ainda destacar que Zizek, distingue entre o Real real (que seria a Coisa horrenda, a cabeça de medusa, o abismo e a monstruosidade), o Real simbólico (que seriam, por exemplo, as fórmulas da física quântica não traduzíveis no horizonte da significação, mas que simplesmente funcionam na abordagem científica) e o Real imaginário, que designa não a ilusão do Real, mas o Real da própria ilusão. Trata-se neste último caso não de um Real implacável, mas de um Real frágil que apresenta um traço elusivo traumático, trágico ou místico totalmente insubstancial, mas que incomoda, por ser o ponto do Real no Outro. Enfim, nestas três formas de manifestação do Real: “A questão não é que o Real seja impossível, mas que o impossível é Real” (Zizek, 2006, p.87-89).

118

Para concluir: ato político e educacional para a emancipação em Slavoj Zizek Segundo Zizek, o ato político – e em conseqüência, também o ato educativo com vistas à emancipação – somente pode ocorrer quando o pensamento e a ação do sujeito se desprendem das coordenadas da rede simbólica alienante, e se atam à atividade coletiva, traduzindo-se em uma ação educativa e política soberana, sem fixação institucional imediata às imposições do “status quo” e solto das exigências pragmáticas de adaptação às diretrizes do poder constituído, as quais tendem a travar a emergência e a potência de uma linguagem, de um discurso e de uma práxis efetivamente de emancipação. Assim, o ato político-pedagógico crítico instaura sua própria legalidade, suspendendo a Lei do poder opressor imperante, abrindo espaços para a criatividade e a instauração de um processo de emancipação econômico-social, cultural e política. Esta leitura de Zizek a respeito do ato político (com sua conseqüência educacional) se apóia sobre a negatividade hegeliano-lacaniana que, a princípio, não encarna nenhuma substância positiva inicial. Ela, parte, antes da irredutibilidade negativa do inconsciente que no sujeito se define por resistir aos processos de identidade e de auto-reflexão. Ou seja, sob este prisma, o sujeito denota uma partícula de liberdade, que é intrinsecamente política e pedagógica, se encontrando em uma situação sempre aberta de não adequação plena a seus papéis e identificações sociais. Sob esta perspectiva é que a negatividade na forma de uma universalidade não substancial e de não-adequação pode contrapor-se à falsidade da universalização da política da identidade, veiculada inclusive pelas instituições educacionais adequadas à ideologia do Capital e ao seu componente político de estabilização. Ou seja: “O ato político [e educacional] por excelência é justamente a suspensão desse universal simbólico que nos é dado pelo Capital” (Cherobini, 2007, p.2). Na linha desta mesma direção argumentativa, ainda no que se refere ao conceito de ato político [e, em conseqüência, também pedagógico] de Zizek, cabe observar que o autor não sacraliza o ato em si, ao colocar importância redobrada ao “dia seguinte”, a maneira como o ato rearticula o quadro de mudança crítica, pois o ato apenas como ruptura, ou seja, “o ato sem depois”, representaria simplesmente uma pura negatividade (estéril), não positivada. Para Zizek, trata-se do gesto negativo de criar espaços vazios como condição de um ato positivo; trata-se, também, sob este prisma, da relação entre pulsão de morte e sublimação. Em outras palavras, “(...) trata-se da negatividade da pulsão de morte como condição da sublimação positiva” (Zizek, 2011, p.309). 119

Desse modo, o ato político se reveste de uma verdadeiramente autêntica radicalidade pedagógica, pois não se trata de uma atividade falsa de impotência política que se restringe em de fato apenas reproduzir a constelação sócio-simbólica do capitalismo global existente. E, sob este prisma, todo ato político e pedagógico radical se localiza além de toda a sua condicionalidade, ou seja, ele é incondicional. Assim, não se trata de um “ato incondicional” situado fora da história e fora do simbólico, mas simplesmente de um ato surpreendente que é irredutível ao parâmetro e à moldura das condições opressivas dadas. Como destaca Zizek (2011, p.311):

Este ato não só está enraizado em suas condições contingentes, como são essas mesmas condições que fazem dele um ato: o mesmo gesto, realizado num momento errado – cedo ou tarde demais –, [deixa de ser, ou] não é mais um ato. Aqui o paradoxo propriamente dialético é que aquilo que torna o ato “incondicional” é sua própria contingência: se o ato foi necessário, isso significa que foi totalmente determinado pelas condições, e pode ser deduzido a partir delas (como versão ótima a que se chegou pelo raciocínio estratégico, (...). O vínculo entre a situação e o ato político [e pedagógico], portanto, é claro: longe de determinado pela situação (ou de intervir nela a partir de um exterior misterioso), os atos são possíveis em razão do não fechamento ontológico, da incoerência, das lacunas de uma situação.

Para Zizek (2011), o capitalismo contemporâneo está atado de forma abstrata ao chamado mercado financeiro com seus fetiches que funciona como acelerador pulsional, fictício e virtual da concentração e centralização capitalista, regulando nestes termos a vida social, com as trocas humanas produtoras de riqueza material e humana deixando de ser cada vez mais o centro dinamizador das relações sociais. Dentro desta moldura perversa de funcionamento do sistema, os desígnios do capital financeiro não podem ser contrariados. E como a crise do capitalismo tornou-se aguda e permanente, impõem-se crescentes sacrifícios à grande maioria da população, com cortes drásticos sendo aplicados em termos de benefícios sociais, de empregos, salários e recursos destinados à saúde e à educação. O hedonismo consumista presente no capitalismo contemporâneo se insere em um processo de reprodução das relações sociais que não apenas se ancora na exploração da força de trabalho visando a extração da mais-valia, mas, ademais se alimenta de um mais-gozar decorrente do imperativo de gozo obsceno superegóico que prende a intimidade subjetiva das pessoas à versão imaginária do desejo do “grande Outro”, ou seja, ao fetichismo da mercadoria como imagem. Nestes termos nos aproximamos de tempos cada vez mais chocantes e nervosos, mas com os anestesiados cidadãos consumidores das mercadorias como imagem se

120

portando como verdadeiros sonhadores, na perspectiva freudiana do sonhador permanentemente em fuga do encontro com a realidade traumática, de modo a pensar que as coisas podem continuar indefinidamente da mesma forma. Nas condições de crescente crise sistêmica do capitalismo, somos violentamente pressionados a despertar de um sonho noturno e diurno que está se transformando em pesadelo (Zizek, 2011). O capitalismo globalizado contemporâneo, e junto com ele o formato de sua ideologia e de sua educação sistêmica, anestesiam, paralisam e despolitizam as pessoas para que elas não abracem um projeto político de sociedade que enalteça a importância dos bens públicos e sociais coletivos e o espaço público aberto à participação efetiva do conjunto da população, principalmente dos trabalhadores comuns e dos marginalizados sociais. Sob este prisma, nas atuais condições de sua alienação e impotência política, as pessoas antes são capazes de imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Nos moldes da ideologia cínica atual as pessoas são pouco suscetíveis a crenças e utopias sociais visualizadoras de um mundo melhor. Ao contrário, preferem ficar imobilizados em termos da crença nos “outros supostos crer e saber”: as autoridades políticas, econômico-administrativas, o mercado financeiro e as informações filtradas e manipuladas da mídia, que acreditam crer e saber por elas. (Zizek, 2010). A propósito, a democracia, os veículos de comunicação e a educação oficial aparecem completamente subsumidos às pressões e às razões do mercado, mesmo que estejamos testemunhando, hoje, que a rota frenética do sistema, com seus crescentes sintomas sociais patológicos, está se aproximando de um caminho acelerado de autodestruição. E, desse modo, uma educação com uma perspectiva de emancipação não pode ficar neutra e alheia a uma ação política que aponte para a ruptura radical com as coordenadas opressivas inerentes ao funcionamento do sistema capitalismo em crise. Para finalizar, cabe observar que o ato político e pedagógico de ruptura heróica, corajoso e alternativo ao “status quo” também só é possível porque de acordo com a leitura lacaniano-hegeliana de Zizek (1996B, p.324): “Existe uma possibilidade de o sujeito obter alguns conteúdos, algum tipo de consistência positiva, fora do „grande Outro‟, fora da rede simbólica intersubjetiva alienante. Essa outra possibilidade é a oferecida pela fantasia, equacionando o sujeito com um objeto da fantasia”. Ou seja, o sujeito adquire suas características particulares não apenas por um mandato simbólico que lhe é imposto por uma rede de relações intersubjetivas da qual ele faz parte – porque se assim fosse, o sujeito não passaria de um mero vácuo, um espaço vazio a ser totalmente preenchido pelo conteúdo do “grande Outro” e pelos 121

“pequenos outros”, o que resultaria em uma alienação radical e inexorável do sujeito. Assim, a espinha dorsal da “realidade de fantasia” do sujeito de alguma forma mantém uma conexão com o “Real” do desejo do sujeito, dando uma consistência positiva a ele fora da rede simbólica alienante, assim também abrindo brechas para a emergência de atos políticos e pedagógicos de liberdade e de superação das cristalizadas formas de alienação subjetiva e intersubjetiva, enfim de emancipação individual e coletiva, no plano social, político e cultural.

Referências

CHEROBINI, Demétrio. Internet e possibilidades de emancipação: uma reflexão a partir do pensamento de Slavoj Zizek (Texto escrito e apresentado na DCG: Novas Tecnologias e Cibercultura – Julho de 2007). http://www.angelfire.com/sk/holgonsi/demetrio.html ZIZEK, Slavoj. Em Defesa das Causas Perdidas, São Paulo, Boitempo, 2011. ZIZEK, Slavoj. Como Ler Lacan, Rio de Janeiro, Zahar, 2010. ZIZEK, Slavoj. A Visão em Paralaxe, São Paulo, Boitempo, 2008. ZIZEK, Slavoj. “Introdução: O espectro da ideologia”. In: Theodor Adorno [et. al.], ZIZEK, Slavoj (org.). Um Mapa da Ideologia, RJ, Contraponto, 1996A, pp.7-38. ZIZEK, Slavoj. “Como Marx inventou o sintoma?”. In: Theodor Adorno [et. al.], ZIZEK, Slavoj (org.). Um Mapa da Ideologia, RJ, Contraponto, 1996B, pp.297-331. ZIZEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992. ZIZEK, Slavoj & DALY, Glyn. Arriscar o Impossível: conversas com Zizek, São Paulo, Martins Fontes, 2006.

122

Reflexões sobre a Sociedade Tecnicamente Administrada (Capitalista) e suas Correlações com a Educação em Adorno

Pedro Rogério Sousa da Silva*

Questões de Filosofia da Educação em Adorno

No presente estudo, tem-se como objetivo geral analisar criticamente, a partir da leitura de importantes obras do filósofo alemão Theodor W. Adorno, algumas questões relacionadas à sociedade tecnicamente administrada (capitalista) e à educação nela desenvolvida. Outro foco analítico consiste na abordagem dos mais importantes instrumentos de dominação utilizados nesta sociedade, procurando destrinchar seus fundamentos e alinhavar algumas de suas consequências deletérias para a formação cultural do ser humano. Primeiramente, no que diz respeito ao âmbito educacional, faz-se necessário esclarecer que Adorno não foi um pensador de formação pedagógica. Mesmo assim, apresentou algumas conferências e entrevistas que foram de grande relevância à educação, tais como: Educação após Auschwitz; Educação contra a barbárie; Educação para a autonomia; e Tabus a respeito do professor. Ainda no que tange a essa questão, entende-se ser significativo apontar que a maior parte dos escritos de Adorno se afigura de caráter mais ensaístico do que sistemático, embora sua crítica filosófica seja sistemática e ele também tenha desenvolvido diversas obras de cunho sistemático, tais como Dialética Negativa e Dialética do Esclarecimento, este último em conjunto com Max Horkheimer. Sua filosofia não se limita a um método, diferenciando-se radicalmente das abordagens hegemônicas, meramente tecnicistas e positivistas, que se instalaram na modernidade e em suas teorias herdeiras contemporâneas. Em seus ensaios, Adorno não compartilha certas normas que se configuram como jogo científico. “Este jogo sempre configurou ― como diria Spinoza ― o ordenamento das coisas com o mesmo *

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Faced - UFC, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), desenvolvendo Dissertação no âmbito da linha de pesquisa Filosofia e Sociologia da Educação (Filos), orientado pelo Prof. Dr. Hildemar Luiz Rech.

123

significado das ideias, embora a ordem sem lacunas dos conceitos não se torne jamais idêntica ao ente” (ADORNO, 1994, p.174). O ensaio e a própria construção filosófica de Adorno não visam alcançar uma edificação fechada, dedutiva, como pensava Descartes, ou indutiva como pensara Bacon. Todavia, trata-se de uma constelação conceitual que se inicia com uma oposição ao idealismo que se fixou a partir da filosofia de Platão. Para este, o que podia ser mudado, isto é, o transitório, não era merecedor de crédito para a filosofia. E, portanto, não poderia fazer parte dela. “Em contraposição, o efeito do modo de Adorno de oporse radicalmente ao idealismo advoga em favor do efêmero, por não aceitar essa antiga iniquidade platônica de anulação do contingente, encontrando-se o motivo novamente atrelado ao plano conceitual” (ADORNO, 1994, p.175). A réplica contra isso é que, para Adorno, o fragmentário e o acidental são decisivos para uma compreensão adequada da realidade e indispensáveis para uma projeção não petrificada da relação sujeito e objeto. Entretanto, o ensaio e, mesmo, os aspectos sistemáticos de sua filosofia não procuram captar uma verdade ― sobre as coisas, os eventos, os objetos, as ações, bem como o mundo e o universo ― que tenha validade para todos e para todos os tempos. Grosso modo, o autor sempre se mantém atento ao paradoxal, ao ambíguo e ao transitório na dança ziguezagueante e entrelaçada dos conceitos com a realidade. E as contingências, deficiências e lacunas, que marcam o cerne desta relação, respaldam as atitudes atentas ao conceito de não-identidade, tão caro à dialética negativa de sua filosofia e de seu próprio modo de pensar, sempre independente de todas as formas cristalizadas e fechadas de captura da verdade (ADORNO, 1994, p.175-176). Quanto à formação de Adorno, constata-se que este teve uma educação de “qualidade”, tendo desenvolvido inúmeras atividades, mais especificamente aquelas de caráter artístico-cultural. Em termos do seu trajeto pessoal, cabe observar que Adorno nasceu na cidade de Frankfurt, na Alemanha, em 1903. Seu pai era Oskar Wiesengrund, um judeu alemão convertido e comerciante de vinhos. Já sua mãe era Maria CalvelliAdorno, uma musicista92 de renome (cantora profissional), oriunda de uma tradicional família católica de Gênova, na Itália.

92

Não podemos deixar de mencionar outra musicista que contribuiu para a densidade estético-filosófica de Adorno, sua tia Agathe Adorno, uma pianista talentosa (COHN, 1986, p. 8).

124

Para muitos estudiosos, o frankfurtiano era satisfeito por nascer em um ambiente familiar repleto de cultura ― refinada e erudita. Isso porque pôde, nesta mesma instituição educacional, a família realizar com facilidade atividades ligadas ao gênero artístico. É nesse âmbito que surgem os primeiros contatos de Adorno com a arte, com forte presença do aspecto musical. Porém, não se pode esquecer que também fizeram parte de sua educação temas problemáticos de ordem histórica e religiosa, assim como a política e a economia. Além de filósofo, Adorno dedicou-se a estudar composição e piano em Viena, na Áustria. Chegou a ser aluno de um célebre artista vienense, Alban Berg (1885-1935), um músico com grande refinamento no modo de compor, que propôs uma reviravolta no aparato musical do século XX. Em companhia do mesmo colaborou com a veiculação da revista Anbruch e ajudou a publicar matérias que abordavam as questões da música de vanguarda de seu tempo. Mais tarde, Adorno passou a direcionar-se aos estudos das técnicas de composições de Arnold Schönberg. Tais técnicas referiam-se aos aspectos atonais do modo de compor, que despertaram certa admiração no filósofo. Entretanto, a diferente maneira de compor, isto é, o serialismo da escala de doze tons, fez Adorno romper com o trabalho musical schonberguiano. A propósito, Zuin faz a seguinte ponderação, enfatizando que o pensamento musical de Adorno estava mencionando: antes a dimensão cognitiva que a dimensão expressionista da música. (...) não interpretava a tonalidade expressionista como produto da subjetividade emocional [do músico vienense]. Dessa maneira, o filósofo alemão compreendia que como desenvolvimento de tendências objetivamente imanentes na própria música, tendências essas que, de formas complicadas e indiretas poderiam levar a vínculos de tendências sociais (ZUIN, 2008, p. 24). [Grifos meus].

Nesse sentido, essa temática constitui um problema importante no pensamento de Adorno. Isto porque ele põe o aspecto estético-artístico em destaque. De acordo com ele, a estética deveria estar no mesmo patamar da filosofia. Desta forma, vai criticar dois importantes e grandes autores da história da filosofia: Kierkergaard e Hegel. O primeiro autor, por colocar a estética no plano do irracionalismo e da submissão ética e religiosa. Já o segundo, por ter colocado a estética em um plano inferior à religião e à filosofia. Como se percebe, Adorno confronta-se com essas formas de pensamento, modificando a hierarquia no que diz respeito ao valor da estética. Sua primazia artística 125

coloca-se como possibilidade de um pensamento criativo e inovador, pois pretende abordar o entrelaçamento da filosofia com a arte. “Há um estudo em que Adorno compara o desenvolvimento do conceito na lógica hegeliana com o desenvolvimento composicional da música de Beethoven” (BUCK-MORSS, 1981 apud ZUIN; PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2008, p. 269). Com seu modo distinto de pensar, Adorno consegue fazer um elo entre duas atividades tão diversas: a música e a filosofia. Sabe-se que ele trabalhou com essa relação em seus estudos filosóficos e sociológicos ou, ainda, em suas contribuições estritamente ligadas ao campo estético-artístico. Mas foi como professor em uma universidade alemã que ele pôde expressar melhor tal entrelaçamento. Junto com Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Erich Fromm, entre outros pensadores, fez parte do Institut für Sozialforschung (Instituto de Pesquisas Sociais), ou seja, do movimento sócio-filosófico iniciado na Alemanha nos anos de 1920, que, mais tarde, após a Segunda Guerra Mundial, recebeu algumas alterações, sendo a principal delas a mudança de nome para Escola de Frankfurt. A propósito, cabe mencionar que esse movimento não se consolidou como uma seita ou uma entidade religiosa evangelizadora ― nem mesmo como escola, no sentido estrito da palavra ―, mas como resultado de um grupo de estudos marxistas que teve como uma de suas propostas a expansão dos estudos do marxismo, concentrando-se principalmente nos conceitos de ideologia, fetichismo da mercadoria, coisificação ou reificação, dominação, alienação, entre outros. Enfim, o que procuravam os integrantes deste movimento era alcançar uma nova proposta social, em particular uma nova leitura dos aspectos da política e da economia, da cultura e da educação, em uma época marcada profundamente pelas imposições avassaladoras do regime93 nazi-fascista e do capitalismo tardio administrado. É nesse horizonte que a esfera educacional torna-se significativa, pois ela apresenta novos rumos para a sociedade capitalista ocidental, uma vez que vai de encontro às determinações do “politicamente correto”. Trata-se, portanto, de atribuir ao aspecto educacional uma função que resgate elementos crítico-formativos do ser humano, isto é, forneça mecanismos para a efetivação do pensamento crítico, contribuindo para o surgimento e a manutenção de indivíduos autônomos, capazes de

93

Outra forma de regime que apareceu, nesse mesmo período, mas, agora, vinculado ao sistema socialista, foi o stalinismo soviético.

126

pensar, de julgar e de decidir por si mesmos, contrariamente a uma “danificação dos sentidos e da vida”94. Aqui, essa danificação não se refere a nenhuma lesão ou problema mental ou biológico do homem, mas a um déficit no desenvolvimento sócio-psicológico dos indivíduos, que provocou a alienação neles. Em outras palavras, gerou a falta de capacidade para decidir suas ações, o que resultou em prejuízo para a comunidade (coletivo). Com isso, as pessoas passaram a se comportar de modo infantilizado, não se mantendo capazes de suportar a distância temporal entre seu desejo e a satisfação deste. Assim sendo, os indivíduos passaram a buscar, a todo preço, saciar, imediatamente, seus desejos, embora nunca satisfeitos por completo. Ainda no que se refere à questão educacional, cabe aqui destacar uma advertência desse filósofo: não deve ser atribuída à educação a responsabilidade para solucionar as contradições do sistema capitalista, pois ela, por si só, não consegue dar conta dos problemas deste sistema socioeconômico, que, por sinal, são inúmeros. Isto porque a educação, assim como qualquer outra atividade, como o esporte, a cultura ou a arte, está sujeita ao conjunto infernal de atrocidades do capitalismo (ADORNO, 1995). De acordo com Adorno, a resposta para um encaminhamento mais promissor da atividade educacional inicia-se com o descortinar dos pressupostos que dificultam a formação cultural crítica e criativa, ou melhor, de tudo aquilo que causa alguma danificação a um educar comprometido com a reflexão e auto-reflexão crítica das pessoas. A propósito, Wolfgang Leo Maar observa o seguinte a respeito da reflexão de Adorno no debate radiofônico “Educação - para quê?”, publicado em Educação e emancipação: O mundo dos homens é organizado de determinada maneira e é preciso decifrar as condições e os condicionantes que causam seu modo determinado de ser. A essência não está “atrás” da aparência, mas é a reflexão da aparência acerca de seu modo de aparecer de determinado modo, o arranjo determinado do mundo, a sociedade que é sua própria ideologia. A emancipação como “conscientização” é a reflexão racional pela qual o que parece ordem natural “essencial” na sociedade cultural, decifra-se como ordem socialmente determinada em dadas condições da produção real efetiva da sociedade (MAAR, 2003, p. 472).

Portanto, as determinações sociais da sociedade tecnicamente administrada estão nas raízes da barbárie, ou seja, do surgimento e da reprodução de inúmeras mazelas

94

Esses conceitos são tratados por Adorno no texto Fetichismo na música e a regressão da audição, publicado originalmente em 1938.

127

desta sociedade. Tendo por base este entendimento é que Adorno vai nos dizer que o primeiro compromisso da educação e de todos que estão envolvidos com ela ― pedagogos, filósofos, sociólogos, políticos, psicólogos, historiadores, entre outros profissionais; enfim, todos aqueles que, de alguma maneira, deixam suas contribuições ou se utilizam do processo educacional ― “precisam evitar que Auschwitz volte a ocorrer” (ADORNO, 1995, p. 119). Isto porque Auschwitz foi um acontecimento extremamente trágico, ou seja, foi o maior campo de concentração (e de extermínio) nazista que operou na cidade de Oswiecim, na Polônia. Aliás, esse fato passou a ser a imagem do Holocausto. Hoje, ele é o meio (simbólico) utilizado para enfatizar os aspectos traumáticos e catastróficos por excelência na Europa, entre o final da década de 1930 e o começo da década de 1940 (SELIGMANN-SILVA, 2003). Vale ressaltar que esse acontecimento provocou e ainda provoca graves lesões à humanidade, porque se trata de um problema que afetou a todos e precisa ser esclarecido e solucionado socialmente. Os horrores resultaram em extermínios, exílios, torturas, perseguições, discriminações étnicas e racistas, mortes trágicas e violentas, danos materiais e imateriais e desastres econômicos e políticos. No entanto, faz-se necessário esclarecer que os prejuízos que Auschwitz deixou não se restringem às tragédias ocorridas e às dores físicas ou psicológicas infligidas. Eles foram muito mais além, pelo simples motivo de um elevado número de pessoas terem sido acometidas pelo desprezo, pela falta de auto-estima e pelo desaparecimento de sua memória ou de sua recordação. Como consequência, esse problema, por excelência, se reproduz na falta de memória para estes traumáticos processos históricos da humanidade, resultando em esquecimento dos males gerados pelas práticas patológicas do nazismo. Na concepção de Adorno, se este problema não for profundamente e amplamente debatido e permanentemente tornado público, ele pode fazer recrudescer a barbárie. No que tange ao aspecto da educação, em especial na escola, deu-se pouca importância ao tratamento desta grande barbárie, sendo que o aspecto educacional distanciou-se, cada vez mais, dessa questão. Nas palavras de Adorno, esse aspecto não cumpriu o que, por sua vez, havia de mais significativo: ajudar no processo de resistência e de desbarbarização da humanidade. A prova disso é a pouca consciência dos indivíduos ou o pequeno número de pessoas informadas e realmente conscientes sobre as terríveis monstruosidades cometidas em Auschwitz, e isto em uma sociedade dita esclarecida. 128

Razão Instrumental e seu suposto Esclarecimento No prefácio da Dialektik der Aufklärung (Dialética do Esclarecimento),95 percebe-se uma contradição, quando Adorno e Horkheimer nos fazem refletir sobre “porque a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie (ADORNO, 1985, p. 11). Nesse sentido, para os filósofos, trata-se de entender a falsa promessa do capitalismo tardio e de seu suposto esclarecimento que, desde os primórdios, veiculou a ideia de livrar os homens da condição de dominados e transformá-los em sujeitos, apesar de sabermos que o preço foi bastante elevado para a obtenção de algumas “vantagens”. Não obstante, essas vantagens desembocaram em aspectos contrários. Daí porque o ser humano teve de se responsabilizar por enormes prejuízos, tais como alienar-se e deixar-se ser explorado pelo discurso sistêmico-oficial e pelo exercício de sua dominação. Além disso, e ainda sob esse mesmo ângulo, pode-se verificar, segundo os mesmos autores, que não é novo o projeto de esclarecimento. Este iniciara desde a Grécia: o projeto de entronizar a razão em vez do mito. Porém, foi na modernidade, sobretudo na filosofia de Francis Bacon96 ― fundador da ciência moderna e do empirismo ―, que essa posição ganhou fortalecimento. Ele criticava demasiadamente a tradição filosófica aristotélica e sua ciência teórica de caráter especulativo ― em particular a dimensão de ciência do Órganon de Aristóteles ―, mas não porque entendesse que o trabalho desse filósofo fosse por ele considerado sem qualidade. A propósito, sabemos que o filósofo inglês sempre elogiou o pensador grego, uma vez que era consciente da importância do pensamento aristotélico para o desenvolvimento de nossa filosofia ocidental. A crítica de Bacon à filosofia de Aristóteles se concentra na observação da falta de um método de investigação que correspondesse às exigências científicas, particularmente às de caráter experimental e natural, tais como astronomia, química, botânica e mecânica (BACON, 1999). Nesse tocante, é possível perceber que, nos estudos baconianos, há uma atenção especial às condições de pesquisa e, ainda, à teoria do conhecimento. Seu projeto visava tornar possível uma restauração da ciência com base no método indutivo anti95

Embora esse livro tenha sido escrito por Adorno, em parceria com Horkheimer, toda vez em que, doravante, for abordado o mesmo no presente texto, será citado apenas o nome do primeiro autor, visto que é o pensamento deste que é o objeto do presente estudo. 96 Bacon, filósofo inglês (1561- 1626). Mesmo não sendo cientista, teve uma contribuição significativa para o campo da ciência, através de seu método cientifico: a indução (MARCONDES, 2005, p. 178).

129

especulativo e de entrelaçamento com a técnica. Mas, pode-se perguntar: o que quer Bacon? A resposta está em estabelecer uma junção entre experiência e razão, observação da regularidade dos fenômenos e da interpretação dos fatos que partem de eventos particulares para se chegar a uma efetivação de leis estáveis e seguras, necessárias e universais. É dessa forma que a ciência pode alcançar o progresso, segundo esse autor (BACON, 1999). Com isso, o saber tornou-se poder. Nesse ínterim, “O Homem, ministro e interprete da natureza” (BACON, 1999, p. 33) distanciou-se de toda e qualquer lei moral. Segundo Bacon, a moral passou a ser a própria ciência. Sabemos que ela tem o intuito de substituir os interesses pessoais pela neutralidade das pesquisas científicofilosóficas. De modo geral, Bacon tem uma preocupação com os problemas ligados a esses interesses. Por quê? Em primeiro lugar, porque, segundo ele, deve-se buscar a independência dos fenômenos em relação ao pesquisador que conhece e atua. Em segundo lugar, é de fundamental importância que o cientista afaste-se da experiência cotidiana, pelo fato de o autor entender que ela é movida pelos vários significados que são paradoxais e exprimirem relações subjetivas e próprias dos indivíduos. Por fim, deve-se identificar as raízes de tais interesses, visto que eles, diria o mesmo autor, estão sempre atrelados aos ídolos.97 De acordo com esta compreensão pode-se afirmar que os ídolos são os causadores de imperfeições que tanto provocam interferências à mente humana. Assim, entende-se que essa forma de agir deve ser evitada, por envolver instrumentos que inibem ou camuflam a construção do trabalho científico. Ou seja, esses instrumentos atuam impedindo o acesso ao procedimento eficaz do conhecimento universal e indubitável, empírico e racional da ciência. Por conseguinte, o novo modelo de cientificidade, o método indutivo, deve distanciar-se de preconceitos, ilusões e superstições, para tornarse uma criança numa “floresta virgem” e que tudo que se faz é descobrir e/ou conhecer o mundo. A partir daí, fica evidente a preocupação de Bacon com um método que caminhe no sentido de aperfeiçoar a ciência. Para ele, tal aperfeiçoamento traria inúmeros benefícios à vida do ser humano. Trata-se, assim, de uma atitude pensante que se concretizou em defesa da razão instrumental e da técnica, visando avançar o

97

Os ídolos podem ser de quatro tipos: a) ídolos da tribo; b) ídolos da caverna; c) ídolos do foro ou do mercado; d) ídolos do teatro. In: BACON, Francis. Novum Organum. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores), p. 40-49.

130

conhecimento científico e colocar o homem no caminho de um saber entendido como legítimo e correto. Este modo de pensamento foi fortemente criticado pela Escola de Frankfurt, em especial por Adorno, quando questionou o suposto uso da imparcialidade e da objetividade metodológica imposta pelo filósofo inglês. Porém, tudo, de certa forma, já estava estabelecido por uma tradição científica, teológica ou filosófica, que, em um sentido mais disseminado, funcionava como prática ideológica de dominação, mesmo que indiretamente e sem grandes distorções nos procedimentos científicos. Assim, é enganoso pensar que a ciência fundamenta-se como uma atividade que não acarreta interesse por algo, como se, com efeito, ela fosse um procedimento compromissado apenas com a produção de conhecimento. Segundo este prisma, “haveria uma separação entre sujeito e objeto e ocorreriam resultados que seriam independentes do desejo ou da condição de quem pesquisa” (CHAUI, 2000, p.281). Mas essa lógica vai por água abaixo, ou seja, no que concerne ao trabalho do pesquisador, “sabe-se que ele traz um a priori logo na escolha do seu objeto de investigação” (CHAUI, 2000, p.281). E, quando procura iniciar um trabalho, também faz uso de determinado caminho para obtenção de resultados. Não esquecendo, é claro, de sua expectativa pelos mesmos. E, portanto, pode-se afirmar, a partir disso, que a suposta neutralização é ilusória, tendo em vista que a realização da atividade científica é realizada por escolhas e interesses. Além disso, não se pode esquecer que a prática da ciência é dirigida, de certo modo, a alguns fins e que estes sempre foram atrelados àqueles que, de alguma forma, exercem o poder estratégico-econômico ou político-administrativo, tais como os reis e os nobres, no período iluminista. E, a partir do século XX, pode-se dizer, com propriedade, que o fazer científico está cada vez mais entrelaçado com esse poder, uma vez que “é possível constatar as inúmeras pesquisas realizadas a serviço de empresas particulares e outras financiadas pelo próprio Estado, como no caso dos institutos de pesquisa e das universidades, em geral” (CHAUI, 2000, p.282). Eis porque, para Adorno (1985), a partir dessas condições, a ciência passou a ser inserida pela lógica das forças produtivas de nossa sociedade. Ela provocou reviravoltas, trazendo modificações para a vida humana, embora nem sempre boas, pois, na medida em que se tornou instrumentalizada, desembocou no processo em que o saber teve a pretensão de dar conta da realidade, permitindo que fosse viável a manipulação e o controle da técnica, a serviço do poder econômico e político instituído. 131

Ora, para o mesmo autor, o que aconteceu, na verdade, foi que o saber-poder movido pela razão instrumental ― que, de acordo com o sociólogo alemão Max Weber, rima com o desencantamento do mundo ― tentou desmistificar com seu ceticismo as inúmeras esferas da vida social, tais como a artística, a científica, a econômica, a ética, a sexual e a política. Ou seja, aquilo que se tornou numa linguagem matemática um cálculo infinito não respeitou limites e ultrapassou todas as barreiras, atrelando-se, sobretudo, à pulsão mortífera dos grandes predadores capitalistas e aos detentores de poder do mundo administrado (ADORNO, 1985). Então, em linhas bem gerais, o objetivo do processo de racionalização resultou na estruturação de um pensamento que age, em última instância, como estado de dominação, ou seja, como modo de produção e reprodução das estratégias do poder visando explorar homens e a natureza. Assim, segundo Adorno,

O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a menor consideração consigo mesmo, o Esclarecimento eliminou com seu cautério o último resto de sua própria consciência. [...] O resultado disso, pode-se dizer, foi que os homens pagaram pelo o aumento de seu poder que desembocou na alienação sobre o exercício do poder (ADORNO, 1985, p. 20). (Grifos meus).

Para essa razão (racionalidade iluminista) e para seu sistema sócio-econômico burguês, Adorno não vê nenhum benefício para o desenvolvimento das potencialidades de emancipação da humanidade. O que se pode ver é a continuação e/ou ampliação de um período mitológico (crença no progresso e na evolução do conhecimento) que se faz presente na sociedade industrial como estado catastrófico de dominação social e econômica. Em linhas bem gerais, o que essa dominação pretende provocar ao homem é transformá-lo naquilo que se convencionou chamar de Verdinglichung (consciência coisificada). Este processo de expressão da consciência é um dos instrumentos que está a serviço dessa razão social dominadora. Ela é o modo deliberado de atuar na vida dos sujeitos, pois é através de sua reprodução, associada ao uso de técnicas e de tecnologias de controle dos processos naturais e sociais, que tudo tem sido reduzido a um estado de coisas e de pessoas descartáveis, submetidos ao fetichismo da mercadoria com fins lucrativos. A propósito, ocorre também uma deformação significativa no campo estético, com ênfase nos bens artísticos, atingindo, de modo singular, o aspecto musical. Essa 132

atividade sofre uma padronização ― do ritmo, da melodia, da harmonia ―, que empobrece a sensibilidade e a criatividade humana, estipulando como valor apenas a veiculação de fetiches musicais em grande escala, falsamente concebidos como expressão do belo, enquanto instalação de uma parafernália técnica e instrumental. Ademais, nesse contexto marcado pela disseminação da consciência anestesiada e petrificada e pela racionalidade instrumental, o que acontece é, basicamente, a autonomia da técnica sobre os indivíduos. Por isso, Adorno (1995) enfatiza que se deve ficar atento a essa tendência. Para ele, não se pode desprezá-la, visto que se necessita pesquisar o motivo desse aparato racional tecnicista que produz facilmente a tecnicização de sujeitos. Esta situação é o meio ilusório em que várias pessoas passam a entender que há um fim em si mesmo. Diante disso, elas podem agir com comportamentos pouco éticos e bastante instintivos que, muitas vezes, são propícios para práticas de agressividades, que levam o ser humano a estágios antropologicamente primitivos. Assim sendo, perdem-se, então, os atos considerados humanos, como se pode verificar no respeito do relacionamento das pessoas tanto consigo quanto com os outros (ADORNO, 1985). Nessa direção, o que prevalece são os valores da individualidade e do “mais gozar” do homem. Ele, assim, esquece que a técnica é uma forma de extensão, isto é, um procedimento que pode funcionar, em alguns casos, como um alongamento do braço humano. Daí percebe-se que existe algo de ambíguo com a técnica, tendo em vista que sua aplicação ganha um destino que já não se dirige em prol de melhorar, de alguma forma, a vida dos indivíduos; ao contrário, dirige-se como um aparato que está vinculando-se aos desejos dos que possuem e a usam de forma errática, isto é, sem nenhuma ética, na contramão dos que visam fornecer um quadro conceitual que respeita a vida humana e a natureza. Outra forma de ambiguidade, para não dizer paradoxo, manifesta-se no esporte. Tal atividade tem duplo funcionamento: por um lado, pode funcionar como um importante recurso de sublimação do horror barbaresco e, ainda, como uma prática de atividade física que pode desenvolver inúmeros benefícios para a saúde humana. Mas também pode ser utilizado, em algumas modalidades, como um instrumento que promove o aparecimento do sadismo ou do masoquismo, quando se estabelece a promoção de corpo dócil e do excessivo disciplinamento, da ideologia promotora da virilidade artificial, para suportar a dor, e do elogio ao objetivo de ser duro consigo e com os outros. Vale lembrar que essas práticas são utilizadas nos quartéis militares. Mas 133

também são condutas que fizeram parte do “currículo” da educação nazista e, por consequência, contribuíram como um forte instrumento ideológico favorável à produção de Auschwitz. No mesmo âmbito, ocorre também a reprodução, em grande escala, de valores tipicamente preconceituosos e excludentes. Eles costumam, por exemplo, aparecer nos gritos de torcidas ― em particular nos hinos de algumas torcidas organizadas de futebol ―, nos mais variados tipos de esportes. Desse modo, percebe-se que ocorre um modo de proceder que vem deformando a circulação e a produção destes recursos: a da técnica propriamente dita e a do esporte. A partir daí, fica evidente a dificuldade de eles contribuírem para uma formação integral e de emancipação dos indivíduos. No ambiente contemporâneo, o que se apresenta é a presença de um processo formativo conservador-reacionário e alienante, atrelado às imposições colonizadoras do mundo administrado, fetichizado e globalizado que reduz tudo ao princípio do mesmo ou idêntico. Estas sofisticadas e osmoticamente alastradas práticas de manipulação e de dominação invadem diferentes aspectos da vida humana, como o artístico, o cognitivo e o psicológico, sendo veiculadas com mais força pelos meios de comunicação98 de massa ― rádio, televisão e Internet ― e, em muitos casos, até mesmo, no âmbito da educação formal e/ou não formal. Neste quadro, o campo sócio-educacional sofre deturpações, pois ocorre uma produção de conhecimento que, neste ambiente infestado pela razão instrumentalizada, visa atingir profundamente a educação, com a pretensão de torná-la um mecanismo meramente a serviço da proliferação do status quo vigente, mediante o anestesiamento e a dessubjetivação do homem comum, visando reproduzí-lo como massa dócil e conformada com as atuais formas sofisticadas de “inclusão-excludente” e de “controle biopolítico”. Nessa condição, isso implica numa postura que dificulta a efetivação da formação cultural autêntica e autônoma. Tal dificuldade se multiplica ainda mais, porquanto o âmbito educacional vem perdendo cada vez mais espaço. A educação, assim, torna-se um apêndice funcional às necessidades de assimilação técnica da força de trabalho aos 98

Com relação a tal veículo, acredita-se, aqui, ser de suma importância enfatizar que Adorno não chegou a conhecer o auge da televisão, tampouco conheceu a Internet. Entretanto, pode-se dizer que, certamente, faria um comentário crítico de grande valia com relação a esse último veículo, visto que ele é o maior instrumento de comunicação ― de massa ou não ― em termos de complexidade, até agora produzido pelo advento do desenvolvimento técnico-tecnológico, fruto dos avanços científicos.

134

imperativos da acumulação do capital e em termos culturais abraça a subserviência aos atrativos pseudo-culturais de entretenimento e de propaganda do mundo do consumo capitalista. O mundo em que vivemos hoje ― racionalizado, fetichizado e virtualizado ― reproduz-se movido pelo desprezo ao amor e à solidariedade humana, em prol de desejos atravessados, de modo imediatista e mortífero, pelo imperativo do “mais gozar” a qualquer custo e sem limites. Este tipo de gozo associa-se também, cada vez mais, às fugazes novidades tecnológicas, que prendem o sentimento ao virtualismo veloz de máquinas que promovem a ilusão, a fantasia e a alienação dos indivíduos em torno da propaganda de coisas e/ou objetos fetiches, onde o lema das pessoas se faz pela expressão “I like Nice equipament” (ADORNO, 1995, p.133). Para Adorno, esse tipo de acontecimento não é simplesmente uma deformação natural do homem, mas uma grave lesão dos aparatos político-sociais, que se ajoelham e se submetem à reprodução massificada da frieza e do consumo generalizado em nossa sociedade. Para finalizar o presente texto, cabe ainda observar que a reflexão de Adorno não se deixa domesticar pela falsidade fugaz das artimanhas que, em última instância, restringem-se a reproduzir sempre o mesmo, o idêntico. Ao contrário, a sua constelação conceitual é norteada pelo realce do não-idêntico, mediante o exercício da dialética negativa, visando sempre solapar a lógica perversa do princípio da identidade. Esta lógica procura fazer subsumir todos os sofrimentos e as injustiças humanas ― e também as contradições e os paradoxos da realidade ― ao discurso ideológico do capital. A propósito, Adorno também é um filósofo que não propõe modelos sistemáticos de educação, mesmo porque seu pensamento está mais concentrado em elaborar e apresentar uma crítica à pseudo-cultura do capitalismo tardio. Ou seja, o que ele mais pretende é abrir uma distância crítica ao pensamento para melhor captar as contradições, os paradoxos e os nós górdios da modernidade tardia, visando contribuir com novos parâmetros para uma práxis econômico-social, política e cultural autêntica e de emancipação.

135

Referências

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. _________. O Fetichismo na música e a regressão da audição. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural (Coleção Os Pensadores), 1983. _________. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 1995. _________. O ensaio como forma. In: COHN, Gabriel (org.). Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática (Grandes Cientistas Sociais, 54), 1994. ASSOUN, Paul-Laurent. Escola de Frankfurt. São Paulo: Editora Ática, 2001. BACON, Francis. Novum Organum. São Paulo: Editora Nova Cultural (Coleção Os Pensadores), 1999. COHN, Gabriel. Adorno e a teoria crítica da sociedade. In: COHN, G. Theodor W. Adorno. Sociologia. São Paulo: Ática, 1986. CHAUI, Marilena. Convite a filosofia. São Paulo, Editora Ática, 2000. MAAR, Wolfgang Leo. Adorno, semiformação e educação. Campinas, SP: Educ.Soc., vol.24, n.83, p.459-476, agosto 2003. Disponível em < http: // www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 20.01.2010. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos Pré-Socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Adorno. São Paulo, Publi Folha, 2003. ZUIN, Antônio; RAMOS-DE-OLIVEIRA, Newton; PUCCI, Bruno. Adorno: o poder educativo do pensamento crítico. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

136

Educação e Subjetividade em Theodor W. Adorno Maria Socorro Gomes Introdução

A educação dos últimos séculos, com o surgimento da tecnologia, está marcada por grandes transformações tanto objetivas quanto subjetivas. No entanto, a posição de Theodor Adorno em torno dessa conclusão é de uma limitação quanto à possibilidade de mudanças nos pressupostos objetivos, ou seja, mudanças sociais e políticas. Segundo o frankfurtiano deve-se assim recorrer à possibilidade de mudanças no lado subjetivo direcionando a preocupação para os aspectos subjetivos da consciência. Desde o século passado, o homem tem sido investigado para os mais variados campos das ciências e, mesmo com todo “progresso tecnológico”, continuamente, são colocadas algumas questões comportamentais que determinam que ele ainda se encontra muito distante de ser conhecido e se fazer conhecer. Num primeiro momento, ele se reconhece como ser pensante, mas ainda não coloca em questão os limites da sua subjetividade mesma, não sabendo até que ponto pode chegar os limites das suas ações. Em torno dessa questão, esse trabalho pretende investigar, com o apoio do texto Educação após Auschwitz de Theodor W. Adorno (1995), como o filósofo aborda a importância da subjetividade humana para e na educação. Abordar-se-á primeiramente como o tradutor de Educação e Emancipação, Wolfgang Leo Maar, interpreta alguns pontos importantes para uma melhor compreensão de Adorno, traçando pontos importantes que permitem ter uma visão geral do pensamento do filósofo. As primeiras palavras de Leo Maar na nota introdutória da obra Educação e Emancipação sobre Adorno são de que as preocupações do filósofo se remetem às questões do seu tempo e que estas levam a refletir e concluir que a possibilidade da verdadeira democracia só se dará com uma sociedade de emancipados. (ADORNO, 1995). Emancipação que só será possível com a existência de uma educação política para a contestação e para a resistência.



Graduada em Filosofia, Especialista em Estudos Clássicos e Mestranda em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: [email protected]

137

Dessa forma, a relevância desta investigação é fazer compreender em que medida o pensamento adorniano poderá contribuir para a educação atual, caracterizada por comportamentos explosivos comumente noticiados nos meios de comunicação e que tem enfrentado nos últimos tempos grande obstáculos em busca dos seus objetivos: uma educação com homens emancipados. A Subjetividade e a Educação A educação, na civilização ocidental, é a maior contribuição do homem ao próprio homem, à formação humana para manutenção da vida em comunidade. Na Grécia Antiga, com Platão, surgiram as primeiras preocupações com ela, com propostas de educação que tinham como finalidade satisfazer unicamente aos interesses da comunidade. Pode-se dizer assim que no mundo antigo não havia uma preocupação específica com a subjetividade humana. Segundo Rodrigo Duarte, na obra Mímesis e Racionalidade, a preocupação da educação na antiguidade era com o aspecto moral que guiava toda vida em comunidade, ou seja, sua finalidade era a dominação da natureza interna do homem. Na obra A República, Platão trata explicitamente de uma investigação sobre em que medida as relações humanas podem ser reguladas da maneira mais racional. O alvo da obra é mostrar em que medida as partes inferiores do humano, nada diferentes da dos animais, devem ser contidas. Por isso, boa parte do diálogo é dedicada à educação, cujo significado não é mais do que o domínio dos desejos e apetites, que, segundo Platão, deprecia a existência humana. Dessa maneira, a palavra de ordem é moderação, que pode ser compreendida como uma forma de repressão. (DUARTE, 1993, pág.22) Ultrapassando o período medieval e tratando já da Modernidade pode-se dizer que nela os aspectos subjetivos do comportamento humano como na antiguidade não eram parte essencial das propostas de educação. Só era levada em devida conta a existência de um homem movido por uma razão instrumentalizada cuja finalidade era resolver problemas imediatos, ou seja, julgava-se o homem já totalmente munido de um pensamento racional que a tudo direcionava à perfeição da certeza de um agir. O homem era pura razão, com ela tudo conseguia manipular e satisfazer seus interesses que se resumiam quase que unicamente em tornar mais fácil a vida.

138

Com o surgimento da ciência experimental tal manipulação ganhará terreno e o homem ainda mais se distanciará de si mesmo e ainda que tendo todos os meios para satisfazer suas vontades externas, as vontades internas ficavam ainda em segundo plano. Assim, nessa época o desenvolvimento científico não o conduzirá ainda a uma emancipação por estar vinculado apenas a um determinado tipo de formação social, isso se estendendo também ao plano educacional. Dessa forma: a modernidade, sua significação e sua contribuição para antropogênese estão de novo em debate. A crise cultural que vivemos é crise contra a razão, contra a ilustração, numa palavra, contra a modernidade. A crítica da razão instrumental desenvolvida pela modernidade desemboca numa crítica à modernidade enquanto tal e, em última análise, numa crítica à própria razão, que é vista como instrumento de repressão. (OLIVEIRA, 1995, p.7.)

Para Theodor W. Adorno, o nazismo é o exemplo vivo da dominação da educação resultante do processo de desenvolvimento da sociedade em bases materiais. A confiança exagerada numa razão plena não permitia que os homens colocassem em questão as suas próprias ações, o que faz compreender a ocorrência de tantas barbaridades que o olhar contemporâneo colocará em foco. Estudos posteriores à modernidade teorizarão que o homem não é apenas elemento puramente racional; nele existe um inconsciente, que só pode ser explicado se trazido à tona e reconhecido como problema a superar. Com o “surgimento” de comportamentos inesperados e incompreensíveis no ser humano se faz perceber a necessidade de novas formas de educar. As pesquisas feitas por Adorno na contemporaneidade demonstram uma preocupação dos aspectos subjetivos com relação à educação. Freud, na obra O Mal Estar da Civilização, tece as primeiras considerações a respeito da civilização humana, e Adorno, nas suas pesquisas, irá propor suas teorias sobre a educação se baseando nesses estudos para tentar fazer compreender uma das piores catástrofes do século XX: o nazismo, que levou às últimas consequências o preconceito e a destruição que varreu a Europa. Segundo Adorno, o nazismo faz parte da história da humanidade que muitos gostariam de apagar, mas não sem antes compreender os motivos que o motivaram. No artigo

Personalidade

Autoritária,

de

1950

comportamentos abusivos que ocorre com:

139

ele

delineia

características

dos

o surgimento de uma espécie „antropológica‟, que podemos chamar de homem autoritário. Em contrate com o fanático de velho estilo, esse último parece combinar as idéias e habilidades típicas da sociedade altamente industrializada com crenças irracionais ou anti-racionais. (ADORNO, 1950, p. 1)

Essas são as características de um homem que leva às últimas consequências as habilidades para a prática da barbárie e que possui como atributo dominante a regressão. A categoria freudiana de regressão,99 utilizada Adorno, visa esclarecer o quanto Auschwitz foi o mais grave retrocesso da consciência humana. Para Adorno, embora a regressão não possa mais se fazer da mesma forma, pois se constitui o mais alto grau de pobreza da razão, ela é persistente e tende a se repetir, basta que haja as condições necessárias para isso. Adorno, baseado nas teorias freudianas, concluiu que há na gênese humana características bárbaras, ou seja, o homem como potencialmente capaz de práticas cruéis. Adorno reforça que esses comportamentos regidos pelos costumes e pelas leis levam o homem a agir não como ser inteiramente consciente, mas por medo da coerção. Amparado pelos estudos freudianos e pelo pensamento de Kant, Adorno analisa ainda a categoria de consciência, que indica o quanto se encontra o homem em sua menoridade e o quanto a ausência de consciência e de aptidão para a experiência podem levar à barbárie.

Autorreflexão Crítica para Emancipação Como crítico da sociedade, Adorno estabelece, em Educação após Auschwitz, como seria possível evitar novas formas de barbárie. Com a análise de alguns elementos da cultura, Adorno indica como seria possível a constituição de uma pessoa esclarecida e emancipada. Para Adorno, a exigência é que Auschwitz não se repita (ADORNO, 1995, p.119). Esse é o principal objetivo da educação e não há necessidade de justificá-la. A monstruosidade do Holocausto é de modo diferente também injustificável, o que se pode afirmar com exatidão é que aconteceu devido a pouca consciência dessa exigência: A exigência que Auschwitz não se repita. A monstruosidade que não calou fundo nas pessoas, persiste na possibilidade de se repetir e sua repetição dependerá do estado de 99

Essa categoria freudiana de regressão é caracterizada pela defesa contra uma frustração pelo retorno a uma modalidade de comportamento e de satisfação interior.

140

consciência das pessoas. Por isso, para Adorno, é urgente uma nova educação insistindo que:

qualquer debate acerca das metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. (ADORNO, 1995, p.119)

No texto Educação após Auschwitz, Adorno diz que a educação tem como princípio fundamental evitar a barbárie. A barbárie, à qual ele se refere, é o horror dos campos de concentração, especificamente Auschwitz I, que apesar de não ser o único local de horror é o que mais chama a atenção, pois se trata do centro administrativo de deliberação do horror, o centro da pouca consciência. As características bárbaras existentes no humano adicionadas às pressões sociais impelem à prática de ações indescritíveis, mas possíveis de perceber, pois elas culminam em Auschwitz. (ADORNO, 1995, p. 119) Tais ações não acontecem porque os homens se julgam civilizados, diz Adorno, reforçando as palavras de Freud, mas porque o processo civilizatório, embora possua seu lado social, reforça o anticivilizatório. Adorno corrobora assim com a teoria de Rousseau que, na obra Emílio ou da Educação, defende que o homem, em seu estado primitivo, seria feliz por viver de acordo com suas necessidades inatas e não baseado em imposições de comportamento da sociedade. Para Rousseau, o verdadeiro instrumento do conhecimento não é a razão, mas o sentimento, e o objeto a ser verificado é a interioridade pessoal, o mundo humano, o conhecimento do homem de si mesmo. Aqui observamos a valorização moral ressaltada pelo pensador como caminho de alcance da felicidade humana em relação a si mesmo (Emílio), bem como à sociedade (Contrato Social). O pensamento freudiano, diz Adorno, proporcionou conhecimentos referentes à cultura e à sociologia, e, ao tratar da civilização, percebe-se o quanto está relacionada intimamente à ocorrência de Auschwitz e, mais ainda, diz ele, “se a barbárie encontra-se no próprio princípio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo de desesperador.”(ADORNO, 1995, p. 120).

141

Por isso, é imprescindível repensar novas formas de educação, a começar pela conscientização do elemento desesperador e impedir que Auschwitz se repita. Para Adorno, a conscientização imediata não ocorre devido à falta da consciência mesma, contudo isso não impede de arriscar na tentativa para outra forma educação. Segundo Adorno, não se pode justificar nem minimizar a morte de milhões de pessoas simplesmente como um fenômeno, uma aberração no curso da história, pois “o simples fato de ter ocorrido já constitui por si só expressão de uma tendência social imperativa.” (ADORNO, 1995, p. 120) Na história da humanidade, mais precisamente no século XIX, surgiram as primeiras raízes de genocídios bárbaros, principalmente com a invenção da bomba atômica. Com isso, a pouca possibilidade de mudar os pressupostos objetivos (sociais e políticos) faz com que se apele para o lado subjetivo e evitar a repetição de Auschwitz, ou seja, deve-se propor uma “inflexão em direção ao sujeito” (ADORNO, 1995, p. 121), que se estude a psicologia dos sujeitos que condescendem com explosões de barbarismo e que se reconheçam os mecanismos que capacitam esses sujeitos de praticar atos desumanos, impedindo que voltem a repetir mais atos monstruosos. A proposta adorniana sugere que isso só poderá ocorrer com um despertar de consciência dos sujeitos e que os desprovidos de consciência reflitam sobre suas próprias ações. Nesse sentido, a educação deve ser dirigida “para uma auto-reflexão crítica.” (ADORNO, 1995, p. 121) A autorreflexão crítica forma-se na primeira infância, pois nessa fase da vida é que devem ser focados os objetivos educacionais. O que corresponde a dizer que a estruturação de uma instituição escolar deverá ser um lugar onde não haja as desigualdades específicas das classes, superando, dessa forma, as barreiras classistas das crianças para o desenvolvimento em direção à emancipação. Nesse aspecto, percebe-se a influência que Adorno carrega do pensamento marxista que defende a não existência de classes para que os homens sejam emancipados. Segundo Adorno, a educação deve se dirigir contra a barbárie em busca da emancipação que só tem sentido quando dirigida ao que ele denomina de autorreflexão crítica. Emancipação é, neste caso, o mesmo que conscientização. Ao tratar da autorreflexão crítica, Adorno dialoga com Kant: a teoria kantiana defende que a partir da conscientização dos indivíduos pode-se alcançar a autonomia que significa que o homem deve ter a lei para si mesmo. O homem sai da sua menoridade que é a falta de coragem de servir-se do entendimento, quando as leis que

142

regem suas ações se fundamentam na conscientização, ou seja, por uma lei moral universal e necessária. Nesse sentido, a educação é uma área de persistência entre a autonomia dos indivíduos e a sua adaptação às exigências da sociedade e, desta forma, implica num processo de emancipação individual para cumprir as exigências da cultura e da sociedade. Como Kant, Adorno se detém na formação educacional pelo esclarecimento da consciência. Na Crítica da Razão Prática, Kant denomina a lei moral como análoga à consciência moral e que não pode depender de fatos empíricos. Sendo a lei moral dependente de fatos empíricos já não é lei moral. Para ser uma lei moral, deve haver um imperativo categórico que tem a vontade como legisladora, pois, sem a vontade, o homem age por puro instinto. A razão empiricamente condicionada por fatores externos implica não um imperativo categórico, mas um imperativo hipotético. O imperativo categórico é imperativo porque ordena a si mesmo uma vontade inexorável, é categórico porque independe de fatores externos. Para Kant, a razão empiricamente condicionada não é capaz de oferecer fundamentos porque é a posteriori. O imperativo categórico não pode nascer da experiência; ao contrário, é ele o oposto de qualquer inclinação sensível. É, portanto, um fato da razão, o elemento a priori da moralidade e a forma que todas as nossas ações devem ter, para que possam ser consideradas morais. Assim o incondicionado, o absoluto ou categórico apresenta-se como uma exigência da razão, como um dever ser. Esse deve ser é a síntese entre a sensibilidade e a razão, síntese a priori, pela qual o homem deve determinar suas ações por si, enquanto a vontade é livre e nunca se determina por motivos provenientes da sensibilidade. Influenciado pela categoria kantiana de autonomia, Adorno esclarece que, para cumprir as exigências da sociedade, a educação deve estar voltada ao desenvolvimento da personalidade individual. Não deve a educação estar voltada puramente para os objetivos do capitalismo, sendo assim tornar-se-á a educação uma ideologia. Ao voltar seus objetivos apenas às finalidades úteis, a educação não faz senão orientar a racionalidade humana o que poderá culminar em um prevalecimento da razão instrumental como forma única de racionalidade. Leo Maar, na introdução de Educação e Emancipação esclarece como a razão se instrumentaliza e reforça que:

143

é o capitalismo tardio de nossa época, embaralhando os referenciais da razão nos termos de uma racionalidade produtivista pela qual o sentido ético dos processos formativos e educacionais vaga à mercê das marés econômicas. A crise da formação é a expressão mais desenvolvida da crise social da sociedade moderna. (ADORNO, 1995, p. 15)

A educação já não mais se preocupa com a formação da consciência, ao aperfeiçoamento moral e “a verdade não seria condicionada subjetivamente, mas objetivamente.” (ADORNO, 1995, p.16). A preocupação de Adorno, segundo Leo Maar, é alertar os educadores em relação ao deslumbramento em que eles se encontram e que ameaça o conteúdo ético do processo formativo. Adverte contra os efeitos negativos da educação pautada em estratégias de “esclarecimento” travestido de consciência. Passando a ideia de uma educação para a emancipação, quando, na verdade, “se converte em mera presa da situação social existente.” Com o desenvolvimento da sociedade, cabe à educação formar culturalmente e não conduzir o humano à barbárie. (ADORNO, 1995, p. 11). Esse é o papel da teoria crítica ao analisar a formação social e revelar as raízes deste movimento e interferir no seu rumo: “o essencial é pensar a sociedade e a educação em seu devir.” Formar sujeitos emancipados e aptos a interromper a barbárie e “realizar o conteúdo positivo, emancipatório do movimento de ilustração da razão.” Isso, no entanto, só será possível com o “destravamento de encantamento em que se encontra a formação social, dando a educação uma impotência, uma incapacidade de promover as mudanças e transformações.” (ADORNO, 1995, p. 12). Segundo ainda Leo Maar, “para os frankfurtianos Marx e Freud são os que desvendam os determinantes da limitação do esclarecimento, da experiência do insucesso da humanização do mundo, da generalização da alienação e da dissolução da experiência formativa.” (ADORNO, 1995, p.19). Essas relações sociais não afetam apenas as condições da produção econômica, mas afetam principalmente o plano subjetivo originando relações de dominação. Exemplos disso são a manipulação das massas no nazi-fascismo e a expansão das sociedades consumistas. Na obra Dialética do Esclarecimento, Adorno trata dessa subjetividade ameaçada, da semiformação e das forças econômicas que ameaçam a subjetividade: a indústria cultural. Na Indústria Cultural há uma cumplicidade entre ciência e cultura que se caracteriza pela perda da dimensão emancipatória. Adorno não abdica da vinculação entre esclarecimento e liberdade e embora pareça haver uma ruptura entre ambas, sua crítica é quanto à oposição entre ciência e cultura. 144

Há uma cumplicidade refletida no conceito de Indústria Cultural como caracterização social objetiva da perda da dimensão emancipatória gerada inexoravelmente no movimento da razão. Como já exposto no início da introdução deste artigo, a razão é caracterizada em termos sociais objetivos, e não, teoricamente, no plano da consciência ou do esclarecimento, ou seja, do conhecimento por oposição à ignorância. Por isso, a palavra alemã Aufklärung que significa Ilustração na obra supracitada foi traduzida por esclarecimento que destaca o momento subjetivo do conhecimento, a formação social do sujeito. (ADORNO, 1985, p.7). Para Adorno, o problema está focado na falta da racionalidade mesma. Seu déficit nos termos da experiência formativa dialética, ou seja, a falta da própria razão. “É uma advertência da razão contra si mesma e em nome de si mesma.” A Indústria Cultura é, nesse sentido, o que expressa “a forma repressiva da formação da identidade da subjetividade social contemporânea.” (ADORNO, 1995, p. 20). Leo Maar observa que já em Marx se pode entender como pela educação os trabalhadores aceitam ser a classe proletária. A aceitação ocorre claramente no capitalismo tardio, onde há uma transformação básica na chamada superestrutura da sociedade com uma confusão entre os planos da economia e da cultura e que com a Indústria cultural determinando a estrutura de sentido da vida cultural permite que:

pela racionalidade estratégica da produção econômica que se inocula nos bens culturais enquanto se convertem estritamente em mercadorias; a própria organização da cultura, portanto, é manipulatória dos sentidos dos objetos culturais, subordinando-os aos sentidos econômicos, políticos e, logo, à situação vigente.( ADORNO, 1995, p. 9)

Há uma interferência na apreensão da sociedade pelos seus “sujeitos” pelo mecanismo da “semiformação” e “mobilizam-se traços autoritários da personalidade [...] A Indústria Cultural em Adorno reflete uma irracionalidade objetiva da sociedade capitalista tardia, como racionalidade da manipulação das massas.” Ela corresponde à continuidade histórica de condições sociais objetivas que formam a antecâmara de Auschwitz, a racionalização da linha de produção do terror e da morte. (ADORNO, 1995, p. 21). Que Auschwitz não se repita é a articulação contundente de Adorno para que a experiência histórica do nazismo não volte a acontecer. Auschwitz aconteceu e não deve mais acontecer. Esse é o imperativo que implica em uma práxis educativa ou

145

emancipatória. Dessa forma, a experiência formativa não será prejudicada culminando como o exemplo extremado de Auschwitz. Conclusão Conclui-se, desse modo, que a investigação no pensamento adorniano dos aspectos subjetivos ou da consciência são de grande importância, posto que a subjetividade na educação ganhará grande notoriedade na educação contemporânea. A partir do texto Educação após Auschwitz, Adorno aponta a consciência o principal alvo para se chegar a um homem emancipado. Possibilitando um repensar sobre as novas propostas de educação. A educação das consciências que levem em consideração os aspectos subjetivos, formando sujeitos emancipados que contribuam para as transformações sociais. Referências ADORNO, T. Educação e Emancipação, (1995), Tradução Wolfgang Leo Maar. São Paulo, Paz e Terra. ________, T. Introdução à Personalidade http.planetaclix.pt/tadorno24.htm. Acesso em 2/10/10

Autoritária,

(1950)

_________, Theodor; HORKHEIMER, Max (1985). Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Tradução Guido Antonio de Almeida. DUARTE, Rodrigo A. de Paiva. Mímesis e racionalidade. A concepção de domínio de natureza em Theodor W. Adorno, (1993). São Paulo: Edições Loyola. (Tradução da tese de doutoramento). KANT, Immanuel, (2005). Resposta à pergunta: “Que é esclarecimento” 3ª Ed. Petrópolis: Editora Vozes. In: Textos seletos. ______, Immanuel, Crítica da Razão Prática, (2003), São Paulo: Martin Claret, (Coleção a obra-prima de cada autor). OLIVEIRA, Manfredo Araújo de (1995) A Filosofia na Crise da Modernidade, (1995), São Paulo: Edições Loyola. ROUSSEAU, J. J, Emílio ou da Educação, (2004), Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes. PLATÃO. (1996). A República. Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian. Tradução: Maria Helena da Rocha Pereira

146

Metafisica da vontade de poder e maquinação em Martin Heidegger

Homero Luís Alves de Lima

Introdução “Pertence à vontade de poder o predomínio incondicional da razão calculadora e não a poeira e o caos de uma turva compulsão vital” (Heidegger, 2002, p. 70).

O que interessa a Heidegger é a história da metafísica compreendida como “história do ser”; história esta que sob o prisma da diferença ontológica revela-se inteiramente marcada por processos de “essencialização do ente” e de “entificação do ser”. A partir da pergunta metafísica “o que é o ente?”, Heidegger procura situar o pensamento de Nietzsche e seus desdobramentos no âmbito da história das posições metafísicas fundamentais. Se o pensamento de Nietzsche se inscreve na história da metafísica, Heidegger pergunta: ora, qual a posição metafísica fundamental de Nietzsche? Para Heidegger a “metafísica da vontade de poder” configura a posição metafísica fundamental de Nietzsche. Mas como Heidegger busca fundamentar a sua própria interpretação de Nietzsche no âmbito da história da metafísica? O que é a vontade de poder em Nietzsche? Quais os elementos que a definem? O presente ensaio é uma tentativa de pensar com Heidegger o pensamento da vontade de poder de Nietzsche, especialmente no que concerne à inscrição de tal pensamento num modo de pensar característico da modernidade: o pensamento calculador. Vontade de poder, técnica moderna, maquinação são termos que guardam uma correlação profunda com a consumação da metafísica. Certamente, a confrontação Heidegger-Nietzsche hoje se afigura incontornável àqueles que se inscrevem em um modo próprio de pensar – o pensamento da diferença -, 

Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Ceará (FACED-UFC). Atua na linha de pesquisa Filosofia e Sociologia da Educação (FILOS), eixo temático “Filosofias da diferença, Antropologia e Educação”. E-mail: [email protected]

147

especialmente em matéria de educação, haja vista que seu pensar e teorizar se inscrevem na tradição metafísica que o pensamento heideggeriano se esforça em desconstruir. A confrontação Heidegger-Nietzsche No

que

diz

respeito

“a

confrontação

Heidegger-Nietzsche,

cabe

um

esclarecimento. Seguindo o próprio Heidegger (2007), a idéia aqui de “confrontação” não tem o sentido de negação, aniquilamento ou mesmo de superação. Com a idéia de confrontação não procuramos saber “se Heidegger superou ou ultrapassou Nietzsche”, mas queremos dizer que ela tem um sentido, fundamentalmente, histórico. Confrontar, aqui, tem o sentido de destruição (Destruktion), ou seja, “desconstruir” os conceitos herdados da tradição metafísica. A confrontação acena para um exercício de desconstrução dos conceitos sedimentados, cristalizados pela tradição ocidental de pensamento. Assim, faz-se necessário uma breve elucidação da idéia de destruição da tradição no horizonte da ontologia fundamental. Em Ser e tempo, no parágrafo “A tarefa de uma destruição da história da ontologia”, Heidegger (2000) alude aos efeitos que o tratado deve produzir: “que se abale a rigidez e o endurecimento de uma tradição petrificada e se removam os entulhos acumulados. Entendemos essa tarefa como destruição do acervo da antiga ontologia, legado pela tradição” (Heidegger, 2000, p.51). É exatamente neste ponto de Ser e Tempo que a palavra destruição (Destruktion) pode facilmente conduzir a enganos, o que de fato vem ocorrendo, sobretudo, a partir de leituras apressadas. Ora, a destruição (e Heidegger é aqui categórico) não tem o sentido negativo de “arrasar a tradição ontológica”. Ao contrário, ela deve definir e circunscrever a tradição em suas “possibilidades positivas”. A destruição não se propõe “a sepultar o passado em um nada negativo, tendo uma intenção positiva. Sua função negativa é implícita e indireta” (Heidegger, 2000, p.51). O fato é que a tradição é encobridora e procede por ocultação da origem dos conceitos que ela mesma produz e opera; por exemplo, o ego cogito de Descartes, o sujeito transcendental de Kant, a noção de “pessoa” do cristianismo. E o mais grave e que deve ser motivo de nossa preocupação: ela, a tradição, nos desobrigar de pensar a proveniência desses conceitos. Quanto à necessidade de um confronto com a filosofia de Nietzsche, Heidegger é incisivo: 148

Se o pensamento nietzschiano reúne a tradição até aqui do pensamento ocidental e a consuma segundo um aspecto decisivo (metafísica da vontade de poder), então a confrontação com Nietzsche torna-se uma confrontação com o pensamento ocidental até aqui (Heidegger, 2007a, p.7).

Nietzsche e o “fim da metafísica”

Para Heidegger, há dois modos de conceber a temática da superação da metafísica em Nietzsche: a inversão do platonismo e o pensamento da vontade de poder. De imediato a questão que se coloca é a seguinte: pode a filosofia de Nietzsche representar “o fim da metafísica”? Com a “destruição” nietzschiana da metafísica via inversão do platonismos e o fim dos valores transcendentes (Ser, Deus, Bem, Espírito, Alma, Verdade, Mundo supra-sensível, etc.), com o diagnóstico e anúncio da morte de Deus, a metafísica teria chegado ao fim? Nietzsche e a inversão do Platonismo: o Ser como um “vapor e um erro”

Em O Crepúsculo dos Ídolos (ou como filosofar com o martelo), precisamente no tópico A “razão” na filosofia, podemos ler: “os „conceitos mais elevados‟, os mais universais e vazios ( Ser, Deus, o Bem, a Verdade), a derradeira fumaça da realidade que evapora” (Nietzsche, 2000, p. 27). Em outra passagem, podemos ler: “Heráclito sempre terá razão quanto ao fato de que o Ser é uma ficção vazia” (Idem, p. 26). Assim, para Nietzsche, o Ser é um erro, ilusão, ficção vazia, “a derradeira fumaça da realidade que evapora”100. Daí, podemos concluir que a metafísica chegou ao fim. Em Introdução à Metafísica, Heidegger (1999) afirma que Nietzsche inverte a metafísica platônica ao promover o ente sensível, o mundo da vida e do devir, à posição do ente verdadeiro, rebaixando o ser ao nível da pura ilusão, do erro, do que não tem qualquer efetividade. Mas, nesta inversão, Nietzsche continua determinado por aquilo que inverte, isto é, pela metafísica e pelo platonismo. Em uma conferência intitulada A Superação da Metafísica, Heidegger (2002) assevera que a reviravolta do platonismo, no sentido conferido por Nietzsche, de que o sensível passa a constituir o mundo verdadeiro e o supra-sensível o não verdadeiro, “permanece teimosamente no interior da metafísica. Essa espécie de superação da 100

“O Ser é uma simples palavra e seu significado um vapor ou o que se entende com a palavra “Ser”, abarca o destino espiritual do ocidente?” (Heidegger, 1999, p. 68).

149

metafísica, que Nietzsche tem em vista (...) não passa de um envolvimento definitivo com a metafísica” (p. 68). Ela, a metafísica, ainda persiste quando “a hierarquia platônica entre sensível e supra-sensível se inverte e então se experimenta o sensível mais essencial e mais amplamente num sentido que Nietzsche denomina Dionisíaco” (Heidegger, 2002, p. 106). O fundamental, é que Nietzsche pensa o ser absolutamente no sentido platônico e metafísico



mesmo

enquanto

inversor

do

platonismo,

mesmo

enquanto

“antimetafísico”. E isto porque que Nietzsche concebe “o ser como um valor” na perspectiva da vontade de poder. Senão vejamos. Em Teoria Platônica da verdade, Heidegger (2008a) afirmar que, a partir de Platão, o “pensar sobre o ser do ente” tornou-se “filosofia”: um olhar ascendente em direção às “idéias”. Decisivo é que a “filosofia”, que só começa com Platão, toma a partir daí o caráter daquilo que mais tarde se vai chamar de “metafísica”. A configuração fundamental da metafísica torna-se visível por meio do próprio Platão na história que narra a “alegoria da caverna”. Nas descrições de Platão, onde torna claro “o acostumar-se do olhar às idéias”, o pensar vai “além” daquilo que é experimentado apenas sob a forma de sombra e cópia, em direção das “idéias”. As idéias são o supra-sensível contemplado em um olhar não sensível, o ser do ente que não pode ser apreendido como o instrumento do corpo. E o mais elevado no âmbito do supra-sensível é aquela idéia que, como a idéia das idéias, continua sendo a causa originária de toda consistência e aparecimento de todo ente. Porque essa “idéia” é deste modo a causa de tudo, ela também é a idéia que se chama “o bem”. Desde a interpretação do ser como idéia, o pensar sobre o ser do ente tornou-se metafísico, e a metafísica tornou-se teológica. A alegoria da caverna oferece uma visão daquilo que propriamente acontece no Ocidente: o homem pensa na perspectiva da essência da verdade como “retidão do representar” de todo ente segundo “idéias” e avalia todo real segundo “valores”. O real é interpretado segundo “idéias” e, em geral, o mundo é avaliado segundo “valores”. Ora, se Platão concebeu o Ser como idéia e a idéia como modelo e, como tal, também normativa (a idéia do bem, do belo, do justo), o que será mais sugestivo do que se compreender, então, as Idéias de Platão no sentido de valores e interpretar o ser do ente a partir do valor?

150

Segundo Heidegger (1999), o pensamento do valor, que pensa e opera segundo “valores”, se consolidou no século XIX, o que não dever surpreender quando o próprio Nietzsche, e justamente ele, haver pensado inteiramente dentro da perspectiva de uma “representação do valor”. O subtítulo de sua obra principal planejada Vontade de Poder, nesse ponto é claro: “uma tentativa de uma inversão (transvaloração) de todos os valores”. O terceiro livro da obra se intitula “Princípio de uma nova valoração”. Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche (1998) afirma que “a essência de uma coisa”, é tão somente uma significação sobre a „coisa‟. Ou, antes, o seu “valer” (valor) é propriamente o seu ser, o único que é algo. Para Nietzsche, o homem é um “o animal avaliador”, por ser “aquele que avalia”. Em A Genealogia da moral, concebe que o homem se designa “como o ser que mede valores, que avalia e mede, o animal avaliador” (Nietzsche, 2001, p. 59). A história da filosofia ou da metafísica, termos sinônimos para Heidegger, confunde-se em definitivo com a história da emergência lenta e progressiva do “pensar segundo valores”. Esta assimilação do ser ao valor, levada a cabo em várias etapas, culminando com Nietzsche, encerra a história da metafísica enquanto história do platonismo. Podemos, assim, retomar a nossa questão inicial: o pensamento de Nietzsche representa a ultrapassagem da metafísica? Ora, com Heidegger podemos afirmar que não. E isso porque a saída “para fora da metafísica” é muito mais difícil de ser realizada do que, em geral, imaginam aqueles que julgam tê-la realizado há muito tempo. Em geral, eles próprios estão mergulhados na metafísica por todo o corpo do discurso que pretendem ter libertado dela. Na verdade, no desejo de ultrapassagem da metafísica, acaba-se por realizar a própria metafísica ao repeti-la. Sartre, por exemplo, expressa o princípio básico do existencialismo do seguinte modo: “A existência precede a essência”. O fato é que ele toma a existência e a essência no sentido da metafísica, que desde Platão afirma que “a essência precede a existência”. Sartre inverte esta frase. Mas a inversão de uma frase metafísica continua sendo uma frase metafísica. Com essa frase, ele continua preso, junto com a metafísica, no esquecimento do ser (Cf. Heidegger, 2008b, p.341). “A metafísica”, dirá Heidegger (2002, p. 61), “não se desfaz como se desfaz uma opinião. Não se pode deixá-la para trás como se faz com uma doutrina em que não mais se acredita ou defende”. Sendo assim, não podemos imaginar que podemos ficar “fora 151

da metafísica”. Isso porque, “depois da superação, a metafísica não desaparece. Retorna transformada e permanece no poder como a diferença ainda vigente entre ser e ente” (Idem, p. 62). O fato é que sempre queremos voar no vácuo, mas sempre respiramos o ar impuro da metafísica. É que “ninguém consegue pular a própria sombra” (Heidegger, 1999, p. 218). Em Humano, Demasiado Humano, no aforismo intitulado Mundo Metafísico, o próprio Nietzsche parecer reconhecer essa impossibilidade, qual seja, de uma posição fora da metafísica: “Olhamos todas as coisas com a cabeça humana, e é impossível cortar essa cabeça; mas permanece a questão de saber o que ainda existiria do mundo se ela fosse mesmo cortada” (Nietzsche, 2000, p. 20).

A metafísica da vontade de poder Este mundo é vontade de poder – e nada além disso! E também vós mesmos sois essa vontade de poder – e nada além disso! (Nietzsche, 2008, p. 513).

Para Heidegger (2007a) a expressão “vontade de poder” (Wille zur Macht) denomina o caráter fundamental do ente; todo ente que é, na medida em que é, é vontade de poder. Todavia, a vontade de poder em sua essência mais profunda não é outra coisa senão a estabilização do devir na presença, eis a tese central de Heidegger. E para fundamentá-la, cita o próprio Nietzsche: “Recapitulação: Cunhar sobre o devir o caráter de ser – essa é a mais elevada vontade de poder”. (...) “Que tudo retorna é a aproximação mais extrema de um mundo do devir ao mundo do ser: Ápice da consideração” (Nietzsche apud Heidegger, 2007a, p. 509). A leitura comum da filosofia de Nietzsche compreende que a essência do ente na totalidade é caos, ou seja, o “devir” e precisamente um não “ser” no sentido do fixo e do constante. O essencial é que o ser é deslocado em favor do devir, cujo caráter de devir e de movimento se determina como vontade de poder. Diante desta constatação, Heidegger se pergunta: “ainda se pode denominar então o pensamento nietzschiano um acabamento da metafísica? Ele não é a sua recusa ou mesmo superação? Para fora do ser – em direção ao devir?” (Heidegger, 2007a, p. 508). Seguramente, Nietzsche quer o devir e o que a vem a ser como o caráter fundamental do ente na totalidade (a vida, a natureza, o conhecimento). O problema é que ele quer o devir precisamente e antes de tudo como o que permanece – como o 152

propriamente “ente”; a saber, ente no sentido dos pensadores gregos (Platão e Aristóteles). Mas vejamos, a partir de Heidegger, em que consiste, em seus componentes essenciais, a vontade de poder como metafísica.

A superpotencialização do poder: a elevação e a conservação

Nietzsche reconhece e posiciona o caráter fundamental do ente na totalidade no que denomina “vontade de poder”. O conceito não delimita apenas o que o ente é em seu ser (o-que-é; a qüididade). O fundamental é que a expressão “vontade de poder” que se tornou multiplamente corrente também concerne a uma interpretação da essência mesma do poder. Todo poder só é poder na medida é mais poder, ou seja, elevação do poder. O poder só pode se manter em si mesmo, isto é, em sua essência, na medida em que ele ultrapassa e excede o nível e configuração de poder a cada vez alcançado, portanto, na medida em que ultrapassa e excede a cada vez a si mesmo. O movimento do poder que se lança para além (über) de suas configurações a cada vez alcançadas, Heidegger designa de superpotencialização (Übermächtigung). Em suma, “vontade de poder” significa: “o apoderar-se do poder para a sua própria superpotencialização” (Heidegger, 2007b, p. 25). Como superpotencialização, a vontade de poder se constitui de componentes ou dimensões essenciais: a elevação e a conservação. No dizer de Nietzsche (2008): “o que o homem quer, o que cada mínimo pedaço de um organismo vivo quer é mais poder” (p. 354). Na vontade como “querer-sermais”, reside essencialmente a intensificação, a elevação do poder. Daí que somente uma elevação mais poderosa pode fazer com que se escape da tendência para o declínio. O Próprio Nietzsche dá um exemplo para descrever esse processo: Tomemos o exemplo mais simples, o exemplo alimentação primitiva: o protoplasma estende seus pseudópodes para procurar por algo que se lhe contraponha – não por fome mas por vontade de poder. Então, ele tenta superá-lo, apropriar-se dele, incorporá-lo: O que se denomina „alimentação‟ é meramente um fenômeno secundário, uma aplicação prática daquela vontade originária de se tornar mais forte (Nietzsche, 2008, p. 355).

Heidegger chama a atenção para o fato de que a vontade de poder não ser tão somente a vontade de uma entidade singular, real. De modo mais fundamental, ela diz respeito ao ser e à essência do ente. O que é a vontade de poder? Ela é “a essência mais íntima do ser” (Nietzsche, 2008, p. 351). 153

Tendo em vista que a vontade de poder define o caráter fundamental do ente, a essência da vontade só pode ser questionada e pensada com vistas ao ente enquanto tal, isto é, metafisicamente. A verdade desse projeto do ente, o modo como se constitui em seu ser no sentido da vontade de poder possui um caráter metafísico: “o ente já é projetado de antemão com vistas ao caráter fundamental da vontade de poder enquanto ser” (Heidegger, 2007b, p. 200). Para Heidegger, a vontade de poder é ao mesmo tempo criadora e destruidora. O assenhorar-se-para-além-de-si é sempre também aniquilação das configurações existentes. Todos os momentos introduzidos da vontade – o para-além-de-si, a intensificação, o caráter de comando, o criar, o afirmar-se – “falam de maneira suficientemente clara e deixam reconhecer que a vontade é, em si, vontade de poder” (Heidegger, 2007a, p. 58). Para Nietzsche todo vivente é vontade de poder101: Ter e querer ter mais, dito em uma palavra crescimento – isto que é a própria vida (cf. Nietzsche, 2008). Ora, toda mera conservação de poder já é decadência da vida. Daí decorre que o poder só pode apoderar-se de si mesmo para uma superpotencialização na medida em que comanda antes de tudo a elevação e a conservação. Decisivo é que o próprio poder e apenas ele pode estabelecer as condições da elevação e da conservação. Neste exato ponto, Heidegger (2007b) levanta a seguinte questão: “de que tipo são essas condições estabelecidas pela própria vontade de poder e condicionadas, assim, por ela?” (p. 203). A resposta encontra-se no próprio Nietzsche: “o ponto de vista do „valor‟ é o ponto de vista das condições de concervação-elevação com vistas a conformações complexas de duração relativa de vida no interior do devir” (Nietzsche, 2008, p. 360). Segundo Heidegger, o valor é essencialmente o ponto de vista, “a perspectiva”, do ver potencializante e calculador da vontade de poder. Daí a importância que assumem os valores no que concerne “as condições da vontade de poder”, que Nietzsche denomina “as condições de conservação-elevação”. Ora, “com que se mede objetivamente o valor? Somente com a quantidade de poder incrementado e organizado” (Nietzsche, 2008, p. 340). Assim, a vontade de poder é, em si mesma, instauradora de valores. Que todos os “fins”, “metas”, “sentidos” são somente modos de expressão e metamorfoses da única

101

Em Nietzsche, a vontade de poder mostra-se como o caráter fundamental da vida. A “vida” é considerada por Nietzsche como uma outra palavra para dizer “ser”. “O ser – não temos nenhuma outra representação disso, a não ser „viver‟. – Como pode, portanto, algo„ser‟ morto?” (Nietzsche, 208, p. 301).

154

vontade: a vontade de poder. “Querer em geral, tal é como querer-tornar-se-maisfortalecido, querer crescer, e para tal também querer os meios” (Nietzsche, 2008, p.340). Os meios essenciais, porém, são aquelas “condições” de elevação-conservação sob as quais a vontade de poder se encontra segundo a sua essência: os “valores”. “Em toda vontade há um avaliar”. Na medida em que se essencializa como vontade de poder, todo ente é “perspectivístico”. Dessa compreensão decorre o juízo: “Se quiséssemos sair do mundo das perspectivas, então pereceríamos” (Nietzsche, 2008). Nesse ponto, compreende-se o perspectivismo e seu nexo com a vontade de poder. Ela, a vontade de poder – e apenas ela – é a vontade que quer valores. Daí ela se apresentar como “o princípio da instauração de valores” que as condições de elevação e conservação impõem. Para Heidegger (2000), o pensamento moderno tem como condição de possibilidade o que nomeia de metafísica da subjetividade. A subjetividade como uma figura emblemática da vontade de poder é, enquanto tal, “instauradora de valores”. A “verdade” mesma, o ser do ente enquanto o ser do constante revela-se enquanto valores que são estabelecidos no seio da vontade de poder essencialmente instauradora de valores. A subjetividade é a verdade da objetividade. Nessa verdade, o ser do ente se manifesta modernamente.

O dispositivo como o impensado do pensamento calculador

O esquecimento do ser, a indiferença ontológica conduz ao uso e consumo dos entes. O cálculo planificador e o consumo incluem o uso regulamentado dos entes, que se tornam oportunidade e matéria para os desempenhos e sua intensificação em um fundo de reservas calculáveis. O pensamento calculador submete a si mesmo tudo à ordem e ao planejamento a partir da lógica conseqüente de seu procedimento. Procedimento que faz com que, de antemão, o ente mesmo se manifeste sob a forma do que pode ser produzido e consumido. A indiferença ontológica no pensamento calculador conduz ao abuso de toda matéria, inclusive da “matéria-prima” chamada “homem”. Hoje, a tecnociência comandada pela cibernética, tecnologias da informação e biotecnologias

realizam

o

“homem

numérico”,

“enumerável”:

digitalizado,

desmaterializado, desencarnado; o “homem orgânico-natural” desaparece na linguagem 155

numérica dos fluxos de codificação de informação. A digitalização da vida (na genômica), a virtualização do corpo (na realidade virtual), a produção da memória biotecnológica (na bioinformática) e da inteligência (na inteligência artificial) são os desdobramentos mais visíveis do pensamento calculador proveniente da cibernética. O homem numérico, enumerável, calculável, operacional mostra-se como um fundo de reserva, um dispositivo cibernético-informacional (Cf. Lima, 2010). Quando perguntamos seriamente pela dinâmica da tecnociência e pelo projeto de constituição do ser do ente que ela instaura, vemos que o ente (naquilo que-é , como-é, seu valor) é desencoberto como um “ente informacional”, que contém um programa capaz de codificar e decodificar instruções, mensagens, informações. Na imagem do ente como uma espécie de autômato lógico que processa informação, temos uma compreensão prévia do ser do ente determinada pela ciência da cibernética. Os entes mesmos, enquanto viventes, não apenas se abrem às explicações em termos de cálculo e comunicação, como também, em princípio, eles mesmos são calculáveis, traduzíveis, codificáveis, comunicáveis. É importante lembrar que esse projeto ontológico de constituição do ser do ente posto em curso pela cibernética, marcado pela dinâmica da miniaturização, da desmaterialização e da aceleração, sustenta o vasto campo das práticas e dos saberes provenientes da inteligência artificial, das neurociências, da realidade virtual, da biologia molecular e ciências da vida (Cf. Lima, 2010). A questão que se coloca é: onde estamos nós? Em que constelação de ser e homem, na qual homem e ser se interpelam mutuamente? A que apelo responde o homem? Em Identidade e Diferença, Heidegger (2006) observa que toda a nossa existência se vê, em toda parte, - seja por diversão, seja por necessidade, ou incitada ou forçada -, provocada a se dedicar ao planejamento e cálculo de tudo. O que fala nesta provocação? Decorre ela apenas de um arbitrário capricho do homem? Ou nela nos aborda e desafia já o ente mesmo, e justamente de tal modo que nos interpela na perspectiva de sua aplicabilidade e calculabilidade? Será que até mesmo o ser estaria sendo provocado a manifestar o ente no horizonte da calculabilidade? Efetivamente. E isto não é tudo. Na mesma medida que o ser, o homem é provocado e desafiado à armazenar o ente que aborda como fundo de reserva para o seu planificar e calcular e realizar esta exploração indefinidamente (Heidegger. 2006, p. 4647).

Para Heidegger, o nome para todo o processo de provocação que leva o homem e o ser a um confronto de natureza tal que se implicam mutuamente se denomina “o 156

dispositivo (Gestell)”. A palavra dispositivo diz o império da racionalidade técnicacalculadora, que caracteriza uma época em que o homem busca as razões, as causas, os fundamentos de tudo, calculando a natureza, que, por sua vez, provoca a razão do homem a explorá-la como um fundo de reserva sobre o qual dispõe. O dispositivo nos agride diretamente em toda parte. E curiosamente, às suas reivindicações e apelos respondemos positivamente em nossas ocupações diárias: no trabalho, na pesquisa, na atividade acadêmica, no lazer, nos empreendimentos culturais. No cálculo mora todo planejamento e pesquisa, todo processamento e investigação, toda produtividade e eficiência. O dispositivo, observa Heidegger (2006), é mais “real” que todas as energias atômicas e toda a maquinaria, mais real que a violência da organização, da informação e da automatização. E, mesmo assim, ele nos é estranho. Em face da indiferença ontológica e do processo de desertificação que instaura, o dispositivo é o impensado no pensamento calculador, o que nos cabe pensar cuidadosamente e que ainda não pensamos.

Considerações finais: vontade de poder e maquinação

Ao predomínio do ser como vontade de poder nessa configuração essencial, Heidegger (2010) denomina maquinação (Machenschaft). A maquinação significa a factibilidade do ente, uma factibilidade que a tudo faz e constitui e por isso mesmo determina a entidade do ente ou o projeto de sua constituição ontológica (o-que-é, como-é, seu valor). O “factível”, aqui, significa: o que é passível de ser feito. A maquinação é o edificar-se com vistas à possibilidade de que “tudo seja feito”; e isto de tal modo, que o ente mesmo seja previamente posicionado e exposto à calculabilidade incondicionada: “tudo” (a natureza, a cultura, o humano e o não-humano), incondicionalmente, adentra e sujeita-se a ordem do cálculo. Na maquinação, todo questionamento da “verdade do ser” são substituídos pela apresentação de “metas” e “valores” maquicionais. Por exemplo, hoje projeta-se por meio de uma ética ou de uma educação (a bioética, a ética ambiental, a eco-pedagogia, etc.) a edificação de “novos valores” por meio da “vida”, depois desta já ter sido totalmente mobilizada e objetificada pela técnica e ciência modernas.

157

O problema é que a inquestionabilidade do ser, vale dizer, a indiferença ontológica, decide quanto à entidade do ente. Conseqüentemente, o ser mesmo do ente como vontade de poder entrega-se a uma maquinação desenfreada. Curiosamente, a “era da maquinação consumada” possui mais inventividade, criatividade e mais formas de ocupação, de vivências e de sucesso do que qualquer outra era. A maquinação, a calculabilidade, a planificação que impulsiona e cria a necessidade de sempre novas metas e que conta com novos valores, ao mesmo tempo em que define o projeto fundamental do ente, estabelece o modo como ele deve ser produzido, consumido e representado; por exemplo, na obra de arte, quando o ente é representado como produto técnico ou política cultural estatal, ou ainda como produto para o consumo desenfreado no mercado. Daí segue-se que a maquinação do ente impulsiona construtivamente o “empreendimento cultural” e seus “ideais” em seus planejamentos como meios de poder102. Em parceria com a produtividade, como domínio da cultura, a ciência que se faz hoje na Universidade, em todos os seus setores, mostra-se como uma mera questão técnica e prática de adquirir e transmitir conhecimentos. A partir da compreensão técnico-prática da ciência, chega-se a fazer da pesquisa e do conhecimento uma “profissão de cultura” na exata medida em que a ciência se converteu num “valor” e num “empreendimento cultural”. Daí que da ciência universitária, “não poderá partir nunca um despertar do espírito. É de espírito que ela própria necessita” (Heidegger, 1999, p.74). Na maquinação, o pensar calculador e o pensar valorativo revelam-se como duas faces de um mesmo problema. Sob o comando da superpotencialização do poder (em sua essência desprovido de quaisquer metas, haja vista que a vontade de poder não quer outra coisa senão a si mesma), o calcular e o valorar, a técnica e o valor corroboram para as condições de elevação e conservação do próprio poder. A maquinação que instaura a si mesma inventa os “valores” (os valores humanísticos, culturais). No dizer de Heidegger (2007, p. 14), “o valor é a tradução da 102

A despeito das obras de arte e das produções artísticas modernas, Heidegger (2010) observa que as mesmas revelam a sua essência maquinacional quando assumem a forma de “instalações”. Como maquinação, as instalações determinam de antemão “o conjunto das vivências” na esfera pública normativa ao definir e difundir o que é digno de ser vivenciado. O “museu” não é mais agora o lugar da conservação do passado, mas ele se mostra como o lugar da exposição conclamadora, instrutiva, estimulante de vivências e, assim, vinculado ao planejado. A instalação organiza a vida pública das massas, cujo propósito insere-se no culto das personalidades.

158

essencialidade (isto é, da entidade do ente) no elemento do calculável e, por conseguinte, naquilo que avaliado segundo o número e a medida espacial”. Segundo Heidegger, a metafísica da vontade de poder é com razão e necessariamente um pensar valorativo que opera ao modo do cálculo. No “contar com valores” e no avaliar segundo relações valorativas, a vontade de poder como “o eterno potencializar-se desprovido de metas” quer verdadeiramente apenas a si mesma. Referências HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Vol. 1. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis, Editora Vozes, 2000. ______________. Teoria Platônica da Verdade, in Marcas do Caminho. Tradução de Enio Paulo Gichini e Ernildo Stein. Petrópolis, Editora Vozes, 2008a. pp. 215-250. _____________. Carta sobre o Humanismo, in Marcas do Caminho. Tradução de Enio Paulo Gichini e Ernildo Stein. Petrópolis, Editora Vozes, 2008b. pp. 326-376. ______________. Identidade e Diferença, in Que é isto – A Filosofia? Tradução de Ernildo Stein. Petrópolis, Editora Vozes, 2006. pp. 33-77. ______________. A Superação da Metafísica, in Ensaios e Conferências. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis, Editora Vozes, 2002a. pp. 61-86. ______________. A Questão da Técnica, in Ensaios e Conferências. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis, Editora Vozes, 2002b. pp. 11-38. ______________. Introdução à Metafísica. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro, Editora Tempo Brasileiro, 1999. ______________. Meditação. Tradução de Marco Antonio Casa Nova, Editora Vozes, 2010. ____________. Nietzsche I. Tradução de Marco Antonio Casa Nova. São Paulo: Forense Editora, 2007a. ____________. Nietzsche II. Tradução de Marco Antonio Casa Nova. São Paulo: Forense Editora, 2007b. ____________. Metafísica e Niilismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000. LIMA, H. Do Corpo-Máquina ao Corpo-Informação: o pós-humano como horizonte biotecnológico. Curitiba, Editora Honoris Causa, 2010. NIETZSCHE, Friedrich. A Vontade de Poder. Tradução de Marcos Fernandes e Francisco Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. 159

_____________. Crepúsculo dos Ídolos – ou como filosofar com o martelo. Tradução de Marco Antonio Casa Nova . São Paulo: Companhia das Letras, 2000. _____________. Genealogia da Moral – uma polêmica. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ____________. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Mario da Silva. Civilização Brasileira, 1998.

160

Formação Discursiva da Plenitude em Educação: desconstruindo a sagrada condição do homem Karina Mirian da Cruz Valença Alves

Atualmente uma série de discursos tem se articulado em torno de uma concepção algo “reencantada” da natureza: movimentos ecologistas, ao mesmo tempo em que pedem pela preservação do meio ambiente, agenciam o seu canto, na reverência quase mítica que prestam à Terra e a todas as suas formas de vida. Uma perspectiva biosférica da vida, assente na necessidade de uma nova cosmologia e no reconhecimento de que a vida na natureza mantém-se através da cooperação orgânica e sistêmica, do cuidado e do amor mútuos, se articula. Aí, o apelo educativo se indicará: é preciso conscientizar para a vida harmonizada na/com a Terra. Devemos aprender com a natureza (e agora com a cultura “naturalizada” pela ecologização do pensamento e de práticas compatíveis) que encontrar a felicidade não implica em subjugar ou transcender o “reino da natureza”. Bem ao contrário, deve-se aprender a estimular e conservar a potencial subsistência da natureza em todas as suas dimensões e manifestações, inclusive, e, talvez, sobretudo, em nós mesmos. Uma espécie de eco-bio-religião (SFEZ, 1996)103 emerge como modo de ligação da ciência, da técnica, da gestão, de governo, da religião, da educação, de modo que, inclusive, as esferas axiológicas diferenciadas das sociedades modernas (talvez, principalmente elas!)104 foram, também, reunidas sob a égide da preocupação comum 

Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco e professora da Faculdade Educação da Universidade Estadual do Ceará no Curso de Pedagogia. E-mail: [email protected] 103 Com a expressão eco-bio-religião, Sfez (1996) se refere a uma vasta narrativa das origens (do universo, da natureza, do homem), que, se dirigindo a um passado arcaico, projeta no futuro um mundo infinitamente melhor que o atual, com base nos avanços das tecnologias. Como analisa o autor, tendo-se dissolvidos os grandes programas de transformação do mundo e da história, as “metanarrativas”, das quais Lyotard (1999) fez a crítica inaugural, hoje parece que encontramos um novo fundamento de sentido, que repousa na base mais material, mais extrema que existe: no nosso aparelho de percepção do mundo e de ação sobre o mundo, o corpo, que cultuamos em nome da “saúde perfeita”. Utilizamos a expressão cunhada por Sfez para nos referir à característica também comum aos discursos da plenitude de elaborar uma “narrativa das origens” e de projetar um futuro pacificado por uma relação sustentável com a natureza, que hoje “cultuamos” em nome da salvação da vida no planeta Terra. 104

Para Max Weber, era evidente a relação íntima, não apenas contingente, entre a modernidade e aquilo que ele designou como racionalismo ocidental. Ele descreveu como racional o processo de desencantamento que levou à desintegração das concepções religiosas do mundo e à geração, na Europa, de uma cultura profana e laica da qual fazem parte as esferas axiológicas sociais e culturais (Cf. HABERMAS, 2000).

161

com a vida, naturalizada e sacralizada, numa indissociável visão ecológica e cosmológica. Na maneira de moralizar a relação com a natureza, assenta-se uma divinização dessa mesma relação, divinização que empresta aos discursos um caráter também mítico. Tal arranjo articula a produção discursiva de um indivíduo ecologicamente normalizado, caracterizado por uma relação mais “sensível”, “amorosa”, “direta” e “sustentável” para com a natureza, como saída para os impasses gerados pela modernidade e como ideal de sujeito de uma contemporaneidade desprovida de modelos. Para nós, a formação discursiva em análise, que advém e estende a crise do humanismo, cultuando uma espécie de sagrada condição natural do homem, engendra questões que, a nosso ver, merecem ser pensadas desde um ponto vista biopolítico, aspecto que esboçamos a seguir. Assentados em um estranho “neohumanismo”, um neo-humanismo ecológico, biocêntrico, por assim dizer (que coloca, lado a lado, o homem, os seres vivos e animais de toda espécie), os discursos da plenitude parecem corroborar uma crise da política em termos de uma supervalorização da esfera de zôê (a vida natural), em detrimento de bios (a vida politicamente qualificada), esferas que tradicionalmente estruturaram os humanismos105. Para nós, é preciso alertar para os perigos inscritos no clamor por reconhecer “o valor intrínseco de todos os seres vivos” (CAPRA, 1996, p. 26) e na idéia de conceber os seres humanos “apenas como um fio particular na teia da vida” (idem, ibid.), tal como propõem hoje os discursos da plenitude. Nestes casos, nos parece, como alerta Carvalho (2006), o que está em risco de extinção, respectivamente às bases de sustentação material do planeta, são as bases mesmas de compreensão da vida política contemporânea. Neste “novo naturalismo” que emerge – que denominamos de “biocêntrico” – circula a idéia de que não podemos entender a natureza de forma separada das sociedades humanas, na medida em que estas estão situadas na natureza que transformam e da qual dependem para sobreviver. A natureza tem uma história, que, por 105

Segundo Agambem (1998), os gregos antigos não tinham um termo para exprimir aquilo que nós entendemos por vida. Eles tinham dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que remetam a um étimo comum: zôê, que exprimia o simples fato de estar vivo, comum a todos os seres vivos (animais, homens e mesmo deuses) e bios que definia a forma ou maneira própria de cada indivíduo ou grupo. Neste último caso, trata-se não da simples vida natural, mas de uma vida qualificada, um modo particular de vida. A vida natural está excluída, no mundo clássico, da polis e permanece confinada como mera vida reprodutiva, ao âmbito do oikos.

162

sua vez, está cada vez mais interligada com a história das sociedades (Cf. DIEGUES, 2000). Ou, de outra feita, a própria história das sociedades não pode ser mais desligada da história da natureza. Mais do que isto, o que de resto nos parece tácito, tal naturalismo afirma a unidade entre a sociedade e a natureza: o homem está dentro da natureza, e essa realidade não pode ser abolida. A natureza não é um meio exterior ao qual o homem se adapta. O homem é natureza e a natureza, seu mundo. Comemorando o sagrado natural, que se eleva acima do militantismo ecológico dos anos 1960-70, intelectuais práticos trabalham para uma revolução da consciência: organizam-se em redes paralelas para estabelecer uma sociedade comunitária, descentralizada, não violenta e convival (Cf. ALPHANDÉRY, BITOUN E DUPONT, 1992). Tais questões constituem o pano de fundo que circunscreve o horizonte de problemática de nossa Tese de Doutorado, realizado no Programa de Pós-graduação em Educação da UFPE, que apresentamos sucintamente neste artigo. Desta feita, podemos caracterizar nosso objetivo no trabalho: analisar os discursos veiculados no campo da educação que constituem a formação discursiva da plenitude. Pensando esses discursos como práticas discursivas, isto é, discursos que vêm acompanhados de práticas institucionais e educacionais, se desdobrando em práticas sociais mais amplas, buscamos identificar os enunciados que sugerem a configuração da formação discursiva da plenitude em educação, relacionando-os aos lugares de produção dos discursos e àqueles que lhes fazem difundir, associando, a isto, as práticas discursivas que investem na produção de uma subjetividade ecológica. Se, de fato, ingressamos numa formação discursiva que dissolve as fronteiras que o homem ocidental erigiu para conceituar a si e a seu mundo – através do funcionamento de um “dispositivo da plenitude” que liga indissociavelmente aquilo que antes foram pólos opostos -, nos interessa saber como operam tais enunciados e que efeitos de verdade são daí decorrentes.

Natureza e cultura: a zôê da política

Se, ainda segundo Carvalho (Op. Cit), podemos afirmar uma politização da natureza pelos movimentos sociais e pelas lutas ecológicas (que conquistam um espaço crescente como objeto de discussão política na sociedade), também podemos observar a

163

delicada fronteira que, no limite, aponta para uma biologização da política, ou seja, a afirmação de uma suposta ordem natural sobre a polis. Desdobrando a análise, nos amparamos em Agamben (1998), para quem, se há algo que distingue a democracia moderna da antiga é o fato de aquela se apresentar, desde o início, como uma reivindicação e uma libertação da zôê, de buscar transformar a própria vida nua em forma de vida politicamente qualificada e encontrar, por assim dizer, o bios da zôê. Tendo como princípio essa zona de indistinção entre zôê e bios, podemos dizer que a nossa política não conhece hoje outro valor que não seja o da vida nua. Se outrora a felicidade já implicou uma libertação da zôê, hoje as promessas de felicidade reenviam para uma afirmação da zôê como condição de sua efetivação plena. Em A Vontade de Saber, Foucault resume o processo pelo qual, na modernidade, a vida natural foi incluída nos mecanismos e cálculos do poder do Estado e a política se transforma em biopolítica: “Durante milênios, o homem foi sempre o que era para Aristóteles, um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivo” (FOUCAULT, 1993, p. 167). Na célebre passagem da Política, em que Aristóteles define o homem como animal político (politikon zôon), “político” não é um atributo do ser vivo enquanto tal, mas uma diferença específica que determina o humano (Cf. AGAMBEN, 1998). A entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e nos mecanismos e cálculos do poder, isto é, no campo das técnicas políticas, constitui uma espécie “bio-história” (FOUCAULT, 1993, p. 134) e define o limiar de nossa modernidade, quando a política se converte em biopolítica. A gestão dos processos vitais da população é a marca da biopolítica, em que se integram os mecanismos de normalização e os sistemas mais gerais de regulamentação da vida da população. Em um de seus últimos escritos, Foucault (1999b) afirma que o Estado ocidental moderno integrou, num grau sem precedentes, técnicas de individuação subjetivas e processos totalizantes objetivos, e fala de um “duplo laço político”, simultaneamente constituído pela individuação e pela totalização das estruturas do poder moderno. Há, assim, uma zona de intersecção onde as técnicas de individuação e os processos totalizantes se tocam, e essa zona se concentra, cada vez mais, na vida dos indivíduos enquanto tal.

164

O sexo, tal como Foucault analisou no primeiro volume da História da Sexualidade é, então, a “dobradiça” que articula a disciplina do corpo (da mulher, da criança, do onanista etc.) e a regulamentação da população (haja vista, por exemplo, as políticas de contracepção, controle de natalidade, a atual preocupação com as doenças sexualmente transmissíveis etc.), sendo o “dispositivo da sexualidade” o ponto de entrecruzamento entre a normalização e a gestão da vida. A politização da vida nua – a biopolítica – não significa, simplesmente, uma instrumentalização da vida enquanto tal, mas, antes, o fato de que, na modernidade, a vida como um dado biológico é imediatamente política, isto é, é condição da política operar sobre a vida biológica. Ou, dito de outro modo, o político já faz parte da vida nua como o seu núcleo mais precioso. Os campos de concentração ensinaram que pôr em questão a condição de homem provoca uma reivindicação quase biológica de pertença à espécie humana: pertencer à “espécie humana” – à esfera da zôê – e protegê-la é só o que lhe resta. Já no final dos anos 1950, em A Condição Humana, Hannah Arendt tinha analisado o processo que leva o homo laborans – o homem circunscrito à sua relação com o meio, com o qual instaura processos puramente metabólicos que garantam a sua sobrevivência enquanto espécie - a ocupar progressivamente o centro da vida política da modernidade. Esta primazia da vida natural sobre a ação política assinala a transformação e a decadência do espaço público nas sociedades modernas. Enquanto alguns intelectuais alimentam ainda o debate teórico sobre se estamos ou não numa pós-modernidade (LYOTARD, 1989), ou se numa alta modernidade (GIDDENS, 1999), ou, ainda, numa modernidade irrealizada (HABERMAS, 2000), sábios, biólogos, físicos, matemáticos, mas também na sua esteira, cientistas sociais, psicólogos, educadores, filósofos e ecologistas recolocam as coisas em ordem, propondo-nos a percepção de outra realidade, mais “verdadeira”, nova e, ao mesmo tempo, ancestral - uma realidade que sempre esteve aí, nós é que não estávamos prontos para vê-la. Como aponta Vaz (1998), hoje parece impossível deixar de pensar “a história humana na continuidade e na dependência da história da matéria e da vida” (p.177), num processo de desmantelo do “funcionamento legal” que regeu as relações simbólicas entre natureza e cultura, de tal modo que “a lei que vale para a história deve ser a

165

mesma que vale para a ontogênese e a filogênese” (idem, ibid.)106. Desse modo, compõe-se a escritura de uma História antiga, ancestral, reassegurando, com isso, as nossas identidades, antes questionadas: a Grande História do Vivo (a matéria viva de hoje é ligada à matéria viva das eras precedentes). Se da identidade não restava mais a dizer senão sua crise, temos agora a certeza de pertencer a essa grande categoria dos seres vivos (a história do homem devolvida à história mais ampla da Terra). Ao invés da separação entre natureza e cultura, separação que já foi justificada pela necessidade de ordenar simbolicamente o mundo e pela relação singular do homem com o tempo, uma indistinção de fronteiras: os seres humanos, uma espécie tão particular quanto as outras. No núcleo do humanismo – sistema de pensamento que nos ensinou a ver o nosso lugar no mundo a partir da demarcação de fronteiras e da fixação de alteridades entre o humano e não-humano -, sempre atuou a idéia de que existe entre o homem e os demais seres uma diferença não apenas de gênero ou espécie, mas uma diferença ontológica. O próprio modo de ser dos humanos distingue-se de todos os outros seres vegetais e animais, pois o humano tem um mundo e está no mundo, enquanto plantas e animais estão atrelados apenas aos seus respectivos ambientes. Mesmo a formulação do humanismo clássico do ser humano como animal racional não aceita uma indiferenciação entre homem e animal. Ser racional e dotado de uma dimensão espiritual distingue o homem de todos os animais, além de elevá-lo acima deles (Cf. SLOTERDIJK, 2000). Como observa Agamben (1998), o princípio do caráter sagrado da vida tornouse tão familiar para nós, que hoje nos esquecemos que a Grécia clássica, a quem devemos a maior parte dos nossos conceitos éticos e políticos, não só ignorava tal princípio, como sequer possuía um termo para exprimir, em toda a sua complexidade, a esfera semântica que nós indicamos com um único termo, a “vita”. A oposição entre zôê e bios, ou seja, entre a vida em geral e o modo de vida qualificado que é próprio dos homens, tão decisiva para a emergência da política e da sua possibilidade, não contém nada que possa fazer pensar em algum caráter sagrado da vida enquanto tal107. 106

Para Vaz (op. Cit.), se existe uma peculiaridade da cultura, ela deixa de significar uma fronteira ontológico-legal. Dentro da mesma lei de funcionamento, o surgimento do homem passa a ser visto apenas como a aceleração dos processos que regem a matéria e a vida. 107

De resto, a vida em si não podia ser considerada sagrada: ela só recebia essa condição quando, separada de seu contexto profano, atravessava o limiar que separa o homem do “mundo dos vivos” através, por exemplo, do sacrifício: a vida só se torna sagrada quando a vítima sacrificada é morta (Cf. AGAMBEN, 1998).

166

O fato é que, hoje, a questão do que é próprio do ser humano – questão de fundo de todo humanismo -, está colocada em termos não só do reconhecimento, como também da aceitação e do elogio a uma espécie de sagrada condição biológica do homem, e sua identidade passa por uma reivindicação do estatuto ontológico que compartilha com o mundo natural, de algum modo mitificado, sacralizado, animado, por assim dizer. É nesse lugar – do qual o homem ocidental parece sempre ter querido escapar para assegurar a sua humanidade, o reino da natureza -, que ele reencontrará a sua inteireza, resgatará a unidade perdida e religará a sua relação com a essência do divino, que se manifesta, como em nenhum outro lugar, na Natureza. No nosso trabalho indicamos a configuração de uma nova formação discursiva, caracterizada por uma mutação no solo dos discursos educacionais: a passagem dos discursos modernos, “racionalizantes”, que privilegiavam os aspectos lógicos, puramente cognitivos ou racionais nas suas explicações e assertivas, para perspectivas mais “totalizantes”, que buscam dar conta dos aspectos globais que cobrem os fenômenos humanos, com acentuado interesse nos aspectos emocionais e espirituais, negligenciados pela tradição intelectual ocidental. Hoje tais aspectos são articulados em torno da possibilidade de uma “religação” com a natureza, notadamente assumida pelos discursos da plenitude. A seguir, apresentamos, em resumo, as diretrizes metodológicas que orientaram nossa Tese e, em seguida, passamos a uma análise dos discursos em questão, buscando, o que é próprio da análise desconstrucionista, desmontar seus efeitos de verdade.

Orientação Metodológica

O trabalho buscou levantar o solo de configuração e circulação dos discursos da plenitude, as condições históricas que fizeram funcionar o seu dispositivo, o seu modo de funcionamento, o que supõe operar com uma massa dispersa de enunciados agenciados

aos

mecanismos

histórico-sociais,

político-institucionais,

teórico-

educacionais que os engendraram. Desde já, é preciso indicar a direção metodológica que nos orienta nesse trabalho. Primeiro, quanto à massa de discursos em análise: trata-se de um campo discursivo amplo e heterogêneo, que vai desde os discursos da complexidade (Morin), passando pela autopoeise (Maturana e Varela) e pela ecologia profunda (Capra); estabelece relações entre, por exemplo, Educação Ambiental e Espiritualidade, 167

promovendo, ainda, pontos de articulação entre “novos paradigmas” científicos (da física quântica à astrofísica, porém com matriz discursiva radicada na Ecologia e na Biologia Sistêmica) e antigas visões de mundo como budismo, hinduísmo e cristianismo. Conforme nossa abordagem, denominada de arqueogenealógica, os discursos em análise que, como se vê, têm proveniências diferenciadas, são considerados como um conjunto de enunciados que se articulam de diversos modos, sendo submetidos a regras e contextos diferentes. A orientação metodológica indicada supõe, pois, analisar a proveniência dos discursos, os seus possíveis cruzamentos e os efeitos de superfície que esses cruzamentos produzem, isto é, os “efeitos de verdade”. E isto porque o papel da arqueogenealogia não é descobrir o que está escondido, mas sim “tornar visível o que precisamente é visível – ou seja, fazer aparecer o que está tão próximo de nós, tão imediato, o que está tão intimamente ligado a nós mesmos que, em função disso, não o percebemos” (FOUCAULT, 2004, p. 44). Na análise, o que interessa é saber como, historicamente, se produzem “efeitos de verdade” no interior dos discursos que não são tomados, em si mesmos, como verdadeiros ou falsos. Não procuramos o conjunto das proposições verdadeiras que se há de descobrir, mas o que permite dizer, reconhecer e aceitar proposições como verdadeiras, às quais efeitos específicos de poder se ligam. Nesse caso, mais especificamente, tomamos, para a análise, os discursos cujos interstícios articulados produzem efeitos novos ao falar das relações homem-natureza, do sujeito, da educação. A gênese de alguns dos tantos discursos colocados em relação aqui remonta a tempos imemoriais, haja vista, por exemplo, as muitas referências a culturas milenares que plasmam os discursos da plenitude. O que nos interessa, no entanto, é entender a sua atuação no sentido de fundar uma nova formação discursiva que investe em novas relações entre o homem e a natureza, e na subjetivação do sujeito ecologicamente normalizado. Nesse sentido, consideramos, como configuração do solo de recepção e circulação dos discursos da plenitude, a emergência de novas sensibilidades em relação à natureza, fenômeno que se espraia no ocidente a partir do século XVIII; e tomamos o final dos anos sessenta e início dos anos setenta do século XX como ponto de inflexão definitivo para a formação discursiva em análise, quando assistimos à explosão de conferências e declarações, ao surgimento de instituições e associações que pactuam

168

uma regulação das sensibilidades (que se reforçam por tal regulação) e dão conta de um verdadeiro “acontecimento ecológico” (Cf. CARVALHO, 2006). Os enunciados, dispersos e heterogêneos, foram, segundo a démarche arqueogenealógica, submetidos a um trabalho de ordenação que, identificando elementos e definindo conjuntos, estabeleceu séries de relações. A análise do material, assim empreendida, gerou a ordenação da massa de discursos em três séries discursivas, que assim foram denominadas: a) série “ecosistêmica”: de matriz cunhada na Biologia Sistêmica e Ecologia, ambas fundamentadas na noção-chave de “sistema”, corroborada por uma série de “princípios científicos” e seus virtuais entrecruzamentos: Princípio Holográfico (David Bohm), Princípio da Complementaridade (Bohr), Princípio da Incerteza (Heisenberg), Princípio da Transdisciplinaridade (Nicolescu), Princípio da Autopoiése (Maturana e Varela), o Pensamento da Complexidade (Morin) e Ecologia e Ecologia profunda (Capra); b) série “ambientalista-Institucional”:

concentramo-nos

nos

discursos

expressos

por

organismos nacionais e internacionais e em documentos tais como declarações, cartas e programas que demonstram a institucionalização da sensibilidade ecológica e dos temas ecologistas. São exemplos dessa série: a Carta da Terra, a Agenda 21, o Relatório Brutland etc; e c) série “teórico-educativa”: conferida pela preocupação com uma educação holística, a integralidade humana e as relações entre educação, natureza e espiritualidade (e as abordagens da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade que lhe são consubstanciais), emblematicamente encarnada pelas chamadas Ecopedagogia ou Educação Bieocêntrica e pela Alfabetização Ecológica (Gadotti, Gutierrez, Boff, Brandão, Morin e Capra). Desde este arranjo discursivo, investe-se, ao nível do discurso teórico, político e institucional na idéia da promoção de uma “consciência planetária” como estratégia para fazer frente à “crise ecológica”, emergindo daí uma nova forma de dizer o sujeito, um sujeito “eco-pedagogizado” em vista da produção de um indivíduo “eco-centrado”. Assentados em um estranho “neohumanismo”, um neo-humanismo bio-cêntrico espiritualizado, que coloca, lado a lado, o homem, os seres vivos e animais de toda espécie, os discursos da plenitude engendram a injunção de um novo ethos e um novo governo do eu. Para nós, essa rede discursiva que se engendra advém e estende a crise do humanismo, base de toda pedagogia, daí a necessidade de pensá-la sob o ponto de vista de uma reflexão educacional.

169

A análise: desmontando efeitos de verdade

Para a análise, tornamos produtiva a regularidade dos discursos, para caracterizar o formato mais ou menos comum a que obedecem, as alusões que fazem, o vocabulário que compõe um mesmo grupo de enunciados, registrando os diferentes lugares de enunciação. Do ponto de vista da sua estruturação, os discursos em análise apresentam alguns registros fundamentais, constituindo sua regularidade, dos quais seu caráter escatológico-normalizador e sua auto-referencialidade são os mais visíveis. Com a expressão caráter escatológico-normativo do discurso assinalamos a dinâmica, segundo a qual, os discursos da plenitude muitas vezes apresentam ideias ou dados que descrevem uma situação drástica (com relação à “saúde do planeta”, à “destruição do meio ambiente” ou ao nosso próprio “equilíbrio sócio-emocional”), mobilizando uma série de imagens e metáforas escatológicas. Tais dados ou conceitos – e as metáforas que a eles se colam – logo são seguidos das possibilidades de solução: as ideias, posturas e práticas que os discursos apresentam quase como normas. A auto-referencialidade dos discursos se encontra no fato de os enunciados serem imunes à crítica devido à atuação de significados transcendentais, contra os quais ninguém pode se voltar. Ao falar “em nome de” (da “humanidade”, da “dignidade humana”, do “respeito pela vida”, da “vida do planeta”, da “paz na Terra”, da “harmonia” etc.), os discursos tornam-se impassíveis à crítica, bastando recorrer ao seu próprio referencial para se legitimarem. Através

da

combinação

do

caráter

escatológico-normalizador

e

da

autoreferencialidade dos discursos, estratégias de produção de sentido sobre a “crise ecológica”, crise essa “planetária”, e sobre a necessidade de nos conscientizarmos para assumir uma conduta ecologicamente orientada e reverente para com a Terra, as novas sensibilidades ecológicas tornam-se, elas próprias, sensibilidades “eco-pedagógicas”: “ensinam” acerca da verdade da natureza que é preciso descobrir ou redescobrir e acerca do modo de ser que é preciso majorar para viver de modo coerente com essa verdade. A produção discursiva que investe na redefinição das relações homem-natureza é polimórfica, diversificada e muito abrangente, como afirma Grün (1995). Mas, destaca o autor, existem características comuns aos vários estratos discursivos. Uma delas, é a forte autoridade com que são investidos esses discursos. Eles conservam sua 170

respeitabilidade e legitimidade miticamente indefectíveis, mesmo transpassando registros ideológicos, políticos e culturais muito diferentes. Ao falar em nome da “paz”, do “equilíbrio”, da “harmonia”, da “felicidade”, do “amor”, a produção discursiva que compõe o repertório da formação discursiva da plenitude claramente expressa uma ação de “transcendentalização” da natureza (Cf. GRÜN, op. cit.), que torna transcendental o próprio discurso que fala em nome dos “significados universais”. Ainda que essas noções possam ser definidas de variadas e até de conflitantes maneiras, elas atuam como princípios primeiros contra os quais ninguém pode se voltar, pois seus significados, ainda que imprecisos, são “positivos” em si mesmos (aí repousa sua “universalidade”), assumindo valor explicativo per si. O aspecto mítico do discurso se encontra, precisamente, na sua autoreferencialidade, que o torna inimputável à crítica. Basta se referir ao seu repertório interno de universais para se justificar e legitimar. Aspecto correlato à mitificação dos discursos, os “universais” com os quais opera a formação discursiva da plenitude investem-na de força “transcendental”. Hoje parece consenso que encontramos um novo fundamento de sentido, que repousa não mais para além deste mundo. É justamente este mundo o lugar mesmo em que buscamos reposicionar o fundamento, respondendo, com isso, à exigência de dar sentido à existência. Através

da

combinação

do

caráter

escatológico-normalizador

e

da

autoreferencialidade dos discursos, estratégias de produção de sentido sobre a “crise ecológica”, crise essa “planetária”, bem como sobre a necessidade de nos conscientizarmos para assumir uma conduta ecologicamente orientada e reverente para com a Terra, as novas sensibilidades ecológicas tornam-se, elas próprias, sensibilidades “eco-pedagógicas”: ensinando acerca da verdade da natureza que carecemos descobrir ou redescobrir, terminam por ensinar acerca do modo de subjetivação que devemos majorar para viver de modo coerente com tal verdade. Só adotando uma conduta ecologicamente informada, podemos alterar o curso catastrófico da história da humanidade gerado pelo modelo ocidental de desenvolvimento. Porém, é nessa mesma verdade que encontramos o pensamento metafísico, que os discursos da plenitude se propõem a superar, em plena operação, na medida em que atuam com uma oposição binária básica: falar e agir em nome da natureza, ser “ecologicamente correto” é bom, valoroso, ético, enfim, “positivo”, em oposição a uma postura “anti-ecológica”,

171

desligada do dever para com a sustentabilidade, rapidamente qualificada como incorreta, perversa, imoral, “negativa”. Entre os muitos apelos que emergem no sentido da produção de subjetividades na contemporaneidade, destacamos aqueles que se inscrevem em meio às reivindicações ecológicas atuais, que apontam para a normalização de uma subjetividade ecológica ou um “eco-sujeito, um indivíduo descentrado de seu antigo ego, alienado, consumista e predatório em função de seu eco-centrismo recém-desenvolvido por sua consciência ecologicamente sensível. As idéias sobre a natureza mobilizadas pela formação discursiva da plenitude são freqüentemente utilizadas para justificar idéias morais, e essas, por sua vez, são elaboradas desde certos ideais morais, revelando que as visões de natureza e os ideais de ambiente estão intensamente ligados a uma moralidade (Cf. FLORITI, 2004)108. Não havendo mais a possibilidade de articular uma concepção inequívoca de conduta adequada, a natureza emerge como modelo e como norma. Segundo a proposição dos discursos em curso, uma razão instrumental demasiadamente monológica e destrutiva, daria lugar a uma “razão sensível” de um “novo sujeito”, um “eco-sujeito” que devemos aprender a nos tornar, e a relação com a Terra estaria como que reequilibrada por uma gestão não apenas científica, mas cívica e, sobretudo, sensível, dos meios naturais. Tentando legar às gerações futuras o patrimônio “natural” que herdamos, as sociedades contemporâneas retomariam as noções de dever e de dívida que haviam deixado de lado ao emancipar-se da religião e da tradição. Entretanto, tal proposição não seria possível senão condimentando o individualismo com a busca de regras ecológicas comuns, o que aponta para a articulação que convém assinalar entre os “riscos públicos” (globais, planetários e até universais) e uma moral privada: cada um deve se esforçar por reformular seus hábitos, inclusive os mais íntimos, e tornar-se o portador de novos comportamentos, por assim dizer saudáveis para si e para a Terra. Se, por um lado, as práticas discursivas articuladas aos discursos da plenitude incidem em importantes desconstruções do humano e acenam para uma nova formação discursiva, por outro, apresentam certas continuidades que evidenciam quão 108

Para o autor, é possível reconhecer implicações do fundamento normativo da natureza nas sociedades contemporâneas, cuja principal seria o fato de não ser “o ambiente ou a natureza o que está em risco em muitos dos confrontos atuais que tentam conformar a natureza ou o ambiente sob diferentes agendas políticas, mas a idéia de ambiente ou de natureza, e com eles o ideal de uma ordem adequada” (op. Cit., p 27).

172

problemáticas são as superações que propugnam. Ainda que o deslocamento do humano em favor da natureza seja perceptível, percebe-se que, em última instância, esse deslocamento reenvia novamente para a afirmação do humano. Enunciados do tipo “a Terra está ameaçada e sem a Terra não há humanidade” ou “é preciso estabelecer outra relação com a natureza se quisermos sobreviver” são reveladores dessa estratégia paradoxal, paradoxo revelador, ele mesmo, da dificuldade de superação do antropocentrismo: afirmando a natureza, a Terra, o planeta, o equilíbrio do ecossistema, afirmamos o homem. Devido ao efeito da tomada de consciência ecológica, da assunção de uma consciência planetária, desenvolveu-se o que parece uma descentração radical. A própria noção de “planetarização” impele a um ponto de vista sistêmico e total, cujo centro é a biosferra, a “Terra”, e não mais o homem. Essa tomada de consciência, assim enunciada, implica a preocupação acerca da preservação do “equilíbrio natural” e da diversidade biológica. Contudo, tal arranjo discursivo nem sempre consegue constituir uma ultrapassagem real do ponto de vista antropocêntrico do humanismo. A preocupação ecológica é determinada pela urgência da ameaça à sobrevivência da espécie humana. Deste modo, o respeito à natureza é um imperativo relativo às necessidades humanas, e não um respeito incondicional à natureza como ente (como outrora exprimia o conceito antigo de physis), tal como faz parecer o culto à “Mãe Terra”, tantas vezes repetido pelos discursos da plenitude. Foi possível perceber também que, apelando ao sagrado e ao sensível, é o próprio discurso que é investido de sacralização. Através da atuação dos significados transcendentais – “vida”, “Terra”, “paz” etc. –, os discursos da plenitude inventam uma linguagem nova (ainda que em termos antigos) para descrever a nós e ao mundo, pelo expediente do repertório ao mesmo tempo “científico” e místico com o qual trabalham. Inventar uma linguagem é uma operação de poder. E, mais, sacralizar um discurso é investi-lo de um poder transcendental, inquestionável porque situado em um lugar para além do humano, inalcançável, por isso mesmo, perigoso. É preciso restituí-lo ao seu caráter “mundano”, isto é, torná-lo também objeto de crítica, como garantia da liberdade do pensar e do agir. A partir da análise arqueogenealógica, foi possível perceber, ainda, como discursos aparentemente inatacáveis e tomados como “naturalmente bons”, como os discursos da plenitude, são atravessados de relações de saber-poder. A partir da sensibilidade em torno da natureza, tais discursos regulam uma subjetivação do sujeito 173

ecológico, revelando uma zona de intersecção onde as técnicas de individuação e os processos totalizantes se tocam na figura do “eco-sujeito”, processo que não ocorreria sem um saber da natureza, uma verdade da natureza (a ser reencontrada), que levaria a uma mudança de conduta. Capra (2008) e, na sua esteira, muitos outros, tem defendido que qualquer mudança nas atitudes dos estudantes em relação ao meio ambiente estaria, antes de tudo, condicionada ao conhecimento das ciências do meio ambiente, que é preciso generalizar por toda a sociedade através de “informações corretas”. Nesse sentido, a educação para uma vida sustentável emerge investida de poder.

Considerações Finais

O ímpeto que guio o trabalho de nossa tese foi fazer problema a uma aparelhagem discursiva que, cada vez mais, conquista elevada notoriedade, ao propagarse largamente no campo educacional e ao estender-se no cenário mais amplo das práticas culturais. É exatamente tendo em vista a posição privilegiada ocupada pelas problemáticas ambientais no discurso educacional e sócio-político, que necessitamos desenvolver análises de sua produção discursiva. Assim, problematizar o consenso ecológico, “desnaturalizá-lo”, foi, em grande medida, o que nos motivou, tarefa que empreendemos com a dupla preocupação, teórica e política, de colaborar para um “diagnóstico do presente”. Como vimos, o discurso que organiza a formação discursiva da plenitude está investido de saber-poder, providenciando, por muitas vias, modos específicos de regulação moral, injunções de produção de identidades sociais e de subjetivação contemporânea. O uso recorrente do argumento da crise não consegue ocultar a “vontade de poder”, comum aos muitos discursos ecológicos, mas que adquire ainda mais intensificação no campo educativo, uma vez que, na educação, o caráter subjetivante e normalizador é flagrante, pois lhe é constitutivo. Antes de aderir às soluções que uma gestão bio-ecológica espiritualizada de nossas vidas pode favorecer, é bom lembrar que o dado biológico é, ele mesmo, imediatamente político em tempos de biopolítica. Como mostrou Arendt (1995), a compreensão biológica da vida humana corre ao lado daquilo que a autora chamou de vitória do “animal laborans”: a redução da vida humana a uma “laborização”, a um metabolismo de produção e consumo, cujo sentido se esgota na repetição do metabolismo. No limite, como também demonstraram as 174

reflexões da filósofa, a compreensão biológica da vida humana, na sua versão mais redutível, foi condição para legitimação e justificação dos crimes perpetrados pelo nazismo contra os judeus. Como também demonstrou Agambem (1998), a vida, reduzida à vida nua, é o que torna o homem, por assim dizer, facilmente “matável”. Não esperamos colocar no lugar dos problemas levantados aos arranjos discursivos aqui analisados novas soluções, porque buscar desmontar uma lógica discursiva não significa propor, necessariamente, uma ordem conceitual que a substitua. Aprendemos com os esforços desconstrucionistas do pós-estruturalismo, no qual a arqueogenealogia de Foucault inscreve-se, que precisamos resistir à inclinação, tão típica do pensamento dualista, mas, também, tão cara aos discursos que se querem críticos, de, tão logo desarranjado o repertório transcendental, colocar em seu lugar outro fundamento que possa organizar o discurso e a ação. Pensar é resistir. Neste sentido, é preciso ver na teoria uma prática política baseada na tentativa de desembotar a lógica através da qual uma formação discursiva e todo um conjunto de estruturas sócio-políticas a ela articulada conservam e ampliam sua força, desmantelando, por dentro, suas regras discursivas, invertendo seus sinais, confundindo seus efeitos de verdade. É possível que cada época veja a si mesma como singularidade e crise (Cf. VAZ, 1996). A crise ecológica talvez diga mais sobre como nos vemos hoje (como homens e mulheres em crise), do que sobre como entendemos a crise ou sobre a crise mesma. O presente, este obscuro intervalo entre passado e futuro, marca a diferença entre o que ainda somos e o que podemos nos tornar. Formular esta diferença sugere interrogar sobre como chegamos a ser o que somos. O modo de contornar o paradoxo – o que não somos mais (“ecologicamente alienados”), o que não somos ainda (“ecologicamente corretos”) – subentendido na nossa condição contemporânea passa pelo diagnóstico de que estamos adquirindo outra historicidade e pela coragem de buscar criar condições de pensar à sombra da ruptura.

Referências AGAMBEM, Giorgio. O Poder Soberano e a Vida Nua: Homo Sacer. Lisboa: Presença, 1998. ALPHANDÉRY, Pierre; BITOUN, Pierre; DUPONT, Yves. O Equívoco Ecológico: Riscos Políticos. São Paulo: Brasiliense, 1992.

175

ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. Lisboa: relógio D´Água, 1991. ________. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000. _________. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Somos as Água Puras.Campinas, SP: 1994. _____________. As Flores de Abril. Movimentos sociais e Educação Ambiental. Campinas, SP: Autores Associados, 2005. ______________. O Vôo da Arara Azul: Escritos sobre a Vida, a Cultura e Educação Ambiental. Campinas, SP: Armazém do Ipê, 2007. BRANDÃO, D. & CREMA, R. (orgs). O Novo Paradigma Holístico. São Paulo, SP: Summus Editora, 1993. BRUCKNER, Pascal. A Euforia Perpétua: Ensaio Sobre o Dever de Felicidade. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação Ambiental: a Formação do Sujeito Ecológico. São Paulo, Cortez, Coleção Docência em Formação, 2004. _______________. As Transformações na Esfera pública e a Ação Ecológica: Educação e Política em Tempos de Crise da Modernidade. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro maio/ago, 2006. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade – a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 11ª edição, Rio de Janeiro, Graal, 1993. ___________. A Arqueologia do Saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 4a edição, Rio de Janeiro, Forense Editora, 1995. __________. A Ordem do Discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo, Loyola, 1996. ___________. Ditos & Escritos II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2000. CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: Uma Nova Compreensão Científica dos Sistemas Vivos. Newton Roberval Eichember. São Paulo: Cultrix, 1996. __________. Alfabetização Ecológica: O Desafio para a Educação do século 21. In. TRIGUEIRO, André. Meio Ambiente no Século 21. Campinas, SP: Armazém do Ipê (Autores Associados), 2008. DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: Huicitec, 1996. 176

FLORIT, Luciano. A Reivenção Social do Natural: Natureza e Agricultura no Mundo Contemporâneo. Blumenau: Edifurb, 2004. GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul Fiker. São Paulo: EdUNESP, 1999. _________________. Modernidade e Identidade. Tradução Plínio Dentzein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000. LASCH, Christopher. Mínimo Eu: Sobrevivência Psíquica em Tempos Difíceis; tradução João Roberto Martins Filho. São Paulo: Brasiliense, 1987. LIPOVETSKY, Gilles. Metamorfoses da Cultura Liberal. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre; Sulina, 2004. ____________. A Era do Vazio – Ensaio Sobre o Individualismo Contemporâneo. Lisboa: Relógio D´água, 1989. LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Lisboa: Gradiva, 1989. MATURANA, Humberto. Cognição, Ciência e Vida Cotidiana. Tradução Cristina Magro, Victor Paredes. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2001. ROCHA, Silvia Pimenta Velloso. O Homem Sem Qualidades: Modernidade, Consumo e Identidade Cultural. In. Revista Comunicação, Mídia e Consumo. São Paulo. Vol. 2, n. 3. P 111-222, mar., 2005. SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público: As Tiranias da Intimidade; tradução Lylgia Araújo Watanabe. São Paulo: Cia das Letras, 1998. SFEZ, Lucien. A Saúde Perfeita: Crítica de uma Nova Utopia. São Paulo: Edições Loyola, 1996. SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano: Uma Resposta à Carta de Heidegger sobre o Humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. VAZ, Paulo. A História: da Experiência de Determinação à Abertura Tecnológica. In. D‟Amaral, M, T. (org). Contemporaneiadade e Novas Tecnologias. – Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.

177

Empreendedorismo, Concorrência e Educação: faces da governamentalidade neoliberal e da biopolítica contemporânea Sylvio Gadelha 

A questão da concorrência e a “política de sociedade” no ordoliberalismo Seguindo basicamente as formulações de Foucault em Nascimento da Biopolítica (2008), busco apresentar, de início, uma caracterização sumária de alguns tópicos relacionados à governamentalidade neoliberal, em sua expressão alemã (caso do ordoliberalismo), salientando o modo como nela se concebe a questão da concorrência e como se desenvolve sua “política de sociedade” (Gesellschaftspolitik). Os ordoliberais afirmam categoricamente que o essencial do mercado não está na troca, mas sim na concorrência, nas questões que envolvem concorrência e monopólio. Trata-se de valorizar mais a desigualdade, no que ela concerne à concorrência, do que a equivalência, no que ela diz respeito à troca. É a concorrência, e somente ela, que pode assegurar a racionalidade econômica. Como? Foucault (2008, p. 162) o diz: “mediante a formação de preços, que, na medida em que há concorrência plena e inteira, são capazes de medir as grandezas econômicas e, por conseguinte, regular as escolhas”. Isso tem a ver com recusa desses neoliberais alemães em deduzir e afirmar o laissez-faire da economia de mercado. Pois, na verdade, a concorrência, em vez de ser um dado ou fenômeno natural, espontâneo, passa a ser concebida por eles como uma essência, um eidos, uma entidade puramente formal; ou melhor, a concorrência é por eles concebida como um princípio de formalização, com uma lógica e uma estrutura que lhe são próprias, cujos efeitos só podem ser estimados se respeitadas essa lógica e essa estrutura, e sob condições criteriosa e artificialmente planejadas. Como diz Foucault (2008, p. 163) a concorrência remete a um “jogo formal de desigualdades”, e não a um “jogo natural entre indivíduos e comportamentos”. Por outro lado, para Foucault (2008, 

Esse artigo foi escrito originariamente para o XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana promovido pelo Instituto Humanitas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – IHU/Unisinos, em setembro de 2010, sendo o mesmo cedido a esta instituição universitária para que seja reproduzido em livro eletrônico, pluriautoral, a ser distribuído gratuitamente através da internet, no site www.ihu.unisinos.br.  Professor do Deptº de Fundamentos da Educação da FACED/UFC e do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da UFC (Linha de Pesquisa Filosofia e Sociologia da Educação, Eixo de Pesquisa Filosofias da Diferença, Antropologia e Educação).

178

p. 164), formulada nesses termos, e com esse deslocamento da natureza para a história, a concorrência pura guarda um caráter paradoxal, pois ela “deve ser e não pode ser senão um objetivo, um objetivo que supõe, por conseguinte, uma política infinitamente ativa”. O importante a reter, aqui, é que essa “política infinitamente ativa” de que fala Foucault, entendida como condição para que se construísse o melhor estado de concorrência possível, e como organizadora, de fato, do “espaço concreto e real” em que a concorrência deveria atuar, doravante, não poderia mais exercer-se através de uma delimitação recíproca de áreas diferentes, tais como as que seriam, respectivamente, da alçada do mercado e da alçada do Estado. Ela vai caracterizar uma governamentalidade ativa que justapõe totalmente os mecanismos de mercado indexados pela concorrência à política governamental. Nas palavras de Foucault (2008, p. 165):

O governo deve acompanhar de ponta a ponta uma economia de mercado. A economia de mercado não subtrai algo ao governo. Ao contrário, ela indica, ela constitui o indexador geral sob o qual se deve colocar a regra que vai definir todas as ações governamentais. É necessário governar para o mercado, em vez de governar por causa do mercado.

Essa necessidade de uma atividade, de uma vigilância e de uma intervenção permanentes, remete não só ao caráter fortemente intervencionista desse neoliberalismo alemão, mas à natureza das intervenções por ele preconizadas, ao “como mexer”, ao estilo governamental a ser adotado. Essa breve revisão me permite, agora, passar diretamente

à

abordagem

da

questão

relativa

à

“política

de

sociedade”

(Gesellschaftspolitik) desenvolvida pelo neoliberalismo alemão, deixando de lado o como este concebeu a questão da gestão dos monopólios e a questão das ações conformes (ordenadoras e reguladores). Quando se fala em política social, numa economia de bem-estar social, três coisas, de imediato, são evocadas: a) que ela deve servir de contrapeso a processos econômicos selvagens que induzem efeitos de desigualdade, senão de destruição na sociedade; b) que ela deve ter como principais instrumentos a socialização de certos elementos de consumo e a transferência de elementos de renda, na forma de subvenções às famílias e; c) que ela deve ser feita numa relação diretamente proporcional ao crescimento econômico. Pois bem, o neoliberalismo alemão irá questionar esses três princípios orientadores. Em primeiro lugar, os ordoliberais argumentam que a política social não pode se definir como contrapeso, como mecanismo de compensação de efeitos nefastos 179

dos processos econômicos, e nem tampouco pode ter como objetivo equalizar, mesmo que relativamente, a repartição de acesso dos indivíduos aos bens de consumo. Por quê? Porque a desigualdade, que implica todo um jogo de diferenciações, está na base da concorrência econômica, isto é, ela é própria desse mecanismo formalizador da vida social. Em princípio, ela é a mesma para todos, ela envolve a todos, razão pela qual se deve deixá-la agir, no sentido de que é ela, com suas oscilações para mais e para menos, que tornará possível a regulação social. Nesse sentido, diz Foucault (2008, p. 196):

A única coisa que se pode fazer é tirar dos rendimentos mais altos uma parte que, de qualquer modo, seria consagrada ao consumo ou, digamos, ao sobreconsumo, e transferir essa parte de sobreconsumo para os que, seja por razões de desvantagem definitiva, seja por razões de vicissitudes compartilhadas, se acham num estado de subconsumo. E nada mais.

Em segundo lugar, a política social desejada pelo ordoliberalismo não pode se orientar pela socialização do consumo e da renda, mas sim por uma capitalização a mais generalizada possível, estendida a todos os indivíduos de todas as classes, de maneira a que eles próprios se encarreguem, na medida do possível, de garantir sua proteção contra os mais variados riscos, sejam eles individuais (de doença, de acidentes) ou coletivos (de danos materiais), fazendo uso, para tanto, dos instrumentos do seguro e da propriedade privada. A política social ordoliberal, assim, confunde-se com um processo de privatização, em que se vai pedir à economia, pedido este que se expressa mais como um pedido à sociedade, para que todos os seus indivíduos busquem ter rendimentos suficientemente elevados, que lhes permitam, seja individualmente, seja pela intermediação coletiva de sociedades de ajuda mútua, garantir-se contra os diversos riscos que envolvem suas existências. O curioso é que, assim definida, essa política social parece ser individualizada: ao invés de uma coletivização, tem-se uma individualização da política social. Em terceiro lugar, resta que, para os ordoliberais, a única política social verdadeiramente digna desse nome, não é outra senão o crescimento econômico. Como diz Foucault (2008, p. 198), é ele, o crescimento econômico, que, “por si só, deveria permitir que todos os indivíduos alcançassem um nível de renda que lhes possibilitasse os seguros individuais, o acesso à propriedade privada, a capitalização individual ou familiar, com as quais poderiam absorver os riscos”. É justamente esse o projeto de política social que deveria ser levado às ultimas conseqüências na “economia social de mercado”, mas ele não o foi, e isso em virtude de uma série de razões que não cabe aqui 180

situar. O que não se pode perder de vista, como pondera Foucault, é que mesmo assim ele repercutirá consideravelmente no anarcocapitalismo americano e em outros países alinhados ao neoliberalismo. Por outro lado, esses argumentos contra uma política de bem-estar social ancorada no New Deal e de influência tipicamente keynesiana, nos abrem novas portas ao entendimento desse tipo de governamentalidade ativa que caracteriza o neoliberalismo alemão, em sua aplicação sui generis à sociedade. Foucault insiste na idéia de que esse estilo neoliberal de governar, sem que deixe de ser um governo econômico, constitui mais propriamente um “governo de sociedade”, um governo de tipo sociológico, que faz da sociedade o alvo e o objetivo da prática governamental. Para que o mercado seja possível, para que seja possível torná-lo o regulador geral e, ao mesmo tempo, o princípio de racionalidade política que, mediante os mecanismos de concorrência, deverá informar a todas as práticas governamentais, estas têm de intervir em toda a sociedade, em sua trama e em sua espessura. Mas introduzir a regulação do mercado como princípio regulador geral da sociedade não significa, como no caso do liberalismo, instaurar uma sociedade mercantil, uma sociedade de consumo, ancorada na troca. Significa, isso sim, instaurar uma sociedade empresarial, ancorada nos mecanismos concorrenciais. Mudança na ancoragem e mudança no estatuto do homo oeconomicus, que já não é tanto o homem da troca, o consumidor, senão o homem da empresa e da produção. Não é sem razão, diz Foucault, que esse neoliberalismo alemão busca resgatar um pouco do que seria uma “ética social da empresa”, cuja história política, cultural e econômica deve muito aos trabalhos de Weber, Sombart e Schumpeter. Fazendo alusão a um texto de 1950, de autoria de W. Röpke, intitulado Orientação da política econômica alemã, Foucault (2008, p. 202) resume os principais objetivos relacionados a essa sociedade empresarial que os neoliberais alemães buscavam instaurar:

(...) primeiro, permitir a cada um, na medida do possível, o acesso à propriedade privada; segundo, redução dos gigantismos urbanos, substituição da política dos grandes subúrbios por uma política de cidades medianas, substituição da política e da economia dos grandes conjuntos por uma política e uma economia de casas individuais, incentivo às pequenas unidades de cultivo e criação no campo, desenvolvimento do que ele chama de indústrias não-proletárias, isto é, o artesanato e o pequeno comércio; terceiro, descentralização dos locais de moradia, de produção e de gestão, correção dos efeitos de especialização e de divisão do trabalho, reconstrução orgânica da sociedade a partir das comunidades naturais, das famílias e das vizinhanças; enfim, de um modo geral, organização, adequação e controle de todos os efeitos ambientais que podem ser produzidos, ou pela coabitação das pessoas, ou pelo desenvolvimento das empresas e dos centros de produção.

181

Esse novo programa de racionalização econômica da sociedade, apesar de lembrar uma espécie de retorno rousseauniano à natureza109, afirma na verdade a produção de uma trama social cuja unidade básica seria a forma “empresa”, e cuja lógica residiria na multiplicação e generalização dessa forma “empresa” por entre todo o corpo social.

Neoliberalismo norte-americano: teoria do Capital Humano e Empreendedorismo

Dentre as diferenças apontadas por Foucault entre o neoliberalismo europeu, sobretudo, o alemão, e o neoliberalismo norte-americano, creio que uma em particular merece especial destaque: enquanto que na Alemanha o liberalismo aparece como uma opção técnica produzida e formulada pelos governantes com o intuito de aplicá-la aos governados, na tradição dos EUA, diversamente, o liberalismo constitui algo mais do que isso, e também algo diferente disso, pois ele perfaz “toda uma maneira de ser e de pensar”, algo que é reivindicado globalmente, tanto na tradição do partido republicano quanto na do partido democrata; portanto, trata-se de uma relação, e não de uma alternativa a ser aplicada e testada. Nesse, sentido, não devemos perder de vista que essa maneira de ser e de pensar, essa espécie de relação constitutiva entre governantes e governados, permeou a vida da sociedade norte-americana, desde a crise de 1929 e do advento do New Deal, passando pelos pactos sociais pós-guerra e pelo crescimento da administração federal, crescimento este traduzido, por exemplo, no aumento de programas econômicos e sociais. Certamente sob influência de algumas idéias e teorias do ordoliberalismo alemão, para o que contribuiu a presença de Hayek nos EUA, os economistas da Escola de Chicago inovaram no modo como empreenderam suas análises econômicas, no modo como definiram os objetos dessas análises e na forma como conceberam o domínio desses objetos. Isso pode ser ilustrado exemplarmente pela teoria do Capital Humano, formulada entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1960, por Theodore Schultz, e desenvolvida por colaboradores como Becker e Stigler. Para início de conversa, a teoria do Capital Humano redefine a noção de trabalho e, em o fazendo, consegue reintroduzila originalmente no campo da análise econômica. Com efeito, para esses economistas, de Ricardo a Marx, a teoria econômica não teria conseguido conceber o trabalho senão

109

Em relação a isso, F. W. von Rustow falava em uma “política da vida” (Vitalpolitik).

182

em termos abstratos, o que a impossibilitava de dar conta de suas especificações, de suas modulações qualitativas e dos efeitos das mesmas. Nesse sentido, o que essa teoria econômica clássica tomava como objeto de suas análises eram processos, ou mecanismos de certos processos, processos de produção, de troca e de consumo, mecanismos e processos, enfim, que implicavam essa abstração, o trabalho. O que deve fazer, então, a análise econômica? Respondendo por Schultz, Becker e Stigler, Foucault (2008, p. 306) afirma que ela deve “consistir, não no estudo desses mecanismos, mas no estudo da natureza e das conseqüências do que chamam de opções substituíveis, isto é, o estudo e a análise da maneira como são alocados recursos raros para fins que são concorrentes, isto é, para fins que são alternativos, que não podem se superpor uns aos outros”.110 É o comportamento do indivíduo, na racionalidade que o anima, ou melhor, no que ele envolve uma espécie de cálculo (de relação custo-benefício), o qual deverá presidir sua escolha por alguns recursos, dentre outros considerados raros, tendo em vista a consecução de determinados fins alternativos, pois bem, é isso o que a análise tem de tentar esclarecer. Um trecho de Nascimento da biopolítica (Foucault, 2008, p. 307) esclarece bem não só o que constitui o problema fundamental para esse tipo de análise, mas, também, a maneira como ela concebe e como reintroduz a noção de trabalho na teorização econômica:

O problema fundamental, essencial, em todo caso primeiro, que se colocará a partir do momento em que se pretenderá fazer a análise do trabalho em termos econômicos será saber como quem trabalha utiliza os recursos de que dispõe. Ou seja, será necessário (...) situar-se do ponto de vista de quem trabalha; será preciso estudar o trabalho como conduta econômica, como conduta econômica praticada, aplicada, racionalizada, calculada por quem trabalha. O que é trabalhar, para quem trabalha, e a que sistema de opção, a que sistema de racionalidade essa atividade de trabalho obedece? E, com isso, se poderá ver, a partir dessa grade que projeta sobre a atividade de trabalho um princípio de racionalidade estratégica, em que e como as diferenças qualitativas de trabalho podem ter um efeito de tipo econômico. Situar-se, portanto, do ponto de vista do trabalhador e fazer, pela primeira vez, que o trabalhador seja na análise econômica não um objeto, o objeto de uma oferta e de uma procura na forma de força de trabalho, mas um sujeito econômico ativo.

Nessa perspectiva, outros elementos são redefinidos e re-equacionados. O trabalho é visto como algo necessário para que se tenha um salário, e este, por sua vez, pelo menos do ponto de vista do trabalhador, não equivale ao preço obtido pela venda 110

Na verdade, diz Foucault (2008, p. 306), esses economistas retomam uma formulação de Robbins que remonta a 1930-1932, e que consiste no seguinte: “A economia é a ciência do comportamento humano (...) como uma relação entre fins e meios raros que têm usos mutuamente excludentes”.

183

de sua força de trabalho, mas é aquilo por meio do que ele pode constituir para si uma renda; esta, por sua vez, é entendida como o produto ou rendimento de um capital, ao passo que este, o capital, inversamente, é concebido como tudo aquilo que pode vir a constituir, de um modo ou de outro, uma fonte de renda futura. O essencial, aqui, é a idéia de que o trabalho comporta um capital, ou, como diz Foucault (2008, p. 308), “uma aptidão, uma competência”, e que estas podem ser fontes de rendas futuras. Mas, é por isso mesmo que se impõe a seguinte questão (idem, p. 308): “Ora, qual é o capital de que o salário é uma renda?” Pois bem, ele é o que esses economistas chamam de capital humano, de capital intelectual. E esse tipo de capital é pensado como um conjunto de habilidades, capacidades e destrezas que fazem do indivíduo, nas palavras de Johnson (Apud Lopez-Ruiz, 2007, p. 195), “um meio de produção produzido, um item de equipamento de capital”, mas também, como diz Foucault, (2008, p. 309) “uma máquina entendida no sentido positivo, pois é uma máquina que vai produzir fluxos de renda.” Na verdade, o mais apropriado seria pensar em termos de um complexo “máquina-fluxo”, no sentido de que o que está em questão é, de um lado, a produção de uma máquina-competência que não se encontra dada de antemão, já pronta, à disposição em lojas de departamentos, e cuja durabilidade e uso são limitados no tempo; de outro, uma máquina-competência que irá ser remunerada, ao longo do tempo, por uma série de salários, os quais tenderão a diminuir na medida em que ela for se mostrando obsoleta. Para Foucault, todos os elementos acima evocados fazem com que os defensores da teoria do Capital Humano concebam o indivíduo como uma empresa, como funcionando nas mesmas bases em que funciona uma empresa, só que, daí por diante, essa empresa se confunde com o próprio indivíduo, que se torna, por isso mesmo, um empresário de si. Estamos em face de uma nova atualização do homo oeconomicus, que já não o compreende mais como parceiro da troca, senão, como diz Foucault (2008, p. 311), como “empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda”. Quanto a esse ponto, duas observações devem ser feitas. Em primeiro lugar, diferentemente do neoliberalismo alemão, no neoliberalismo norte-americano, embora observemos o mesmo movimento de constituir uma sociedade tomando por base o modelo da empresa, essa tendência é radicalizada, pois os próprios indivíduos são constituídos como tal. Ou seja, a empresa já não está “fora”, não é algo (disposto estrategicamente em rede) puramente exterior, a que os indivíduos devem apenas 184

acionar, tomar por referência e a ela se ajustarem; não, agora, os próprios indivíduos vão ser produzidos (objetivados e subjetivados) como micro-empresas. Em segundo lugar, tendo em vista a indignação e as denúncias feitas tanto pelas discursividades que se dizem críticas, progressistas, de esquerda, etc., no âmbito das ciências humanas e sociais, quanto no âmbito dos novos movimentos sociais, relativas ao que seria uma alienação e uma exploração do homem, promovidas pelo consumismo, pela sociedade de consumo, pela sociedade do espetáculo, pois bem, tal indignação e tais denúncias revelam-se equivocadas, fora de lugar e não acertam o alvo, pois elas não compreendem que, para a governamentalidade neoliberal norte-americana, o crucial não está ancorado na troca e, portanto, no homem da troca, no homem que, pela troca e pelo consumo, é convertido em mercadoria; em vez disso, o fator decisivo está numa produção condicionada pela concorrência, isto é, está em ver no consumo uma atividade eminentemente empresarial, uma atividade empreendedora, e que é regulada, sobretudo, pela concorrência. Eis um deslocamento fundamental: priorizar o investimento e a concorrência, em detrimento da troca e do consumo. De todo modo, esses neoliberais da Escola de Chicago vão se interessar sobre questões concernentes à composição, acumulação e ao uso do capital humano. Vão pensar sobre os fatores que o compõem, se são hereditários, se são adquiridos (neste caso, vão se interessar, sobretudo, pelos componentes adquiridos através da educação familiar, da educação formal, da educação técnico-profissional). Vão pensar, além disso, em como se dão os investimentos em capital humano, e que investimentos cabem aos patrões, ao Estado e ao próprio indivíduo trabalhador. Por outro lado, problemas políticos, tais como os relacionados à utilização da engenharia genética, às migrações numa sociedade globalizada, bem como à inovação nos campos dos negócios, da ciência e da tecnologia, vão ser pensados em referência à constituição, ao crescimento e à melhoria do capital humano. Ora, dentre essas questões e esses problemas, como afirma Foucault (2008, p. 315), os que envolvem a educação assumem uma centralidade ímpar:

Claro, é muito mais do lado do adquirido, ou seja, da constituição mais ou menos voluntária de capital humano no curso da vida dos indivíduos, que se colocam todos os problemas e que novos tipos de análise são apresentados pelos neoliberais. Formar capital humano, formar portanto essas espécies de competência-máquina que vão produzir renda, ou melhor, que vão ser remuneradas por renda, quer dizer o quê? Quer dizer, é claro, fazer o que se chama de investimentos educacionais.

185

Temos, assim, uma via privilegiada para pensar como e porque a educação é estrategicamente agenciada à governamentalidade neoliberal e articula-se à biopolítica. Todavia, para que possamos explorá-la de forma produtiva, temos não só de pensá-la em termos ampliados, desterritorializada em face da escola, mas também tomando esse seu processo de desterritorialização como se dando em estreita solidariedade a outro processo que lhe é complementar, a saber: aquele mediante o qual um ethos empresarial fortemente influenciado por princípios, normas e valores oriundos das teorias econômicas e da dinâmica das empresas, migra do domínio das corporações, das teorias e práticas de gestão (management) para toda a sociedade, difundindo-se amplamente na mesma. Ora, parece-me que essa dupla articulação, que, aliás, envolve toda uma série de elementos importantes, característicos da governamentalidade neoliberal norteamericana, aparece exemplarmente no fenômeno do empreendedorismo. Com efeito, o culto ao empreendedorismo está por toda parte, propagando-se de forma surpreendente! Ele está em livros, capas de revistas, artigos de jornais, reportagens de TV, sítios da web, cartazes de eventos; na programação de cursos, seminários e congressos, mas também em escolas públicas e privadas; em organizações empresariais e comerciais voltadas à qualificação e preparação para o mundo do trabalho; nas ONGs que assistem aos jovens da periferia das grandes cidades, em programas e/ou projetos governamentais sociais ou voltados para a área cultural; nas universidades, nos programas de partidos políticos, na agenda de entidades multilaterais e de entidades comprometidas com o desenvolvimento sustentável. Além disso, ele constitui um dos principais fatores enaltecidos pelas teorias de gestão, pelas grandes empresas e corporações e, portanto, por essa curiosa entidade: o mercado. Ao que parece, ele se apresenta como algo que transcende as ideologias, angariando simpatias e defensores ardorosos tanto à esquerda como à direita. Em todo caso, por marcar sua presença no cenário contemporâneo como estando estreitamente associado à inovação, à eficácia, à eficiência à competitividade e ao desenvolvimento sustentável, ele, poder-se-ia dizer, parece constituir-se não só em unanimidade, mas como a panacéia para um sem número de problemas enfrentados pelos países ditos emergentes, bem como pelos países ditos subdesenvolvidos.111 Não 111

Acúrcio e Andrade (2005, p. 12 - grifos meus) chegam ao ponto de dizer o seguinte: “Em momentos históricos cuja organização social é marcada por problemas como o desemprego, a má distribuição de renda, a desigualdade de oportunidades e a violência, investir no empreendedorismo parece ser a melhor solução. Mais que um programa social, isso significa uma visão de mundo e de vida, um compromisso político de todo cidadão com a nação e o planeta. As instituições educacionais podem

186

bastasse isso, sua presença entre nós é amplificada pela propaganda, pelo marketing e pelo branding, razão pela qual ele parece inscrever-se cada vez mais como elemento ordinário na formação em geral e na educação formal de nossas crianças e de nossos jovens. Não é sem razão o fato ele de vir ensejando a criação e formalização de novas pedagogias, as quais, em maior ou menor medida, tendem a acentuar a importância da “questão das competências”.112 Nesse sentido, ele vem sendo investido de um poder de conformar nossas maneiras de agir, de sentir e de pensar, munindo-nos de novos princípios e valores, afetando nossas condutas, alterando nossas relações de sociabilidade; enfim, transformando-se num dispositivo crucial das novas políticas e processos de subjetivação em curso nas sociedades contemporâneas. Entretanto, tendo em vista tudo o que foi dito acima, talvez seja mais apropriado falar aqui da instituição de uma cultura do empreendedorismo, uma cultura que, desde meados da década de 1970, vem sendo cada vez mais disseminada, e que tem a peculiaridade de associar-se facilmente a todas as esferas e níveis de ação de nossa vida cotidiana. Com o intuito de caracterizar o que vem a ser o empreendedorismo e a cultura que o propaga, convém, antes, que recuemos no tempo para dirimir alguns possíveis mal-entendidos.113 Houve uma época em que a figura destemida, aventureira e sonhadora do empresário capitalista, que personificava, conforme López-Ruiz (2007, pp. 79-80), “a força do novo, do extraordinário na vida econômica, levando adiante novas composições, inovando”, era considerada, senão como uma das principais causas do desenvolvimento econômico capitalista, pelo menos como parte fundamental do processo que o levou ao seu apogeu.114 Com efeito, o empresário capitalista da era industrial, movido pelo ímpeto de ganhar dinheiro, de sempre obter mais e mais lucros, constituiu-se no sujeito econômico por excelência, pois ele não só alavancava como também dirigia e organizava o desenvolvimento econômico. López-Ruiz (2007, p. 85) resume a função desse empreendedor clássico nos seguintes termos: “unificar o capital e

colaborar na solução dessas dificuldades socioeconômicas, preparando pessoas para empreender, gerar empregos, criar riquezas para o país. Precisamos de um povo participativo, sensível e produtivo, capaz de utilizar suas potencialidades e exercer suas atribuições com plenitude profissional, com atitude ética e empreendedora, para assumir os riscos de sugerir caminhos que beneficiem a todos.” 112 Dentre elas, merece destaque a “Pedagogia Empreendedora” de Fernando Dolabela, um dos maiores e mais conhecidos apologistas do empreendedorismo no Brasil. 113 A maior parte de minhas considerações, quanto a esse ponto, tomam por referência o competente apanhado e exame que Lopez-Ruiz (2007) faz de algumas idéias de Sombart. 114 Esse período coincidiria com o processo no decurso do qual o capitalismo industrial teria chagado ao seu ápice, e que, segundo Sombart (1913), se estenderia da segunda metade do século XVIII até a deflagração da I Grande Guerra Mundial, em 1914.

187

o trabalho, determinar a direção e o volume da produção e estabelecer a relação entre produção e consumo. Isto é, tomar nas suas mãos o controle do processo econômico”. Essa figura do empresário capitalista, desse empreendedor clássico, arraigou-se profundamente no senso comum, sobretudo por efeito dos meios de comunicação, como signo do atrevimento, da coragem, da tenacidade, do sucesso, do enriquecimento, da fortuna e do glamour, razão pela qual passou a ser tão venerada pelo grande público. Mas essa veneração também se deve ao fato de o empreendedor clássico constituir como que um caso à parte; por sua riqueza, por sua ganância, por sua obsessão pelo endinheiramento e pelo lucro, e provavelmente por alguns atributos singulares (por seu capital humano), ele era como que uma exceção em face da multiplicidade de homens reais que serviam de “substrato do sujeito econômico capitalista”.115 Em suma, os antigos empreendedores eram como que uma minoria, um caso particular, uma raridade. Finalmente, vale ressaltar que essa minoria atuava circunscrita a um determinado espaço da sociedade, o espaço econômico da fábrica, da empresa privada, em suas relações com instâncias e mecanismos jurídicos e financeiros, perfazendo e habitando algo como o “mundo dos negócios”. Do conflito de 1914, passando pela Revolução Soviética, pela crise de 1929, pelo advento do nazi-fascismo, pela instituição do Walfare State, até o término da II Grande Guerra Mundial, porém, temos um período turbulento, instável, em que não só o liberalismo é posto em questão, como o capitalismo experimenta uma série de mudanças. Uma delas consiste no fato de que aquela centralidade antes encarnada pelo empresário capitalista e, correlativamente, por sua empresa privada e/ou singular, sofre um deslocamento, passando então a fixar-se na empresa de tipo social e, logo em seguida, na empresa de tipo sociedade anônima. Outra mudança consiste no fato de que nestas últimas vai haver uma dissociação entre proprietários-empresários, ou seja, que detém o capital, e empregados-dirigentes, isto é, especialistas que exercem funções técnicas e/ou administrativas – o que já deixa antever uma terceira mudança, relativa à especialização de funções. Uma quarta mudança, por sua vez, deve-se ao que Sombart descreveu como “desconcretização progressiva” da atividade do empresariado, dando ensejo ao aparecimento de três diferentes tipos de empresário: o técnico, o comerciante

115

O “homem real” constitui uma formulação de Sombart (1946), e diz respeito, em princípio, a todos os indivíduos virtualmente capazes de fazer uso de suas forças (esforços, propósitos, aspirações, paixões etc.), forças essas exteriores às máquinas e técnicas, para justamente realizarem essas máquinas e técnicas. É nesse sentido que o homem real constitui o “substrato do sujeito econômico capitalista”.

188

e o financeiro. Uma quinta mudança, por fim, refere-se ao que Sombart (apud, LopezRuiz, 2007, p. 87), em 1913, designava por “democratização do corpo de dirigentes”:

Antes (...) o próprio empresário deveria ser rico, ou ser filho de um homem rico, ou se relacionar com pessoas que o foram. Devia, portanto, acontecer com muita freqüência que um homem tivesse capacidades de empresário e nenhum dinheiro, assim como que o tivesse mas carecesse de toda capacidade de empresário e de todo desejo de sê-lo. Hoje, o homem rico pode empregar facilmente seu dinheiro como capital sem ser empresário ele mesmo; o homem sem meios pode facilmente buscar dinheiro. Os caminhos para pôr o empresário sem meios em posse do capital necessário são, como é conhecido, as sociedades por ações e o sistema de crédito.

Para Lopez-Ruiz (2007, p. 88), aos poucos, a empresa tornou-se a via privilegiada de abertura de possibilidades para que os indivíduos pudessem ascender socialmente com base em seus próprios méritos, e isso foi possível “a partir do desenvolvimento de mercado financeiro”. De minha parte, sem que tenha a pretensão de fazer uma história da empresa e do empreendedorismo, o que quero salientar é que todas essas transformações, particularmente essa, referente à “democratização do corpo de dirigentes”, pois bem, todas elas se farão presentes, em maior ou menor medida, no projeto ordoliberal de instaurar uma sociedade empresarial formalizada por mecanismos de concorrência, projeto esse que vai ser depois radicalizado com o neoliberalismo norte-americano, através da teoria de Capital Humano, e através de um de seus principais desdobramentos: o culto ao empreendedorismo e a disseminação de uma cultura do empreendedorismo.

Cultura do Empreendedorismo, Concorrência e Educação

Tal como se desenvolveu de meados dos anos 1970 aos nossos dias, o empreendedorismo contemporâneo pode ser entendido em diversas acepções, por exemplo: em primeiro lugar, as que aludem à abertura de pequenas empresas e/ou negócios inovadores, ou de forma inovadora; em segundo lugar, as que aludem à tendência de que os países que postulam tornarem-se competitivos numa economia globalizada desenvolvam projetos e/ou programas educacionais, científico-tecnológicos e culturais voltados à capacitação e instrumentalização técnico-profissional dos indivíduos-trabalhadores, tendo em vista o combate ao desemprego, o desenvolvimento de condições de empregabilidade, o desenvolvimento sustentável e, enfim, o aumento do capital social da população como um todo; em terceiro, as que, de forma mais ampla 189

e podendo-se virtualmente aplicarem-se a tudo, remetem a uma “visão de mundo”, a um modo de “ser” e “estar” no mundo, em suma, a um estilo de vida a ser adotado e cultivado, e que é modulado pelas capacidades de sonhar, de transformar idéias em realidade, de identificar oportunidades/investimentos, de competir, de definir seu próprio destino, de inovar, mas também pela ousadia em correr riscos, pela eficácia, pela eficiência, pela flexibilidade, pelo “ser pró-ativo” etc. Ora é justamente esse último sentido de empreendedorismo o que mais me parece importante, pois ele sugere, antes de tudo, que tipo de capital deve ser configurado nos indivíduos, sobretudo, através da educação: o capital humano. Em segundo lugar, porque ele aponta quais os componentes de capital que, por seu valor de mercado, devem ser objeto de criteriosos investimentos por parte dos indivíduos. Em terceiro lugar, porque ele deixa ver que tais componentes (todo um conjunto de competências, habilidades e destrezas) são justamente aqueles provindos originariamente de um ethos empresarial que enaltece princípios e valores que são os das grandes corporações comerciais e dos conglomerados financeiros. Em quarto, porque, como aponta LopezRuiz (2007) ele inscreve a figura do executivo das empresas transnacionais como o modelo, por excelência, do indivíduo que soube como investir e acumular capital humano, tornando-se um vencedor (winner), uma pessoa bem-sucedida, realizada, bem remunerada etc., modelo este em que todos devem se espelhar e que todos devem seguir116 Em quinto lugar, porque ele dá a entender que é a própria a vida, a vida de cada indivíduo, o que se deve, doravante, conceber-se como um negócio, cuja gestão, a administração, deve ser similar à que se realiza em qualquer empresa; em suma, questões existenciais tornam-se questões empresariais, o que significa que o cuidado de si deve ser tomado como uma questão de investimento em capital humano e, portanto, de empreendedorismo. Em sexto lugar, por fim, porque ele deixa implícito que, a não ser que façam os devidos investimentos nesses componentes de capital humano, e a não ser que se orientem por essa “visão de mundo”, os indivíduos não terão como concorrer uns com os outros, não terão como competir entre si, tendo em vista obterem fluxos de renda e, em decorrência, seguridade, acesso a bens e serviços, assim como condições para novos investimentos. Mas, concorrer é crucial!

116

Um entusiasta da gestão e do empreendedorismo, como Davenport (2001), afirma que essa figura do executivo-empreendedor há muito deixou de ser visto como um passivo na contabilidade das grandes empresas e corporações, que ele já não é mais nem mesmo um ativo, senão um investidor, ou seja, uma espécie de sócio que investe seu capital humano na empresa em que, ou para a qual trabalha.

190

Com efeito, um dos traços mais incisivos da cultura do empreendedorismo em nossa contemporaneidade é o modo como ela induz os indivíduos a estabelecerem entre si relações marcadas pela concorrência, pela competitividade. Cada vez mais, aqui e ali, em todo lugar, tudo se passa como se o outro personificasse algo que me assombra, alguém a quem devo temer, um risco potencial à minha vida, haja vista que, pelo menos virtualmente, ele quer as mesmas coisas que eu, que irá disputar comigo por elas, e que, para tanto, não deixará de lançar mão de todos os investimentos e recursos possíveis para obtê-las e para ter um lugar ao sol. Numa palavra, o outro constitui um obstáculo a ser batido. Mas, há mais! Aqui, o que governa a mim e ao outro, o que governa e modula nossa relação, nos dispõe de tal modo que, nessa concorrência, nessa competição desenfreada e generalizada, nos sentimos sozinhos e fragilizados, como se cada um não pudesse contar com ninguém a não ser consigo mesmo. Um verdadeiro empreendedor, diz Dolabela (1999), aprende sozinho. Cineastas como Costa-Gavras, em O corte (Le couperet – 2005) e Marcelo Piñeyro, em O que você faria? (El método – 2005), fazem, com um humor corrosivo, a crônica dessa bizarra forma de sociabilidade a que estamos cada vez mais sendo submetidos. Em que pese toda a verborragia, insidiosa e apelativa, que encontramos na literatura do empreendedorismo, relativa à importância da sensibilidade ao outro (às suas dificuldades, sofrimentos e mazelas), à importância da cooperação, à necessidade de se ter em vista o bem comum e a elevação do “nosso” capital social, a verdade é que nossos encontros e agenciamentos com o outro tendem a estar sempre na dependência de cálculos (racionais ou irracionais, pouco importa) da relação custo-benefício que os mesmos implicam; a verdade é que somos induzidos a tomar o outro, quando conveniente, como investimento estratégico, em benefício de nós mesmos. O empreendedorismo que hoje conhecemos constitui, talvez, aquilo a que Foucault chamava de dispositivo, um dispositivo e/ou diagrama de governamento, estreitamente associado ao neoliberalismo norte-americano, o qual faz um uso estratégico da educação (familiar, escolarizada, técnico-profissional, universitária etc.), e da pedagogização das novas tecnologias e práticas de gestão, vistas como fontes fundamentais de investimentos em capital humano, para radicalizar o processo de empresariamento da sociedade, tomando o mercado como princípio de inteligibilidade e a concorrência como princípio de formalização e como ancoragem mestra. Por outro lado, a interface entre empreendedorismo, concorrência e educação também aponta para questões relacionadas à biopolítica, pois, como dizia Theodore Schultz (1973, p. 9): 191

“Uma classe particular de capital humano, consistente do „capital configurado na criança‟, pode ser a chave de uma teoria econômica da população”. Referências DAVENPORT, Thomas. O. Capital humano: o que é e por que as pessoas investem nele. São Paulo: Nobel, 2001; DOLABELA. Fernando. Oficina do empreendedor: a metodologia de ensino que ajuda a transformar conhecimento em riqueza. São Paulo: Ed. de Cultura, 1999. DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora. São Paulo: Ed. de Cultura, 2003. FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Curso dado no Collège de France (1978 - 1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008. LÓPEZ-RUIZ, Oswaldo. Os executivos das transnacionais e o espírito do capitalismo: capital humano e empreendedorismo como valores sociais. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007. SCHULTZ, Theodore. Capital humano: investimentos em educação e pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

192

Educação Profissional: A Normalização Biopolítica da Subjetividade do Trabalhador Samuel Brasileiro Filho

A Subjetividade Produtiva Uma abordagem teórica do conceito de subjetividade, mesmo delimitada a uma tipologia específica de subjetividade produtiva, não é uma temática simples e seu tratamento conceitual apresenta certa complexidade em função da natureza polissêmica e interdisciplinar de tal conceito, que se constitui numa das principais questões da tradição filosófica ao investigar sobre a verdade do ser do homem. Tal abordagem, conforme se propõe, neste breve artigo, aponta para o enfrentamento da seguinte questão: como funciona ou em que consiste o modo de ser do homem que vive do trabalho e como esta subjetivação produtiva tem sido conformada ao longo da história? A questão da Subjetividade é tema central na tradição filosófica e a sua abordagem apresenta uma dificuldade adicional que é relacionada com a diversidade e amplitude dos referenciais teóricos adotados em seu tratamento ao longo da evolução histórica do pensamento filosófico. Considerando-se a delimitação da temática proposta, onde se pretende realizar uma investigação introdutória da relação entre a educação profissional e os processos de produção da subjetividade do trabalhador, no contexto de transição da sociedade industrial para a pós-industrial, torna imperativo analisar como a relação entre Trabalho e Educação tem sido moldada pelas conformações subjetivas resultantes do embate entre as concepções de organização dos sistemas produtivos e dos sistemas educativos. Segundo Gondin e Rodrigues (2009) a investigação da subjetividade é a temática central da ontologia, mas a ontologia, através da história do pensamento, não teve um significado linear; sofreu diversas mudanças quanto à forma de definir o seu objeto: o ser. Assim sendo, a cada etapa histórica podem-se constatar cortes e rupturas isto significando que o conceito de ser não é unidimensional, por causa disto é fundamental



Doutorando em Educação FACED/UFC. Professor do IFCE. Mestre em Computação Aplicada (UECE), Especialista em Gestão da Educação Tecnológica (Oklahoma State University), Membro do Núcleo de Pesquisa NUPEP do IFCE e Conselheiro do Conselho Estadual de Educação. [email protected]

193

conhecer as mais variadas etapas históricas do saber ontológico com suas respectivas definições do ser. Tal tratamento histórico da subjetividade foge do escopo do presente trabalho, mas ressalta-se a sua importância para a investigação dos processos de formação das condições de existência da subjetividade. Na investigação da temática proposta, delimitada na abordagem dos processos de produção da subjetividade do trabalhador e suas relações com a educação profissional entre a transição da sociedade industrial e a pós-industrial, também será delimitada pela adoção de categorias analíticas da relação trabalho e educação, fundamentadas nos pensamentos Karl Marx e Michel Foucault, em função da referencial contribuição que estes autores deram para a investigação da ontologia do ser que vive do trabalho. Neste sentido, pretende-se contribuir modestamente com as discussões e debates desta atual e relevante temática do I Colóquio de Filosofia da Educação: Subjetividade e Educação, realizado pela Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará, no período de 13 a 15 de outubro de 2010. As Condições de Existência da Subjetividade Produtiva em Marx e Foucault. A conformação da subjetividade é um processo ontológico, portanto multidimensional, social e historicamente condicionado. Segundo Saviane (2007) a análise dos fundamentos ontológicos e históricos do trabalho e da educação aponta para uma análise integrada destas categorias, pois o ser do homem, e, portanto o ser do trabalho, é tanto histórico quanto ontológico. O mesmo vínculo ontológico-histórico se dá entre a relação trabalho-educação e os processos de formação da subjetividade produtiva com a evolução do conhecimento humano, materializada nas tecnologias produtivas, nos modelos gerenciais do trabalho e nas relações de poder que têm implicação na subjetivação e objetivação dos sujeitos do trabalho, as quais são ao mesmo tempo resultantes de sociabilidades produtivas e de práticas educativas. Elementos da Subjetividade Produtiva no Pensamento de Karl Max e suas Implicações para Investigação da Sociedade Industrial Retomando-se a pergunta de partida do presente trabalho, assim formulada: como funciona ou em que consiste o modo de ser do homem que vive do trabalho e como esta subjetivação produtiva tem sido conformada ao longo da história? 194

Para

Saviani(2007) o homem não nasce homem, ele forma-se homem, ele precisa aprender a ser homem, precisa aprender a produzir a própria existência. Assim a origem do ser homem, coincide com a origem do trabalho e da educação, enquanto condições essência de existência da subjetividade. Na Obra de Marx e Engels (1974) a essência do ser homem e o diferencial da existência animal é que este necessita produzir seus meios de vida, produzindo indiretamente a sua própria vida material. Tal afirmação estabelece a primazia da categoria trabalho como fundante da subjetividade humana. Assim a formação do ser que trabalha é um feito humano, numa espécie de recursividade subjetiva, que se desenvolve, se aprofunda e evolui ao longo do tempo em um processo ontológico e histórico cada vez mais complexo. Na fundamentação do pensamento marxista a formação da subjetividade produtiva na sociedade capitalista é diretamente relacionada com os modos de reprodução das relações de produção, o que, de certa maneira, sugere um caráter decisivo da educação na reprodução das relações de produção capitalista, cuja separação entre educar e trabalhar, entre educar para pensar e educar para trabalhar, consolida um processo de produção de subjetividade que caracteriza pela aculturação da classe que vive do trabalho e uma crescente perda de significação do trabalho. Segundo Correa e Teixeira (2010) o pensamento de Marx sobre a subjetividade tem sido alvo de críticas com ênfase para sua fundamentação da noção de consciência a partir de conceitos de infra-estrutura, superestrutura, base e ideologia, que conduzem a uma interpretação mecanicista da relação entre subjetividade e o contexto sócioeconômico. Tais críticas tais críticas são questionadas, segundo Berino (1994), com base na tese de que Marx desenvolveu em sua teoria uma ontologia do ser social ampliando sua análise da questão da subjetividade para além dos conceitos de base e de ideologia, por meio de uma complexa arquitetura categorial. Para o citado pesquisador a divisão social do trabalho resultou na expropriação dos trabalhadores dos produtos de seu trabalho, o que é tratado por Marx fundamentalmente por meio da ótica da inversão, por meio dos conceitos de alienação, ideologia e fetiche da mercadoria. Sob esta visão, a subjetividade produtiva se constituiria numa dinâmica em que, simultaneamente atividade e passividade, se articulam na conformação do ser do trabalho. Corrêa e Teixeira (2010) afirmam que na concepção marxista a dinâmica de forças que se estabelecem na divisão de classes no sistema capitalista, apenas a classe trabalhadora tem condições de promover mudanças significativas nas relações sociais de 195

forma a superar o sistema de produção capitalista e os processos de subjetivação alienantes. Tal afirmação embute uma potencialidade subjetiva revolucionária na classe que vive do trabalho. Sob o esteio da modernidade, surge a ideologia liberal a qual, segundo Sanson (2009), possibilita liberar a iniciativa privada, o gosto pelo risco e pelo esforço, o sentido de competição, os quais assentados nos preceitos da modernidade possibilitam a conformação do sujeito moderno, na perspectiva de um indivíduo capaz de fazer valer o seu julgamento frente aos fatos da realidade objetiva, ganhando relevo, como afirma Tourrine (1999), de um status de sujeito como a vontade de um indivíduo de agir e de ser reconhecido como ator. De acordo com Sanson (2009) com a revolução industrial e seu novo modo de produção capitalista, o sujeito do trabalho perde o controle sobre o seu trabalho, o qual passa ser fragmentado e desvinculado de um saber centrado no trabalhador, fazendo com que a força produtiva que este desenvolve como sua própria subjetivação passe a ser força produtiva de reprodução do capital, representando a constituição de uma nova subjetivação produtiva assujeitada. Segundo Marx e Engels (1974) no modo de produção capitalista que se instaura na sociedade industrial a produção de um objeto, de uma mercadoria, é estranha ao seu produtor, introduzindo a análise categorial do trabalho alienado e da fetchização da mercadoria. Sob tal abordagem, observa Sanson (2009) que há uma inversão da relação entre o sujeito do trabalho e seu objeto. Há uma objetivação do sujeito do trabalho e uma subjetivação do objeto, onde o sujeito se torna objeto e o objeto ganha vida. No pensamento marxista a subjetivação produtiva, com advento da sociedade industrial, se manifesta como uma subjetividade coisificada. Sanson (2009), abordando a subjetivação em Marx, afirma que, apesar da alienação, do fetichismo, do estranhamento, sujeição, até mesmo corporal, que se processa no trabalho alienado, essas mesmas relações de produção produzem reações subjetivas à exploração, numa espécie de subjetividade de resistência. Tal subjetividade revolucionária emerge das relações de contradição entre o capital e o trabalho e da tomada de consciência da classe trabalhadora como classe explorada geradora da maisvalia apropriada pelo capital. Com tal visão pode-se afirmar que a organização do trabalho na sociedade industrial, modelou a subjetividade produtiva, gerando a classe operária. A modernidade, a ideologia liberal e modo de produção industrial, fortalecido pela 196

incorporação das máquinas e das técnicas, conformaram o homo faber como um sujeito laboral que só sabe viver de seu trabalho, e que está programado para ser feliz. A continuidade da complexificação do trabalho e de constituição da classe operária, aliado ao desenvolvimento de uma nova inteligibilidade produtiva inspirada na inteligência industrial de Ford, na inteligência gerencial de Taylor e Fayol e na inteligência econômica de Keynes, dentre outras significantes contribuições, estabeleceu-se um novo momento histórico da sociedade industrial, o qual foi denominado de segunda revolução industrial, marcado pelo surgimento da grande indústria e do processo de produção em massa, denominado de modelo de produção Taylorista – Fordista, ou simplesmente fordismo. Para Sanson (2009) o modelo da organização do trabalho que servia de base à economia industrial fordista tornou-se insuficiente, ou seja, a redução do trabalho complexo ao trabalho simples, a separação da execução manual da concepção intelectual, a industrialização e especialização da atividade laboral, não mais são capazes de responderem aos novos padrões competitivos e às exigências no novo paradigma produtivo implantado pela reestruturação produtiva, pela incorporação das tecnologias de comunicação e informação e pela emergência da hegemonia qualitativa do trabalho imaterial. Tal mudança aponta a transição da sociedade industrial para a sociedade pós-industrial, gerando novas condições de existência da subjetividade produtiva. Tais condicionantes da formação da subjetividade produtiva, na era pós-industrial com a emergência da hegemonia qualitativa do trabalho imaterial enquanto elemento inovador de valorização do capital impõe restrições à aplicação das categorias marxistas para a análise das condições de objetivação e subjetivação dos trabalhadores, apontando para a necessidade de exploração de uma nova arquitetura categorial complementar à análise marxista que seja capaz de dar conta deste novo contexto social e histórico das condições de existência da subjetividade produtiva. As Bases da Investigação da Subjetividade Produtiva no Pensamento de Michel Foucault. Segundo Corrêa e Teixeira (2010) na obra de Foucault toda experiência humana vivida no interior da sociedade capitalista seria perpassada por relações de poder. Daí porque o exercício de poder não seria privilégio apenas dos grupos dominantes e nem das instituições, existindo uma reversibilidade e reciprocidade entre relações de poder e 197

as lutas históricas e sociais, de modo que não haveria poder sem a existência de mecanismos de resistência e liberdade. É neste contexto que se estabelece a ontologia do sujeito, como principal tema investigativo de Foucault, na concepção de que é na imanência da história, na dobra da realidade, que o sujeito foucaultiano se constitui como produto e resistência às técnicas de dominação. No início de organização da sociedade capitalista, entre o século XVII e XVIII, como afirma Foucault (2000), emergiram as técnicas de poder que foram essencialmente centradas no corpo, no corpo individual, tendo sido assim descritas por Foucault: Eram todos aqueles procedimentos pelos quais se assegurava a distribuição espacial dos corpos individuais (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em vigilância) e a organização, em torno destes corpos individuais, de todo um campo de visibilidade. Eram também as técnicas, pelas quais se incumbiam desses corpos, tentavam aumentar-lhes a força útil através do exercício, do treinamento, etc. Eram igualmente técnicas de racionalização e de economia estrita de um poder que devia se exercer, da maneira menos onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios: toda essa tecnologia, que podemos chamar de tecnologia disciplinar do trabalho. (FOUCAULT, 2000, p.288)

Pode-se afirmar que o trabalho e a educação sofreram forte influência destas tecnologias disciplinares, as quais possibilitaram a entrada do poder disciplinar no jogo político e o nascimento do Estado moderno. Tanto as esferas do trabalho, quanto a da educação, passaram ao status de espaços de direitos, porém regulados numa estrutura disciplinar, num Estado que é ao mesmo tempo, individualizante e totalitário. Nesta ambiência de tecnologia de vigilância, a educação ganha uma posição de regulação social, a qual associada às tecnologias disciplinares do trabalho trata de forjar corpos dóceis e as condições básicas para o estabelecimento de uma divisão social do trabalho. Segundo Foucault (2000), durante a segunda metade do século XVIII, vai aparecer algo novo, que é outra tecnologia, uma nova tecnologia de poder que não exclui a tecnologia disciplinar, mas que a integra e modifica que não mais se aplica meramente ao corpo, mas à vida, ao homem-corpo, ao homem-espécie. Foucault denomina esta nova técnica de poder de biopolítica da espécie humana, fundamentada na articulação entre as tecnologias disciplinares do corpo com as novas tecnologias de controle da população. Para Foucault (2000), o nascimento da biopolítica trata-se de Um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e de óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc. São esses processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que, justamente na

198

segunda metade do século XVIII, juntamente com uma porção de problemas econômicos e políticos, constituíram os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa biopolítica. (FOUCAULT, 2000, p.290)

Para Foucault (2000) a biopolítica surge como tecnologia de poder que tem como foco um novo personagem no jogo político: a população, tratada como um problema político e científico. As tecnologias de controle da população, com seus cálculos estatísticos e seus mecanismos de medição e de previdência em torno desse aleatório de populações vivas, vai atuar diferentemente das tecnologias disciplinares do corpo mediante mecanismos globais, de ações destinadas à obtenção de estados globais de equilíbrio, de regularidade, em resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulação. O desenvolvimento da sociedade capitalista, acompanhada da explosão populacional e da industrialização - pois o poder soberano não conseguia mais dar conta desta problemática complexa - a qual promoveu profundas mudanças em várias esferas da vida humana. Na esfera da educação, assim como em outras esferas da vigilância e do treinamento, a biopolítica promoveu a sua primeira acomodação, a qual orientou, já no século XVII, a organização da escola como espaço de socialização e aprendizagem. A educação além de manter funções de regulação social, assume, no contexto do liberalismo, as funções de formação do cidadão produtivo, capaz de operar os processos produtivos cada vez mais incorporadores de maquinarias e novas tecnologias produtivas. Disso resulta segundo Veiga-Neto (2007, p.69), a ampliação do papel conferido à escola como instituição de regulação social, de modo que o deslocamento neoliberal a que hoje se assiste – da educação como direito para a educação como mercadoria – terá implicações que vão além do que as análises marxistas costumam apontar. A educação, sob a governamentalidade biopolítica, assume papel fundamental no desenvolvimento das forças produtivas da sociedade capitalista, na medida em que se tornam mais complexos os processos de produção, pela crescente incorporação de inovações tecnológicas e modernização das técnicas de gestão do trabalho, a ponto de fundamentar uma das bases da governamentalidade neoliberal na forma da teoria do capital humano. A esfera do trabalho também sofre forte influência da nova tecnologia de poder que emerge com a biopolítica. O trabalho considerado na sua historicidade e na sua 199

ontologia social se configura e adquire forma a partir das práticas de poder e saber, que formulam os efeitos de verdade que o constituem. Neste aspecto, o trabalho, sob a influência das tecnologias de controle biopolítico, sofre novas formas de controle no processo produtivo e na subjetivação e objetivação do trabalhador. A análise sociológica da categoria trabalho, no contexto da biopolítica, deve, portanto, operar deslocamentos produtivos para a emergência de um trabalhador coletivo e novas formas de controle, que superem os modelos disciplinares de treinamento e vigilância. Segundo Lima (2010, p.99), na chamada primeira revolução industrial o corpo do trabalhador era tratado como corpo-máquina e as máquinas introduzidas no sistema produtivo substituíam a força motriz humana ou animal, enquanto principal fator de realização de trabalho. Neste ambiente, onde as práticas de saber e poder estavam vinculadas a um modelo de trabalho orientado para a invidualização, para a especialização produtiva numa linha de produção em massa e padronizada, as tecnologias disciplinares constituíam o modelo de regulação do processo produtivo. A expansão da industrialização foi acompanhada de uma expansão da população operária, levando a necessidade de agregação da nova tecnologia política de controle da classe trabalhadora. É neste contexto que o modelo de produção taylorista-fordista se instala. Lima (2010) aponta uma nova mudança na esfera do trabalho promovida pela denominada segunda revolução industrial, onde o desenvolvimento científico e tecnológico apropriado pelos sistemas produtivos possibilita a criação de máquinas capazes de substituir não apenas a força-motriz humana, mas de substituir os processos informativos de decisão e controle exercidos pelos trabalhadores. Tal substituição denuncia uma grande mudança na esfera do trabalho, a passagem da atuação de mecanismos disciplinares do corpo-máquina sobre trabalhador a um novo corpo impactado pela informação que atua sobre a força de trabalho. Lima (2010) afirma que a passagem do corpo-máquina ao corpo-informação Inscreve-se no âmbito de duas grandes transformações. Uma primeira, que diz respeito às mudanças das sociedades industriais para sociedades pósindustriais ou informacionais. Uma segunda, que está na base material dessa mudança de modelo de sociedade – a mudança de paradigma tecnológico: a transição do paradigma mecânico ao informacional. (LIMA, 2010, p. 98)

Uma questão a ser considerada, na análise da relação entre Trabalho e Educação na emergência da biopolítica, é o deslocamento do trabalho como principio educativo

200

para o trabalho como problema biopolítico-educativo. A questão central então passa a ser em conhecer como a relação entre trabalho e educação entra nas relações sóciohistóricas, enquanto práticas de saber e poder das quais esta relação é investida? Na transição da sociedade Industrial para a sociedade pós-industrial a lógica de acumulação capitalista mantem a mesma dinâmica de acumulação e reprodução do capital orientada pela introdução de inovação tecnológica e de organização do trabalho no processo produtivo, porem diferencia-se no modo de produção da subjetividade produtiva. Uma diferença essencial é que na primeira a acumulação é intensiva em capital e na segunda a acumulação se dá em capital e conhecimento, com primazia para o conhecimento, o qual assume o papel de principal fator de geração de valor. De acordo com Sanson (2009) a forma de trabalho associada à sociedade pósindustrial, pós-fordista, conforma-se com uma passagem de uma lógica da reprodução para uma lógica da inovação, de um regime de repetição a um regime de inovação. Neste novo contexto histórico de transição da sociedade industrial para a pós-industrial o sujeito do trabalho, nesse caso, assume o papel de agente do trabalho imaterial, pois seu saber e seu conhecimento – recursos imateriais – assumem papel relevante de enriquecimento do trabalho e de geração de valor. Os processos de formação da subjetividade produtiva no contexto da sociedade pós-industrial, com a crescente hegemonia qualitativa do trabalho imaterial, revaloriza a subjetividade dos trabalhadores, por meio do reconhecimento de que o conhecimento, a comunicação e a cooperação são as categorias fundamentais da nova organização do trabalho, as quais estão vinculadas ao estabelecimento de relações intersubjetivas entre sujeitos singulares desenvolvidas mediante os processos sociais colaborativos da produção. Para Foucault a subjetividade, enquanto característica de um sujeito, é produzida pelas correlações de forças e pelas resistências que emergem das tecnologias de governamentalidade que estão em jogo a cada época, seja pelo modo como o conhecimento alcança o estatuto de ciência, seja pelas práticas de divisão e classificação das tecnologias disciplinares, seja pela associação das técnicas disciplinas com as práticas de controle, mas será sempre um modo de normalização subjetiva. Uma das alternativas de análise da relação entre Trabalho e Educação numa abordagem biopolítica é, conforme aponta Gadelha (2009, p. 175), investigar como a norma disciplinar e a norma de regulação biopolítica desta relação se cruzam, e os lugares em que esse cruzamento se dá, no atual estrato sócio-histórico. 201

Um ambiente de regulamentação onde as normas disciplinares e as normas de controle se encontram no campo da educação para o trabalho é o chamado modelo de competências, o qual tem como estrato sócio-histórico de sua emergência as políticas neoliberais e o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo. A análise desta problemática é sucintamente realizada no próximo item do presente como um elemento pontual para investigação das implicações da biopolítica na relação entre o trabalho e a educação.

A Normalização Biopolítica da Subjetividade Produtiva na Sociedade Pósindustrial – a emergência do Sujeito Competente.

As mudanças societárias em curso, que temos vivenciado a partir dos anos 1990, trazem novas práticas discursivas que configuram mudanças em diversas práticas de saber e poder, as quais incidem sobre variados campos sociais, mas com especial impacto nas esferas do trabalho e da educação. Numa abordagem foucaultiana, com todo o cuidado que se deve ter em utilizar tal denominação, a relação entre trabalho e educação, considerada em sua historicidade, se configura e adquire formas a partir das práticas de poder e de saber, com os efeitos de regimes de verdades que a constituem. Tais mudanças societárias são evidenciadas por um conjunto de vocábulos e noções que se constituem numa espécie de produção discursiva aparente, sem um sentido claro. Estas novas formações discursivas, as quais operam diversos conceitos ambíguos e polissêmicos, estabelecem novas modelagens políticas da relação trabalho e educação. Tais formações discursivas podem ser exemplificadas citando-se alguns termos que compõem os discursos normativos da esfera do trabalho e da educação, tais como:

flexibilidade,

empregabilidade,

governabilidade,

empreendedorismo,

competência, globalização, sociedade do conhecimento, dentre outros. A investigação da relação entre trabalho e educação, numa abordagem biopolítica, não é uma tarefa simples e não se tem a pretensão de esgotar esta temática, mas de apenas contribuir com algumas considerações introdutórias. Parafraseando Gadelha (2009), a relação entre a biopolítica, o trabalho e a educação não constitui um fato óbvio, dado de antemão, de modo a estar devidamente apontado, analisado e dimensionado, mas sim um problema, no sentido de que não parecem suficientemente evidentes os nexos entre trabalho e educação com a tecnologia de poder biopolítico, tanto no passado como nos dias atuais. 202

A crítica marxista sobre a relação trabalho e educação estabelece que o trabalho, enquanto categoria fundamental da existência humana, tem a primazia sobre a educação, e os efeitos causados pelo sistema capitalista sobre aquele, materializados na apropriação da mais-valia e na divisão social do trabalho, condicionam os processos educativos às demandas do mercado de trabalho. Neste ambiente de interesses antagônicos de classes, a educação que é demandada pelos trabalhadores e a que é de interesse do capital, não são conciliáveis, de modo que a educação se torna um espaço social de luta que incide sobre os processos de inclusão e exclusão. Para Antunes (2010), o sistema capitalista está em crise e esta situação incide na crise da sociedade do trabalho. Porém, para ele o trabalho ainda tem o status de centralidade, pois o trabalho abstrato cumpre papel decisivo na criação de valores de troca. A heterogeneização do trabalho e a complexificação da classe trabalhadora impõem desafios para a construção de modelos formativos dos trabalhadores que sejam capazes de enfrentar os condicionamentos do extrato sócio-histórico contemporâneo da relação entre trabalho e educação. A perspectiva de análise proposta pela abordagem marxista é de grande relevância para a compreensão dos condicionantes sociais e políticos do modelo societário capitalista e de suas implicações para a relação entre trabalho e educação. Porém esta abordagem investigativa não tem sido suficiente para dar conta da complexificação do trabalho, da emergência de novos arranjos produtivos e do deslocamento da própria função produtiva para atividades imateriais. Um novo estrato sócio-histórico emergiu com o crescente deslocamento do trabalho concreto para o trabalho imaterial, com mais ênfase nos anos 1990, para o qual Cocco et al. (2003) relacionou o trabalho imaterial, e mais tudo aquilo que está vinculado à circulação e por outro lado à inovação, com um novo padrão de acumulação onde processos reprodutivos se tornam imediatamente produtivos, emancipando-se da ordem fabril do trabalho assalariado. Para o referido autor, esse deslocamento não poderia ter acontecido sem a integração crescente das novas tecnologias de informação e comunicação (NTICs) aos processos produtivos, principalmente no que diz respeito à constituição do emaranhado de redes sociais e técnicas que sustentam e desenham territórios ou arranjos de uma cooperação produtiva não mais restrita ao chão de fábrica. Segundo Cocco et al. (2003), a hipótese do capitalismo cognitivo sustenta-se com a perspectiva de uma transformação radical das formas de produção, acumulação e 203

organização social abertas pelas NTICs para além das determinações neo-industriais do denominado modelo japonês ou da especialização flexível. O novo estrato sócio-histórico do capitalismo cognitivo - onde a cognição dos trabalhadores passa a ser o mais importante fator explicativo de seus comportamentos e dos fenômenos econômicos - tem promovido o deslocamento do conceito de qualificação profissional para o de competência. Este deslocamento aponta para a emergência de novas formas de produção de saberes e de intervenção na relação entre trabalho e educação que evidenciam novas estratégias de normalização desta relação, em que se cruzam normas disciplinares e normas de regulação, sob a influência de novos dispositivos de controle originados pelo o avanço das novas tecnologias de informação e comunicação. Segundo Manfredi (1999) a concepção da qualificação, no contexto da sociedade industrial, tem como matriz o modelo job/skills, definido a partir da posição a ser ocupada no processo de trabalho e previamente estabelecida nas normas organizacionais da empresa, de acordo com a lógica do modelo taylorista/fordista de organização do trabalho. Na ótica deste modelo, a qualificação é concebida como sendo adstrita ao posto de trabalho e não como um conjunto de atributos inerentes ao trabalhador. Tal abordagem aponta para um modelo de regulação disciplinar de um trabalhador especializado e assujeitado, onde o seu corpo-máquina é treinado para desempenhar tarefas prescritas e repetitivas em seu posto de trabalho. Neste sentido a qualificação profissional é um modelo de formação orientado por uma anotomo-política que visa a produção de corpos dóceis e aptos ao desenvolvimento de tarefas produtivas individuais e fragmentadas. A emergência dos modelos pós-fordistas de produção sob o contexto do capitalismo cognitivo tornou o modelo de qualificação profissional, para os postos de trabalho, insuficiente para atender as demandas em curso no mundo do trabalho, remetendo a uma nova abordagem social da qualificação e da organização do trabalho, a qual tem como elemento central o modelo das competências. Um importante aspecto embutido no deslocamento do conceito de qualificação para o modelo de competência é a sua relação como um novo tipo de práticas de poder e de saber, o qual coloca a cognição e a comunicação intersubjetiva como principais fatores de desenvolvimento dos sistemas produtivos, promovendo o deslocamento da abordagem social da qualificação profissional para um novo ambiente de subjetivação e de objetivação da relação entre o objeto trabalho e o sujeito trabalhador. 204

Outro ponto fundamental para análise da emergência do modelo das competências, enquanto nova normalização biopolítica da qualificação e da organização do trabalho é o seu caráter “psicologizado” e sua articulação com os dispositivos das novas tecnologias de informação e comunicação. Por outro ângulo, o conceito de competências é tratado como uma norma de competência, a qual tem como exemplo a definição da Organização Internacional do Trabalho-OIT (1999). As normas de competências representam um dos sistemas de normalização da sociedade pós-industrial, onde se cruzam as normas de disciplina e as normas de regulação, inseridas em um apriori histórico, que orienta o deslocamento do corpomáquina da qualificação para o corpo-informação da competência. Neste campo de visualização, as competências não representam uma negação do conceito de qualificação profissional, mas pelo contrário, constituem-se numas das principais formas de normalização da subjetividade produtiva na emergência do capitalismo cognitivo, indicando uma revalorização da qualificação, que deixa de ser um atributo vinculado a um posto de trabalho, para se tornar um atributo de um novo sujeito do trabalho. Pelo exposto, ousa-se afirmar que a normalização das competências laborais, que se inserem tanto na esfera de organização do trabalho quanto na esfera educacional, representa uma estratégia biopolítica para a governamentalidade da relação entre trabalho e educação no estrato sócio-histórico do que vem sendo denominado de capitalismo cognitivo. Porém, os seus efeitos sobre a subjetivação e objetivação dos trabalhadores, e seu caráter de onipresença em todos os espaços sociais, associado aos dispositivos de poder das tecnologias de informação e comunicação, têm se caracterizado apenas como estratégias de elevação da produtividade e de promoção da inclusão excludente dos trabalhadores, representando novas formas de acumulação do capital. A normalização biopolítica das competências é estruturada, segundo a OIT (1999), em unidades de competências, as quais se fragmentam em elementos de competências, critérios de desempenho, campos de aplicações e evidências de desempenho, as quais são dirigidas para o controle de competências-chaves para cada atividade produtiva. Tal organização tem grande semelhança com os dispositivos de controle das tecnologias de informação, tais como os sistemas de programação orientados a objetos e a comunicação em redes de pacotes, possibilitando tratar a 205

competência como um pacote informacional, que tem estruturas descritivas e de orientação seqüencial, como cabeçalhos e endereços dos pacotes de dados enviados por redes de computadores. O modelo das competências, em sua aplicação biopolítica na relação trabalho e educação, possibilita a integração dos dispositivos disciplinares, mediante a especificação de padrões de desempenho em situações reais de trabalho e processos de auto-gestão da qualidade, com dispositivos de segurança que possibilitam a atuação preventiva sobre a população de trabalhadores flexíveis e orientados para a solução de problemas, com maior responsabilização destes sobre os processos de inovação, e com os dispositivos de controle da mente pela incorporação da empresa na subjetivação do trabalhador empreendedor e na ampliação das redes informacionais de controle, possibilitadas pelas tecnologias digitais. Assim considerado, o modelo das competências, presente tanto na organização do trabalho, quanto na estruturação de modelos formativos flexíveis e abertos, constitui um importante componente da tessitura das novas formas de poder-saber que se cruzam nas esferas do trabalho e da educação na emergência da biopolítica enquanto estratégia de normalização de uma subjetividade produtiva flexível e inovadora, mas ainda sob o controle do capital. Considerações Finais A investigação da relação entre trabalho e educação, tendo como abordagem os mecanismos estratégicos agenciados pelo exercício do biopoder e da biopolítica, na ótica de Michel Foucalt, possibilita operar deslocamentos que ampliam e inovam novas práticas de saber e poder que emergem das relações sociais deste campo investigativo, na conjuntura do denominado capitalismo cognitivo. Tal investigação oportuniza a identificação de novas formas de subjetivação e objetivação do trabalhador, crítico e reflexivo, em relação ao objeto do trabalho, o qual vem se tornando cada vez mais imaterial. As implicações da governamentalidade biopolítica na relação entre trabalho e educação, enquanto categorias fundamentais da formação da subjetividade estão situadas no mesmo plano de imanência das relações de resistência aos dispositivos de exploração do capitalismo, cuja lógica produtivista se altera na era do capitalismo cognitivo, mas não se altera a sua lógica de acumulação. Neste contexto, faz-se necessário a construção de novas maneiras de viver e de trabalhar, que sejam capazes de 206

criar espaços de resistência que promovam a valorização da vida qualificada (bio) em detrimento da vida desqualificada (zoe). A educação profissional, no atual contexto, deve ser estruturada como um espaço de resistência, buscando a construção de competências ampliadas, que integrem a ciência, a tecnologia, o trabalho e a cultura, numa perspectiva de exploração de novas formas de trabalhar e de viver, por meio de processos de aprendizagens colaborativas e de trabalho em redes sociais de cooperação.

Referenciais

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do trabalho. 14º ed. São Paulo: Cortez, 2010. BERINO, Aristóteles. O Futuro para a Teoria da Subjetividade em Marx. Dissertação de Mestrado: UFF. Niterói/RJ: 1994. COCCO, Giuseppe; GALVÃO, Alexander Patez; SILVA, Gerardo. (Orgs.). Capitalismo Cognitivo: trabalho, redes e inovação. Trad. De Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. CORRÊA, Maria Laetícia; TEIXEIRA, Alexandre Luiza. Uma Nova Faceta da Gestão Empresarial: A Conformação da Subjetividade do Trabalhador: ANPED, 2010. Disponível em WWW.anped.org.br/reunioes/23/textos/0905t.pdf. FOUCAULT Michel. Historia da Sexualidade I. A vontade saber. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979. __________. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. __________. O nascimento da medicina social, in: Foucault, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2001 (16ª. Edição) p. 79 -98. GADELHA, Sylvio. Biopolítica, governamentalidade e educação: introdução e conexões, a partir de Michel Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. GADOTTI, Moacir. Perspectivas atuais da educação. São Paulo. Perspec., jun. 2000, n. 2, v. 14, Disponível em: . Acesso em 27 fev. 2010. GONDIN, Eleonora Maria; RODRIGUES, Osvaldino Maria – A Ontologia e o Transcendental in: POROS, Uberlândia, v. 1, n. 2, p. 42-65, 2009 – disponível em: www.catolicaonline.com.br/poros. LIMA, Homero Luis de. Do Corpo-máquina ao corpo-informação: o pós-humano como horizonte biotecnológico, 1ª. ed. Curitiba: Editora Honois Causa Ltda, 2010.

207

MANFREDI, Silvia Maria. Trabalho, qualificação e competência profissional - das dimensões conceituais e políticas. Educ. Soc., Campinas, v. 19, n. 64, Sept. 1999. Disponível em
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.