Subjetividade em discursos de livros de autoajuda

May 30, 2017 | Autor: Paula Chiaretti | Categoria: Psicanálise, Discurso, Autoajuda
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Descrição do Produto

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO. DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

PAULA CHIARETTI

Subjetividade em discursos de livros de autoajuda.

Ribeirão Preto 2013

PAULA CHIARETTI

Subjetividade em discursos de livros de autoajuda.

Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutora em Ciências. Área de concentração: Psicologia. Orientadora: Profa. Dra. Leda Verdiani Tfouni.

Ribeirão Preto 2013

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Ficha catalográfica

Chiaretti, Paula Subjetividade em discursos de livros de autoajuda. / Paula Chiaretti ; orientadora: Leda Verdiani Tfouni – Ribeirão Preto, 2013.

187 p. : il. ; 30 cm Tese de doutorado, apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/USP. Área de concentração: Psicologia. 1. Subjetividade. 2. Discurso. 3. Livros de autoajuda. 4. Sintaxe e discurso. 5. Sujeito.

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Folha de aprovação

Paula Chiaretti Subjetividade em discursos de livros de autoajuda.

Tese apresentada à Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto para a obtenção do título de Doutora. Área de concentração: Psicologia. Aprovada em: Banca examinadora Prof. Dr.:

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Instituição: _______________________________________________________ Assinatura: ___________________________ Prof. Dr.:

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Instituição: _______________________________________________________ Assinatura: ___________________________ Prof. Dr.:

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Instituição: _______________________________________________________ Assinatura: ___________________________ Prof. Dr.:

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Instituição: _______________________________________________________ Assinatura: ___________________________ Prof. Dr.:

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Ao Nilton e à Marga.

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Agradecimentos À Leda Verdiani Tfouni, que eu admiro pela generosidade, pela coragem, pela competência e pela sensibilidade. Agradeço-lhe todos estes anos de orientação e parceria. Às professoras Sonia Branca-Rosoff, Jacqueline Authier-Revuz, Adriana Boria e Marieta Lorenzatti, pela disponibilidade, hospitalidade e contribuições durante os estágios na França e na Argentina. Aos membros da banca de qualificação, Anderson Pereira e Flavia Trocolli, pelas inestimáveis contribuições. À grande amiga, Milena. Às colegas e amigas, Clarice Pimentel Paulon, Dionéia Motta Monte-Serrat, Verônica Lopes do Santos, Greciely Costa, Alessandra Carreira, Juliana Bartijotto, Juliana Costa, Carolina Molena, Leny Pimenta, Kátia Alexssandra e Carolina Fedatto, importantes interlocutoras. Ao Fernando Braga Monte-Serrat, pela luz à tiniebla griega. À Tatiane Cristina Lopes Pereira, pela ajuda na tradução do resumo. À minha família, Nilton, Margarida, Daniel e Laura, pelo amor e apoio sempre. Ao Deminice, pela companhia e carinho. À Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, e a todos seus funcionários, em especial à Jacqueline Corrêa, pela disponibilidade e atenção. À CAPES, pela bolsa no início da pesquisa, e pela bolsa sanduíche (PDEE) entre março de 2010 e fevereiro de 2011. À FAPESP pela bolsa de doutorado, suporte essencial e pareceres indispensáveis ao desenvolvimento do trabalho.

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“É absolutamente inexequível, todo o Universo o contraria; podemos dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha no plano da ‘Criação’” Sigmund Freud, em O mal-estar na civilização

“Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto antihipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade” Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas

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Resumo CHIARETTI, P. Subjetividade em discursos de livros de autoajuda. 2013. 187f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2013. Esta pesquisa objetiva investigar o discurso de livros de autoajuda. Partindo do paradoxo semântico encontrado no sintagma livros de autoajuda, retraçamos o caráter inevitavelmente contraditório da constituição subjetiva por conta da sua sujeição ao inconsciente e à ideologia. Contraditório, pois a sujeição é contemporânea à sua própria dissimulação, resultando um eu aparentemente autônomo e livre. A fim de destacar os traços específicos desse discurso, recorremos a uma análise discursiva de diversos títulos de livros de autoajuda que toma como ponto de partida a escolha sintática. Foram destacadas e analisadas com maior profundidade três ocorrências sintáticas: o advérbio como seguido de verbo no infinitivo, o verbo conjugado no imperativo e as construções nas quais está presente o pronome reflexivo se. Dado que não exista um discurso completamente novo, os traços formais destacados nessa análise pretendem estabelecer uma genealogia desse discurso ao relacioná-lo a outros anteriores e prescritivos. Apoiados em um contexto histórico, no qual a autonomia e a liberdade de escolha se encontram em evidência, e em funcionamentos específicos de instâncias psíquicas, como é o caso do imperativo superegóico e a orientação em direção ao Eu ideal, por exemplo, esses discursos prescritivos encontrariam atualmente um terreno fértil para sua produção. Observou-se que ao contrário do caráter conflitivo da subjetividade apontado por Freud, Lacan e Pêcheux, os livros de autoajuda contam com uma subjetividade na qual a livre escolha e a autonomia não são somente possíveis, mas desejáveis. Dessa maneira, tomamos esse discurso como um indício de um sintoma social a partir do qual podemos também ler alguns aspectos da contemporaneidade, como alta incidência de diagnósticos de depressão, medicalização e o direito à felicidade, por exemplo, relacionados às transformações das encarnações de Outro. Conclui-se que o capitalismo, o consumo, a ciência e a oportunidade de “ser o que quiser ser” não livraram o homem dos imperativos e das injunções superegóicas. Ao contrário, ao se dissimularem em discursos que alimentam o sentimento de autonomia do eu, se tornaram mais poderosos que nunca. Palavras-chave: Subjetividade. Discurso. Livros de autoajuda. Sintaxe e discurso. Sujeito.

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Abstract CHIARETTI, P. Subjectivity in discourse of self-help books. 2013. 187f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2013. This work aims to investigate the discourse of self-help books. Based on the semantic paradox found in the phrase self-help books we re-established the inevitably contradictory character of the subjective constitution due to its subjection to the unconscious and the ideology. Contradictory because the subjugation is contemporary in its own concealment, resulting in an apparently autonomous and free “me” (ego). In order to highlight the specific features of this discourse, we made a discursive analysis of several self-help books’ titles by taking as a starting point its syntactic choice. It was detached and analyzed with greater attention three syntactic occurrences: the adverb how followed by a verb in the infinitive, the verb conjugated in the imperative and the constructions that used the reflexive pronoun (one)self. Since there is not a completely new discourse, the formal features highlighted in this analysis intend to establish a genealogy of this discourse relating it to others previous and prescriptives. Leaned on a historical context in which autonomy and freedom of choice are highly valued and on specifics psychic instances’ operations, such as the superegoic imperative and the orientation toward the ego ideal and the ideal of ego, this discourse currently finds a fertile ground for their production. Unlike the divided subjectivity proposed by Freud, Lacan and Pêcheux, these books rely on one subjectivity in which freedom of choice and autonomy is not only possible, but desirable. Thus, we take this discourse as an indication of a social symptom from which we can also read some contemporary aspects such as the high incidence of diagnoses of depression, medicalization and the right to happiness, for example, related to the transformations of the Other’s incarnations. It is concluded that capitalism, consumption, science, and the opportunity to "be whatever you want to be," did not set the man free from the imperatives and injunctions of the superego. Instead, when dissimulated in discourses that feed the feeling of autonomy of the ego, they became more powerful than ever. Keywords: Subjectivity. Discourse. Self-help books. Syntax and discourse. Subject.

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Sumário

17 O paradoxo em livros de autoajuda 31 Subjetividade 32 Teoria do sujeito em Freud e Lacan 32 Formação do Eu e identificação 39 Conflito e ordem moral 45 O caráter contraditório do Supereu 47 Estádio do espelho 51 Sujeito e Outro 54 Teoria discursiva de Pêcheux 59 Língua, parole e discursividade 60 O efeito sujeito e Ideologia 71 Sentido, memória e genéricos discursivos 65 Livros de autoajuda e contemporaneidade 75 Uma aproximação pela gramática 84 Repetições sintáticas 92 O uso do advérbio como 94 A estrutura da parábola 98 O indivíduo livre e autônomo 98 A partícula reflexiva se 100 O indivíduo 102 Identidade e alteridade 105 As transformações do Outro 109 Contexto democrático e ideais modernos 119 Livros de autoajuda como um sintoma contemporâneo 135 Outros sintomas contemporâneos 137 Novos mecanismos de controle 141 Depressão e medicalização 149 A atualidade de O mal-estar na civilização 154 Exegeses contemporâneas 155 Felicidade como utopia e seus genéricos como produtos 167 Considerações Finais 173 Referências Bibliográficas 15

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O paradoxo em livros de autoajuda

¿Tocar a nuestro concepto del universo, por ese pedacito de tiniebla griega? Jorge Luis Borges em La perpetua carrera de Aquiles y la tortuga

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Depois de quatro anos, talvez seja possível retraçar o percurso de uma pesquisa da qual o presente texto é um de seus efeitos. Um efeito de um corte temporal, de limite de prazo, menos que de uma conclusão. O texto que se encontra nas linhas seguintes é fruto de um forçamento de precipitação e uma sutura1. Nesse sentido, ao contrário da divisão temporal entre tempo de ver, de compreender e de concluir, proposta por Lacan em O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada, as linhas que se seguem se sobrepõem, à imagem da cidade de Roma descrita por Freud em O mal-estar na civilização. Nessa descrição, nos é apresentada uma concorrência entre preservação do passado, em sítios arqueológicos e ruínas, e a construção de outras novas obras nos mesmos espaços. Não por acaso, a justaposição desses três tempos revela três momentos da evidência, isto é, um encadeamento lógico que se integra produzindo uma síntese. “Expor sua sucessão cronológica ainda é especializá-los segundo um formalismo que tende a reduzir o discurso a um alinhamento de sinais” (LACAN, 1998c [1945], p. 204). Ao mesmo tempo em que há uma descontinuidade tonal entre cada um desses tempos, por meio de uma exposição bastante precisa de Lacan, podemos observar de que maneira, cada um desses tempos é reabsorvido pelo sucessor de maneira que subsista apenas o último. Ao contrário, como veremos, o que nos guia e onde se assenta alguma construção é propriamente o paradoxo inicial sobre o qual retornamos sem jamais resolvê-lo. É o que desencadeia a pesquisa, se configurando não como um obstáculo, mas justamente como o que nos permite trabalhar. Retomamos aqui, a fim de apresentar nosso objeto, um paradoxo bastante famoso, Aquiles e a tartaruga, descrito e refutado por Aristóteles em Física. Trata-se de um paradoxo, proposto por Zenão, discípulo de Parmênides, que visa demonstrar como a inexistência do movimento pela infinita divisão do espaço e tempo que leva a um paradoxo: o fato de Aquiles nunca vencer a tartaruga em uma corrida. Para Zenão, se em uma corrida Aquiles desse uma vantagem mínima à sua concorrente, a tartaruga, ainda que fosse mais rápido que ela, nunca a alcançaria. Isso porque supondo que a tartaruga inicie a corrida dez quilômetros à frente de Aquiles, assim que Aquiles percorresse esses dez quilômetros, a tartaruga teria percorrido mais um. Em seguida, quando percorresse esse um quilômetro, a tartaruga teria percorrido mais 10 metros (um décimo novamente). Em seguida, Aquiles percorre 10 metros e a tartaruga, 1 metro. Então, Aquiles percorre 1 metro e a tartaruga um decímetro. E assim se segue infinitamente de modo que Aquiles nunca a alcançaria e ela sairia vitoriosa da corrida. 1

Corte, sutura e forçamento se referem a operações utilizadas por Lacan nas suas mostrações topológicas.

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Além de Aristóteles, outros posteriormente também o refutam: Hobbes, Stuart Mill, Henry Bergson e Bertrand Russell, sendo uma das resoluções mais bem aceita aquela que leva em conta séries convergentes. Chega-se inclusive à refutação atual que envolve a Física Quântica e foge da capacidade e interesse desse trabalho de pesquisa. No entanto, o que chama a atenção de Jorge Luis Borges, no texto A perpétua corrida de Aquiles e da tartaruga, e que nos interessa também é o fato desse paradoxo seguir tão indiferente às suas diversas refutações. Aristóteles, Hobbes e Stuart Mill partem do mesmo ponto para fazer suas ressalvas sobre o paradoxo: a falácia que existe na confusão entre um tempo infinito e um tempo infinitamente divisível. Ou seja, se tenho 5 minutos, posso dividir esse intervalo finito infinitamente. Para Borges, essa ressalva se configura como uma nova exposição do paradoxo e não sua resolução. Escreve (2008, p. 113) “Essa dissolução metódica, essa ilimitada queda em precipícios cada vez mais minúsculos, não é realmente hostil ao problema: é imaginá-lo bem”. Esses precipícios corrompem a noção de espaço e obrigam os heróis a ocuparem um espaço cada vez mais microscópico. Para Bergson, de acordo com Borges (2008), o que acontece é uma confusão entre movimento e espaço percorrido. Isso porque não se deveria confundir um objeto (divisível em sua dimensão) e um ato, ainda que se possa projetar a linha do movimento no espaço. Cada passo de Aquiles é um ato indivisível, logo, ao cabo de pouco tempo teria ultrapassado a tartaruga. No entanto, o paradoxo se beneficia dessa confusão entre espaço e ato, já que os eleatas faziam equivaler a série de atos indivisíveis (passos) ao espaço homogêneo no qual se passavam. O raciocínio enganoso vem do fato de esse espaço homogêneo poder ser dividido infinitamente, logo, o movimento também o passaria a ser. Se o espaço se presta a “um modo de composição e decomposição arbitrárias” (BORGES, 2008, p. 115), esse não é o caso do movimento ao qual não se aplica conceito de coisa, já se trata de uma fluência de ato. Russell, afinal, a partir da série de Cantor e sua teoria dos conjuntos infinitos, consegue dar outra dimensão a esse paradoxo. Cantor estabelece conjuntos de números cujos elementos encontram correspondentes em outros conjuntos de modo que não se chega a uma conclusão de qual é o maior conjunto: por exemplo, se tomamos o conjunto de números inteiros e números inteiros pares, ao corresponder um elemento ao outro, chegamos à conclusão de que os dois conjuntos possuem a mesma cardinalidade. Ou seja, haveria o mesmo número de inteiros e inteiros pares, conforme a demonstração da correspondência bijetora entre os elementos:

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Conclui-se disso que nem sempre o todo é maior que cada uma das partes e que alguns subconjuntos possuem a mesma cardinalidade que o conjunto do qual pode ser extraído. Não existe um conjunto infinito menor ou maior que outro conjunto infinito. A cada ponto no infinito de pontos do percurso alcançado pela tartaruga corresponde um ponto alcançado por Aquiles. A seguir, Cantor distingue o infinito real do infinito racional por meio de um método de enumeração de todos os racionais entre 0 e 1 sendo que há um número que ainda que não esteja nessa lista, está entre 0 e 1, o que o leva a afirmar que a cardinalidade dos reais é maior que a dos racionais. Ou seja, há infinitos maiores que outros infinitos, o que configura novamente um paradoxo, pois se opõe a uma ideia elementar e intuitiva de infinito. Paradoxos gerando novos paradoxos. Desde Aristóteles, a noção de infinito tem essa característica de nos colocar problemas que ameaçam os limites do pensamento. O que nos interessa aqui, no entanto, é de que maneira esse paradoxo (e outros) atenta à realidade do espaço e coloca em xeque a de tempo. “Acrescento que a existência de um corpo físico, a permanência imóvel, a fluência de uma tarde na vida, colocam-na [à realidade] em estado de alerta” (BORGES, 2008, p. 117). Ao final, conclui Zenão é incontestável, a menos que confessemos a idealidade do espaço e do tempo. Aceitemos o idealismo, aceitemos o crescimento concreto do que percebemos, e eludiremos a pululação de abismos do paradoxo. E tocar em nosso conceito do universo por esse pedacinho de treva grega?, perguntará meu leitor (BORGES, 2008, p. 118).

Para Lacan (1997 [1959-1960], p. 43), “o idealismo consiste em dizer que somos nós que damos a medida da realidade, e que não se deve buscar para além disso”, até porque, além disso, o que encontramos é a contradição e o paradoxo, esses pontos de conversão daquilo que não cessa de não se escrever. E para Lacan, essa realidade é precária. É na justa medida em que Jorge Luis Borges retoma o paradoxo de Zenão para demonstrar de maneira irônica os limites da lógica, que a despeito da sua coerência formal e formalizante não impedem que se formem incongruências e contradições, que esse paradoxo e seus desdobramentos interessam a esse trabalho. 21

O paradoxo é definido como “aquilo que é contrário à opinião geralmente admitida, à previsão ou à probabilidade” (LALANDE, 2010, p. 734, tradução nossa). Chega a ser no mínimo curioso o fato de em seguida o autor apresentar duas outras explicações sobre o termo assentadas sobre duas definições: a primeira “en bonne part” e a segunda “en mauvaise part”2. Acrescenta ainda que quando paradoxo é usado como adjetivo relacionado a coisas, usualmente se refere ao primeiro (e bom) sentido, enquanto que em relação a pessoas, ao segundo (e mau) sentido. Enfim, eis o paradoxo semântico com o qual nos deparamos nessa pesquisa: há no sintagma livros de autoajuda uma contradição. Partindo de uma análise semântica podemos localizála com maior precisão: ajuda, que pode ser definida como ato de ajudar, auxílio ou favor usualmente, estabelece uma relação entre dois sujeitos, ou um sujeito e um objeto. Ajuda é um substantivo feminino derivado do verbo ajudar. O Dicionário de Língua Portuguesa Priberam (2012) define ajudar como “v. tr. 1. Contribuir para que outrem faça alguma coisa. 2. [Figurado] Favorecer; facilitar. 3. Arranchar à má-língua. v. pron. 4. Valer-se, servir-se”. Ou ainda, segundo Aurélio (2009, p. 80): v. tr. d. 1. Dar ajuda a; auxiliar [...] 2. Socorrer, favorecer; 3. Facilitar, favorecer, propiciar [...] v. tr. d. e i. 5. Auxiliar a fazer alguma coisa. [...] tr. ind. 6. Dar ajuda, prestar auxílio [...] v. intr. 7. Dar ajuda, prestar auxílio a alguém [...] v. pron. 8. Valer-se, aproveitar-se, socorrer-se. 9. Prestar auxílio a si mesmo. 10. Auxiliar-se reciprocamente.

Destacamos aqui a presença de outrem e alguém nas duas definições ao se referirem ao verbo ajudar usado como transitivo indireto e a incidência sobre si mesmo quando usado como pronominal, dado que poderíamos substituir auto por si mesmo, sendo ajuda a si mesmo o produto dessa substituição. Auto é um prefixo definido pelo Aurélio (2009, p. 231) como “‘por si próprio’, ‘de si mesmo’”. No entanto, recorrendo a sua origem grega autós (αυτός), pode-se reconhecer outras derivações interessantes: i. como pronome pessoal da terceira pessoal (masculino, ele – αυτός, feminino, ela – αυτή – e neutro, que não tem correspondente no português – αυτό) e ii. como pronome demonstrativo (este, esta), ou em ό αυτός, o mesmo iii. como pronome reflexivo (se), ou ainda, iv. pode ser traduzido por o próprio. De maneira geral, esse pronome pode ser traduzido de diversas formas, de acordo à maneira como é empregado na sentença3. A despeito da advertência de Lacan (1997 [1959-1960]) sobre o privilégio do uso corrente de uma palavra (estudo sincrônico) sobre esse tipo de estudo etimológico4 (diacrônico), trabalhar

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Próximo daquilo que usamos correntemente como “no bom sentido” e “no mau sentido”, respectivamente. Fernando Braga Monte-Serrat (2013, comunicação pessoal). 4 “Não acreditem que essa promoção da etimologia – aliás conforme ao que Freud nos lembra o tempo todo, que, para reencontrar o rastro da experiência acumulada da tradição, das gerações, o aprofundamento linguístico é o 3

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a partir desse tipo de investigação etimológica nos pode ser bastante útil desde que não nos dê respostas prontas, e sim nos coloque questões que possam nos guiar. É assim que a polissemia que αυτός traz na sua origem grega nos possibilita traçar questões pertinentes aos nossos objetivos: qual a origem e características da subjetividade suposta em autoajuda? O fato de haver aí uma derivação que indicia a presença do outro (ele, ela, este, esta) no si mesmo já dá indícios uma confusão presente no próprio conceito de indivíduo, entendido conforme a sua etimologia já nos indica, como indivisível. No entanto, como poderemos analisar mais à frente (e de fato durante todo o trabalho), esse caráter indivisível deve ser atribuído a uma construção, um efeito semântico, uma sedimentação de sentido5. De maneira geral, esse breve levantamento etimológico visa introduzir a “confusão”, entre eu e outro, entre sujeito e objeto, entre identidade e alteridade, entre sujeito e outro, que é o tema da pesquisa. Levando em conta o contexto de produção do indivíduo livre e autônomo, torna-se plausível que um significante que comporte esse paradoxo não seja estranhado: é possível que alguém ajude a si mesmo. Essa reflexibilidade passa ainda por temas atuais, que deverão ser tratados por esse trabalho como a possibilidade de acesso aos métodos de conhecimento e disciplinarização. Não é mais preciso que o objeto se encontre fora do sujeito, sendo muitas vezes sujeito e objeto sobre o qual recai a ação coincidentes, o que está muito bem ilustrado no cogito cartesiano. Podemos tomar como paradigma de demonstração de autoajuda o Barão de Münchhausen. Baseado no militar alemão Karl Friedrich Hieronymus von Münchhausen do século XVIII, Rudolph Erich Raspe publica, em 1785, a obra As Aventuras do Barão de Münchhausen, na qual estão relatados diversos feitos fantásticos praticados pelo Barão. Talvez o mais conhecido seja o episódio em que o Barão consegue escapar de um pântano, levando consigo seu cavalo, puxando a si mesmo pelos cabelos. À moda do barão, que se puxa pelos próprios cabelos para retirar a si mesmo (e seu cavalo) do pântano, entende-se por autoajuda que o leitor poderia ajudar a si mesmo. Já em autoajuda estamos diante de uma possível contradição semântica que nem mesmo chega a ser uma contradição gramatical, pois no campo da gramática o significante se resolve pela reflexibilidade. Essa contradição semântica pode ser resolvida pelo recurso a uma explicação a

veículo mais seguro da transmissão de uma elaboração que marca a realidade psíquica – não acreditem que preferimos esses bosquejos, essas sondagens rápidas para guiar-nos” (LACAN, 1997 [1959-1960], p. 59). 5 No entanto, recorremos ao uso desse significante indivíduo na medida em que os autores que lemos o utilizam (como é o caso de S. Freud) ou que falemos dos elementos que formam o conjunto chamado sociedade (ainda que a soma dos elementos indivíduos seja diferente desse conjunto), conforme o uso sociológico do termo.

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partir da reflexibilidade, já que sintaticamente sujeito e objeto podem ser coincidentes (por exemplo: “Ele viu-se no espelho”). Entretanto, quando entra em jogo a presença da palavra livro justaposta à autoajuda, estamos diante de um paradoxo6 que não se resolve mais, exceto pela suspensão ou invisibilização de um de seus elementos. Não é possível que o ato de ajudar seja exercido ao mesmo por dois sujeitos: livros e o próprio sujeito (implícito em auto). Além disso, como entender que seja possível que o escritor possa falar de algo que irá autoajudar o leitor? O que garante a possibilidade de o escritor saber o quê ajudaria ou não o leitor de antemão? A alteridade de livros aparece apagada no sintagma livros de autoajuda reforçando a autonomia do sujeito ao mesmo tempo em que delata sua dependência essencial do campo do Outro. O paradoxo se assenta no fato da ajuda somente poder ou vir de outrem (livro) ou do próprio leitor (auto). Para compreender do quê se trata um paradoxo do tipo semântico, Mora (1965) retoma o paradoxo do Mentiroso, também conhecido como Epiménides e O Cretense, segundo o qual “se admite que Epiménides (que era cretense) afirma que todos os cretenses mentem. Como consequência disso, Epiménides (ou “o mentiroso”) mente se e somente se diz a verdade, e diz a verdade se e somente se mente”. Esse paradoxo pode ser reduzido ao simples enunciado “Minto”. Aqui se encontra um paradoxo insuperável, ou um círculo vicioso. De acordo com Mora (1965), uma forma encontrada para a superação desse paradoxo teria sido a hierarquização das linguagens: deveriam ser assumidas tanto linguagem quanto metalinguagem para que não fosse um enunciado paradoxal. Lacan, por outro lado, descrente da metalinguagem, já que não há um lugar a partir do qual falar sobre isso que não seja de dentro da própria linguagem, ‘resolve’ o paradoxo em “Minto” quando afirma a existência de dois planos distintos: o do enunciado, que está relacionado ao sujeito sintático (próximo da maneira como Benveniste propõe a subjetividade) e o da enunciação, que não se encontra no plano da literalidade, mas sim no plano do sujeito descentrado. Ao contrário de uma exposição paradoxal, ou mesmo irônica (na qual há essa escansão entre duas regiões de dizer: o sentido comum e o sentido ao revés, que faz com que o Outro não seja mais a garantia de compreensão), os livros de autoajuda difundem discursos nos quais o equívoco, a falha, a deriva não estão previstos, apesar de poderem se presentificar, como podemos observar pela análise do próprio sintagma livros de autoajuda. Colocar uma contradição que a princípio é entendida como um dado marginal ou como um descuido em um lugar central é se filiar a um paradigma indiciário segundo o qual esses dados possuem um caráter revelador. 6

Enquanto a contradição coloca duas ideias contrárias, o paradoxo coloca um sem saída.

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Por conta disso, esta pesquisa parte do paradigma mostrado por Ginzburg (1990) e que tem como modelo o trabalho de Morelli, historiador de arte que assim como Sherlock Holmes, estava atento aos indícios mais imperceptíveis à grande maioria das pessoas. Morelli é retomado por Freud (1996a) em O Moisés de Michelangelo (de 1914) para falar do método da Psicanálise médica que dá atenção a esses elementos aos detalhes mais desprezíveis à observação usual. Se levarmos a ambiguidade presente em livros de autoajuda a uma análise discursiva, somos obrigados a deixar de lado a categoria de ambiguidade, útil a uma análise gramatical, para tratar de um equívoco, na medida em que são esses que trazem à tona, de maneira privilegiada, a equivocidade da língua e a impossibilidade de fazer Um, que seria a coincidência perfeita entre mundo e linguagem. Essa contradição aqui não é tomada como um acidente ou um descuido, mas sim de algo que pode nos dar indícios de uma subjetividade sustentada por esse discurso. O equívoco passa a ser um lugar privilegiado de observação da relação entre língua e história na produção do sentido, pois o que está dentro e fora da língua se interpenetra. De acordo com Ferreira (2000), o equívoco se materializa pela falta, pelo excesso, pelo repetido, pelo parecido, pelo absurdo, pelo nonsense, rompendo o fio do discurso. Isso faria com que ao mesmo tempo em que mostra o caráter de jogo da língua, revela sua opacidade: um enunciado pode sempre vir a ser outro. O “pode sempre vir a ser outro” significa passar o sentido da categoria lógica de necessidade para a de contingente (relativa ao real), o que permite novas inscrições de sentido e o próprio desenrolar da história. Essa contradição presente em livros de autoajuda pode passar batida para a maior parte das pessoas, entretanto é na medida em que se torna o foco principal de atenção que podemos falar na constituição de um objeto de análise. Onde há a localização (se não a construção) de uma deriva naquilo que parecia tão óbvio e transparente. É justamente o caráter de paradoxal que encontramos aqui, é por fugir de uma apreensão lógica (clássica) que vamos aproximar essa produção a um sintoma, que é aquilo que insurge irredutível ao diálogo da razão. No entanto, naquilo que ele tem de insondável, nesse furo que faz, nessa tiniebla griega, assenta-se uma verdade. Para Sarlo (1995, p. 50, tradução nossa) Os paradoxos são uma forma irônica do pessimismo, porque afetam radicalmente a estrutura do raciocínio, demonstrando sua estranha mescla de força (dado que qualquer impossibilidade ‘real’ pode ser logicamente provada) e debilidade (na medida em que o provado contradiz a experiência e o sentido comum).

Nesse sentido, o paradoxo pode ser um meio de crítica ao empirismo. De certa maneira, ele delata a falsidade tanto da experiência perceptiva quanto da especulativa. A realidade não 25

pode ser captada pela percepção e tampouco pensada por meio da lógica. Ainda de acordo com Sarlo (1995, p. 50, tradução nossa), alguns textos de Borges retiram sua força do deslocamento entre estas duas condições, a saber, “o esplendor formal das construções lógicas e a desesperança originada em uma perfeição ideal que, no entanto, se rende ante a natureza inabordável do mundo”. Essa natureza inabordável do mundo é, em partes, o objeto de que tenta tratar a Psicanálise. A própria construção desse campo teórico tem seu caráter traumático. Erige-se a partir daquilo que não funciona, ou melhor, que funciona à revelia da intencionalidade. Descartes já exclui como ponto de partida para a construção do conhecimento o sonho e a loucura, justamente aquilo que irá despertar o interesse de Freud e, subsequentemente, de outros psicanalistas7. De maneira análoga, Pêcheux irá abordar o discurso a partir daquilo que faz furo ao que já se encontra sedimentado e inteligível. Daí surge a sua construção sobre o acontecimento discursivo como uma irrupção de real no simbólico, ou mesmo um desvelamento da falta característica do simbólico, de maneira a integrar à sua teoria discursiva a máxima psicanalítica de que il n’y a cause de ce qui cloche8. Vale lembrar que isso acontece quando Pêcheux se vê diante do fracasso da tríplice aliança (entre Teoria Discursiva, Linguística e Materialismo Histórico) da necessidade de retificar sua teoria dando destaque à categoria de impossível, trazida à tona pelo fracasso e pela ruptura. Diante da falta de sentido, o que pode advir é uma construção, uma prótese que já não estabelece mais as mesmas relações de causalidade que o discurso da ciência proclama. Esta construção está no registro do sentido. De acordo com Palomera (1998, p. 241), Lacan assinala “que existe um sentido no real, que existe uma ordem de realidade sui generis não redutível à relação de causa e efeito”. Em linhas gerais, o que essa tese visa é a suspensão provisória da impossível resolução desse paradoxo em prol de uma construção contingente de interpretação que o inclua na própria condição de existência, de reprodução e reformulação de um discurso tal como o presente em muitos livros de autoajuda. Além disso, pensar o paradoxo a partir da sua impossível resolução nos permite elaborar uma hipótese de que não há livro de autoajuda último precisamente porque se alimentam de seu próprio fracasso.

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Dunker (2012), comunicação pessoal durante o seminário “Topologia da formação do Psicanalista no Brasil”. “Só há causa daquilo que falha/manca/claudica”. Essa declaração, emprestada de O Seminário livro 11: os quatro conceitos fundamentais de Jacques Lacan (O seminário livro 11: os quatro conceitos fundamentais) orienta e intitula o trabalho de retificação da teoria discursiva de Pêcheux iniciada em um anexo ao Semântica e Discurso (PÊCHEUX, 2009 [1978]), Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação, e alcança sua máxima articulação na obra póstuma O discurso: estrutura ou acontecimento? (PÊCHEUX, 1997a [1983]).

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Sustentar o paradoxo e sua natureza criadora é dar continuidade ao legado freudiano da relação do homem com seu inconsciente. O legado, ao contrário da herança, é deixado àquele que não é forçosamente o herdeiro. É aquilo que é transmitido a outrem. Se há algo que Lacan acolhe daquilo que Freud transmite, ao contrário de muitos outros pós-freudianos, é uma coragem de não recuar diante dos impossíveis, e uma resistência em elaborar hipóteses prematuras que visam preencher de sentido novamente a falta desse, que sempre se mostra no trabalho de elaboração intelectual. Talvez ainda, esse seja o maior desafio de uma produção em um contexto universitário: a despeito da ‘possibilidade’ de falar tudo, preservar o caráter lacunar, e consequentemente criador, da língua. Ainda que se mostre de maneira contraditória, nada impede que livros de autoajuda tenha seu sentido resolvido. Acreditamos que por meio da exposição do caráter conflituoso da constituição subjetiva (seja pela sua divisão pelo inconsciente, em Freud, ou pela sua divisão pela ideologia, em Pêcheux) e da apresentação de facetas do contexto histórico da produção desse discurso, possamos compreender de que maneira esse sintagma livros de autoajuda tem sua contradição apagada. Ao tratar da contradição que é apagada no interior da massa que suporta sem problemas ideias contrárias, Freud (2011c [1921]) atribui também essa característica à vida anímica inconsciente seja de crianças, que expressa, sem grandes conflitos, sentimentos ambivalentes, ou de neuróticos cujos impulsos reprimidos permanecem ainda durante um longo tempo sob a forma de uma fantasia que entra em conflito com o Eu. Nos dois casos, pouco a pouco, são geradas sínteses que visam à adaptação ao mundo estabilizado lógica e semanticamente. Freud (2011c [1921]) declara não possuir grandes esperanças na resolução de conflitos de ideias e contradições. É preciso prosseguir o trabalho a despeito deles. Talvez seja esse também o limite desse trabalho que não visa desfazer a contradição presente no sintagma livros de autoajuda, mas mostrá-la. Essa “mostração” é o que Lacan pretende fazer por meio da Topologia. Se partirmos da exclusão necessária de uma das escolhas semântica em prol da outra em livros de autoajuda, pois ou a ajuda vem do livro ou do próprio leitor (auto), podemos tomar o problema exposto por Skiabine (1993) como tentativa de compreensão que nos leva justamente à divisão do sujeito. Skiabine (1993) toma o cubo de Necker para mostrar de que maneira duas posições se excluem radicalmente. Esse cubo tem como característica se apresentar uma perspectiva equívoca por não fornecer pistas sobre profundidade, conforme podemos observar na figura abaixo:

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É preciso que o sujeito escolha uma das duas possibilidades, excluindo a segunda. Segundo Skiabine (1993, p. 118, tradução nossa): “essas duas posições do sujeito se excluem mutuamente; há descontinuidade radical de um a outro; entre os dois, nenhum lugar para o sujeito, é um entre-dois insustentável, um efeito de afânise do sujeito que apreende o corpo”. Na divisão do sujeito pelo objeto há aqui uma escolha e um consentimento dos quais o autor depreende a estrutura moebiana do sujeito falante. Se essa divisão do sujeito nesse caso é presentificada pelo objeto olhar, no caso do sintagma livros de autoajuda, é o equívoco que nos leva a supor uma escolha e um consentimento. Podemos observar de que maneira o equívoco e o paradoxo, ao qual autores do paradigma indiciários recorrem com frequência se configuram como um ponto de partida privilegiado de aceder a “coisas de finura” (MILLER, 2008) como inconsciente, gozo, real etc. Partindo desse paradoxo, esse trabalho se presta a uma exposição da subjetividade tendo como aparato teórico as teorias de Freud, Lacan e Pêcheux, cujas teorias possuem um ponto em comum: mostram-nos a insuficiência de sistemas formais apoiados na percepção ou na lógica clássica quando estamos lidando com o sujeito e sua constituição. A topologia, nesse sentido, é capaz de nos mostrar justamente isso: por um lado a debilidade do aparelho perceptivo, dócil aos engodos imaginário, e por outro lado, a impossibilidade de uma lógica que não suporte a contradição e o não-todo.

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Subjetividade

“Seul mais pas le seul” Jacques Lacan

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Subjetividade ao invés de sujeito Essa tese tem como objetivo refletir sobre traços de uma subjetividade forjada pelo discurso de autoajuda. É por não se tratar de um sujeito singular (em sua essência, dividido) que optamos pelo uso de subjetividade. Segundo Dunker9, o conceito de sujeito em Psicanálise se refere tanto à singularidade (que é vislumbrada fugazmente e acompanha o axioma segundo o qual o sujeito é o que um significante representa a outro significante) quanto à universalidade – e sua correspondente particularidade – (sendo que o sujeito universal é aquele para o qual se pode generalizar a relação constitutiva com a falta). É da distância entre o particular e o singular que advém inclusive a dificuldade que esse trabalho encontra na nomenclatura, recorrendo alguns momentos a outros nomes, como indivíduo e pessoa. Este trabalho parte desse sujeito universal, dividido pelo inconsciente e pela ideologia, e as construções imaginárias que decorrem dessa divisão. Portanto, não se trata de nenhum sujeito específico (não há uma análise do autor, do escritor ou do leitor) e por isso optamos em falar em uma subjetividade suposta pelo discurso de livros de autoajuda, e não de sujeito. Subjetividade aqui pode ser compreendida como uma apreensão além e aquém de um efeito fugaz de sujeito, como uma possibilidade de mapeamento de indícios de fixações subjetivas relacionadas à língua e à história. O uso desse significante, em lugar de sujeito, garante por um lado a apreensão consciente e egóica da realidade por parte do Eu ao mesmo tempo em que supõe um conjunto de características rastreáveis historicamente. Ou seja, enquanto o sujeito está relacionado à sujeição à linguagem e àquilo que um significante representa a outro significante, a noção de subjetividade é usada a fim de oferecer uma dimensão maior ao lugar social em que se insere essa subjetividade e aos fenômenos coletivos a partir dos quais podemos apreender essa subjetividade. Askofare (2004, p. 4), apoiado na leitura do texto lacaniano de 1953, Função e campo da fala e da linguagem, define a subjetividade como “uma forma histórica e determinada de traços, de posições e de valores que têm em comum os sujeitos de uma época na sua relação ao Outro como discurso”. São justamente alguns traços de uma subjetividade suposta por essa literatura – subjetividade que sabemos não ser homogênea – que essa pesquisa visa destacar e descrever pelo recurso à análise discursiva de recortes de livros de autoajuda.

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2012, comunicação pessoal. Seminário “Topologia da formação do Psicanalista no Brasil”.

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Teoria do sujeito em Freud e Lacan Le moi de l’homme n’est pas réductible à son identité vécue.10 Jacques Lacan

Formação do Eu e identificação O conceito de Spaltung11 está no centro da teoria psicanalítica. A divisão mesma é condição para o advento do sujeito. O caráter conflitivo do sujeito nunca havia sido colocado de maneira tão central como Freud o fez. Em inúmeros trabalhos, considerando-os também em seu desenvolvimento temporal, podemos localizar momentos em que Freud se contradiz, se retifica, se retoma e se reformula. O ‘Eu’ não esteve presente desde o início da vida do indivíduo da espécie humana. Ele é o fruto (não solitário) de um processo de constituição. A princípio, estariam presentes apenas os instintos autoeróticos, o que leva Freud (1996a [1914]), em Sobre o narcisismo: uma introdução, a descrever o autoerotismo como a primeira fase de desenvolvimento do Eu. Para que advenha daí a segunda fase, do narcisismo, é necessário adicionar algo a esse instinto autoerótico. No autoerotismo, parte do organismo, ou alguma zona erógena (que funciona analogamente aos órgãos genitais), sofre um investimento maior ou menor de libido, dando origem a uma catexia libidinal no ego. O narcisismo é descrito por Freud (1996b [1914], p. 81) “o complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação, que, em certa medida, pode justificavelmente ser atribuída a qualquer criatura”. Se entendermos a literatura de autoajuda como um discurso apoiado em um culto narcísico ao Eu, ou seja, como um maciço investimento libidinal do Eu em contraposição ao investimento em objetos, podemos localizar a possibilidade de origem do prefixo auto na própria teoria freudiana sobre o narcisismo. Para Freud (1996b [1914], p. 97), em conformidade ao tipo narcisista, uma pessoa12 pode amar: “(a) o que ela própria é (isto é, ela mesma), (b) o que ela própria foi, (c) o que ela gostaria de ser, (d) alguém que foi uma vez parte dela”. 10

“O eu do homem não é redutível à sua identidade vivida”. Do alemão, “divisão, cisão, clivagem”. 12 Para usar pessoa nos baseamos na forma como Ivan Correa (2012, comunicação pessoal) trata aquele que, por exemplo, procura análise e que é distinto do conceito de sujeito entendido como aquilo que um significante representa para outro significante. Falar em pessoa dota o sujeito-suporte dessa cadeia significante de uma dimensão particular (que possui uma relação ao universal), de uma narrativa biográfica cronológica que explica sua origem, sua atualidade e que o projeta para o futuro, além de uma filiação à sociedade e a seus sentidos compartilhados. 11

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Além disso, no narcisismo primário podemos observar um investimento do desejo do outro (usualmente os cuidadores) e do ideal que essa criança pode ou não buscar alcançar. Observa-se, portanto, o papel fundador da alteridade à qual o Eu é contraposto no processo de sua constituição. A descrição de Freud (2011b [1930]) da evolução de Roma e a da conservação de vestígios de espécies menos evoluídas nas mais evoluídas servem de analogia, em O mal-estar na civilização, à preservação de estágios anteriores na constituição do Eu, ao mesmo tempo em que destacam a dificuldade em localizar essas modificações ao longo do tempo. Sobre Roma, Freud (2011b [1930], p. 14) escreve: Quando queremos representar espacialmente o suceder histórico, isso pode se dar apenas com a justaposição no espaço; um mesmo espaço não admite ser preenchido duas vezes. Nossa tentativa parece uma brincadeira ociosa; ela tem uma justificação apenas: mostrar-nos como estamos longe de dominar as peculiaridades da vida psíquica por meio da representação visual.

Assim como na evolução de uma cidade, os estágios anteriores não se conservam perfeitamente na evolução do corpo. Freud (2011b [1930], p. 15) escreve que “As fases anteriores do desenvolvimento não são conservadas em nenhum sentido; desfazem-se nas posteriores, às quais fornecem o material”. Ao contrário, no âmbito psíquico todas essas fases anteriores estariam conservadas, entretanto, sua representação visual se tornaria impossível. As transformações topológicas, conforme poderemos observar mais a frente, permitem compreender de que maneira as características de estados anteriores são conservadas no desenvolvimento do ser humano. A topologia lacaniana visa responder à essa dificuldade, já que se configura como uma maneira de mostrar o caráter paradoxal da constituição subjetiva por meio de um recurso visual. Segundo Nasio (2010, p. 9, tradução nossa) “a interdição do imaginário fez muito mal aos psicanalistas no seu trabalho de pensar o real”. Nesse sentido a Topologia seria uma maneira de apreender o real por meio de uma escrita. Freud, em 1892, em correspondência a Breuer, já demonstra a ambição de encontrar uma maneira de planificar, de colocar em um plano de duas dimensões, aquilo que aparece de tão corporal na teoria sobre a histeria. Em um primeiro momento, Freud teria pensado, apoiado em Kant, que dentre os mundo externos e internos, somente o segundo é passível de ser conhecido. Essa separação é então afrouxada por uma outra postulação: a de que o mundo externo seria uma projeção do mundo interno. É a essa dualidade que a topologia lacaniana se refere, entretanto, “no lugar de dois reais, trata-se apenas de um, unívoco, sem separação, definido essencialmente por sua modalidade de ser impossível de ser representado [...]” (NASIO, 2010, p. 12, tradução nossa). Ainda que nos pareça, não existe uma divisão óbvia entre Eu e objeto. 33

Normalmente nada nos é mais seguro que o sentimento de nós mesmo, nosso Eu. Este Eu nos aparece como autônomo, unitário, bem demarcado de tudo o mais. Que esta aparência é enganosa, que o Eu na verdade se prolonga para dentro, sem fronteira nítida, numa entidade psíquica inconsciente que denominamos Id, à qual ele serve como uma espécie de fachada – isto aprendemos somente com a pesquisa psicanalítica [...] A patologia nos apresenta um grande número de estados em que a delimitação do Eu ante o mundo externo se torna problemática, ou os limites são traçados incorretamente; casos em que partes do próprio corpo, e componentes da própria vida psíquica, percepções, pensamentos, afetos, nos surgem como alheios e não pertencentes ao Eu; outros em que se atribui ao mundo externo o que evidentemente surgiu no Eu e deveria ser reconhecido por ele. Logo, o sentimento do Eu está sujeito a transtornos, e as fronteiras do Eu não são permanentes (FREUD, 2011b [1930], p. 9-10).

Contrariando essa dimensão temporal de constituição do Eu, os livros de autoajuda forjam uma subjetividade que não tem uma origem nem uma constituição. Atemporal, sempre jálá e dada a priori, essa subjetividade se caracteriza pelo essencialismo e transcendência, conforme podemos observar no recorte do livro de autoajuda Escolha ser feliz: o essencial da vida e da alma, no qual Stephanie Dowrick (2011, p. 167, grifos nossos) escreve: “Você certamente pode mudar padrões prejudiciais, ampliar seu foco e seus interesses e aprender com os fracassos. Pode aparar suas arestas e descobrir seus talentos e atributos. Mas seu espírito, sua alma, sua essência não estão sujeitos a mudanças”. O Eu, na obra freudiana, está contraposto ao objeto que por estar ‘fora’ só aparece ao Eu, a princípio, a partir de uma ação particular baseada na ausência ou presença de dor ou prazer. Por conta disso, Freud denomina esse momento de Eu-de-prazer. O Eu-de-prazer joga para ‘fora’ o que pode causar desprazer e toma como ‘dentro’ aquilo que pode gerar prazer. Seria somente mediante as experiências subsequentes que essas fronteiras entre o Eu e o ‘fora’ seriam retificadas. Por fim, é finalmente estabelecido o amor objetal, que direciona a libido aos objetos ‘externos’, sendo que ainda assim, o estágio narcisista se preserva em partes durante toda a vida do indivíduo. Sobre o dentro e fora, Freud (2011b [1930], p. 11) ainda escreve: Chega-se ao procedimento que permite, pela orientação intencional da atividade dos sentidos e ação muscular apropriada, distinguir entre o que é interior – pertencente ao Eu – e o que é exterior – oriundo de um mundo externo -, e com isto se dá o primeiro passo para a instauração do princípio de realidade, que deve dominar a evolução posterior.

Aqui já podemos perceber como haveria de fato, não uma oposição, mas sim uma continuidade entre princípio de prazer e princípio de realidade, bem como aponta Lacan (1997 [1959-1960]) no Seminário 7: a ética da psicanálise. Para Lacan (1997 [1959-1960], p. 39) o “princípio de prazer é um princípio de inércia”, ou seja, esse princípio funcionaria a partir de um 34

automatismo que caracteriza o aparelho neurônico ao qual Freud delimita o indivíduo. No entanto, “esse organismo por inteiro parece feito não para satisfazer a necessidade, mas para aluciná-la” (LACAN, 1997 [1959-1960], p. 40). É preciso, por isso, retificar esse aparelho, retificação por meio da qual o princípio de realidade acaba se opondo à primeira tendência, que busca o prazer e evita o desprazer. A princípio o Eu está ligado ao que vem a se tornar externo. “Ou, mais corretamente: no início o Eu abarca tudo, depois separa de si um mundo externo”. Esse Eu aparece então como um “vestígio atrofiado de um sentimento muito mais abrangente – sim, todo-abrangente” (2011b [1930], p. 11). Por conta disso, podemos articular o Eu à estrutura da linguagem e ao social: se o Eu é extraído desse todo anterior à sua existência consequentemente podemos afirmar que aquilo que distingue essa estrutura social em diferentes momentos históricos tem consequências na formação do Eu. Isso vem a justificar a retomada de aspectos históricos e contextuais na compreensão da formação de subjetividades. O caráter cindido do Eu fica mais claramente exposto na obra de Freud quando esse trata da identificação. Em Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud (2011 [1921]) estabelece três tipos de identificações. Cruglak (2001) organiza-as a partir de suas fontes. A primeira é considerada a própria definição de identificação e é anterior a qualquer escolha de objeto: “Percebe-se apenas que a identificação se empenha em configurar o próprio Eu à semelhança daquele tomado por ‘modelo’” (FREUD 2011 [1921], p. 62). Essa identificação, chamada também de Incorporação, Cruglak (2001, p. 24), retomando Lacan, a toma como “a matriz da série de identificações”. Ela condiciona todas as outras que vêm em seguida. É ela que estrutura o sujeito. Por ser entendida por Freud como a mais primitiva ligação afetiva, Cruglack (2001) à refere à angústia em sua dimensão originária: a da intrusão radical. “O intrusivo é algo que funciona como um dano, um corpo estranho. É – segundo a observação de Lacan (1982) – ‘a aspiração em si de um meio basicamente diferente’” (CRUCLAK, 2001, p. 22-23). A noção de Incorporação já denota a presença de uma interioridade. O endo, no entanto, não é tão óbvio quanto nos parece à primeira vista. E Lacan retomará a identificação a partir da figura topológica do toro e da operação de reviramento dessa figura. Por meio desta figura, Lacan (2003) trata do encadeamento entre o desejo do sujeito e o do Outro. Tomando as voltas em torno do buraco circular como as voltas da demanda e a volta em torno do círculo vazio como a volta do desejo, representamos um sujeito. Segundo Chemama (1995, p. 212), “a demanda parece girar em torno de um objeto, mas erra o verdadeiro objeto do desejo, situado alhures, no buraco central”. Assim, Lacan propõe que as voltas da demanda (D) do Outro determinam as voltas do desejo (d) do sujeito, e vice-versa. 35

Figura de toro retirada de Lacan (2003, p. 222)

O toro vai tratar da natureza do sujeito do inconsciente no que ele é sempre mortificado. Segundo Granon-Lafont (1990, p. 44), “Na aurora do nascimento do sujeito há identificação. Esta é a grande questão que o toro e sua topologia permitem colocar em termos claros [...] Um toro se define como uma superfície sem margem, sendo, neste sentido, equivalente à esfera, mas seu centro é vazio. E sua melhor aproximação física é dada pela  ing ou pelo pneu. Também um anel pode figurá-lo, se se tem em conta a matéria, assim como se dá com a xícara e sua asa”. Esta superfície é utilizada por Lacan para tratar da identificação, no sentido de que é preciso uma articulação entre o que chamamos de interior ou psiquismo e a identificação. “O toro, superfície sem margem, delimita um interior e um exterior com a particularidade de apresentar um centro ‘exterior’. Este centro furado permite a nodulação” (GRANON-LAFONT, 1990, p. 47). Lacan apoia a dialética neurótica do sujeito e do Outro nesta nodulação, onde as voltas do desejo do sujeito seriam relacionadas às voltas da demanda do Outro, seguindo a representação gráfica:

Figura retirada de Lacan (2003 [1961-1962], p. 200)

“Este processo dá conta da identificação” (GRANON-LAFONT, 1990, p. 58). Assim, a topologia permite as articulações entre consciente e inconsciente, entre sujeito e Outro, que estão em jogo constante nos processos discursivos, como aqueles dos genéricos discursivos encontrados em livros de autoajuda. Lacan (2003 [1961-1962], p. 13) afirma, a respeito da identificação, que “o que se pensa primeiro é no outro a quem nos identificamos”. A operação de reviramento dessa figura permite fazer com que o que está dentro passe para fora e vice-versa. Ao operar um corte pela linha cheia (ao redor do vazio interior do toro) 36

obteremos um tubo. Ao revirar do avesso o tubo pelos dois lados e unir as duas pontas, obteremos um toro revirado. Aqui a operação se completa, passando todo o interior para o exterior, e o vazio interno para buraco central, obtendo uma figura homóloga à primeira.

Figuras retiradas de Cruglak (2001, p. 36-37)

Freud (2011 [1921], p. 64-65) resume as características da identificação da seguinte maneira: [...] primeiro, a identificação é a mais primordial forma de ligação afetiva a um objeto; segundo, por via regressiva ela se torna o substitutivo para uma ligação objetal libidinosa, como que através da introjeção do objeto no Eu; terceiro, ela pode surgir a qualquer nova percepção de algo em comum com uma pessoa que não é objeto dos instintos sexuais.

Sendo a primeira a mais primordial, as duas segundas em Freud estão relacionadas às formações de sintomas e podem ser clinicamente observáveis (ao contrário da primeira que pelo seu caráter mítico é inclusive remetida ao Mito da Horda Primitiva). A identificação se relaciona à formação dos sintomas na medida em que os sintomas sejam os mesmos que os do indivíduo ao qual se identifica. É assim que Freud (2011 [1921], p. 63) descreve, no caso paradigmático de Dora, seu sintoma de imitação da tosse do pai: “a identificação tomou o lugar da escolha do objeto, e a escolha de objeto regrediu à identificação”, já que o Eu adotou características do objeto ao qual se identifica. Decorre dessa identificação parcial que se obtenha o que Freud (2011 [1921]) chama de traço da pessoa-objeto. Daquele objeto amado só se pode extrair traços ao quais se identifica o indivíduo. Aqui estão compreendidos os traços da formação dos sintomas histéricos em torno desse traço unário “que opera a substituição da escolha de objeto pela identificação por via regressiva” (CRUGLAK, 2001, p. 21). 37

Há, no entanto, um outro tipo de identificação (o terceiro tipo) que não conta com o amor objetal àquele que deve ser ‘copiado’. Trata-se de um mecanismo no qual a pessoa quer se colocar na mesma situação que a que é copiada. Um único ponto (sintomático) realiza a comunhão entre os “eus” (CRUGLAK, 2001). Essa algo comum pode inclusive ser a ligação ao líder, ou ideia abstrata. É aqui que entra a identificação que poderia servir como vetor de em uma epidemia, não no sentido comum relacionado ao contágio por vírus, por exemplo, mas sim um tipo de epidemia afetiva, conforme retomaremos mais à frente. Nessa identificação por meio do sintoma, Um Eu percebeu no outro uma analogia significativa em certo ponto [...], constrói-se uma identificação nesse ponto, e sob influência da situação patogênica essa identificação se desloca para o sintoma que o Eu produziu. A identificação através do sintoma vem a ser, desse modo, o indício de um local de coincidência dos dois Eus, que deve permanecer reprimido (FREUD, 2011 [1921], 64).

Retomamos a identificação porque nossa hipótese é a de que um discurso tem efeito ou pode vir a ter efeito a partir desse mecanismo. Enquanto no sintagma livros de autoajuda podemos, pela via do equívoco e da contradição, resgatar uma origem mítica do Eu a partir de uma alteridade que é apagada pela sua incorporação, as outras duas modalidades de identificação podem ser observadas de maneira mais sistemática no discurso dos livros de autoajuda. Freud exemplifica a identificação histérica pela reação epidêmica em um pensionato: jovens que começam a apresentar os mesmos sintomas. Estabelecemos uma relação entre essa identificação e a suposta nos livros de autoajuda precisamente porque partem desse mesmo ponto: um ponto coincidente sobre o qual possa se assentar a identificação. Muitos desses livros partem da descrição ‘sintomática’ da vida dos autores ou ainda de outras pessoas que sevem de base para essa identificação. Subirana (2002, p. 24, grifos nossos) continua em seu livro de autoajuda Viver em liberdade: Em relação ao outro, devemos ser conscientes de que existem duas coisas na vida que nunca poderemos mudar: o passado e os outros. Frequentemente, isso provoca em nós uma série de frustrações, especialmente quando não conseguimos os resultados esperados. [...] A frustração é uma forma de ira. Você permite que a emoção tome o controle; portanto, você perde o controle.

É a frustração o denominador comum entre escritor e leitor (em nós) que permite que o escritor possa prever os acontecimentos que se sucedem a essa frustração e que se passam com o leitor (em você). Por conta disso, partimos da hipótese de que a subjetividade na qual encontramos um narcisismo inflado como aquela que está em discursos de livros de autoajuda serve como um convite à identificação imaginária entre essa subjetividade e o leitor, ancorando-se em 38

mecanismos presentes em qualquer psiquismo. O vetor dessa identificação é muitas vezes o pronome você, que convoca incessantemente o leitor a ocupar o lugar oferecido por esse discurso. Não temos aqui a pretensão de verificar a eficiência de tal convocação, até porque sabemos que não poderia se sustentar. Cury (2007, p. 7), por exemplo, intitula os capítulos do seu livro de autoajuda Treinando a emoção para ser feliz de: “Você venceu o maior concurso da vida”, “Você foi o maior nadador da história”, “Você foi o maior alpinista da história”, “Você viveu o maior romance da história”, “Você é insubstituível: um ser único no universo”. A interioridade e exterioridade, da qual partem de maneira transparente muitos dos discursos de livros de autoajuda, não estiveram sempre presentes. A introjeção do objeto no Eu tem sua origem na renúncia do objeto (uma das características da resolução do Complexo de Édipo). Um exemplo desse processo são os casos de melancolia, que têm normalmente sua origem na perda real do objeto, ou ainda em casos de grave autodepreciação que estariam relacionados à hostilidade dirigida ao objeto introjetado. A compreensão da melancolia é descrita por Freud (2011a [1917]) como uma maneira de entender de que maneira o Eu é constituído, já que no melancólico é possível observar uma parte de seu Eu contraposta à outra parte, que a avalia criticamente ao tomá-la como objeto. Acrescenta ainda que “nossa suspeita de que a instância crítica aqui cindida do ego poderia provar sua autonomia sob outras condições será confirmada por toda observação ulterior” (FREUD, 2011ª [1917], p. 57). Conflito e ordem moral Além do objeto introjetado, o Eu está cindido em o que Freud (2011c [1921]) também denomina de consciência moral. Trata-se de uma instância crítica que pode se separar do Eu ao entrar em conflito com esse. Freud (2011c [1921], p. 68) a denomina ideal do Eu, e lhe atribui “funções como auto-observação, consciência moral, censura do sonho e principal influência na repressão”. À consciência moral, Freud (2011a [1917)] acrescenta a censura da consciência e a prova de realidade como as grandes instituições do Eu. Dado que este trabalho trata de exigências ‘exteriores’ provenientes dos livros de autoajuda, essa instância nos interessa particularmente, pois “gradualmente ela acolhe, das influências do meio, as exigências que este coloca ao Eu, as quais o Eu nem sempre é capaz de cumprir, de modo que o indivíduo, quando não pode estar satisfeito com seu Eu em si, poderia encontrar satisfação no ideal do Eu que se diferencia do Eu” (FREUD, 2011c [1921], p. 68). 39

Sua origem está localizada na autoridade (dos pais, especialmente) e normalmente o que se observa é uma grande variação entre ideal de Eu e Eu real nos indivíduos. Assim, o ideal do Eu na obra de Freud, possui uma intersecção com a sociedade, na medida em que se relaciona também aos ideais da família, da classe ou da nação à qual o indivíduo pertence. É interessante notar como esse caráter conflitivo do Eu descrito por Freud (e pelos pósfreudianos) em toda a sua obra aparece nos discursos dos livros de autoajuda: “Ego” e “eu” são termos técnicos que talvez pareçam irrelevantes para sua vida cotidiana. Nenhum dos dois é exato, sendo seu significado muito discutido. O que interessa, porém, é a guinada na vida real que ocorre quando você reconhece seus padrões motivados pelo ego e percebe que existem outras maneiras de pensar a respeito dos outros e de si mesmo. Ao identificar-se com o ego (como acontece com a maioria de nós), você precisa de muito sustento psicológico externo. Sua percepção de identidade vem do que você faz e não de quem é. Você tende a se ver pelos olhos dos outros – ou por meio de suas próprias críticas – e julgar a si mesmo a partir disso. [...] É difícil se desfazer do ego; ele nos impele a estabelecer comparações e a pensar sobre nós mesmos como superiores ou inferiores, o que acaba gerando a sensação de afastamento e solidão. Identificar-se com seus pensamentos, suas atitudes, suas crenças, suas emoções ou sua personalidade é apenas uma outra forma de identificar-se com o seu ego. Trata-se de algo normal, mas que o deixa vulnerável. Ao identificar-se com seu eu ou sua alma, você aceita o convite para confiar em suas qualidades interiores. Os valores e atributos universais são motivados pela alma; são seus por direito. Quando você se identifica com o eu ou com a alma, você permanece preocupado com o que os outros pensam a seu respeito, mas sua noção do próprio valor não depende disso. Você se sente ligado a algo maior – ainda que não o chame de “Deus”. Sua vida é orientada por valores, sua sensação de afastamento das pessoas é radicalmente reduzida e você reconhece a profunda interdependência de todas as formas de vida. Isso acarreta responsabilidades, mas reduz drasticamente a solidão (DOWRICK, 2011, p. 168).

Nesse recorte do livro Escolha ser feliz, observamos o recurso ao vocabulário da Psicanálise (ou mais amplamente da Psicologia) tanto legitimado pela sua autoridade ‘científica’ quanto vulgarizado cientificamente. O uso dos substantivos ego e eu serve para diferenciar dois aspectos da personalidade, sendo o primeiro relacionado às exigências internas e o segundo a uma essência interna que podemos pensar como transcendental. Além disso, é ainda curioso (e quase cômico) observar que há uma terceira instância nessa subjetividade que pode tanto se identificar ao eu quanto ao ego. Essa terceira instância aqui é simplesmente tratada pelo pronome ‘você’, possivelmente se referindo ao leitor, o que nos dá pistas bastante preciosas sobre essa subjetividade específica dessa publicação. Ainda que o caráter conflituoso da subjetividade aqui apareça de maneira imaginarizada, a existência de uma terceira instância que escolhe à qual das outras duas (‘eu’ e ‘ego’) irá se identificar já recoloca a subjetividade suposta nesse discurso em um lugar de autonomia possível. 40

Devemos ainda destacar o caráter conflituoso em que se encontram as ideias culturais e éticas nas quais o indivíduo é mergulhado e seus instintos cujas satisfações devem ser impedidas ou ao menos devem sofrer modificações na sua realização. Não se trata somente de uma exigência externa ao Eu, mas sim de um padrão de exigência reconhecido como parte do Eu (já dividido, portanto), que Freud (1996b [1914]) chama nesse texto de amor-próprio do ego. Por isso estamos de fato diante de um Eu no qual o conflito se faz desde o início presente. A repressão provém do Eu. Ou seja, diante das mesmas restrições, dois indivíduos podem ter reações bastante diferentes, o que leva Freud a elaborar a hipótese de um ideal diferente em cada caso. A essa instância, Freud dá o nome de Eu ideal e lhe atribui o fato condicionante da repressão. O Eu ideal13 é para onde se desloca o narcisismo. Assim como o ego infantil, ele “se acha possuído de toda perfeição e valor” (FREUD, 1996b [1914], p. 100). Mais uma vez, Freud demonstra a incapacidade do homem de abrir mão de um estado de plenitude que hipoteticamente desfrutou, já que esse Eu ideal permanece como um estado inicial a ser recuperado. A mítica de um estado anterior completo é descrita em O banquete, de Platão, durante o qual um dos participantes, Aristófanes, descreve os seres completos, perfeitos e esféricos que são cortados ao meio por despertar inveja nos deuses. Esses seres, agora pela metade, perambulam à procura de suas outras metades que viriam a completá-los, servindo de metáfora ao amor. Essa temática aparece em um livro de autoajuda intitulado Treinando a emoção para ser feliz, de Augusto Cury (2007), no entanto, ao contrário da eterna incompletude que nos move em direção ao outro, o autor descreve uma outra história: “Quando éramos apenas uma célula incompleta e desesperada, queríamos chegar ao topo da vida. O topo da vida é a própria vida.” (CURY, 2007, p. 81). Ou ainda: Você era incompleto e imperfeito. Sua vida só seria completa e perfeita se encontrasse a célula da sua vida. Nunca você dependeu tanto de outro para existir. Quando nem ao menos tinha emoção para amar, nos apaixonamos pela nossa metade. Não a conhecíamos, nunca a ouvimos nem havíamos visto sua imagem, mas já a amávamos. Foi um amor arrebatador, um ‘amor genético’, a mais louca e intensa experiência da natureza. Cruzamos mares e oceanos sem medo de fracassar, escalamos montanhas e penhascos altíssimos sem receio de desabar. Nós nos tornamos os mais arrojados astronautas. Procurávamos o quê? A ‘lua do óvulo’. Era quase impossível atingi-la. Tínhamos que seguir uma longa e sinuosa trajetória no universo do útero. [...] Muitos não chegam a lugar nenhum, pois não têm metas ou não sabem estabelecer prioridades para atingilas. [...] Treine ser um grande empreendedor. Lembre-se de que você já foi

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Traduzido nessa edição como ego ideal.

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imbatível. Um dia alguém vai superá-lo e que esse alguém seja você mesmo (CURY, 2007, p. 95-96).

Aqui a cópula é do indivíduo com ele mesmo gerando como produto o si mesmo “imbatível”. A origem do indivíduo em si mesmo parece encontrar um paradigma nessa descrição que, em última instância, parece servir como modelo de como ser um “empreendedor” de sucesso que nunca desiste de o que quer que seja, independentemente das condições adversas que se apresentam. O Eu não tem disposição de renunciar à perfeição narcísica que viveu durante a infância (e quiçá pré-infância), sendo que quando cresce e se vê tendo que adaptar aos julgamentos (exteriores e próprios), passa a considerar o Eu ideal a condição a ser recuperada. “O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal” (FREUD, 1996b [1914], p. 101). Isso não significa que os discursos dos livros de autoajuda veiculem ‘Eus ideais’, mas que a existência e o funcionamento de tal instância servem de terreno fértil à produção de um discurso que apela a um ideal a ser recuperado, como potencialidade dessa subjetividade suposta. Já o ideal do eu é uma instância atravessada pelos valores culturais e não somente pelo narcisismo primário. Na medida em que essa instância se afasta da finalidade de satisfação sexual, pode se tornar uma das fontes da sublimação, no entanto, não a garante. Nesse sentido, podem relacionar-se à repressão. Lacan destaca que essas “ondas estáveis” (eu, ideal do eu, supereu) das quais se ocupa Freud pela constância que apresentam, não devem ser retomadas de maneira a serem consagradas, mas sim para que possamos entender como servem de obstáculo ao sujeito e ao projeto de levá-lo “aonde queremos levá-lo, a saber, a seu desejo” (LACAN, 1992, p. 324). Lacan (1992, p. 324) se refere ainda a elas como “graus de alienação” no sujeito que “imunizam-no, mitridatizam-no com relação a um certo discurso”. Mas é o desejo que permite que não seja o caso de pensar no sujeito em uma inércia irredutível. Bem como a função sintética não passa de um projeto que acaba sendo sempre falido. Podemos também supor que um outro mecanismo seja aproveitado pelo discurso de autoajuda: o da idealização. Isso porque muitas dessas publicações oferecem ao leitor um ponto de chegada genérico e frequentemente inalcançável, como por exemplo, a “liberdade”. Se em um primeiro momento, é o Eu real que está investido libidinalmente, agora o investimento recai sobre esse Eu ideal, por meio de deslocamentos na libido. O que acarreta também no caráter de perfeição atribuído a essa instância e herdado do narcisismo primário. “O

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que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal” (FREUD, 1996b [1914], p. 101). No processo de idealização, o objeto idealizado encontra-se “exaltado na mente do indivíduo”, fazendo com que se localize tanto na libido do Eu quanto na libido do objeto. Apesar de a idealização estimular a sublimação, que se trata do afastamento do instinto de satisfação sexual e seu direcionamento a outras finalidades, não a garante. Freud (1996b [1914], p. 101) afirma que “em geral é muito mais difícil convencer um idealista a respeito da localização inconveniente de sua libido do que um homem simples, cujas pretensões permaneceram mais moderadas”. Além disso, Freud (1996b [1914]) aproxima o ideal do eu a uma instância psíquica que vigia o Eu de modo a assegurar a satisfação narcísica na medida em que comparasse o ideal do Eu ao eu real constantemente. Reconhece que esse sentimento de vigilância é bastante comum, não somente nos casos mais extremos, de paranóia, mas também na vida cotidiana. A princípio nomeia essa instância como consciência e, ainda que tenha sua origem localizada na autoridade dos pais, subsequentemente se relaciona a outros elementos da vida em sociedade, como a opinião pública, por exemplo. Nesse sentido, autocrítica e auto-observação andam juntas. Vemos que paradoxalmente, “o desenvolvimento do ego [Eu] consiste num afastamento do narcisismo primário e dá margem a uma vigorosa tentativa de recuperação desse estado. Esse afastamento é ocasionado pelo deslocamento da libido em direção a um ideal do ego [ideal do Eu] imposto de fora, sendo a satisfação provocada pela realização desse ideal” (FREUD, 1996b [1914], p. 106). A partir disso, podemos considerar que os livros de autoajuda supõem um leitor que procura reaver um estado ideal, perdido, ou ainda podemos considerar que as orientações presentes nessa literatura supõe a possibilidade de se chegar ao ideal. Essa armadilha não se deve ser considerada exclusiva dessa literatura, de fato, ela é comum a todos, e bem por isso, parece servir de mais um ponto de ancoragem desse discurso em funcionamentos psíquicos gerais. A gênese da ordem moral na obra de Freud se apresenta sob a forma de um mito em Totem e Tabu, no qual o assassinato original do pai institui a lei e desencadeia o processo civilizatório. Conforme Lacan (1997 [1959-1960], p. 14), [...] é a transformação da energia do desejo que permite conceber a gênese de sua repressão, de tal maneira que a falta, nesse caso, não é apenas algo que se propõe a nós em seu caráter forma – devemos louvarmo-nos com ela felix culpa, já que se encontra no princípio de uma complexidade superior à qual a dimensão da civilização deve sua elaboração.

Vemos que o conflito está localizado na origem do organismo e é justamente o conflito que possibilita a esse organismo que ele viva. De acordo com Lacan, “nunca ninguém, nunca 43

nenhum sistema de reconstituição humana fora tão longe na acentuação desse caráter fundamentalmente conflituoso” quanto Freud. O princípio de realidade, no entanto, seria exercido de maneira precária, já que a realidade mesmo é precária. É por conta dessa precariedade que “os mandamentos que traçam sua via [da realidade] são tirânicos” (LACAN, 1997 [1959-1960], p. 43). Lacan chama isso de “paradoxo da relação com real, em Freud”. Isso porque na sua tentativa de correção e de compensação de quantidades, o que o princípio de realidade faz é isolar o sujeito da realidade que já se encontra fora do seu alcance, tanto pelo seu caráter precário quanto pelo acesso marginal que o sujeito tem a ela. Podemos localizar esse caráter tirânico da realidade em Freud (2011 [1921]) para quem é a sociedade que prescreve as normas moralizantes aos indivíduos, sendo que esses sempre permanecem aquém dessas exigências. Se pensarmos que quem cria essas normas impossíveis de serem seguidas são os próprios indivíduos que irão ficar aquém das exigências, nos deparamos com outro paradoxo interessante que recoloca esses indivíduos em sua dimensão de sujeitos divididos. Para Lacan (1997 [1959-1960], p. 11) “a experiência moral como tal, ou seja, a referência à sanção coloca o homem numa certa relação com a sua própria ação que não é simplesmente a de uma lei articulada, mas sim de uma direção, de uma tendência e, em suma, de um bem que ele clama, engendrando um ideal da conduta”. Ou seja, há um além do mandamento, de uma obrigação, que Lacan institui como sendo de uma ordem ética e não moral. A oposição entre os princípios de prazer e realidade é da ordem da ética e não da psicologia, pois não se sustenta teoricamente. Haveria em Freud, além da dimensão própria à ordem da psicologia, na qual ele localiza o aparelho psíquico e todo seu arranjo mecanicista, uma dimensão ética. “O que no-lo [Freud] mostra é que o conflito se encontra aí em primeiro plano e que desde o início o conflito é, vamos dizer, massivamente de ordem moral” (LACAN, 1997 [1959-1960], p. 49). A reflexão ética sempre tenta reduzir as antinomias que aparecem na relação entre prazer e bem final, por conta do “fato de o prazer aparecer, em muitos casos como o termo oposto ao esforço moral, e de ser preciso, no entanto, que ele encontre aí a referência final, aquela à qual o bem que orienta a ação humana deve, no fim das contas, reduzir-se” (LACAN, 1997 [1959-1960], p. 49). No interior de qualquer elaboração moral está a noção do conflito. Isso nos leva a considerar que a moral apresentada pelo discurso de autoajuda de maneira óbvia e transparente tem tal sentido constituído historicamente e deve estar remetido a um processo de 44

homogeneização que apaga os conflitos e contradições presentes no sujeito. Vale aqui citar uma passagem do livro Como fazer amigos e influenciar pessoas, de Dale Carnegie (2000, p. 171), que expõe uma contradição, mas a coloca em um plano no qual pode ser resolvida, ou ainda, escamoteada de maneira que o Eu possa se proteger de qualquer falha posterior. O autor estava se referindo a Benjamin Franklin e ao processo de transformação pelo qual passou ao ser repreendido por um “old Quaker Friend” sobre seu temperamento firme demais: Disse Franklin: ‘Fiz disto uma regra: evitar toda contradição direta aos sentimentos alheios bem como toda afirmativa decisiva de minha parte. Cheguei a proibir-me o uso de toda palavra ou expressão de linguagem que importasse uma opinião fixa, tais como ‘certamente’, ‘indubitavelmente’, etc. E passe a adotar em lugar delas, ‘eu concebo’, ‘eu penso’, ou ‘eu imagino’ ser uma coisa assim, ou ainda ‘me parece no momento’.

De certa maneira, o que se observa, ao contrário de uma ‘tolerância’ ou ‘compreensão’ frente àquilo que não cessa de não se inscrever, aos lapsos, falhas, é o desenvolvimento de um mecanismo ainda mais sofisticado que se acerque desses impossíveis. O caráter contraditório do Supereu Ce n’est pas le mal, mais le bien, qui engendre la culpabilité.14 Jacques Lacan, em Télévision Se a princípio o Supereu é entendido como a instância moral que surge ao final de um Complexo de Édipo adequado, por outro lado, ele cumpre a função de demanda de satisfação pela via de um mandato, de um imperativo. Como a civilização seria capaz de conter a agressividade? Freud (2011b [1930], p. 69) estabelece a hipótese de que o pendor agressivo seria voltado ao próprio Eu, configurando aqui a gênese do Supereu “que, como ‘consciência’, dispõe-se a exercer contra o Eu a mesma severa agressividade que o Eu gostaria de satisfazer em outros indivíduos”. Sendo assim, a origem e desenvolvimento do supereu estariam relacionados à psicogênese e à sociogênese, já que se trata de uma instância imprescindível ao surgimento da civilização que “[...] controla então o perigoso prazer em agredir que tem o indivíduo, ao enfraquecê-lo, desarmálo e fazer com que seja vigiado por uma instância no seu interior, como por uma guarnição numa cidade conquistada” (FREUD, 2011b [1930], p. 69).

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“Não é o mal, mas o bem que engendra a culpabilidade” (tradução nossa).

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No entanto, podemos pensar que essa instância ‘interior’ como não tão interior assim, já que serve inclusive a mandatos exteriores que têm como objetivo manter uma sociedade coesa e funcional. A tentativa de utilização da força superegóica com seus mandatos e injunções é frequentemente observada nos discursos de livros de autoajuda. Como veremos mais a frente, muitas dessas publicações apresentam instruções, pedidos, ordens, e conselhos na forma de verbos conjugados no imperativo. Freud (2011b [1930], p. 83) relaciona o supereu à consciência, ao sentimento de culpa, à necessidade de castigo e ao arrependimento: O supereu é uma instância explorada por nós; a consciência, uma das funções que a ele atribuímos, a de vigiar os atos e intenções do Eu e julgar, exercendo uma atividade censória. O sentimento de culpa, a dureza do Supereu, é então o mesmo que a severidade da consciência, é a percepção que tem o Eu de ser vigiado assim, a apreciação da tensão entre os seus esforços e as exigências do Supereu, e o medo ante essa instância crítica (subjacente à relação inteira), a necessidade de castigo, é uma expressão instintual do Eu, que por influência do Supereu sádico tornou-se masoquista, ou seja, emprega uma parte do instinto para destruição interna nele presente para formar uma ligação erótica com o Supereu.

A consciência moral seria, portanto, posterior ao Supereu e a origem do sentimento de culpa está relaciona à exigência por parte da civilização de contenção da agressividade. O pendor agressivo é voltado ao próprio Eu e por conta disso, encontramos nesse ponto os primórdios da necessidade de controle do indivíduo por si mesmo. Ainda em Freud, de certa forma, a imposição de origem interna de limites só seria levada a cabo diante de um infortúnio, isto é, um episódio que diante de uma atitude considerada normal pelo indivíduo adveio uma infelicidade e uma punição. Por conta disso, “o destino é visto como substituto da instância parental; quando uma pessoa tem infortúnio, significa que não mais é amada por esse poder supremo, e, ameaçada por essa perda de amor, inclina-se novamente ante a representação dos pais no Supereu, que no momento da fortuna tendia a negligenciar” (FREUD, 2011b [1930], p. 73). Logo, o sentimento de culpa teria duas origens: a autoridade e o Supereu. Se o segundo dá continuidade e substitui o primeiro com a diferença de que é possível efetuar uma vigilância muito maior e eficiente, já que é possível ao sujeito vigiar os próprios pensamentos agressivos ou ‘pecaminosos’, é possível compreender a maior severidade do Supereu. A simples renúncia da satisfação instintual não seria o suficiente no regime superegóico, pois a aspiração à satisfação subsiste ainda transmutada em desejo, que não pode ser escondido do Eu. Mesmo a despeito da renúncia não há a possibilidade de plena felicidade por conta desse sentimento de culpa. A renúncia instintual já não tem efeito completamente liberador, a abstenção 46

virtuosa já não é recompensada com a certeza do amor; um infortúnio que ameaça a partir de fora – perda do amor e castigo da autoridade externa – é trocado por uma permanente infelicidade interna, a tensão da consciência de culpa (FREUD, 2011b [1930], p. 74).

Se num primeiro momento a autoridade externa e a perda do amor, logo, da segurança provida pelo outro, são os motivadores da renúncia da satisfação instintual, na medida em que essa autoridade é internalizada, e consequentemente má intenção e má ação são equiparadas, é possível o estabelecimento de um sentimento de culpa condutor das ações do indivíduo. De acordo com Freud (2011b [1930], p. 74) “a agressividade da consciência conserva a da autoridade”. É possível também falar na eventualidade de um ato que tem origem na momentânea debilidade da consciência que, incapaz de limitar uma satisfação instintual, retoma sua proporção anterior após a execução do ato, gerando um sentimento que pode ser chamado de arrependimento. Não só podemos tratar desse sentimento num plano de desenvolvimento individual, como é possível utilizá-lo para tratar do desenvolvimento filogenético. Para tanto, Freud (2011b [1930], p. 79) retoma o mito da horda primitiva e propõe que Esse arrependimento era resultado de uma primordial ambivalência afetiva perante o pai, os filhos o odiavam, mas também o amavam. Depois que o ódio se satisfez com a agressão, veio à frente o amor, no arrependimento pelo ato, deu-lhe o poder do pai, como que por castigo pelo ato de agressão contra ele cometido, criou as restrições que deveriam impedir uma repetição do ato.

Logo podemos aqui retraçar a participação do amor na formação da consciência dotada de um caráter inevitavelmente culpado. A execução ou não do ato de matar o pai é irrelevante, já que todos fatalmente estão sujeitos aos sentimentos ambivalentes (ou contraditórios) de amor e destruição (Eros e pulsão de morte). Estádio do espelho A constituição do Eu na obra lacaniana está mais bem descrita a partir da leitura que ele faz da experiência que chama fundamental de criança diante da sua imagem no espelho. Fundamental porque é a partir dessa imagem, anteriormente entendida como de um outro, que a criança se apropria de uma síntese ortopédica de si. Trata-se do que ele chama de Estádio do Espelho que segundo Lacan (1998 [1949], p. 97) deve ser compreendido “como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem – cuja predestinação para esse efeito de fase é suficientemente indicada pelo uso, do antigo termo imago”. 47

Colocada frente ao espelho e sustentada por um outro, a criança se depara com uma imagem que a princípio atribui a uma outra criança, seu semelhante. Lacan (1998 [1949], p. 97) descreve esse momento como uma assunção jubilatória de sua imagem especular, que serve como “matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes da linguagem lhe restitua, no universal sua função de sujeito”. A forma então é designada [eu]-ideal, designação que não será mantida posteriormente. O que importa aqui é a constituição da instância do eu que não é jamais redutível ao indivíduo isolado, ela situa a instância do eu sobre a qual advirão outras identificações do sujeito. Essa experiência explicaria a passagem do autoerotismo ao narcisismo, pois por meio da integração imagética do corpo, surgiria o Eu como unidade psíquica. O valor atribuído nessa experiência à imagem é o que leva Lacan a tomar como exemplo o gafanhoto que se identifica homeomorficamente a um similar e por conta disso passa da condição solitária à gregária. Essa analogia permite compreender qual o papel da imagem na constituição do eu. Já na Psicologia das Massas de Freud (2011 [1921]) podemos observar a hipótese de uma alteridade anterior à constituição do Eu. Alteridade, nesse ponto, deve ser entendida como um lugar social no qual o indivíduo pode vir a se inscrever. Nesse texto, o lugar social, entendido também como comunidade, é relacionado à massa. Aqui a passagem mítica da natureza à cultura é entendida por meio do mito da Horda Primitiva para demonstrar como a comunidade precede o Eu submetido às normas. “[...] a psicologia da massa é a mais velha psicologia humana; aquilo que, negligenciando todos os vestígios da massa, isolamos como psicologia individual, emergiu somente depois, ao poucos, e como que parcialmente ainda, a partir da velha psicologia da massa” (FREUD, 2011 [1921], p. 86). Lacan (1998 [1946]) descreve o primeiro efeito do aparecimento da imago como sendo o de uma alienação, já que é no outro que o sujeito poderá se identificar e até mesmo é dessa alteridade que surgirão as primeiras experiências de si. A mediação é parte então de todo um processo de constituição de sujeito e estará inclusive relacionada ao desejo na medida em que esse só surge sob o “signo da mediação: ele é desejo de fazer seu próprio desejo reconhecido” (LACAN, 1998 [1946], p. 183). Isso quer dizer, por outro lado, que não há um objeto que se configure ao seu desejo (e demanda) que não passe por uma mediação. É assim que para Lacan (1998 [1946], p. 183), o homem e seu desejo estão submetidos à dialética do senhor e do escravo que “deve realizar numa série de crises a síntese de sua particularidade e sua universalidade, chegando a universalizar essa particularidade mesma”. 48

O mais importante é o que se segue: “O que quer dizer que, no movimento que leva o homem a uma consciência cada vez mais adequada de si mesmo, sua liberdade confunde-se com o desenvolvimento de sua servidão” (LACAN, 1998 [1946], p. 183, grifos nossos). Ou seja, em linhas gerais, à medida em que cresce o autoconhecimento, podemos dizer que cresce a alienação. O “eu” de que trata a psicanálise, segundo Lacan (1998 [1966], p. 375), [...] nada tem a ver com a suposta unidade da realidade do sujeito que a chamada psicologia geral abstrai como instituída em suas ‘funções sintéticas’. O eu de que estamos falando é absolutamente impossível de distinguir das captações imaginárias que o constituem dos pés à cabeça, tanto em sua gênese como em seu status, em sua função como em sua atualidade, por um outro e para um outro.

O sujeito só pode ver uma parte de si diante do espelho, já que lhe foge a possibilidade de apreender-se completamente. Além disso, a imagem de si lhe é apresentada invertida. Já em Freud observa-se a impossibilidade do sujeito de apreender-se completamente. O Eu, para Freud, não é a superfície, mas sim a sua projeção. O sujeito tenta abordar o real a partir de dois pontos: do sintoma (relativo ao significante) e o fantasma (relativo ao objeto a). Segundo Nasio (2010, p. 13, tradução nossa) “é dessa realidade psicanalítica que a topologia tenta dar conta”. A topologia, de acordo com Chamama (1995, p. 212), é uma “geometria flexível que trata matematicamente das questões de vizinhança, de transformação contínua, de fronteiras e de superfície, nem sempre fazendo intervir a distância métrica”. Este ramo da matemática é tomado por Lacan a partir de 1962 para que pudesse explicar suas invenções. Além disso, o uso da topologia pode ser justificado dada a insuficiência da língua para a criação de um modelo explicativo. Podemos pensar num primeiro momento, no conceito de significante, que Lacan importa da Linguística saussuriana sem deixar de efetuar uma modificação que poderia ser chamada de topológica: se na obra de Saussure, o significante aparece como uma das faces do signo, complementada pelo significado Signo = Significado Significante Na obra de Lacan, não somente a disposição entre significante e significado é invertida, como no lugar onde havia a barra que vinha sinalizar uma relação de completude, é colocada uma barra de interdição: Signo = Significante Significado 49

O que a barra de interdição faz, além de uma hegemonia do significante sobre o significado, é com que a significação se dê a partir da organização significante. A respeito da distinção entre significante e significado, Lacan (1998 [1956]) escreve que A primeira rede, do significante, é a estrutura sincrônica do material da linguagem, na medida em que cada elemento adquire nela seu emprego exato por ser diferente dos outros15; [...] A segunda rede, do significado, é o conjunto diacrônico dos discursos concretamente proferidos, que reage historicamente à primeira, assim como a estrutura desta determina os caminhos da segunda. Aqui, o que domina é a unidade de significação, que revela jamais resumir-se numa indicação pura de real, mas sempre remeter a uma outra significação.

No entanto, o que se pode observar no discurso do livro de autoajuda é um recalque da barra, que faz novamente coincidir significante e significado, deixando de fora, portanto, o sujeito dividido entre dois significantes, reavivando o signo e seu significado endereçado a alguém que está lá de antemão. Por exemplo, no livro de autoajuda Escolha a felicidade, Stoddard (2002, p. 11-12, grifos nossos) escreve: Universalmente, a felicidade é considerada a mais desejável de todas as coisas. Quis aprender mais sobre esse assunto tão alusivo. Estudei pesquisa científica e comecei a perguntar aos meus ouvintes e leitores sobre seus pensamentos e experiências. Li muitos trabalhos de filósofos de várias disciplinas. Eis o que aprendi: a felicidade, basicamente, significa bem-estar.

Nesse recorte, podemos observar de que maneira a barra que se encontra entre significante e significado é recalcada, dando origem a um sistema de relação unívoca entre os dois termos. Tanto felicidade quanto bem-estar deixam de estar em uma relação equívoca com os outros significantes, para compor um sentido fixo, fechado, que recorre a uma relação lógica de copulação. Essa cópula lógica é marcada pelo recurso ao verbo significa usado no presente do indicativo, o que indicia um tempo sem tempo, eterno, a-histórico. Se abrirmos mão do caráter equívoco do significante, da possibilidade de que ele possa deslizar para outros significantes, abrimos mão também do processo de engendramento de significação. De certa maneira, portanto, a subjetividade que podemos extrair desse recorte é uma na qual não há espaço para a divisão subjetiva. De certa maneira, essa relação definitória do termo “felicidade” coloca esse discurso em um lugar oposto, por exemplo, ao da função poética, se pensamos em um continuum. O sujeito dividido aí se encontra recalcado.

15 Aqui é clara a referência ao conceito de valor de signo de Saussure, segundo o qual, um signo só adquire seu valor em relação aos outros signos.

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Sujeito e Outro A topologia tem como principal objetivo tratar da constituição do sujeito. Para tanto, é necessário que ela dê conta de dois campos, o campo do sujeito e o campo do Outro. O Outro é tomado por Lacan (1998a [1964], p. 193-194) como “o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer”, trata-se do tesouro dos significantes. Em Lacan (1998a [1964]) encontramos uma contemporaneidade entre a constituição do sujeito e do sentido. O significante surge no campo do Outro, e é a esse significante que o ser deve fazer concessão para que surja sua significação. A relação entre o sujeito e o Outro é sustentada pelo que Lacan (1998a [1964], p. 198) denomina de “processo de borda, processo circular”. Circular, mas não simétrico porque o Outro é a princípio quem está de posse dos significantes que serão oferecidos para o sujeito. Para tratar dessa dinâmica, Lacan (1998a [1964]) propõe um algoritmo que não pode deixar de ser articulado ao da fantasia ( ◊ a) e da demanda ( ◊ D). Esse algoritmo que Lacan propõe é um losango ◊ que é vetorizado no sentido anti-horário. O pequeno ˅ deve ser entendido como o operador lógico “que se lê ‘ou’” (ABE; PAPAVERO, 1991, p. 16). Ele se encontra na parte inferior de ◊ e indicaria a primeira operação, a da alienação. A operação em questão é o vel, que trata da união (e não da adição), é a operação que funda o sujeito. O ser é levado pela função do significante, e é paradoxalmente, nesta operação que o sujeito desaparece. Lacan (1998a [1964], p. 207) trata esse desaparecimento do sujeito pelo conceito de afânise: [...] o sujeito aparece primeiro no Outro, no que o primeiro significante, o significante unário, surge no campo do Outro, e no que ele representa o sujeito, para um outro significante, o qual outro significante tem por efeito a afânise do sujeito. Donde, divisão do sujeito – quando o sujeito aparece em algum lugar como sentido, em outro lugar ele se manifesta como fading, como desaparecimento.

A segunda operação é a que consuma a circularidade entre sujeito e Outro. Trata-se da separação, pela qual “o sujeito acha, se podemos dizer, o ponto fraco do casal primitivo da articulação significante, no que ela é de essência alienante” (LACAN, 1998a [1964], p. 207). É desse desarranjo que surge o desejo. Esse vel da alienação (ou... ou) é o que podemos aqui também relacionar à escolha e ao consentimento que devem ser feitos diante do sintagma já apresentado livros de autoajuda. Se escolhermos alteridade, abrimos mão da identidade (de auto), ao mesmo tempo em que se escolhemos a identidade, estamos dissimulando a relação de alteridade suposta ao termo livros. 51

Lacan (1998a [1964], p. 209, grifo do autor) propõe que “não há sujeito sem, em alguma parte, afânise do sujeito, e é nessa alienação, nessa divisão fundamental, que se institui a dialética do sujeito”. Deve-se levar em conta, entretanto, que esta dinâmica de alienação e separação é o que possibilita que o sujeito se constitua, não há lugar fora do campo do Outro. Fórmula solidária a de Pêcheux que afirma que não há lugar fora da ideologia. O sujeito não pode ser origem do seu próprio discurso, apesar de acreditar nisso, de acordo com o esquecimento número 1 proposto por Pêcheux (2009) porque os significantes estão em um primeiro momento no Outro. E é na primeira tomada de significantes que o ser sucumbe fazendo surgir o sujeito e o sentido. A teoria lacaniana da subjetividade tem como consequência um sujeito que, por ser constituído a partir da função significante, não se encontra mais substancializado. Para Leite (1994, p. 17) é também o significante que “institui uma abordagem materialista naquilo que fundamenta a causa da divisão do sujeito”. De forma semelhante, segundo a AD, se o indivíduo é interpelado sujeito pela ideologia, há aí também um problema em compreender o que é do campo do sujeito e o que é do campo da ideologia. Para nos aprofundarmos nestas questões, pretendemos lançar mão de um objeto topológico, a banda de Moebius, um objeto sem dentro e nem fora.

Banda de Moebius (GRANON-LAFONT, 1985, p. 5). O sujeito não tem dentro nem fora porque é partir de um lugar proposto pelo Outro que ele pode se inscrever. Ele não escolhe livremente qualquer significante, apesar de acreditar nisso conforme vimos ao tratar do esquecimento número 1. Ele é interpelado, para articular com o que Althusser propõe. Ao contrário disso, os livros de autoajuda se apoiam na ideia de um indivíduo completamente consciente e dotado de livre arbítrio. Entretanto, menos que a configuração desse objeto, o que importa aqui é o resultado que se obtém a partir da operação de um corte sobre esse objeto formado a partir de uma meia torção: ao se efetuar um corte meridional nessa superfície, o que se obtém no lugar de um objeto sem dentro nem fora é uma fita que não é mais moebiana. Ela passa a ter dentro e fora. Tratar52

se-ia da experiência de significante: ao falar o sujeito se representa e ao mesmo tempo deixa de existir. “É ao cortar a borda que poderemos dizer: eis aqui o sujeito” (NASIO, 2010, p. 18). Ou seja, o sujeito não tem uma origem em si mesmo, é preciso antes essa relação de alienação ao Outro. A separação, segundo Nasio (2010, p. 15, tradução nossa), está relacionada à essa figura topológica do toro, na medida em que “é preciso que a primeira volta de uma demanda local reencontre a volta de uma segunda demanda para que haja o efeito de separação; ou ainda, não haverá desejo senão como uma série continua de demandas”. A alteridade é constitutiva da subjetividade em Lacan. Estruturalmente e não só imaginariamente como muitas vezes podemos encontrar. No livro de autoajuda Viver em liberdade, Subirana (2011, p. 24) escreve: Sentimo-nos insignificantes ao experimentarmos o poder esmagador do mundo exterior. Quando nos sentimos ameaçados pelo poder do outro, podemos chegar a renunciar à nossa integridade individual sob a influência do outro e da sociedade. [...] Deixamos de ser nós mesmos, adotando uma personalidade que segue os lineamentos culturais e sociais. Dessa forma, desaparece a discrepância entre ‘eu’ e o mundo e, com ela, também desaparece o medo da solidão e da impotência. [...] Sermos nós mesmos e diferentes dos outros acarreta o risco de sentirmo-nos sozinhos.

A subjetividade suposta aqui é uma na qual podemos encontrar um essencialismo. Há uma essência à qual o sujeito deve se identificar e que não tem origem no exterior. Pelo contrário, são os outros que influenciam o ‘eu’ de maneira a afastá-lo da sua verdadeira essência.

A Teoria Discursiva de Michel Pêcheux A “Teoria do Discurso” de Pêcheux parte do questionamento de evidências fundadoras da inclusão da Semântica no campo da Linguística tais como a existência de coisas e pessoas, bem como a transformação de objetos em signos. É a partir desses questionamentos que Pêcheux (2009) irá propor as bases de uma teoria materialista do discurso. Podemos afirmar que a AD na forma como foi proposta por Pêcheux não se conforta a um campo específico e nem mesmo recorre a outros sem uma visada crítica de conceitos a serem mobilizados. A heterogeneidade, nessa disciplina de entremeio, não é vista como um componente fraco. Pelo contrário, é precisamente porque a AD sabe que não existe um discurso completamente novo, mas que sim, há sempre um retorno sobre o que já foi dito que podemos pensar na AD como um ponto de estofo nos estudos de Linguagem. Os pontos sobre os quais a AD retorna para dar uma nova significação são, a princípio, aqueles formalizados por Pêcheux e Fuchs (1990, p. 163-164) quando propõem o quadro epistemológico da AD da seguinte forma: 53

I. O materialismo histórico, como teoria das formações sociais e suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias; II. A linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação ao mesmo tempo; III.A teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos. Convém explicitar ainda que estas três regiões são, de certo modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica).

É precisamente esse atravessamento da teoria psicanalítica que está em jogo nos processos de constituição de sentido, logo de constituição do sujeito. É importante também ressaltar que um dos objetivos do grupo de pesquisa AD-Interfaces coordenado pela orientadora Profa. Dra. Leda Verdiani Tfouni é o de promover a articulação entre a AD e a Psicanálise Lacaniana (e. g. CARREIRA, 2000; SILVA, 2000; MOURARIA, 2005; FERRIOLLI, 2003; CHIARETTI, 2008; PEREIRA, 2012). As linhas que se seguem tentarão retraçar um percurso de Pêcheux na constituição da sua Teoria do Discurso e de certa forma, os passos tomados pelo autor justificam o recrutamento da teoria do inconsciente no seio da Linguística e, logo, o recurso à teoria do inconsciente. Que a Semântica faça assumidamente parte da Linguística não deixa de encobrir que ela (Semântica) mantenha relações de contradição com outras disciplinas, como a Sintaxe, a Morfologia e a Fonologia16. Segundo Leite (1994), o que a Semântica permite (e é por isso que Pêcheux parte desse ponto) é encontrar as limitações da Linguística como uma disciplina autônoma. É aqui que o “sujeito” que havia sido forcluído (pela dicotomia língua-fala) deveria ser chamado novamente a ocupar o posto principal na teoria, e para tanto, outras disciplinas devem ser convocadas também. Pêcheux (2009) conclui que, se a Semântica está nesse ponto de convergência de outros elementos da Linguística, é porque ela tem uma relação estreita com a Filosofia “e como veremos, com a ciência das formações sociais ou materialismo histórico” (PÊCHEUX, 2009, p. 18, grifos do autor). Até então, segundo Pêcheux (2009), a Linguística apresentaria três tendências: uma formalista-logicista (teoria gerativista Chomskyana), uma outra histórica (evolução das línguas) e outra que denomina “Linguística da fala” (preocupada com os processo de enunciação e interação). O que Pêcheux pretende nessa obra é abrir uma quarta tendência que não serviria para sanar as contradições presentes entre as três primeiras, mas sim trabalhar precisamente nesse 16

Para um estudo de contradição morfosintática vide dissertação CHIARETTI, 2008, na qual em uma análise do slogan publicitário da revista NOVA - "A revista da mulher que quer mais" - o elemento "mais" que sintaticamente corresponde a um objeto direto, nem por isso é um substantivo (análise morfológica), criando um efeito de elipse e ao mesmo tempo de abertura de sentido.

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campo de contradições, desenvolvendo-as. Se até então, a tese geral da Linguística estava assentada em dois pontos principais, o de que a língua não é histórica (visão sincrônica) e sim um sistema (1) o que implica na possibilidade de que a Linguística seja entendida como uma ciência que conta com um objeto de estudo (2), o que Pêcheux (2009) pretende é, por meio do estruturalismo filosófico, dar conta daquilo que decanta como resíduo a partir dessa visão, um inexplicável que não é abarcado pelo explicável da língua. De certa forma, o que Pêcheux tenta é reintroduzir aquilo que havia sido recalcado da Linguística enquanto uma ciência humana: a noção de sujeito, que não mais seria a mesma proposta por Benveniste na qual sujeito, certeza e consciência se equivalem, mas uma noção de sujeito que levasse em conta a dimensão inconsciente inaugurada por Freud e desenvolvida no campo da linguagem (sob influência de Saussure e Jakobson) por Lacan (LEITE, 1994). Entretanto, é preciso levar em conta que não se trata de um modelo transdisciplinar, e sim que os campos convocados (expostos no quadro epistemológico da AD [PÊCHEUX; FUCHS, 1975]) devem ser tomados de maneira crítica. Segundo Leite (1994), é justamente a proposição lacaniana de que o inconsciente segue as coordenadas das estruturas que fundamentam a linguagem que permite uma aproximação entre os dois campos, a saber, a Linguística e a Psicanálise. A autora destaca ainda o caráter faltoso desse encontro e por isso, a posição privilegiada que a noção de sujeito pode ser colocada nessa aproximação. Essa noção de resíduo inexplicável pode ser relacionada ao conceito de resto em Psicanálise. Para Alessandra Carreira17, podemos aproximar a Análise do Discurso da Psicanálise pois ambas levam em conta esse resto. O que as duas teorias comportam, no final das contas, é esse furo central: algo não passa à significação. A exemplo de Lacan (1998 [1964]), que propõe o recurso à Teoria dos Conjuntos e mais precisamente ao véu da alienação para falar da relação entre sujeito e Outro, Carreira (2012), propõe que o que se encontra ali na intersecção entre os dois conjuntos seja isso: a falta. A assunção de que haja sempre algo que não se presta à inscrição simbólica, que resiste ao Simbólico e ao Imaginário. Um impossível, ou seja, aquilo não cessa de não se escrever. Ainda assim é preciso trabalhar. A fim de se desfazer de uma espécie de historicismo sociologista que, a exemplo das teorias históricas de evolução da língua que trabalham com os fatores sociais influentes nessa evolução, Pêcheux (2009, p. 22) propõe que o recurso à história só se justifique a partir de “uma perspectiva de uma análise materialista do efeito das relações de 17

Comunicação pessoal, 2012.

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classe sobre o que se pode chamar as ‘práticas linguísticas’ inscritas no funcionamento dos aparelhos ideológicos de uma formação econômica e social dada”. Desta maneira, o objetivo geral da obra de Pêcheux (2009, p. 24) é de “compreender como aquilo que hoje é tendencialmente ‘a mesma língua’, no sentido linguístico desse termo, autoriza funcionamentos de ‘vocabulário – sintaxe’ e ‘raciocínios’ antagonistas”. É importante ressaltar que contemporaneamente à Revolução Francesa, dois processos ligados à língua são emblemáticos por ao mesmo tempo criarem e encobrirem as relações de contradição entre as classes: 1) o projeto de uniformização da língua por meio do seu ensino na escola e eliminação de dialetos e, 2) um processo de “divisão desigual no interior da uniformização igualitária” (PÊCHEUX, 2009, p. 23). Isto é, ainda que todos aprendessem a mesma língua, o seu melhor ou pior uso qualifica ou desqualifica os sujeitos. É precisamente o processo que tem como objetivo criar a igualdade que cria as dissonâncias. Ao tomar La Palice e o Barão de Münchhausen (cujo absurdo comportamento de puxarse pelos cabelos para poder desatolar a si e seu cavalo da lama), Pêcheux (2009, p. 32) tenta tratar a evidência da seguinte maneira: “as palavras têm um sentido porque têm um sentido, e os sujeitos são sujeitos porque são sujeitos; mas sob essa evidência, há o absurdo círculo pelo qual a gente parece subir aos ares se puxando pelos próprios cabelos”. Na gramática, como não se considera uma teoria da enunciação da mesma forma que a AD, o recurso ao pronome “eu”, por exemplo, é efeito de uma regra e está completamente a serviço do enunciado que semanticamente o engloba de maneira total (PÊCHEUX, 2009). Pêcheux (2009) propõe que o desenvolvimento de uma teoria filosófica da categoria de subjetividade por parte de Kant tem consequências nas teorias da linguagem. Cita a distinção que Kant faz entre juízos analíticos, nos quais o predicado tem uma relação de implícito com o sujeito e os juízos sintéticos (necessidade), nos quais a relação entre sujeito e predicado não é essencial (contingência). Enquanto no primeiro se trataria de uma tomada de consciência, o segundo é qualificado como um ato do sujeito. Haveria segundo Pêcheux (2009) ainda, a partir de Husserl, um deslocamento histórico do par necessidade/contingência para objetivo/subjetivo. Ainda assim, para Pêcheux (2009), o corte saussuriano entre fala e língua permite, mais que uma separação do uso individual de um sistema complexo e fechado, entender que paradoxalmente só haveria a possibilidade de produções subjetivas. Nesse sentido, tratar-se-ia de uma dicotomia aparente. A grande crítica de Pêcheux à Semântica da sua época, seja a estruturalista desenvolvida na Europa ou a americana encabeçada por Chomsky, é de que sob a aparência de 56

desenvolvimento, haveria uma volta sobre os mesmos passos, uma circularidade que não vêm resolver a dicotomia língua-fala ou enunciado-enunciação, mas sim reforçá-las. De acordo com Pêcheux (2009), o idealismo racionalista resolve essas mesmas dicotomias por meio da subordinação do contingente ao necessário. Isto é, as possibilidades imprevisíveis tornarse-iam universais. Aqui podemos encontrar de certa forma uma explanação dos genéricos discursivos, já que as fórmulas discursivas que chamamos aqui de genéricos discursivos têm como característica a inclusão de particulares em gerais. Pêcheux (2009, p. 63) escreve, “o resultado dessa subordinação é a possibilidade aparente de tratar todos os seres (incluindo-se os que pertencem ao domínio da moral, da religião, da política etc.) como análogos a seres lógico-matemáticos e aplicar a seu respeito as mesmas operações”. É a partir disso que podemos entender que os livros de autoajuda possam ter surgido num momento histórico específico, a possibilidade mesma de compreensão da subjetividade a partir de então permite que tal publicação seja não somente desejável, mas mesmo viável. É esse mesmo contexto sócio-histórico que permite o surgimento da Psicologia, a ciência da mente. Baseada na visão da ciência como “um conjunto de procedimentos administrativos eficazes” (PÊCHEUX, 2009, p. 67), é possível transformar uma experiência subjetiva em objetiva. Sendo objetiva, é possível preencher outros critérios científicos como, por exemplo, a generalidade e a fidedignidade. O que valeu para um indivíduo inscrito em um determinado contexto e exposto às mais singulares variáveis, de ascendência, de classe social, de família nuclear, etc., deverá valer para qualquer outro. De modo geral, podemos afirmar que é dessa generalização permitida pela ciência que se valem os livros de autoajuda. Mesmo quando há uma narrativa, o relato de uma experiência, que por ser de uma pessoa específica, o que esses livros tentam fazer é extrair uma espécie de lição de moral. Nesse sentido, podemos também aproximá-los ao discurso religioso como é o caso das parábolas do novo testamento das quais qualquer um pode extrair um funcionamento que vale para qualquer um. Pêcheux (2009, p. 67) aponta que há a “concepção do espírito humano como ‘grande máquina de classificar’”. Assim, a grande crítica de Pêcheux às ciências (em especial as humanas) é a de excluir a dimensão histórica da própria constituição da ciência. Pêcheux resume sua constatação da seguinte maneira: As teorias empiristas do conhecimento, tanto quanto as teorias realistas, parecem ter interesse em esquecer a existência das disciplinas científicas historicamente constituídas, em proveito de uma teoria universal das ideias, quer tome ela a forma realista de uma rede universal e, a priori, de noções, quer tome a forma empirista de um procedimento administrativo aplicável ao 57

universo pensado como conjunto de fatos, objetos, acontecimentos e atos (PÊCHEUX, 2009, p. 69).

É na medida em que tomam os preceitos teóricos, cuja aparição é circunscrita historicamente, mascarando-os, que podemos falar que se trate de uma teoria ideológica segundo o autor18. Ainda assim, não é possível falar de uma teoria que renuncie a ideologia, não existe lugar fora da ideologia. Para isso, basta consultar os trabalhos daqueles pesquisadores que investigam a respeito da origem da Psicanálise, afinal, foi um determinado contexto sócio-histórico que permitiu seu surgimento no final do século XIX em Viena e seu desenvolvimento (em especial na Europa) no século XX. É a partir dessa crítica que Pêcheux (2009) acredita ser necessário recorrer à teoria materialista que entende essa relação de necessidade não a partir de leis ou da natureza, mas sim das condições nas quais os homens produzem essas leis, condições que devem ser compreendidas como forças produtivas e relações de produção. É na história do desenvolvimento e dos conflitos ocasionados pelas diferentes forças (em síntese, as lutas de classes) que está a história da sociedade humana. Segundo Pêcheux (2009, p. 71), as teses fundamentais do materialismo são: a) o mundo ‘exterior’ material existe (objeto real, concreto real); b) o conhecimento objetivo desse mundo é produzido no desenvolvimento histórico das disciplinas científicas (objeto de conhecimento, concreto de pensamento, conceito); c) o conhecimento objetivo é independente do sujeito.

Em síntese, o que a teoria materialista visa é colocar o mundo exterior em independência do sujeito. Juntamente com o mundo exterior, encontra-se independente do sujeito o conhecimento das leis que regem esse mundo exterior, o que Pêcheux (2009) chama de processo científico-conceptual. Por outro lado, o sujeito é dependente do mundo exterior, isto é, o mundo exterior afeta o sujeito, o que configura o processo nocional-ideológico. Ou seja, se “a matéria é independente do espírito” (PÊCHEUX, 2009, p. 73), a sua recíproca não é verdadeira. Pêcheux (2009, p. 74) segue apontando outras características do materialismo como a ausência de uma equivalência entre as formas ideológicas que “em um momento histórico dado, [...] em presença cumprem, de maneira necessariamente desigual, seu papel dialético de matéria prima e obstáculo com relação à produção dos conhecimentos, à prática pedagógica e à própria

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Pensando a partir dessa afirmação de Pêcheux, torna-se interessante considerar a Psicanálise como uma saída a essa maneira de pensar a teoria do conhecimento, uma vez que mais que uma função referencial, os conceitos lacanianos estão ligados de tal forma em cadeia que para sua compreensão torna-se necessário um percurso mínimo por toda a teoria.

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prática política do proletariado”. Ressalta ainda a ausência de homogeneidade como efeito de simulação e recalque que engendram essas forças e da distribuição heterogênea das condições reais de existência. Essa caminhada desembocaria na categoria filosófica de processo sem sujeito, que o autor toma como fio condutor de sua obra. Isso implicaria, segundo o autor, na passagem da evidência (lógico-linguística) do sujeito para a “’forma-sujeito’ (e especificamente, o ‘sujeito do discurso’) como um efeito determinado no processo sem sujeito” (PÊCHEUX, 2009, p. 74). Língua, parole e discursividade Se a língua como sistema linguístico é compreendida por Pêcheux (2009, p. 81, grifos do autor) como “conjunto de estruturas fonológicas, morfológicas e sintáticas, [...] dotado de autonomia relativa que o submete a leis internas, as quais constituem, precisamente, o objeto da linguística”, ainda fará uma diferenciação entre essa base linguística e os processos discursivos. Para Pêcheux (2009), a discursividade não corresponde a parole de Saussure, ou seja, ao uso individualizado da língua. “Muito pelo contrário, a expressão processo discursivo visa explicitamente a recolocar em seu lugar (idealista) a noção de fala (parole) juntamente com o antropologismo psicologista que ela veicula” (PÊCHEUX, 2009, p. 82). Sendo assim, a construção teórica e metodológica da AD é desterritorializada pela noção de discurso, que não deve ser entendido nem pelo logicismo formal da gramática gerativa, por exemplo, nem por um sociologismo que pareia o que se fala de forma direta aos aspectos sociais de um contexto. Segundo Gregolin (2005, p. 101), Para Pêcheux e Gadet, enquanto o logicismo apagava qualquer possibilidade de que se incluísse a história, o sujeito e a sociedade – e, portanto, afastava a discussão política – a linguística era um ‘lugar de recobrimento da política pela psicologia’, um lugar onde se reiteravam as ‘evidências’ do sujeito individual e coletivo, da comunicação intersubjetiva.19

O discurso é então o conceito que desloca as noções de história e sujeito, dando uma nova perspectiva por meio da qual o sujeito não é mais coincidente à noção de indivíduo presentes na sociologia ou na psicologia. O sujeito aparece como um efeito da língua no qual a história se inscreve, de forma contraditória inclusive.

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Pêcheux (2009) aponta o papel da coletividade na medida em que ela marca cada sujeito por meio da socialização, ou seja, as relações sociais implicam em relações intersubjetivas. Pêcheux relaciona ainda a evidência de sujeito ao fato de que somente eu posso enunciar “eu” ao falar sobre mim mesmo, o que indica a presença constitutiva da linguagem neste processo.

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É preciso destacar aqui que a história mais que uma descrição positiva de acontecimentos passados, é solicitada pela AD como uma maneira de compreender a atualidade. Não se trata, portanto de uma construção neutra, ou de uma descrição absolutamente fiel, mas de hipóteses que nos ajudam a compreender de que maneira um contexto anterior atua no presente. Se a língua é indiferente às classes, as classes não são indiferentes à língua e é disso que se trata a convocação da teoria marxista no interior da Linguística para tratar dos processos discursivos. Não se trata, portanto, para Pêcheux (2009) de uma existência da língua como superestrutura ou de um uso da língua específico a uma classe, isto é, uma espécie de gramática de classe. Para formulação da sua teoria discursiva que tentará dialogar com a Linguística e a teoria marxista, Pêcheux (2009) considera a noção de pré-construído um ponto fundamental. Tomando-a emprestada de Paul Henry, em A ferramenta imperfeita, segundo Pêcheux (2009, p. 89), a noção de pré-construído designa “o que remete a uma construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é ‘construído’ pelo enunciado”. O efeito sujeito e Ideologia Pêcheux (2009) propõe que o jogo no qual o empirismo lógico se baseia para admitir que por “extensão” ou “compreensão”, em “o homem caminhou sobre a lua”, por exemplo, “o homem” corresponde à “raça humana”, deveria haver anteriormente algo mais fundamental: “a identificação pela qual todo sujeito ‘se reconhece’ como homem” (PÊCHEUX, 2009, p. 108). Não se trataria, portanto, de uma realidade distinta e observada pela ciência, equívoco que faz com que Pêcheux (2009) abandone o empirismo lógico. Por outro lado, Pêcheux localiza o equívoco positivista na tentativa de reduzir a eficácia material do imaginário a efeitos psicológicos individuais, ou seja, irreais. Sendo consideradas como “falsas aparências”, algumas declarações deveriam, portanto, ser tomadas com reservas. É importante destacar aqui que se trata ainda de uma crítica cuja origem podemos localizar na importância atribuída à função referencial. Pêcheux (2009) dá continuidade à sua crítica ao empirismo lógico, na medida em que acredita que a Lógica tenta esvaziar o ser dos objetos, dando ênfase à relação entre os termos mais que a outros aspectos chegando à proposta de uma “suspensão do juízo de existência” que permitiria a construção de objetos de pensamento apartados de uma realidade concreta. Podemos observar que Pêcheux (2009) cria uma correspondência, senão uma sobreposição, entre diversas formas dicotômicas de abordar a Linguagem: situação/propriedade; 60

contingência/necessidade; observável/construção lógica; encaixe/articulação de asserções. Se tomássemos essas dicotomias como ponto de partida de uma Filosofia da Linguagem, seria necessário admitir o ponto de partida daquilo que Pêcheux denomina [...] mito continuísta empírico-subjetivista, que pretende que, a partir do sujeito concreto individual ‘em situação’ (ligado a seus preceitos e suas noções), se efetue um apagamento progressivo da situação por uma via que leva diretamente ao sujeito universal, situado em toda parte e em lugar nenhum, e que pensa por meio de conceitos.

Aqui propõe uma tabela emprestada de Fuchs, na qual seria ilustrada a passagem do sujeito de origem eu (particular) para o sujeito universal: 1 Origem Eu Categorias lógicogramaticais de referência

Formas de base do enunciado

2 Discrepância tu (você) / eu

3 Generalização ele, x /eu

Ver presente aqui

Dizer Dizer passado passado em outro lugar / em outro lugar / aqui aqui (eu digo que) Tu me disseste Disseram-me que... Eu vejo isso que... (você me foi constatado que... disse que...) Tabela retirada de Pêcheux (2009, p. 117).

4 Universalização todo sujeito (cada um, quem quer que seja) Pensar sempre em toda parte

É verdade que...

Na medida em que a ciência progride em direção à abstração (partindo daquilo que é observável), Pêcheux (2009, p. 119) considera que mais ela atua por meio do “mascaramento da descontinuidade (e a relação de simulação) entre conhecimento científico e desconhecimento ideológico”. Se um dos pontos em que se apoia a ameaça a teoria discursiva de Pêcheux (2009) é o desse acobertamento idealista da oposição ciência e ideologia, dois outros são listados por ele ainda: uma espécie de interpretação formalista dos mecanismos linguístico-discursivos e aquele no qual tudo que vem anteriormente está apoiado no sujeito, isto é, o efeito ideológico de sujeito que não deve mais ser tomado como origem, como sempre já estando lá. É por conta disso que podemos afirmar que Pêcheux (2009) propõe uma teoria nãosubjetivista da subjetividade, na qual três regiões estão interligadas: a subjetividade, a discursividade e a descontinuidade ciência/ideologia. Essa teoria viria a designar [...] os processos de ‘imposição/simulação’ que constituem o sujeito, ‘situandoo’ (significando para ele o que ele é) e, ao mesmo tempo, dissimulando para ele essa ‘situação’ (esse assujeitamento) pela ilusão de autonomia constitutiva do 61

sujeito, de modo que o sujeito ‘funcione por si mesmo’, segundo a expressão de L. Althusser (PÊCHEUX, 2009, p. 123).

Podemos observar esse efeito de assujeitamento e assunção do eu pelo que Dowrick (2011, p. 26-27), em seu livro de autoajuda Escolha ser feliz, escreve: [...] quando somos nós mesmos, damos aos outros permissão inconsciente para serem eles mesmos. [...] Em qualquer estágio da vida, precisamos de muita energia para não expressar quem somos realmente, para negar nossa autenticidade e para extrair nossa noção de realidade de um mundo exterior no qual às vezes somos falsos.

Esse “efeito de funcionamento do sujeito por si mesmo” poderia ser relacionado com o processo de alienação e separação proposto por Lacan e exposto anteriormente: trata-se de um processo necessário à ilusão que torna possível que se fale de uma espécie de “autonomia” que sabemos nesse ponto que não pode ser absolutamente desconectada da dependência do Outro na constituição do sujeito. É importante ainda ressaltar que a partir dessa teoria poderia ser feita uma [...] distinção entre as duas figuras articuladas do sujeito ideológico, sob a forma de identificação-união do sujeito consigo mesmo (o ‘eu vejo o que vejo’ da garantia empírica’, de um lado, e da identificação do sujeito com o universal, do outro, por meio do suporte do outro enquanto discurso refletido, que fornece a ‘garantia especulativa’ (‘cada um sabe que...’, ‘é claro que...’ etc.) (PÊCHEUX, 2009, p. 123).

Nesse ponto uma distinção entre a teoria da subjetividade de Pêcheux e a de Lacan pode ser referida ao conceito de identificação, que na teoria Pêcheutiana parece estar mais próxima à identificação imaginária, como a propõe Lacan, que à simbólica (do traço). É por conta disso que podemos relacionar ainda o sujeito proposto por Pêcheux como mais próximo à categoria do particular, e não à do singular. É também aqui, no resgate de seu artigo “Remarques pour une théorie générale in idéologies”, que Pêcheux retoma o processo de interpelação de indivíduo em sujeito pela ideologia no qual o sujeito viria a se submeter às ordens do Sujeito (com “s” maiúsculo) de forma livre e espontânea. Esse sujeito universal é então aproximado ao Outro, designado por Lacan. Entretanto, é precisamente aqui que parece haver uma confusão: não há equivalência possível entre sujeito universal e Outro, uma vez que o Outro é sempre a alteridade mais radical que pode haver. Entretanto, ainda que não haja uma coincidência entre Sujeito e Outro, a interpelação ainda nos parece o ponto no qual, apoiado no aforismo lacaniano de que ‘o inconsciente é o discurso do Outro’, inconsciente e ideologia “estão materialmente ligados, sem estar confundidos, no interior do que se poderia designar como processo do Significante na interpelação e na identificação, processo pelo qual se realiza o que chamamos as condições ideológicas da 62

reprodução/transformação das relações de produção” (PÊCHEUX, 2009, p. 124-125, grifos do autor), o que permitiria a afirmação de uma teoria materialista do discurso. Há aqui uma distinção teórica do conceito de sujeito nas obras de Pêcheux e Lacan: em ambas, o sujeito aparece dividido, seja por conta da interpelação ideológica (que supõe um processo inconsciente, como é proposto por Althusser), seja pela alienação ao Outro. Pêcheux (2009) aponta que ao falar em condições ideológicas se trata um destaque já que haveria também a possibilidade de falar em determinações econômicas. Nesse sentido, é importante apontar algumas características do conceito de ideologia a fim de sanar algumas confusões: não se trata aqui de uma Zeitgeist, isto é, de uma forma de pensar que se distribui de maneira homogênea em uma época, mas sim de práticas. Não se trataria da realização da ideologia de uma classe na medida mesmo em que essa ideologia não existe a priori e é exercida em relação a outras classes cuja ideologia também possuiria uma anterioridade. É precisamente o fato de ocupar um lugar de dominante que faz a ideologia ser chamada de dominante, ainda que haja sempre um princípio de contradição dentro dela mesma, de onde se torna possível falar em revoluções. É precisamente para esse aspecto intrinsecamente contraditório da ideologia que a barra (/) entre “reprodução/transformação” de “condições de reprodução/transformação das relações de produção” aponta. É por conta disso que Pêcheux (2009) fala de um conjunto complexo dos aparelhos ideológicos de Estado, no qual complexo estaria relacionado às “relações de contradição-desigualdadesubordinação entre seus ‘elementos’, e não uma simples lista de elementos” (PÊCHEUX, 2009, p. 131). Por luta de classes deve se entender não uma luta entre objetos abstratos que pré-existem e que podem ser retomados um a um, mas sim “o desmembramento em regiões (Deus, a Moral, a Lei, a Justiça, a Família, o Saber etc.)” (PÊCHEUX, 2009, p. 132) com sua relação de desigualdade-subordinação. É o aspecto de desigualdade-subordinação da classe dominante que permite falar na possibilidade de transformação e não somente reprodução das forças produtivas. O contato com o que é subordinado é indispensável, razão que leva Althusser a afirmar que o sindicato é parte do aparelho ideológico de Estado capitalista. Falar em reprodução, entretanto, não corresponde a falar em inércia, bem como há uma falta de correspondência entre transformação e movimento. A ideologia dominante é uma síntese mais ou menos estabilizada da luta de classes, no entanto, “Ideologia” não teria a mesma relação com a história, uma vez que se trataria de algo omni-histórico, ou seja, não histórico, na mesma medida em que Freud postula que “o inconsciente é eterno”. 63

Apoiado nessa semelhança, Pêcheux (2009) propõe o trabalho de articulação teórica para seus sucessores, proposta sobre a qual está assentado um dos objetivos dessa tese e de tantos outros trabalhos posteriores: Essa duas categorias [inconsciente e ideologia] não se encontram aqui por acaso. Sabe-se, também, que sobre esse ponto e a despeito de importantes pesquisas recentes, o essencial do trabalho teórico ainda permanece por fazer [...]. De fato, não podemos mascarar por meio de fórmulas a ausência, cujo peso é grande, de uma articulação conceptual elaborada entre ideologia e inconsciente: estamos ainda no estágio de ‘vislumbres’ teóricos penetrando a obscuridade; e o presente estudo limitar-se-á a designar certas conexões, cuja importância pode ter sido subestimada, sem pretender, de modo algum, colocar verdadeiramente a questão mesmo que governa a relação entre essas duas categorias. Contentarnos-emos em observar que o caráter comum das estruturas-funcionamento designadas [...] é o de dissimular sua própria existência no interior mesmo do seu funcionamento, produzindo um tecido de evidências ‘subjetivas’, devendo entender-se este último adjetivo não como ‘que afetam o sujeito’, mas ‘nas quais se constitui o sujeito’ (PÊCHEUX, 2009, p. 138-139).

Trata-se, portanto, de algo que possibilita que apareça o sujeito. Se tomarmos o aforismo lacaniano de que “o inconsciente é o discurso do Outro” e excluído o conceito de ideologia como “mentalidade”, podemos aproximá-los materialmente naquilo que a linguagem organiza simbolicamente para todos, ainda que não se trate de uma afetação homogênea, é de um processo mais ou menos invariável de submissão ao simbólico que se trata. É porque inconsciente e ideologia estão materialmente ligados pelo discurso, que Pêcheux (2009) acredita ser possível aproximar duas evidências (partindo das articulações de Althusser): a de sujeito e de sentido. Trata-se do que Althusser chama de “efeito ideológico elementar”, que tem como base o processo chamado “interpelação”. É na tese da interpelação que as categorias de indivíduo e sujeito aparecem de uma forma que não deixa de ser paradoxal: se há sujeito, pode-se supor uma existência anterior, sem no entanto ser possível dizer que se tratava já de um sujeito. Por isso não se fala em sujeito interpelado, mas sim em indivíduo interpelado em sujeito pela ideologia. Podemos relacionar esse processo lógico (e não cronológico) à constituição do sujeito como Lacan a propõe quando articula dois processos ao aparecimento do sujeito: alienação e separação, nos quais além de um produto final sujeito, há a suposição de uma anterioridade que Lacan chama de “ser”. Por esse motivo, mesmo Pêcheux (2009, p. 141), sem fazer uma referência direta a Lacan, fala da necessidade de se levar em conta um efeito retroativo para que se fale que qualquer indivíduo é um sempre-já-sujeito. É por retroação que podemos falar que lá onde adveio um sujeito havia um indivíduo, para parafrasear Freud (“lá onde o isso era o eu deve advir”).

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E por outro lado, é porque há sujeito que há ideologia, “não existe ideologia, exceto pelo sujeito e para sujeitos” (PÊCHEUX, 2009). Segundo o mecanismo de interpelação, o sujeito é chamado pela ideologia a ocupar um lugar determinado. Trata-se, portanto, de uma prática. De acordo com Pêcheux e Fuchs (1990), o assujeitamento ideológico leva o sujeito a ocupar um lugar, uma posição na ideologia, sem se dar conta (o que destaca o caráter inconsciente deste assujeitamento). Ao contrário disso, o sujeito acredita ocupar o lugar por sua própria vontade. O efeito de sujeito, por sua vez, paradoxalmente, garante a dissimulação da sua constituição: é porque o sujeito é um “eu” que não se trataria de uma interpelação. Aqui o efeito de pré-construído aparece como uma “discrepância pela qual um elemento irrompe no enunciado como se tivesse sido pensado ‘antes, em outro lugar, independentemente’” (PÊCHEUX, 2009, p. 142). Se o sujeito é tomado como um processo, um efeito de um processo, a entrada nos processos de linguagem se dará de maneira mais plausível por meio do recurso ao conceito de significante (aquilo que representa um sujeito a outro significante) e não ao de signo (o que designa alguma coisa para alguém), pois o que importa é a rede de significantes e a maneira pela qual engendram esse efeito de sujeito que como vimos está bastante próximo do efeito de sentido. Entretanto, o apagamento desse processo possibilita a tomada do sujeito como causa de si, um efeito paradoxal que Pêcheux (2009, 144) ilustra a partir da história do Barão de Münchhausen que “se elevava nos ares puxando-se pelos próprios cabelos”. O efeito de sentido está ligado a essa materialidade suportada pela ideologia que cria uma espécie de transparência da linguagem, uma espécie de “todo mundo sabe”. Evidência que mantém uma relação constitutiva com o todo complexo de formações ideológicas. Dessa proposição, Pêcheux (2009) extrai duas teses: 1) de que o sentido não existe em si mesmo, e varia de acordo com o contexto no qual as palavras são empregadas (quem, onde, como). Por conta disso, “’domínio de pensamento’ [constituem-se] sócio-historicamente sob a forma de pontos de estabilização que produzem o sujeito, com, simultaneamente, aquilo que é dado a ver, compreender, fazer, temer, esperar etc.” (PÊCHEUX, 2009, p. 148); 2) “toda formação discursiva dissimula, pela transparência do sentido que nela se constitui, sua dependência com respeito ao ‘todo complexo com dominante’ das formações discursivas, intrincado no complexo de formações ideológicas [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 148-149).

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O interdiscurso para Pêcheux é precisamente esse complexo de formações discursivas com um dominante. Na síntese e na transparência do sentido que se formam a partir da formação discursiva, as relações de forças contraditórias ficam apagadas. É por conta disso que Pêcheux (2009, p. 159-160) formula que [...] a tomada de posição não é, de modo algum, concebível como um ‘ato originário’ do sujeito-falante: ela deve, ao contrário, ser compreendida como o efeito, na forma-sujeito, da determinação do interdiscurso como discursotransverso, isto é, o efeito da ‘exterioridade’ do real ideológico-discursivo, na medida em que ela ‘se volta sobre si mesma’ para se atravessar.

Esse movimento de volta sobre si mesmo que cria um interior em oposição a um exterior é a base da formação dos objetos topológicos. Entretanto, como pudemos observar, precisamente o que o os objetos topológicos não garantem é essa separação, que é somente ilusão, uma consistência imaginária que pode ser desfeita quando, por exemplo, deslizamos o dedo pela banda de Moebius. Essa síntese e o apagamento das condições de produção, no nível do sujeito, podem ser relacionados aos dois esquecimentos propostos por Pêcheux (2009). Para falar destes dois esquecimentos, foi preciso retomar a primeira tópica freudiana, segundo a qual psiquismo seria divido entre consciente, pré-consciente e inconsciente. No primeiro esquecimento, número 1, de origem inconsciente, o sujeito acredita ser origem do dizer e no esquecimento número 2, de origem pré-consciente, o sujeito acredita que o que ele diz corresponde exatamente ao que ele pensa, sendo que estaria suposta uma relação unívoca entre pensamento-linguagem. Porque o sujeito se constitui de maneira a dissimular as próprias condições da sua constituição podemos falar em Eu (moi) e autonomia. O eu não reconhece a subordinação ao Outro, à linguagem, uma espécie de “interior sem exterior” (PÊCHEUX, 2009, p. 150). Não existe, sabemos, um interior sem exterior, entretanto se tomamos a teoria de Lacan que recorre à topologia para falar sobre a constituição do sujeito, sabemos que mesmo esse interior e exterior são efeitos do imaginário, mais relacionados ao estágio do espelho que sintetiza o corpo do sujeito em oposição ao corpo do outro. O que os objetos topológicos nos mostram é que há uma continuidade entre interior e exterior a despeito de uma consistência imaginária que garantiria a existência de um sujeito apartada do Outro (ou outros). O cross-cap mostra essa continuidade ao ser mergulhado em um plano projetivo. Pois, em um plano eucliano (tridimensional) cada ponto encontra diversos pontos correspondentes e nãovizinhos (ou seja, distantes) num plano projetivo. A impossibilidade mesmo de preencher duas vezes um mesmo espaço (tendo em vista o espaço euclidiano) é uma das questões que a topologia vem responder pelo recurso a um plano projetivo no qual podemos passar duas vezes por um mesmo ponto. 66

Ao mesmo tempo em que torna possível uma tentativa de representar visualmente o Eu, cria paradoxos: pois essa figura (cross-cap) só pode ser consideradas unilátera em um plano projetivo não-euclidiano. Se a tomarmos no plano euclidiano o que acontece é que devemos ceder a uma penetração que torna o objeto dotado de dentro e fora. É precisamente o paradoxo que nos interessa. O paradoxo da inscrição de uma mesma figura em dois planos distintos nos coloca questões e apontam à constituição do sujeito, e seu correspondente Eu. Se por um lado podemos afirmar que a figura topológica não tem dentro e fora, ressaltando aquilo que desde Freud vem sendo apontado – a estruturação do sujeito a partir da linguagem (do Outro) –, ela confirma o “sucesso” dessa operação na medida em que resulta daí um Eu, que tem como característica uma interioridade descontínua do todo do qual ele é extraído. Isso significa que ao tomar essa figura em um plano euclidiano, não poderíamos obter uma superfície sem borda facilmente por conta da interpenetração que esse objeto supõe na sua linha de intersecção da superfície por ela mesma. Nessa linha, a cada ponto, correspondem dois diferentes e distantes do cross-cap, que faz com que ele tenha a propriedade de ser uma superfície sem borda.

Segundo Lacan (2003, p. 373), devemos imaginá-lo [...] como sendo, por essa metade inferior, realizado como a metade daquilo que fizeram [...] com a bexiga, quando a encheram de água ou com seu sopro. Na parte superior, o que aqui é anterior virá atravessar o que é contínuo, o que é posterior. As duas faces se cruzam uma com a outra, dando a aparência de se penetrarem, uma vez que as convenções concernentes às superfícies são livres, pois não esqueçam que as consideramos apenas como superfícies, que podemos dizer que, sem dúvida, as propriedades do espaço, tal como o imaginamos nos forçam, na representação, a representá-los como se penetrando.

É porque o oito interior fica velado pela consistência imaginária de “inchamento” do cross-cap que temos a impressão de que se trata de um objeto com dentro e fora. No entanto, se percorrermos sua superfície a partir de um ponto da intersecção, nos damos conta de que se trata de uma mesma e única superfície sem borda, logo de apenas um lado. Lacan diz que é preciso 67

utilizar a topologia de uma forma boba, e é precisamente por conta da impressão (um engodo imaginário) de dentro e fora que esse objeto nos interessa. Essa síntese que tem uma aparência de dentro e fora está próxima do que Pêcheux (2009) chama de sujeito do discurso: a interpelação do indivíduo em sujeito está relacionada à identificação do sujeito com a formação discursiva que o domina. Segundo Pêcheux (2009, p. 150), [...] essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) de sujeito, apoia-se no fato de que os elementos do interdiscurso (sob sua dupla forma, descrita [...] enquanto ‘pré-construído’ e ‘processo de sustentação’) que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são reinscritos no discurso do próprio sujeito.

Assim, o sujeito em AD se define como uma posição discursiva, “é um sujeito que se produz entre diferentes discursos, numa relação regrada com a memória do dizer (o interdiscurso), definindo-se em função de uma formação discursiva na relação com as demais” (ORLANDI, 1996a, p. 49). A este respeito, Pêcheux acrescenta que se trata de uma identificação do sujeito a uma formação discursiva (FD) que o domina, sendo que essa FD se relaciona a outras FDs, ora subordinando-se, ora resistindo, ora contrariando. Vale observar nesse ponto que o conceito de “identificação” das obras de Lacan e Pêcheux se distanciam. Se na obra do segundo, a identificação está relacionada às formações discursivas, na do primeiro, há, como pudemos ver antes, dois tipos de identificação, a imaginária e a simbólica. De qualquer forma, na obra de Pêcheux, o sujeito está necessariamente constituído a partir de uma ‘exterioridade’ que incide na ‘interioridade’ (ambas forjadas a posteriori da incidência da ideologia no ser) dando a ilusão de uma autonomia do sujeito. Assim como na obra de Lacan, essa interioridade não passa de um efeito de captura imaginária do corpo da criança no espelho pelo Eu ideal. Há sempre uma decalagem entre essas duas formas completas, decalagem que é precisamente o sujeito, nos seus vacilos e desconhecimentos. Desconhecimento porque é preciso que ao mesmo tempo em que o sujeito se submeta ao campo do Outro, que sua submissão seja dissimulada para si mesmo, de forma que ele possa falar ‘por si’. Esse processo está relacionado ao intradiscurso que em Análise do Discurso é a incidência do interdiscurso sobre si mesmo. Isso quer dizer que o ‘fio do discurso’ do sujeito é onde se reinscrevem sentidos, dissimulando sua repetição-reformulação, num processo que Pêcheux (2009) descreve como “incorporação-dissimulação”. Esse processo é também aquele que dá sustentação à unidade imaginária do sujeito como possuindo passado, presente e futuro, na medida em que retoma elementos anteriores, sem repeti-los necessariamente. Quando ao sujeito do discurso é imposta uma realidade, fala-se em “forma-sujeito”, pois viria a implicar em uma espécie de assunção de consistência desse sujeito, que por meio do 68

reconhecimento dos outros e de si mesmo, pode-se afirmar como um “eu” enredado em uma ficção (isto é, em uma narrativa que como tal prevê a passagem do tempo). É nesse ponto que Pêcheux (2009) retoma o Sujeito proposto por Althusser como aquilo que deve passar do estatuto de Sujeito para o de sujeito empírico. A esse respeito, Pêcheux (2009, p. 159) escreve Diremos que a marca do inconsciente como ‘discurso do Outro’ designa no sujeito a presença eficaz do ‘Sujeito’, que faz com que todo sujeito ‘funcione’, isto é, tome posição, ‘em total consciência e em total liberdade’, tome iniciativas pelas quais se torna ‘responsável’ como autor de seus atos, etc.

O sujeito se constitui para Pêcheux (2009) sobre o amontoado de non-sens das representações, por meio de uma tomada de posição que impõe um sentido. Esse non-sens é depois retomado quando Pêcheux (2009) faz a retificação de seu livro Semântica e Discurso, em um texto que consta na publicação brasileira como apêndice: Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. Aqui a forma-sujeito do discurso “na qual coexistem, indissociavelmente, interpelação, identificação e produção de sentido, realiza o non-sens da produção do sujeito como causa de si sob a forma de uma evidência primeira” (PÊCHEUX, 2009, p. 243). De acordo com Pêcheux (2009), foi Althusser que fez ouvir entre os marxistas a necessidade de recorrer a alguns conceitos psicanalíticos a fim de darem conta de uma teoria das ideologias. Essa conclusão é mais tarde efetuada na obra O discurso: estrutura ou acontecimento?, na qual Pêcheux articula inconsciente e ideologia por meio da análise do enunciado “on a gagné” [“ganhamos”]. O que leva Pêcheux a iniciar uma retificação da sua teoria é, segundo ele, a presença maciça de chistes em Semântica e Discurso, que ele “compulsivamente” escrevia e “o que acabou [...] por irritar o leitor” (PÊCHEUX, 2009, p. 280). Para Leite (2005, p. 79), “o que ainda não podia se inscrever na teoria fazia sintoma na escrita”. Pêcheux (2009, p. 276) chega a afirmar que “levar demasiadamente a sério a ilusão de um ego-sujeito-pleno em que nada falha, eis precisamente algo que falha em Semântica e Discurso”, o que leva Leite (2005, p. 79) à pergunta: “Poderíamos dizer que o que falha é a falta da falta?”. É aqui que as contradições encontram seu grau máximo de desenvolvimento (sem resolução) na obra de Pêcheux. As tensões entre reprodução-transformação, descriçãointerpretação e estrutura-acontecimento são vistas não mais como algo a ser resolvido, mas como o próprio do funcionamento discursivo. É dado lugar central à contradição e ao furo que a entrada na linguagem efetua e que ao mesmo tempo é causa de discurso. Nesse ponto, é necessário abandonar os princípios que demonstram uma causalidade entre um acontecimento e a produção de um discurso, ou mesmo da análise das condições de 69

produção e reprodução das forças produtivas como única entrada de análise discursiva. Isso porque há sempre algo que escapa a essa relação de causalidade e que justamente protagoniza os processos de produção e interpretação de sentido: a falta. Pêcheux (1997a) traz inclusive a figura do velho marxista cansado de dar voltas nas mesmas porcas que não se encaixam mais para dizer que é preciso abrir a sua teoria discursiva. O tripé no qual se apoia já não se mostra mais sustentável, a fabricação de uma máquina discursiva mais longe que nunca. Segundo Leite (2005), as contribuições de Lacan a partir do ano de 1964, ano do Seminário 11: a identificação, e aquilo que Althusser escreve sobre o retorno de Lacan a Freud no mesmo ano, a saber, de que a é justamente a estrutura de desconhecimento que orienta a pesquisa sobre ideologia, permitem os avanços de Pêcheux na direção de uma articulação mais rica entre sua teoria discursiva e a Psicanálise. Para Leite (2005, p. 80, grifos nossos) “o nível fundamental da ideologia deve ser referido à fantasia que estrutura a realidade social”. Aqui já encontramos uma articulação entre dois conceitos, ideologia e fantasia, das duas teorias respectivamente, teoria discursiva de Pêcheux e Psicanálise. Em 1983, é publicado “Discurso: estrutura ou acontecimento?”, um texto magistral de Pêcheux no qual muitos dos impasses da articulação entre Psicanálise e AD que até então estavam mais ou menos marcados são tocados e mesmo de certa maneira “resolvidos”. De acordo com Leite (1994), o que a proposta do acontecimento discursivo por parte de Pêcheux em 1983 permite é fazer uma revisão da forma como a Psicanálise é tomada pela teoria discursiva: se há acontecimento, há furo na estrutura, o Outro é esburacado. A falta consegue ser inscrita no interior da teoria discursiva de Pêcheux. A possibilidade de ler o discurso não somente como uma estrutura, mas como um acontecimento “só se sustenta na suposição de uma estrutura que comporta o furo real. O acontecimento funda o lugar da história, naquilo em que se coloca como demandante de significação, no lugar do contingente” (LEITE, 1994, p. 25). A localização da obra de Pêcheux justamente no ponto em que falha a significação. Só é possível o implante de um aparelho de interpretação discursiva quando há a possibilidade de múltiplas interpretações, ou seja, quando há deriva, equívoco etc. Sentido, memória e genéricos discursivos Se os sujeitos, até certo ponto, conseguem se entender e se organizar é porque estão submetidos a essa alteridade mais ou menos partilhada que permite que quando um sujeito 70

recorre à memória do dizer, consiga estabelecer algum ponto de estabilização de sentido. Segundo Orlandi (1996a, p. 48), “o sujeito tem que inserir seu discurso no repetível (interdiscurso, memória discursiva) para que seja interpretável”. Por outro lado, é isso que nos permite trabalhar em AD quando tentamos retraçar uma certa história do sentido que se estabiliza na interpretação linguageira que deverá ser retomada pelo analista. É nesse lugar de repetível que se encontram os genéricos discursivos entendidos como “provérbios, slogans, máximas, rezas, ‘fórmulas encapsuladas’ (conforme LEMOS, 1984), resumos historicamente constituídos de experiências e atividades do homem sobre o (no) mundo [que] codificam valores e crenças” (TFOUNI, 2004, p. 79). Os genéricos discursivos se configuram como lugares privilegiados de observação da dialética entre sujeito e Outro, na medida em que, como aponta Tfouni (2005), ao usar estas fórmulas encapsuladas, o sujeito anula-se enquanto locutor e refugia-se, através da língua, no grande Outro irredutível. É, portanto, o domínio do Outro sobre o sujeito que os genéricos indiciam. Pelo fato de tentar instituir uma verdade universal, as fórmulas genéricas funcionam como indeterminadores.

Por se tratar da incidência de uma universalidade sobre uma “singularidade” poderíamos aproximar o sujeito previsto pelos livros de autoajuda ao sujeito de direito designado por “aquele que x...”. Tratar-se-ia de uma evidência que se relaciona de forma estreita ao pré-construído, uma vez que esse é resgatado na constituição do sujeito sob a forma de uma evidência “corresponde ao ‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma de uma universalidade” (PÊCHEUX, 2009, p. 151). A ciência, com sua característica de generalizável, autoriza tal discurso e mais que isso, o faz desejável. Como é possível generalizar um particular para um genérico, podemos falar que o que funciona para um, funciona para todos, produzindo um efeito de fórmula. Isso não é sem relação ao imperativo moral categórico da forma como foi formalizado por Kant. Este tipo de formulação genérica pode ser considerado um lugar privilegiado de observação da relação entre língua e o social. De acordo com Amossy e Perrot (2005, p. 7, tradução nossa), “ele atravessa a questão da opinião e do senso comum, da relação ao outro, da categorização. Ele permite estudar [...] a relação entre linguagem e sociedade”. Muitas vezes são tomados como enunciados banais por conta de sua “obviedade” e “simplicidade”, entretanto é precisamente essa sedimentação de sentido que nos interessa. O que levaria à naturalização de tal discurso? É preciso abordar a questão a partir de outro ponto: que contexto histórico possibilita que tal discurso “transparente e verdadeiro” se enuncie? Não somente se enuncie, mas gerencie 71

relações entre os homens, formas de se comportar na sociedade, maneiras de consumir, etc. Por apagar suas marcas de enunciação esses genéricos discursivos aparecem como verdades óbvias, a-históricas, entretanto, sabemos que “todo enunciado pode vir a ser outro” e que o deslizamento metonímico pode vir a causar uma nova significação. Isso porque a linguagem ao mesmo tempo em que faz sentido, faz furo, esburaca, e possibilita que algum sentido se renove.

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Livros de autoajuda e contemporaneidade

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Uma aproximação do discurso prescritivo pela gramática

“[…] lo más humano (esto es, lo menos mineral, vegetal, animal y aun angelical) es precisamente la gramática” Jorge Luis Borges, em El idioma de los argentinos

“Pode-se perguntar se a frase, como estrutura sintática propriamente fechada, não é ela mesma já, uma arma, um operador de intimidação: toda frase terminada, por sua estrutura assertiva, tem algo de imperativo, de cominatório. A desorganização do sujeito, sua servidão assustada aos mestres da linguagem, se traduz sempre por frases incompletas, nos contornos, no ser, indeciso. De fato, na vida corrente, na vida aparentemente livre, nós não falamos por frases. E, inversamente, há um domínio da frase que é muito próximo de um poder: ser forte é, antes de tudo, terminar suas frases. A gramática, ela mesma, não descreve suas frases em termos de poder, de hierarquia: sujeito, subordinada, complemento, recção etc.?” Roland Barthes, em Le bruissement de la langue20

O aparecimento do nome do gênero literário autoajuda pode ser tomado como uma nomeação que visa deter um sentido, ao fixar um ‘novo’ gênero literário. A princípio, poderíamos dizer que, uma vez que todos esses livros têm como objetivo geral ajudar seus leitores a superar uma situação/dificuldade ou desenvolver uma habilidade ou competência (CHAGAS, 2001), comporiam um conjunto mais ou menos homogêneo que justifica sua denominação comum. Ao mesmo tempo, nos parece que o processo mesmo de criação do nome, oferece aos escritores a possibilidade de que se expanda uma produção discursiva específica, já que é possível observar um grande aumento de publicações dessa espécie. Por outro lado, somos levados a propor que exista aí uma certa conjuntura histórica compartilhada do aparecimento de tal literatura sob o título de autoajuda que poderia fornecer mais um índice de alguma homogeneização de sentidos. Seu surgimento, localizado por Chagas (2001) na metade do século XIX, seu boom a partir da segunda metade do século XX e seu posterior batismo como livros de autoajuda não são elementos a serem desconsiderados quando se trabalhar com Análise do Discurso, que em suma, propõe que nenhum discurso é completamente novo, uma vez que retoma discursos anteriores. De qualquer forma, seja pelo contexto histórico de seu surgimento, pelos objetivos, ou pelo simples fato de encontrarmos esses títulos sob o gênero literário autoajuda, poderíamos em 20

Tradução livre de Carolina Fedatto (2013).

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um primeiro momento colocá-los num mesmo conjunto e partir daí dar início a um processo de descrição, já parte da análise. Este gesto de nomeação que incide sobre um conjunto de livros criando uma sessão não é evidente e natural. É importante diferenciar referência, nomeação e designação. O primeiro diz respeito a particularização de um nome. Guimarães (2003, p. 53) dá como exemplo de referência em “O jogador está sentado na segunda mesa à esquerda” o sintagma “o jogador”. Já nomeação poderia ser definida como “funcionamento semântico pelo qual algo recebe um nome”. Para tratar de designação é preciso considerá-la “a significação de um nome enquanto sua relação com outros nomes e com o mundo recortado pelo nome” (GUIMARÃES, 2003, p. 54). Isso é considerar que um nome não somente se refere a um objeto, ou a um conjunto de objetos semelhantes, mas que ele tem relação com a história e que faz parte de um sistema simbólico cujos rastros podemos apreender a partir de alguns predicados, logo, do encadeamento metonímico que compõe algum dos sentidos relacionados a esse nome. Os títulos de livros de autoajuda foram coletados em livrarias, livrarias online, sebos e bibliotecas21. Não foi visada a exaustão, ainda que a quantidade coletada vise alguma representabilidade. Se a heterogeneidade dos assuntos que são abordados pelos livros (desde relacionamento amoroso, passando por trabalho até espiritualidade) deve ser um elemento a ser analisado, a coleta não se preocupou em selecionar títulos que estivessem relacionados a somente um campo específico. O trabalho com Análise do Discurso Pêcheutiana (AD) por sua natureza de não se dispor a chegar num fim específico (não existe análise mais ou menos correta ou completa que outra) é sempre um trabalho de constante checagem entre o corpus e a teoria, fato que transforma um ao outro num processo nem sempre contínuo. Elaboramos o seguinte quadro (A) composto pelos títulos coletados: A. 100 segredos das pessoas felizes. (NIVEN, 2001). 1000 perguntas mais importantes que você deveria fazer a si mesmo (THOMAS, 2011). 12 semanas para mudar sua vida. (CURY, 2007). 7 hábitos de adolescentes altamente eficazes. (COVEY, 2010). A arte da meditação. (GOLEMAN, 2005). 21

Entende-se a partir de Pêcheux e Fuchs (1975) que “o arquivo é assumido em uma oposição entre os corpora obtidos pela via experimental, na qual o analista monta ‘uma cenografia’ que ‘reproduz uma ‘situação concreta’’, e os corpora produzidos pela via arquivista, isto é, recortados pelo analista entre os enunciados que foram conservados, aqueles que podem ser trabalhados pelos historiadores” (MAINGUENEAU, 2004, p. 65).

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A arte da paquera. (ALMEIDA, 2011). A arte de ser mulher. (VIENNE, 2011). A chave do segredo. (HICKSa, 2007). A ciência da felicidade. (LYUBOMIRSKY, 2008). A ciência de ficar rico. (WATTLES, 2007) A ciência de ser feliz (ANDREWS, 2011. A física do sucesso. (REID, 2010). A força da intenção (DYER, 2006). A lei da afinidade. (CAIRO, 2007). Abra sua mente para receber. (PONDER, 2010). Afinal, o que querem os homens? (STRIMPLE, 2011). Alegria: a felicidade que vem de dentro. (OSHO, 2005). Amar de olhos abertos. (BUCAY, 2010). Ame a realidade. (KATIE, 2009). Ame a você mesmo e... permaneça casado (ZURHORST, 2009) Aprenda a ser otimista. (SELIGMAN, 2005). As chaves da felicidade. (OKAWA, 2010). As dez leis da realização. (MECLER, 2009). As mais belas parábolas de todos os tempos. (RANGEL, 2002). Atleta interior: como atingir a plenitude. (MILLMAN, 2008). Aumente o poder do seu subconsciente. (3 volumes). (MURPHY, 2006). Autoestima já! (TORNBLOM, 2010). Autoestima. (RIBEIRO, 2002). Autossabotagem: reconheça e mude as atitudes. (STAMATEAS, 2009). Bata a porta e ela se abrirá. (WANDS, 2011) Caderno de exercícios para aprender a ser feliz. (THALMANN, 2010). Cause impacto! (SOLOMON, 2011). Códigos da vida: parábolas e histórias verídicas. (LEGRAND, 2011). Como conquistar as pessoas. (PEASE, A.; PEASE, B, 2006). Como entender o efeito sombra na sua vida. (FORD, 2010). Como evitar preocupações e começar a viver. (CARNEGIE, 2011). Como fazer alguém se apaixonar por você em até 90 minutos. (BOOTHMAN, 2011). Como fazer amigos e influenciar pessoas. (CARNEGIE, 2000). Como lidar com pessoas difíceis. (GODEFROY, 2008). Como lidar com pessoas que te deixam louco. (HOUCK, 2010). Como se tornar mais confiante e assertivo. (ALBERTI, 2008). Como ser feliz apesar de tudo. (PRATHER, 2010). 77

Como ser feliz o tempo todo. (YOGANANDA , 2008) Como viver a dois. (PEASE, A.; PEASE, B, 2011). Comporte-se como uma dama, pense como um homem. (HARVEY, 2010). Consciência e resposta. (HAPPE, 2004). Conselhos dos mestres: 500 citações para você. (SILVA, 2010). Contratos sagrados. (MYSS, 2003). Conversando com Deus. (MURPHY, 2005). Corpo sem idade, mente sem fronteiras. (CHOPRA, 1996). Criando sucesso e dinheiro. (CHOPRA, 2008). Cuidado! Seu príncipe pode ser uma Cinderela. (BACH, 2010). Descubra sua vaca interior. (HILTS, 2009). Desejo, logo realizo. (ZABALLOS, 2010) Desvendando os segredos da atração sexual. (PEASE, A.; PEASE, B, 2010). Desvende os sinais de desejo. (LOWNDES, 2011). Dez leis para ser feliz. (CURY, 2003). Dharma digital: como desenvolver a consciência. (VEDRO, 2010). É preciso pouco para ser feliz! (MILAN, 2010). É simples: você pode recriar a sua vida. (SCHWARK, 2009). Educando crianças índigo. (VECCHIO, 2006). Em harmonia com a natureza. (TOLLE, 2009). Emoções tóxicas: como se livrar dos sentimentos. (STAMATEAS, 2010) Encontro com pessoas notáveis. (OSHO, 2009). Entregue-se ao amor. (OSHO, 2006). Equilíbrio emocional. (POSSATTO, 2008). Escolha a felicidade. (STODDARD, 2002). Expert em sedução. (BARONNE, 2011). Explicando deus numa corrida de taxi. (ARDEN, 2009). Faça dar certo. (L. A. GASPARETTO, 1997). Faça seu coração vibrar. (OSHO, 2005). Felicidade autêntica. (SELIGMAN, 2009). Felizes para sempre. (PARKER-POPE, 2010). Liberte-se. (HARRIS, 2011). Livre-se da síndrome da superpoderosa. (RUBENSTEIN, 2010). Manual da disciplina para indisciplinados. (MAGALHAES, 2008). Manual do messias. (BACH, 2006). Manual para não morrer de amor. (RISO, 2011). Meditação taoísta. (CHERNG, 2008). 78

Meditações para mulheres que fazem demais. (SCHAEF, 2007). Motivação. (GRETZ, 2010). Mude!: Como ajustar seu ponto de vista e tirar o melhor de todas as situações. (HEPPELL, 2011). Mulheres de sucesso querem poder amar. (MOYSES, 2011). Mulheres inteligentes, relações saudáveis. (CURY, 2011). Nadismo: uma revolução sem fazer nada. (BOHRER, 2008). Não deixe para depois o que você pode fazer agora. (EMMET, 2008). Neurofisiologia da meditação. (DANUCALOV, 2009). Novo manual de meditação (GYATSO, 2009). Nunca desista dos seus sonhos. (CURY, 2004). O código da inteligência. (CURY, 2008). O poder da autoconfiança. (RYAN, 2009). O poder da oração. (MURPHY, 2007). O poder das afirmações positivas. (HAY, 2005). O poder do agora (TOLLE, 2002). O poder do charme: como se tornar uma pessoa interessante e irresistível. (TRACY, 2010). O poder do diálogo. (OLIVEIRA, 2011). O poder do silêncio. (GRUN, 2010). O que as esposas/maridos não devem fazer (EBBUTT, 2011). O que as mulheres francesas sabem. (OLLIVIER, 2010). O que os homens querem e as mulheres precisam saber. (SANTAGATI, 2008). O que realmente importa? (CAVALCANTE, 2009). O que toda mulher inteligente deve saber. (CARTER, 2006). O sucesso ainda é ser feliz. (SHINYASHIKI, 2012). O terapeuta de bolso. (BORCHARD, 2010). Paixões tóxicas: como atravessar as crises. (STAMATEAS, 2010). Pare de beijar sapos. (LOWE, 2010). Pare de reclamar e concentre-se nas coisas boas. (BOWEN, 2009). Pare de se sabotar e dê a volta por cima: como se livrar dos comportamentos que atrapalham sua vida. (FLIPPEN, 2010). Pareça maravilhosa e sinta-se maravilhosa. (MEYER, 2010). Peça e será atendido. (HICKSb, 2007). Pensamentos poderosos. (HAY, 2009). Pensamentos. (Z. GASPARETTO, 2010). Pense e enriqueça. (MCCREADIE, 2008). Pense positivo todos os dias. (PEALE, 2003). Por que as mulheres amam os homens fortes? (KATZ, 2009). 79

Por que caminhas se você pode voar? (MACEDO, 2011). Por que erramos (SCHULZ, 2011). Por que eu deveria pensar como um homem? (FROST, 2011). Por que os homens amam as mulheres poderosas? (ARGOV, 2009). Por que os homens têm medo de compromisso? (CARTER, 2011). Praticando o poder do agora (TOLLE, 2005). Projeto felicidade. (RUBIN, 2011). Quem mexeu no meu queijo? (JOHNSON, 2011). Realize seus desejos. (HICKS, 2011). Reinventar-se. (PUIG, 2011). Revisando o passado para construir o futuro. (ROBLES, 2009). Ria da minha vida. (DAOLIO, 2011). Se ligue em você. (L. A. GASPARETTO, 1998). Seja feliz: pequenas dicas inspiradoras. (SHEEHAN, 2009). Seja líder de si mesmo. (CURY, 2004). Técnica da terapia da prece. (MURPHY, 2008). The secret – o segredo. (BYRNE, 2007). Transforme seu marido até sexta. (LEMAN, 2010). Treinando a emoção para ser feliz. (CURY, 2010). Vencendo a depressão. (LISSO, 2009). Viva com sabedoria. (GEORGE, 2010). Viva como você quer viver. (SHINYASHIKI, 2004). Vivendo e aprendendo. (SHINYASHIKI, 2010).

De certa forma, se consideramos que “o corpus [...] define o objeto de pesquisa que não o preexiste. Ou ainda, é o ponto de vista que constrói um corpus, que não é um conjunto pronto a ser registrado” (MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2002, p. 149, tradução nossa), podemos considerar o objeto de estudo dessa pesquisa um efeito da elaboração desse primeiro quadro. Ainda que se vise uma certa representatividade, é preciso lembrar que são os objetivos da AD que nos guiam na coleta de títulos a serem analisados: uma vez que o objetivo de uma pesquisa com base em Análise do Dicurso Pêcheutina seja o de observar e tentar compreender as condições que permitiram o aparecimento de um discurso, deve-se se concentrar naquelas materialidades que fazem essa operação de observação e compreensão da primeira interpretação possível. Dado o grande número de títulos nas sessões denominadas de “autoajuda”, é preciso estabelecer um critério a partir do qual serão selecionados aqueles que deverão ser submetidos a 80

uma análise mais aprofundada22. O critério adotado nessa pesquisa é o de uma repetição sintática que foi observada. Há de se levar em conta que a atenção a essa repetição sintática pode estar relacionada ao seu aparecimento no título do livro que causou o primeiro estranhamento (“Como ser eficiente”) que levou a intenção de uma pesquisa sobre o tema. O que a repetição sintática permite é a criação de uma fórmula que compactua com a repetição, uma espécie de “clichê” ou “molde”, como podemos o entender a partir das artes plásticas. O padrão aqui visa um ponto comum a todas as construções. Se conseguirmos isolar um molde, um padrão sintático que tenha como característica a produção de um efeito de sentido mínimo (colorido a cada vez por uma decisão semântica diferente), podemos formalizar a análise. Além disso, a escolha da repetição sintática nos dá certa garantia de haver sido respeitado algum critério de representatividade. Ainda que a AD não esteja interessada somente em fenômenos que se repetem, se levarmos em conta que um dos objetivos dessa pesquisa é o de tentar cercar um acontecimento frequente nos dias de hoje (ou seja, uma certa relação social frequente), a repetição se torna uma característica que se deve levar em conta. Segundo Ferreira (2000, p. 13), [...] a interface sintaxe/discurso é relevante e merece ser explorada. De um lado a sintaxe, como ordem simbólica, chega muito próximo da língua, daquilo que lhe é próprio (da sua ordem); de outro, o discurso, como processo de produção de sentido, tem na língua um suporte decisivo na constituição da sua materialidade (linguístico-histórica).

Trata-se, portanto, de baseando-se na sintaxe, visar o processo discursivo sem perder de vista que o que quer que exista como organização social passa por esta organização primeira na linguagem. A gramática aqui pode ser referida como aquilo que limita um possível de um impossível da língua, uma oposição do que pode ser dito ao que não pode ser dito. Aqui não se trata em pensar simplesmente na relação estabelecida por Chomsky entre o gramatical e o agramatical, mas de uma relação da língua ao impossível, reconhecido na teoria lacaniana como uma das modalidades do real. A sintaxe organiza um modelo de compreensão de frases e, nesse sentido, pode vir a funcionar como um ponto de partida da análise discursiva. Ponto de partida, pois frase não é discurso. Entretanto, a partir desse plano no qual está organizada a língua podemos aceder ao plano dos acontecimentos, como é proposto pela AD. É justamente o intervalo entre os elementos de uma sentença que possibilita que falemos de sintaxe e de organização semântica que pode ser extraída desse arranjo. A sintaxe como lugar 22 É mais precisamente aqui que podemos localizar as contribuições do estágio no exterior CAPES-PDEE. O critério de entrada no corpus por meio da atenção à sintaxe foi elaborado em reuniões com a Professora Sonia BrancaRosoff que trabalhou como colaboradora da orientadora no exterior, Jacqueline Authier-Revuz, durante o estágio.

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em que se intercalam presença e ausência de significante se torna um lugar de observação muito mais privilegiado que estudos etimológicos ou semânticos, por exemplo. O caráter sincrônico dos estudos sintáticos nos interessa na medida em que é justamente a sincronia que nos interessa se temos como ponto de partida uma visada mais lacaniana. A relação entre os elementos, o encadeamento que pode vir a produzir uma significação mais ou menos calcada nos códigos de inteligibilidade compartilhados é o que nos permite trabalhar com em AD na construção de uma interpretação que longe de ser neutra, tenta abarcar as condições históricas e políticas de construção de sentidos sem dissimular sua posição. O sistema de linguagem, desde Saussure, estaria dividido entre dois eixos: o da seleção, que postula que as operações de linguagem se caracterizam por selecionar certas unidades linguísticas do léxico; e, o da combinação, que colocaria as unidades selecionadas em relação umas com as outras. A partir desse primeiro eixo, poderíamos supor então que as unidades que são tomadas poderiam ser outras, o que nos permite afirmar a possibilidade de substituição entre os termos. Enquanto isso, a combinação implica na articulação entre essas unidades, o que configura o campo onde pode advir alguma significação (DOR, 1998). Se a palavra é considerada o desenvolvimento temporal do significante, sua articulação em cadeia, e em última instância o engendramento de um significado depende dessa articulação em cadeia, estamos diante de uma estrutura que não se trata somente de um “depósito de léxicos” dos quais o homem dispõe para comunicar-se. Para tratar dessas duas vias, Dor (1998) recorre aos eixos paradigmático e sintagmático. O eixo paradigmático está relacionado à seleção das unidades e por se relacionar ao léxico, tem entre seus elementos uma relação de similitude. Enquanto que o eixo sintagmático diz respeito à articulação significante, sua combinação que funda uma relação de contigüidade entre as unidades. De modo geral, enquanto no eixo sintagmático o que importa é o encadeamento entre os termos para a produção de sentido (daí Lacan falar em metonímia), no eixo paradigmático está em questão relações de substituição de um termo pelo outro num mesmo lugar da cadeia (donde, a metáfora). Segundo Marandin (1993), a AD se caracterizaria pela passagem da gramática do texto para a semântica discursiva. Define texto como uma estrutura que “manifesta os traços organizacionais: ele é essencialmente redutível a uma organização sintagmática de elementos em relação de substituição paradigmática” (MARANDIN, 1993, p. 157). Se língua e texto são definidos como estrutura, o que os diferencia seriam as regularidades sintagmáticas e paradigmáticas construtivas. A homologia entre língua e texto nos permitir-nos-ia tratar ambos a 82

partir de um mesmo paradigma metodológico, ainda que se tratasse de objetos absolutamente distintos. Tomando como exemplo o conceito de valor do signo em Saussure, Pêcheux irá propor que “o sentido de uma unidade linguageira é redutível ao conjunto de relações que ela possui com outras unidades em um sistema” (MARANDIN, 1993, p. 158). Pode-se então falar na presença de um sentido na medida em que por meio do recurso a outros discursos contíguos, podemos extrair alguma hipótese sobre o discurso atual. De certa maneira, uma unidade linguística poderia manter uma relação de equivalência com outras unidades no que diz respeito ao seu sentido, compondo um mesmo domínio semântico. Entretanto, isso se torna um dos problemas desse tipo de análise, pois não parte de um referencial de diferença, mas sim de equivalência. Como falar disso se nem mesmo a escolha e combinatória idêntica de elementos linguística garante o mesmo efeito de sentido como veremos mais a frente no caso “on a gagné”? De acordo com Marandin (1993), no fundo essa é a distinção entre interdiscurso e intradiscurso, sendo que o primeiro atravessa o segundo e possibilita o aparecimento do sentido. Por tratar dos sentidos dos enunciados, a AD se diferenciaria de uma pesquisa que trabalha com intertextualidade, caracterizada por privilegiar conteúdo e forma, e se aproximaria mais de uma análise da interdiscursividade, por isso a vizinhança com a arqueologia do saber proposta por Foucault. A episteme foucaultiana tem essa relação com a AD, na medida em que nessa, os sentidos são apreendidos por meio de uma construção de um sistema de significação onde as expressões que supostamente fazem parte do mesmo domínio semântico estão em relação. Articuladas a moda do valor do signo saussuriano. Donde o método parafrástico de análise proposto por Pêcheux. Nesse sentido, o processo de construção de sentido se dá sempre por meio de substituições (que seguem uma organização sintática) dentro de um sistema. Isso também quer dizer que o que possibilita a análise é uma manipulação sintática dos enunciados. Entretanto, isso não é sempre suficiente, pois é preciso fazer intervir na forma uma relação de sentido que está ligada ao efeito de pré-construído. De acordo com Marandin (1993, p. 166) “A noção de pré-construído não pertence a uma teoria que estuda os modos de organização da linguagem (a teoria daquilo que eu chamo de língua); ela vem de uma teoria que estuda o funcionamento da linguagem em uma formação social”. É preciso então remeter esse discurso ao seu contexto de enunciação. Isso significa atribuir significado histórico à forma como os fatos linguísticos se apresentam, o que quer dizer que os fatos históricos não podem se apresentar fora de qualquer 83

materialidade, como pura abstração, é preciso um suporte material significante que os crie e atualize. Entretanto, longe do universo estabilizado logicamente dos manuais de gramática, a AD se interesse pela sintaxe até o ponto em que ela pode nos oferecer alguma entrada de análise do discurso na sua tensão entre estrutura e acontecimento. Nesse sentido, não chega a ser tão surpreendente que Pêcheux tenha feito de um acontecimento discursivo o ponto magistral da sua obra: “on a gagné”. Aqui, o autor recorre à estrutura sintática que se repete antes e em outros lugares (estádios, partidas esportivas etc.) para falar de um acontecimento discursivo que reinscreve a sequência já conhecida em outro contexto produzindo um efeito de sentido novo que não tem correspondência exata nem com as outras enunciações e muito menos com o acontecimento que ele tenta inscrever simbolicamente. O que essa análise de Pêcheux nos mostra é que a materialidade discursiva não tem apenas uma dimensão linguística, ela possui também uma dimensão histórica que compõe seu sentido. A forma como é bradado “on a gagné” e com que entonação importam, pois o sentido também se encontra tanto no que excede à língua quanto no que não está lá. O que ao mesmo tempo em que demonstra uma ruptura com o ideal de completude da linguagem, por outro lado, coloca, a princípio, a possibilidade de reinscrição histórica dos sentidos. Ainda que possam ser formuladas hipóteses sobre a origem dos sentidos dos enunciados, relacionando-os à História, algo sempre escapa a essa inscrição, que é aquilo que Pêcheux chamou de real de História, mas que poderia ser simplesmente referido como real. Ademais, é preciso sempre levar em conta que as hipóteses interpretativas são sempre do analista que está debruçado sobre o corpus, e que certamente seriam outra se fossem feitas por outro analista. Repetições sintáticas Levando em conta o modelo sintático dos títulos dos livros, o corpus pôde ser reorganizados em dois grupos (expostos nos quadros B e C): B. A primeira repetição sintática se refere ao uso do advérbio como seguido de um verbo no infinitivo:

Como conquistar as pessoas. (PEASE, A.; PEASE, B, 2006). Como entender o efeito sombra na sua vida. (FORD, 2010). Como evitar preocupações e começar a viver. (CARNEGIE, 2011). 84

Como fazer alguém se apaixonar por você em até 90 minutos. (BOOTHMAN, 2011). Como fazer amigos e influenciar pessoas. (CARNEGIE, 2000). Como lidar com pessoas difíceis. (GODEFROY, 2008). Como lidar com pessoas que te deixam louco. (HOUCK, 2010). Como se tornar mais confiante e assertivo. (ALBERTI, 2008). Como ser feliz apesar de tudo. (PRATHER, 2010). Como viver a dois. (PEASE, A.; PEASE, B, 2011). Dharma digital: como desenvolver a consciência. (VEDRO, 2010). Emoções tóxicas: como se livrar dos sentimentos. (STAMATEAS, 2010) Mude!: Como ajustar seu ponto de vista e tirar o melhor de todas as situações. (HEPPELL, 2011). Pare de se sabotar e dê a volta por cima: como se livrar dos comportamentos que atrapalham sua vida. (FLIPPEN, 2010). O poder do charme: como se tornar uma pessoa interessante e irresistível. (TRACY, 2010).

C. Enquanto que a segunda aparece com o verbo conjugado no imperativo: Abra sua mente para receber. (PONDER, 2010). Ame a realidade. (KATIE, 2009). Ame a você mesmo e... permaneça casado (ZURHORST, 2009) Aprenda a ser otimista. (SELIGMAN, 2005). Aumente o poder do seu subconsciente. (3 volumes). (MURPHY, 2006). Bata à porta e ela se abrirá. (WANDS, 2011) Cause impacto! (SOLOMON, 2011). Comporte-se como uma dama, pense como um homem. (HARVEY, 2010). Descubra sua vaca interior. (HILTS, 2009). Desvende os sinais de desejo. (LOWNDES, 2011). Entregue-se ao amor. (OSHO, 2006). Faça dar certo. (L. A. GASPARETTO, 1997). Faça seu coração vibrar. (OSHO, 2005). Liberte-se. (HARRIS, 2011). Livre-se da síndrome da superpoderosa. (RUBENSTEIN, 2010). Mude!: Como ajustar seu ponto de vista e tirar o melhor de todas as situações. (HEPPELL, 2011). Não deixe para depois o que você pode fazer agora. (EMMET, 2008). Nunca desista dos seus sonhos. (CURY, 2004). Pare de beijar sapos. (LOWE, 2010). 85

Pare de reclamar e concentre-se nas coisas boas. (BOWEN, 2009). Pare de se sabotar e dê a volta por cima: como se livrar dos comportamentos que atrapalham sua vida. (FLIPPEN, 2010). Pareça maravilhosa e sinta-se maravilhosa. (MEYER, 2010). Peça e será atendido. (HICKSb, 2007). Pense e enriqueça. (MCCREADIE, 2008). Pense positivo todos os dias. (PEALE, 2003). Realize seus desejos. (HICKS, 2011). Se ligue em você. (L. A. GASPARETTO, 1998). Seja feliz: pequenas dicas inspiradoras. (SHEEHAN, 2009). Seja líder de si mesmo. (CURY, 2004). Transforme seu marido até sexta. (LEMAN, 2010). Viva com sabedoria. (GEORGE, 2010). Viva como você quer viver. (SHINYASHIKI, 2004).

Se um sentido idêntico a si mesmo e a um anterior não pode ser garantido de maneira completa, ao menos um sentido desses dois moldes sintáticos pode ser extraído com alguma segurança que é aquele de prescrição de um método (no caso de como) ou de uma ação específica (no caso do imperativo). De forma mais geral, esse tipo de discurso pode ser classificado como ilocutório. É precisamente o efeito de sentido de método que nos leva a pesquisar de que maneira tal tipo de enunciado se tornou valorizado historicamente, isto é, quais condições de produção de tal discurso devem estar presentes. É a partir de uma tentativa de compreender a escolha semântica que o dispositivo analítico da AD se instala. Podemos, a partir desse ponto de um primeiro recorte sistemático num corpus maior e mais abrangente, tentar retraçar historicamente a “origem” desse discurso, isto é, as retomadas e modificações dos discursos outros, anteriores. Sabemos que qualquer discurso não surge a partir de si, trata-se de um intradiscurso, o fio do discurso (o aqui e agora do discurso), que retoma um interdiscurso, ou pré-construído. Os livros de autoajuda também costumam receber a denominação de livros de psicologia popular (cf. CHAGAS, 2001), neste sentido, poderíamos supor que o interdiscurso retomado no intradiscurso deste tipo de publicação é o da Psicologia, uma vez também que muitos deles tratam de temas como pensamento, motivação, atenção, etc. Ainda que este contraste diacrônico em certa medida seja feito por meio de uma justaposição dos enunciados a enunciados anteriores, não podemos garantir uma genealogia 86

perfeita, como por exemplo, se pleiteia nas ciências biológicas a respeito das origens de uma espécie. Os discursos se caracterizam por uma grande heterogeneidade na constituição de seus sentidos e diversas bases interdiscursivas podem ser resgatadas a partir de um mesmo enunciado. Entretanto, a descrição de suas principais características pode nos ajudar a compreender uma base que se justifique de forma mais formalizada que uma simples hipótese. A origem dos estudos dos atos de fala pode ser retraçada desde Frege e Russell, mas é a partir de J. Austin e em seguida Searle que podemos falar de um campo específico de investigação, o de “atos de fala”. Esse campo visa se contrapor aos estudos tradicionais nos quais o que importa são os aspectos formais (sintaxe e semântica) bem como o status de verdadeiro ou falso das constativas. Por meio da introdução do aspecto performativo da fala, Austin (1962) tira de foco a checagem da veracidade dos enunciados dando ênfase ao contexto de produção do enunciado bem como à sua intencionalidade. De acordo com o fundador dessa vertente, Austin (1962, p. 5), [...] enunciados podem ser encontrados, satisfazendo essas condições, ainda que a. eles não ‘descrevem’ ou ‘informam’ ou constatam qualquer coisa, não são ‘verdadeiros ou falsos’; e b. o enunciado da sentença é, ou é parte de, o fazer de uma ação, que novamente não seria normalmente descrita como falar algo.

Isso dá origem à vertente pragmática dos estudos em linguagem que apesar de não ser o método de análise empregado nessa tese, nos interessa na medida em que por meio da descrição formal e filiação dos enunciados analisados a um tipo de ato de fala (mais a frente entraremos na especificidade desse ato) ilocutório, se torna possível estabelecer relações genealógicas (como por exemplo, com o discurso religioso), que até então seriam hipotéticas, de uma maneira mais rigorosa e consistente. Bem como a formalização de uma análise que coloca a intencionalidade no centro do enunciado nos possibilita trabalhar um tipo de subjetividade forjada pelo discurso de autoajuda por meio do rastreamento dos seus traços formais. Subjetividade que supõe essa intencionalidade ao mesmo tempo em que apaga sua alteridade. O caráter performativo de um enunciado dependia de algumas condições: a) as circunstâncias em que as palavras são proferidas devem ser apropriadas; b) o falante deve realizar determinadas ações que sejam físicas ou mentais, ou ainda, o proferimento de algumas palavras adicionais; c) a pessoa deve ter autoridade para executar o ato (RANGEL, 2004, p. 9).

Por estar assentada em uma análise que leva em conta as condições de produção dos enunciados, ela rompe com a linearidade e correspondência direta entre linguagem e mundo. Além disso, por conta dessa determinação extrínseca ao enunciado, ou seja, por levar em conta a 87

exterioridade na constituição do sentido, essa nova maneira de entender a fala se aproxima daquela da Análise do Discurso (que aparece posteriormente na França), mas ao mesmo tempo se afasta por considerar a ‘intencionalidade’ e ‘controle’ de sentido por parte do locutor. É preciso destacar ainda que a classificação de enunciados entre constativos ou performativos (incluindo aí uma subclassificação desenvolvida por Austin entre performativo primário e performativo explícito) também encontra sua dificuldade no que Austin descreve como caráter vago e equívoco da linguagem comum. Em lugar de tratar o enunciado como verdadeiro ou falso, Austin irá propor que seja tratado como feliz quando a ação que visa for realizada com sucesso ou infeliz quando for malogrado. De acordo com Ottoni (2002 , p. 128), As infelicidades mais específicas do performativo são: (a) a nulidade (ou sem efeito) quando o autor não está em posição de efetuar tal ato, quando não consegue, formulando seu enunciado, completar o ato pretendido; (b) o abuso da fórmula (falta de sinceridade) quando se diz: eu prometo, por exemplo, sem ter a intenção de realizar a ação prometida; (c) a quebra de compromisso quando se diz eu te desejo boas vindas, por exemplo, tratando no entanto o indivíduo como estranho.

De certa maneira, no contexto desse trabalho, a nulidade (a) seria a mais interessante de ser tomada como um dos focos de análise, ainda que não seja a intenção analisar a felicidade ou infelicidade do ato de fala realizado pelos livros de autoajuda. Por outro lado, ao observar o enorme índice de venda desse tipo de publicação, podemos considerar que se trataria de um ‘autor’ que se encontra numa posição compatível com a autoridade de poder dizer o que as pessoas devem ou não fazer para se “autoajudarem”. E por outro lado, de certa maneira, podemos entender que a compra desse tipo de livro legitima essa posição de autoridade do dizer. Outros traços que podem reportar-se à felicidade do dizer, e que também estariam relacionados à autoridade atribuída a esse discurso, são as constantes referências ao discurso científico (conforme já citada anteriormente na página 50): Quis aprender mais sobre esse assunto [a felicidade] tão elusivo. Estudei a pesquisa científica e comecei a perguntar a meus ouvintes e leitores sobre seus pensamentos e experiências. Li muitos trabalhos de filósofos de várias disciplinas. Eis o que aprendi: a felicidade, basicamente, significa bem-estar (STODDARD, 2002, p. 11, grifos nossos).

Os atos de fala são divididos por Austin (1962) em três atos que acontecem simultaneamente: locutório, que diz respeito à produção de sentido por meio da articulação entre sintaxe e semântico; o ilocutório, que diz respeito à realização de um ato por meio do enunciado; e, o perlocutório, que está relacionado ao efeito sobre o interlocutor. As fórmulas ilocutórias mais reconhecidas, segundo Ottoni (2002), seriam caracterizadas pela presença do pronome pessoal da primeira pessoa do singular (eu) seguido de um verbo 88

conjugado na voz ativa e no presente do indicativo, como por exemplo ‘eu ordeno’ ou pelo uso da voz passiva na segunda ou terceira pessoa, como por exemplo ‘os passageiros estão convidados a utilizar a passarela para atravessar a pista’ (OTTONI, 2002, p. 129). Entretanto nem sempre os performativos aparecem de maneira tão clara, como é o caso do quadro C que apresentamos anteriormente, composto por títulos nos quais a presença do imperativo, pode ser entendida pela sua força ilocutória. Por exemplo, ‘Escolha a felicidade’ pode ser parafraseado por ‘Eu aconselho que escolha a felicidade’, bem como por ‘Eu te convido a escolher a felicidade’ ou ainda ‘Eu ordeno que escolha a felicidade’. Para compreender um pouco melhor a complexidade do discurso ilocutório, serão apresentados algumas características do ato ilocutório: Um ato ilocutório pode ser divido entre força ilocutória (F) e conteúdo proposicional (P). Searle e Vanderveken em sua obra Foundations of Illocutionary Logic (de 1985) tratam exaustivamente do tema da “força ilocutória” de um enunciado, entendida como uma “ação complexa, constituída de vários elementos e operações”. Essa força se define “como uma ação que tem um objetivo ilocutório, um grau de potência, um modo de realização, um conteúdo proposicional, condições preparatórias, condições de sinceridade e um grau de potência dessa sinceridade” (MEUNIER, 1986, p. 385, tradução nossa). Seguindo o exemplo de análise de Searle e Vanderveken (1985), podemos tomar os títulos que são compostos por um verbo conjugado no imperativo como é o caso novamente do título “Escolha a felicidade” e produzir a paráfrase “Você vai escolher a felicidade”, que também tem como característica uma força ilocutória. Se essencialmente as duas sentenças possuem (de acordo com essa teoria) o mesmo conteúdo proposicional (P), o que as diferencia é a força ilocutória (F) presente na medida em que estabelecemos a hipótese de que enquanto no primeiro a força ilocutória poderia ser relacionada a uma ordem, no segundo, estaria relacionada a uma previsão. Nesse sentido, mais que descrever os traços semânticos dessas sentenças, a lógica ilocutória tem como objetivo descrever uma ação. Se os aspectos mais formais (de ordem lógica-matemática) da lógica ilocutória não nos interessam tanto, por outro lado, arrolar esse tipo de discurso ao lado de outros discursos ilocutórios e destacar as características de tal discurso, pode nos fazer compreender qual o tipo de produção de sentido visada por tal discurso e quais outros discursos anteriores podem ser alinhados a esse atual. Nesse sentido, torna-se interessante a observação de um segundo quadro teórico, conforme explica Meunier (1986) que pode ser subtraído da obra de Searle e Vanderveken (1985), o antropológico-metafísico, que visa compreender quais os vetores principais da concepção de “ação humana”. 89

É a partir da tomada dessa ação como ato de fala que se delineia a teoria. Ação aqui deve ser compreendida como algo que ultrapassa a simples enunciação (utterance) e que tem algum objetivo, visa a algo. É por conta disso que divide a força ilocutória, o principal componente do ato ilocutório, em sete, abrindo e tornando ainda mais complexo o processo de classificação dos atos de fala: o objetivo ilocutório, o grau de potência, os modos de realização do ato, as restrições sobre o conteúdo proposicional, as condições de preparação, as condições de sinceridade e seu grau de potência. Conforme podemos observar, esses critérios de classificação da força ilocutória não levam em conta qualquer aspecto linguístico formal. Por não se apresentar sempre da mesma forma linguística, Meunier (1986) propõe que seu estudo não se limita à semiótica da língua natural, mas sim a semiótica da comunicação em geral. Já em Austin os limites entre fala e ação são colocados em suspeita, pois mesmo uma afirmação que simplesmente descreve algo no mundo pode ser entendida como uma ação ‘eu afirmo que [...]’. O que essa penetração constativo-performativo causa às Ciências da Linguagem é justamente a inclusão das condições de enunciação. O enunciador, no que diz respeito especificamente aos atos de fala, deve para que seja um ato de fala bem sucedido, ou feliz, estar em uma posição adequada. Segundo Ottoni (2002, p. 134), “o ‘eu’ não deve mais ser confundido com o ‘sujeito’ falante empírico, uma vez que é só através do uptake23 que se constitui o ‘sujeito’”. Ou seja, de um modo geral, ao estabelecermos um gênero literário (em última instância legitimado pela localização, na maior parte das livrarias, sob a designação de ‘autoajuda’), estamos estabelecendo alguns critérios a respeito desse enunciador. Alguns desses autores são bastante conhecidos e falam ‘em nome próprio’, mas a simples localização de um livro sob essa placa ‘livros de autoajuda’ oferece um lugar de enunciação que possui uma história e características próprias mais ou menos delineáveis. Papalini (2010, p. 149) irá tratar do ato performativo de “sanar” na biblioterapia, por meio da palavra. Por biblioterapia deveríamos entender o conjunto de práticas terapêuticas que têm como objetivo sanar o leitor de algum mal-estar por meio da leitura. De modo geral, esse tipo de terapia atuaria: a) Como um complemento de um tratamento específico, b) como uma terapia cabal, em si mesma completa, efetiva tanto em relação a mal-estares e preocupações menos pronunciadas como em patologias descritas pela literatura especializada, c) como meio de divulgação que sirva para alentar outros sujeitos que padecem das mesmas dolências e d) como resposta tanto prática como ética, promovendo um conjunto de valores e um discurso global sobre o sentido e modos nos quais deve se desenvolver a existência. Nesse sentido se 23

Uptake se relaciona ao “momento em que há o reconhecimento entre os interlocutores de que algo está assegurado, de que o ‘objetivo ilocucionário’ foi realizado através de sua ‘força’” (OTTONI, 2002, p. 134).

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assemelha a literatura de biografias exemplares e vida de santos popularizadas entre os setores subalternos que, em tempos passados, se ofereciam como modelos a serem seguidos frente às vicissitudes mundanas (PAPALINI, 2010, p. 149).

Ainda com relação ao uso do imperativo, o mais importante aqui é resgatar o imperativo e sua força da sintaxe do Supereu que como pudemos observar anteriormente se caracteriza justamente pelo mandato, cindindo o Eu. Isso quer dizer que o imperativo encontra um equivalente psíquico bastante forte, se mostrando um recurso que tem consequências para a economia psíquica. De acordo com Freud (2011b [1930]), muitas “escolas de sabedoria da vida” já tentaram instruir os homens a respeito de como viver a vida de maneira a evitar que as três fontes de malestar causassem sofrimentos. Caminhos traçados e trilhados por homens. Podemos retomar aqui, guardadas as devidas proporções com relação à qualidade inclusive literária, por exemplo, os Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Por exercícios devemos entender: “[...] qualquer método de examinar a consciência, de meditar, de contemplar, de orar vocal e mentalmente, e outras operações espirituais [...]. (EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS, 2006, p. 9). É interessante notar, no entanto, que é conferido ao leitor, no próprio texto, uma maior capacidade de julgamento a respeito da utilidade do que se escreve, o que leva inclusive Inácio a escrever: “os Exercícios espirituais devem ser adaptados à disposição das pessoas que desejam fazê-los. Isto é, conforme a sua idade, instrução ou talento [...]” (EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS, 2006, p. 18). A partir dessa discretização de um traço sintático (por exemplo, o uso do imperativo), podemos observar a relação desse discurso com outros discursos que visam instruir seus leitores, como, por exemplo, é o caso das receitas culinárias: DOCINHO DE FESTA DE NESCAU OU VIC MALTEMA Ingredientes: 1 lata de 500 g de vic maltema ou Nescau 1 lata de leite de moça Modo de fazer: Misture os dois ingredientes, mexendo sempre e vá pondo o leite condensado até dar o ponto de enrolar em formato de bolinas ou bombons, colocando uva passa no meio. (À MODA DA CASA DA AMIZADE, p. 212, grifos nossos)

Ou ainda em manuais de instruções de eletroeletrônicos: Introdução e Cuidados Gerais - carregue a bateria com o carregador (adaptador) em condições normais de temperatura ambiente [...]. - Não exponha o carregador (adaptador) diretamente à luz solar, [...]. 91

- Desconecte o carregador (adaptador) durante uma tempestade para evitar choques elétricos ou fogo. - Não utiliza o telefone celular em áreas potencialmente explosivas [...] - Não deixe seu telefone em locais sujeitos à poeira excessiva e mantenha o fio do carregador (adaptador) o mais longe possível de fonte de calor. [...] - Não faça ou receba chamadas enquanto o telefone estiver carregando [...]. (MANUAL DO USUÁRIO LG ATOM, p. 15)

O uso do advérbio como Para compreender o uso do advérbio ‘como’ amplamente presente nesses livros, o recurso à paráfrase se mostra bastante pertinente. Segundo Pêcheux (1997b), o não dito atua no dito. Essa constituição em cadeia não pode deixar de estar relacionada à cadeia de significantes: ainda que na teoria de Lacan, ela se relacione a um sujeito, não se pode negar uma certa ordenação significante compartilhada que dá sentido e organização à vida em sociedade (indivíduos que fazem laço entre si). A escolha do advérbio “como” deixa de lado uma série de outros advérbios que balizam perguntas: por exemplo, “o que”, “por que” ou “quando”. O efeito de sentido visado aí pode ser entendido, portanto como uma ausência da necessidade de compreender (o que e por que) ou contextualizar (quando). O que se visa aqui é a execução de um comportamento ou uma série deles de um repertório de condutas em vistas a um objetivo inquestionável (ex.: Como conquistar qualquer pessoa em 90 minutos). “Como” produz um efeito de sentido que pode ser relacionado ao método, sem elucidar os motivos ou causas da conduta desejável. É precisamente esse “desejável” que fica difícil localizar: pois ainda que a compra do livro, por exemplo, por parte do leitor sinaliza que ele compactua com aquilo, de certa forma, podemos localizar a origem desse desejo alhures, antes em algum outro lugar do qual o sujeito se apodera num momento posterior. A presença de um “como” poderia sinalizar uma pergunta, que por sua vez, poderia prever a participação do leitor como locutor (dialogismo), entretanto, a resposta não está no leitor, e sim no próprio livro, aproximando o título de uma pergunta retórica que não prevê uma contribuição efetiva do leitor. De certa maneira é como se em algum outro lugar e antes alguém fizesse a pergunta “como?” que agora será respondida no livro. Podemos relacionar essa interpretação a um efeito de pré-construído na medida em que se trata de uma interpretação na qual incide um discurso anterior. De acordo com Marandin (1993, p. 166), a noção de pré-construído tem um objetivo bastante particular: “conceber uma eficácia própria da linguagem, isto é, uma eficácia que não

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possa ser relacionada à ação ou intenções de um locutor. Ela se apresenta como fundadora de uma pragmática não-subjetiva”. Por meio dessa análise, podemos dizer que a eficácia estaria localizada no próprio discurso. Não é preciso que sejam verificados os graus de autoridade do locutor, pois o caráter pragmático é extraído da própria construção do discurso como efeito de sentido. A suposição da pergunta “como?”, feita anteriormente à resposta que o livro de autoajuda vem oferecer, limita as possibilidades de interpretação, isto é, oferece chaves de compreensão da produção discursiva que aparece no logicamente antes da pergunta, que são as próprias construções de sentido oferecidas pelos livros de autoajuda num processo no qual anaforicamente retoma o advérbio “como” para construir uma resposta. Donde a interpretação de um “efeito de sentido de prescrição” com a qual trabalhamos anteriormente. Além disso, o uso do imperativo (que pode ser ilustrado no quadro C acima) não é menos ilocutório: é na medida em que condutas se colocam como universais por um encadeamento prescritivo de passos que o discurso do livro de autoajuda se aproxima da forma do discurso religioso. Ao contrário do homem da condição pós-moderna que “anda num deserto, sem direção e sem discernimento porque a paisagem é toda igual, feita da mesma matéria efêmera e sem controle de si” (PONDÉ, 2010), por meio da leitura atenta e disciplina consciente, o leitor pode tomar para si e para sua vida os sentidos (aqui relacionado à moral e à suficiência de sentido da experiência humana) que ressoam nesse discurso. Se pensarmos a partir da obra de Foucault o conceito de poder como aquilo que se exerce por meio de práticas que subjetivam, individualizam e distribuem os saberes, estamos num campo onde esse poder, por meio de censuras, interdições, prescrições positivas, etc, se exerce enredando as práticas sociais, criando protocolos a serem seguidos para a melhor forma de viver. Segundo Foucault (2000, p. 149), o poder “porque produz efeitos positivos ao nível do desejo [...], longe de impedir o saber, o produz”. Não é de estranhar uma semelhança entre esse tipo de publicação e o que é descrito por Foucault (1977) em Vigiar e Punir como o controle do corpo por meio de técnicas de controle do tempo e do espaço, da vigilância e exame individual constante. Entretanto, ao invés desse poder ser exercido por algum outro indivíduo ou disciplina hierarquicamente superior ao indivíduo, o poder está atomizado na mão de todos. Todos se autoviagiam, se autoexaminam e se autorregulam, com o auxílio de experts, claro, mas sem perder de vista que esses últimos querem apenas garantir o que é melhor para ele. Entretanto, não se trata apenas de experts, mas sim de experts bem intencionados e carismáticos. Melman (2008) aponta para a eficiência do carisma nas sociedades nas quais a figura 93

central autoritária está cada vez mais em desuso. De certa maneira a figura de autoridade, por meio do carisma faz valer o seu poder. Por outro lado, o que não deixa de ser sem importância para essa tese, uma vez que os aspectos gerais do contexto nos interessam, é o destaque que esse autor dá às seitas (nos Estados Unidos) e que aqui de forma mais ou menos aproximada poderíamos comparar às religiões evangélicas, pois ambas se caracterizam por uma figura de autoridade rígida e pelo estabelecimento de padrões morais altos para o comportamento, o que viria a caracterizar, segundo o autor, uma espécie de fascismo voluntário. A atenção à gramática nos permite verificar a contradição à qual nos referimos anteriormente: aquela que encontra o nó do seu paradoxo no livro que pode “autoajudar” um leitor. A garantia da gramática, das suas normas, regras, não garante a completude de sentido. Há sempre um equívoco ao qual podemos nos referir. É precisamente nisso que claudica, que manca que a AD e a Psicanálise se debruçam. Ao apontarmos à contradição em livro de autoajuda não estamos compactuando com o projeto de desambiguização, mas sim apontando à sua opacidade. Segundo Milner (1992, p. 13) “o ideal da gramática seria [...] um ideal de completude que participa de um ideal de sujeito mestre de suas palavras, para construí-lo em definitivo em sujeito jurídico”.

A estrutura da parábola O sujeito se identifica a um significante do campo do Outro que nomeia sua falta a ser. A identidade de um objeto na obra de Lacan esta a princípio relaciona ao nome. É a permanência de um nome que confere um caráter identitário a um objeto que pode não ser sempre o mesmo. No entanto, é fundamental diferenciar dois tipos de nomes: os que vêm do Outro, e o que o homem dá a si próprio. Já estamos falando das epidemias contemporâneas, do tipo de laço social dessa época e dos livros de autoajuda, o que nos interessa é esse nome que vem do Outro. Podemos nesse contexto, considerar os livros de autoajuda um vetor de uma subjetividade que poderia ser apreendida pela via da identificação histérica. A identificação histérica se beneficia justamente do lugar vazio que é representado pelo elemento Ø presente em ambos os conjuntos, do sujeito e do Outro, conforme Lacan propõe no Seminário 11. É onde há falta que algum significante na sua relação precária de produção de sentido pode aparecer e se instalar (transitoriamente) com o objetivo de tamponar a falta. Lacan (1998 [1949], p. 96), define a identificação como “a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem”. Dessa maneira, podemos supor que se os livros de 94

autoajuda pretendem de alguma forma produzir efeitos em seus leitores, eles pretendem realizálos por meio do mecanismo da identificação. É por essa característica depreendida pelo objetivo dos livros de autoajuda, não por acaso também chamados de livros de desenvolvimento pessoal, que Trocolli24 sugere a analogia entre a obra Madame Bovary, de Gustave Flaubert, e esse tipo de publicação. No primeiro caso, nos deparamos com uma subjetividade forjada pela leitura de romances românticos: “Era a apaixonada de todos os romances, a heroína de todos os dramas, o vago ela de todos os volumes de versos” (FLAUBERT, 2007, p. 232). Enquanto isso, no segundo caso, nos deparamos com uma subjetividade forjada pela identificação (ou convite à identificação) àquela suposta pelos livros de autoajuda. No entanto, há na identificação de Madame Bovary aos seus romances uma certa liberdade e mesmo um certo grau de distanciamento. Ao contrário, nos livros de autoajuda o que encontramos é uma proposta que visa forçar a identificação do leitor a um personagem de cuja forma de vida devem ser extraídas as consequências para o leitor. Não se trata aqui de imaginar se essa identificação acontece da forma como está prevista, mas sim de tratar a própria previsão. Esse processo, no qual uma experiência pessoal é descrita e as consequências dessa experiência são tomadas como lições moralizantes, aparece com bastante frequência nos livros de autoajuda. Shinyashiki (2012), em seu livro de autoajuda O sucesso é ser feliz, apresenta “Os três mitos da infelicidade” recorrendo a três personagens da mitologia grega que exemplificariam “muito bem a maneira como desperdiçamos nossa vida: Dâmocles, Sísifo e Mida” (SHINYASHIKI, 2012, p. 35). A partir desses três modelos de desperdício de felicidade seria então possível ao leitor identificar a maneira como ele próprio desperdiça sua felicidade. E somente a partir desse reconhecimento de um padrão seria possível modificar sua vida de modo a construir a felicidade. A partir da história de cada personagem, são extraídos características e direcionamentos relacionados aos tópicos: infância, relacionamentos afetivos, trabalho, filhos e amigos. Para o autor (2012, p. 36, grifos nossos) Conhecer esses tipos psicológicos é uma porta de entrada para compreender, analisar e transformar os seus comportamentos e sentimentos adquiridos durante a infância, quando suas necessidades não foram devidamente satisfeitas, e, por isso, continuam a influenciar sua vida. Será que você identifica seu estilo de vida com algum deles?

Há aqui o recurso a uma tipologia que visa à classificação de todos e qualquer um a partir de uma especificidade. Por meio de um método indutivo, da narração da vida do personagem são

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Comunicação pessoal, 2010.

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extraídas características que, uma vez desconectadas das circunstâncias específicas de seu aparecimento, podem se configurar como leis gerais. É essa passagem do particular para o universal que permite que uma história de um indivíduo possa servir de exemplo a uma série de outros. Se por um lado essa identificação com personagens não é nada recente, como podemos observar já em Madame Bovary, por outro lado, o convite a esse processo nunca foi tão explícito: “procure reconhecer-se neles. Verifique com qual você – e as pessoas próximas – mais se identifica” (SHINYASHIKI, 2012, p. 37). Observa-se ainda nesse extrato do livro que não somente o autor recorre a narrativas míticas para ilustrar comportamentos atuais, mas que extrai dessas narrativas uma tipologia psicológica que encontra suas causas na infância. Aqui se torna bastante pertinente a hipótese de que há uma heterogeneidade nesse discurso. Por meio do destaque dos termos usuais do vocabulário científico da Psicologia, bem como da Psicanálise, podemos retraçar de onde vem esse discurso, ou seja, a que campos de domínio semântico recorre para compor e legitimar seus sentidos. No mesmo livro, Shinyashiki (2012, p. 30) escreve: Sua infelicidade nasce e cresce conforme você vai seguindo o que escutava de negativo na infância: seu pai vivia lembrando que a vida era difícil, e fez você acreditar que nunca conseguiria ganhar dinheiro; sua mãe dizia que a vida era carregar pedras, e levou você a não ser capaz de desfrutar suas conquistas; sua tia não cansava de repetir que ninguém valoriza ninguém nessa vida, e fez você viver à caça de aplausos.

Nesse trecho não só observamos previsões futuras, mas também um relato da vida precedente do leitor. Aqui observamos o forjamento de uma subjetividade que além de características específicas possui também um passado coincidente com o do escritor. O que permite que o escritor possa falar de antemão exatamente o que aconteceu na vida do leitor supomos que seja a identificação escritor-leitor. Além disso, o uso do pronome você para se referir a acontecimentos que possivelmente se passaram com o autor, já nos dá pistas dessa identificação. Não é raro encontrar, nesses livros, relatos de vida que têm como objetivo servir de um modelo a ser seguido (ou não) ou para que seja extraída delas alguma lição de moral. É o caso, por exemplo, do livro Ria da minha vida antes que eu ria da sua, de Evandro Daolio (2011), que já vendeu mais de 100 mil exemplares e que por meio do relato de situações que o autor viveu pretende instruir seus leitores a não cometer os mesmos erros e ao mesmo tempo, aprender a rir da situação estressante ou embaraçosa pela qual passou, como se todos passassem sempre pelas mesmas situações ou que as mesmas situações pudessem adquirir os mesmos valores para qualquer um na sua economia psíquica.

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Esse tipo de recurso que poderíamos chamar até de pedagógico, já que visa um ensinamento que parte de uma experiência particular e visa uma experiência universal e mais generalizante. Nesse sentido, nossa hipótese é a de que se aproxima da parábola. Townsend (1968) diferencia as três figuras de linguagem retóricas: o conto, a parábola e a fábula que se identificam por de certa maneira serem formas populares de transmissão de instruções. Se o conto, descrito como uma narração verídica ou não, não deve sempre levar consigo uma lição a ser seguida, a parábola é intencionalmente usada para transmitir algum significado “escondido” ou “secreto” diferente daquele que encontraríamos no sentido literal das palavras, além disso, tem como característica uma referência especial ao leitor/ouvinte. Já a fábula, está de acordo com ambas anteriores por ser uma narrativa que visa transmitir um significado “oculto” menos pelo uso linguístico que pela introdução de personagens fictícios. “[...] ela [a fábula] sempre levará em conta, como sua maior prerrogativa, e atribuição inseparável, o grande objetivo de instrução, e vai necessariamente buscar inculcar alguma máxima moral, dever social, ou verdade política” (TOWNSEND, 1968, p. 10). Nesse sentido, está mais próxima da educação que da narração ou da alegoria. Se levarmos em conta que as narrativas que muitos livros de autoajuda trazem consigo importam menos pelo seu conteúdo e desenvolvimento da trama que pela aprendizagem que se pode extrair, podemos localizá-la mais próxima da parábola e da fábula que do conto ou da prosa (como o romance moderno). A parábola, do grego παραβολ-ή, quer dizer justaposição ou comparação. Segundo Vaperau (1876) ainda pode ser entendida como aproximação (além de comparação). Tratar-se-ia de uma das variedades da alegoria. Enquanto esta, em geral, apresenta o fato de que ela leva em consideração, sob um disfarce ou ornamento de linguagem, a parábola oferece, sob suas cores verdadeiras, um fato que deve servir a demonstração de uma verdade de uma outra ordem, com a qual ela tem uma relação de fácil apreensão. ‘Substitua na parábola’, diz o abade Cirard, ‘o verdadeiro fato que ela expõe, você mudará o fundo do discurso; substitua na alegoria as verdadeiras cores por aquelas que ela emprega, você modificará a forma’. A parábola exerce nos povos semitas o papel de apólogo e de fábula. A Bíblia, sobretudo no Novo Testamento, contem numerosas parábolas: a semente de mostarda ou a Igreja, o Samaritano ou o amor da humanidade, o fermento ou a graça, os lobos em pele de carneiro ou os instrutores de falsas doutrinas, os trabalhos dos operários do vinhedo ou as obras de salvação, o rico maldoso ou a obrigação de esmolas, o bom pastor, etc. As parábolas são mais frequentes ainda na literatura budista; As Avadanas, o Hilopadeca, nos dão apenas ideia da coleção mais vasta das quais eles são trechos e as quais se chamam Yu-Lin, quer dizer, ‘a floresta de comparações’. Na literatura moderna, sobretudo os alemães cultivaram a parábola. (VAPEREAU, 1876, p. 1549, tradução nossa)

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A parábola como apólogo é uma maneira bastante próxima da forma como alguns relatos de experiências, do próprio autor ou não, nesses livros de autoajuda funcionam. Dever-se-ia partir desse relato, sem levar em conta apenas seu caráter literal ou prosódico. É preciso que dele seja extraída alguma lição, e o autor não tarda em explicitar qual.

O indivíduo livre e autônomo O pronome reflexivo se Algo que se repete bastante nos títulos dos livros de autoajuda é a presença da partícula reflexiva ‘se’, bem como a presença do prefixo ‘auto’ ou de ‘si mesmo’, conforme podemos observar no quadro (D) abaixo. D. Quadro composto por títulos que fazem uso da partícula ‘se’ ou algum outro índice de reflexibilidade como ‘si mesmo’ ou ‘você mesmo’.

Ame a você mesmo e... permaneça casado. Comporte-se como uma dama, pense como um homem. Entregue-se ao amor. Liberte-se. Livre-se da síndrome da superpoderosa. Pare de reclamar e concentre-se nas coisas boas. Pare de se sabotar e dê a volta por cima: como se livrar dos comportamentos que atrapalham sua vida. Se ligue em você. Seja líder de si mesmo. Reinventar-se

O pronome reflexivo ‘se’ sinaliza que o sujeito (sintático) que produz a ação é também o objeto sobre o qual recai essa ação. A partir dessa reflexibilidade é possível extrair traços do sujeito suposto por esses livros de autoajuda. Tratar-se-ia de sujeitos que, por ao mesmo tempo poderem praticar e sofrer a ação, teriam a prerrogativa de prescindir de um outro, o que vem reforçar a liberdade e autonomia presentes na construção do conceito de indivíduo moderno.

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Entretanto, mais uma vez o paradoxal papel dos livros de autoajuda que ao funcionar como uma alteridade que imputa à subjetividade suposta pelo seu discurso uma autonomia, novamente invisibiliza o processo por meio do qual aliena e submete essa subjetividade àquilo que pode e deve ser dela. Afinal que tipo de liberdade pode haver em “Liberte-se”? Uma análise semântica e sintática desse título nos revela mais uma vez seu caráter paradoxal: o uso do imperativo, que sinaliza uma ordem ou conselho, estabelece uma relação de hierarquia entre o enunciador e aquele sobre quem incide o imperativo. Por outro lado, o verbo “libertar-se” que se refere a “tornar ou ficar livre” ou “desobrigar” apresenta-se em contradição com o uso do imperativo. Que liberdade poderia haver em seguir uma indicação de libertar-se? De certa maneira, para que seja obedecida, a indicação deve paradoxalmente ser desobedecida. Na reflexibilidade o sujeito é um outro (si mesmo). O que implica o princípio de identidade (A = A) que sabemos desde o Seminário 9 ser apenas presente no nível imaginário. Segundo Corrêa (2011) “a = a” não estaria muito correto uma vez que o segundo a já não é mais idêntico ao primeiro uma vez que aparece em uma posição diferente na equação. Um aparece em primeiro enquanto outro aparece em segundo. De acordo com Corrêa (2011, p. 50, grifo nosso) “[...] Lacan, em relação à identidade – não se trata de identificação – vai dizer que, a partir de Saussure e da lógica do significante, nós definimos o significante pela autodiferença”. O recurso aqui ao uso de autodiferença já implica uma alteridade ou uma ausência de identidade. O fato de que o significante seja diferente de si mesmo é o que permite que haja fala, já que sempre remete a um outro. “[...] daí Lacan coloca que a é diferente de a, quer dizer, que a repetição do idêntico faz a diferença”. Para ilustrar isso, Lacan (2003 [1961-1962]) usa a uma costela de animal que encontra em um museu na França: trata-se de uma costela que tem uma série de inscrições em formato de um bastão. Cada uma dessas marcas representa um animal morto pelo caçador que carrega a costela. É porque o caçador abateu cada um desses animais em uma circunstância distinta que se pode falar que, ainda que todas representem um animal morto, é a repetição que as distingue. Elas mostram justamente a diferença que existiu entre um abate e outro. O que permite que uma ação recaia sobre o sujeito que a efetua é precisamente o redobramento sobre si mesmo e a tomada desse novo Eu (si mesmo) como objeto. Ao contrário do sujeito do inconsciente marcado pela presença de uma alteridade que fala a sua revelia (o inconsciente como discurso do Outro), o Eu é senhor de si. Tanto a observação

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dos fenômenos quanto a observação de si mesmo partem do princípio de que há um lugar a partir do qual se observa – um centro gravitacional dos objetos que o circunda. Se retomarmos o autoajuda e sua dimensão paradoxal frequentemente ignorada, podemos localizar a origem do apagamento da contradição no princípio científico. Lalande (2010, p. 735) explica o paradoxo epistemológico a partir de Meyerson (1995): “E. Meyerson o entende como a aparente contradição que a ciência apresenta, que somente explica pela redução ao idêntico, e que, consequentemente, não saberia alcançar a explicação completa sem fazer evanescer seu objeto”. A ciência se apoia na identidade. Todos os seus procedimentos só são garantidos se puderem ser replicados, por outros cientistas, em condições (variáveis) idênticas. Ao estabelecer esse critério de identidade nos desvencilhamos precisamente da singularidade, que se configura como uma ruptura desse contínuo entre particular e universal. Singularidade, portanto, que aparece marcada por uma falha, um furo. Ao contrário do caráter conflitivo do sujeito exposto por Freud, Lacan e Pêcheux, os livros de autoajuda se assentam na evidência de um sujeito autônomo e livre. O indivíduo Se o indivíduo é a peça central, ao redor da qual os livros de autoajuda se organizam, uma breve retomada da sua história se faz importante para a compreensão do contexto de surgimento dessas publicações. É claro que para a execução de tal tarefa é preciso consentir um relato que não é o reflexo exato de todos os acontecimentos, mas sim, uma narrativa mais ou menos estável de alguns desses acontecimentos na medida em que essa narrativa se torna possível, ainda que nem sempre desejável, já que a História também é um campo de atuação política que conta com contradições e resistências de sentidos. Essa retomada histórica não tem como objetivo retraçar grandes marcos e datas, mas sim resgatar acontecimentos que estendem as fronteiras da história de forma a permitir a incorporação de temas que se referem ao recôndito ou microcosmos. Este novo paradigma foi bastante desenvolvido pela terceira geração da Escola dos Annales que ao contrário das anteriores apresenta uma maior abertura e fragmentação teórica, pois tende a abarcar temas distintos e com influência de diferentes disciplinas, dando grande ênfase à história das mentalidades (BURKE, 1991). O indivíduo como unidade indivisível não é uma condição a-histórica e imutável. A partir do século XVIII, a despeito de orientações da Igreja Reformada Católica, é dado início a um 100

processo de dispersão de prenomes (primeiros nomes) que é acelerado pela Revolução Francesa. Essa nova maneira de denominar marca dentre outras coisas a tentativa de corte entre gerações, o que implica numa ruptura da fé de que o caráter é transmitido hereditariamente (CORBIN, 1991). É assim que a ideia de indivíduo começa a ser reforçada. Corbin (1991) lista os elementos que tendem a formar um “fio condutor” do reforço do eu. Um que merece destaque para fins do presente trabalho é a ideia de meritocracia, segundo a qual é possível ascender socialmente por méritos próprios, por meio da educação, formação ou esforço. É assim que, a cada dia, mais humildes conseguem ler seus nomes em jornais e diplomas. Isso não será sem consequência à literatura de autoajuda, uma vez que, é baseada na crença de que é possível se modificar a ponto de obter uma nova vida, melhor que a anterior, que essa literatura emite receitas e prescrições. Entretanto, é também importante lembrar que esse “reajustamento do indivíduo se impõe com maior razão às autoridades [...]. Compreende-se que a partir daí se purifiquem os processos de identificação e o controle social se torne preciso”. Ou seja, essa instrumentalização serve aos interesses do Estado de controle, contabilidade, reconhecimento de indivíduos etc. Segundo Courtine e Haroche (1988), esta exigência de unidade é datada e tende a apagar uma duplicidade/ambivalência anterior presente na persona e caracterizada pela diferença entre o que a sociedade quer desse indivíduo e suas próprias aspirações. A unidade de sujeito deve ser compreendida como uma expressão que dissimula a constituição dupla do sujeito: “um mesmo sujeito é, efetivamente, outro” (COURTINE; HAROCHE, 1988, p. 38). Isso significa que se cria também uma interioridade que a ciência se propõe a conhecer e decifrar. Tenta-se a partir de então, adivinhar a interioridade do homem por meio de indícios de sua expressão. Courtine e Haroche (1988) apontam para as reflexões políticas modernas que partem desse pressuposto da interioridade decifrável, apoiados na identidade do sujeito como algo passível de conhecimento (ou reconhecimento). Segundo os autores (1988, p. 45) “é assim que o homem moderno se afastou de si mesmo, podendo apenas assegurar-se do conhecimento de um eu íntimo, através da introspecção do olhar distante dos saberes exteriores especializados”. A introspecção tem uma história relacionada a diversos novos costumes que corroboram com o nascimento do indivíduo livre e autônomo. Era possível então que alguém rompesse a linha da história familiar e conseguisse se formar em uma nova profissão, consequentemente era necessário fornecer referências, opiniões a seu respeito que o qualificassem para o novo cargo. E é nesse contexto também que o boato começa a funcionar como uma forma de desvendar a vida privada. O interesse desse trabalho nesse tipo de acontecimento histórico está precisamente 101

nisso: em que medida a entrada na vida privada, o sistema de reconhecimento e identidade antropométrica (na sua origem policial), que torna impossível a substituição de um indivíduo por outro (CORBIN, 1991), permite que mais e mais se torne não somente possível, mas indicado, que especialistas entrem no interior da vida privada de modo a estabelecer padrões desejáveis de comportamento, higiene, conduta etc. A intimidade começa a ser abordada pela literatura e pela ciência. Assim, “aprofunda-se o desejo de decifrar a si próprio, banaliza-se a prática da introspecção” (CORBIN, 1991). Visto isso, não é de espantar que a Psicanálise tenha aparecido somente no final do século XIX. Foi preciso que antes pudéssemos “fabricar” aquele indivíduo que estaria disposto a deitar em um divã a fim de poder pensar sobre suas condutas de uma maneira crítica. Mesmo os moldes de confissão do século XIX são modificados, exigindo dos fiéis uma espécie de autoanálise. A partir desses exames, surgem diversos “regulamentos de vida” e “resoluções” que mostrarão de perto as condutas ideais da vida privada. Se por um lado a introspecção aumenta as ambições e aspirações, por outro lado, “estimula arrependimentos, aviva nostalgias” (CORBIN, 1991, 431), dando início também a uma história de fracasso pessoal e frustrações. Se os progressos da individualização engendram a autoreflexão, o pensar sobre si, consequentemente, aumentam as fontes de insatisfação. Identidade e alteridade O aforismo lacaniano “o inconsciente é articulado como uma linguagem” tem muitas implicações, mas destacaremos aqui uma consequência que nos autoriza a tratar da interface possível entre Estudos da Linguagem (aqui relacionado mais especificamente à Análise do Discurso Pêcheutiana) e a Psicanálise: aquela da solidariedade entre as dimensões singular e social, já que é necessário que os sujeitos se refiram a um mesmo Outro simbólico para que possam falar entre si (SAURET, 2009). Se, conforme nos adverte Lacan (1998a [1964]), p. 196), “[...] tudo surge da estrutura do significante [...]”, devemos considerar o sujeito um efeito do significante, ele nasce num lugar indeterminado entre os significantes. Contando com esta determinação (ao menos em partes) do sujeito por esse Outro simbólico em certa medida compartilhado, podemos afirmar que as transformações do laço social, entendido como “[...] aquilo que mantém os sujeitos […] juntos” (SAURET, 2009, p. 31, tradução nossa), produzem mutações no funcionamento psíquico dos sujeitos e, logo, na produção de seu discurso. 102

Muitos autores têm apontado para modificações específicas do laço social (LACAN, 1992 [1969-1970]; DUFOUR, 2005 e 2008; MELMAN, 2008; PORGE, 2009; SAURET, 2009). De modo geral, segundo Sauret (2009, p. 13, tradução nossa), “elas se relacionam tanto a sua estrutura (mercado e sociedade de consumo) quanto ao tipo de saber valorizado (o técnicocientífico) ou desqualificado (ontologias) e às ideologias que resultam daí”. Essas modificações podem então ser tratadas a partir de um ponto de vista histórico (se relacionadas de maneira mais próxima à noção de indivíduo) e compreendidas no seio da Psicanálise como modificações na forma como sujeito e Outro se enlaçam. É aqui que a psicanálise subverte a noção de indivíduo, conceito histórico e filosófico de cuja formação se pretende destacar alguns traços. Isso que a Psicanálise vem abordar de forma inédita, o indivíduo, não esteve sempre presente. Seu surgimento e formalização da forma como o compreendemos hoje será inscrito historicamente na modernidade. Segundo Laurent (1997, p. 34) “o sujeito como tal só pode ser conhecido no lugar ou locus de Outro. Não há meios para se definir um sujeito como consciência de si”. Sendo impossível a autoconsciência, é necessário ao sujeito que ele tome conhecimento de si por meio do Outro, ou outros. Se o Outro é compreendido como “a instância pela qual se estabelece para o sujeito uma anterioridade fundadora a partir da qual uma ordem temporal se torna possível” (DUFOUR, 2005, p. 38), é a filiação a uma espécie compartilhada de Outro que faz de diferentes sujeitos parte de uma mesma comunidade. Devemos entender que sendo essa espécie de alteridade absoluta algo ao qual o sujeito se refere necessariamente, diferentes encarnações desse Outro podem ter como efeito diferentes subjetividades ainda que todos os sujeitos partilhem essa característica: estarem sujeitos às leis da linguagem. Melman (2008, p. 89) relaciona as leis da linguagem ao simbólico e refere esse último a uma perda irreparável que promove a eterna incompletude do sujeito. Ao simbólico, se acrescentam duas dimensões: o “real [que] vem conceituar esse fato de que existe um espaço resistente à formalização, um impossível de dizer; a outra, a do Imaginário, [que] remete a essa capacidade que temos de dar uma forma ao que vem responder à perda, a essa pura falta”. Em uma abordagem histórica de encarnações de Outro e constituição de subjetividades, para tratar do conceito de sujeito e dos sintomas contemporâneos que apontariam a uma nova configuração de sujeito, Dufour (2005) retoma o que denomina terceiro ou Um: uma espécie de “dublê político”, que traduziria o ser, objeto central das ontologias. Esse terceiro se baseia na

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necessidade de organização social da vida comum: é preciso fabricar essa estrutura ficcional de sujeito que rege todas as outras relações entre os sujeitos. Esse sujeito genérico e ficcional pode ser relacionado à forma-sujeito como Pêcheux a propõe, pois está em relação a sujeitos verdadeiros sem, no entanto, ser um sujeito. Dufour (2005, p. 30, grifo do autor) explica “[...] os sujeitos falantes, simbolizáveis como o eu e tu, nunca pararam de construir terceiros, os eles eminentes, deuses em relação aos quais eles podiam se autorizar a ser”. Esse ele, que o autor chama também de grande Sujeito, deve ser entendido, entretanto, como uma ficção na medida em que nunca existiu, a despeito de sua função de homogeneizar e unificar as dissonâncias entre os sujeitos (eu e tu). Esse grande Sujeito na sua dimensão fictícia se aproxima ao que nessa pesquisa vem sendo tratado como subjetividade. Se não se trata, portanto, nem do “eu”, nem do “outro”, é preciso recorrer a uma categoria que dê conta do objetivo de tratar o conceito de indivíduo delimitado historicamente, por isso o recurso à noção de grande Sujeito. Dufour (2005) segue dando um passo que tenta articular esse grande Sujeito à construção lacaniana de Outro, ou seja, o “lugar terceiro na fala” (DUFOUR, 2005, p. 31), que o autor aproxima a um outro conceito lacaniano, o de Nomedo-Pai. Nesse ponto, é importante relevar esse achatamento que o autor faz entre Outro e Nome-do-Pai que, na teoria lacaniana, de forma alguma são conceitos coincidentes25. Precisamente por não existir, esse lugar de Outro é ocupado de diferentes formas, isto é, encarnações. O sujeito se constitui a partir desse Outro, o que é próximo ao que Freud estabelece como “trabalho cultural” (Kulturarbeit, em alemão): “cada cultura trabalha à sua maneira na formação dos sujeitos, marcando-os com uma marca específica que lhes permite enfrentar a questão jamais definitivamente organizada da origem” (DUFOUR, 2005, p. 37). O Outro, na obra lacaniana, deve ser compreendido como uma alteridade absoluta. A suposição desse Outro absoluto é constitutiva devido à linguagem: é necessária a ficção de um interlocutor com significâncias absolutas, em uma espécie de virtualidade do dizer. Trata-se de um efeito próprio do simbólico. Entretanto, esse Outro pode ser imaginarizado de diversas maneiras. A afirmação saussuriana de que os estudos sincrônicos de forma alguma contradizem os diacrônicos nos permite trabalhar as transformações históricas refletidas na materialidade linguística. A respeito dessas transformações e mutações de efeitos de sujeito, sintomas, “encarnações diversas” do Outro, e da tentativa de formalização a princípio relacionada à filiação de Lacan ao Estruturalismo, Dufour (2005, p. 35) escreve 25 As articulações de Dufour, entretanto, continuam válidas, a despeito desse ponto, por tratarem das formas de organização simbólicas e suas transformações, levando em conta esse aspecto de submissão (inconsciente) do sujeito à linguagem.

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De modo algum contesto o estruturalismo, provavelmente é um ganho imenso pensar com uma categoria fixa, mas com a condição expressa de que ela não esmague a variação, a diacronia e a especificidade de cada figura do grande Outro, isto é, afinal de contas, a diferença das cenas históricas em que a vida do sujeito se desdobra. Sempre se pode repetir o adágio freudiano segundo o qual, de todo modo, o inconsciente ignora o tempo. Certo, mas de jeito nenhum estaria aí uma razão suficiente para pensar que o tempo ignora o inconsciente! Em outras palavras, é perfeitamente possível sustentar ao mesmo tempo que o inconsciente ignora o tempo e que a condição subjetiva sofre variação histórica.

As transformações do Outro Segundo Dufour (2005, p. 44), Lacan teria acrescentado ao seu aforismo “o inconsciente é o discurso do Outro” a seguinte afirmação: “o Outro [como] o lugar em que se desdobra, no caso, uma fala que é uma fala de contrato”. Deve-se acrescentar a isso, que ainda que o contrato, no caso, tenha suas características próprias, não se trata sempre de um contrato imutável. É precisamente das renegociações contínuas desse contrato que se trata a História e as variações e desenvolvimentos nos campos da filosofia, que em última instância, ao tratar da questão do ser, da sua origem e da sua finalidade, deve retomar sempre essa espécie de conceito central do qual uma das modalidades é o de sujeito. É na aula posterior à excomunhão de Lacan da IPA e a mesma que inaugura o Seminário 11, que Lacan, ao entender que havia sido negociado, elabora a questão que articula o sujeito e o político: Sem dúvida, ser negociado não é, para um sujeito humano, uma situação rara, contrariamente à falação que diz respeito à dignidade humana, senão aos Direitos Humanos. Qualquer um, a todo instante e em todos os níveis, é negociável, pois o que nos dá qualquer apreensão um pouco séria da estrutura social é a troca. A troca de que se trata é a troca de indivíduos, isto é, de suportes sociais, que são ademais o que chamamos sujeitos, com o que eles comportem de direitos sagrados, diz-se, à autonomia. Todos sabem que a política consiste em negociar e, desta vez, por atacado, aos pacotes, os mesmos sujeitos, ditos cidadãos, por centenas de milhares (LACAN, 1998 [1964], p. 1213).

É interessante notar como nesse parágrafo Lacan nos coloca frente à noção de indivíduo como ‘suportes sociais’, ou ‘sujeitos com o que eles comportem de direitos sagrados, diz-se, à autonomia’. O caráter negociável do indivíduo permite uma série de recursos e barganhas que parecem estar sempre em jogo nas negociações, sugestões, convencimentos, mudanças e reformas políticas, bem como nas transformações que podemos retraçar historicamente que as encarnações do Outro sofrem. Essas transformações tendem a negociar sujeitos, ‘ditos cidadãos’, e consequentemente têm efeitos na subjetividade da época.

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A condição do sujeito, ao contrário do indivíduo que possui seu direito à autonomia, é sempre a de submetido ao Outro. Para Dufour (2005, p. 41), o que variaria, entretanto seria a intensidade dessa submissão: nas sociedades tradicionais, “a submissão ao Outro é maciça”. Se conforme Lacan, o inconsciente é o discurso do Outro, podemos pensar que o inconsciente se organiza a partir de elementos que organizam também a vida social. Seria tão ingênuo quanto inoperante acreditar que, dada às transformações sociais, essas figuras de Outro não se modificassem. Dufour (2005) busca compor uma espécie de genealogia desse sujeito atual que ele chama de pós-moderno e, para tanto, é necessário dar um passo atrás: a modernidade cuja tipologia, ao contrário da das sociedades tradicionais, estaria relacionada a uma pluralidade de ocorrências de Outro. Segundo Dufour (2005, p. 45), “existem sociedades com Outro múltiplo (como os politeísmos), sociedade com Outro único (como nos monoteísmos), sociedades com vários Outros”. Dufour (2005, p. 40) propõe que o que se achata com o passar do tempo seria a distância entre o Outro26 e o sujeito: Lá no politeísmo, é a distância inultrapassável dos múltiplos deuses da Physis [...]. Depois é a distância infinita da transcendência no monoteísmo. É ainda a distância mediana do trono entre o Céu e a Terra na monarquia (de direito divino). É, por fim, a distância intramundana entre o indivíduo e a coletividade na República.

A parir do século XV (Renascimento), é possível observar uma tentativa de se desfazer das coisas velhas, provindas da Idade Média, não à toa também denominada Idade das “Trevas”. Trata-se a partir de então, a qualquer preço, inclusive ao preço da inconstância e instabilidade subjetivas de dar lugar ao novo. A racionalidade e ascensão do homem ganham espaço, deslocando inclusive o controle social promovido majoritariamente pela Igreja para outros órgãos. E por fim, no plano filosófico, o aparecimento do sujeito cartesiano confere ao sujeito, a despeito da sua submissão necessária, algumas “zonas específicas de liberdade e de ação: o sujeito cartesiano, definido em função de sua própria capacidade de pensar (o famoso ‘eu penso, logo eu sou’ que, entretanto, permanece correlato ao Deus que garante esse conhecimento), é delas o exemplo mais importante [...]” (DUFOUR, 2005, p. 47). O reflexo disso no plano político pode ser localizado nas causas e efeitos da Revolução Francesa na medida em que é exigida justamente a liberdade que caberia ao sujeito, por sua vez

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Cabe aqui uma ressalva: Dufour se distancia da noção lacaniana de Outro como alteridade e fonte de significantes, e o aproxima a um lugar de autoridade. Ainda assim nos interessa, pois se trata justamente dos modos de submissão dos indivíduos que estão previstos e prescritos em discursos como os de livros de autoajuda.

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idêntico em direitos a qualquer outro sujeito por conta da sua pertença a uma irmandade (daí o slogan, Liberdade, Igualdade e Fraternidade). Segundo Dufour (2005, p. 48), O coroamento desse processo será o nascimento do sujeito crítico kantiano. Trata-se, evidentemente, de um sujeito que nunca está em paz, que se apresenta como sempre estando descentrado em relação a ele mesmo de modo que esse descentramento produza o trabalho da razão.

O pensamento kantiano é atravessado pelo cientificismo da sua época cuja origem encontra-se nas ciências da natureza. Trata-se de fazer funcionar no plano filosófico aquilo que a lógica e matemática tentavam desde os gregos e a Física a partir do século XVII: “se esquivar à multiplicidade de opiniões antagônicas e de se elevar, por sua vez, a um estatuto científico que lhe conferisse um rigor indesmentível” (PREFÁCIO DA TRADUÇÃO PORTUGUESA, 2001, p. 8). Essa passagem da história da filosofia, e sua pretensão de um funcionamento como a ciência da física, por exemplo, não é sem consequência para a forma como o indivíduo será tratado. A partir daí, torna-se possível o nascimento de uma nova ciência que pretenda se ocupar do indivíduo assim como a física se ocupa de corpos em movimento: a Psicologia, cujo primeiro registro histórico formal, não sem surpresa, encontra-se sob o nome de “Psicologia Experimental”. Enquanto isso, a Sociologia explora a dimensão social suposta a esse sujeito, ao tratar da “realidade social”, composições e funcionamentos globais. O sujeito é tratado então a partir de uma interface entre esses dois campos [Psicologia e Sociologia] tomados como complementares. Ao tratar dessa complementaridade, Henry (1992, p. 114) esquematiza da seguinte forma: “do humano, tudo aquilo que não é de ordem do psicológico, é social e reciprocamente”. Sem deixar de levar em conta aquelas ciências como a Psicologia Social que tentam abarcar de uma só vez os dois campos por meio de estudos, por exemplo, sobre as “leis da interação social”, nas quais o uso de “leis” vem nos lembrar de que ainda se trata sempre de universais, como nas ciências exatas. Nesse contexto, esse sujeito é ao mesmo tempo individual, universal e social. Sua dimensão especificamente universal está ligada às operações de comparação, substituição, concatenação [...]. Essas operações definem esse sujeito como idêntico, em um certo nível, a uma “máquina lógica’ que podemos conceber a partir do modelo e uma máquina de Türing (autômato abstrato) mais ou menos especificada. [...] Enfim, toda mensagem tem um caráter individual porque representa a escolha de uma produção particular no conjunto de todas as produções possíveis da máquina assim especificada. Donde a ideia de uma ‘liberdade do locutor’ na qual é possível alojar muitas coisas: a afetividade, as motivações, a criatividade individual [...], as crenças, as opiniões, etc... (HENRY, 1992, p. 118). 107

É precisamente esse sujeito a moda de uma máquina ou um autômato abstrato que deverá ser retomado pelos livros de autoajuda: sendo suas características aquelas submetidas às operações que foram descritas anteriormente com fins de uma “melhora” desse sujeito, do seu funcionamento. Assim como as máquinas, esses sujeitos e suas funções são passíveis de reparos. Segundo Henry (1992), o que o tratamento do sujeito a partir dessa complementaridade entre social e individual deixa de lado é o recobrimento disso pela história. Fica apagada a história, entendida pelo autor a partir do conceito de “luta de classes”, em prol de um “formalismo totalizante”. Esse formalismo estaria relacionado à “ideia da língua como todo e princípio de classificação” (HENRY, 1992, p. 122). Toda planificação, a despeito do caráter conflituoso do ser humano, é feita a partir de uma racionalidade que tenta apagar o que há de paradoxal presentificando uma lógica que homogeneíza o que foi tornado heterogêneo pelo fato do sujeito falar e da na linguagem haver falta. Não só na clínica individual, mas também no social podemos observar aspectos paradoxais que tentam ser apagados por fantasmas de racionalidade. Ivan Correa (2011) cita como exemplo as planificações de economia liberal que, baseadas em racionalidades, fazem com que os que têm mais recursos se dêem melhor que os que se têm menos recursos. Para Corrêa (2011, p. 24) “[...] esse sintoma, essa patologia do social, que é algo onde, mais uma vez, podemos comprovas esse caráter paradoxal do ser humano”. Ao contrário da divisão do sujeito e suas contradições, há um imperativo atual de harmonia. Harmonia que deve se passar em três níveis: 1) do ser humano consigo mesmo – na busca de uma conexão de si com suas próprias vontades, capacidades, talentos, sendo um tema bastante frequente nos livros de autoajuda; 2) do ser humano com o próximo – no discurso religioso, mas que atualmente tem uma nova veste de um discurso ode à comunidade (normalmente pequena); e, 3) do ser humano com a natureza – no discurso ecológico. Para Corrêa (2011) tratar da harmonia do ser humano essencialmente paradoxal é recolocar sua origem e constituição no campo do mito. Há um mito de que o ser humano deva alcançar a harmonia absoluta. Esse mito possui dois níveis, um primeiro que diz respeito ao seu caráter inatingível e um segundo sobre o caráter imprescindível do mito. A harmonia é colocada em xeque pela Psicanálise na medida em que a própria origem do desejo é paradoxal, a sexualidade perversa e polimorfa de suas formas infantis, ainda que não tenha a pretensão de reconhecer esse caráter paradoxal como escusa antimoralista que tende a apaziguar a culpa. 108

Contexto democrático e ideais modernos Podemos localizar o surgimento e a consolidação dos livros de autoajuda a partir do processo de democratização desencadeado pela Revolução Francesa cujo projeto – resumido usualmente à máxima “igualdade, liberdade e fraternidade” – ocasiona a passagem do Antigo Regime para a Modernidade baseada na ideia de uma emancipação do homem das forças da natureza e mesmo de antigas hierarquias sociais rígidas, oferecendo ao homem um novo cenário no qual ele poderia ser mais que um simples objeto: e sim autor da sua própria história. Para tanto, esse processo apostava fortemente na Razão, como o componente que poderia tirar o homem do obscurantismo no qual se encontrava até então. Entretanto, esse projeto aparentemente completo e harmonioso possui dificuldades intrínsecas na medida em que considera como parte da sociedade igualitária seus iguais (burgueses): e mesmo o direito “natural” à propriedade já demonstra como esse projeto nasce enviesado pelos interesses burgueses. Essa utopia de uma sociedade igualitária e harmônica remonta às origens da humanidade, na ideia de um paraíso terrestre, mas só pode ser mais bem vislumbrada a partir das condições objetivas desencadeadas pela revolução industrial a partir do século XVIII. A partir do processo de democratização, “a ação estratégica, as escolhas e a habilidades dos indivíduos são decisivas” (SANTISO, 1993, p. 971, tradução nossa). Já que a democracia, por se caracterizar pela presença contínua de conflitos e negociações, está mais próxima de um processo que de uma substância, a incerteza acaba sendo algo com que os indivíduos enquadrados nesse contexto têm que lidar a todo o momento. Não é de se espantar que um contexto de incerteza seja produzido a partir da entrada no processo democrático uma vez que a democracia [...] herdeira de um processo de desencantamento do mundo que esvazia o poder de suas encarnações anteriores e que se traduz por uma transição secular de uma ordem completamente dada a uma ordem cada vez mais produzida, a democracia moderna nasce com o enfraquecimento das garantias exteriores e indiscutíveis (SANTISO, 1993, p. 978, tradução nossa).

A sociedade democrática, na qual o lugar desse provedor de garantias está esvaziado e na qual, portanto, os indivíduos estão submetidos às incertezas, se torna um lugar privilegiado para surgimento de um discurso que tem como finalidade instruir e garantir resultados aos indivíduos que se encontram, de certa maneira, perdidos nos protocolos de comportamento e pensamento.

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Ao prescrever modos de pensar e agir, o discurso dos livros de autoajuda reocupa27 um lugar que havia sido deixado vago por outros anteriores como, por exemplo, o discurso religioso. Pensar a democracia como processo que não chega a uma solidificação reforçaria imaginariamente a ideia de um ambiente no qual não somente o meio, mas os sujeitos estão em constante mutação ou mais que isso, aptos a se formatarem de acordo com as necessidades. Toda a temática de um dos mais vendidos livros de autoajuda de todos os tempos está voltada a essa temática: a adaptação dos indivíduos às condições mutantes presentes em uma sociedade democrática e capitalista. Quem mexeu no meu queijo?, de Johnson conta a fantástica história de quatro personagens, dois ratos e dois homens, que se encontram obrigados a se adaptarem às mudanças ocorridas em seu ‘labirinto’ – no caso, à mudança de local onde se encontrava o queijo que servia como recompensa e motivação todos os dias. Para o autor do prefácio do livro, o ‘labirinto’ “representa o lugar onde você gasta tempo procurando pelo que quer. Pode ser a organização que trabalha, a sociedade que vive ou os relacionamentos que tem em sua vida” (BLANCHARD, 2011, p. 14). O que importa é que em todos esses contextos, a mudança tem um papel protagonista, todos estão sujeitos a mudanças, uma das características mais marcantes da democracia e do capitalismo. Além disso, a personalidade democrática se caracterizaria pela valorização das características pessoais em oposição ao período anterior onde a tradição familiar era mais predominante que o talento, por exemplo, na escolha dos ofícios. De acordo com Haroche (2005, p. 119), apoiada em Toqueville (1990), “[...] as instituições democráticas querem dar uma alta ideia de si, de seu valor pessoal, em função da qualidade do ser humano e seu mérito pessoal; as sociedades aristocráticas, subordinando o valor de cada um à sua condição, à hierarquia que ocupa na sociedade”. Ainda de acordo com a autora (2005), duas consequências da tomada do mérito pessoal como critério prioritário seriam a desconsideração do outro e a ausência de regras morais nos comportamentos. É a ausência de regras morais ou a vacância desse lugar de porta-voz dessas regras que configura, de acordo com a nossa hipótese, um contexto fértil para a produção de um discurso prescritivo, no qual estão presentes instruções que têm como finalidade promover uma boa adaptação social dos indivíduos que se encontram órfãos dos antigos processos de disciplinarização promovidos pelo Estado, pela Igreja ou outros órgãos. 27

O termo reocupação se refere aqui à substituição de noções entre períodos. Tratar-se-ia do “[...] processo pelo qual certas noções, que estão associadas ao advento de uma nova concepção e de novos problemas, ‘cumprem a função de substituir noções antigas que haviam sido formuladas no terreno de uma problemática diferente, com o resultado que essa última acaba impondo suas exigências às novas noções, e assim as deforma necessariamente” (LACLAU, 1990, p. 74).

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Se nas sociedades do Antigo Regime o valor de cada indivíduo seria dado pela sua condição, sendo que sua posição hierárquica na sociedade dificilmente se modificava, nas sociedades democráticas, o valor seria dado, por outro lado, em função das qualidades específicas do indivíduo e seus méritos pessoais. Para ilustrar a modificação na personalidade, Haroche (2005) destaca, como um dos traços mais marcantes dessa hierarquia estável nas sociedades aristocráticas, os comportamentos de deferência e os contrasta com outros, demonstrando os deslocamentos que estes comportamentos sofrem com o tempo: desde um comportamento de reverência que tem como base uma lei natural que estabelece como deve ser a interação até o aperto de mão no qual estaria implicada a equidade. Se são os gestos e movimentos (posturas) que conduzem ao sentimento de inferioridade ou superioridade, a passagem a um sistema de deferência mais ou menos igualitário teria origem na maior equidade entre os indivíduos. Podemos atribuir essa passagem (contínua) ao estabelecimento de leis reguladoras formais (sistemas jurídicos) frente à indiferenciação entre costumes e regulamentação (por exemplo, a fidelidade à pessoa do senhor nas sociedades feudais). Nossa hipótese é a de que, a partir dessa personalidade democrática que se apoia na equidade e na qual “cada um busca se bastar”, se tornaria possível (ainda que ilusoriamente) a total mobilidade social, a ultrapassagem das classes, por meio dos méritos pessoais e vontades próprias. Se a democracia se caracteriza teoricamente pela destruição de privilégios, além do reconhecimento e consagração de direitos, como consequência, nada pareceria estar fora do alcance de qualquer indivíduo que possuísse um valor pessoal elevado. Nessa linha, muitos livros de autoajuda trazem como tema histórias de superação, de enriquecimento, de ‘vencedores’, reforçando a ideia de que basta querer para que aconteça. Esse ‘basta querer’ chega ao seu nível mais ‘mágico’ em O segredo. De acordo com a autora Byrne (2007, p. 98): “Para ganhar dinheiro, você precisa se concentrar na riqueza. [...] Você precisa transmitir um novo sinal com seus pensamentos, e esses pensamentos devem ser de que você agora tem mais do que o suficiente”. Nesse contexto de possibilidade de mobilidade infinita, em que “nada parece estar fora do alcance”, os livros de autoajuda aparecem como manuais de instruções que, ao mesmo tempo em que localizam todos os indivíduos em um mesmo ponto de partida, impõem uma mesma meta, que usualmente está relacionada ao sucesso pessoal e profissional que endossam os atuais modos de produção e reprodução das forças produtivas. Se por um lado os livros de autoajuda generalizam propostas que não levam em conta as situações singulares de cada leitor, transformando as contingências em necessidades e 111

prescrevendo o que se deve ou não querer, por outro, uma cidadania democrática plena não significa tratar ou exigir de todos os indivíduos as mesmas coisas da mesma maneira, e sim oferecer a todos as mesmas condições concretas e cotidianas para o exercício de seus direitos. Freud [1996b [1914], p. 108] aponta à possibilidade de utilizar o conceito de ideal do eu na psicologia de grupo: “Além de seu aspecto individual, esse ideal tem seu aspecto social; constitui também o ideal comum de uma família, uma classe ou uma nação”. Acrescentamos á lista, um período histórico, a modernidade. De acordo com Flahaut (2005), a modernidade estaria baseada na crença equivocada de que o indivíduo seria uma célula elementar da sociedade. Para ilustrar a impossibilidade da existência de um indivíduo só pelo o autor recorre ao personagem fictício Robson Crusoé: o paradoxo que se encontra nesse ponto é precisamente a renúncia à sociedade que fez desse personagem um modelo social bastante difundido. Segundo o autor, o personagem Robson Crusoé poderia ser considerado um modelo de homem: o indivíduo racional que, antes de criar relações com outros indivíduos, cria relações com as coisas. Flahaut (2005, p. 23, tradução nossa) fala da passagem da modernidade apontando a ruptura que ela leva a efeito: A ordem antiga, aquela da Cristandade e do Antigo Regime, repousava, como é ainda o caso de algumas sociedades não ocidentais, sobre a convicção que os humanos tinham um lugar uns em relação aos outros, que seu ser se funda sobre essas relações antes de se fundar sobre as relações que eles têm com as coisas. A modernidade, ao contrário, funda os status das pessoas sobre o trabalho e sobre o exercício de sua competência, a relação aos outros sendo alegadamente causados em um segundo tempo dessa relação primeira com as coisas.

A propósito da queda da Cristandade como uma narrativa moralizante, Naffah Neto (1997) afirma que outros personagens foram convocados para ocupar o posto vago deixado pela Igreja, “a consciência revolucionária, a ciência e a tecnologia continuaram durante algum tempo vendendo promessas de Felicidade e Justiça” (NAFFAH NETO, 1997, p. 108). Já segundo Dufour (2005), o paradoxo da modernidade está assentado na multiplicidade frequentemente contraditória de formas discursivas. No berço da Europa monarca que explorava a América, de maneira por vezes violenta, surgem as críticas que levam a um modelo de república, por exemplo. Trata-se de uma zona de conflito, dada a multiplicidade de Sujeitos que inclusive podem estar numa relação de contradição. Não por acaso, é nessa zona de enfrentamentos que também aparece o conceito de ideologia. Segundo Dufour (2005, p. 52), [...] é significativo que o conceito de ‘ideologia’ nasça nos meios kantianos na virada dos anos 1800. É fundamentalmente esse defrontamento de ideologias 112

distintas, característica da modernidade, que deixa a razão sem repouso e institui, como Kant estabelece, como ‘lei prática universal’.

É também precisamente nessa falha de sentido estável e unívoco que se apoia Freud ao formular o conceito de inconsciente no final do século XIX e desenvolver sua obra até quase meados do século XX. A partir do sujeito kantiano, capaz de pensar desde e até os limites da razão, a passagem para o sujeito freudiano, descentrado, que não é mais o senhor de si, incapaz de controlar tudo que diz, sente e pensa, pode ser pensada como uma metonímia, na medida, em que há o deslize de um para o outro28. Por outro lado, a inexistência de uma essência e de um verdadeiro dado a priori possibilitam também a produção de um discurso que seja capaz de moldar essa essência e esse verdadeiro, reocupando um lugar deixado vago. A passagem de do sujeito kantiano ao freudiano está justamente na [...] impossibilidade, para todo indivíduo normalmente constituído, de seguir o conjunto de máximas morais de ação exigíveis do sujeito transcendental [...]. É por isso que o sujeito freudiano (sujeito à culpabilidade) e o sujeito kantiano (submetido à moral) formam um par. O primeiro nasce, de algum modo da impossibilidade de satisfazer à liberdade crítica exigida do segundo. O indivíduo se encontra então sempre alguns furos abaixo da liberdade crítica requerida, isto é, aquém do que o desejo exigiria (DUFOUR, 2005, p. 53).

Ao contrário, a subjetividade suposta pelos livros de autoajuda é uma capaz de seguir regras e prescrições, de treinar-se, e por conta disso, está muito mais próxima do sujeito kantiano que do freudiano, que é frequentemente surpreendido pelo seu inconsciente. No entanto, sabemos que o inconsciente continua a se manifestar à revelia do sujeito. Dufour (2005) aponta para a contradição que existe no sujeito neurótico que é caracterizado pela culpa (ligada à impossibilidade do sujeito quitar a sua dívida com o Outro que lhe proporciona a linguagem) e pela repetição, o que impossibilitaria o pensamento crítico da forma como Kant o propõe. Entretanto, é justamente porque o sujeito está preso à repetição que se torna capaz de desdobrar a cadeia significante na busca do saber (que em última instância está sempre relacionado à interpretação do seu sintoma). Sentimento de culpa e obrigações vêm juntos. E de certa maneira, esse contexto propicia a proliferação de um discurso como aquele dos livros de autoajuda, já que é mobilizando o malestar intrínseco a vida em sociedade e a divisão do sujeito promovida pelo Supereu. O que os discursos de livros de autoajuda parecem querer fazer é eludir, amortecer essa onipresença do

28 Há de se considerar que esse deslize não se trata de um completo abandono de um pelo outro. Pode-se para pensar isso, retomar o conceito de novo em Pêcheux, que postula que não haveria nada de totalmente novo.

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sentimento de culpa por meio de um mandato que, ao contrário das expectativas, só é capaz de aumentar os sentimentos de culpa. Para tratar do contexto atual cabe retomar as articulações de Zizek (1999) acerca do modo de produção entendido como único possível na atualidade: o capitalismo liberal. As falências do comunismo e do fascismo teriam feito todos acreditarem que o capitalismo liberal seria a forma única de organização social. Imutável e eterno, fim de todo o processo dialético. É nesse contexto que Zizek chama a atenção para “a imaginação popular (que) é assombrada pelas visões do futuro ‘colapso da natureza’, da eliminação de toda a vida sobre a Terra. Parece mais fácil imaginar o ‘fim do mundo’ que uma mudança muito mais modesta no modo de produção [...]” (ZIZEK, 1999, p. 7). Em uma conferência, Zizek conta a anedota do jornalista italiano cujo editor pediu que substituísse a palavra “capitalismo” que ele havia empregado em um artigo por “mercado”, o que indicaria uma naturalização do atual modo de produção, como se fosse o único possível. Estaria em curso atualmente uma tentativa de apagar o conceito de ideologia, e outros conceitos agregados que visam uma análise crítica. Sabemos que empregar o termo “ideologia” pode chegar a soar piegas atualmente. É nessa linha que Safatle (2008) trata de uma era “pós-ideologia” e a qualifica como “uma forma de afirmar que essa transparência advinda depois de uma longa noite de desconhecimento ideológico teria se transformado no próprio cerne da opacidade constitutiva de nossa realidade partilhada” (SAFATLE, 2008, p. 11), ou seja, é precisamente o suposto desvelamento de toda ideologia (entendida aqui muito mais no sentido marxista de “falsa consciência”) que nos teria libertado da própria ideologia criando, no entanto, uma nova opacidade e uma nova dissimulação da sujeição. Sujeição de certa forma se aproxima ao que Safatle (2008, p. 12) entende como “forma de vida”: [...] um conjunto socialmente partilhado de sistemas de ordenamento e justificação da conduta nos campos do trabalho, do desejo e da linguagem. Tais sistemas não são simplesmente resultados de imposições coercitivas, mas da aceitação advinda da crença de eles operarem a partir de padrões desejados de racionalidade.

Não é mais necessário um carrasco que nos obrigue a algo já que o que está por trás da informação são a verdade e a ciência. Isso vem criar, de acordo com Melman (2008), um novo tipo de identificação: a boa consciência ou um modo de pensar corretamente, que por seu caráter correto não precisa estar referido claramente a qualquer ideologia. Ou seja, não se trata de uma coerção ou de uma ação voluntária de alguém mais poderoso 114

sobre um ser indefeso, mas sim de um aceite que qualquer sujeito dá quando entra no social pela via do significante, isto é, quando cede ao sentido fazendo o laço social. Esse laço social se funda sobre uma relação que o sujeito estabelece com essa alteridade absoluta e constitutiva, de onde o sujeito extrai não somente seu inconsciente e seu desejo, mas também as “formas” de viver, algo compartilhado entre outros sujeitos. Para muitos autores, o denominador comum da assunção do fim da modernidade e início da pós-modernidade seria o declínio do Nome-do-Pai (DUFOUR, 2005 e 2008; MELMAN, 2008; PORGE, 2009; SAURET, 2009). Vale aqui, no entanto, fazer uma ressalva em relação a esse suposto declínio do Nomedo-Pai. O Nome-do-Pai na obra lacaniana se relaciona, em linhas gerais, àquilo que faz barra ao desejo da mãe e coloca o enfans no mundo da linguagem, marcando-o pela falta. Não estamos de acordo com essa hipótese, pois o que se observa não são novas estruturas, mas sim novas sintomatologias. Falar em sujeito é assumir a eficácia do Nome-do-Pai independentemente da maneira como a falta é negada. Nesse sentido, não se pode falar em declínio do Nome-do-Pai, pois isso é falar em desfazer o nó borromeano entre os três registros e estar em um outro lugar a partir do qual nem mesmo se pode falar. O Nome-do-Pai é a é a condição para que haja o funcionamento simbólico da linguagem. Para Trocolli29, não é possível haver declínio do Nome-do-Pai, mas uma imaginarização do simbólico, entendida como uma sobreposição dos ideais imaginários sobre a falta simbólica e um peso maior no supereu que no Nome-do-Pai, que regula a castração em uma economia da falta, enquanto que o supereu tem uma faceta relacionada ao imperativo de gozo e a um tamponamento da falta. Acredita-se que, se antes o sujeito tinha uma figura de autoridade localizável à qual se submeter, hoje essa figura, escamoteada por uma diversidade que ainda assim não forma qualquer autoridade, estaria em decadência. O que aparece em seu lugar, portanto, é a injunção superegóica que pode ser resumida pelo imperativo Goza! Podemos, portanto entender a suposta falência do Nome-do-Pai ao retomá-lo como aquilo que faz frente ao gozo desmedido da mãe na sua relação com a criança. Se o Nome-do-Pai é o que dá limite a esse gozo, um imperativo superegóico de gozo vai contra esse Nome-do-Pai, pode o eclipsar imaginariamente, mas não pode o eliminar, já que falar em sujeito já é falar em simbólico é necessariamente em falta. A falência ou declínio do Nome-do-Pai se trataria, portanto, de um processo no qual a figura de autoridade se encontra enfraquecida. Podemos relacionar isso ao que vínhamos tratando 29

Comunicação pessoal (2012).

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como encarnações do Outro, capazes de nos dar os protocolos de como pensar e agir socialmente. Ao Outro também podemos atribuir um aspecto paradoxal na medida em que é justamente o fato de que ele não existe que faz com que seja possível que exista encarnado, pelo arranjo que os sujeitos estabelecem entre si. Para Dufour (2005), o que haveria no lugar são semblantes de Outro. Não haveria mais uma grande narrativa em torno da qual todos os sujeitos se organizam30. Dentre as grandes narrativas, Dufour (2005) destaca as seguintes: a religiosa monoteísta, segundo a qual todos os sujeitos estão apoiados em um Deus; a dos Estados-nações, que refere o indivíduo e a sua origem à terra e ao sangue; a da emancipação do povo trabalhador, com o corolário socialista de um mundo sem classes. Dufour (2005) afirma ainda que haveria um forte candidato atualmente a Outro: a Natureza. Segundo o autor (2005, p. 70), “tendo os grandes totens históricos desabado, é de algum modo a geografia que retorna”, na figura da grande terra mãe. Coloca ainda, como testemunha dessa tentativa de exegese, as previsões apocalípticas que acompanham as discussões acerca da ecologia. Entretanto, esse discurso é considerado insustentável na medida em que não há no homem nenhuma natureza, é por isso que se falaria em cultura. O que se observa na passagem de uma narrativa à outra é a diminuição da distância entre o sujeito e o Outro: desde a distância intransponível do homem a Deus, passando pela distância relativizada pelo poder investido ao Rei, até a “inclinação” do Sujeito ao sujeito na pósmodernidade (DUFOUR, 2005). Sendo o referente comum nesse regime a democracia o indivíduo livre e autônomo, o que era heterorreferência passa a ser autorreferência. A origem do sujeito passa a ser o próprio sujeito, o que, além de criar uma série de problemas diferentes, não deve ser naturalizado. Cury (2007, p. 106) escreve em seu livro de autoajuda Treinando a emoção para ser feliz: “Nunca se sinta incapaz. Há uma força dentro de você maior do que você imagina” ou ainda “Talvez você se surpreenda com a força que está escondida atrás da sua fragilidade” (CURY, 2007, p. 27). Ou ainda Subirana (2011, p. 137) em seu livro de autoajuda escreve: “Com seus pensamentos, você cria seu mundo. [...] Com cada ação, semeamos; temos plena liberdade para escolher o que queremos semear, transmitir e irradiar. [...] Somos livres para semear sementes de laranjeiras, bananeiras ou pereiras.”

30 O autor abranda esse “declínio” na medida em que afirma que essas narrativas podem não ter deixado de existir, mas perderam o lugar central que ocuparam um dia, passando a funcionar não de maneira global.

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No entanto, se de fato estamos diante de semblantes que tentam garantir a função paterna, poderíamos falar em modelos? Laurent (2007) fala em um “hedonismo contemporâneo” segundo o qual o gozo jamais é definitivo, é o último. Não haveria algo definitivo com relação aos arranjos entre os sexos. A justiça distributiva aparece aqui como garantia de uma distribuição igualitária de gozo. O que o Welfare state tentou garantir de certa maneira reocupa o lugar vago do Ideal. Laurent (2007) fala inclusive de uma religião secular baseada nos ideais republicanos. Ou seja, haveria uma devoção cega e crente (à moda da devoção religiosa) aos ideais republicanos resumidos por liberdade e igualdade. No entanto, tanto esse ideal de uma justiça distributiva quanto os ideais republicanos no Welfare state seriam hoje confrontados pelas comunidades de gozo, nas quais o laço não está pautado por um ideal compartilhado, mas sim por um modo de gozo (ligado a um objeto) que é compartilhado. O lugar do ideal passa a ser ocupado por um objeto, conforme veremos. Atualmente essa exigência de igualdade se diferencia daquela que imputa deveres mais do que estimula o gozo. Na verdade se trataria mesmo do caminho contrário, uma vez que a justiça em sua origem está relacionada à cessão do gozo e cumprimento de deveres. Na teoria freudiana, as exigências de justiça e tratamento igual para todos já remontam às primeiras identificações. De acordo com Freud (2011 [1921]), as crianças não podem manter uma atitude hostil para com os que cuidam delas, de maneira que são forçadas a se identificarem com outras crianças. Nessa comunidade que formam não pode haver um favorito o que as levam a exigir que todos sejam tratados igualmente. Para Freud (2011 [1921], p. 82) “justiça social quer dizer que o indivíduo nega a si mesmo muitas coisas, para que também outros tenham de renunciar a elas ou, o que é o mesmo, não possam pretendê-las. Tal exigência de igualdade é a raiz da consciência social e do sentimento do dever”. Enquanto a distribuição igualitária está relaciona a uma utopia do patriarca, em um modelo mais próximo ao totem freudiano, o que encontramos no hedonismo contemporâneo é um polimorfismo, daí a possibilidade de novas configurações sociais. Segundo Melman (2008, p. 16), atualmente se observaria a passagem de “uma economia organizada pelo recalque a uma economia organizada pela exibição do gozo”, que tem sua eficácia. Isso seria possibilitado a partir da percepção de que “o céu está vazio”, ou seja, o homem, ao contrário de antes, não se constitui a partir de instâncias superiores, como Deus ou ideologias, é preciso que cada indivíduo se determine por si e pela sua coletividade.

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Isso porque uma das consequências apontadas pelo autor da vacância do lugar de autoridade é a “liquidação coletiva da transferência” (de saber) (MELMAN, 2008, p. 17), que por sua vez, frente à ausência de uma referência que sustente o saber, acarreta em um mundo onde só encontramos gestões. Em algum lugar alguém sabe, entretanto, esse saber só chega para o sujeito de maneira simplificada, sob as vestes de métodos. É por conta disso que os livros de autoajuda muitas vezes se preocupam em dar fórmulas de como se portar. Curry (2007, p. 25) em seu livro de autoajuda Treinando a emoção para ser feliz propõe “Três técnicas de treinamento do gerenciamento dos pensamentos e das emoções”, a saber, “duvidar de tudo que não promove a vida”, “Criticar a passividade do eu” e “Determinar dar um choque de lucidez na emoção”. Essas técnicas visam, em suma, “resgatar a liderança do ‘eu’” (CURY, 2007, p. 27). Aqui podemos estabelecer com bastante nitidez a preponderância de uma subjetividade e um regime pautado em gestões sobre o pensamento e emoção próprio indivíduo. O que nos chama a atenção é a passagem dessa vigilância do pensamento e emoção de outros órgãos, como o Estado ou a Igreja, para o próprio indivíduo. Homologamente à evolução do supereu que ao final se firma em um regime de observação do Eu, prescindindo de uma vigilância externa, aqui, o indivíduo não supostamente precisa mais de alguém que vigie seus pensamentos. Por outro lado, em um registro social, o esvaziamento do lugar de autoridade e de poder e a adoção de um regime de gestões poderiam ser algumas das explicações possíveis às revoltas em países democráticos no ano de 2011: como por exemplo, o movimento jovem espanhol Toma la calle, cujo lema principal era No nos representan, ou seja, não se trata de uma escolha por uma ideologia que se oponha à atual, mas sim do pedido de uma outra forma de governo, que não seja baseada em “ideologias”, mas sim em bom funcionamento social. Esse movimento espanhol em 2011 está acompanhado de muitos outros, ao redor do mundo. É interessante notar que ainda que se trate de exigências e locais distintos, há uma solidarização entre todos esses movimentos conforme podemos observar pela descrição de Carneiro (2012, p. 7): “no ano de 2011 ocorreu um fenômeno que há muito não se via: uma eclosão simultânea e contagiosa de movimentos sociais de protesto com reivindicações peculiares em cada região, mas com forma de luta muito assemelhadas e consciência de solidariedade mútua. Essas manifestações se iniciam no norte da África, se estendem à Europa, ressoam na América do Sul, repercutam aos Estados Unidos e por fim, e chegam inclusive à Rússia. O mais nos chama a atenção nesses movimentos, não é o seu caráter de protesto somente, mas a ausência de um modelo proposto ao redor do qual o resultado de seus esforços se organizaria ao 118

final. Ao contrário, se revoltam contra o governo, contra as organizações de esquerda, contra os sindicatos, enfim, contra tudo e todos. Não há uma organização representativa de seus anseios, resumidos em transformação e ruptura. Chomsky (2011), nesse sentido, fala em uma ameaça geral que inclusive ameaça a própria sobrevivência da espécie. Para Zizek (2012) não basta saber o que não se quer, é preciso formular o que se quer. Se os movimentos sociais se caracterizam como respostas ao mal-estar contemporâneo, caberia aos intelectuais formularem a que esses movimentos respondem, assim como é função do analista formular a questão à qual responde o sintoma do paciente (sua resposta). Já em Marx se apontava à liquidificação da sociedade. De acordo com Aléman (2009, p. 32), “tanto os vínculos sociais, a religião, as tradições, a relação com o lugar, iam se desvanecer ‘nas águas geladas – disse Marx em O Manifesto – do cálculo egoísta”. Se o Outro simbólico está volatizado, o programa institucional decaído, as políticas dissolvidas e administrações, surge a oportunidade de se instalar um discurso autoritário que instrua o sujeito como agir no mundo.

Livros de autoajuda como um sintoma contemporâneo Ne demande que faire, que celui dont le désir s’éteint.31 Jacques Lacan Homologamente, nesse trabalho, se os livros de autoajuda são considerados índices sintomas da contemporaneidade, a que eles respondem? Qual a função de uma produção discursiva que visa instruir os membros de uma sociedade que cada vez mais descentraliza seu poder? Parte-se aqui do princípio de que é justamente a vacância desse lugar de organizador central que possibilita o surgimento e a grande promoção de um discurso como o de autoajuda. Se não há um programa ao qual todos podem se engajar, um programa que proponha a autonomia na proposição de programas nos soa bastante apto a alcançar o posto de um best-seller. Freud (2011b [1930]) propõe que seja possível estabelecer uma relação de analogia entre o processo cultural de desenvolvimento e o processo individual de desenvolvimento. Justamente essa possibilidade de diagnóstico e compreensão da cultural por meio do recurso a conceitos psicanalíticos, levando em conta ainda suas restrições de possibilidades (mais abaixo), nos permite utilizar alguns conceitos como sintoma para tratar do aparecimento de um discurso como o de

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“Só pergunta o que fazer aquele cujo desejo se apaga” (tradução nossa).

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livros de autoajuda. Para Freud (FREUD, 2011b [1930]), diante da frustração da vida sexual instintual, os homens criam sintomas que visam satisfazê-la substitutivamente. Aqui também entra a noção uma entrada conflituosa, ambígua ou incerta na sexualidade auxilia na compreensão do que leva à criação do sintoma, uma vez que não seja possível uma convivência pacífica do sujeito com a sexualidade, por excelência dissimétrica. Dessa maneira, os sintomas devem ser entendidos como uma satisfação substitutiva às satisfações instintuais que não são realizadas. A culpa inconsciente, aqui, pode usar esses sintomas como um castigo. Sintoma e sentimento de culpa estariam então estritamente relacionados: “[...] quando uma tendência instintual sucumbe à repressão, seus elementos libidinais se transformam em sintomas, seus componentes agressivos, em sentimento de culpa” (FREUD, 2011b [1930], p. 86). Freud (2011b [1930]) se preocupou em demonstrar “o sentimento de culpa como o problema mais importante da evolução cultural e de mostrar que o preço do progresso cultural é a perda de felicidade, pelo acréscimo do sentimento de culpa”. Não é de se espantar, nesse caso, que o momento em que supostamente vivemos o maior progresso já conhecido seja imputada tanta responsabilidade ao próprio indivíduo sobre a sua felicidade, retroalimentando o sentimento de frustração diante da sua incapacidade de se sentir feliz. Para Freud (2011b [1930], p. 82, grifos do autor) “[...] o sentimento de culpa nada é, no fundo, senão uma variedade topográfica da angústia, e em suas fases posteriores coincide inteiramente com o medo ao Supereu”. Para Aguilar (2011), a relação paradoxal do homem com o supereu (freudiano) inaugura o que depois em Lacan aparece não mais como uma dimensão somente psíquica do conflito moral, mas essencialmente ética. A partir de então, se alguns pós-freudianos tentaram dar uma dimensão menor e esse conflito ao propor um moralismo mais maleável que suporia a realização dos ‘desejos’ foi somente porque não compreenderam o alcance que a tese dessa subjetividade conflitiva possuía em Freud. A compreensão de que quanto mais virtuoso o homem, mais severo seu supereu subverte as categoria de bem e mal. Isso porque “em nome do bem, cada renúncia à satisfação pulsional, longe de acalmar as águas e tranquilizar a consciência, produz mais culpa e mais castigo” (AGUILAR, 2011, p. 84, tradução nossa). Essa subversão entre bem e mal pode ser mais bem observada a partir da própria injunção superegóica que longe de trazer o bem, causa o mal-estar. É isso que leva Lacan a afirmar que “se é preciso fazer as coisas pelo bem, na prática deve-se deveras se perguntar pelo bem de quem” (LACAN, 1997 [1959-1960], p. 383). 120

Detenhamo-nos um instante no título que foi a primeira incidência de estranhamento e foi a partir desse ponto que a pesquisa se encaminhou. O título é de um livreto confeccionado pela empresa Tilibra e se intitula Como ser eficiente. Considerá-lo uma autoajuda ao mesmo tempo em que provavelmente beneficiará outrem, ao qual a noção de eficiência está referida, é transitar pelo bem que não se estipula a partir do próprio sujeito, mas da sua relação com o outro. No entanto, Lacan (1997 [1959-1960], p. 383) nos adverte: “fazer as coisas em nome de um bem, e mais ainda em nome do bem do outro, eis o que está bem longe de nos abrigar não apenas da culpa, mas de todo tipo de catástrofes interiores”. Ou seja, o cumprimento desse bem também não é garantia alguma de um bem-estar. Por isso Lacan estabelece como critério único de culpabilidade ao sujeito haver cedido em seu desejo. No entanto, se por um lado, a culpa de não conseguir se sentir feliz (entendido como possível a partir do discurso de livros de autoajuda) recai sobre o próprio sujeito, por outro lado, recai, dada a tentativa que o sujeito acredita empreender, há-se de responsabilizar outrem. Aqui podemos encontrar diversos nomes: desde os genéricos outros (de “O inferno são os outros”), passando pelos pais (grandes culpados desde o advento da Psicanálise de botequim) até o Estado. Para Palomera (1998), atualmente vemos uma nova configuração desse sentimento de culpa, na medida em que a ciência tende a desculpabilizar o sujeito ao retirá-lo de sua dimensão singular e remetê-lo ao particular (extensão do universal ao qual a ciência se aplica). Enquanto na Psicanálise (no discurso analítico, precisamente) o lugar da verdade é ocupado pelo saber, deixando a cargo do sujeito uma implicação com seu sintoma e com a construção de um saber sobre ele, na ciência, no lugar da verdade está o significante mestre, o que torna o sintoma do sujeito objetivável. “Se diante do olhar do Outro social o sintoma aparecia antes com esta carga de vergonha ou culpa que denunciava que a anomalia que irrompia no sintoma era anomalia de gozo, agora o domínio do discurso da ciência apaga essa dimensão inerente ao mal-estar” (PALOMERA, 1998, p. 241). Consequentemente o sujeito se encontra ainda mais solitário e desamparado, já que a ciência (e o capitalismo) na tentativa de liquidar o sintoma propõe as mais diversas intervenções terapêuticas. No entanto, esses tratamentos não atuam no real do sintoma, mas sim nos afetos que o sujeito manifesta. “O que ao discurso da ciência oferece ao sujeito são os produtos para que o sintoma se torne suportável e, portanto, para que se possa esquecê-lo”, conforme Palomera (1998, p. 241). Nesse sentido, os livros de autoajuda podem ser considerados um produto da ciência que visa tamponar aquilo que não cessa de não se inscrever por meio do mal-estar irremediável, que diz respeito justamente ao impossível que Lacan denominou “universo mórbido da falta”. 121

Esse discurso de autoajuda, ao contrário daquele da psicanálise que tenta fazer da falta o próprio motor criador para o sujeito, mascara a falta que reaparece como superável a partir da execução de procedimentos de ascese de pensamento, mudanças de comportamentos, exercícios físicos, enfim, um rol de prescrições que supostamente garantem uma vida mais suportável ao homem. A subjetividade ideal aqui é oferecida como um produto, como um objeto de consumo, por isso podemos dizer que encontramos aqui uma perfeita concatenação entre discurso do mestre e capitalismo: há um conhecimento sobre si comprável. Há uma personalidade que se pode obter, como analogamente se pode obter as roupas que estão na moda. Goldenberg (1997) já aponta ao fato de que seriam os consumidores que estariam sendo consumidos pelos objetos e não o contrário. De acordo com o autor (1997, p. 13), “[...] este consumidor consumido resulta da globalização crescente dos mercados, que oferecem para o gozo de todos os mesmos objetos – satisfação (universal) garantida ou seu dinheiro de volta”. O discurso de autoajuda retira a marca de singularidade do sintoma ao generalizar os tratamentos. Para tanto se apoia no Ideal de acomodação do eu e mundo. É preciso que o eu não perturbe o mundo ao mesmo tempo em que seja poupado de uma enorme parcela de sofrimento. Nesse sentido, a estratégia mais adequada nos parece a coincidência entre os ideais. Essa coincidência nos parece bem sucedida no título Como ser eficiente. Eficiente pode ser substituído parafrasticamente por eficaz ou capaz, além de uma curiosa definição: “que obtém resultados ou tem funcionamento esperado com uma maior economia de recursos e/ou tempo”. Aqui eficiência está estreitamente relacionada à economia. Economia, já do grego oikos, casa, já indica uma apropriada gestão da casa. Desta forma, os sentidos presentes nesse discurso se relacionam a gestões que por sua vez guardam referência a modos de produção específicos do atual sistema de produção e reprodução das forças produtivas. Em um mundo onde o desemprego tende a aumentar ou mesmo, na presença do crescimento econômico, é preciso cuidar de estar sempre em formação, os ideais de uma empresa e de um de seus funcionários precisam estar em concordância para que tanto um quanto outro se beneficiem. O que esperam de alguém se torna de certa maneira aquilo que esse alguém espera de si32, por isso o paradoxo entre esse título (Como ser eficiente) e sua localização (em uma prateleira de autoajuda), já não mais pode ser considerado uma contradição absoluta. Quando se submete ao ideal do outro, o leitor pode obter um benefício.

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Qualquer semelhança com a função do ideal do eu não deve ser mera coincidência.

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Aqui encontramos a nodulação entre sujeito e Outro que Lacan mostra por meio da articulação entre dois toros, como pudemos observar anteriormente. À demanda do Outro corresponde o desejo do sujeito. Não se trata aqui de dizer que ser eficiente deva ser considerado um desejo de um sujeito, mas que essa estrutura gramatical e os sentidos que se depreendem daí podem se servir de um funcionamento específico da constituição do sujeito que esse objeto topológico vem mostrar: o da identificação. Vimos anteriormente que os sentimentos de culpa estão relacionados ao Supereu e seus mandatos. Logo, falar em um sentimento de culpa generalizado é considerar a hipótese de existência de um Supereu de uma época, também denominado Supereu cultural, tem origem semelhante à daquele do indivíduo, além da mesma função de instituir severas restrições e exigências ideais cujo não cumprimento geraria uma sensação de angústia de consciência. A diferença fundamental entre esses dois processos de desenvolvimento, individual e cultural, é que enquanto o primeiro estaria mais estritamente relacionado à realização da meta de obtenção de prazer, logo, mais próximo de uma satisfação egoísta, o segundo estaria mais relacionado ao valor restritivo da satisfação, estabelecendo metas altruístas. Esse processo é equivalente à luta ou disputa entre Eu e objetos em relação ao investimento libidinal. Além disso, Freud (2011b [1930]) fala de um Supereu cultural prevalecente, o que de certa maneira já sinaliza a existência de um grande número de exigências que estariam em constante disputa pela hegemonia. A questão que essa possibilidade de analogia levanta é: Se a evolução cultural tem tamanha similitude com a do indivíduo e trabalha com os mesmos recursos, não seria justificado o diagnóstico de que muitas culturas – ou épocas culturais, ou possivelmente toda a humanidade – tornaram-se ‘neuróticas’ por influência dos esforços culturais? (FREUD, 2011b [1930], p. 91-92).

A essas exigências desenvolvidas pelo Supereu cultural foi dado o nome de ética, entendida por Freud (2011b [1930]) como um ponto bastante frágil da cultura, já que varia de acordo com o mandamento da época em que se encontra estabelecido o Supereu. Freud toma o exemplo do mandamento (que considera talvez o mais jovem) de “ama teu próximo como a ti mesmo”. Diante de tal mandamento, Freud (2011b [1930], p. 90) levanta duas objeções a Supereu individual, objeções que podem ser estendidas ao Supereu cultural: “Pela severidade dos seus mandamentos e proibições, ele se preocupa muito pouco com a felicidade do Eu, não levando devidamente em conta as resistências ao cumprimento deles, a força instintual do Id e as dificuldades do ambiente real”. Se a ordem emitida é humanamente impossível de ser cumprida, ou seja, se se exige do Eu um controle irrestrito do Id, corre-se o risco de produzir no indivíduo “rebelião ou neurose, 123

ou tornamos infeliz” (FREUD, 2011b [1930], p. 91). Localizamos aqui, portanto, uma fonte de infelicidade no mandato mesmo de felicidade plena. Assim, se considerarmos que o mandamento da época atual, como já citado anteriormente, é o de um gozo absoluto, chega-se a uma formulação sintomática que ao responder tanto à demanda de satisfação plena quanto à demanda do Outro de gozo (Goza!) o que se estabelece é um terreno propício à total frustração do sujeito. Diante dessa impossibilidade, algo se arranja, uma saída nova é proposta: é preciso se instruir para ser feliz, dominar sua própria mente, suas frustrações, conforme nos ensinam os livros de autoajuda. Trata-se novamente do aspecto paradoxal do Supereu, que exige do Eu algo que não é possível ser alcançado ao colocar a ele exigências que estão aquém de sua execução. Se gozo e desejo estão em uma relação de proporcionalidade inversa, na medida em que o mandato de gozo (e sua impossibilidade de cumprimento) aumenta podemos supor que o lugar para desejo, e sua dimensão singular, se reduz. No Seminário 10, Lacan, ao falar sobre o sintoma, diz que ele não necessita de vocês, que é gozo puro, e que se satisfaz pela sua mera repetição. Ao contrário, o acting-out se dirigiria ao Outro, seria uma resposta ao Outro. Para a entrada em análise, seria necessário que o sintoma fizesse laço. Isso permitiu usar como bússola, durante algum tempo, a pergunta: o que faz com que um sintoma ceda sua satisfação autista e se dirija ao Outro? O sintoma como uma mensagem dirigida ao Outro seria localizado num segundo momento, sendo, portanto, um sintoma já afetado, modificado, desviado da sua “natureza”. O processo de análise conta com a histericização do sintoma, ou seja, fazer com que ele se torne uma mensagem dirigida ao Outro, que faça laço. De certa maneira é isso que visamos aqui, restabelecer ou mesmo estabelecer um laço hipotético desse sintoma com as atuais condições de produção de discurso que têm como resultado uma certa subjetividade. Há, portanto, uma passagem possível do particular para um universal, e mesmo os sintomas encontrados na clínica individual têm relações com os sintomas sociais, daí podermos falar em uma dimensão social do sintoma. O sintoma, por mais individual que seja, está articulado com a cultura. Podemos considerar que o surgimento do sintagma livros de autoajuda somado a presença de um ideal inatingível de felicidade e satisfação configuram um sintoma social na medida em que condensa em si os elementos que caracterizam uma construção de subjetividade da época marcada, por lado, pelo imperativo de harmonia autorizado pelo discurso capitalista (Do it yourself e satisfação garantida) e pelo discurso da ciência (da Psicologia e da medicalização) e por outro 124

lado pela própria constituição do sujeito que prevê um lugar privilegiado ao ideal por meio de mecanismos como a orientação em direção ao Eu ideal. Além disso, esses livros propõem, em sua maioria, a generalização de regras e procedimentos, à moda da ciência, que universaliza seu conhecimento a objetos identificáveis entre si. Por meio dessa redução ‘científica’ e da generalização, esse discurso aparece como uma resposta ao mal-estar incontornável e propõe um ‘eu’ que em certa medida pode ser resumido da seguinte maneira, como aparece na contra-capa do livro Viver em liberdade de Subirana (2002): Você pode.... ... conseguir o que quiser. ... chegar onde quiser. ... ser quem você é. ... sentir o que quiser. .... estar presente com todo seu ser. ... fazer o que dá sentido à sua vida. ... atingir a excelência. ... viver o essencial. ... desapegar-se. .... transcender. ... viver em liberdade.

O que é recalcado é (imaginariamente) o próprio recalque, já que é ‘possível’ e, de fato ‘necessário’, retornar ao Eu ideal. Se o sintoma pode ser considerado a expressão do recalcado ou a realização de uma fantasia, podemos pensar na própria condição de incompleto como o ‘trauma’ que guia a construção de um discurso que prevê o re-estabelecimento de uma condição na qual essa subjetividade não teria que abrir mão de nenhuma parcela da sua satisfação, ou em termos lacanianos, de nenhuma parcela de gozo. Aqui o aspecto paradoxal do sintoma consegue ser destacado, pois é na medida em que não se obtém satisfação que se a busca. Por conta disso, sintoma tem dois lados, um de satisfação e outro de sofrimento. É função do eu sintético fazer desse sintoma o mais adequado às exigências tanto externas quanto internas, de maneira que incomode o menos possível. No entanto, se relacionarmos livros de autoajuda ao sintoma (e seu aspecto paradoxal) e como fruto de uma elaboração mítica, chega-se a uma não-realização. E mesmo em uma construção apoiada nessa não-realização. Daí falarmos em uma espécie de retroalimentação desse tipo de discurso: é justamente na medida em que o leitor não alcança um nível ideal de seu “desenvolvimento pessoal” ou ainda, é na medida em que esse “desenvolvimento pessoal” se aproxima de um semblante que o fracasso mesmo da satisfação plena serve de contexto ao surgimento de uma outra publicação do tipo. O sintoma somente pode ser interpretado dentro da ordem significante. Dessa maneira, tomar um significante a partir de seus deslocamentos históricos, a partir de relações diacrônicas, 125

pode nos auxiliar a encontrar algum tipo de interpretação relativamente razoável à sua presença tomada aqui como um sintoma social. Sabemos que um sintoma tem menos a ver com a realidade que com uma realidade psíquica, e justamente a imbricação entre dois campos (o da Psicanálise com o da História) pode nos auxiliar a compreender de que maneira essa realidade psíquica é compartilhada entre os indivíduos de uma sociedade. Não se trata de estabelecer relações de causa-consequência, à moda da Teoria da Sedução de Freud, e sim de criar hipóteses interpretativas que poderiam muito bem ser outras se o corpus estivesse nas mãos de outro analista. Por trás do sintoma, encontramos a angústia, que “ora reivindica ruidosamente para si a consciência inteira, ora se oculta de modo tão perfeito, que nos vemos obrigados a falar de angústia inconsciente ou – se quisermos ter uma mais limpa consciência [Gewissen] psicológica, já que a angústia é em princípio uma sensação – de possibilidade de angústia” (FREUD, 2011b [1930], p. 82). Dessa forma, nem toda angústia é manifestada, subsistindo como mal-estar que leva as pessoas a buscarem sempre outras motivações. Haveria, de acordo com Miller (2010), uma série de sintomas massivos. Um exemplo simples é a própria união pelo casamento, que em si, seria uma resposta à impossibilidade da relação sexual. No entanto, algumas pessoas simplesmente não estariam satisfeitas com os sintomas prêt-à-porter disponíveis, buscando nos buracos dos sintomas de consumo massivo algum que lhes caia bem, um feito à sua medida. No entanto, se o Outro não existe, como falar em dimensão social de sintoma? Para entender o que quer dizer isso, “o Outro não existe”, Brodsky (2011, p. 28) propõe a distinção da composição do Outro em dois aspectos, o primeiro, relacionado ao Ideal do eu - I(A) (que supõe a existência do Outro): Deve-se dizer que o outro pode ser tomado sob o aspecto dos ideais de uma civilização, os ideais de uma cultura, os ideais que contam para o sujeito e aos quais se tenta aproximar, e que na medida em que não se consegue, surge um sentimento às vezes de inibição, às vezes de culpa por não estar a altura dos ideais que o Outro oferece.

Por outro lado, o segundo aspecto relacionado ao Outro seria o significante mestre (S1). De acordo com Brodsky (2011, p. 28), “quando se diz que o Outro não existe tem-se que entender que é o Outro do Ideal do eu que não existe”. Ao contrário, do lado do S1, o que haveria não é a sua inexistência, mas sim a sua pluralização. De acordo com Brodsky (2011), a partir de um dado momento, Lacan passa a privilegiar o termo S1 em detrimento de Outro. O S1 é o que sobraria do Outro, depois de havermos retirado dele todo o Ideal.

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Uma epidemia suporia essa dimensão social do sintoma. Epidemia viria do grego epidemos, sendo demos, povo; e epi, aquilo que circunda. Ou seja, algo que circundo o povo, que rodeia. Já no dicionário, epidemia estaria relacionada a “uma aparição acidental de um grande número de casos, especialmente uma enfermidade contagiosa transmissível” (BRODSKY, 2011, p. 29). Tratar-se-ia da irrupção de algo que não estava presente até então, ou presente de maneira controlada. Por extensão, poderia se referir a qualquer tipo de enfermidade ou fenômeno, como por exemplo, cita a autora, a epidemia de intoxicações ou suicídios. Nesses casos, o que se objetiva é esclarece que se abate sobre um número considerável de indivíduos que se propaga de alguma maneira. Nesse sentido, estaria no lado oposto ao caso único, ou estudo de caso. Freud se refere à Psicanálise como uma epidemia psíquica ao falar do entusiasmo da escola de Zurique sobre sua obra, e mesmo Lacan chega a se referir a esse campo como uma “praga” durante a Conferência de Yale de novembro de 1975. Lacan, de acordo com Brodsky (2011), acrescenta que tudo que é social é uma praga. Lacan haveria ainda se referido à História como a “história das epidemias”, tanto o Império Romano quanto o Cristianismo podem ser considerados epidemias, inclui-se aí também a própria psicanálise. Considerando a propagação da literatura de autoajuda uma espécie de epidemia contemporânea, podemos passar a considerá-la um fato epidêmico que compõe a História da contemporaneidade, ao lado de outros fatores, como o alto consumo, o fim das grandes narrativas etc. É interessante notar que o fim das grandes narrativas coincide com o aparecimento dessa literatura de autoajuda, mais próxima de um tipo de fast food literário, pois à sua moda, vulgariza mitos, anedotas, lendas, princípios filosóficos das mais diversas origens, chinesas, gregas, romanas, tornando mais acessível um tipo de conhecimento até então sofisticado e reservado aos mais letrados. Um exemplo bastante curioso é a proliferação de livros que têm como ponto de partida o livro chinês A arte da guerra, um tratado militar escrito há vinte e quatro séculos. Encontramos nas prateleiras de autoajuda seus mais diversos derivados: A arte da guerra para professores (APOLINÁRIO, 2007), Sun Tzu: A arte da guerra para gerentes (MICHAELSON, 2002), A arte da guerra plus: estratégia para gerentes de vendas (GAGLIARDI, 2009), A arte da guerra para mulheres bem sucedidas (SHEETZ-RUNKLE, 2012). O que distingue a epidemia de um tipo ou uma estrutura (como é o caso da neurose obsessiva ou da histeria, por exemplo) é que a epidemia teria um caráter acidental, tratar-se-ia de um imprevisto, algo atípico. Mesmo que afete a um tipo especial de indivíduo, não se trata de um tipo quando falamos em epidemia.

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Isso significaria também que, ao tratar de epidemias, não estaríamos no campo do singular. “Estamos falando do que o sintoma pode ter, contra todas nossas crenças prévias, de laço social”. Entretanto, não se trataria da articulação do sintoma com o Outro, mas de a própria inexistência do Outro ser justamente “o que implica e explica a promoção do laço social no vazio mesmo que a dita inexistência abre” (BRODSKY, 2011, p. 34). Há de acordo com Miller e Laurent uma antinomia entre laço social e Outro: já que o Outro não existe [ele deixa um vazio em I(A) → I( )], aí no vazio deve-se colocar o laço social. Esse laço, entretanto, não pode ser entendido como sendo exatamente o campo do Outro, não há uma relação de equivalência mais sim de substituição. Sendo assim, poderíamos dizer que uma epidemia é contemporânea se ela tem como característica o fato de se propagar ali onde o laço social substitui o Outro. À moda da bactéria, que configura tanto o contágio quanto o modo de combate à enfermidade, o vetor do contágio “psíquico” seria a identificação. Brodsky (2011) a opõe à mimesis / mimetismo, citando Freud, para quem “o que manda é a identificação, e a imitação é precisamente se apropriar do que se pode, do aparente” (BRODSKY, 2011, p. 36). Na identificação histérica, a identificação não está ligada ao traço ou ao significante, mas sim ao que há de inimitável no outro, ligado, portanto, ao sujeito barrado ( ). Tratar-se-ia de ser o que o outro é precisamente no ponto onde não se sabe exatamente o que ele é. Diante da impossibilidade de o sujeito se apropriar de um enigma, a consequência seria a apropriação de um significante, único elemento a disposição. Por meio da identificação ao significante, o sujeito obteria uma identidade que não é natural mais. É importante lembrar, nesse ponto, que as mudanças relacionadas à história de um tsignificante, como é o caso do significante mulher, que desde as transformações da posição da mulher na sociedade, no mercado de trabalho, na casa etc., exige que se pensem modificações na própria identidade da mulher. A clínica psicanalítica não pode ser indiferente aos novos regimes de socialização. Essa identificação ao significante que provem do campo do Outro é descrita por Lacan no Seminário 11 – pelo processo de alienação. Brodsky (2011, p. 37, tradução nossa), a descreve como da seguinte maneira: “à falta a ser, o Outro dá um significante que produz o que Lacan chama de hipóstase do sujeito, fica hipostesiado, aderido a esse significante que passa a representá-lo”. Não se trataria de um fenômeno, mas sim de uma estrutura. O sujeito busca no Outro a resposta para a pergunta quem sou eu?, resposta que se escreve S1 sobre . 128

Esse seria o lado direito do discurso do mestre que a princípio estaria relacionado ao agente e depois (no seminário 19) ao semblante. De acordo com Brodsky (2011, p. 40) é justamente aí que se passa uma epidemia clássica: entre o discurso do mestre, “onde o que tem voz de mando, o que manda é alguém que encarna todos os emblemas do ideal, a cura, o médico, os mestres tradicionais [...]”, e o discurso da histérica, relacionado a uma espécie de revolta contra o S1. Entretanto, o que acontece se o lugar do Outro está pulverizado? Se o lugar do Outro e do S1 não coincidem, o que acontece é que não pode haver uma revolta histérica. É aqui que Lacan recorre a um quinto discurso onde há uma inversão do lado esquerdo do discurso do mestre e nenhuma barra mais. Nesse caso, não estamos diante de um caso clássico de epidemia na qual o médico tem um papel fundamental, e sua palavra peso. Brodsky (2011) aponta para o fato de que cada dia mais é delegado a máquinas os pareceres médicos. Não haveria mais alguém que encarne o lugar de mestre como antes. No entanto, é precisamente a ciência e seus avanços tecnológicos que cumprem esse papel na atualidade. A despeito da evasão de figuras clássicas de Outro, haveria uma reocupação por parte de outros personagens, a ciência auxiliada pela tecnologia como é possível observar hoje em qualquer procedimento médico, que atualmente prescinde dos exames clínicos em prol de exames laboratoriais, o desenvolvimento de softwares humanos e seus mestres, também chamados de personal coucher, a religião na era capitalista, na figura de pastores evangélicos milionários, bem como, claro, literatura de autoajuda. Brodsky (2011) refere essa mudança de mestres à mudança do discurso, sendo o do capitalista o mais em voga na atualidade. Retoma o trabalho de Fabian Schejtman (2004), que postula três consequências principais à permuta da supremacia do discurso do mestre pela do discurso do capitalista: 1) a impermeabilidade dos sujeitos à análise, uma vez que justamente o discurso do mestre em decadência fosse o discurso do inconsciente, deixado então de lado; 2) circularidade sem fim, próprio do discurso do capitalista e da reciclagem permanente em nossa sociedade, onde os restos (objeto a) são reaproveitados retroalimentando o sistema (a autora chega a falar sobre a possibilidade mesma da reciclagem do homem, um dos pontos do debate atual relacionado à bioética); e, 3) o imperativo Consuma!, entendido também como uma gadgetização, isto é, tudo é transformado em gadgets, ou seja, subprodutos da indústria tecnológica . O artigo chega a afirmar que a preponderância do discurso capitalista criaria sujeitos desidentificados, entretanto, não seria essa a nossa posição, pois ainda assim, tomando como certo que o lugar do mestre encontra-se esvaziado, que não se trataria mais de um processo de neurotização que tem como ponto de partida a repressão primária como pleiteia Freud, justamente a ausência de um laço social nos moldes de um anterior permitiria a sua criação de um 129

tipo de identificação imaginária substitutiva que tem como finalidade fazer as vezes de Outro, criando uma sociedade na qual os significantes são mais ou menos compartilhados. Não se trataria de um sujeito solitário, ou autista, imerso em seu próprio gozo, mas sim de comunidades, nas quais os sujeitos se inserem não mais todos relacionados ao totem, mas sim por meio da identificação imaginária. Pois ainda que o sujeito fosse deixado completamente sozinho, não saberia por onde começar se não recorrendo a uma alteridade. Donde, de acordo com a nossa hipótese, a eficiência de um discurso como o dos livros de autoajuda que jogam justamente com a autonomia e solidão do sujeito na tomada de decisões sem deixar de constituir uma alteridade, ainda que invisibilizada. Ainda que o Outro não exista, há Outros que existem com muita força: a ciência e a técnica. Justamente é o discurso da ciência que forclui o sujeito dividido. Freud (2011c [1921]) caracteriza a formação da massa a partir de dois laços afetivos: o laço entre o indivíduo e o líder e o laço dos indivíduos entre si, sendo que o primeiro é considerado mais forte. Esse líder, no entanto, pode ser substituído por uma abstração. Aqui podemos encontrar as explicações para uma comunidade de gozo sem que seja necessário que haja um líder que a conduza. Essa abstração pode ser relacionada a um ideal, ou ainda, a um objeto. Para ilustrar o esquema de identificação vertical e horizontal, Brodsky (2011, p. 46) propõe o seguinte esquema:

Se o que orienta não é mais o ideal, mas sim o objeto, cabe a pergunta sobre o que faz com que os laços horizontais sejam traçados? A identificação vertical ao objeto não produz laço social da identificação horizontal, como ilustra o seguinte esquema (BRODSKY, 2011, p. 47):

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Se não há mais o laço social horizontal de identificação entre os sujeitos, o que permite uma epidemia? Brodsky (2011) conclui que não se trata mais de uma epidemia clássica. A identificação é entendida como “a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa” (FREUD, 2011c [1921], p. 60). Seu empenho é em transformar o Eu naquilo que ele toma como modelo. Freud em O mal-estar na civilização parte do princípio de que o laço não existe a priori, o que faz com que a sociedade se encontre permanentemente ameaçada de dissolução. A pulsão tende a isolar os indivíduos (a // a // a // a) e o que o Outro faz é forçar a existência de civilização por meio da identificação. O ideal determina o que é bom ou ruim, gerando uma identificação que faz laço e que neutraliza um estado “natural”, no qual o laço social da forma como o entendemos não estava presente.

Para Freud (2011c [1921]), a idealização falseia o juízo em relação a um objeto na medida em que lhe são atribuídas qualidades que não passam de substitutos da atração sexual primeira. Em seu lugar o que aparece são qualidades espirituais que em si não teriam nenhum valor, exceto pelo fato de estarem relacionadas à satisfação primeira que foi inibida em sua meta. No enamoramento, por exemplo, o objeto se coloca no lugar do ideal do Eu podendo levar mesmo ao sacrifício do Eu em favor do objeto. Para Ferenzi, aqui haveria uma distinção com a identificação, pois nessa o objeto é introjetado, enquanto que no enamoramento o Eu é empobrecido em favor do objeto. No entanto, Freud considera que ao contrário, trata-se de uma introjeção do objeto, aqui ainda que o objeto não seja perdido, ou que não haja sua renúncia, esse objeto é sobreinvestido no Eu. Esse processo nos interessa, pois nele podemos observar de que forma o objeto pode ser coloca no lugar do Eu ou do ideal do eu (FREUD, 2011c [1921]). Nesse ponto, Freud (2011c [1921]) nos apresenta um esquema que explica a identificação entre os indivíduos na massa: quando a identificação de cada indivíduo se desliga do seu ideal do Eu e se conecta a um objeto comum que o substitui:

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Retirado de Freud (2011c [1921], p. 76). É justamente o caráter desagregado do sujeito em ralação ao objeto que permite, paradoxalmente, que ele se agregue ao grupo. É a separação que o sujeito apresenta em relação ao Outro e ao objeto que o liga à comunidade. Mas não devemos confundir esse caráter particular com o singular. Esse laço que significa a entrada na civilização não está somente relacionado à renúncia (seja dos instintos ou do pendor agressivo do homem), logo a renúncia de um estado primitivo de completude e gozo absoluto. Se pensarmos que alguns livros de autoajuda33 propõem a volta a esse estado primitivo de completude no qual (supostamente) o indivíduo poderia prescindir do outro, estamos diante de um mandato superegóico de gozo absoluto que como tal desfaz o laço, deixando cada um solitário em seu gozo. Logo, imperativo de gozo e solidão se encontram. É também porque essa renúncia a esse gozo não é natural que podemos falar em mandamentos como o de amor ao próximo, por exemplo. Freud (2011b [1930]) escreve a respeito o mandamento “ama teu próximo como a ti mesmo” que, sendo inclusive um mandamento cristão, não encontra sua origem em qualquer causa natural. Para investigar esse mandamento propõe um exercício metodológico: “Vamos adorar uma atitude ingênua diante dela [da exigência], como se a ouvíssemos pela primeira vez. Não podemos suprimir um sentimento de estranheza e surpresa” (FREUD, 2011b [1930], p. 54). Isso porque para o homem [...] o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-lo, para infringir-lhe dor, para torturá-lo, para matá-lo (FREUD, 2011b [1930], p. 57).

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Rever citação de Augusto Cury (2007, p. 95-96) neste trabalho na página 41-42.

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A origem do pendor à agressão estaria localizada na pulsão de morte, que partilha com Eros, o império sobre o funcionamento do mundo. Para Freud (2011b [1930]) a luta da vida humana seria uma constante batalha entre esses dois pólos: de vida e de morte. É preciso que a civilização busque retrair os instintos agressivos. Daí, portanto, o uso de métodos que devem instigar as pessoas a estabelecer identificações e relações amorosas inibidas em sua meta, daí as restrições à vida sexual e também o mandamento ideal de amar o próximo como a si mesmo, que verdadeiramente se justifica pelo fato de nada ser mais contrário à natureza humana original (FREUD, 2011b [1930], p. 58).

De acordo com Brodsky (2011, p. 61, tradução nossa), “todos se identificam, renunciam todos ao objeto incestuoso depois de haver matado o pai. Agora somos todos iguais, nenhum tem direito ao gozo, é uma identificação pela renúncia, a partir da promoção de um ideal que regula as relações entre os sexos”. Brodsky (2011) coloca como facilitadores da criação de um laço social baseado na identificação os mandamentos de amor ao próximo. Podemos encontrar esse tipo de mandamento não só nos discursos religiosos, mas também em livros de autoajuda: “doar-se ao próximo é essencial para ser feliz” (DOWRICK, 2011, p. 220). No entanto, não é a mesma coisa dizer que qualquer oposição seja ruim. As lutas e disputas podem reconhecidamente ser consideradas um fator positivo em um regime como o democrático, por exemplo. De um lado garantem que a justiça alcance um maior número de indivíduos e por outro que as regras mudem de acordo com a evolução (não necessariamente entendida como progressiva) da sociedade. Para Brodsky (2011), citando Miller (2010), o que acontece na hipermodernidade é a ascensão do objeto a (entendido aqui como mais-de-gozar e não como objeto causa do desejo), com seu imperativo de gozo, ao zênite social34. A consequência é a produção/pulverização de significantes mestres (S1). Essa produção massiva de S1, a autora também chama de “nome para tudo” (BRODSKY, 2011, p. 63, tradução nossa). Esses nomes (TOC, bullying, copycat etc.) que costumam vir da ciência ou de mídias como TV aparecem com bastante frequência nos discursos de autoajuda. Um exemplo de fabricação de nomes para tudo pode ser encontrado no livro Além da trilha percorrida, do psiquiatra M. Scott Peck que fala sobre “problemas de ponte levadiça”, ao se referir à (in)capacidade que algumas pessoas têm de estarem abertas para o contato com o outro.

34 A ascensão do objeto a é acompanhada pela queda dos ideais, criando sujeitos solitários em seu próprio modo gozo que dispensa a passagem pelo Outro compartilhado e pela cultura. Segundo Soler (2001) o que se observa aí é a justaposição de solidões, o que pode nos remeter à radicalização de um projeto de visibilidade do indivíduo à moda do panóptico (como veremos adiante).

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Ao contrário da nomeação na psicose que pode dar um limite ao gozo, esse fenômeno de nomeação na contemporaneidade em realidade difunde o gozo. A difusão de nomes de origem científica ao mal-estar é facilmente observada em livros de autoajuda: Acredite que é possível se acalmar. Eis a receita. Identifique os sintomas de pânico, ansiedade e medo crescentes. Você irá senti-los no próprio corpo. Diga a si mesmo tantas vezes quanto forem necessárias: ‘Posso lidar com isso’. Essa mensagem poderosa vai influenciá-lo tanto física quanto emocionalmente. Não importa que você não saiba como; o que importa é que vai encarar o problema (DOWRICK, 2011, p. 48, grifos itálicos do autor, negritos nossos).

De um lado, portanto, encontramos a responsabilização do sujeito pela sua própria felicidade já que é possível que ele lide com qualquer problema desde que se submeta a regras simples oferecidas por esses manuais. Caso ele não consiga se sentir plenamente realizado cabe somente a ele a culpa. A culpa cumpre um papel fundamental em diversas instâncias. Freud, ao descrever sua atuação na religião nos atenta a uma característica muito importante da culpa: a possibilidade de que se torne universal a partir de um acontecimento, a saber, o sacrifício de um em prol de todos. O que a consciência de culpa promove é a necessidade de punição diante de um ato que não é considerado a priori mau, mas que é repreendido pelo outro, de quem se depende. Diante dessa dependência e de seu desamparo natural35, o ser humano, com medo de perder o amor do outro, que lhe oferece segurança e possibilidade de sobrevivência, desenvolveria o senso de culpa como índice da influência externa. Assim, o medo é de que uma autoridade descubra que ele fez algo de mau, já que o mal em si não é necessariamente perigoso ao Eu, podendo inclusive lhe gerar prazer na execução. A origem do poder, em Freud (2011b [1930]), estaria no desamparo fundamental que o ser humano que ameaça sua própria existência. É preciso submeter-se ao outro e ao que esse outro acredita ser o melhor ao indivíduo já que ao contrário esse corre o risco de perder o seu amor, que em última instância garante a sua sobrevivência. No entanto, uma vez estabelecida a instância do Supereu, ou seja, internalizada essa autoridade que ameaça a pessoa pelo desinvestimento amoroso, desaparece o medo de ser descoberto, e ratifica-se o sentimento de

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Para Freud (2011 [1930]), os sentimentos mais fortes têm origem em fortes necessidades, como por exemplo, o sentimento religioso poderia ser relacionado ao desamparo infantil e à nostalgia do pai causada por esse desamparo. Assim, o sentimento oceânico buscaria a restabelecer uma espécie de narcisismo ilimitado. É o caso da ioga ou algumas técnicas especiais de respiração que restabelecem uma sensação de universalidade bastante próxima a estados primitivos do psiquismo.

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culpa. Diante do Supereu nada se pode esconder, nem mesmo os pensamentos. Fazer o mal e pensar o mal se encontram em relação de equivalência. Daí encontrar em livros de autoajuda uma atenção tão grande ao pensamento e técnicas que visam o disciplinar. Cury (2007, p. 85) relata em seu livro de autoajuda Treinando a emoção para ser feliz o atendimento a um paciente que apresentava sintomas de síndrome do pânico da seguinte maneira: Evidenciei que não é possível deletar ou apagar a memória, como alguns psiquiatras pensam, ela só pode ser reescrita. Usei medicamentos como atores coadjuvantes no tratamento, mas disse-lhe que ele era o ator principal. Disse que ele precisava resgatar a liderança do ‘eu’ contra seus pensamentos negativos e das um choque de lucidez à sua emoção. [...] Assim ele poderia ser um agente modificador de sua história e reeditar o filme do seu inconsciente, ou seja, atuar em áreas em que a medicação não tem acesso.

Se “o Supereu atormenta o Eu pecador com as mesmas sensações de angústia e fica à espreita de oportunidades para fazê-lo ser punido pelo mundo exterior” (FREUD, 2011b [1930], p. 71), de acordo com os livros de autoajuda, é possível se armar contra o Supereu paradoxalmente por meio de um novo imperativo que proíbe pensamentos indesejáveis. Freud já expõe um paradoxo do qual posteriormente se ocupará Lacan (no Seminário 7 – a ética da Psicanálise): existiria uma proporção entre o virtuosismo do indivíduo e seu Supereu: quanto mais severo o segundo, mas abstêmio o primeiro. Freud (2011b [1930], p. 72) escreve que “nisso a virtude perde algo da recompensa que lhe foi prometida, o Eu dócil e abstinente não goza da confiança de seu mentor, esforça-se – em vão, ao que parece – para conquistá-la”. Ainda que tenhamos considerado o livro de autoajuda um sintoma, o trabalho subsequente não é o de dar uma resposta a esse sintoma, preenchê-lo de um sentido. Por isso, procuramos estabelecer hipóteses que rastreiam a sua construção. De certa forma, a construção mesma do enigma (pautado aqui no caráter paradoxal do enodamento significante em livros de autoajuda) já abre uma fenda naquilo que parecia transparente, delatando a opacidade da língua e da constituição do sujeito, cujo correspondente Eu é só um de seus efeitos.

Outros sintomas contemporâneos Mi humanidad está en sentir que somos voces de una misma penuria.36 Jorge Luis Borges, em Luna de enfrente Na modernidade, o espaço e o tempo do pensamento saíram de suas determinações locais 36

“Minha humanidade está em sentir que somos vozes de um mesmo sofrimento” (tradução nossa).

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não estaríamos mais no tempo imemorial do mito, no tempo referencial da manifestação de Deus aos homens, no tempo crônico e rural dos trabalhadores e dos dias, no tempo histórico da sucessão dos reinados ou em algum outro tempo possível, estamos em todos os tempos ao mesmo tempo (DUFOUR, 2005, p. 50, grifo do autor).

Na contemporaneidade essa impressão de se estar em todo tempo ao mesmo tempo é levada às últimas consequências e apresenta uma espécie de justificativa e apoio nos meios de comunicação instantânea (celular e internet, por exemplo). Ao mesmo tempo em que essas tecnologias submetem os usuários ao seu uso, elas criam o sentimento ilusório de liberdade, já que por exemplo, por meio do uso da internet e suas ferramentas de comunicação em vídeo, é possível estar em todo lugar ao mesmo tempo. Além disso, partimos da ideia central de que haveria um pacto profundo entre os modos de produção e a constituição da identidade por meio dos quais não haveria mais motivos de falar em coerções de fora para dentro, já que é o próprio indivíduo que escolhe o que, como, onde deve fazer e ser. A referência coercitiva passa daquilo que é reconhecidamente “exterior” para um “interior” de tal maneira que podemos falar em “auto”. Em autoajuda, autoajuste, autogestão, etc. A valorização da informação à qual todos ilusoriamente teriam acesso permitiria ao indivíduo se configurar como centro de qualquer constituição de si, já que possuiria em si todos aquilo que poderia instrumentalizá-lo. No entanto, seria ingênuo supor que nesse mundo da flexibilidade, de uma suposta ausência de modelo de sedimentação da identidade, do ‘zapping subjetivo’, tudo está permito. Mesmo o liberalismo psíquico tem seus limites. Nossa hipótese é a de que esse limite tende a ser tratado atualmente nas discussões que pretendem abarcar o “politicamente correto”, formas de pensar bem vistas, não sem relação aos genéricos discursivos. De acordo com Melman (2008, p. 104-105), Há doravante, uma espécie de comunhão de pensamento, que não é articulada em parte alguma, que não se refere a nada de apreensível, mas que se impõe a cada um dos participantes em tais debates. Se você não adere a ela, se você não entra no ritmo, você é rejeitado. Você vê que o liberalismo tem limites e intolerâncias.

Ainda que um código de conduta não esteja escrito de forma clara em nenhuma parte, há uma espécie de consenso que parece ter a origem nos próprios indivíduos, o que de certa maneira tende a contribuir de maneira absolutamente eficaz para a sua adesão. A despeito das qualidades ou limitações que as condutas politicamente corretas possam despertar em qualquer organização ao redor de uma causa “justa ou humana”, é de nosso interesse, mais que as justificativas, justamente a adesão voluntária e ao mesmo tempo absolutamente incontornável que as condutas politicamente corretas exercem. 136

No entanto, haveria de um lado um limite imposto pelo novo higienismo (proibições de fumar, regimes alimentares etc.) ao lado dos excessos que viraram a regra. Maratonas ‘esportivas’ de caminhadas pelo deserto de extensão de 300 km em poucos dias e outras ‘práticas esportivas’ testam os limites do corpo que levam à beira da exaustão e da morte. É proximidade à pulsão de morte, que podemos falar da presença de um gozo aí nessas atividades que formam comunidades de indivíduos ao redor dos mesmos ‘desafios’. Novos mecanismos de controle Se não há mais essa figura de autoridade que centraliza, Dufour (2005) afirma que ocorreria hoje a convivência de diversas narrativas, “pagãs” (LYOTARD apud DUFOUR, 2005, p. 73), que se caracterizariam por estarem circunscritas a redes, isto é tribos como, por exemplo, [...] os que lidam com informática, os budistas, os motoqueiros, os internautas, os amantes de ópera, os iniciados em piercing, os adeptos de tatuagem, os músicos de rock ou punk ou rap ou techno [...]. Cada confraria dispõe de seu código de honra seus saberes, suas obrigações contratuais, seus ritos, suas liturgias sociais, suas palavras de passe, seus ritos de iniciação, suas liturgias locais, seus totens, seus signos de pertença (vestimenta, penteado, tatuagem, paramentos) (DUFOUR, 2005, p. 73).

Essa vacância está menos relaciona à ausência do Pai que à sua rejeição. Laurent (2007, p. 85) afirma que “ainda que o mundo possa ser definido pela sua descrença em relação ao pai, ele é definido sobretudo, e a posteriori, por sua relação com a garantia paterna. Ele não tem garantias, e sim impossíveis”. Aqui podemos confrontar o discurso da época atual relacionado ao gozo. Não há um gozo último e desde o advento do simbólico não há gozo absoluto. Trata-se de um impossível que as comunidades identificatórias tentam contornar por meio de um fundamento imaginário. Ainda assim, essa “falência” de um modelo central ao qual todos prestam contas, abre-se uma espécie de relativismo que é dificilmente combatido. Dufour (2005) dá a essa narrativa o nome de comunitária: Sobre o fundo da decomposição das grandes narrativas, a do Estado-nação em particular, estão em escalada as narrativas locais que convocam a uma comunitarização, isto é, a uma atomização de todos os princípios universais reivindicados pela modernidade. [...] Será preciso uma comunidade que só tenha que prestar contas à comunidade, sendo o mundo constituído por uma justaposição infinita de comunidades, tendo cada uma suas leis próprias; a tendência é sempre dividir cada agrupamento em agrupamentos menores. O preço a pagar é o do relativismo absoluto no qual nada mais é comensurável. Trata-se, pois, de uma reconstituição das tribos, a qual, aliás, não é incompatível com a existência de um império (americano, por exemplo) que, pela divisão, encontraria aí os meios para reinar sem dificuldade. (DUFOUR, 2005, p. 75, grifos nossos). 137

Este mecanismo de controle potencializado por uma divisão atomista da sociedade em grupos menores já havia sido de certa maneira tratada por Haroche (1992) quando articula esse processo à gramática. Para a formulação das leis da gramática é preciso deixar de lado aquilo que é singular e incontrolável, e tomar o indivíduo “como transparente, mensurável, no limite, até modificável” (HAROCHE, 1992, p. 29). É a gramática, com seu ideal de completude, que promoveria um suposto recobrimento total do indivíduo. Aqui sua interioridade seria visível e domada. O que seria dissimulado é a caráter sempre político de qualquer enunciado ainda que se rogue o mais neutro de todos. Nesse contexto, podem ser retomados os processos arquiteturais do final do século XVIII que têm como objetivo a observação do indivíduo, do seu corpo, baseados em um “princípio de visibilidade que isola cada sujeito de todos os outros” (HAROCHE, 1992, p. 23). O panóptico é um dispositivo carcerário cuja estrutura arquitetônica possibilitava a visão de todas as celas por um vigia que se encontrava em uma torre no centro da construção circular do presídio sem que os prisioneiros pudessem se ver. Ao contrário da masmorra e suas três funções, a saber, trancar, privar de luz e esconder, o panóptico conserva apenas a primeira. A plena luz proveniente da janela externa permite ao vigia que veja todo tempo o prisioneiro que antes, na masmorra, poderia se esconder nas sombras. Os muros entre as celas impedem que os prisioneiros tenham contato uns com os outros, de maneira que podem ser vistos, mas não podem se ver. Esse indivíduo, portanto, se caracteriza por serem “objeto numa informação, nunca sujeito em uma comunicação” (FOUCAULT, 1977, p. 177). Esse dispositivo foi descrito por Foucault (1977) como um paradigma à positividade do indivíduo que passa a ser tomado pelas ciências humanas modernas como observável e portador de características discerníveis. Logo, esse procedimento científico de produção de saber irá se relacionar com o poder, na medida em que cercar e discretizar indivíduos favorecem ao seu exercício de controle. O estado permanente de visibilidade permite que o poder se exerça automaticamente. Dessa maneira, é a disciplina que dá origem ao indivíduo como o conhecemos: “[...] ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” (FOUCAULT, 1977, p. 143). Reencontramos a incidência de um modelo de vigilância, e dada a confusão entre alteridade e identidade que o próprio sentimento de culpa (relacionado ao Supereu) promove, podemos pensar no exercício da vigilância exercido pelo próprio objeto de vigia. Melman (2008) acredita que haveria a extrapolação dos limites de um gozo ligado a uma transparência que já era sinalizada por Foucault ao tratar do panóptico. Extrapolação ilustrada 138

pelos programas de TV que expõem o cotidiano de pessoas confinadas em uma casa, por exemplo. Configura-se então uma espécie de onivoyerismo, no qual não há mais nada velado, tudo se dá a ver. Enquanto o panóptico é uma máquina de dissociar o par ver e ser visto, os livros de autoajuda (e podemos pensar inclusive na constituição do Supereu) articulam essas duas funções, fazendo da subjetividade, encarnada no leitor, objeto e sujeito da vigilância. Por conta disso, podemos pensar em um panóptico no espelho: não se trata mais de um outro que observa atentamente o sujeito, mas sim, o próprio sujeito passa a se observar como um objeto. Esse papel duplo de sujeição já é previsto em Foucault (1977, p. 79): A eficácia do poder, sua forma limitadora, passaram, de algum modo, para o outro lado – para o lado da sua superfície de aplicação. Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio de sua própria sujeito.

Além da visibilidade, Foucault (1977, p. 179-180) já adverte à possibilidade de se utilizar o panóptico “como máquina de fazer experiências, modificar o comportamento, treinar ou retreinar os indivíduos. [...] ensinar simultaneamente diversas técnicas aos operários, estabelecer qual é a melhor”, características que podemos também extrair da literatura de autoajuda. Entretanto, o que cabe aqui refletir é de que forma esses mecanismos disciplinadores hoje funcionam a partir do próprio sujeito. Não mais se relacionando às instâncias superiores ligadas ao Estado, por exemplo, naquilo que ele exige à revelia do sujeito, mas sim por e no sujeito mesmo, crente de que está fazendo o melhor para si. É esse aspecto que se enoda no discurso dos livros de autoajuda: a exigência de displinarização, visibilidade e inteligibilidade estão envolvidas em práticas cotidianas perpetradas pelos indivíduos naquilo que acreditam ter origem em si mesmo e ser o melhor para si. Em certo sentido, as mesmas regras da gramática são aplicadas ao corpo, num projeto de completude, desambiguização e inteligibilidade generalizadas. É nesse sentido que Foucault (1977) fala em biotecnologia: disciplina que se ocupa do corpo, lembrando que esse conhecimento pode garantir o exercício do poder. Em certa medida, o que essas técnicas de exercício do poder por meio dos saberes não contavam era com a possibilidade de que esse poder se debruçasse sobre si mesmo: o surgimento de técnicas a partir das quais os sujeitos tentam alcançar verdades sobre si, efetuar modificações

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na sua vida e formas de pensar sobre si. É aqui que localizamos os livros de autoajuda, como essa suposição da possibilidade de se autoconhecer e se autotransformar autorizada por saberes37. Havemos ainda que lembrar que não se trata de qualquer saber ou de um saber singular, é preciso que esse saber esteja bem adequado ao restante do contexto em que se insere ou como escreve Melman (2008, p. 158), “o saber só vale na medida em que é tecnológico, ou é técnico, isto é, em que dá acesso ao mercado. De outro modo não vale nada” (MELMAN, 2008, p. 158). Se na pós-modernidade o indivíduo passa a ser tanto sujeito quanto seu objeto de conhecimento, esse fechamento do sujeito sobre si mesmo poderá ser explorado a partir da topologia, pois é na medida em que isso ocorre como transformações no plano que se cria a imagem de um sujeito com interior e exterior. Uma espécie de consistência que corrobora com as ciências humanas e seu projeto de individualização. O poder coercitivo não se encontraria mais centralizado no Estado que o exerceria de forma opressora, mas em todos e cada um dos cidadãos aos quais o acesso ao conhecimento foi proporcionado após séculos de lutas contra a “alienação” (entendida aqui no sentido comum do termo, ou seja, de ignorância). A história vem corroborar com essa tomada de consciência e controle do indivíduo daquilo que lhe é próprio: sua subjetividade, quando pensamos, por exemplo, no Iluminismo. Foucault ao tratar desse processo de “internalização” dos dispositivos disciplinares irá falar de uma duplicação do fora para o dentro. Em certa medida, é disso que também trata Lacan por meio do recurso à topologia – ainda que aqui a história seja mais entendida como um enredo que nos ajuda a compreender esse processo fundamental que estaria relacionado à origem do sujeito e do sentido. De certa maneira, é como se, graças à iluminação do homem pela razão, todos os homens estivessem livres dos engodos das ideologias. É isso que leva alguns autores a afirmarem que estaríamos vivendo (falsamente) um período de “pós-ideologia” (SAFATLE, 2008; MELMAN, 2008). São os avatares da “nova economia psíquica” que dariam a impressão de se instalar sem uma ideologia que os organizasse, à revelia dos sujeitos. Melman (2008, p. 107, grifo nosso) descreve esse ponto como de [...] abandono de uma cultura, ligada à religião, que obriga os sujeitos ao recalque dos desejos e à neurose, para nos dirigir a uma outra em que se propagandeia o direito à expressão livre de todos os desejos e à plena satisfação deles. Uma mutação tão radical traz consigo uma desvalorização rápida dos valores que a tradição moral e política transmitiam. As figuras petrificadas da autoridade e do saber parecem ter se desagregado de uma tal maneira que podemos pensar que a 37 Não se trata aqui de qualquer saberes: a ciência da Psicologia aqui exerce um papel fundamental como autoridade e “neutralidade” de um saber que só pode ser bom para o sujeito desde que se trata do seu funcionamento em um nível ótimo.

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mudança vivida é conduzida pela contribuição espontânea de vontades individuais, sem referência a um programa estabelecido.

É importante ressaltar esse aspecto da nova economia psíquica: de que a vontade individual faz afigurar-se como o verdadeiro condutor de qualquer atividade. No entanto, sabemos, com o auxílio da Psicanálise, que não é bem assim. Tratar-se-ia, de acordo com o entrevistador Lebrun (MELMAN, 2008), de uma confusão entre a constatação de que “o céu está vazio” e a afirmação da inexistência do Outro (o que é impossível). Melman (2008) fala a respeito da suposta “libertação” do sujeito das ideologias, que viria a gerar uma nova economia psíquica baseada na momentaneidade do sujeito, isto é, seu lugar varia de acordo com a informação, considerada pelo autor como aquilo que vem ocupar o lugar da ideologia. Talvez possamos considerar que a suposta autonomia da informação esteja alicerçada nos recursos tecnológicos atuais: o registro em vídeo hoje realizado por qualquer pessoa portadora de um aparelho celular garante a veracidade e, acima de tudo, a neutralidade da informação. Em um mundo de câmaras de vídeo, a imagem se torna fiadora da verdade e podemos abandonar análises críticas. “As imagens falam por si”. Entretanto, sabemos que as coisas não são bem assim... De acordo com Melman (2008, p. 95), “o sujeito não tem mais afastamento possível diante do discurso que a ele é apresentado, está aprisionado, preso na teia, cercado”. É assim que poderíamos tentar articular essa economia psíquica à identificação imaginária, ou seja, àquela que dá as bordas de um todo, que visa à completude pelo recurso a uma imagem, que por sua projeção no espelho plano, retorna para o sujeito invertida. Depressão e medicalização “Nada é mais difícil de suportar do que uma série de dias belos” Goethe As consequências da aceleração do tempo e diminuição de espaços também podem ser sentidas na nova sintomatologia dos consultórios psis: depressões (caracterizadas especialmente por uma decalagem entre o tempo do depressivo e de tudo ao seu redor), distimias e, síndromes contemporâneas como a do Pânico e mais recentemente do Facebook.

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No contexto contraditório, no qual a felicidade está ao alcance de todos, é não somente desejável, mas absolutamente possível, que registramos o maior registro de casos de depressão (que poderia ser aproximada à sua ancestral melancolia) da história. A melancolia é descrita por Freud (2011a [1917], p. 53) como “um rebaixamento extraordinário do seu sentimento de autoestima, um enorme empobrecimento do ego”, ao contrário do luto no qual o mundo se esvazia (do objeto investido libidinalmente) é o próprio eu que se esvazia na melancolia. Consequentemente, o melancólico sofre de uma sintomatologia específica: um delírio de inferioridade usualmente de caráter moral, insônia, falta de apetite etc. Diante da subjetividade forjada pelo discurso do livro de autoajuda, o que nos interessa nesse quadro, próximo à depressão é justamente a identificação do eu ao objeto perdido, demonstrando novamente o caráter conflitivo entre Eu e outro. Freud (2011a [1917], p. 57, grifos nossos) aponta a esse caráter contraditório da melancolia: O essencial [...] não é que o melancólico tenha razão em sua penosa autodepreciação, no sentido de que essa crítica coincida com o julgamento dos demais. O importante é que ele está fazendo uma descrição correta de sua situação psicológica. Perdeu o autorespeito e deve ter boas razões para tanto. Isso nos põe diante de uma contradição que coloca um enigma difícil de resolver. Segundo a analogia com o luto, deveríamos concluir que ele sofreu uma perda no objeto; de suas afirmações surge uma perda em seu ego.

A depressão até os anos 40 era considerada uma sintomatologia parte de outras doenças mentais e não se configurava como um objeto de grande atenção. É somente a partir da década de 70 que a Psiquiatria, apoiada em estatísticas, passa a considerá-la o problema mental mais comum no mundo. Não somente a comunidade psi passa a dar muita atenção a essa sintomatologia, como o seu aparecimento e discussão em vários meios como, por exemplo revistas, televisão, etc., fazem da depressão “uma doença da moda, ou mesmo o mal do século” (EHRENBERG, 2000, p. 9). Pensar, por exemplo, o uso copioso do significante “depressão” como uma espécie de acontecimento discursivo nos leva a não somente intencionar compreendê-lo naquilo que a psicanálise poderia nos informar a seu respeito mais também a um lugar que esse termo ocupa no funcionamento social. Segundo Pêcheux (1997a [1983]), o acontecimento discursivo se caracteriza por estar relacionado a uma irrupção histórica, ou seja, é preciso num determinado momento atribuir sentido a um evento. Podemos, diante disso, tentar articular o acontecimento discursivo à teoria psicanalítica na forma como tanto Freud trata o trauma como quando Lacan trata das categorias

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lógicas: seu aspecto de novidade ao mesmo tempo em que se relaciona àquilo que não cessava de não se escrever. O funcionamento do discurso é baseado naquilo que o antecede, dando a impressão de se destacar dessa anterioridade um discurso atual. Há uma retroação, um dobrar-se sobre si mesma, na cadeia de significantes capaz de engendrar uma nova significação. Ou ainda, trata-se do corte da banda de Moebius que dá origem à banda com duas superfícies. Ehrenberg (2000) supõe que a depressão ocupa o lugar que a psicose ocupava cinquenta anos atrás na Franca enquanto Melman (2008) a indica como substituta às neuroses de defesa na época de Freud: segundo o autor, sua alta incidência poderia nos revelar o lugar do inconsciente na contemporaneidade caracterizada pela liberdade total de expressão, que ele considera uma maneira de suspender o recalque38. Segundo Melman (2008, p. 41) [...] a carência das identificações simbólicas só deixa como recurso, para o sujeito, uma luta incessante para conservar e renovar insígnias cuja desvalorização e renovação são tão rápidas quanto as evoluções da moda, e isso enquanto ele mesmo está inexoravelmente entregue ao envelhecimento, como seu carro.

Depois de ‘tantas e colossais conquistas da humanidade’, não haveria mais nada no mundo que nos dissesse não. Segundo Melman (2008), não haveria a presença de um terceiro que botasse barra à relação dual. No entanto, entendemos que essa inexistência do terceiro suposta seria mais um recurso simbólico, uma amarra imaginária que tenta apagar uma falta que é impossível de ser apagada por meio de um reforço do eu. Segundo Melman (2008, p. 165), “doravante, o que, simplesmente, o eu [moi] tem que preservar é sua presença, sua unidade, seu valor, de um ponto de vista não mais ético, mas simplesmente estético”. Esse discurso de conservação e fascínio frente ao eu e sua verdadeira natureza por meio de um distanciamento do mundo e conexão ao ‘próprio eu’ está bastante presente nos livros de autoajuda: Todos nascemos com um potencial infinito de realização. Porém, à medida em que somos educados, durante a infância e adolescência, perdemos a rota original da nossa própria existência. Deixamos de fazer aquilo que nos realiza e passamos a agir de acordo com as crenças dos outros [...]. Para continuar merecendo essa aprovação, progressivamente abandonamos nossas vocações e passamos a realizar os desejos alheios (SHINYASHIKI, 2012, p. 30).

38 Sabemos que recalque na teoria psicanalítica não está relacionado simplesmente a poder ou não poder falar algo, e sim à forma de negação característica da neurose. Portanto, para fins de análise da contemporaneidade pelo viés da psicanálise, levamos em conta as pontuações do autor (MELMAN, 2008) fazendo as ressalvas que acreditamos serem necessárias.

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Enquanto para a Psicanálise o desejo alheio é a condição do próprio desejo (desejo de desejo do outro), nesse discurso, ele aparece como impeditivo de um desejo autêntico, que encontra sua origem no próprio sujeito e naquilo que é sucessivamente apagado. Para que isso não ocorra é preciso modificar-se de maneira a não permitir que os desejos dos outros atrapalhem o seu próprio. A partir de observações dos modos de vida atuais, Melman (2008) propõe que o período de denegação (Verleugnung) típico do infantil (perverso e polimorfo) tenderia a se estender de tal maneira que poderia vir a substituir o recalque (operação de negação característica da neurose). É importante lembrar que quando se fala em perversão generalizada ou falência do Pai, não se trata de uma sociedade que não é mais composta em sua maioria por neuróticos. Pelo contrário: é precisamente a neurose que se caracteriza por essa crença de que a perversão pode vir a realizar a presença do objeto, por meio do desmentido fetichista, que desmente a falta de objeto que poderia vir a completar o sujeito. Entretanto, como não se trata verdadeiramente de uma estrutura perversa e sim, de uma fantasia neurótica, seria possível pensar que os avatares de objeto que fazem de conta ocupar esse lugar de objeto a por meio da sua presença poderiam ser considerados fonte de angústia? A angústia por sua vez seria entendida como a “presença do objeto” ou ainda “falta da falta”. Se a perversão possui alguma semelhança com a fantasia neurótica, não por acaso, Lacan irá aproximar fantasia e angústia (LACAN, 2005 [1962-1963], p. 12), “vocês verão que a estrutura da angústia não está longe dela [da fantasia], em razão de ser exatamente a mesma”. Ainda que Freud coloque o mal-estar na civilização como um preço a se pagar quando se vive em sociedade e que Lacan coloque o saber-fazer com a falta um saber construído ao final da análise, o que uma vertente da psiquiatria e grande parte das publicações de autoajuda querem nos convencer hoje é a de que é possível ser completamente feliz. Talvez não só possível ou mesmo desejável, mas sim obrigatório. Shinyashiki (2012, p. 20) escreve em seu livro de autoajuda: “Está na hora de fazer acontecer a revolução da felicidade. [...] Você tem o direito de ser feliz!”. Nesse contexto de um novo sofrimento, a psiquiatria viria a exercer um papel no qual, qualquer tipo de sofrimento deverá ser sanado com o recurso a avançados medicamentos. Melman (2008) conta de uma senhora que o procura depois de um ano de haver perdido os pais num curto intervalo entre as duas mortes. O autor descreve seu estado como petrificado pelo uso de neurolépticos que não haviam permitido que o trabalho de luto fosse realizado. Haveria atualmente uma confusão entre esses dois estados: o de luto e o de depressão.

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Vale lembrar que o luto pressupõe uma pausa entendida como altamente prejudicial ao modo de produção que exige a todo tempo que o sujeito esteja em movimentos, se adaptando da maneira mais rápida possível de modo a suprir as necessidades do mercado, cada dia mais flexível. Na esteira do fim das narrativas, pelo bem da cientificidade, os textos deixam de ser valorizados em benefício das imagens e números. Esse é o caso caricato da medicina na atualidade (já que a conversa com o médico é quase dispensável frente à avançada tecnologia dos exames laboratoriais), a ciência se coloca como regularizadora das condutas dos sujeitos. De acordo com Melman (2008, p. 132) A escrita científica, lógica e matematicamente determinada exclui seu percurso, expede para fora, recusa tudo o que tem traços de algum tipo de corte, de parasitagem, de erro, de inesperado. [...] Dispensa todo sujeito que fala, existe, ou mesmo vive. Ela é, de certa forma, suscetível de se organizar por ela mesma, como fazem as máquinas modernas, inclusive, se preciso, em detrimento daquele que colocou o programa na dita máquina. À diferença da linguagem na qual nos ‘banhamos’ desde o nascimento, a escrita científica se proíbe qualquer censura – um espaço que viria escapar a sua captura – e isso vem foracluir o espaço suscetível de constituir o lugar de esconderijo de uma existência, logo, a própria possibilidade de um ‘efeito de sujeito’.

Ou seja, há, na escrita científica uma intenção de apagamento do sujeito. Sabemos, entretanto que isso é impossível, ainda que produza efeitos de verdade e transparência. É porque o cientista está afastado do sujeito que Melman (2008) o distancia do xamã, de quem a prática se relaciona estreitamente à própria subjetividade. Dá ainda como exemplo de exclusão do sujeito as novas práticas da medicina que em prol de uma tecnicidade laboratorial dispensa a fala do sujeito sobre seus sintomas, o que criaria segundo Melman (2008, p. 133) uma “situação paradoxal: por um lado, se desenvolve uma medicina cada vez mais rigorosa, e sem dúvida eficaz, maravilha de cientificidade; e, de outro lado se multiplicam as práticas mágicas dos terapeutas de todos os tipos!”. As formas de relação entre os indivíduos, a introspecção, a atenção maior às frustrações, o relato de maneiras de viver a intimidade, geram uma espécie padrão desejável e “possível” de felicidade. Nem seria preciso lembrar que essa possibilidade é hipertrofiada com a o avanço da psiquiatria, a medicalização, e a invenção do psicólogo. Contraditoriamente, de certa maneira é a profilaxia mesmo que estimula a ansiedade. A atual previsão de aumento do índice de diagnósticos de depressão é, por exemplo, algo que não deve ser relevado. A aproximação da Psiquiatria à farmacologia tem se provado eficiente ainda que em termos no que concerne à cura dos sofrimentos psíquicos atuais, como a depressão, transtornos do pânico, ansiedades etc. 145

De acordo com Freud (2011b [1930]) duas técnicas que prometem satisfações substitutivas à impossibilidade de ser completamente feliz são a fuga para a doença (neurótica ou mesmo a psicose) e a intoxicação crônica. Freud (2011b [1930]) indica a intoxicação como o tratamento mais cru, mas também mais eficiente no tratamento do sofrimento humano, já que ele tem origem no arranjo do próprio organismo. Essa opinião não estaria muito distante do projeto atual de medicalização. Em 2011, uma a cada quatro mulheres dos Estados Unidos é tratada com antidepressivo39. Esse índice há cerca de 30 anos era irrisório e ainda hoje apresenta crescimento, não podendo ser considerada a estabilização desse processo. Freud (2011b [1930]) já apontava para duas possibilidades desse processo de intoxicação que visa combater o mal-estar: produção de sensações de prazer e incapacidade de acolher as sensações de desprazer. Propôs ainda (de maneira curiosamente visionária) a possibilidade de que fossem desenvolvidas substâncias que produzissem os efeitos da embriaguez sem que fosse preciso a ingestão de álcool. Chega a ser pertinente nos perguntar se Freud estaria ou não de acordo com a revolução farmacológica na atualidade, já que afirma que É muito lamentável que esse lado tóxico dos processos psíquicos tenha até agora escapado à exploração científica. O serviço dos narcóticos pela luta pela felicidade e no afastamento da miséria é tão valorizado como benefício, que tanto indivíduos como povos lhes reservaram um sólido lugar em sua economia libidinal. A eles se deve não só o ganho imediato do prazer, mas também uma parcela muito desejada de independência em relação ao mundo externo. Sabe-se que com a ajuda do ‘afasta-tristeza’ podemos nos subtrair à pressão da realidade a qualquer momento e encontrar melhores condições de sensibilidade (FREUD, 2011b [1930], p. 22, grifo nosso).

No entanto, Freud (2011b [1930]) imediatamente aponta aos perigos e nocividades de tais afasta-tristezas, pois podem acabar sendo motivo de desperdício de energias que poderiam ser utilizadas em fins que nos ajudariam a desenvolver nossa sociedade. Talvez fosse o caso de pensar a diferença entre o consumo de drogas na década de 70 e a atual adição. Não se trata mais de um uso que tem como finalidade a expansão da mente ou o desenvolvimento de capacidades criativas ou da sensibilidade. Atualmente a droga pode ser considerada “um objeto que é um subproduto da ciência”, não é mais um “o fungo que se deve buscar sei lá em que reduto do México” (BRODSKY, p. 47). Ainda que encontremos pessoas envolvidas com esse uso, seja comprando, produzindo ou vendendo, elas não formam uma comunidade, já que é o gozo que as mantém separadas. Ainda sobre o consumo de drogas que visam aplacar o mal-estar, não podemos deixar de considerá-la uma saída bastante utilizada nos dias de hoje, talvez mais mesmo que nos tempos em 39

Índice divulgado pela distribuidora farmacêutica americana Medco Health Solutions.

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que Freud empreendia seus estudos. Há atualmente o índice de incidência de doenças mentais mais alto já conhecido, seja porque hoje temos critérios diagnósticos (encontrados em manuais como o DSM) tão abarcantes dos quais dificilmente um indivíduo qualquer, mesmo que apresente um grau de adaptação social razoável, escapa, ou porque hoje mais pessoas têm acesso aos serviços e atendimentos profissionais de saúde que identificam esse tipo de situação. Consequentemente o que se observa é o aumento do consumo de drogas legais, o boom do diagnóstico e tratamento de adições diversas. Entretanto, se pensamos no uso desenfreado de antidepressivos, fica difícil estabelecer o limite entre o tratamento farmacológico decorrente do diagnóstico de doenças mentais e drogadições a esse mesmo tipo de medicamento. Segundo Skriabine (1998, p. 233), a depressão, que englobaria uma variedade de sofrimentos diferentes entre si, seria “apenas um sintoma do mal-estar na civilização proveniente da fragmentação do discurso da ciência e da precariedade, enfatizada por Lacan, do nosso modo de gozo”. Segundo o autor, a tristeza de que trata Lacan (1993) em Televisão, tratar-se-ia de “uma escapatória, de uma falta simbólica, de uma renúncia do sujeito que cede ao seu desejo diante do gozo desprendendo-se do simbólico e entregando-se ao gozo” (SKRIABINE, 1998, p. 234). A ideia do imperativo moral categórico, ou seja, de que o homem por meio da sua razão pode chegar a uma conduta que possa corresponder a uma lei universal, é a forma tomada a partir da modernidade: estando Deus excluído, será preciso tomar as decisões a respeito da própria conduta nos limites da razão do homem. Se esse pensamento crítico não funciona, o homem se depara com uma falha diante da qual não sabe mais como proceder. Diante dessa falta de sentido, o sujeito poderia padecer das formas mais distintas da chamada “depressão”. De uma forma geral, Skriabine (1998, p. 235, grifos do autor) relaciona a depressão ao processo de alienação: O sujeito sofre precisamente do seu status de sujeito e ele se vê como um fantoche à mercê de um Outro onipresente. A depressão enquanto defesa contra o esmagamento desse Outro se traduz por uma espécie de hors service do Outro: o Outro não responde mais, o sujeito não associa mais nenhum saber vale para ele, a interpretação deixa de ser produtiva.

O autor aponta ainda para o fato de que o significante “depressão” não seria inédito, mas teria alcançado um grau de difusão maior na contemporaneidade. A psicanálise tendo sido a ciência contemporânea a esse acontecimento discursivo encontra algumas maneiras de justificálo: quanto à diversidade de estruturas ou quanto ao gozo e as relações do sujeito com o objeto. A que nos interessa aqui é em especial essa segunda. Se o sujeito é caracterizado pela falta inerente à sua concessão à linguagem, o modo como o sujeito lida com essa falta poderia justificar o aparecimento de um tipo de sintoma como o da “depressão”. 147

Um ser de falta não tem duas escolhas para situar a sua relação ao gozo: ou ele age apesar da falta, alegando a função estruturante e criadora dela, assumindo a castração e se tornando um sujeito desejante – esta é a via do desejo; ou, ao contrário, ele preenche a falta encobrindo-a ao preço de uma renúncia ao desejo, ao preço da renúncia pulsional em troca de uma saturação de gozo – esta é a via da depressão. Entretanto, Pondé (2010), ao elaborar em ensaios aquilo que ele chama de cenas de uma filosofia do afeto, de certa forma aproxima a escolha (ainda que não se trate aqui de uma escolha consciente) do sujeito pela via do desejo ao “super-homem” de Nietzsche: “alguém que é o único responsável por seus valores e suas decisões, marchando em solidão contra a indiferença cósmica e histórica”. Retomando a afirmação de que é a partir do Renascimento que se passa a acreditar que todos são indivíduos, Pondé (2010, p. 74-75) escreve: Movidos pelos avanços da ciência e pela ampliação da circulação dos livros, os burgueses, esses amantes da competência individual contra a herança aristocrática de sangue, pregam a virtude individual como experiência histórica total. [...] a mídia e a arte vendem modelos de individualidade nas liquidações de material de autoajuda [...].

Diante dos atuais índices de incidência de depressão, será que podemos considerar a depressão uma epidemia contemporânea? A ideia de epidemia normalmente está relaciona à do contágio. No entanto, como falar em contágio se não encontramos os vetores clássicos da medicina (vírus, bactérias)? Nossa hipótese é de que aqui estamos no campo da identificação. Toda a discussão atual de declínio do Pai está relacionada em grande parte à ascensão de uma ideia de sujeito autônomo e livre, reforçada pelos discursos capitalistas e da ciência. No entanto, Lacan adverte que o neurótico pode prescindir do pai desde que se sirva dele. A essa altura já não nos surpreende encontrar mais um paradoxo. O pai aparece no Édipo mediado pelo discurso da mãe e tem a função de garantir um sentido, apaziguando uma relação ao mesmo tempo em que faz um corte entre os dois extremos dessa relação. A partir dessa incidência é possível garantir uma orientação ao gozo que deixa de ser absoluto. O imperativo de gozo da época atual de certa maneira confrontaria esse pai, que passaria ao “declínio”. Nossa hipótese é de que um acontecimento discursivo paradoxal (livros de autoajuda) relacionado à autonomia do indivíduo seria um índice da impossibilidade desse declínio de maneira absoluta ao mesmo tempo em que encontra a confirmação de que só se prescinde do pai a medida em que se serve dele. É só na medida em que o sujeito coloca em

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xeque os ideais, inclusive de autonomia do indivíduo, que pode atravessar o plano da identificação. Ao contrário, o que acontece com os livros de autoajuda é a permanência do Ideal que ocupa um lugar central. É a partir desse Ideal que podemos localizar a identificação que conecta os indivíduos de uma classe. Essa identificação funcionaria como um vetor desses ideais. Ao retomar aqui vetor, estamos restabelecendo os critérios de uma epidemia atual relacionada à depressão. Vidal (2011, p. 3) escreve que A epidemia é um fantasma da cultura. Mas podemos encontrar também epidemias não-infecciosas a partir dos fenômenos de identificação e que expressam claramente o modo como se manifesta a angústia na atualidade. É o que se chamará [....] a dimensão social do sintoma. Os problemas de identidade permitem debater este problema já que se trata da extensão sobre a população de ‘o mesmo’ o que faz do sintoma, o sintoma compartilhado. Desde este ponto, o Ideal, o significante mestre, o discurso e o objeto são as estrelas que orientam a reflexão. Também a nomeação, o nome comum, o fazer-se um nome, temas complexos do último ensino de Lacan.

A atualidade de O mal-estar na civilização Em O mal-estar na civilização, Freud (2011b [1930]) já lança uma suspeita sobre os benefícios ligados à natureza da civilização, que em princípio deveria proporcionar a melhorias na vida dos homens, protegendo-os da natureza e regulando os sentimentos entre os homens, mas que ao final, causa um mal-estar, uma vez que a todos é imposta uma amputação de gozo. A palavra ‘civilização’ é entendida por Freud (2011b [1930], p. 34) como aquilo que “designa a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si”. Na civilização, portanto, o homem troca um pouco da sua felicidade, relacionada à satisfação dos instintos, por um pouco de segurança. Portanto, se por um lado a civilização é aquilo que é criado para oferecer aos homens a segurança necessária para o seu bem-estar, por outro lado, é justamente o seu estabelecimento o causador de grande parte da miséria humana. Freud (2011b [1930]) estabelece dois marcos históricos nos quais deve haver ocorrido uma condenação hostil à civilização: 1. A vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs, pois nesse contexto haveria uma valorização da vida eterna em detrimento da vida terrena. 2. A tomada de conhecimento dos mecanismos da neurose, proveniente da incapacidade do homem de suportar as privações impostas pela vida em sociedade. 149

O que se observaria atualmente é uma tentativa de burlar qualquer elemento que venha impedir o que seria a felicidade “plena” do homem. Segundo Melman (2008, p. 37) Por uma singular inversão, o que se tornou virtual foi a realidade, a partir do momento em que é insatisfatória. O que fundava a realidade, sua marca, é que ela era insatisfatória e, então, sempre representativa da falta que a fundava como realidade. Essa falta é, doravante, relegada a puro acidente, a uma insuficiência momentânea, circunstancial, e é a imagem perfeita, outrora ideal, que se tornou realidade.

Não há um lugar previsto á frustração: diante das infinitas possibilidades de sucesso, qualquer fracasso é entendido como atípico, uma falha que não deveria estar lá. O que se observa diante disso seria o retorno de uma autoridade que ao contrário do que se poderia imaginar não necessariamente sob a forma de uma figura despótica, mas sim daquilo que Melman (2008, p. 38) chamaria de um fascismo voluntário, não um fascismo imposto por um líder ou uma doutrina, mas uma aspiração coletiva ao estabelecimento de uma autoridade que aliviaria da angústia, que viria enfim dizer novamente o que se deve e o que não se deve fazer, o que é bom e o que não é, enquanto que hoje estamos na confusão.

A este propósito, Pondé (2011) escreveu Muita gente acha que Aldous Huxley, em seu livro ‘Admirável Mundo Novo’, se enganou, porque o mundo não marchou em direção a regimes totalitários. Eu acho que ele acertou em tudo inclusive na possibilidade de governos totalitários. [...] Além do problema do governo centralizador, o equívoco em achar que Huxley errou está em não perceber que a chave do controle das nossas vidas não está em formas centralizadoras de governo, mas em não percebermos que somos nós mesmos que pedimos controle sobre nossas vidas em troca de formas variadas de felicidade e segurança.

Com o avanço das ciências naturais, os homens passaram a exercer um controle jamais imaginado sobre a natureza. Entretanto, não se sentem mais felizes, colocando em xeque a própria noção de progresso. Conclui-se que essa, portanto, não seja uma condição única para a felicidade, ainda que os progressos científicos apresentem um lugar privilegiado na nossa economia psíquica. Quando ao progresso, Freud (2011b [1930]) com muita perspicácia já havia alertado que não terminaria no “ano da graça de 1930”. De lá para cá, muito foi feito para que o homem se aproximasse mais ainda de ser Deus, sem que, no entanto, fosse garantida a sua felicidade. Freud (2011b [1930]) fala em um prazer barato proporcionado pelo avanço da ciência e desenvolvimento de novas tecnologias como o telefone, por exemplo, que permite a um pai que ouça a voz de um filho distante que lhe traz boas notícias. O prazer barato é ilustrado na anedota da perna despida que é colocada para fora em uma noite fria, para em seguida ser coloca de volta 150

sob as cobertas, gerando uma sensação de prazer em contato com o calor. Freud (2011b [1930], p. 33) escreve que “não havendo estradas de ferro para vencer as distâncias, o filho jamais deixaria a cidade natal, não seria necessário o telefone para ouvir-lhe a voz”. Julgar se homens em períodos anteriores foram mais ou menos felizes não é uma tarefa simples, já que não é possível fazer uma transposição objetiva das exigências e das condições de cada época para a que vivemos. A constituição psíquica transladada somente não poderia ser vir de critério objetivo (FREUD, 2011b [1930]). Não se trataria, portanto, de uma crítica nostálgica a que aponta a impossibilidade de felicidade no momento atual. Nem mesmo de dizer que em momentos anteriores esse projeto de felicidade parecia mais próximo. Como o dia de hoje é considerado o ápice de um desenvolvimento progressivo, as condições atuais seriam as mais adequadas para a concretização desse projeto de felicidade plena. No entanto, não parece ser bem esse o resultado final. O homem haveria cumprido o desejo de qualquer conto de fadas quando por meio de sua técnica e ciência foi capaz de domesticar a natureza, fazendo com que ela funcionasse em seu benefício. Trata-se de uma conquista, pois o homem entendido como um “fraco animal” foi capaz de aos poucos personificar os ideais de onipotência e onisciência antes restritos aos deuses. “Atribuiu-lhes [aos deuses] tudo o que parecia inatingível para seus desejos – ou que lhe era proibido. Pode-se dizer então que os deuses eram ideais culturais. Agora ele aproximou-se bastante desse ideal, tornou-se ele próprio quase um deus” (FREUD, 2011b [1930], p. 36). De certa maneira, são as conquistas do homem (o desenvolvimento técnico e científico) que fazem com que o lugar de Deus se esvazie e possa ser reocupado pelo próprio homem. Não se trataria tanto da ideia de que “Deus está morto” quando daquela segundo a qual os deuses estão corporificados no próprio homem. Por isso o sentido forte de autonomia, autorregulação e autogestão presente nos discursos de livros de autoajuda. Se o homem grego estava submisso às regras dos deuses e ao seu destino, hoje, ele é seu próprio deus conforme podemos observar no livro de autoajuda Viver em liberdade de Subirana (2011, p. 19): “Viver em liberdade é dirigir sua própria vida. Segurar as rédeas da vida e saber usálas. O que você faz está orientado a atingir seus propósitos. Você não vive à mercê dos outros. Escolhe cada passo conforme o que se propõe. Tem clareza sobre o que quer e sobre as decisões que toma”. Além disso, Freud (2011b [1930]) destaca o aspecto benéfico da ordem, que permite ao homem aproveitar melhor o tempo e espaço poupando energia psíquica, no entanto, aponta para a tendência do homem à negligência da ordem estabelecida e à irregularidade de suas atividades. Cita a ordem como “uma espécie de compulsão de repetição que, uma vez estabelecida, resolve 151

quando, onde e como algo deve ser feito, de modo a evitar oscilações e hesitações em cada caso idêntico” (FREUD, 2011b [1930], p. 38). Aqui fica clara uma relação entre essa preocupação com a ordem que visa ‘homogeneizar a economia psíquica’ dos diferentes membros, de uma comunidade de maneira a assegurar uma coesão, e o receituário que encontramos nos livros de autoajuda. Ambos somente são possíveis se estabelecermos uma relação de identidade e equivalência entre os casos. Cury (2007, p. 84) escreve em seu livro de autoajuda Treinando a emoção para ser feliz: “O paciente [de síndrome do pânico] passa a ter medo de ficar em público, de frequentar festas, bancos, reuniões sociais”. É pela equivalência sintomática que o autor propõe fórmulas descritas como Técnicas para navegar nas águas da emoção a serem seguidas para a remissão dos sintomas: “Primeira: faça um stop introspectivo nos focos de tensão. [...] Segunda: Enfrente seu medo. [...] Terceira: Nunca se diplome na escola da vida. [...] Quarta: Seja um especialista em investir em qualidade de vida. [...] Quinta: Reflita frequentemente sobre a grandeza da vida. [...] Sexta: Jamais desista: Você pode vencer” (CURY, 2007, p. 105-107). Freud já aponta a falta de disciplina do indivíduo ao falar de sua relação com o trabalho. Segundo ele (2011b [1930], p. 38, grifo nosso), as pessoas pendem “naturalmente à negligência, irregularidade e frouxidão no trabalho, e a duras penas tenham de ser educadas na imitação dos modelos celestes”. Justamente é disso que se trata a instrumentalização presentes nos livros de autoajuda: capacitam seus leitores a imitarem modelos que devem ser seguidos, executando comportamentos que não são naturais. Freud (2011b [1930]) afirma que a cultura é a primeira maneira que os homens encontraram para tentar regular as relações entre si, retirando-as da arbitrariedade de indivíduos, usualmente mais fortes40. O “Direito” é estabelecido substituindo o poder do indivíduo pelo poder da comunidade, limitando as possibilidades de gratificação para todos os indivíduos. Consequentemente, passa-se a exigir justiça, “isto é, a garantia de que a ordem legal que uma vez se colocou não será violada em prol de um indivíduo” (FREUD, 2011b [1930], p. 40). Falar em liberdade, portanto é falar em uma cessão de liberdade individual na busca de coesão social que visa garantir a sobrevivência e conforto dos homens. Para Freud (2011b [1930], p. 41) “A liberdade individual não é um bem cultural. Ela era maior antes de qualquer civilização, mas geralmente era sem valor, porque o indivíduo mal tinha condição de defendê-la”. Paradoxalmente os livros de autoajuda estão pautados em uma liberdade intrínseca à condição humana. Uma liberdade que está lá para ser resgatada. A subjetividade suposta aqui se encontra submissa por vontade própria, mesmo que não o saiba, e encontra nessas publicações 40

Vê-se claramente aqui uma influência da obra de Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social.

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um receituário libertador. Freud (2011b [1930]) considera o poder do amor como um forte agregador social, já que “o amor sexual (genital) proporciona ao indivíduo as mais fortes vivências de satisfação, dá-lhe realmente o protótipo de toda felicidade”. No entanto, por conta da extrema dependência que se pode ter desse objeto (parte do mundo exterior), o indivíduo fica exposto ao sofrimento máximo diante da sua perda. Por conta disso “os sábios de todas as épocas desaconselharam enfaticamente esse caminho” (FREUD, 2011b [1930], p. 46). De certa maneira poderíamos entender a fugacidade dos relacionamentos atualmente por essa via de investimento libidinal. Na medida em que a pessoa é treinada para facilmente deixar de investir sua libido em um objeto que a frustra, ela tem menos chances de sucumbir desse sofrimento. Nesse quesito, os livros de autoajuda não economizaram páginas para convencer seus leitores da moderação em relação ao amor, como podemos reconhecer por exemplo a partir da publicação Manual para não morrer de amor, de Walter Riso (2012, p. 19-20), no qual encontramos: Identificar-se com uma pessoa, mental e emocionalmente, é uma sorte, uma sintonia extraordinária e quase sempre inexplicável. Aristóteles dizia que amar é alegrar-se, mas é também surpreender-se e deslumbrar-se perante um clique que se produz quando se encontra aquela pessoa que não estava nos nossos planos. Daí a pergunta típica de um apaixonado ao outro: ‘Onde estavas antes de nos conhecer-mos?’ ou ‘Como podes ter existido sem que eu o soubesse?’ Amar é viver mais e melhor, se o amor não for doentio ou desequilibrado. No amor saudável não há lugar para a resignação ou para a mortificação e se tiver de se anular ou destruir para que o seu companheiro ou companheira seja feliz, é porque está com a pessoa errada.

Para Freud (2011b [1930]) uma solução seria, portanto, em contraposição ao amor genital, o desenvolvimento de um sentimento uniforme, ou seja, o investimento em diferentes objetos que tenham menores chances de virem a frustrar o indivíduo, fazendo com que o instinto tenha sua meta (genital) inibida. Um exemplo desse tipo de sentimento estaria em São Francisco de Assis. No entanto, ao contrário da ideia de que o amor para com todos os homens seja a atitude mais excelsa que pode ter um homem, Freud (2011b [1930], p. 47) aponta para dois problemas: “Um amor que não escolhe parece-nos perder uma parte de seu valor, ao cometer injustiça com o objeto. Além disso, nem todos os humanos são dignos de amor”. Apesar de seu caráter agregador, amor e civilização encontram dificuldades na medida em que a cultura impõe necessariamente restrições ao amor. Muitas proibições incidem nas atividades sexuais sobre a qual haveria uma tentativa de homogeneização por parte da cultura. Essa exigência de homogeneização marginalizaria uma considerável parte dos seres humanos cujas atividades sexuais seriam consideradas ilegítimas, gerando um sentimento de 153

injustiça e fazendo com que esses seres se voltassem contra a civilização. No entanto, não somente a civilização parece nos levar distantes da satisfação: “algo da essência da própria função nos recusa a plena satisfação e nos impele por outros caminhos” (FREUD, 2011b [1930], p. 51). Exegeses contemporâneas Quem te ciência e arte, tem também religião; Quem essas duas não tem, esse tenha religião! Goethe, Zahmen Xenien IX Em O futuro de uma ilusão, Freud (2011 [1930], p. 17) está interessado em compreender “o sistema de doutrinas e promessa que de um lado lhe [ao homem comum] esclarece os enigmas deste mundo com invejável perfeição, e de outro lhe garante que uma solícita Providência velará por sua vida e compensará numa outra existência as eventuais frustrações desta”. O verso acima citado por Freud em O mal estar na civilização mostra como a religião pode ser substituída pela ciência ou pela arte “no que toca o valor a vida” (FREUD, 2011b [1930], p. 18). Já pudemos observar que de acordo com Freud ciência e religião são permutáveis, ou seja, se encontram em uma relação na qual um pode vir a substituir o outro na explicação sobre a finalidade da vida. Aqui podemos encontrar outra justificativa para nossa hipótese de que o discurso científico, no qual se alinha ainda que de maneira capenga, o discurso de autoajuda, substitui ou reocupa o lugar deixado vago pelo discurso religioso e seu sistema de crenças. Esse sistema de explicações seria necessário diante das muitas decepções que quem vive encontra pelo caminho. Para que seja possível suportar a vida, o homem necessita de paliativos. Freud (2011b [1930]) lista três: 1. Poderosas diversões; 2. Gratificações substitutivas; e, 3. Substâncias inebriantes. Tanto a arte quanto a atividade científica estariam ligadas às gratificações substitutivas, pois oferecem ilusões frente à realidade que causa dor ao homem. Sua eficiência conta com um elemento fundamental que é a importância da fantasia na vida psíquica do homem. De certa maneira, os sistemas religiosos tenderiam a estabelecer uma finalidade da vida do homem que não está presente de maneira natural. Nessa mesma linha, podemos colocar a ciência como uma construção de interpretações que tenta fazer da vida mais suportável, seja dando a ela a esperança 154

de sanar todos os males à qual estamos expostos (doenças, por exemplo), seja dando explicações que ‘prescindem da fé’, como a origem das espécies. Sobre as perguntas acerca da finalidade da vida, Freud (2011b [1930], p. 19) encontra uma resposta com bastante facilidade: “É difícil não acertar a resposta: eles buscam a felicidade, querem se tornar e permanecer felizes. Essa busca tem dois lados, uma meta positiva e uma negativa; quer a ausência de dor e desprazer e, por outro lado, a vivências de fortes prazeres”. Tratar-se-ia, portanto, do programa traçado pelo princípio do prazer, ainda que esteja em desacordo com o arranjo universal. Bauman (1998) retoma a obra O mal-estar na cultura, e aponta à afirmação freudiana de que a civilização (ou a modernidade, para Bauman) está construída sobre a renúncia aos instintos, havendo, portanto, do lado da ânsia pela liberdade individual, algo que ameaça a própria cultura. O princípio do prazer, nesse caso, só pode aparecer como princípio de realidade, e as inclinações “naturais” dentro daquilo que é permitido pelo conjunto de normas que regem as interações sociais. Fazer com que liberdade e cultura sejam coincidentes (como é o caso, por exemplo, da sociedade americana) é não só uma maneira de paradoxal de reforçar a maneira como os homens estão organizados (e consequentemente a maneira como abrem mão da sua liberdade), mas uma maneira de negar ou dissimular a contenção de liberdade, ou mesmo, para tratar em termos lacanianos, o fato de que é preciso abrir mão de parte de gozo absoluto para fazer parte do simbólico. Felicidade como utopia e seus genéricos como produto [...] não é preciso lembrar-lhes a anedota do personagem imigrado da Alemanha para a América, a quem se pergunta – Are you happy? Oh Yes, I am very happy, I am really very, very, very happy, aber nicht glücklich!41 Jacques Lacan, em Aula I (Nosso Programa) do Seminário 7 Há uma distância entre a felicidade devaneada por Madame Bovary, plena e abstrata, uma aspiração de ordem sublime, e a felicidade medicamente tratável dos consultórios médicos ou de aconselhamentos psicológicos.

41 “Você está feliz? Oh sim, eu estou muito feliz, Eu estou realmente muito muito muito feliz [em inglês], mas não estou feliz [em alemão]” (tradução nossa).

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A primeira conta com a frustração, com a decepção, com a angústia. Madame Bovary e chega a rir-se da personagem da peça que assiste tendo em conta que está a par da impossibilidade de encontrar e permanecer junto à felicidade. Porém aquela felicidade, sem dúvida, era uma mentira imaginada ara desespero de qualquer desejo. Conhecia agora a pequenez das paixões exageradas pela arte. Esforçando-se portanto para desviar seu pensamento, Emma queria ver naquela reprodução de suas dores apenas uma representação plástica feita para enganar os olhos e sorria interiormente com piedade desdenhosa quando, no fundo do palco, sob o reposteiro de veludo, apareceu um homem de capa preta (FLAUBERT, 2007, p. 198).

A segunda transforma o caráter irremediável das frustrações das quais o sujeito não pode se proteger todo tempo em uma falha, um mau funcionamento. Aqui, a felicidade abandona o registro da impossibilidade e da contingência para fazer parte do registro da impotência. Essa impossibilidade seria determinada pelo fato do sujeito, em sua constituição, necessariamente abrir mão de parte do seu gozo – absoluto, a princípio – para fazer parte da comunidade, do mundo simbólico, regido pela falta. Já a felicidade entendida a partir da contingência estaria relacionada ao seu caráter episódico, descrito por Freud (2011b [1930]). Tratase menos de um estado permanente que de um estado provisório contrastado com outros nos quais uma sensação de prazer não estava sendo experienciada. Freud (2011b [1930], p. 28) escreve: “O programa de ser feliz, que nos é imposto pelo princípio do prazer, é irrealizável, mas não nos é permitido – ou melhor, não somos capazes de – abandonar os esforços para de alguma maneira tornar menos distante a sua realização”. Devemos entender, no entanto, o programa de felicidade propagandeado pelo discurso dos livros de autoajuda, não como um programa similar ao do princípio do prazer, que não tem como finalidade a manutenção de um estado social mais ou menos coeso, mas como um programa de felicidade que pautado mais pela segurança e harmonia social serve a fins de administração do meio social. Nesse sentido, falar em felicidade a partir da obra freudiana não é a mesma coisa que o conceito de felicidade promovido (ou que promove) esse tipo de publicação. Freud atenta ao contraste entre os dois momentos como o maior índice ou como a única maneira possível de experienciar a felicidade. Aquilo que é comumente chamado de felicidade seria proveniente da satisfação de necessidades de maneira súbita e, portanto, só poderia ter uma existência episódica e nunca permanente. Lacan (1997 [1959-1960], p. 23) atenta à curiosidade sobre o termo felicidade que [...], em quase todas as línguas, apresenta-se em termos de encontro – tykhe. Menos em inglês – e mesmo assim é muito próximo. Existe aí alguma 156

divindade favorável. Felicidade é também, para nós, augurum, um bom presságio e um bom encontro42. Glück é gelück. Happiness é, no entanto, happen, é também um encontro, embora não se sinta aqui a necessidade de se acrescentar a partícula precedente marcando o caráter, propriamente falando, feliz da coisa.

Felicidade episódica por um lado, relacionada à vida e seus acontecimentos e encontros, e felicidade artificialmente fabricada por outro lado, como um objeto de consumo. Podemos pensar a partir desse ponto nas satisfações oferecidas pelos produtos do mercado (gadget) que têm uma curta vida útil. O imperativo de consumo é um dos mais fortes da nossa época atual. Podemos inclusive dizer que o sujeito modelo de nossos tempos seria o sujeito-consumidor. E aqui a punção entre sujeito e objeto continua exercendo a mesma função paradoxal de reunir e separar o sujeito do objeto que poderia vir a completá-lo. Se transpusermos esse funcionamento ao campo que nos interessa, aos discursos dos livros de autoajuda, podemos elaborar a seguinte hipótese: o que se oferece como objeto de consumo são personalidades, funcionamentos psíquicos, papéis, formas de vida etc. O sofrer nos ameaçaria a partir de três fontes: “do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com outros seres humanos” (FREUD, 2011b [1930], p. 20). Não é difícil perceber como de certa maneira, os discursos de autoajuda, na sua variedade característica inclusive, tentam dar conta dessas três fontes, cada um da sua maneira. Podemos considerar que, no entanto, eles dão maior atenção à terceira fonte de sofrimento, a das relações entre as pessoas, todavia, sempre fazendo parecer possível generalizar um método que possa apaziguar toda e qualquer relação interpessoal. Como fazer amigos e influenciar pessoas, de Dale Carnegie (2000), é um dos livros de autoajuda mais famosos e já chegou a vender mais de 10 milhões de cópias, tendo sido traduzido em trinta e seis línguas. Publicado em 1936, esse livro vem sido reeditado desde então sem cessar. Nele se pode ler: “Repita sempre para si mesmo: ‘Minha personalidade, minha felicidade e meu senso de valor dependem sobretudo da minha habilidade no tratar as pessoas’” (CARNEGIE, 2000, p. 29). A criação de normas ou mesmo de leis (‘científicas’, vide “As leis da atração”, por exemplo) tenta dar conta da ausência de um modelo natural de relação humana. Segundo Freud (2011b [1930], p. 30) o sofrimento também advém da “insuficiência de normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade”.

42

Bonheur, do francês felicidade, pode ser decomposto em bom (bom) e heur (hora, sorte ou fortuna), homófono a heurt (encontro brusco, choque) (Notas da tradução, p. 392).

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É a ausência dessas regras que permitem que uma publicação que tem como objetivos normatizar as relações humanas possa encontrar onde se enganchar. Carnegie (2000, p. 142), fazendo quase uma genealogia daquilo que apresenta em seu livro como a Regra de Ouro de qualquer relacionamento humano, escreve: Filósofos têm andado pesquisando sobre as regras das relações humanas por milhares de anos e, de toda pesquisa, apenas se desenvolveu um único preceito, o qual não é novo, é velho como a História. Zoroastro o ensinou aos seus adoradores do fogo, na Pérsia, três mil anos atrás. Confúcio pregou-o na China há vinte e quatro séculos. Lao-Tsé, o fundador do Taoísmo, ensinou-o aos seus discípulos no Vale Han. Buda pregou-o no Gange Sagrado quinhentos anos antes de Cristo. Os livros sagrados do Hinduísmo ensinaram-no mil anos antes. Jesus ensinou-o entre as montanhas de pedra da Judéia há dezenove séculos passados. Jesus resumiu-o em um pensamento – provavelmente o mais importante preceito no mundo: ‘Faça aos outros o que quer que os outros lhe façam’.

Ao final, recorre-se a um genérico discursivo, um provérbio, que visa generalizar o modo de fazer, criando uma regra que, apoiada em filósofos-pesquisadores, profetas, e os mais nobres homens da humanidade, adquire o valor de verdade absoluta. Além disso, a presença do imperativo já indicia a estabelece a possibilidade de acato por parte do leitor. Para Freud, a forma mais eficiente de evitar o mal-estar proveniente dessa fonte seria isolamento proposital. Essa situação seria decorrente da apreensão da realidade como a maior fonte de sofrimento possível, sendo preciso por isso romper os laços com ela. É o caso do eremita que dá as costas à vida em sociedade. Um exemplo clássico dessa tentativa encontra-se relatado no livro intitulado Walden – A vida nos bosques (1854), no qual Henry David Thoreau (2007) descreve sua experiência de isolamento no lago Walden durante pouco mais de dois anos que depois vieram a ser relatados em seus diversos aspectos (economia, solidão, visitas, etc) nessa obra. Nesse texto, em concordância com as ideias de Freud, Thoreau (2007, p. 58) cita a dificuldade inerente à vida social e a necessidade de criação de normas: Estar em companhia, mesmo com a melhor delas, logo se torna enfadonho e dispersivo. Gosto de ficar sozinho. Nunca encontrei companhia que fosse tão companheira como a solidão. [...] Em geral a associação é pouco valiosa. Encontramo-nos a intervalos muito curtos, sem que haja tempo de adquirir qualquer valor novo para oferecer um ao outro. Encontramo-nos três vezes por dia às refeições e nos damos mutuamente mais uma prova do queijo velho e rançoso que somos. Tivemos que chegar a um acordo quanto a um conjunto de normas, chamadas etiqueta e cortesia, a fim de tornar tolerável esse frequente encontro e evitar uma guerra declarada.

Freud não é muito otimista quando ao resultado de tal empreita. Os indivíduos que se dão a tal tarefa usualmente se tornam loucos, cujos delírios têm a função de corrigir aspectos indesejáveis da realidade. 158

Vale ainda citar que Thoreau, assim como outros antes e depois, também se preocupa em encontrar uma fórmula (universal?) para o sofrimento humano: Qual é a pílula que há de nos manter bem, serenos e satisfeitos? Não a do meu ou do teu bisavô, mas os remédios botânicos de nossa universal e vegetal bisavó, a natureza, com os quais ela tem se mantido sempre jovem, sobrevivido a muitos velhos Parrs e alimentado sua saúde com a fertilidade deles em decomposição. Para minha panacéia, em vez de um desses frascos de charlatão com mistura retirada do Aqueronte e do Mar Morto, vindos nas compridas e rasas escunas negras com aparência de vagões, que vemos às vezes transportando garrafas, deixai-me tomar um trago do ar puro da manhã. Ar da manhã! (THOREAU, 2007, p. 59).

Freud cita ainda a possibilidade de que mais de um indivíduo se dediquem a essa tarefa conjuntamente. Trata-se de delírios de massa, e podemos entender como aquilo que leva alguns grupos a formarem ou integrarem seitas religiosas. Diante da insatisfação com o mundo, torna-se desejável criar um outro mundo, com novas regras e novas relações de convivência. Algumas dessas comunidades com regras e princípios tão ‘originais’ que chegam ao extremo de, por exemplo, se suicidarem todos juntos. Ainda contra o mundo externo, Freud (2011b [1930]) propõe que haveria a possibilidade de submeter a natureza à vontade humana por meio do auxílio do ciência. “Então se trabalha com todos para a felicidade de todos” (FREUD, 2011b [1930], p. 21). Entretanto, podemos citar um curioso exemplo, que ainda que não sejam aqui considerados todos os pontos que um especialista poderia levar em conta para julgar a pertinência ou não do caso, que pode nos servir como uma anedota a respeito da tentativa de controle total da natureza por parte do homem. Em 2012, na Itália, seis cientistas formam condenados por “terem se enganado” a respeito do perigo sísmico em 2009 na área da cidade de Aquila. Em decorrência da morte de 309 pessoas, eles foram culpados de homicídio não premeditado. Verifica-se a tentativa científica de transformar todo e qualquer impossível em uma impotência (ALEMAN, 2011). Já que não se poderia considerar simplesmente uma tarefa impossível a de isolar todas as variáveis que podem vir a dar origem a tal fenômeno natural e controlar sua possível aparição ou não. Parte-se do pressuposto de que a ciência não só é possível e funciona como uma verdade, é preciso culpar o elemento humano. De certa maneira é o lugar no qual o sujeito pode se engajar no campo científico: como aquilo que pode vir a atrapalhar ou tornar ineficiente um método sem faltas. O sujeito com falhas, forcluído da ciência, como nos apontava Lacan, reaparece, pode ser reinscrito na falha, sendo novamente excluído por meio de mecanismos legais que tentam garantir a eficiência da ciência quando essa, sozinha, não dá mais conta de proteger o homem do próprio homem. 159

Ainda em relação à segunda fonte de mal estar, que é a do mundo externo, podemos citar novamente Dufour (2005) que pleiteado a posição de Outro à Natureza. Ainda que muito daquilo que ocorre na natureza, como desastres ecológicos, extinções de espécies, seja imputada responsabilidade ao homem e seus atos, há ainda alguns elementos incontroláveis e que fogem ao controle do homem. Essa impossibilidade de tudo controlar, no entanto não é sempre vivida de maneira tranquila pelo homem. Outra técnica que visa o afastamento do sofrimento exposta por Freud (2011b [1930]) são os deslocamentos da libido. O que se busca nesse caso é modificar as metas dos instintos de maneira a fazer com que cesse a frustração à qual eles estão originalmente fadados. O maior exemplo aqui é a sublimação: “o melhor resultado é obtido quando se consegue elevar suficientemente o ganho de prazer a partir das fontes de trabalho psíquico e intelectual” (FREUD, 2011b [1930], p. 23). Nesse sentido, caso os discursos de autoajuda ajudem a fazer com que seus leitores aproveitem de melhor maneira o trabalho ao qual se dedicam, não haveria dúvida de que poderia configurar-se como uma maneira de diminuir a fonte de angústia. Entretanto, é necessário levar ainda em conta a qualidade do trabalho que as pessoas desenvolvem. Sabe-se que a simples execução de tarefas de maneira repetitiva e pouco criativa não possibilita o processo de sublimação. De acordo com Freud (2011b [1930], p. 24), “a atividade profissional traz particular satisfação quando é escolhida livremente, isto é, quando permite tornar úteis, através da sublimação, pendores existentes, impulsos instintuais subsistentes ou constitucionalmente reforçados”. Há hoje toda uma vertente da Psicologia dedicada a localizar, discriminar e realocar os determinantes psíquicos que podem servir para uma determinada tarefa ou posto de trabalho. Trata-se da Orientação Vocacional e Ocupacional, e conta hoje em dia com técnicas ainda mais sofisticadas como é o caso do Coaching. Ao contrário da ‘antiquada’ técnica taylorista “o homem certo no lugar certo”, retirada de seu Os princípios de administração científica e que propaga a adequação de um trabalho alienado43, os atuais modelos de seleção e recrutamento realizados pelas equipes de Recursos Humanos44 (RH) visam à plena satisfação pessoal do profissional, supostamente oferecendo a ele a oportunidade de exercer livre e voluntariamente a atividade profissional que mais lhe trouxer prazer. 43 “Um dos primeiros requisitos para um indivíduo que queira carregar lingotes como ocupação regular é ser tão estúpido e fleumático que mais se assemelhe em sua constituição mental a um boi [...] o trabalhador mais adequado para o carregamento de lingotes é incapaz de entender a ciência que regula a execução desse trabalho” (TAYLOR, 1987, p. 68). 44 O uso de “recursos” para tratar de gente já traz em si germes de uma contradição ética e pistas de um lugar dado ao sujeito: o significante ‘recursos’ (no plural) até então é usualmente empregado para tratar das ‘bens, riquezas e meios de vida’ (PRIBERAM, 2012) passa a ser empregado para falar de pessoas.

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A escolha do trabalho nunca antes foi tão possível quanto hoje. A cada dia que passa torna-se mais fácil obter uma formação em uma área de interesse. O governo (não só no Brasil) supostamente oferece a oportunidade a qualquer cidadão de matricular-se em um curso superior ou técnico de sua livre escolha. No entanto, a cada dia cresce ainda mais o número de pessoas insatisfeitas com o trabalho sendo a o diagnóstico de depressão o segundo maior motivo de licença do trabalho na Europa. Por fim, uma técnica se distingue dessas anteriores: trata-se do que Freud (2011b [1930], p. 26) denomina “técnica da arte de viver”. Assim como as anteriores, também procura independência do “destino”, mas desloca a libido, modificando seu arranjo interno, sem, no entanto, prescindir dos objetos, mas sim fazendo com que esses objetos possam também ser fontes de prazer e felicidade. Essa técnica também não simplesmente evita o desprazer, ela se esforça em enfocar o esforço apaixonado e original. “Estou falando, claro, daquela orientação de vida que tem o amor como centro, que espera toda satisfação do amar e ser amado” escreve Freud (2011b [1930], p. 26). No entanto, afirma em seguida que ao contrário da satisfação sexual que nos serve de modelo de felicidade, não há um caminho mais fácil a levar ao sofrimento que o da busca da felicidade por meio do amor, pois a perda do objeto amado implica em um profundo desamparo. Até mesmo sobre essa perda, os livros de autoajuda têm algo a dizer: Às vezes, a ruptura não é tanto com algo exterior, mas é de alguma coisa que se rompe no seu interior. Você se pergunta como viveu até agora e começa a achar suas crenças limitadas. [...] aquilo sobre o que se apoiava não pode continuar sendo um pilar para você, e você se encontra em um vazio e sozinho (SUBIRANA, 2011, p. 88).

A previsão de Freud (2011a [1917], p. 47-49) a respeito do trabalho de luto – que deve ser cumprido sem uma intervenção externa – é a de que [...] sua incumbência não pode ser imediatamente atendida. Ela será cumprida pouco a pouco com grande dispêndio de tempo e de energia de investimento, e enquanto isso a existência do objeto de investimento é psiquicamente prolongada. Uma a uma, as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são focalizadas e superinvestidas nelas se realiza o desligamento da libido. [...] concluído o trabalho de luto, o ego fica novamente livre e desinibido.

No entanto, em Subirana (2011, p. 88) encontramos uma forte exigência de intervenção frente a esse processo usual de luto: “valorize o que lhe serviu até agora e, quando não precisas mais disso, tenha capacidade de soltar, deixá-lo ir, criando assim espaço para abraçar o novo”. Freud (2011b [1930]) também cita a fruição da beleza como não uma forma de proteção ao mal-estar, mas como uma compensação bastante poderosa. No entanto, a psicanálise teria pouco a dizer a seu respeito, exceto sobre a possível proximidade entre ‘beleza’ e ‘atração ao objeto 161

sexual’. Mas vale se perguntar se essa fruição é algo que pode ser instruído ao leitor como o faz Cury (2007, p. 37, grifos nossos) no livro de autoajuda Treinando a emoção para ser feliz: “Contemple o belo nos pequenos eventos da vida. [...] Treine dez minutos por dia contemplar a anatomia das flores, gastar tempo vendo o brilho das estrelas, experimentar o prazer de entrar no mundo das pessoas”. Ainda com relação à escolha de como ser feliz ou que caminho tomar diante do enfrentamento da impossibilidade tal empreita, Freud (2011b [1930], p. 29) qualifica a religião como um estorvo, na medida em que impõe [...] igualmente a todos o seu caminho para conseguir felicidade e guardar-se do sofrimento. Sua técnica consiste em rebaixar o valor da vida e deformar delirantemente a imagem do mundo real, o que tem por pressuposto a intimação da inteligência. A este preço, pela veemente fixação de um infantilismo psíquico e inserção num delírio de massa, a religião consegue poupar a muitos homens da neurose individual.

No sentido de infantilizar os indivíduos, haveria uma proximidade entre a religião e o discurso dos livros de autoajuda. Entretanto, podem ser diferenciados pelo lugar em que colocam o homem: se ele é um servo ou no máximo um coadjuvante, segundo os princípios religiosos, ele ocupa um lugar central protagonizando sua vida e suas escolhas, segundo o discurso religioso secular dos livros de autoajuda. Pondé (2010, p. 53), grande admirador de Schopenhauer, caracteriza a relação entre a (in)felicidade e a modernidade “dentre outros modos de descrevê-la, pela técnica denegativa dessa condição íntima humana (o ser-para-a-infelicidade), técnica esta que, em muitos casos, constituise num repertório variado de pseudoterapias a serviço do fetiche da felicidade”, entendido pelo autor como um “’falso’ universal” (PONDÉ, 2010, p. 52). A exigência de um universal pode ser articulada à utopia cuja discursividade de acordo com Goldenberg (1997) se relaciona ao discurso do mestre. Segundo Vaz (1992), o discurso do mestre é reconhecido como querer dominar, é um discurso de domínio, um discurso de consciência como dominante, como idêntica ao eu, funda uma eu-cracia [...]. O mestre é aquele que não quer saber nada porque não sabe o que quer. É preciso que as coisas funcionem conforme a lei. Identifica-se ao seu papel social.

Segundo Goldenberg (1997), as utopias se organizam “em razão de um horizonte ideal, proposto à comunidade como fim a ser alcançado para reencontrar o éden perdido; tomado enfim como Bem Supremo” (GOLDENBERG, 1997, p. 93). As utopias, mais que uma saída ao mal-estar na civilização, estariam no lugar de sua causa: é ela que faz a sociedade una. Organizados em torno de um ideal, as diferenças e conflitos são eclipsadas (pelo menos por um tempo). 162

Sem se aprofundar, Goldenberg (1997) sugere que o que essa utopia mascara é a sua exceção, necessária na formação da regra. A função da exceção deve ser entendida logicamente: só há regra quando há ao menos um que fica de fora que dá a borda/limite à regra. A consequência disso é que todo universal é uma ilha; ou ainda, […] a segregação é imanente ao movimento de instauração de um universal. Uma ideia mestra, então, de valor universal, que se for seguida à risca realizaria a felicidade de todos, só pode ser implementada por um discurso totalitário (GOLDENBERG, 1997, p. 94-95).

A mesma ideia, que dá a borda da comunidade, coloca alguns à sua margem. Ainda que os sujeitos se organizem ao redor desta ideia utópica de felicidade para todos, as suas singularidades interditam a execução dessa utopia. Diante da precariedade da organização do mundo, é necessária a eleição de um mestre. Se, como pudemos observar anteriormente, o declínio de organizadores como “religião”, “reinado”, “socialismo” etc, proporciona espaço à ascensão de outro: a ciência, o politicamente correto, o bem-estar comum. A política de felicidade para todos é tratada por Lacan a partir da repetição de uma demanda que encontra por parte de seus pacientes na sua clínica: “com isso não digo nada de novo – uma demanda de felicidade, de happiness, como escreveram os autores ingleses na linguagem deles, é justamente disso que se trata” (LACAN, 1997 [1959-1960], p. 350). É ainda importante ressaltar que isso de criar condições de se negar a infelicidade e de promover a felicidade para todos está relacionado àquilo que Lacan articulou a partir do discurso capitalista. Na contemporaneidade a aliança entre esse discurso e a ciência tem como consequência a crença de que o objeto faltante pode ser fabricado, mascarando a castração. Ainda que o mal-estar seja intrínseco à condição humana, é preciso salientar que as condições atuais têm um forte paralelo a essa nova sintomatologia que aqui destacamos como encabeçada pelas depressões. Kehl (2009, p. 273-274) lista alguns fatores como propiciadores do aparecimento do que ela denomina estrutura depressiva: “aumento da velocidade na regulação social do tempo, predominância dos imperativos de gozo sobre as interdições tradicionais, perda do valor da experiência, fragilidade das referências identificatórias”. Em certa medida, o discurso do livro de autoajuda, ao fazer de conta tornar possível para o sujeito que ele consiga o que quiser, encontra-se ao lado desse imperativo de gozo. É essa solução do suposto conforto pleno, também chamado de felicidade, que os livros de autoajuda se propõem a fazer com seus leitores acedam. Entretanto, sabemos que não mais ter que lidar com a falta é impossível e bastante diferente do que visa um final de análise, um saber-fazer com a falta.

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É da ausência de uma referência externa marcada que Melman (2008, p. 96) extrai seu “homem sem gravidade”, que se caracteriza por um novo tipo de sofrimento, “pois este, apesar da felicidade que se supõe que a nova economia psíquica nos assegura, vem nos lembrar que sempre, em algum lugar, há um impossível, que há sempre, em algum lugar, algo que capenga”. Os livros de autoajuda tendem a negar esse caráter inefável e intratável do sujeito: o malestar intrínseco ao pertencimento ao social. A possibilidade de um gerenciamento do sujeito, dos seus medos, inseguranças, angústias, se tornaria possível porque o sujeito tem pleno conhecimento e controle sobre si. Esse conhecimento estaria fundado na ciência, naquilo que ela garante como sendo verdade. E como diz respeito ao funcionamento subjetivo especificamente, estaríamos no campo da ciência da Psicologia. O recurso ao vocabulário da psicologia nesse contexto serve para dar legitimidade ao discurso, provendo-o de uma comprovação científica universal, uma espécie de promessa de que funciona. Por outro lado, para Melman (2008, p. 111), soaria retrógrada qualquer oposição ao [...] imperativo de satisfação acabada – que na verdade, só é realizada, vimos, pelo esgotamento dos orifícios do corpo ou pelo eclipse do sujeito, embrutecido, aniquilado pelo ruído, pelas imagens, pelas drogas ou o que mais se quiser.

Haveria uma espécie de “equalização dos gozos”, de acordo com Melman (2008), que permitiria que qualquer sujeito, em qualquer condição (estrato social, gênero, idade etc) pudesse gozar de qualquer benefício. Como exemplo ele dá a condição de um aposentado que pode ir a um cruzeiro que antes seria reservado apenas à classe aristocrática. Podemos supor que esse “progresso” de que fala Melman (2008) esteja relacionado a diversos acontecimentos históricos, como as lutas de classes até então menos privilegiadas (mulheres e negros, por exemplo) por direitos iguais, bem como por políticas extraídas dessas lutas, como a do Welfare State. Entretanto, Lebrun (em entrevista a MELMAN, 2008), se questiona até que ponto esse igualitarismo pode funcionar sem se chocar com um impossível. De acordo com Melman (2008, p. 112), a despeito de ser um “ideal formidável”, há alguma coisa que escapa aí, já que a paridade e a igualdade não se realizam. A alteridade, essa dimensão que continuamos a recusar em nossas reivindicações de comunhão e pertencimento, evidentemente é interna à própria linguagem, à língua como tal. Será inútil espernear, instaurar as leis que se desejar, isso não mudará e nossas relações permanecerão regidas, organizadas por essa dimensão da alteridade, pela disparidade.

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Se não há alteridade, ou se ela é desconsiderada, não haveria sujeito. O que existiria, segundo Melman (2008) seriam os funcionários que põem em marcha esse sistema que tenta a todo custo assegurar o bem-estar para todos, sem exceção. É nesse contexto que entra inclusive o Direito que deve a todo custo criar as condições formais e jurídicas sobre as quais a felicidade pode se fiar. É possível hoje falar em uma ditadura da felicidade baseada em uma judicialização45 prevista a partir do direito ao Gozo Absoluto, ou ainda, um imperativo de gozo, Goza!. Observa-se, nesse caso, a passagem de uma comunidade na qual funciona o Luto e melancolia para uma outra onde “a decepção é dolo” do Melman. E se é dolo deve haver consequências para aqueles que a praticam. Se os direitos estão garantidos, a impossibilidade de alcançar os bens que preservam esse direito só pode ser atribuída à má-fé de outrem. O direito aparece conforme já citamos na materialidade discursiva dos livros de autoajuda como em Shinyashiki (2012, p. 20), “Você tem o direito de ser feliz!”. Esse direito aparece não só em livros de autoajuda: em 2012, o senador Cristovam Buarque propõe que apo artigo 6º da Constituição Brasileira seja acrescentado “o direito à busca pela felicidade”. O artigo que atualmente traz: “São direitos sociais: a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”, passaria a ser “São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Em seu projeto, Motoryn (2012, p. 11-12), que assina o prefácio, escreve que “A felicidade do cidadão deveria ser a finalidade de qualquer política pública”. E como qualquer política pública sua fiscalização de efetividade seria medida: “Como medir a felicidade do cidadão e a efetividade das reivindicações desse cidadão? Metodologias quantitativas, pesquisas qualitativas e aplicativos se propõem a fazê-lo. É brasileira, aliás, a primeira plataforma digital que avalia o nível de satisfação da população em diversas dimensões em tempo real”. A felicidade mensurável do projeto de lei, a felicidade alcançável dos livros de autoajuda, ambas fazem parte de um projeto maior, pautado no discurso científico e capitalista, que visa a coesão de um sociedade voltada para a reprodução e manutenção dos atuais modos de produção, das relações de trabalho, das relações entre os indivíduos. 45

Por judicialização entende-se a observância de questões morais pelo sistema judiciário. De acordo com Barroso (2012) esse fenômeno pode estar relacionado tanto à necessidade de um sistema judiciário forte e independente dos três outros poderes quanto pela crise de representatividade e funcionalidade dos parlamentos. Além disso, a resolução caso a caso pelo judiciário de questões polêmicas sobre as quais não há um consenso na sociedade desincumbe a deliberação e legislação decisiva sobre esses temas.

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De modo geral, o que se observaria é que as pessoas hoje em dia supostamente têm mais capacidade de ser feliz que antes, por isso a disseminação da palavra “progresso”. Vale lembrar que esse projeto de felicidade, por outro lado, ao ser aproximado à noção de satisfação plena, não deixa de nos remeter à pulsão de morte. Talvez essa seja a grande diferença: a busca felicidade sempre foi tópico muito apreciado e desenvolvido nos mais diversos campos: filosofia, religião, psicologia, artes em geral, dentre outros. Entretanto, a afirmação da possibilidade de alcance da felicidade e a prescrição de regras tão claras que nos levariam direta e rapidamente a ela, está localizada na contemporaneidade, tendo como os livros de autoajuda um de seus mais claros sintomas.

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Considerações finais

Por que devíamos correr desesperadamente atrás do sucesso, em empreendimentos desesperados? Se um homem não acerta o passo com seus companheiros é porque talvez ouça um tambor diferente. Deixai-o marchar conforme a música que ouve, ainda que lenta e distante. Não importa que ele atinja a maturidade tão cedo quanto uma macieira ou um carvalho. Deve ele transformar sua primavera em verão? Se ainda não chegou a hora para o que fomos criados, que realidade pode substituí-la? Não naufragaremos numa realidade vazia. Devemos erguer com esforço um céu de vidro azul sobre nós, se ao concluí-lo temos a certeza de ir contemplar ainda o verdadeiro céu mais acima, como se o outro nem existisse? Henry David Thoreau, em Walden – A vida nos Bosques 167

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Adão Iturrugarai, Folha de S. Paulo

O humor, com seu jogo de equívocos e derivas, possui uma grande vantagem em relação ao discurso universitário: ele é capaz de mostrar o impossível sem para isso explicá-lo. Adão nessa breve tirinha toca em pontos que tentamos abordar ao longo deste texto: o projeto de felicidade plena de impossível execução, a metonímia do desejo e a produção inesgotável de fórmulas que tentam escamotear esse impossível. Ao mesmo tempo em que fracassam, pois se não o fizessem “seria necessário apenas um livro de autoajuda”46, se alimentam de uma teoria do prazer que nos parece próxima àquela do século XVIII que Lacan denomina “homem do prazer”. Quanto mais a teoria, a obra da crítica social, o crivo de uma experiência tendendo a reduzir a obrigação a funções precisas na ordem social deram-nos a esperança de relativizar o caráter imperativo, contrariador, e, em suma, conflituoso da experiência moral, mais vimos aumentar nos fatos as incidências propriamente patológicas dessa experiência (LACAN, 1997 [1959-1960], p. 12).

Desde a caricata revolução industrial inglesa das fábricas têxtis passando pelas peças publicitárias americanas voltadas para o público feminino da década de 50 (que anunciavam a libertação da escravidão feminina dos afazeres do lar graças a sofisticados eletrodomésticos que facilitam a vida de todos), acredita-se que democracia tem provado ser possível o crescimento econômico aliado a um aumento do conforto. Além disso, é possível vencer na vida. O suposto acesso a bens intelectuais pela universalização da educação (combate ao analfabetismo, oferta de universidade pública de qualidade) e a possibilidade de alcançar qualquer posto de trabalho a partir do esforço e da disciplina cooperam para a crença de que tudo é possível, reforçando a autonomia do indivíduo. Entretanto, conforme pontua Corbin (1991, p. 525) Ora, a crescente mobilidade social, [...], o caráter inacabado da indecisão, a precariedade das hierarquias, assim como a complexidade dos sinais que as indicam, só fazem confundir as ambições; provocam irresolução, desordem, 46

Flavia Trocolli, comunicação pessoal (2012).

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inquietação. O esforço de cada um para construir sua própria personalidade e a influência do olhar do outro estimulam o descontentamento, até a difamação de si; deságuam no sentimento de insuficiência.

Se as certezas desaparecem, a instabilidade e flexibilidade se instalam, gerando uma relação inédita entre desejo e sofrimento. É preciso ser feliz, é um direito e um dever, relacionado ao imperativo superegóico. No entanto, os livros de autoajuda, ainda que não resolvam o sofrimento, se alimentam dele e por consequência retroalimentam a ilusão de que a felicidade plena seria possível. Se não a alcançam, estabelece-se uma relação de culpa, também próprio do supereu, à moda de um spleen baudelairiano acelerado pelos novos meios de comunicação e desenvolvimento científico e tecnológico. Enfim, se o projeto totalitário de felicidade para todos carrega em si os germes do seu fracasso, é preciso recorre a um outro projeto possível. Não se trata de uma proposta universalizante a de Goldenberg (1997), mas de um projeto que leva em conta as singularidades e, por consequência, aposta na contingência, criando as condições necessárias à inscrição dos gozos singulares. Segundo o autor (1997, p. 97), No fundo não é muito diferente do direito que pretende garantir a constituição dos Estados Unidos para todos os cidadãos: a perseguição da felicidade. Esta formulação é muito diferente, creio, dessa outra, embora venha da mesma sociedade: 'satisfação garantida ou seu dinheiro de volta'. Ninguém promete na democracia que você alcançará o gozo, nem muito menos que ele pode ter um fiador; apenas garante que, em tese, você está livre para tentar. Dois discursos, então, para a mesma idéia: hapiness for all.

No entanto, o pensamento “libertino” não livrou o homem dos deveres. Acrescentamos que o capitalismo tardio, o consumo, a ciência, e a oportunidade de “ser o que quiser ser”, etc. tampouco livraram o homem dos imperativos e das injunções superegóicas. Ao contrário, ao se dissimularem em discursos que alimentam o sentimento de autonomia do sujeito, se tornaram mais poderosos que nunca. Em psicanálise, a experiência moral pode ser resumida no imperativo que Lacan chama de original em Freud Wo Es war, Soll Ich werden47. Para Lacan (1997 [1959-1960] p. 16) “esse (eu) [Je], com efeito, que deve advir lá onde isso estava, e que a análise nos ensina a avaliar, não é outra coisa senão aquilo cuja raiz já temos nesse (eu) que se interroga sobre o que quer”. Esse Je em análise se coloca a questão sobre o que quer no lugar dos imperativos que lhe parecem “estranhos, paradoxais, cruéis que lhe são propostos por sua experiência mórbida”. Em outro extremo, a subjetividade suposta pelo discurso de autoajuda não se coloca questões, não relativiza ou estranha imperativos exteriores, ao contrário, ela os assume. Suas 47

Do alemão, “lá onde o isso era, o eu deve advir”.

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questões passam a ser aquelas que já estão disponíveis de antemão, no mercado prêt-à-porter de sofrimentos. Se os livros de autoajuda se caracterizam por forjar uma subjetividade submissa a um imperativo superegóico que não prevê a frustração, o furo, escamoteando a falta, Lacan (1997 [1959-1960], p. 16) se pergunta sobre o paciente: “deve ele submerter-se ou não ao imperativo do supereu, paradoxal e mórbido, semi-inconsciente [...]. Seu verdadeiro dever, se assim posso expressar-me, não é ir contra esse imperativo?”. Em relação às três fontes de sofrimento, a saber, “a prepotência da natureza, a fragilidade do nosso corpo e a insuficiência de normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade” (FREUD, 2011b [1930], p. 30), Freud afirma certa rendição necessária frente às duas primeiras, pois a natureza (fazendo nosso organismo parte de seu conjunto) nunca poderia ser completamente dominada pelo homem. Entretanto, esse sofrimento inevitável não precisa ser necessariamente fonte de mal-estar. “Se não podemos abolir todo o sofrer, podemos abolir parte dele, e mitigar outra parte – uma experiência milenar nos convenceu disso”48 (FREUD, 2011b [1930], p. 30). Ainda que para Freud (2011b [1930], p. 28) possam existir diversos caminhos que nos servem para evitar o desprazer ou obter o prazer, nenhum deles se alcança tudo que desejamos. “No sentido moderado, em que é admitida como possível, a felicidade constitui um problema de economia libidinal do indivíduo. Não há, aqui, um conselho válido para todos; cada um tem que descobri a sua maneira particular de ser feliz”. A impossibilidade, negada pelo discurso do livro de autoajuda, de tornar qualquer método universal quando estamos diante de “como ser feliz” advém da impossibilidade de controlar todas as variáveis possíveis e inimagináveis que atuam em cada um. Freud (2011b [1930], p. 28) escreve Fatores os mais variados atuarão para influir em sua escolha [de como ser feliz]. Depende de quanta satisfação real ele pode esperar do mundo exterior e de até que ponto é levado a fazer-se independente dele; e também, afinal, de quanta força ele se atribui para modificá-lo conforme seus desejos.

Além disso, há ainda um risco: a partir do momento em que o indivíduo adota uma técnica de vida exclusivamente para esse fim, sua possível inadequação torna-se uma poderosa fonte de sofrimento. Nesse sentido, a capacidade de adaptar-se aparece em Freud como uma dos fatores que mais podem trazer êxito a essa empreita, como bem podemos observar por meio da

48 Essa estratégia não parece ser sem relação de semelhança com aquela adotada pela direção do tratamento em Psicanálise como propõe Lacan, no entanto, de sua parte, podemos falar em um processo no qual o sujeito abre mão de parte do gozo (que causa sofrimento), ficando ainda como um tanto inabdicável e que tem justamente uma relação com o que há de singular no sujeito.

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leitura de Quem mexeu no meu queijo?, de Johnson. Há diversas maneiras de lidar com o mal-estar, uma delas está prevista nos discursos de livros de autoajuda, de maneira bastante clara e explanatória, outra, mais obscura, podemos pensar a partir da experiência da Psicanálise. Obscura porque, ao contrário dos discursos de livros de autoajuda, para Fleig (2011, p. 10), “se Freud afirma que a psicanálise não é uma Weltanschauung49, podemos acrescentar que também não é uma doutrina e muito menos propõe uma semântica. Ela não concorre com as teorias sobre o mundo, a vida e a sociedade, e muito menos propõe um ideal de dever-ser”.

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Ideologia, visão de mundo, orientação cognitiva fundamental de um indivíduo ou sociedade.

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