Subjetividades na cena contemporânea: expor a encenação citacional e suas lacunas

October 1, 2017 | Autor: Stephan Baumgartel | Categoria: Theatre Studies, Contemporary Theatre, Dramaturgia
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Subjetividades na cena contemporânea: expor a encenação citacional e suas lacunas.1

Stephan Baumgärtel Universidade do Estado de Santa Catarina

Será que é possível organizar a cena contemporânea de tal modo que se revele uma forma mais ou menos parecida de abordar e inventar teatralmente a subjetividade contemporânea? É possível descobrir, na questão que concerne a configuração da subjetividade contemporânea, uma mentalidade crítica fundamental que alinhe estilos teatrais tão diversos como os de Rodrigo Garcia (Espanha), Frank Castorf (Alemanha), Rimini Protokoll (Alemanha), Robert LePage (Canadá), Anatoli Vassiliev (Rússia), entre outros, mas também da Cia. Dos Atores (Rio de Janeiro), do Grupo XIX (São Paulo) ou os trabalhos do grupo Oi Nóis Aqui Travéiz (Porto Alegre), entre muitos outros? Essa mentalidade poderia ser encontrada nas dramaturgias escritas de, por exemplo, Martin Crimp e Sarah Kane, de Heiner Müller e Michel Vinaver? E como se relacionariam os grandes diretores de um passado não tão distante como Peter Brook, Bob Wilson ou Ariane Mnouchkine, ainda em atividade, com esta abordagem? Para resolver o problema conceitualmente e ao mesmo tempo respeitar a diversidade, um olhar histórico talvez seja útil. Foi provavelmente Nietzsche o primeiro filósofo ocidental a criticar e até ridicularizar a crença burguesa na existência de uma subjetividade substancial, um ‘eu’ autônomo que possuiria um centro essencial fixo. Segundo o filósofo, esse eu substancial seria mais uma miragem da lingüística (sugerido pela estrutura do “eu penso”, enquanto na verdade os pensamentos chegam a mim) a qual o indivíduo burguês se entrega, pois possibilita afirmar sua vontade de ser autor dos próprios atos e dono do mundo ao seu redor. Ampliando o olhar histórico, depois foram Marx e Freud que mostraram que este eu autônomo e substancial é, de fato, dependente de discursos que não controla. Podemos suplementar esta crítica sócioeconômica e libidinal com outra, inspirado em um pensamento religioso, até ocultista, relacionado a nomes como Mme. Blavatsky, Gurdjieff, e em parte, Jung. Em resumo, o indivíduo burguês se defrontou com a verdade mais dolorosa que promissora de que “Eu é outro” (Rimbaud). Este insight, no entanto, é sempre um evento e não a apreensão de uma nova identidade: realiza-se uma ruptura súbita com a estrutura cognitiva, uma

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Texto publicado no catálogo do Festival Internacional de Teatro, São José do Rio Preto, 2009: 129-133.

manifestação de uma transgressão. Para quem sofre esta experiência, a subjetividade não é algo dado e substancial, mas simultaneamente um acontecimento e a cena deste acontecimento: a encenação do ‘eu’, feita por ele mesmo, mas assumidamente não sob os termos definidos por ele. É possível associar estas primeiras críticas à metafísica burguesa do sujeito substancial autônomo com as estéticas teatrais do naturalismo (a questão social), do simbolismo (a questão espiritual), e do expressionismo (a questão da pulsão). Mas embora estas estéticas possam figurar como ancestrais da estética mais genuinamente contemporânea, elas claramente se diferenciam dela ao expressar uma ansiedade que buscou novas possibilidades de união entre ‘eu’ e ‘outro’. Para a experiência contemporânea, no entanto, esta unicidade é irrecuperável, ou melhor, ela só existe enquanto (auto-)ilusão do sujeito. Na cena contemporânea – e aqui cabe lembrar a experiência do fim das meta-narrativas refletida por Lyotard – busca-se explorar o evento da construção de subjetividade como experiência da inconsistência dessa encenação. O ‘eu’ nunca é totalmente outro, e o outro nunca consegue interpelar perfeitamente o ‘eu’. Através dessa lacuna, como num jogo de identidades movediças, expressa-se, mais do que é representada, uma dor (trágica talvez) de que, na perspectiva mundana, sempre há falta e excesso. Mas esse jogo implica também na certeza de que nenhum momento histórico é imutável, o que abre possibilidades cênicas para experimentar essa instabilidade dolorosa de modo mais lúdico. Quais, então, seriam as características de uma estética teatral adequada para pensar e evidenciar em cena estas subjetividades contemporâneas, não enquanto identidades, mas processos dinâmicos descontínuos? Vejo dois impulsos formais básicos, um mais crítico e o outro mais utópico, mas ambos partem da subjetividade enquanto encenação inconclusa e processo falho. O impulso crítico busca manifestar nesse processo uma interação entre o social e o privado sob condições contemporâneas; desvendar a construção de identidades pessoais enquanto efeitos de práticas sociais reiterativas e citacionais, cuja realização, no entanto, instala não só um núcleo relativamente estável, mas também uma variação do padrão ‘de partida’. Digo citacional, pois não se trata de uma simples estrutura semiótica referencial, mas de um processo de incorporação prática e corporal de discursos sociais, através do qual o corpo produz o efeito de uma subjetividade supostamente fixa.2 Portanto, em cena, essa ‘auto2

Esta noção da construção performativa da identidade humana enquanto citação prática de discursos sociais foi teorizada por Judith Butler a respeito da construção das características de gênero. Inspirada nas teorias de J.L. Austin

modelagem’ é exposta criticamente com suas lacunas estruturais, as cisões entre o efeito de estabilidade e a prática dinâmica da sua construção, entre o corpo ficcional do personagem, o corpo treinado do ator enquanto função cênica, e o corpo biológico e histórico do ator enquanto ser histórico: por trás da identidade fixada há uma subjetividade dinâmica a ser despertada e usada para fins transformadores (tanto da identidade do indivíduo quanto da sociedade), que a encenação teatral desvenda. O impulso utópico aproveita do jogo subversivo das citações a estrutura fragmentária para transformá-la em uma parábola lúdica da liberdade humana, quase numa adaptação contemporânea das concepções de Friedrich Schiller acerca das possibilidades do jogo estético enquanto força humanizadora. Me parece constitutivo para ambos os impulsos que eles não conheçam nem origem nem finalidade última na construção de subjetividades, e conseqüentemente tampouco a possibilidade de um ponto de equilíbrio, uma estabilidade. Este jogo do indivíduo de citar e subverter discursos e práticas provenientes de instâncias alheias não expressa nenhum horizonte edificante e esperançoso, mas tampouco uma distopia inevitável. Ele se apresenta esteticamente como um jogo auto-poético de reiterar as citações sociais, de criar variações e possíveis frestas subversivas, ou de brincar o mais livremente possível com os fragmentos daquilo que era antigamente chamado identidade. O trabalho do argentino Rodrigo Garcia, radicado na Espanha, pode servir como exemplo típico da tendência crítica de expor as citações reiterativas que prendem a subjetividade contemporânea numa ‘identidade’. Para isso, os atores imitam, de modo grotesco, os rituais sociais contemporâneos de construir uma identidade funcional. Através do grotesco, ele expõe este processo enquanto citação. Já o nome da sua companhia, “La carnicería teatro”, aponta para um impulso de esculhambar e, deste modo, de desconstruir a realidade empírica. Em “La história de Ronald el payaso de McDonald’s” (2005), um ator conta, como se fosse uma memória pessoal, como a morte do seu pai coincidiu com sua primeira entrada deslumbrada num McDonald’s, outro lembra o McDonald’s como único refúgio na terra hostil de um país estrangeiro. Este esquema se repete durante o espetáculo. Em algumas ações cênicas durante a

e J. Derrida, ela reflete a construção performativa da identidade humana enquanto “a prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia” (Butler, Judith. Bodies That Matter, London&New York: Routledge, 1993, p.08, tradução minha), A noção não só pode ser aplicada à configuração de outras qualidades supostamente essenciais na identidade humana, mas também se mostra altamente útil para pensar plausíveis estratégias de uma política de identidades subversivas no palco.

apresentação, atores que remetem tanto à mártires cristãos quanto à animais de abate são ensopados com molhos industrializados. Mais tarde é encenada como se tira as tripas deles. Esta ação lembra sessões de tortura, associando a sociedade ocidental de consumo a campos de detenção, e a condição carnívora dos humanos ao canibalismo. Numa lógica cênica mais de mimetismo do que de mimese representacional, os atores apresentam modos como a sociedade de consumo e sua vida emocional interagem. Neste momento fica vago se essa vida emocional é expressão da vida da figura cênica ou do ator enquanto indivíduo social. Garcia já trabalhou esta problemática em “Agamêmnon – Voltei do supermercado e dei uma surra no meu filho” (2003). Desta vez, o público também é integrado na construção cênica da subjetividade contemporânea quando os atores presenteiam os espectadores europeus com dois tipos de pasta cozida para a ocasião, que lhes é oferecida em dois grandes recipientes em forma de América do Sul e África. A crítica a atitude consumista fundadora tanto da sociedade quanto da subjetividade contemporânea é desenvolvida na próxima cena na qual dois atores apresentam um truque de mágica, não com um voluntário da platéia, como foi pedido, mas com um ator do elenco. Usa-se o ânus dessa pessoa para efetuar a ação de trocar dinheiro por objetos cada vez mais caros. A mesma tentativa, de entrelaçar na crítica à sociedade consumista a camada ficcional e real, aparece quando um pai ficcional conta, numa fala que se direciona predominantemente aos espectadores e menos às outras figuras cênicas, da sua raiva por ser influenciado no seu comportamento de consumo pelas estratégias de publicidade, por viver uma situação trágica sem saída e sem esperança real, uma vez que a falta de solidariedade, vontade e imaginação humana impossibilita mudanças. A atuação naturalista e a temática contemporânea, humana e estereotipada ao mesmo tempo, criam uma fusão perturbadora entre encenação teatral e realidade empírica atual, ou melhor, uma interferência incomodativa entre o personagem ficcional da cena e a existência real do ator. Como num trabalho Brechtiano, abre-se uma lacuna entre o personagem ficcional, o ator enquanto função cênica e o ator enquanto pessoa histórica. Mas a realidade empírica e histórica do ator entra de tal modo em cena que o ator enquanto função cênica perde a posição onisciente que ele assume em Brecht, sem perder, no entanto, a sua função crítica de problematizar os personagens ficcionais e exigir mudanças para o mundo empírico. Como as encenações de Garcia usam essas estratégias em todas as cenas, a montagem possui uma consistência estética e eficácia artística convincente.

Encontramos esta oscilação entre mimetismo (o ator expondo como as forças actanciais da narrativa são forças sociais que atuam sobre ele enquanto ser real) e mimese (o ator representa um personagem ficcional como um outro ‘eu’) também em outros trabalhos contemporâneos, por exemplo, de Rimini-Protokoll – grupo suíço-alemão conhecido aqui na America Latina por seus trabalhos Torero Portero (Buenos Aires e São Paulo) e Chácara Paraíso(São Paulo), ou do diretor alemão René Pollesch e sua estrutura de soap operas cotidianas no palco do teatro. Em todos os casos, encontramos material biográfico e empírico como elemento central da montagem e sua dramaturgia, mas os depoimentos das pessoas reais são constantemente ficcionalizados de modo que se apresenta a figura cênica com sua subjetividade como resultado de, no mínimo, três discursos: da ficção criada pela situação teatral, do discurso social evocado pela performance do ator, da consciência crítica subjetiva do ator enquanto indivíduo empírico. É típico para as subjetividades criadas desta forma que o espectador não tenha como decidir qual dos três é hegemônico e se um deles é mais autêntico do que os outros. Em cada camada os signos são claros e podem ser lidos, mas não se instaura algo como uma presença artística ou uma aura da cena. Em suma, é uma estrutura mais alegórica do que simbólica, no sentido de Walter Benjamin. Ora, o que me parece caracterizar os impulsos críticos na prática teatral contemporânea, no que concerne a construção de diferentes subjetividades, é exatamente a busca por estratégias estéticas que possam expor a construção da subjetividade segundo este jogo auto-poético, mas com enfoque na exposição das lacunas e cissuras nestes processos citacionais. Isso faz com que a cena oscile, de modo curioso e investigativo, entre o plano social e o plano subjetivo; entre o agente subjetivo enquanto efeito da citação de um discurso social, portanto dependente dela, e o agente subjetivo enquanto observador e encenador crítico da sua própria dependência, portanto parcialmente distanciado dela. Esta oscilação estabelece momentos de ruptura súbita, em forma de mudanças estéticas mais ou menos bruscas: rupturas com a ficção estabelecida, para deixar entrar um momento de prática social real; rupturas com o modo biográfico para colocar em dúvida sua autenticidade; rupturas com a distância do espectador para enfocar a sua subjetividade e fazê-lo sentir sua posição na situação teatral e na apresentação de uma narrativa. Essas reviravoltas de enfoque criam fissuras nas subjetividades contemporâneas que permitem mostrar como elas são marcadas pela falta, pelo excesso e pelo ruído que costumam se esconder nas frestas da comunicação cotidiana. Talvez não seja tão errado

afirmar que através dessas oscilações possa-se expressar uma energia de protesto contra uma atitude sócio-cultural e política que com tão boa vontade transforme questões sociais e políticas controversas em estratégias publicitárias homogêneas, e a ética de viver bem em estratégias de se dar bem na vida. Mesmo que não haja um horizonte utópico neste jogo auto-poético em cena, a sua prática torna profundamente problemáticos os fundamentos discursivos e práticos tanto da realidade empírica quanto da realidade teatral. Em termos de práticas e técnicas teatrais (de atuação, de construção da cenografia, de relacionar texto e cena, etc.), esse interesse contemporâneo em revelar a subjetividade enquanto construção citacional instável e atravessada por fissuras faz com que a cena se assemelhe a uma alegoria do cotidiano; que esta alegoria necessariamente assuma aspectos assumidamente não-perfeitos devido às cissuras expostas (penso, por exemplo, também em trabalhos recentes de Frank Castorf nos quais ele mistura atores profissionais e não-atores no mesmo elenco); que o trabalho dos atores profissionais se posicione numa zona híbrida entre o ficcional e o biográfico; e, por último, faz com que a ênfase no biográfico e numa atuação despojadamente naturalista e cotidiana leve a um modo de comunicação teatral direcionado principalmente à platéia e não aos outros personagens no palco. Junto com estratégias cenográficas de incluir o público no espaço ficcional e criar um espaço híbrido (como o fez Wanda Golonka na sua encenação de Psicosis 4.48 de Sarah Kane em Frankfurt 2002, quando posicionou os espectadores em balanços interligados em cima do palco, com a atriz passeando pelo conjunto, instalando assim uma espécie de vasos comunicantes entre os espectadores e a atriz, mas como também instala o grupo Oi Nós Aqui Traveiz de Porto Alegre, por exemplo na sua encenação d’A Missão, de Heiner Müller, em 2007), estamos diante de uma proposta que desafia os espectadores a se tornarem conscientes da própria subjetividade e dos modos da sua construção, na interface entre ficção teatral e vida empírica. Este enfoque na situação teatral assegura o tempo presente, o tempo compartilhado entre seres em cena e seres assistentes, como o tempo que realmente importa, e não um futuro utópico de uma subjetividade harmonizada numa sociedade sem opressão. Mas este presente é um presente cindido, conflituoso, parcialmente vazio, e nenhuma atuação coerente com a concepção de subjetividade enquanto encenação citacional pode transformá-lo em um tempo pleno. Nem todos os trabalhos contemporâneos focalizam na construção da subjetividade e do sentido subjetivo da nossa existência contemporânea os modos como

se entrelaçam o biográfico e o ficcional, o real e o imaginário, o político e o privado. (Um reconhecimento, aliás, que as mídias contemporâneas, na sua crescente diluição destas fronteiras, tornam mais e mais difícil). Mas a problemática da encenação de uma subjetividade sem fundamentos e centros norteadores claros também está presente em trabalhos que mais brincam com o formalismo da linguagem meta-teatral, do que investem na investigação da sua relação com os discursos sociais. Trabalhos que podem ser lidos como criar uma espécie de subjetividade utópica sobre fundamentos estéticos que, no entanto, revela o chão insólito e instável sobre o qual é construída. Um excelente exemplo desta tendência me parece ser a montagem da Cia. Dos Atores d’A Gaivota, de Tchekov (2007). Já na cena inicial, na primeira fala da peça, uma das atrizes se direciona diretamente ao público, com uma expressão de genuína confusão, e diz: “Eu me pergunto como começar uma peça que fala justamente do fracasso de uma peça”. Depois, num registro já mais ficcional, pois a comunicação se dá entre dois atores e, portanto, sugerindo o modo intra-ficcional, ouvimos a informação de que a peça recebeu sua primeira montagem em 1886 em São Petersburgo, ao que a atriz no palco superior responde com a pergunta de como encenar o tempo. No entanto, a pergunta não é feita como se fosse uma pergunta técnica, mas uma pergunta de cuja resposta depende a felicidade da atriz. Portanto, nessa situação se confundem a atriz enquanto personagem e a atriz real, o ficcional e o biográfico. Fica claro que esta fusão representa uma estratégia artística dos criadores quando a atriz Mariana Lima, numa cena em que ela fala do personagem Nina, declara que esta faria qualquer coisa, até “apresentar peças em hospitais e prisões desativadas, deixar que os atores mijem sobre o corpo dela”, em clara alusão à experiências de Mariana durante seu trabalho com o Teatro da Vertigem. Nesta encenação, a forma do meta-teatro Tchekhoviano é contaminada pela existência real dos atores, que entram e saem dos papéis ficcionais, mudam constantemente os modos de se relacionar com eles. Estas mudanças nos modos de interpretação configuram uma subjetividade em cena em que o ‘eu’ tanto dos personagens quanto dos atores históricos se dilui em várias “posições de subjetividade” as quais esse ‘eu’ percebe e assume como atribuídos a ele. Essa montagem, esteticamente tão diferente dos trabalhos de Garcia, cria também uma subjetividade que oscila constantemente entre a citação da presença do ator histórico, do ator como figura cênica que apresenta as personagens ficcionais, e dos próprios personagens ficcionais (de Tchekhov e da Cia. Dos Atores).

Com uma temática mais estética do que política, a montagem se limita a expor como na vida de atores o palco é sempre ficção e realidade empírica. No entanto, a camada biográfica nunca está reprimida, embora ela não seja mais uma fonte de harmonização das memórias emocionais do ator e do personagem para dar profundidade ao trabalho cênico do ator. Mais uma vez focaliza-se a impossibilidade de fundir as camadas, frisa-se a lacuna entre elas, para problematizar o status da cena enquanto campo de escape frente a uma realidade empírica dolorosa. Nessas cissuras, portanto, a realidade empírica adentra a cena. Conseqüentemente, elas se estendem à platéia nos momentos nos quais os atores se direcionam ao público e comentam irônica e criticamente a realidade cênica, subvertendo e problematizando possíveis tentativas por parte do público de identificar-se ingenuamente com o jogo auto-poético enquanto utopia lúdica para a subjetividade fragmentada e híbrida. A ausência de qualquer fundamento estável faz com que a encenação se salve de apresentar a sua cena lúdica como um lunapark intelectual e dialogue com o nosso momento histórico. Mas ela é somente possível a partir, primeiro, da entrada de material biográfico e empírico dos participantes na própria cena teatral, e segundo, da integração não-harmoniosa desse material na cena, ou seja, da criação de fissuras entre o empírico e o ficcional na subjetividade exposta em cena. O que diferencia esta abordagem da estética de trabalhos mais tradicionais, como as montagens de Ariane Mnouchkine na última década, me parece ser exatamente esta pesquisa de como fazer aparecer em cena material pessoal dos atores enquanto pessoas históricas, além de abrir contradições e tensões nas personalidades das personagens ficcionais. E não me parece mera coincidência que os últimos textos de Martin Crimp, Sarah Kane ou Heiner Müller permitam e até provoquem a inclusão deste material na encenação, não como mera atualização e incorporação de um passado ou de um ’outro’, mas como traços desse evento de construir o ‘eu’ enquanto sempre já um ‘outro’. A radicalização formal da herança de Brecht é óbvia nessa proposta contemporânea, só que agora o ator enquanto função cênica não finge mais uma subjetividade de que tem certeza de um futuro melhor. No entanto, na sua abertura para as experiências de ruptura, esta subjetividade cênica cindida, talvez se mostre mais fiel a uma convicção basilar na proposta teatral de Brecht, que este por sua vez aprendeu na sua contínua leitura dos exercícios de Ignácio de Loyola: é necessário que o ‘eu’ mundano prepare-se para a sua morte. O teatro de aprendizagem de Brecht procura

oferecer ao ‘eu’ a vivência e o exercício contínuo de aprender a morrer, de tornar-se parte do coletivo. E na medida em que esta é uma das grandes tradições temáticas no teatro ocidental, desde as tragédias e comédias gregas, passando pelas grandes peças do realismo burguês, até as convicções de Peter Brook ou Ariane Mnouchkine, o tratamento da subjetividade na cena contemporânea, sua encenação das lacunas numa encenação citacional, me parece colocar a pergunta fundamental para os participantes, atores e espectadores, do evento teatral contemporâneo: quais são os valores e as experiências que nos fazem querer a morte do ’eu’, antes da morte do corpo? E para tornar-se parte de quê?

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