Subjugação Escolar e o Zelo pelo Pai Fraco

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O menino passou a gaguejar e a não querer ir à escola. Na verdade, ele sequer ousava não querer ir, embora não quisesse. Tinha diarreias nervosas, inclusive antes de ir, mas não só. Não ocorreu a ele contar a seus pais suas razões. E eu me pergunto: seus pais não souberam deduzir seu medo?


Há alguma coisa mais substancial aqui.

Esse garoto em menos de meia hora me entregou o jogo: meninos esperavam a hora do recreio, submetiam-lhe a um ritual com um estilete nas mãos. Brincavam de sequestradores-manipuladores. Muitos assistiam á humilhação. Como em toda gangue, há um chefe. Havia um chefe. Ele manuseava o tal estilete. Outros vigiavam o movimento [ou sua falta]no corredor. O menino devia ficar virado para a lousa, tirar a roupa, escrever ofensas a si mesmo e á sua família, e depois apagar a lousa com o rosto.

É curioso a facilidade de se entrar com estiletes e coisas que tais em certas escolas. O garoto dizia que o chefe da gangue zombava da diretora por acreditar que alguns precisassem de faquinhas "até para descascar mixiricas" [sic]. Foi exatamente essa a expressão que o menino usou, repetindo a zombaria do seu algoz-chantagista. Uma menina de treze havia sido estuprada no corredor dessa mesma escola.

Que coisa.


Bom, não era difícil entrever o medo na expressão do menino. Como e por que seus pais não puderam enxergar isso? Por que ele não pôde ou não soube contar para o pai o que lhe ocorria? Alguns dirão "vergonha". Não, apenas. Mais do que vergonha.

Há algo mais substancial aqui.

Chamei o pai do garoto e me chegou um homem severo e inseguro, que falava "aos soquinhos", com uma quase gagueira, semelhante à do filho. Eu vi ali o tipo do pai que não quer ser interrompido quando lê jornal. O pai que, aborrecido, desiste de um passeio ao receber uma má notícia. Um homem com medo. Eu vi o filho se assemelhar ao pai na assunção de seu modo de falar.

E mais: eu vi ali um pai a quem o filho protegia de seu próprio infortúnio, por sentir que seu pai seria tão fraco quanto ele. Fraco e ríspido.


Eu só disse ao pai: olhe, pai, quando um menino chora só na sala e não procura chorar com seus pais, verbalizando as razões de seu choro, deve-se perguntar por que e o que os pais não sabem ou não podem ouvir. O que faria seu filho em meia hora me contar o que já vive há quatro meses e o senhor não poder saber? Terá seu filho medo do senhor? Ou teria ele medo do seu medo?

Eu não tinha dúvidas de que o menino poupava o pai, ao mesmo tempo que se poupava da agressividade desviada que adviria de sua impotência convertida em raiva, caso contasse qualquer coisa. Por isso, tantas vezes, filhos precisam da mediação de outro adulto. Alguém que diga aos seus pais o que eles não podem, por: 1) temerem pelas reações dos pais; ou 2) zelarem pelos pais.


Isso me faz lembrar de uma menina de oito anos que ficava acordada até a mãe chegar da rua. Via se sua mãe chegava bem, se estava muito alcoolizada. Procurava por drogas nos bolsos da jaqueta da mãe, avaliava suas companhias – uns caras mal encarados que, não poucas vezes, roubavam até coisas de sua própria casa. Eram aproveitadores da mãe, e a criança tinha essa noção. A mãe, não. Essa menina tinha baixo rendimento escolar. É claro: ela simplesmente não dormia. Ela era, aos oito, "mãe da mãe", na contrafação de todas as expectativas do que deveria ser o lugar da criança numa família.

Escrevi um bilhetinho para aquela diretora do primeiro caso. Eu nomeei os membros da gangue infantil que nenhum bedel ou professor ou ela mesma foram capazes de identificar. E lhe fiz apenas uma pergunta: o que ela achava de ser considerada "frouxa" [o termo foi menos elegante] pelos tais meninos por "acreditar que faquinhas, canivetes e estiletes fossem necessários até para descascar mixirica?" A ironia dos "aspirantes juniores" a sequestradores e quejandos poderia ser eficientemente mordaz. Seria bom usar suas próprias palavras, tais como ditas a mim por sua vítima. Descrevi a ela o "ritualzinho" bastante sádico e sacana deles em relação ao aluno gago e diarreico. A encenação ritualizada do medo alheio.


Providências foram tomadas. Não houve necessidade do menino mudar de escola, mas cogitou-se a ideia, caso a diretora não abrisse seus olhos. O pai ficou mais atento e mais responsivo à escuta.

E o menino, a partir dessa aproximação, temeu menos pelo pai, no exato sentido amplo e duplo que a expressão encerra. O pai saiu fortalecido aos olhos dele por essa aproximação!

Quanto à menina "mãe da mãe", foi morar com a tia. Seu rendimento escolar melhorou muito, porque a tia disse que iria "ficar de olho na irmã" e dar uns conselhos pra ela. Avaliaria sua mãe à meia distância, o que era uma posição mais segura à sua infância e obrigava sua mãe a pensar um pouquinho no papel-lugar onde colocou essa menina indevidamente. Um papel-função desproporcional às capacidades psíquicas e à absoluta falta de autonomia dela.





Marcelo Novaes

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