Substrato conceptual e rede polissêmica da construção locativa do português brasileiro

Share Embed


Descrição do Produto

SUBSTRATO CONCEPTUAL E REDE POLISSÊMICA DA CONSTRUÇÃO LOCATIVA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO Diogo Pinheiro (doutorando em linguística / UFRJ) Universidade Federal da Fronteira Sul ([email protected])

RESUMO: Este estudo se debruça sobre a construção locativa (CL) do português brasileiro, investigando-a sob a ótica da gramática de construções e da linguística cognitiva. Argumentamos que a CL se fundamenta sobre o esquema imagético do contêiner (JOHNSON, 1987) e prevê, por isso, dois papéis argumentais: locativo e objeto locado. Procuramos ainda descrever a rede polissêmica da locatividade, que conta com um centro prototípico e quadro extensões polissêmicas. PALAVRAS-CHAVE: Gramática de Construções. Construção locativa. Polissemia.

ABSTRACT: This study proposes a construction grammar and cognitive linguistics approach to the Brazilian Portuguese locative construction. We argue that this construction is based on the container image schema (JOHNSON, 1987), thus specifying two argument roles: location and located object. We also seek to describe the polysemy network of locativity, which includes one prototypical core as well as four polysemic extensions. KEYWORDS: Construction Grammar. Locative construction. Polysemy.

RESUMEN: Este estudio trata sobre la construcción locativa del portugués brasileño, estudiándola bajo la óptica de la gramática de construcciones y de la lingüística cognitiva. Argumentamos que esa construcción fundamenta sobre El esquema de imagén del receptáculo (JOHNSON, 1987) y prevé, por eso, dos papeles argumentales: locativo y objeto localizado. Buscamos aún describir la red polisémica de la locatividad, que cuenta con un centro prototípico y cuatro irradiaciones polisémicas. PALABRAS-CLAVE: Gramática de construcciones. Construcción locativa. Polisemia.

1. Primeiras palavras Surgida na década de 80, a gramática de construções (GC) tem se firmado como uma alternativa à abordagem gerativista. Sua característica mais marcante é a recusa ao modelo léxico mais regras (gramática) consagrado pelo paradigma chomskiano. No seu lugar, propõe-se que a gramática das línguas naturais corresponde a uma grande rede interconectada de construções gramaticais –

definidas, por sua vez, como pareamentos convencionais de forma (fonologia, sintaxe, estrutura morfológica, prosódia) e significado (propriedades semânticas, pragmáticas, discursivas e/ou funcionais). Sob essa perspectiva, investigar a gramática de uma língua natural equivale a identificar e descrever as construções gramaticais que a compõem, bem como as relações entre elas. É nesse contexto que este estudo encontra seu espaço: propomo-nos, aqui, a identificar e descrever uma construção gramatical específica do português brasileiro (PB), a que denominamos construção locativa (CL). A CL integra uma classe específica de construções gramaticais: as construções de estrutura argumental. Para Goldberg (1995), construções desse tipo apresentam as seguintes propriedades: sustentam-se sobre uma base conceptual pré-linguística, apresentam informações semânticas (papéis argumentais) pareadas a informações formais (relações gramaticais) e são tipicamente polissêmicas. Nesse cenário, descrever a CL implica: (i) identificar seu substrato conceptual; (ii) identificar os papéis argumentais associados às relações gramaticais presentes na construção; e (iii) descrever sua rede polissêmica. Para isso, este artigo está organizado da seguinte maneira. Na próxima seção, expomos os fundamentos teóricos da pesquisa – a gramática de construções e o paradigma mais amplo no qual ela se insere, a saber, a linguística cognitiva. Em seguida, passamos à descrição da construção locativa do PB, dividida segundo os três objetivos apontados acima.

2. Linguística cognitiva e gramática de construções 2.1 Linguística cognitiva e realismo experiencial

A revolução chomskiana na linguística criou uma ciência comprometida com dois projetos: (i) trazer o sujeito cognitivo para o centro das investigações, depois da empreitada estruturalista de inspiração sociologizante, e (ii) centrar os estudos linguísticos na forma gramatical. O resultado é a emergência de uma forma de fazer linguística – o gerativismo – que aposta em um sujeito programado para gerar sentenças algoritimicamente, a partir de um mecanismo autônomo. Desde então, e a despeito das sucessivas reformulações por que tem passado a linguística gerativa, o Princípio da Autonomia da Sintaxe tem se mantido, provavelmente, como a pedra-de-toque da teoria. É em oposição a esse modelo que começa a emergir, em meados dos anos 1970, um conjunto de trabalhos que irão convergir para compor o arcabouço da linguística cognitiva. Em comum a todos eles, a manutenção da ênfase mentalista da gramática gerativa aliada a uma tendência a buscar fora dos limites estritos das estruturas sintáticas a explicação para fenômenos gramaticais. A ênfase se volta, assim, para mecanismos cognitivos gerais (não especificamente linguísticos). O que une todos os cognitivismos, portanto, é a crença na não-autonomia da linguagem. Para usar uma máxima de Goldberg (1995, p. 5), “conhecimento linguístico é conhecimento” – afirmação cuja aparente tautologia encerra uma declaração de princípios contra a disposição gerativista em enclausurar os problemas gramaticais dentro dos limites da forma linguística. Tal aposta na não-autonomia assume uma forma específica, ademais, com a hipótese de que o significado linguístico reflete, em alguma medida, o modo como o ser humano conceptualiza o mundo. Nesse cenário, lidar com o significado implica vasculhar o inventário de conceitos armazenado na mente do sujeito. Diante disso, é razoável perguntar: qual a natureza de tais conceitos?

Partindo dessa pergunta, cognitivistas de primeira hora reconheceram uma série de estruturas que comporiam o aparato conceptual humano – como frames, espaços mentais e modelos cognitivos idealizados. Dentre elas, uma tem importância capital para este trabalho: os esquemas imagéticos (EIs), estruturas que codificam padrões recorrentes que experienciamos em nossa interação sensóriomotora com o mundo. Como exemplos de alguns desses padrões, citem-se: cenários em que nossos corpos ocupam o centro de um ambiente de experiências; situações em que uma pessoa ou objeto é arrastado por uma força maior que a sua; situações em que um obstáculo impede a passagem de uma pessoa ou objeto; etc. Na seção 3.1 identificaremos o esquema que captura o substrato conceptual da CL.

2.2 Gramática de construções O rótulo gramática de construções recobre um número razoável de modelos teóricos mais ou menos divergentes entre si. O que importa no momento, porém, é afirmar aquilo que os irmana: a recusa à noção de língua como um conjunto de regras aplicadas sobre itens lexicais, substituída pela ideia de gramática como uma coleção (estruturada) de construções gramaticais. Estas, por sua vez, se definem como pareamentos convencionais de forma e significado. O trabalho de Goldberg (1995) dedica-se às construções inteiramente abertas de estrutura argumental. Seu ponto de partida é a hipótese de que as grades temático-argumentais dos verbos são, a rigor, construções gramaticais. Por exemplo, a construção bitransitiva apresenta a forma SUJ V OBJ1 OBJ2 e o significado X FAZER Y RECEBER Z. A Construção de Movimento Causado, por sua vez, tem a forma SUJ V OBJ OBL e o significado X FAZER Y MOVER-SE PARA Z.

Essas

formulações

constituem,

a

rigor,

tentativas

de

apreender

proposicionalmente um tipo de conhecimento que é, em sua essência, de natureza conceptual e pré-linguística, sendo capturado por meio dos esquemas imagéticos. É nesse espírito que Goldberg (1995, p. 39) formula sua Hipótese da Codificação de Cenas, segundo a qual construções de estrutura argumental têm sua semântica associada a gestalts experienciais básicos. Sob uma perspectiva construcional, portanto, a própria estrutura sintática desencarnada é emparelhada a uma especificação semântica. Por isso, o verbo não será o único responsável por determinar o significado da sentença – esse trabalho passa a ser dividido com a construção sintática. Assim, no lugar de uma sintaxe projetada do léxico, emerge um modelo no qual construção sintática e construção lexical interagem sob a regulação de princípios determinados. De acordo com Goldberg (1995; 2006), o polo semântico das construções de estrutura argumental especifica os papéis argumentais (semânticos) previstos por cada padrão. Já o polo formal da construção prevê o seu número de argumentos e a relação gramatical de cada um. A notação consagrada em Goldberg (1995) aparece na figura abaixo, em que se representa a construção benefactiva do português:

Semântica

FAZER RECEBER PRED

Sintaxe

V

< agente

beneficiário

paciente >

<

>

SUJ

OBJ1

OBJ2

Figura 1 – Construção benefactiva do português

Ainda segundo Goldberg (1995, p. 31), construções gramaticais “associam-se tipicamente a uma família de sentidos estreitamente relacionados, e não a um único

significado fixo e abstrato”. Afinal, se palavras e morfemas são quase sempre polissêmicos, é de se esperar que esses padrões também o sejam. De fato, a ideia de polissemia construcional tem-se mostrado instigante. A importância dessa ideia fica clara quando se observa a construção benefactiva do português, na qual o sentido central apreendido pela fórmula X FAZER Y RECEBER Z, e ilustrado por sentenças como “João deu uma flor para Maria”, vem acompanhado de cinco extensões polissêmicas1:

A. Sentido central: agente realiza transferência bem-sucedida de paciente a beneficiário Ex: João deu uma flor para Maria. B. Condições de Satisfação implicam que o agente de fato realize uma transferência de paciente para beneficiário Ex: Ela prometeu uma bicicleta para o filho C. Agente faz beneficiário não receber paciente Ex: O professor negou a revis„o da prova ao aluno. D. Agente faz beneficiário receber paciente em algum momento futuro Ex: Ela reservou um quarto para os dois. E. Agente permite que beneficiário receba recipiente Ex. O juiz permitiu a vitória ao Botafogo F. Agente pretende fazer beneficiário receber paciente Ex: João fez uma torta para Maria.

1

Esta descrição é uma adaptação da análise de Goldberg (1995) para a construção bitransitiva do inglês.

No modelo goldbergiano, a polissemia construcional é captada por meio de uma rede que conta com um centro prototípico e extensões polissêmicas. Cada nó da rede constitui uma subconstrução minimamente distinta, e as extensões polissêmicas herdam a estrutura sintática da construção central, o que é. Para representar essa herança, postula-se a existência de links de polissemia.

3. A construção locativa do português brasileiro 3.1 O substrato conceptual da CL: o conceito de locatividade Sentenças como “Tem um gato aqui” são instâncias prototípicas da CL (ver seção 3.3). Tipicamente, tais sentenças têm sido chamadas de existenciais (LAKOFF, 1987; HEINE, 1997; etc). Talvez por soar tão intuitiva, essa denominação acaba frequentemente dispensando uma definição prévia da noção de existência. Há, no entanto, pelo menos dois significados associados ao verbo existir:

(1) Deus / Papai Noel / Político honesto existe. (2) Existe água em Marte.

Mesmo antes de qualquer análise mais aprofundada, nota-se que apenas em (2) atesta-se a presença de um ente em um espaço delimitado. Em (1), diferentemente, afirma-se o estatuto de realidade dos referentes dos SNs (em oposição à crença socialmente disponível de que se trataria de categorias fictícias). Neste estudo, focalizamos unicamente os usos do tipo (2). Essa é a razão pela qual optamos por nos batizar essa construção como locativa, em detrimento do mais tradicional “construção existencial”. Dessa forma, esperamos marcar a exclusão das estruturas do tipo (2) do nosso raio de observação.

Feita essa distinção, fica a pergunta: como captar o substrato conceptual específico da CL? Como já ficou dito, a Hipótese da Codificação de Cenas sustenta que construções de estrutura argumental fundamentam-se sobre cenas básicas da experiência humana. Aqui, argumentamos que a CL evoca o cenário de continência de uma entidade em um espaço delimitado. Tal cenário é codificado no EI do contêiner (JOHNSON, 1987), representado na figura 2, mais abaixo. Como se você, esse esquema prevê dois elementos: um continente, representando pelo círculo, e um conteúdo, representado pelo X. Tal esquema permite individualizar a CL em relação à construção existencial, do tipo (1) acima, já que esta não prevê a existência de um espaço de fronteiras delimitadas. Nas palavras de Langacker (2004), essa construção contém uma “especificação locativa genérica, maximamente esquemática”, ou seja, sem fronteiras definidas. Por outro lado, é necessário distinguir a CL de uma segunda construção que guarda com ela parentesco conceptual: a construção possessiva (HEINE, 1997; LANGACKER, 2004), exemplificada em (3):

(3) Esta cidade tem muitas praias.

É fácil verificar que a CL e a construção possessiva preveem os mesmo dois elementos: um continente e um conteúdo. Segundo a nossa hipótese, isso significa que a ambas subjaz o mesmo EI do contêiner. Diante disso, sustentamos que a diferença entre elas diz respeito à proeminência focal: no caso da CL, o foco recai sobre o conteúdo; no caso da construção possessiva, ele recai sobre o contêiner. Essa diferença pode ser representada assim:

CONSTRUÇÃO LOCATIVA

X

CONSTRUÇÃO POSSESSIVA

X

Figura 2 – Esquemas imagéticos das construções locativa e possessiva

Em suma, sustentamos que CL se fundamenta sobre o EI de contêiner com foco sobre o conteúdo, no que ela se diferencia das duas construções conceptualmente próximas: a existencial (que não inclui o contêiner) e a possessiva (cujo foco recai sobre o continente).

3.2 Papéis argumentais e relações gramaticais Argumentamos que a CL se fundamenta sobre um EI formado por dois elementos: um contêiner e um conteúdo. São precisamente essas as duas entidades previstas pela semântica da construção e associadas, nela, a relações sintáticas. Formalmente, o conteúdo irá se manifestar como um SN com relação gramatical de sujeito; o contêiner aparecerá sob a forma de um Sintagma Preposicionado ou Adverbial em relação oblíqua. Semanticamente, a CL prevê o papel argumental de objeto locado associado ao sujeito e o papel de locativo associado ao oblíquo2. Por fim, assim como a expressão FAZER RECEBER é uma boa tradução para apreender a contribuição semântica da construção benefactiva, propomos para

2

O SN único das sentenças locativas é tradicionalmente analisado como sujeito na maioria das instanciações da CL (ver seção 3.3), à exceção dos casos com “haver” e “ter existencial”. Aqui, porém, propomos a generalização da relação gramatical de sujeito para todos os usos da CL. Da mesma forma, pode causar surpresa a opção pelo papel de “objeto locado”, no lugar do mais tradicional “tema”. Por razões de espaço, não é possível desenvolver aqui as justificativas para esses tratamentos; por isso remetemos o leitor para Pinheiro (2007).

o nosso caso a formulação ESTAR CONTIDO EM. Todos esses elementos estão representados a seguir:

Semântica

ESTAR CONTIDO EM PRED

Sintaxe

V

< obj. locado oblíquo > <

> SUJ

OBL.

Figura 3 – Construção locativa do português brasileiro

Ao postular um padrão construcional com uma especificação diretamente associada a ele, podemos explicar, de maneira econômica, usos que, em abordagens lexicocêntricas, demandariam o recurso pouco intuitivo à noção de homonímia. Tome-se o exemplo abaixo:

(4) Sinceramente, eu não entendo o porquê da pergunta. Aí vai só uma questão de opinião.

Coletado do corpus do Projeto NURC de Porto Alegre, esse uso aparece em trabalho de Franchi, Viotti e Negrão (1998) sobre as orações impessoais com ter e haver. Interessantemente, os próprios autores reconhecem que sentenças como essa “poderiam ser incluídas entre as existenciais”3, mas garantem que se trata de “casos excepcionais”. Concordamos que em (4) há uma sentença locativa, parafraseável como “Aí tem só uma questão de opinião”. Um uso análogo aparece abaixo:

3

As construções que os autores chamam de existenciais correspondem à nossa locativa.

(5) Na minha salada, só não vai palmito.

Em seu uso típico de verbo de movimento, o verbo ir exprime o trajeto de um ente em direção a um alvo, o que não parece acontecer em (5). Distribucionalmente, no PB, o “ir de movimento” pode aparecer com as preposições em, a ou para:

(6) a. O menino foi no cinema. b. O menino foi ao cinema. c. O menino foi pro cinema.

Em (5), porém, só a primeira opção é possível:

(7) a. Na minha salada, só não vai palmito. b. *À minha salada, só não vai palmito. c. *Pra minha salada, só não vai palmito.

Diante da correlação entre significado e diferenças distribucionais, uma análise lexicocêntrica recorreria ao expediente de postular duas acepções diferentes para o verbo ir, associando a cada uma delas uma grade temática distinta. Assim, a entrada lexical IR1 apresentaria a acepção usual de “mover-se para algum lugar”, e sua grade temática especificaria um agente e um alvo. Por sua vez, a entrada IR 2 teria um significado próximo a “ter / haver” (ou talvez algo como “ser incluído”), e sua grade temática especificaria um tema para o SN e um locativo para o Sintagma Preposicionado ou Adverbial, o que deveria dar conta das restrições distribucionais

observadas. Essa solução, porém, padece de alguns problemas: postula um sentido improvável para o verbo ir, é circular e não é semanticamente parcimoniosa. A GC, por seu turno, defende uma solução radicalmente distinta. Propõe-se que a noção de locatividade seja atribuída diretamente à construção gramatical. Ou seja, defendemos a existência de um padrão utilizado para designar uma cena de continência de uma entidade em um espaço (esquema do contêiner). Inserido nesse padrão, qualquer verbo deverá se amoldar a esse cenário, o que implica uma acomodação a três propriedades da CL: o referente do SN sujeito deverá ser um objeto locado dentre um espaço; esse mesmo referente não poderá apresentar propriedades agentivas; o espaço considerado deve ser entendido como lugar onde, quer dizer, como locativo, e não como alvo ou lugar para onde. É isso que se verifica nos exemplos (4) a (6). Essa alteração no esquema temático-conceptual do verbo ir ocorre por força de sua instanciação na CL. Que se trata do padrão locativo, por sua vez, fica claro pela impossibilidade de instanciar a preposição para, que perfila um movimento ao longo de um percurso, e não a noção de continência tipicamente designada por em ou outras preposições e locuções prepositivas estativas, como dentro de, em cima de, embaixo de, sobre, sob, etc. Em suma, a postulação de uma construção locativa com a configuração semântica proposta permite explicar, de forma econômica, usos como (4) e (5). Ao mesmo tempo, e inversamente, a mudança semântica que se verifica com o verbo ir naqueles exemplos é evidência extra no sentido de demonstrar a necessidade de postular a CL nos termos como o fizemos: com base em no esquema de conêiner, que se traduz nos elementos semânticos objeto locado e locativo.

3.3 Rede polissêmica Na seção anterior, definimos para a CL o sentido básico de ESTAR CONTIDO EM, tendo como fundamento o esquema do contêiner apresentado em 3.1. Isso não significa, porém, que este dizer que seja o seu único sentido da construção. Como já comentamos, diversos estudos de têm verificado o fenômeno da polissemia construcional, que se relaciona diretamente, no modelo de Goldberg (1995), aos predicadores que podem instanciar o esquema sintático: como regra geral, construções abertas são polissêmicas porque diferentes classes de predicadores definem e atualizam sentidos específicos, embora inegavelmente vinculados ao sentido central. Diante disso, é de se esperar que a CL não seja instanciada apenas pelos verbos ter, existir e haver – aqueles que tradicionalmente têm sido associados às “construções existenciais” –, já que isso significaria abrir mão do reconhecimento da polissemia. Neste trabalho, propomos que, além do significado central X ESTAR CONTIDO EM UM ESPAÇO Y, que se manifesta-se no PB com verbos como ter, haver, existir, estar e ficar, a CL exibe quatro extensões polissêmicas. Essas irradiações constituem variações mínimas do sentido básico e, crucialmente, não deixam de remeter ao mesmo padrão imagético. São elas:

(i) Negação: X não está contido em um espaço Y Ex: Falta sal na comida. (ii) Aspecto permansivo: X continua contido em um espaço Y Ex: Ficou muita comida no prato. (iii) Aspecto inceptivo: X passa a estar contido em um espaço Y

Ex: Apareceu um rato no meu apartamento. (iv) Modalidade: X pode estar contido em um espaÁo Y Ex: Cabem cinco pessoas nesse caro.

A rede polissêmica da locatividade se representa de acordo com o esquema abaixo. A sigla Hp significa Herança por Polissemia, conforme o exposto na introdução deste trabalho.

A. OBJ. LOCADO não está contido em LOCATIVO

C. OBJ. LOCADO continua está contido em LOCATIVO

(negação de locação)

(manutenção da locação – aspecto permansivo)

Verbo: faltar Verbo: faltar

Hp

Hp A. Sentido Central

OBJ. LOCADO está contido em LOCATIVO Verbos: ter, existir, ficar, estar, haver

Hp

Hp

D. OBJ. LOCADO pode estar contido em LOCATIVO

E. OBJ. LOCADO passa a estar contido em LOCATIVO

(ausência de barreiras para concretização da locação– modalidade)

(início de locação – aspecto inceptivo)

Verbo: caber, entrar, ir

Verbo: aparecer, surgir, cair, chegar, ficar

Figura 4 – Rede polissêmica da construção locativa do português brasileiro

Essa rede permite dar um tratamento unificado a todas as sentenças abaixo:

(8) Existem lhamas no Chile. (9) Faltam bons laterais nesse time. (10) Couberam poucos casacos na mala. (11) Ainda ficou muita gente na festa. (12) Apareceu uma lhama no albergue.

No primeiro caso, exprime-se a noção de continência codificada no esquema do contêiner sem o acréscimo de qualquer nuance semântica. Nos outros casos, a cena básica do núcleo prototípico é acrescida de valores semântico-gramaticais específicos, gerando extensões de sentido regulares relativamente ao centro da rede. Em (9), a cena é negada; em (10), afirma-se apenas que ela é possível, que não há nenhuma barreira que a impeça de ocorrer; em (11), que o cenário designado pelo esquema prolongou-se no tempo; em (12), focaliza-se o momento em que uma entidade passa a estar dentro dos limites do espaço considerado. Por razões de espaço, não será possível aqui detalhar cada nó ou subconstrução da rede polissêmica da locatividade. Esperamos, de todo modo, que os resultados apresentados tenham sido suficientes para apresentar as linhas gerais da construção locativa do português brasileiro.

REFERÊNCIAS GOLDBERG, Adele. Constructions: a construction grammar approach to argument structure. Chicago: University Press, 1995. ____. Constructions at work: the nature of generalization in language. Cambridge: University Press, 2006.

HEINE, Bernd. Possession: Cognitive Sources, Forces and Grammaticalization. Cambridge: University Press,1997. JOHNSON, Mark. The body in the mind: the bodily basis of meaning, imagination and reason. Chicago: University Press, 11987. LAKOFF, George. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the mind. Chicago: University Press, 1987. LANGACKER, Ronald. Investigations in cognitive Grammar. Berlin: Mouton de Gruyter, 2004. PINHEIRO, Diogo. Aspectos sintáticos e semânticos da construção locativa do português brasileiro. Dissertação de mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.