Suburbanização e Racismo no Rio de Janeiro: uma leitura de Madureira e Dona Clara no contexto pós-emancipação (1901-1920). Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.

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ALLINE TORRES DIAS DA CRUZ

SUBURBANIZAÇÃO E RACISMO NO RIO DE JANEIRO: uma leitura de Madureira e Dona Clara no contexto pósemancipação (1901-1920)

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional. a

a

Orientadora: Prof Dr . Fania Fridman.

Rio de Janeiro 2007

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FICHA CATALOGRÁFICA

Dissertação de Mestrado

Cruz, Alline Torres Dias da. Suburbanização e racismo no Rio de Janeiro: uma leitura de Madureira e Dona Clara no contexto pósemancipação (1901-1920)/ Alline Torres Dias da Cruz. – 2007. 164f. ; 30 cm

Orientador: Fania Fridman. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2007. Bibliografia: f. 150-157. 1. História. 2. Urbanidade. 3. Suburbanização. 4. Racismo. 5. Categorias Raciais. 6. Territorialização. 7. Segregação Urbana. 8. Rio de Janeiro. I. Fridman, Fania. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. III. Título.

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Alline Torres Dias da Cruz

SUBURBANIZAÇÃO E RACISMO NO RIO DE JANEIRO: uma leitura de Madureira e Dona Clara no contexto pósemancipação (1901-1920) Dissertação submetida ao corpo docente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional.

Aprovado em:

Prof. Dra Fania Fridman – Orientadora Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ

a

Prof. Dr Luciana Côrrea do Lago Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ

Prof. Dr. Flávio dos Santos Gomes Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – UFRJ

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Às minhas melhores e maiores heranças: Avelina Ramos, minha eterna Mãe-ina, minha bisavó (in memoriam), e Rosalino da Silva, meu vô Rosa (in memoriam). À querida Dite, Judite Torres da Silva, minha avó.

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Agradecimentos Escrever esta dissertação foi também um ato coletivo. Apesar de na maior parte dos dias e meses em que me dediquei a este trabalho, me perceber só e pensativa à frente da imensidão que nestes momentos parece tomar a tela do computador, é com esta sensação que chego ao final deste período, do qual já sinto saudade. Dele, participaram pessoas muito especiais. Antes de agradecê-las, contudo, gostaria de registrar que a bolsa concedida pela FAPERJ no segundo ano do curso foi fundamental para que eu pudesse viabilizar a pesquisa. O incentivo, a dedicação e a seriedade com que fui orientada pela professora Fania Fridmam, e o convívio com Fernanda e Marília nas reuniões que realizamos desde o ingresso no mestrado, partilhando dúvidas e inseguranças, mas principalmente o desejo de que os nossos projetos se tornassem possíveis, foram experiências gratificantes, especialmente agora que vimos que conseguimos. Gabriel Strautman, Daniel Soares, Frederico Irias, Ramana Jacques e Luana Menezes foram os melhores amigos que poderia fazer ao ingressar no mestrado. Durantes bons meses eles foram a minha turma, e mesmo mais afastados agora, também penso como o Gabriel ou terá sido o Daniel? Parece que nos conhecemos há tempo, desde criancinhas. Janaína Tude Sevá e Aline Torres Camargo, antigas companheiras de trabalho, mas atuais companheiras de luta, viram o início da minha empolgação com o tema, a ansiedade com relação à prova, à aprovação... Carolina Gonçalves e Ana Paula Pinheiro. Como agradecer à Carol e à Ana que me ouviram e me ouviram e me ouviram, sobre o trabalho e todo o resto; ao Leonardo Soares que reencontrei em um arquivo da vida, e se tornou meu parceiro de idas e vindas atrás de documentação, de conversa, de inquietação, e de risada, quebrando o isolamento que envolve esta atividade; ao Alain Kaly, por tudo. À minha família, qualquer agradecimento é insuficiente. Como conviver com alguém que por quase dois anos só parecia conhecer palavras da sua pesquisa, dos seus textos, dos seus livros.... Tenho certeza que sem o apoio, a compreensão, o estímulo e a paciência da minha super mãe, muito mais que mãe, Marlene Torres, dos meus irmãos, Gustavo e Ellaine – meus amores –, do meu pequeno grande sábio primo José Ricardo, e da minha Tia I, seria muito difícil continuar neste caminho. A vocês sou extremamente grata.

A todos que torceram por mim, o meu muito obrigada.

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO

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2URBANIDADES

EM

DISPUTA:

AS

TENTATIVAS

DE

(DES)AFRICANIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO REPUBLICANO 2.1 A RELAÇÃO CIDADE E SUBÚRBIOS ENQUANTO UMA CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA

18

2.2 SOBRESSALTOS ESTÃO POR TODA A PARTE 37 2.3 NEGROS LIVRES E LIBERTOS NA CIDADE E AS RESTRIÇÕES À LIBERDADE

50

3 SOLIDARIEDADES E DIFERENÇAS EM MADUREIRA 3.1 À PROCURA DE OUTROS CENÁRIOS

64

3.2 EMBATES COTIDIANOS

82

3.3

RIVALIDADES

ENTRE

OS

GRUPOS

CARNAVALESCOS

MADUREIRA

EM 100

3.4 “DESORDEIRO”, “TRABALHADOR” E “PRETO”: OS VESTÍGIOS DE UMA HISTÓRIA

108

4 CENÁRIOS DE DISPUTA: GÊNERO, COR E TERRITORIALIDADES EM DONA CLARA 4.1

MARIA

E

SEUS

TERRITÓRIOS:

ENTRE

A

DIFERENÇA

E

A

INDIFERENÇA

120

4.2 A CLASSIFICAÇÃO RACIAL COMO ESTRATÉGIA DE LUTA

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4.3- DAS HISTÓRIAS QUE FAZEM UM BAIRRO

138

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

147

REFERÊNCIAS

150

ANEXOS

158

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CRUZ, Alline Torres Dias da. Suburbanização e racismo no Rio de Janeiro: uma leitura de Madureira e Dona Clara no contexto pós-emancipação (19011920). 164 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Resumo Este resumo visa apresentar a discussão que realizo em minha pesquisa de dissertação de mestrado relativa ao reordenamento sócio-territorial do Distrito Federal entre fins do século XIX e os primeiros anos do XX, no bojo do contexto pós-emancipação e republicano. Submetido a uma divisão políticoadministrativa que classificava as freguesias (depois distritos) em urbanas e suburbanas, o Rio de Janeiro desse período, incluindo as suas áreas centrais, era caracterizado por funções e usos rurais. Tais práticas, no entanto, tornaram-se um dos alvos tanto dos Códigos de Posturas, que regulavam e ordenavam o cotidiano, como também da imprensa. Forjados a partir de um ideário higienista, as normas públicas, os posicionamentos dos jornais e as reclamações de parte dos moradores da cidade reivindicavam a intervenção do poder público no controle de atividades vistas como insalubres, tais como o cultivo de capinzais, de hortas e pastos, a edificação de estábulos e de cocheiras. Deste modo, ao limitar e autorizar estas práticas sociais em apenas uma parte do território carioca, o Estado construía politicamente um processo de suburbanização, buscando concentrar espacialmente usos "sujos" e indesejados. As ameaças à produção de uma urbanidade para as áreas centrais da capital do país, no entanto, não viriam apenas daquelas atividades. O debate político e intelectual que articulou a temática da modernização econômica, fundada no trabalho livre imigrante e nas tentativas de industrialização, à necessidade de edificação de uma capital moderna e burguesa, combateu também os modos de apropriação da cidade inventados pela população afro-brasileira que, se ao final do século XIX estava espraiada de maneira mais equilibrada no território, em pouco mais de meio século concentrou-se, sobretudo, nos bairros nascidos das antigas freguesias suburbanas. As origens deste processo de segregação urbana são analisadas a partir dos subúrbios de Madureira e de Dona Clara.

Palavras-chaves História, Urbanidade, Suburbanização, Racismo, Territorialização, Segregação Urbana, Rio de Janeiro.

Categorias

Raciais,

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Abstract The present work aims at presenting and discussing the social-territorial reordering of Distrito Federal at the end of XIXth Century and the first years of XXth in the light of the post-emancipation and republican context. Subjected to a political-administrative division that classified the parishes (districts later on) into urbans and suburbans, Rio de Janeiro, at that time, including its central areas, was characterized according to its functions and rural uses. However, such common practices became one of the goals of both the Postures Code, which regulated and ordered the quotidian, and the press. Based on hygienist ideas, public rules, newspapers and city dwellers revindicated public power intervention in the control of insalubrious activities such as hayfield, vegetable gardens and pastures and barn and stable buildings. Then, by limiting and authorizing such social practices in some parts of the carioca territory, the State politically created a suburbanization process, aiming at spatially concentrating undesirable and “dirty” uses. The threatens to urban production for central areas of the country, however, would not come only from those activities. The political and intellectual debate articulated the issue of the modern economy, founded on the immigrant free work and the industrialized attempts, to the necessity of building a modern and burgess capital and combated the appropriation ways of the city invented by afro-brazilian population. Nevertheless, if at the end of the XIXth century, the afro-brazilian population was placed in a balanced way in the territory, by the middle of the following century, it was concentrated in the districts originated from the old suburban parish. The origins of this urban segregation process will be analyzed considering the suburbs of Madureira e de Dona Clara.

Key-Word History, Urbanity, Suburbanization, Racism, Racial Categories, Territorialisation Urban Segregation, Rio de Janeiro

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Lista de Quadros Quadro I. Cidade e subúrbios do Rio de Janeiro (1799-1890)

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Quadro II. Cadastro das Habitações do Distrito Federal (1895)

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Lista de Mapas Mapa I. Planta da cidade do Rio de Janeiro e subúrbios [190?]

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Mapa II. Planta da cidade do Rio de Janeiro (1888)

71

Mapa III. Distrito de Irajá (1906)

75

Mapa IV. Carta Cadastral do Distrito Federal (1918)

137

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Lista de Quadros Gráfico I. Brancos (as) e negros (as) no Distrito Federal (1890).

48

Gráfico II. Brancos (as) e negros (as) no Distrito Federal (1950).

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Gráfico III. Homens livres segundo a cor na freguesia de Irajá (1872).

64

Gráfico IV. Mulheres livres segundo a cor na freguesia de Irajá (1872). 65 Gráfico V. Escravos segundo a cor na freguesia de Irajá (1872).

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Gráfico VI. Escravas segundo a cor na freguesia de Irajá (1872).

65

Gráfico VII. Negros e brancos na freguesia de Irajá (1872).

67

Gráfico VIII. Profissões na freguesia de Irajá, segundo a condição de livres, escravos e imigrantes (1872). 68 Gráfico IX. Brancos, pretos, mestiços e caboclos na freguesia de Irajá (1890). 69 Gráfico X. Brancas, pretas, mestiças e caboclas na freguesia de Irajá (1890). 70 Gráfico XI. Brancos (as) e negros (as) na freguesia de Irajá (1890). 71 Gráfico XII. Profissões segundo o gênero masculino e a nacionalidade no distrito de Irajá. 76 Gráfico XIII. Profissões segundo o gênero feminino e a nacionalidade no distrito de Irajá. 77

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1 INTRODUÇÃO Escrever esta dissertação foi um exercício teórico, analítico e cotidiano que teve como objetivo mais amplo estabelecer relações entre os processos históricos através dos quais os territórios são socialmente produzidos e algumas das opções políticas que alinhavam um modelo de urbanidade. O contexto histórico sobre o qual me debrucei, a passagem do século XIX e as primeiras décadas do XX, assim como as opções políticas, conectadas a um modelo de desenvolvimento social e econômico cujos paradigmas eram as sociedades européias e mesmo a norte-americana, conformaram um Rio de Janeiro elitista e desigual, do ponto de vista do acesso à rede de infra-estrutura, aos serviços urbanos, às possibilidades profissionais e habitacionais, mas também racista, ao se considerarem os modos de apropriação da cidade que parte da população negra desenvolveu, e que se tornaram um dos motes da barbarização de homens e mulheres pretos e mestiços no bojo da edificação de uma cidade moderna e burguesa. Deste modo, ainda que tenha me voltado para mais de um século atrás, objetivando compreender e estabelecer algumas proposições relativas à condição dos descendentes de ex-escravos africanos e crioulos no contexto pós-emancipação e republicano, o meu olhar e sentidos foram aguçados pela realidade contemporânea. Foi justamente porque estava sensibilizada para um convívio coletivo que articula discriminação e desigualdade sócio-econômica, que me senti capaz de produzir esta dissertação de mestrado. Aliada a estas questões, a literatura de que me apropriei, produzida nos campos da história social da escravidão e do trabalho, foi fundamental para romper certas prénoções – utilizando uma categoria sociológica – que justificavam a escravidão e a integração subalterna de negros e negras livres no Brasil republicano, a partir de argumentos como uma menor aptidão para o trabalho ou de uma incapacidade intelectual, resultado da coisificação do regime. Chalhoub (1990), Gomes (1996, 2003), Reis (1989) e Soares (1998, 1998/1999) demonstraram que durante a vigência do sistema escravista, conflitos e negociações perpassaram o dia-a-dia de cativos e cativas, trabalhadores compulsórios, que entre alianças com negros livres e libertos, brancos pobres, e mesmo algumas autoridades, e disputas com seus senhores, proprietários de terra e agentes repressivos, construíram diferentes estratégias de vida e de luta na e contra a ordem social estabelecida. Paralelo a isto, contribuições como as de Carneiro da Cunha (1985) e Lima (2003), que analisaram principalmente a primeira metade do

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século XIX, foram interessantes no sentido da discussão relativa, respectivamente, às práticas racializadas vigentes durante o Império, que hierarquizavam a população segundo a sua origem, africana ou crioula, mas também conforme a sua cor, preta ou mestiça, e à apropriação de uma linguagem racializada como estratégia política dos chamados homens livres de cor; práticas que se tornam um dos focos de estudo de Cunha (2002), que se voltou para o período republicano. Dentre as contribuições destes autores, o deslocamento teórico e metodológico visando a compreensão da população escrava enquanto sujeito histórico e político representou um posicionamento importante para que eu pudesse destacar, por exemplo, uma série de interdições cristalizadas nas legislações e projetos políticos no decorrer do Império referentes à permanência de negros (as) em ambientes urbanos Estes debates que tiveram início mais ou menos a partir dos anos de 1830, cujo desenlace mais radical se deu com a deportação de africanos livres para o seu continente de origem, incluindo aqueles que participaram do levante dos Malês em Salvador, foi retomado nos anos de 1870 e 1880, no contexto de discussões sobre o fim do escravismo enquanto um sistema de produção servil. A retirada da população negra das áreas urbanas foi expressa a partir da proibição de escravos em ocupações ligadas à manufatura, aos serviços de transporte terrestre e marítimo, em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, bem como de propostas de formação de colônias agrícolas, privilegiando-se assim a força de trabalho do imigrante europeu branco nas relações de trabalho assalariado nas cidades, afora, por exemplo, toda a discussão de Seyferth (1996; 2005) sobre a importância que a categoria raça desempenhou nos projetos de colonização do território brasileiro, excluindo a população nacional, negra e mestiça, do sistema de compra de lotes coloniais e da pequena produção familiar. Com base nestas questões, uma das perguntas que transcorreu esta dissertação referiu-se a tentar entender que dinâmicas socioespaciais e territorialidades se forjaram à medida que o Distrito Federal se tornava um centro de atração de imigrantes, mas também de migrantes de outros estados do país. As divisões político-administrativas do município em freguesias urbanas e suburbanas foram um caminho interessante para apontar duas questões. Por um lado, estas noções diziam respeito a uma certa hierarquização entre os dois âmbitos, atribuindo uma modernidade às áreas que se conformavam como urbanas – um certo tipo de construção chamado de prédios, a proibição de certas atividades comerciais e

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moradias populares, a expectativa de comportamentos polidos e corteses, e, sobretudo, a presença do Estado através da cobrança de tarifas e de melhoramentos e serviços, freqüentemente por meio de concessões a particulares. Por outro, ao se olhar para o Rio de Janeiro revelou-se o quanto a paisagem e o sítio pareciam apontar para outras dinâmicas. Desse entendimento surgiu o primeiro capítulo. Ao identificar que nos Códigos de Posturas, principalmente os de fins do século XIX, o controle sobre atividades tidas como rurais era uma das preocupações dos legisladores, que tratavam de impedir através de multas que estas permanecessem nas freguesias urbanas, depois chamadas de distritos, assim como permitiam-nas nos arrabaldes e subúrbios, notei um processo de suburbanização que empurrava, visando concentrar, usos e funções “sujos” e “inadequados” para uma parte do território, inclusive industriais. O que me foi muito bem-vindo, contudo, é que através da pesquisa no jornal Correio da Manhã surgiam reclamações de moradores de todos os cantos da cidade com relação à existência de capinzais, hortas, pastos e cocheiras, e de problemas como falta de água, limpeza das ruas e de moléstias. Procurando perceber o que se passava na cidade como um todo nos primeiros anos do século XX, pude indicar que apesar do adjetivo urbano caracterizar os distritos mais centrais, práticas e atividades rurais estavam presentes nestas áreas, e muito mais difundidas nos subúrbios. Assim, foi possível imaginar uma certa homogeneidade a norte e a sul da cidade, à medida que se afastava do centro comercial e político. Em contrapartida, seria tentando materializar um modelo de urbanidade, processo cuja intervenção do Estado foi decisiva, que as distinções de infra-estrutura, edificação, comportamento e representações sociais sobre os bairros iam sendo produzidas. Ao lado das reclamações ligadas a questões higienistas, o tema da desordem social estava na ordem do dia, e novamente os Códigos de Posturas do século XIX já remetiam ao quê e a quem se deveria controlar e reprimir. Os termos que se referiam a uma população de não-proprietários, incluindo desempregados, subempregados e mesmo trabalhadores, foram muitos. Em alguns contextos, no entanto, denominações amplamente veiculadas como vadios, desocupados e desordeiros, foram submetidas a estratégias de racialização. Através de categorias ligadas à cor das pessoas, a práticas afro-brasileiras e ao que era visto como a configuração de uma cidade africana, manifestaram-se mecanismos sociais e políticos que visavam combater urbanidades que não se enquadravam no modelo tecido e acordado pelas elites políticas e intelectuais,

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pela imprensa e por alguns segmentos da população do Rio de Janeiro. A questão que perpassou esta discussão revelou, no entanto, que os sobressaltos estavam por toda a parte, e eliminá-los, através da reivindicação da atuação da polícia, foi apenas uma das facetas do processo de segregação urbana. A diminuição da presença de negros e negras, em pouco mais de meio século segundo o censo de 1950, nos antigos distritos urbanos, inclusive naqueles mais centrais e nos da Glória, Lagoa e Gávea – que apresentavam uma população mais equilibrada em termos de “raça”, segundo o censo de 1890 –, correspondeu a uma outra configuração daquele processo. Deste modo, à medida que discuto que a introdução de uma urbanidade, baseada em um ideário anti-rural e antiafricano em algumas áreas do território do Rio de Janeiro, forjou o seu oposto, ou seja, a produção de outras isentas de infra-estrutura e serviços e nas quais a população negra fora se concentrando à medida que a cidade se espraiava, pretendo chamar a atenção para o fato de que isto não estava posto no início do século XX. Logo foi necessária a sua invenção. Procurando aproximar o olhar para uma destas áreas suburbanas, voltei-me para Madureira, e para isso fiz uso dos processos criminais e da documentação produzida no interior das instâncias policiais, seguindo as datas limites destas fontes, que iam até mais ou menos os anos de 1920, para delimitar o fim do período coberto pela dissertação. No segundo capítulo procurei entender e analisar em que redes e relações sociais se inseriam os moradores deste subúrbio no contexto pós-emancipação e republicano. Entre pequenos proprietários, notadamente donos de tavernas e botequins, trabalhadores nacionais e imigrantes, particularmente braçais e domésticas, e os agentes da polícia, alguns recrutados entre os moradores, identifiquei um cotidiano organizado a partir de alianças, mas também cisões. Solidariedades foram afirmadas no meio de conflitos, e alguns conflitos produziram solidariedades. Um dos personagens principais deste texto foi Ernani Rosa. Natural do Distrito Federal, provavelmente nascido nos anos finais do século XIX – a cada ida ao 23o Distrito Policial ele declarava uma idade –, era também conhecido em Madureira como filho de Chrisante Maria, moleque Otávio, e vivenciou situações em que foi identificado como um preto, estratégia que acenava no sentido de demarcar uma certa impessoalidade da parte daqueles que se referiam a ele mobilizando assim a sua cor. Neste sentido, racializá-lo se tornou um recurso mais freqüente à medida que Otávio se envolvia em conflitos, e assim desnudou-se um mecanismo social e político que, em seu

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caso, articulava cor à violência. Ao ampliar seus vínculos naquele subúrbio, reafirmando amizades, fazendo inimigos e estabelecendo relações amorosas, Otávio protagonizou confrontos, foi apontado pelos moradores como um desordeiro e se apresentou por diversas vezes como um trabalhador. Contudo, através dos vestígios da história de Otávio foi possível vislumbrar agenciamentos que eram também coletivos: disputas entre brasileiros e imigrantes, assim como entre brasileiros que se posicionavam de modo diferenciado em Madureira, além de uma presença feminina que se em alguns casos remeteu a relações de poder assimétricas, noutros estas foram contestadas. O último capítulo se inicia justamente enfocando alguns momentos da trajetória de mulheres negras e pobres, que se declararam domésticas e às vezes desempregadas, nos arredores da estação ferroviária de Dona Clara, linha circular da estação de Madureira, parada da Estrada de Ferro Central do Brasil. Entre algumas que diziam estar por ali de passagem e outras que lá se estabeleceram, D. Clara foi se configurando. Através de moradores e moradoras de origem e condições sociais diferentes, o convívio coletivo incomodou uns e fortaleceu outros. A paragem, que desde o início dos anos de 1910 era criticada pela imprensa local de Madureira como um lugar não-civilizado, foi descrita nos anos de 1930 e 1940, como a “Favela Suburbana”, referência ao morro da Favela localizado no centro do Capital Federal. Um dos motivos para isso, segundo as publicações, seria o número elevado de mulheres desordeiras, que faziam uso da navalha, dos golpes de capoeira, mas também da condição feminina, para atrair os imprudentes. Assim como nos percursos de Otávio, a referência à cor das mulheres sinalizava para a construção de uma identidade racializada. Para se referir a elas enquanto exemplos de barbarismo e comportamentos inapropriados, na maioria dos casos, tornou-se necessário revelar a sua cor. Gostaria, para terminar esta introdução e dar início à apresentação de um trabalho que, em termos “práticos”, começou em janeiro de 2005, quando iniciei a pesquisa documental junto ao Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro - AGCRJ, à Biblioteca Nacional - BN, ao Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro - APERJ, ao Arquivo Nacional - AN, e às bibliotecas do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - IPPUR, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS, do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRJ - PGG, e do Museu Nacional – MN de explicitar que muitas dissertações poderiam ser escritas sobre Madureira, por muitas

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pessoas. Esta, contudo, não foi apenas a que fui capaz de produzir. Foi a capaz também de me mobilizar.

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URBANIDADES

EM

DISPUTA:

AS

TENTATIVAS

DE

(DES)AFRICANIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO REPUBLICANO. 2.1 A RELAÇÃO CIDADE E SUBÚRBIOS ENQUANTO UMA CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA Arrabalde (do árabe arrabadh): bairro, povo que fica fora dos muros da cidade, ou vila; comumente se chamam também arrabaldes, os subúrbios e circunferências de algum grande povo; proximidades, vizinhanças. Suburbano (do latim suburbanus): vizinho, próximo da cidade; dos arrabaldes da cidade [..]. Urbanizar: tornar urbano, civilizar: Urbano: da cidade, pertencente à cidade: prédio urbano; dotado de urbanidade, civilizado; polido; cortês; (...), op. ao rústico, camponês, agreste, ou vilanesco (...). Urbanidade: qualidade de quem é urbano; a cortesia, e bom termo; os estilos da gente civilizada e polida; civilidade, polidez; delicadeza. (Silva, 1890)

O que poderia diferenciar um subúrbio do Distrito Federal de sua área urbana na passagem do século XIX ao XX? Ou de outro modo, seguindo ainda uma formulação de cunho essencialista, o que permitiria chamar Madureira, assim como outros “lugares” do Rio de Janeiro, de “subúrbio”? Vocábulo corrente no cotidiano da cidade, utilizado no século XIX por representantes políticos, administradores municipais, moradores, imprensa e mesmo viajantes estrangeiros, à noção de subúrbio ligavam-se significados tais como “vizinho, próximo da cidade; arrabaldes da cidade”. Dentro desta concepção romana, as áreas assim denominadas estariam separadas das muralhas, marcos físicos e simbólicos que instituíam as divisões entre os chamados subúrbios e a urbs. Ambos, contudo, inseriam-se em um território mais amplo, denominado cidade. Como bem demonstra Soares dos Santos (2006), no caso do Rio imperial a este entendimento sobrepõe-se um outro, visto que as “freguesias de fóra”, que remetia aos subúrbios do Rio de Janeiro no século XIX, aludiam também a uma concepção medieval na qual estes estariam excluídos de fato da idéia de cidade, posto que submetidos a posturas municipais distintas daquelas que conformavam as áreas urbanas, circunscritas na representação social e cartográfica como o território citadino, a “Cidade”. Como salienta o autor, A cidade do Rio de Janeiro fazia parte, desde a chegada da família real portuguesa em 1808, do Município da Corte. Este abarcava então a cidade propriamente dita - dentro da qual se situavam as “freguesias urbanas” - e

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as “freguesias de fóra”. A primeira era chamada também de “zona da cidade” e a segunda de “zona de campo”. Ou seja, o município aqui é composto por uma área urbana e outra que diríamos rural, como na Antiguidade; ao mesmo tempo, a noção de cidade empregada para diferenciar o seu território do restante do Município é a mesmo da Idade Média – a área urbana se localizando no núcleo original da cidade e os campos que ficando “fóra”, do lado externo das “muralhas”. Só que ainda persiste uma pergunta: no caso do Rio de Janeiro, que muralhas eram essas? Logicamente que se tratava de uma muralha simbólica, mas não sem conseqüências concretas de extrema relevância: tal muralha foi “construída” pelo então príncipe regente D. João quando da vinda da família real ao Brasil quando resolveu instituir por meio do alvará de 27 de junho daquele ano a cobrança da “Décima urbana” ou “Décima dos Rendimentos dos Prédios Urbanos”. Por essa determinação, as freguesias da Candelária, Sacramento, São José e Santa Rita formavam em conjunto a “zona da cidade” sobre a qual incidia a Décima urbana. Do outro lado, no “de fóra”, havia o restante do município, cujos limites eram estabelecidos em função dos limites da área de incidência da “Décima urbana”. Assim, tínhamos o Engenho Velho, Irajá, Jacarepaguá, Campo Grande, Inhaúma, Guaratiba, ilha do Governador, ilha de Paquetá e o curato de Santa Cruz como as freguesias não-urbanas. Isso se expressará na forma como o município é representado por meio dos mapas até as primeiras décadas do século XX: neles só a zona da cidade e, quando muito, seus arrabaldes são enfocados. As zonas suburbana e rural, áreas “de fóra” da cidade, também ficam fora dos mapas. Anos mais tarde – talvez em meados do século XIX – esta zona também seria chamada de “zona da légua e das povoações”. A justaposição desses termos dava bem o tom da indefinição e mistura entre usos rurais e urbanos nessa região. Mas não só nela, como também “dentro” da própria cidade. (SOARES DOS SANTOS, 2006, p.2-3)

De acordo com o autor, o mecanismo que legitimou as noções de cidade e subúrbios emergiu de uma decisão política do regente, quando instituiu a cobrança da Décima Urbana, fundando, assim, sobre a configuração da cidade colonial as possibilidades de um outro ordenamento do município neutro. Com a chegada ao Brasil de d. João VI e da Corte portuguesa, em 1808, e o seu estabelecimento na então capital do vice-reino, a divisão administrativa das freguesias urbanas e rurais foi modificada. Se, por um lado, a transferência do poder monárquico para um antigo território colonial português significou o início de um processo de transformações importantes, entre as quais, a abertura da economia do país aos mercados internacionais, sobretudo o inglês, e o desenvolvimento de atividades e serviços que correspondesse ao maior dinamismo comercial, por outro requalificou em termos políticos e culturais a vida urbana no Rio de Janeiro. Instituições de memória, pesquisa, artísticas, comerciais e jurídicoadministrativas foram fundadas para o exercício do poder monárquico e para a invenção de uma sociabilidade de Corte no que fora antes um território colonial.

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Instalada inicialmente no centro da cidade, a família real, assim como a aristocracia e funcionários que acompanhavam-na, localizaram-se em seguida nos arrabaldes, em chácaras e fazendas distanciadas da vida suja e tumultuada daquele espaço marcado pela presença negra em uma série de ocupações e atividades. Neste contexto histórico em que se apresentava a necessidade concreta de inserção espacial do monarca, funcionários e membros da Corte, a área central e os subúrbios mais próximos experimentaram uma série de intervenções e melhoramentos, o que levou à criação de novas freguesias ditas urbanas (assim definidas a partir do momento em que o poder imperial atuou na produção de alguma infra-estrutura como arruamento e dessecamento de pântanos para a ocupação) ou ainda à incorporação ao perímetro urbano de antigas freguesias rurais, quando submetidas a algum tipo de intervenção do governo imperial. As freguesias urbanas da Candelária e de São José, por estarem mais próximas do Paço Real (hoje, Paço Imperial), viriam a ser ao longo da primeira metade do século XIX, localidades de moradia dos grupos políticos e econômicos do Império, que ocupavam os sobrados já existentes ou se encaminhavam para as novas ruas abertas rumo à atual Lapa; enquanto os grupos pobres, como trabalhadores livres (alforriados, africanos e imigrantes) e escravos de ganho, se estabeleceram nas freguesias de Sacramento, Santana e Santa Rita nas quais se concentravam, respectivamente, o comércio, pequenas oficinas e fábricas, afora aqueles que residiam junto aos seus donos e em seus estabelecimentos. São Cristóvão, até então um antigo arraial incluído na freguesia rural do Engenho Velho, tornou-se o local de moradia de d. João VI e sua família, e algumas propriedades foram retalhadas em chácaras no que hoje conhecemos como Glória, Catete e Laranjeiras, para receber os membros da Corte. O crescimento desse tipo de moradia, de uso explicitamente nobre, levou à criação da freguesia urbana da Glória, em 1834, desmembrada da de São José. Botafogo, arrabalde que até então pertencia à freguesia da Lagoa, passou a ter uma ocupação mais constante, e em 1838 esta se tornou urbana junto com a freguesia do Engenho Velho. (ABREU, 1987). Em 1821, Sé, Candelária, São José, Santa Rita e Santana eram as freguesias urbanas da capital do Império, e Engenho Velho e Lagoa, ao lado de Inhaúma, Irajá, Jacarepaguá, Campo Grande, Guaratiba, Santa Cruz, e Ilhas do Governador e de Paquetá as suburbanas (rurais). De acordo com Salles e Carvalho (2005), neste ano a população da cidade do Rio de Janeiro ultrapassou os 70.000 habitantes – em 1799, por

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exemplo, eram 43.000 moradores –, com a população escrava passando de 35% para 46% deste total. Os autores, contudo, ressalvam que nestes percentuais não foi considerado o número de escravos das freguesias suburbanas, onde constituíam maioria. Passados mais de vinte anos, em 1849, às vésperas da abolição legal do tráfico internacional (1850), a população escrava representava 48% do total de moradores do Rio de Janeiro, que a essa época eram 206.000, alcançando 56% nas freguesias suburbanas. A dimensão destas cifras no que concernia à presença negra, particularmente a escrava no Rio de Janeiro, levaram historiadores como Alencastro (2006) e Soares (2006) a caracterizarem a capital imperial como a cidade que recebeu a maior população cativa de todas as Américas neste período. E mesmo com o declínio da escravidão urbana após o fim do tráfico internacional, conseqüência do direcionamento de escravos para as fazendas, em 1872 esta população formava 20% do total de habitantes da cidade do Rio de Janeiro. Através do Quadro I referente à divisão territorial do Rio de Janeiro nota-se a incorporação das freguesias suburbanas de Engenho Velho e Lagoa ao perímetro urbano e, por outro lado, as freguesias de Santana, da Glória, de Santo Antônio, de São Cristóvão, do Espírito Santo, do Engenho Novo e da Gávea como pertencentes à “Cidade”. Em contrapartida, Irajá, Inhaúma, Campo Grande, Guaratiba, Jacarepaguá, Santa Cruz e as ilhas, chegaram ao século XX sob a classificação de suburbanas (rurais).

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Quadro I. Cidade e subúrbios do Rio de Janeiro (1799 -1890)

Fonte: Recenseamento do Distrito Federal, 1906. http://biblioteca.ibge.gov.br

Destaco que a criação de freguesias urbanas e suburbanas, ao veicular uma percepção social do território mais ou menos dicotômica e hierárquica, posto que embaçada pela noção de vizinhança, de acordo com Morais (1890), refere-se à implementação de mecanismos administrativos e estratégias políticas. Neste sentido, este processo de conformação territorial diz respeito em boa medida a um ato de invenção. Criação que revela, como chama a atenção Soares dos Santos, o “tom da indefinição e mistura entre usos rurais e urbanos” no município como um todo. Do ponto de vista da paisagem, das propriedades e dos usos, haveria distinções extremas entre as freguesias urbana da Lagoa e a suburbana de Jacarepaguá durante o século

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XIX? Ou aquelas não emergiriam das tentativas de configuração de uma urbanidade pelo Estado através de suas agências, de concessões com empresas privadas ou com iniciativas particulares individuais? Se a “ruralidade”, tomando de empréstimo uma categoria utilizada por aquele autor, à qual se vinculavam as freguesias suburbanas tornou-se uma marca de distinção sócio-territorial, esta merece ser pensada enquanto uma produção. E isto pode ser apontado à medida que se toma um dos instrumentos administrativos que normatizava e regulava o Município Neutro durante o período imperial e o início da república: os Códigos de Posturas Municipais. Nos oitocentos, vários decretos proibiam que se realizassem no perímetro da área urbana, notadamente no centro político e comercial da cidade, atividades de caráter agrícola tais como hortas e capinzais para o comércio, criação de suínos, edificação de albergarias de vacas e currais para gado de corte, assim como se controlava, com o cadastramento e a aplicação de multas, a circulação de carroças e cocheiras para carregar água, café e produtos agrícolas. (CÓDIGO DE POSTURAS, 1894) Ao se considerarem estes exemplos, a ruptura que se desejava alcançar implicava na assunção por parte das elites políticas do Império, aqui representada pela Câmara Municipal, de um projeto que preconizava um modelo de urbanidade. Isto porque, como apontou Soares dos Santos, a idéia de urbs, veiculada, por exemplo, na Antiguidade, atribuía cidadania plena ao “cidadão lavrador”. Desta perspectiva, a imposição de uma urbanidade através dos códigos de posturas forjava um outro processo sócio-territorial, o da suburbanização, no interior do qual usos e práticas sociais tidos como sujos, impróprios e inadequados eram deslocados ou permitidos apenas nas áreas que do ponto de vista do próprio instrumento legislativo foram mantidas como “suburbanas”. No final do Império, o Código de Posturas (1889) em vigor, ao se voltar para as fábricas, oficinas, manufaturas e outros estabelecimentos industriais incômodos, insalubres ou perigosos, reeditava uma norma existente desde 1838 na qual se proibiam os curtumes na cidade e seus arrabaldes, determinando a sua remoção “para lugares distantes do centro da população, mediante licença municipal”. Além disso, ficava proibido no interior da “Cidade” – termo que a reduzia às áreas urbanas – as fábricas de vela de sebo, de destilar água ardente, de torra de tabaco em forno, de sabão, azeite, óleos ou outras em que se “empregam ingrediente que viciam a atmosfera, podendo ser

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estabelecidas, porém, nos subúrbios, e arrabaldes, que a Câmara permitir.” (CÓDIGO DE POSTURAS, op. cit, p. 26-7). Soma-se a esta norma a permissão de atividades como a de ferreiro, serralheiro, caldereiro e tanoeiro apenas em alguns pontos das freguesias urbanas, “rua do Teófilo Otoni, desde a rua da Quitanda à da Conceição, rua do Conselheiro Saraiva, Beco de Bragança, rua Primeiro de Março, entre a do Visconde de Inhaúma e a ladeira de São Bento, rua da Saúde, e todas as travessas e os becos, que desta vão ao mar, com exclusão das Praças da Harmonia e da Imperatriz e rua da Uruguaiana”.(CÓDIGO DE POSTURAS, op. cit, p. 26-27) Chamo a atenção, no entanto, para o fato de que a institucionalização destas normas não significava o seu acatamento imediato, tampouco a sua incorporação mecânica ao cotidiano. Assim como no caso dos cortiços e estalagens, resistências poderiam existir no interior do próprio legislativo, não se devendo desprezar o fato de que parlamentares do Império também eram proprietários ou estavam à frente de diferentes atividades comerciais. Deste modo, ainda no Código de 1889, contrariando decretos anteriores, na seção Novas Posturas, permitia-se o estabelecimento de estábulos, albergarias de vacas, cocheiras em qualquer ponto da cidade, ficando equiparadas às cocheiras e sujeitas às mesmas posturas com relação à construção. (CÓDIGO DE POSTURAS, op. cit, p. 66) Desta perspectiva, o Rio de Janeiro inicia o século XX ainda caracterizado por usos e funções rurais. Através da seção “Reclamações” publicada no jornal Correio da Manhã, verificou-se que as preocupações manifestadas nas legislações do século anterior objetivando a produção de um modelo de urbanidade fundamentalmente para as áreas urbanas, compunham as queixas de alguns moradores que nelas viviam, o que remete à internalização de valores e comportamentos cada vez mais vigilantes em relação ao que fosse compreendido como anti-urbano. Está resolvida a reconstrução, naturalmente com licença da Prefeitura, do estábulo de vacas, situado à ladeira do Monte Alegre e ao qual ficam contíguos casas da rua do Riachuelo, daquela mesma ladeira e da do Costa Bastos. Como dependência possui o referido estábulo um capinzal de cerca de dez metros quadrados, adubado por estrume verde, que é conservado sempre em grande depósito. Os mosquitos, esses terríveis portadores de micróbios, vivem ali, em nuvens densas, que fazem o desespero da circunvizinhança. Além disso, porque o terreno esteja muito acima do nível da rua do Riachuelo, o estrume que pouco dele vai descendo, chega a atulhar uma

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vala que corre pela chácara n. 131. (CORREIO DA MANHÃ, 3/ 11/1901, p.3)

Neste sentido, penso que as prescrições que citei referentes às normas, especialmente aquelas instituídas na passagem do regime monárquico ao republicano, se não foram prontamente implementadas, enunciaram algumas alternativas e, neste sentido, abriram um campo de discussão e de invenção relativo a um novo ordenamento da cidade. Logo, retornando à pergunta com que iniciei esta seção e baseando-me na discussão levantada, acredito que não se estaria falando sobre essências ao se procurar entender a relação, histórica e socialmente construída, entre “Cidade e subúrbios”. Ainda que do ponto de vista do processo histórico estas legislações não tenham sido implementadas ou bem sucedidas (segundo as expectativas daqueles que os formularam), através delas torna-se possível ver o quão carregado de práticas e sentidos vistos como rurais repousava a vida social e a conformação das áreas ditas urbanas do Rio de Janeiro. De tempos em tempos, novas reclamações eram feitas chamando a atenção para este fato. Informam-nos que existe uma grande horta no interior dos prédios ns. 139 e 141 da rua João Cardoso na Praia Formosa, a qual serve de pasto a porcos e outros animais por parte de seus proprietários. Convém notar que se tem dado no lugar alguns casos de moléstias, que se atribuem àquele foco de infecção. (CORREIO DA MANHÃ, 22/11/1901, p.3)

Estas, no entanto, não vinham apenas dos moradores das antigas freguesias urbanas. Várias reclamações chegavam ao Correio da Manhã também dos subúrbios, o que levou o jornal a manter durante algum tempo uma outra seção intitulada “Pelos Subúrbios”, voltada para os moradores daquelas paragens. As ruas Clara de Barros e Vitor Meireles, no Riachuelo, estão necessitadas de uma capinação, pois atualmente mais parecem capinzais que ruas. [...] Reclamam os moradores da rua Getúlio, em Todos os Santos, trecho compreendido entre as ruas Zeferino e Cachamby lado do morro, contra a falta de capinação, pois o capim já mede mais de um palmo de altura, o que quer dizer que os empregados da Limpeza Pública por lá não aparecem há muito tempo. (CORREIO DA MANHÃ, 3/7/1901, p.3)

Ao acompanhar estas seções abertas pelo Correio da Manhã bem no início do século, um ano antes do estabelecimento de Pereira Passos na administração municipal, comecei a perceber que, de um modo geral, tantos aqueles que residiam nos chamados

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distritos urbanos, nomenclatura que substituiu o termo freguesias pelo decreto de 1893, quanto nos suburbanos, denunciavam as condições de infra-estrutura, higiene e saneamento. Com isto pretendo chamar a atenção para o fato de que nos chamados subúrbios as queixas e reclamações esboçavam sentidos e percepções comuns no que se referia à atuação dos órgãos municipais. -Sr. Redator. – Peço-vos, por intermédio do vosso jornal, reclameis do delegado de higiene, providências no sentido de melhorar o estado de uma infecta vala existente na rua Domingos Lopes [Madureira], verdadeiro foco de infecção, que já tem causado muitas vítimas. Sendo a dita rua a mais central e próxima à estação, é de lastimar que o sr. delegado de higiene do distrito não se tenha dado ao trabalho de, por aquela rua, aparecer, afim de providenciar como o caso requer. (CORREIO DA MANHÃ, 24/6/1901, p.3).

Ou ainda, Moradores da rua Goiás, na estação do Méier, pedem-nos chamemos a atenção da diretoria de higiene para o estado lastimável em que se acha aquela via pública. As valas abertas para assentamento dos esgotos são verdadeiros focos de infecção, pela quantidade de águas estagnadas. Também nos pedem os moradores reclamar contra o fato de estar sendo novamente habitada uma casa condenada, como a cocheira Portilho. As autoridades respectivas precisam dar um passeio àquele sítio. (CORREIO DA MANHÃ, 12/1/1902, p.2)

Deste modo, proponho que as condições de insalubridade tão comuns nos pronunciamentos sobre o Rio de Janeiro do século XIX, e que se mantiveram no decorrer da República, não escapavam a outras áreas e localidades da cidade e a população do município como um todo vivenciava esta situação. Moradores de Cascadura, Campinho e Jacarepaguá, queixa[va]m-se do péssimo estado sanitário dessas localidades, onde a febre amarela domina. Atribuem a culpa disso à absoluta falta de higiene naquelas paragens, onde lavram moléstias epidêmicas, sem que para isso tenha olhos o delegado de higiene das referidas zonas.(CORREIO DA MANHÃ, 1/4/1903, p.2)

A varíola, contudo, parecia ser mais comum nos subúrbios. Em agosto de 1901, o Correio da Manhã publica uma nota, “Varíola nos subúrbios”, referente a três pessoas que teriam sido “atacadas do mal terrível que asseguradamente vai grassando nos subúrbios, graças a [sic] e desleixo das autoridades”. Os casos ocorreram segundo o jornal na rua Cristóvão Colombo, no Méier, onde um menor de idade havia falecido. Comunicou-se o fato ao inspetor de Higiene, que não teria tomado nenhuma providência, e assim levou-se o que aconteceu ao próprio secretário do “Desinfectório”.

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O barão de Pedro Afonso, em seguida, encaminhando uma carta ao periódico, apresentou as suas justificativas para o que se passava. Segundo ele, “a varíola só é adquirida por quem não está defendido pela vacina”, e neste ponto existiria um nó, pois o Instituto Vacínico, do qual era diretor, não economizaria esforços no sentido de combater a varíola, para isso “vacinando todos os dias, sem exceção, as pessoas que comparecem ao edifício do Catete; já fazendo visitas a todas as casas onde se apresentam casos e óbitos da varíola, e aí vacinando todas as pessoas que o permitem”. (CORREIO DA MANHÃ, 1/8/1901, p.1. (Grifo do texto) Deste modo, para além de todas as medidas implementadas pelo Instituto – difusão da vacina nas estalagens, casas de cômodos, habitações particulares e nos colégios, propaganda em jornais diários sobre a necessidade da população se defender da varíola, e a vacinação nas salas das agências das estações ferroviárias suburbanas –, segundo o barão de Pedro Afonso, “a inércia e a indiferença deste povo têm sido insuperáveis”. Ainda conforme ele, os vacinadores responsáveis pela aplicação nas paradas da Estrada de Ferro Central do Brasil [...] perdem o seu tempo, e ali vão às horas marcadas sem resultado. Ninguém comparece para ser vacinado! [...]. Mandando visitar diariamente as casas em que se tem dado casos ou óbitos de varíola para premunir pela vacinação o resto da família contra a terrível moléstia tem acontecido muitas vezes que diante do cadáver da pobre criança vítima da varíola, por não ter sido vacinada, as mães escondem os outros filhos para não os deixar vacinar. Em algumas casas, principalmente em estalagens, os chefes de certas famílias se recusam terminantemente à vacinação dos seus filhos, e ainda é bom quando o vacinador não é obrigado a retirar-se precipitadamente, para evitar manifestações hostis, completamente descabidas. A diretoria de Higiene, pelo seu lado, tem recomendado a seus comissionários a vacinação, e lhes tem distribuído a vacina para tal fim. (CORREIO DA MANHÃ, op. cit.)

A partir destes esclarecimentos o diretor do Instituto Vacínico conclui sua visão a respeito da varíola nos subúrbios do Rio de Janeiro de forma categórica: “[...] tudo esbarra contra a ignorância e má vontade do povo”. E baseando-se nessa posição, propõe ao redator do jornal que frente à tal situação seria necessário tomar “medidas legislativas sérias”, obrigando de fato que todos fossem vacinados e permitissem que seus filhos o fossem.

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Se as moléstias, a falta de água, e de limpeza das vias de acesso eram constantes nas manifestações públicas de diferentes pontos do Distrito Federal, naqueles que foram classificados como “urbanos” e quanto “suburbanos”, estava-se diante de um projeto de urbanidade razoavelmente considerado para pelo menos uma parte da população, independente da sua inserção territorial. Sugiro, assim, que ao se perceber que o discurso higienista, baseado na importância de uma série de melhoramentos urbanísticos, se encontrava espraiado e internalizado ao território da cidade como um todo, uma questão “urbana” perde o sentido enquanto um problema localizado apenas na parte central do Rio de Janeiro. Ainda em 1901, por exemplo, o Correio da Manhã informava que Tudo quanto a natureza nos deu de bom, a mão do homem tem convertido em coisa ruim. O inverso, justamente, do que ocorre em toda a parte do mundo. Nos limites da cidade temos a Copacabana, que a exploração já estragou; na Copacabana, o Leme, que o relaxamento das nossas administrações já consentiu que se dividisse, subdividisse em becos e travessas estreitas, emaranhados, também está cheio de brejos, sem água potável e sem gás. Entretanto, as habitações que lá existem pagam impostos, cobrados a título de receberem calçamento, asseio, água e iluminação. Em calçamento não se fala, nem é bom falar enquanto não houver um Prefeito de capacidade para ir lá apagar o feio, ganancioso e labiríntico traçado das ruas; água, obtém-se lá por favor de um proprietário; luz agora foi pedida pelos respectivos moradores. Dar-lhe-ão? Haverá quem concorde que ali é preciso um beneficiamento? (CORREIO DA MANHÃ, 20/6/1901, p.3)

Deste modo, acredito ser viável imaginar que a idéia segundo a qual o Rio de Janeiro deveria se “modernizar” e “civilizar” possa ter sido muito mais do que uma ideologia de empresários da construção civil ou de companhias estrangeiras visando a lucratividade de seus negócios, aliados a engenheiros que se passando por administradores competentes e desinteressados, atuariam em nome do desenvolvimento e do progresso capitalista, ou mesmo à negligência e corrupção de uma elite política patrimonialista e clientelista que defendia seus interesses. Uma política de dominação mais ampla alinhavava anseios, visões e expectativas, ainda que estes fossem manifestados por classes e grupos distintos. Isto porque no que se refere à renda, ao status social, ao capital cultural, e mesmo à preciosidade da vida humana, diferenças foram proclamadas em relação àqueles que moravam em Botafogo, considerado bairro

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nobre da cidade desde fins do século XIX, e no Jardim Botânico. Mantinha-se, no entanto, o mesmo discurso higienista. Quando são tomadas medidas extraordinárias em bem da saúde pública, não andaria mal a diretoria de higiene lançando as suas vistas para os bairros habitados por aqueles que, conhecedores da gravidade do mal que invadiu esta cidade e obedecendo estritamente aos mais rigorosos preceitos da higiene, estão entretanto, expostos a contrair moléstia, pela desídia de funcionários que não procuram extinguir conhecidos focos que ameaçam tragar vidas e vidas preciosas. Os estábulos, chiqueiros e capinzais abundam nos bairros de Botafogo e Jardim Botânico, e à discrição dos que têm esse gênero de negócio está a saúde dos moradores, porque as autoridades sanitárias, longe de prevenir o mal, agindo com a precisa energia para evitar a sua aparição e natural recrudescimento, confiam demais em proclamada salubridade, até que tenhamos de registrar os terríveis resultados dessa negligência. (CORREIO DA MANHÃ, 24/10/1901, p.3) (Grifo nosso)

A crença de que estábulos, chiqueiros, capinzais e cocheiras seriam focos de miasmas e de doenças infecciosas percorria as manifestações contra a permanência destes estabelecimentos e práticas sociais, permitindo que se indique que posicionamentos anti-rurais marcavam as intervenções públicas cujo intento era a produção de melhoramentos urbanísticos. Um sítio higiênico, saneado e civilizado, em uma palavra, urbano, deveria ter como fronteira o “rústico, camponês, agreste ou vilanesco”, como definido em Morais (1890). O que me soa instigante, por outro lado, é que esse tipo de interpretação – na qual condições materiais tais como o sítio, os estabelecimentos, as construções, os caminhos e as atividades tinham muita ênfase – pode ser apropriado metodologicamente no sentido de se pensar que o que estaria em jogo seriam as pessoas, os sujeitos sociais. Através do trecho citado, nota-se que no Rio do início do século, Botafogo era identificado na imprensa como um bairro habitado por classes privilegiadas, o que não quer dizer que exclusivamente por tais grupos, questão que será discutida mais adiante. Logo, o problema remetia aos perigos que aqueles moradores estavam expostos convivendo com atividades rurais naquela circunscrição. O que para aquela localidade significava uma permanência – passível de ser posta no passado por meio da ação e controle do Estado – generalizava-se para boa parte do centro da capital e subúrbios. Entretanto apesar das manifestações nos e dos jornais contra a existência das mesmas condições e práticas, do ponto de vista normativo, os territórios dos subúrbios tornaram-se os apropriados para os estabelecimentos e usos

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rurais, e no interior deles, para pessoas provavelmente vistas como não polidas e incivilizadas. Ressalvo, contudo, que menos do que uma fronteira rigidamente elaborada através dos Códigos de Posturas, o que sobressai desta discussão são justamente as indefinições que permeavam a caracterização dos bairros da capital do país como “urbanos” e “suburbanos”. Neste sentido, o esforço de delimitar, normatizar e estabelecer distinções, eliminando certas atividades (e pessoas) e especificando as suas possibilidades de inserção territorial, revela as tensões e os anseios que perpassam a produção social do espaço. Além disso, se um ideário anti-rural vinculava-se às preocupações higienistas da época, nelas reverberavam também significados pejorativos sobre a herança africana do povo brasileiro e os obstáculos encontrados para alçar o Rio de Janeiro à condição de metrópole burguesa e capitalista. Visando dar continuidade a este raciocínio, farei um desdobramento em relação à matéria sobre o caso de varíola nos subúrbios intentando recuperar a historicidade deste tema na cidade e, através dele, refletir sobre a seguinte hipótese: se o processo de suburbanização implicava a concentração de estabelecimentos, usos e funções incômodas e insalubres, industriais inclusive, as tentativas de desestruturação das redes e relações dos descendentes de africanos e negros crioulos, objetivando o estabelecimento da modernidade e civilidade, cumpriram um papel neste projeto de cidade. Como apontou Chalhoub (1996), a história do combate à varíola e das tentativas de inoculação e da vacinação “perdem-se na noite do tempo”. Incorporada ao cotidiano de povos africanos, de asiáticos e de europeus desde longa data, o que o autor chama de variolização – introdução do pus variólico ao corpo humano como medida preventiva ou de atenuação da doença – fazia parte de várias tradições culturais da medicina popular. No caso do Brasil, apenas no final do século XVIII haveriam surgido referências a esta experiência, pois conforme o autor, os portugueses não compartilhavam, diferentemente de outros países europeus e dos norte-americanos, deste procedimento com relação à doença. Apesar disto, no século XIX, nos pronunciamentos dos higienistas e estudiosos o aparecimento e a propagação da epidemia eram identificados sempre ao tráfico negreiro e à chegada de africanos escravizados ao país.

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O que vale iluminar do estudo de Chalhoub, no entanto, são algumas questões concernentes à relação entre vacinadores – nem sempre médicos formados – e a população. Saliento, contudo, que as tentativas de vacinação na Corte, durante o século XIX, baseava-se no método jenneriano através do qual prescrevia-se a introdução de matéria extraída dos úberes de vacas em um certo número de pessoas. A partir deste procedimento, os vacinado receberiam o fluido vacínico não mais do chamado cowpox, pois aquele seria extraído diretamente do braço dos que haviam passado pela primeira etapa da vacinação oito ou nove dias antes. Em Cidade Febril é possível entrever a possibilidade de que a prática de vacinação promovida pelo governo imperial, de um modo geral, fundava-se na aplicação do método jenneriano à população escrava, pois as classes mais abastadas tinham a opção de procurar o auxílio de médicos particulares. Afora uma série de dificuldades de ordem técnica e política, incluindo várias controvérsias entre os próprios médicos relativas à sua eficácia e à validade funcional da linfa variólica a partir da sua transmissão braço a braço, afora a possibilidade de transmissão de doenças como a sífilis por esse método, o autor identifica, por outro lado, através dos relatórios dos órgãos higienistas, a constante menção ao “horror” da população à vacina. Assim, as declarações do barão de Pedro Afonso acerca da “inércia e indiferença” daqueles que deveriam ser vacinados e se recusavam a se submeterem a tal prática, ratificam algumas das percepções de higienistas e funcionários ligados à saúde pública, que afirmavam-nas há pelo menos meio século. Chalhoub cita um caso de 1884 neste sentido. José de Castro Rebello, médico da Junta Central de Higiene, foi encaminhado às freguesias de Campo Grande e Irajá para tratar dos indigentes atacados de varíola. Agindo no sentido de desinfectar as casas e os quartos dos doentes, queimando suas roupas, objetos pessoais e proibindo a comunicação entre eles e os demais moradores, o segundo passo da equipe teria sido em direção à vacinação, o que lhe gerou alguns problemas. Rebello disse ter visto frente a concepções locais de que a vacinação seria capaz de produzir a própria varíola, posicionamentos dos moradores afirmando que uma ação mais enérgica em relação ao controle da doença não lhes era bem-vinda. Ninguém comparecia aos pontos marcados para a vacinação. O médico se viu obrigado a percorrer as casas à procura de quem se deixasse vacinar, tentando convencer as pessoas das vantagens do recurso. Os moradores retorquiam com o argumento de que era “dispensável e até ilegítima a intervenção do médico no tratamento da varíola”. Eles

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acreditavam que qualquer intervenção enérgica no curso natural desta moléstia seria prejudicial ao paciente.(CHALHOUB, op.cit., p.126)

O autor destaca que tais justificativas foram muito comuns em diferentes províncias do Império. Contudo, isto não seria tudo. Aliada a esta recusa, os relatórios dos higienistas chamavam a atenção para o fato de que não a vacinação, mas a variolização, por meio da atuação dos chamados “curiosos”, curandeiros e feiticeiros, era uma prática comum entre os populares e nem apenas restrita a eles. Anos anteriores ao fato descrito acima, em 1860, o barão do Lavradio solicitava a ajuda da polícia em relação a um homem que praticava “a inoculação do pus variólico em várias pessoas, as quais por esse meio têm contraído a varíola” na mesma freguesia de Irajá. A questão que perpassa o livro refere-se então a entender porque apesar de toda resistência da população em ser vacinada a variolização se propagou no Império1. Tomando por base o contexto escravista e imperial, o autor procura compreender quais poderiam ser as raízes culturais negras do que chama de “tradição vacinophobica”. Partindo primeiro do pressuposto de que a varíola atingia um número maior de pessoas negras cuja menção ao tráfico de africanos – internacional e interprovincial – apontava para a existência e difusão da doença em solo brasileiro. Salientando, em seguida, que frente à negação da população em se vacinar, as autoridades higienistas deparavam-se não apenas como o medo desta em contrair a varíola aliada à idéia de que se doente a cura se daria naturalmente, mas também com o fato de que muitas pessoas já haviam experimentado um processo alternativo ao oficial e que era bastante generalizado, a variolização, o próximo passo do autor foi identificar uma recriação de rituais negros africanos fundados no culto a Omulu (ou Xapanã, ou Obaluaiê), o orixá da varíola, em situações caracterizadas por epidemias ou mesmo em casos individuais. Simplificando a análise apresentada, são recuperados os diálogos entre os cultos ao vodu Sagbatá dos daomeanos (atual Benin) e ao orixá Xapanã dos iorubanos (hoje Nigéria), ambos da chamada África Ocidental, a partir da idéia comum de “controle dual”. Desta perspectiva, a existência de moléstias seria provocada por causas 1

Para isso, o autor recupera os relatórios do Instituto Vacínico, demonstrando que a doença incidia muito mais sobre a população escrava. Ainda segundo Chalhoub, estudos históricos referentes ao século XX têm demonstrado que a mortalidade causada pela varíola continuava a atingir mais a população negra: em 1904, era 30% maior em comparação com os brancos, e na década de 1920 a diferença alcançou a cifra de 50%. (Chalhoub, op.cit., p.134, apud Adamo)

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sobrenaturais, sendo a cura alcançada através de um ritual no qual um orixá, no caso em questão, Xapanã ou Omolu, era o responsável pela criação e extinção da doença, ou ainda com relação ao vodu daomeano, um grupo de divindades como Sagbatá, “Rei, Senhor da Terra”, tinha o poder de oferecer aos homens tanto a fertilidade quanto os castigos, a vida quanto a morte. Baseando-se neste princípio comum – o controle dual – aos povos africanos escravizados oriundos do Daomé e das terras iorubás, ainda que tenham sido minoria no Rio de Janeiro imperial, e indicando através de pesquisas históricas e antropológicas que mesmo entre os escravos retirados da África central, Angola e Congo, poderia ter sido possível uma reapropriação e difusão do culto ao orixá iorubá da Terra e das bexigas, o autor propõe que a variolização era uma prática coerente com as culturas religiosas africanas e afro-brasileiras de que “da própria fonte do flagelo surge a possibilidade da purificação e da cura” (Chalhoub, op.cit., p.149). Neste caso, a vacinação implementada pelas autoridades médicas interromperia um processo “natural” no qual as respostas às epidemias deveriam ser forjadas a partir do que podia ser pensado como a origem da própria peste, o orixá Omulu. Apenas ele teria a capacidade de pôr fim aos seus efeitos. Se a varíola era o mal, seria através da inoculação do pus variólico, ou seja, pela prática da variolização, que esta seria curada. Ao recuperar toda esta discussão, sigo a observação feita por Chalhoub de que longe de estar circunscrita aos povos africanos de diferentes culturas e às tradições afrobrasileiras, a concepção de que a intervenção de um médico em relação à varíola poderia ser dispensável e mesmo ilegítima havia sido pensada em diferentes contextos culturais e históricos, perpassando os posicionamentos de católicos, portugueses e médicos higienistas. E agora, munida destes argumentos, retornarei ao Rio de Janeiro do início do século, e ao tema da varíola nos subúrbios. O barão de Pedro Afonso transformou-se em uma figura central com relação à propagação da prevenção na década de 1890, sendo o responsável pelo serviço de vacinação animal no Distrito Federal a partir de uma concessão com o primeiro governo republicano. Dentre as medidas implementadas estava a criação das condições técnicas para a produção de cowpox via a inoculação de vitelos. A visita domiciliar seria o caminho mais indicado, como enfatizado na carta encaminhada ao Correio da Manhã, reproduzida anteriormente. A atuação do governo brasileiro em relação à população, contudo, recrudescera desde os anos de 1870, e após um período de desorganização do

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serviço com a passagem dos regimes políticos, assistiu-se a uma campanha mais acirrada contra os cortiços, mas a resistência continuava. Considerando tudo o que desenvolvi até aqui, penso que os argumentos explicitados pelo barão de Pedro Afonso relativos à permanência da moléstia nos subúrbios, nos quais enfatiza que os comissários portavam a vacina, mas só conseguiam aplicá-la naqueles que permitissem, bem como a recusa das pessoas em conduzirem a si e a seus filhos às estações ferroviárias, vão de encontro com as visões das higienistas responsáveis por este serviço desde o século XIX não apenas porque identificam um mesmo “problema”. Antes, o que parece tecer estas narrativas é a concepção de que existiria um povo que mesmo doente se negaria a ser a curado porque ignorante e inerte. Neste sentido, a permanência da epidemia, mesmo associada a condições tais como a fome, a seca e a precariedade de vida de trabalhadores e de meretrizes, era explicada em função do que socialmente se supunha serem as características da população brasileira. Estas, no entanto, se ligariam às heranças do passado africano, quando a presença de curandeiros e feiticeiros desenvolvendo rituais relacionados a doenças e prescrevendo ervas e líquidos, reafirmava certos valores e comportamentos, confrontando-se diretamente com os métodos da vacinação. Além disso, o que se destaca de Cidade Febril é que o paradigma do contágio no qual se inseriam as visões dos médicos higienistas e os procedimentos a serem aplicados em relação à varíola, seria mais do que um conhecimento “científico”. Isto porque inserido em um contexto social e político mais amplo, o modelo médico do contágio físico é apresentado pelo historiador como uma metáfora política de uma sociedade estruturada pela ideologia paternalista e pela predominância de relações de dependência pessoal. Neste sentido, os higienistas acreditavam que a varíola possuía características constantes independentes de variações ambientais ou de predisposições individuais, e chamava pela imunização permanente do paciente, portador e produtor da doença. No limite, a varíola seria uma doença “própria” a como se pensava o funcionamento de uma sociedade escravista. E, à medida que fui relendo aquele livro para escrever este texto deparei-me com uma nota publicada no Correio da Manhã, alguns meses após a discussão sobre a varíola nos subúrbios, que reproduzo abaixo. Grassa varíola no pitoresco bairro do Andaraí Grande, e consta-nos ter sido tratada em uma pequena casa, habitada por pretos, uma criança, sem as cautelas reclamadas pela boa higiene.

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A doente milagrosamente escapou a poder de beberagens e mais remédios caseiros; mas outros casos aparecem no apreciado bairro, devido ao nenhum apreço aos meios profiláticos, e os moradores [sic] procuram fugir do foco infeccioso, pois acreditam que estão abandonados pelas autoridades sanitárias. A diretoria de higiene não será surda ao apelo que daqui lhe dirigimos para que se evite ali a propagação do mal. (CORREIO DA MANHÃ, 13/10/1901, p.3) (Grifo nosso)

A questão que me coloco ao citar este trecho é a de procurar entender o porquê do jornal decidir revelar aqueles que haviam cuidado da criança através de uma referência à cor das pessoas. É provável que ao fazê-lo reafirmava uma trajetória longa e sinuosa, como se viu, acerca dos diferentes caminhos e visões que construíram a história da varíola e das práticas de inoculação, manejadas por curandeiros e feiticeiros, alternativas às oficiais. A informação da cura em função do “poder de beberagens e mais remédios caseiros” estabelece uma relação entre estas práticas e os “pretos”, porém, somado a isso, qualifica-se esta relação como alheia aos cuidados da “boa higiene”. Deste modo, ainda que a criança tenha escapado, “milagrosamente”, isto se deu pelo uso de procedimentos não-profiláticos, inadequados e atrasados. Para enunciar esta representação social, o jornal inseriu a categoria pretos ao corpo do texto, entretanto, em um contexto político no qual a possibilidade de propagação da varíola confrontava-se com a existência de métodos aprovados pela comunidade médica e pelo governo republicano, incorporando uma memória histórica das relações, ações e concepções da doença em uma sociedade escravista. Assim, o exercício analítico que procurei apresentar aqui marcará o esforço de interpretação das fontes que se referem à enunciação da cor ou da noção de raça, base dos dois próximos capítulos, nos quais centrando a análise no subúrbio de Madureira, procurarei compreender a reconfiguração das relações, redes e concepções sociais no período pós-emancipação. Por ora, no entanto, explicito que uma das linhas que permite alinhavar o que chamei de uma política de dominação que, como defendo, não estava na cabeça de um grupo de capitalistas ou políticos isolados, visto que internalizada e legitimada entre diferentes classes e grupos sociais, reside na corrente aproximação entre o que fora entendido como práticas do “mundo africano” e representações sociais como atraso, barbárie, não-civilizado. Neste sentido, estou chamando a atenção para a questão que permeará esta dissertação: a racialização de homens e mulheres no período

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republicano foi uma das estratégias políticas que permitiu a manutenção das desigualdades, hierarquias e elitização dos espaços públicos. A apresentação da varíola como uma doença relacionada aos descendentes de africanos e manejada pelos chamados feiticeiros e curandeiros no sentido da cura, cujos exemplos, por coincidência ou não, estiveram em freguesias suburbanas, não deve remeter à idéia de que a população negra estava concentrada territorialmente àquela época, pois o que será visto através das reclamações e queixas dos moradores de um ponto a outro do Rio republicano, na próxima seção, será o oposto a isso. Desta perspectiva, a chamada às autoridades higienistas e à polícia para que interviessem contra práticas de feitiçarias, batuques e capoeiras aponta para as tentativas de eliminação de um “passado” e de uma “herança” – que do ponto de vista dos sujeitos a serem controlados provavelmente significava o presente e atualidade de suas vidas – dos territórios que se configuravam como “urbanos”, nos quais os subúrbios não estavam incluídos, o que não impedia que os anseios pelo progresso partissem daquelas paragens também. Neste sentido, fez-se uma escolha política. Tenho muito cuidado, por outro lado, para não assumir a idéia de que aqueles identificados como desordeiros, vadios, turbulentos, pobres, trabalhadores subalternos, capoeiras e feiticeiros fossem todos negros e deste modo elaborar um tipo de racismo às avessas. É bem provável que as combinações fossem tão múltiplas assim como é a vida no seu dia-a dia, que através do esforço e exercício de interpretação acaba sendo sintetizada pela inscrição e escrita do autor-pesquisador. Desta perspectiva, se é provável intuir que imigrantes europeus pudessem ser desordeiros e vadios, portugueses capoeiras, brasileiros brancos trabalhadores pobres, assim como negros bacharéis (geralmente identificados como pardos e mulatos), o que pode ser pensado sociologicamente diz respeito aos processos sócio-históricos através dos quais noções como desordem, violência, selvageria, foram utilizadas para a construção do outro, o (a) africano (a) ou aquele (a) que poderia se tornar africanizado (a), como uma das questões do Brasil no período pós-emancipação. A dimensão que isto recebeu no reordenamento de uma sociedade e cidade cujo paradigma estava na Europa, ainda que não em qualquer uma, mas naquela também idealmente imaginada, assim como a África, formada por tantas etnias e povos, articula-se à emergência e à propagação de um ideário urbanístico para as cidades brasileiras, notadamente, o Rio de Janeiro.

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2.2 SOBRESSALTOS ESTÃO POR TODA A PARTE O espraimento do discurso higienista, imbuído de uma lógica vigilante sobre a existência de atividades vistas como rurais e insalubres e reivindicando a intervenção dos órgãos públicos no sentido de prover as localidades da cidade de condições sanitárias adequadas aos conhecimentos técnicos e científicos da época – caracterizou o início do século XX. Neste sentido, um projeto de urbanidade mais ou menos consensual ganhou adeptos nos limites da cidade, fosse em Copacabana, em diferentes subúrbios, passando ainda por áreas mais privilegiadas como Botafogo. No entanto, aliado aos usos e funções rurais que caracterizavam a cidade como um todo, um “ordenamento” territorial pouco uniforme herdado do período colonial – cujos símbolos mais veiculados eram os becos e as vielas – e do contexto imperial – a profusão de cortiços, estalagens, casas de cômodos e outras habitações populares nas áreas centrais – insistia em enunciar que se vivia em um local que em nada lembrava as modernas cidades européias. Longe de ser uma novidade, essa imagem foi legitimada do ponto de vista institucional no último quartel do século XIX, em 1875 e 1876, quando a Comissão de Melhoramentos procurou intervir nos arrabaldes e subúrbios, notadamente naqueles das freguesias do Engenho Velho, promovendo outros tipos de edificação e arruamento. Conforme os engenheiros responsáveis pelos relatórios apresentados ao governo imperial, Os bairros, a que nos referimos, sendo os que melhores condições oferecem para o desenvolvimento da cidade, são também os que atualmente mais importantes melhoramentos reclamam e onde tais obras podem ser realizadas com menos dispêndios e menos dificuldades, por serem aqueles em que a propriedade tem relativamente menos valor e as construções não se acham tão unidas umas às outras, como acontece na parte mais antiga da cidade. Sua grande extensão em planície, apenas interrompida por poucos e insignificantes acidentes de terreno, permite dar às ruas que aí se abrirem toda a expansão necessária, e proporcionar à população da cidade amplo espaço para edificação de casas rodeadas de jardins, que tanto convém à salubridade em nosso país. A circunstância mesma de achar-se aquela localidade rodeada de montanhas coberta de vegetação, donde descem perenes mananciais de águas puras, muito concorre para amenizar o rigor da estação calmosa, e para a purificação do ar por tantas causas viciado em uma grande cidade.

[...]. Um dos maiores defeitos que se notam na parte antiga da cidade são a estreiteza e a grande sinuosidade de suas ruas, do que resultam não somente dificuldades à circulação dos veículos e das pessoas a pé, mas ainda impedimento sensível à renovação do ar viciado por tantas causas no interior das habitações.

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No traçado das ruas dos novos bairros, a Comissão teve muito em vista evitar este inconveniente, dando às que projetou e que devem servir de base às subdivisões em quarteirões, larguras muito acima do comum no Rio de Janeiro. (MELHORAMENTOS DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. PRIMEIRO RELATÓRIO DA COMISSÃO DE MELHORAMENTOS DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1875, p. 2- 4)

Essa tentativa de intervenção do Estado nas condições higiênicas e habitacionais do Rio imperial não seria realizada em sua parte mais antiga e sim nos subúrbios, fato que expressa a indefinição entre os usos rurais e urbanos de muitas localidades, posto que nos anos de 1870, oficialmente, o Engenho Velho já era considerado uma freguesia urbana (Ver Quadro I e também Mapa I). O tipo de habitação preconizado, casas rodeadas de jardins, pressupunha que ao atuar sobre essa área, o governo imperial – que por sugestão da Comissão de Melhoramentos deveria abrir uma concessão às empresas privadas – definia as classes e grupos que ali habitariam. Destaco, no entanto, que a esta época vivia-se em uma cidade escravista. Logo, as possibilidades de mobilidade, mesmo sem estarem restritas aos que juridicamente se inseriam na condição de livres, não eram iguais para a população mais ampla, pois formalmente os escravos deveriam residir junto aos seus senhores. De acordo com o recenseamento de 1872, no Município Neutro havia 226.733 livres e 48.239 escravos, ou seja, cerca de 20% da população era cativa. Acrescente-se a isso a valorização imobiliária que resultaria dos melhoramentos urbanísticos, o que criaria sobre um corte social e político fundado na oposição entre livres e escravos, um tipo de hierarquização de natureza econômica: neste contexto, quem teria condições econômicas de pagar por moradias segundo os moldes propostos? Cabe ressaltar que no ano de 1875 eram inauguradas as linhas de bonde da Companhia Ferro Carril de Vila Isabel estabelecendo comunicação entre o Andaraí Grande (Andaraí, Vila Isabel, Grajaú e Maracanã), São Francisco Xavier e Engenho Novo. No entanto, a primeira linha da Ferro Carril, que ligava o centro à Vila Isabel, foi inaugurada em 1873, incluindo a produção de loteamentos urbanos que originariam o bairro. Em 1871, contudo, a Companhia Ferro Carril do Jardim Botânico já havia instalado linhas entre a rua Gonçalves Dias, no centro, e o Largo do Machado, passando pela Glória – local de moradia dos mais favorecidos –, Botafogo, igualmente aristocrático, e o ermo Largo das Três Vendas (atual praça Santos Dumont, na Gávea). Noronha Santos, referindo-se aos subúrbios a norte do Rio imperial, destacava que

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Bons prédios de apurado gosto, têm sido, de 1870 para cá, construídos nas ruas servidas pelos bondes das Companhias de São Cristóvão e Vila Isabel, dando novo aspecto à freguesia que, antes daquela data, só possuía casas de recreio e de campo, nas terras das fazendas e sítios, em que foram abertos, os logradouros públicos, que hoje vão ter à Tijuca, ao Andaraí e Vila Isabel. Tantos são os prédios de belas construções, espalhados por vários pontos do Engenho Velho, nas chácaras e jardins de vegetação luxuriante, que difícil, senão impossível, é a tarefa de quem se propuser a colher dados sobre as melhores edificações que existem no território desta freguesia. (ABREU, 1987, p.45, apud SANTOS, 1968.)

Transcorridos quase trinta anos, quando esta região fora identificada pela Comissão de Melhoramentos como um caminho para o “desenvolvimento da cidade”, outros atores e sociabilidades figuravam naquele cenário. Servida por diferentes linhas de bonde, e por isso tendo acesso a alguma infra-estrutura urbana como arruamento e alinhamento das construções, as de “apurado gosto”, como frisou Noronha Santos, devem ter permanecido e no interior delas famílias mais ou menos abastadas conduziam suas vidas. No entanto, havia aqueles que se sentiam incomodados e demonstravam sua insatisfação publicamente. Pedem-nos os moradores do bairro da Fábrica de Chitas uma providência séria contra o procedimento de indivíduos ébrios, vagabundos e desordeiros, que se reúnem diariamente em uma venda da rua de Santo Henrique n 1, esquina da do Desembargador Isidoro, pondo as famílias residentes no referido arrabalde em constante sobressalto e provocando as pessoas que por ali têm de passar. Para esses abusos chamamos a atenção do sr delegado da 10a circunscrição urbana, seguros de que medidas serão tomadas para que se não reproduzam. (CORREIO DA MANHÃ, 19/10/1901, p.3)

Ébrios, vagabundos e desordeiros reunidos em uma venda levavam o temor às famílias no Engenho Velho (Ver Mapa I). Imaginando os significados que o jornal procurava expressar referindo-se aos permanentes sobressaltos, uma das idéias seria a de que certos movimentos desestabilizavam e eram desestabilizados naquele cotidiano.

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Mapa I. Planta da cidade do Rio de Janeiro e subúrbios, início do século XX [190?]

Fonte: Seção de Cartografia, Acervo da Fundação Biblioteca Nacional.

Noutros subúrbios as preocupações com a ordem social pareciam seguir este mesmo padrão. Em 1901, por exemplo, o Correio da Manhã se dirigia às autoridades sanitárias e à polícia para comunicar-lhes que um casarão, que em outros tempos fora utilizado para a instalação da Companhia Vila Isabel no boulevard 28 de Setembro, possuía uma parte habitada e a outra, abandonada, se tornara um refúgio de “indivíduos suspeitos”. Neste sentido, afora os próprios moradores, o casarão representava uma ameaça à saúde da vizinhança. (CORREIO DA MANHÃ, 27/10/1901, p.2) Na rua Visconde Duprat, que segundo o jornal “não é [sic] nenhum subúrbio longínquo”, razão pela qual deveria ser visitado pela polícia, já que ficava próximo ao

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centro da cidade, nas bandas do Campo de Marte, “perigosos menores vagabundos” praticavam tropelias à luz do dia, mas também nas estações do Riachuelo, Engenho Novo e Engenho de Dentro, a “molecagem” campeava livremente. (CORREIO DA MANHÃ, 19/1/1904, p.3 e 11/11/1901, p.2) Em um botequim da rua Ana Nery, esquina com a rua Conselheiro Magalhães Castro, “ponto de reunião de uma corja de desordeiros, ébrios, gatunos”, algazarras à noite levavam sobressaltos aqueles que tinham a “infelicidade” de por ali passar. (Correio da Manhã, 17/6/1901, p.2) No Engenho Novo, “lugar de muita vida, com regular comércio, [...], casas particulares de bonito aspecto[...]”, ao longo de todo o dia no botequim e bilhares da rua Goiás, em um prédio atrás da estação ferroviária, vadios e desordeiros ali ficavam sem aparecer guarda policial algum. (Correio da Manhã, 18/6/1901, p.3) Na estação do Engenho de Dentro, desocupados se reuniam a dois passos da delegacia local. Ainda na rua Goiás, mas agora na estação da Piedade, desordeiros faziam exercício de capoeiragem na rua Belmira e M. Berquo. Na rua dr. Manoel Victorino, neste mesmo subúrbio, queixavam-se os moradores de assaltos, desordens e conflitos. (Correio da Manhã, 8/7/1901, p.2) Em Todos os Santos, na rua Amália, canto da rua Cardoso, uma venda seria o ponto predileto de vagabundos, e os guardas responsáveis pela ronda preferiam fazer lhes camaradagem a incomodá-los, chegando mesmo a beberem todos juntos. A eles, ajuntavam-se ainda desertores. (Correio da Manhã, 9/11/1901, p.3) Em Terra Nova, na rua Francisco Ziss, em um “samba” ocorriam constantemente distúrbios e arruaças. (Correio da Manhã, 1/12/1901, p.2) Campo de Marte, Vila Isabel, Engenho Novo, Riachuelo, Rocha, Méier, Boca do Mato, Engenho de Dentro, Todos os Santos, Sampaio, Terra Nova, Piedade, Cascadura, Madureira, Campinho, Dr. Frontin, em arrabaldes ou nas paragens da Central do Brasil, os personagens que produziam as brigas e turbulências, as algazarras e correrias praticando os “exercícios de capoeiragem” (evoluções empunhando uma navalha, pulando e demonstrando agilidade com o corpo), os “sambas”, as “molecagens” (insultando as famílias com atos de maus gestos, vaiando os transeuntes e impedindo que as pessoas saíssem às ruas), quando não os assaltos e furtos, eram identificados todos segundo a gramática da desordem pública. E no interior dela, algumas regras de concordância não deixavam dúvidas quanto ao quê e a quem se combatia.

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Uma feitiçaria – Busca e apreensão – As Marias no “zunga” O delegado da 20o deu ontem à noite, vigoroso cerco à casa n 39 da rua Paraná, no Encantado, um verdadeiro centro de bruxaria. Prendeu aquela autoridade as pretas Domingas Conceição, Bernardina Maria da Conceição, Catarina de Sant’anna e Roberta Maria da Conceição, que foram recolhidas ao xadrez. Apreendeu o delegado grande quantidade de ossos, chifres e bugigangas próprias para feitiçarias. (CORREIO DA MANHÃ, 9/6/1905, p.3)

Em Botafogo, área nobre, reclamava-se que um agrupamento de desocupados e vagabundos, moradores de uma pequena casa na rua General Polidoro, cantarolava, atirava chufas aos transeuntes e jogava pedras aos prédios vizinhos, e a polícia nada fazia porque daquela rua até mesmo ela fugia. (Correio da Manhã, 11/10/1901, p.2) Na rua de São Manoel, no mesmo bairro, quase um mês depois, reclamava-se de um bando de menores que havia se tornado o senhor do local, os quais “ vivem a jogar peteca e atirar pedras, perturbando o trânsito público e causando prejuízos, pois até já têm quebrado alguns vidros das casa vizinhas. Esse bando é chefiado por um crioulo desocupado”. (Correio da Manhã, 9/11/1901, p.3) No beco de São João Batista, uma “aglomeração de vagabundos” impedia que as famílias ali residentes chegassem às janelas, e os negociantes que tinham estabelecimentos viviam em contínuos sobressaltos: casas eram assaltadas e distúrbios aconteciam diariamente. (Correio da Manhã, 8/2/1902, p.3). Na rua Dois de Dezembro, no Catete, a abertura de uma casa de máquinas da Companhia Jardim Botânico teria levado uma malta de vadios a se reunir em tremenda algazarra; os moradores então se queixaram ao jornal, que destacava: “À polícia compete chamar ao bom caminho esses indivíduos, que tão mal empregam o seu tempo” (Correio da Manhã, 11/4/1903, p.4) No largo da Glória, mas, sobretudo, na rua do Catete, os moradores reclamavam “[...] justamente contra um zé-pereira, que os atordoa dia e noite, numa casa do beco do Rio, quando o carnaval ainda está longe”. Assim, o jornal questionava se a polícia teria autorizado a “inferneira” ou se o “batuque” era feito sob a proteção de um dos inspetores da circunscrição, o que na verdade pouco importaria, pois “aquilo é [era] simplesmente horrível”. (Correio da Manhã, 31/12/1903, p.3) No mesmo bairro, nas ruas Bento Lisboa, Tavares Bastos e Pedro Ernesto moradores viviam sempre em sobressaltos porque, alternando-se, eram encontrados “maltas de desordeiros, de desocupados, de notívagos em exercício de

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capoeiragem e algazarras nas tavernas e nas ruas” e “cantores de serenatas, fazendo gemer o pinho” ao longo da noite e madrugada. (Correio da Manhã, 11/3/1904, p.3) Através destas notas publicadas no Correio da Manhã, o que vai se fixando ao se procurar imaginar o Rio de Janeiro do início do século é que os sobressaltos estavam por toda a parte. Na área central mais antiga da cidade, falava-se, por exemplo, em Quem tem a infelicidade de morar ali pelas proximidades do morro do Senado, dorme em sobressalto, quando dorme, porque tem constantemente ameaçadas a vida e a propriedade. Há dias chamamos a atenção da polícia para esses lugares perigosos e dissemos que em Serra da Falperra se transformará aquele outeiro que tão vizinho está da casa matriz do nosso corpo de segurança pública. Entretanto os gatunos continuam impávidos e desassombrados a atacar as casas vizinhas, à noite, quando saem de fuvina e se escondem, nesse morro, e do qual a polícia tem medo de acercar-se. O público já vai trocando o nome do Morro do Senado, pelo de Morro dos Ladrões. (CORREIO DA MANHÃ, 9/11/1901, p.2)

Vizinha ao morro do Senado, a rua do Riachuelo abrigava um prédio, o de número 243, que, segundo moradores do logradouro, havia se tornado um monturo, ou seja, depósito de lixo. Articulado a um mote pautado nas concepções higienistas, manifestava-se, contudo, um problema de ordem social, pois do local saíam, pela manhã, “muitos vagabundos que lá se acoitam à noite, e, durante todo o dia e toda a noite, [...] também uns péssimos odores, oriundos das imundices que se amontoam no interior daquele prédio” (Correio da Manhã, 28/11/1901, p.3). Ao lado do morro do Senado, outras áreas do perímetro urbano compunham a cacofonia da desordem urbana. No morro de Santo Antônio, mais próximo do centro comercial, o embate do qual o jornal também tomou parte, direcionou-se às edificações irregulares realizadas por soldados da polícia, que constituíam a maioria dos moradores, e por subalternos do Exército. Submetido a um recenseamento, o morro de Santo Antônio fora percorrido por um agente da prefeitura que visitando as “casinhas” lá erguidas, executava parte das medidas que visariam a implementação de uma “obra de saneamento”.(Correio da Manhã, 18/10/1901, p.1) Um mês depois, as “casinhas” – descritas agora pelo jornal como “barracões” – haviam sido demolidas por ordem do prefeito, sem atingir a todos os moradores. Dentre estes, alguns teriam “escapado” por razão de proteção. (Correio da Manhã, 18/11/1901, p.2) Pedia-se, então, a “eqüidade”: as casinhas que lá permaneceram deveriam ter a mesma sorte daquelas que foram destruídas. (Correio da Manhã, 22/11/1901, p.3) Fossem casinhas ou barracões, não

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eram apenas essas habitações populares que estavam na mira das autoridades municipais e da imprensa. No sopé do morro, uma estalagem “condenada” abrigava pessoas que se dividiam em cubículos sem ar, luz, e água nas latrinas, e em seu ponto mais alto, no terreno do mesmo proprietário, “[...] um cubículo construído de tábuas de caixões e coberto de latas velhas” teria, na opinião do jornal, livrado-se das vistorias feitas durante aqueles dias. (Correio da Manhã, 26/10/1901, p.2) Assim como o morro de Santo Antônio, o morro do Pinto também fora indicado como uma localidade da área urbana da cidade que se encontrava abandonada pela prefeitura. Moradias precárias construídas há anos eram as opções habitacionais para uma população numerosa que, apesar de não ser apresentada em mais detalhes pelo jornal, insistia em enunciar a sua origem e condição: abandono, inexistência de conforto e de infra-estrutura urbana como calçamento e água foram as condições materiais que possibilitaram a apresentação do morro como uma antítese da cidade moderna, pois se assemelharia mais a um povoado africano não-civilizado, no qual pobres moradores contavam apenas com a piedade das agências prefeitura. Anda há longos anos entregue inteiramente ao abandono o morro do Pinto, onde habita uma população numerosa. Faltam ali todas as comodidades. Ruas sem calçamento, higiene nenhuma, um desleixo completo, aquilo mais parece um pedaço da África Selvagem, do que parte de uma cidade civilizada. Agora, para agravar ainda mais a situação dos pobres moradores, vem se juntar a falta de água. Senhores das obras públicas, tenham piedade dos que residem no morro do Pinto! Uma providência qualquer pelo amor de Deus, pedem os desgraçados! (CORREIO DA MANHÃ, 11/1/1902, p.3)

Ao destacar a ausência de serviços e intervenções urbanísticas como um dos fatores que explicitaria a existência de um “pedaço da África Selvagem” no interior de um todo mais amplo que se pretendia “civilizado”, o Correio da Manhã reifica a idéia de que desejar a modernidade era a face de uma construção social e política – articulada pelas elites políticas e intelectuais, que, entretanto, não se furtava de uma legitimidade para além delas – na qual o atraso e a barbárie viriam da África. Pensado enquanto uma unidade cultural e política, segundo uma visão reducionista e etnocêntrica, aquele continente passa a ser o paradigma do qual se queria distanciar. Contudo, à medida que estas visões se reafirmavam o que se forjava através da mobilização de uma memória sobre as relações de trabalho servil e as condições precárias de vida dos cativos, era a posição social que os descendentes dos ex-escravos – os chamados crioulos, negros

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nascidos no Brasil – poderiam ocupar no contexto pós-emancipação, posto que àquela época o sistema escravista baseado no tráfico de negros africanos já havia sido desestruturado e a imigração destes para o Brasil era vista como algo impensável. De uma relação social passível de pena, sedimentada por práticas paternalistas e de dependência pessoal, chegava-se, entretanto, a uma crítica referente às sociabilidades que deveriam estar restritas ao passado. Menos do que assumir uma forma acabada e definitiva, o racismo, sem necessariamente aludir a noções como raça e cor, era produzido em função de posicionamentos e valores aparentemente contraditórios. Neste sentido, nem só da “piedade” alheia viviam os “pobres” e “desgraçados” moradores do morro do Pinto. Estes também eram capazes de incomodar, e, neste caso, à polícia cabia a intervenção. Para um batuque carnavalesco infernal existente na rua Saldanha Marinho n 17, no morro do Pinto, pedem-nos os moradores circunvizinhos que chamemos a atenção do dr. Alfredo Santiago, delegado respectivo, afim do mesmo providenciar no sentido de cessar tão incômoda e prejudicial brincadeira. (CORREIO DA MANHÃ, 10/12/1903, p.2)

Os bairros da Saúde e Gamboa concentrariam no entorno das Escadinhas do Livramento, “jogadores de vermelhinha, desertores do Exército e Armada, malandrins de toda a casta, formando ali o seu quartel general”. Chamando a atenção para a impunidade ali existente, o jornal salientava que as Escadinhas do Livramento representavam uma “vergonha para uma capital civilizada”, bem como um “perigo iminente para os que, privados de recursos, se vêem obrigados a residir em tal lugar ou por ali passar”. Ainda no sentido de oferecer aos seus leitores uma espécie de radiografia da cidade, a matéria informava que a ausência da polícia naquela área contribuiria para a ida de “malfeitores”, que rechaçados de outros bairros lá estabeleciam refúgio. No entanto, apesar da intenção do jornal em mostrar uma preocupação com aqueles que moravam nas imediações, o problema residia nas ameaças à ordem social que figuras como jogadores e capoeiras, campeando livremente, pareciam incutir, “[...] afrontando os pacatos burgueses e apanhando nas suas malhas os incautos”. Afora estas questões, no morro da Saúde, nos domingos e em dias santificados, cerca de 100 burros pertencentes a uma cocheira localizada na rua da Harmonia pastariam livremente com a condescendência do agente da prefeitura, levando risco à saúde. (Correio da Manhã, 4 e 9/1/1902, p.2-3) Ainda naquela

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circunscrição, dois anos depois, em meio às reformas urbanísticas, solicitava-se a atenção das autoridades para [...] um quilombo existente na rua dos Andradas, no trecho compreendido entre a travessa do Oliveira e o morro da Conceição. As curas maravilhosas, os processos de dar fortuna rápida, etc. são os meio de que se servem os proprietários dessa locanda, para enganar os tolos. (CORREIO DA MANHÃ, 9/4/1904, p.3, Grifo do autor) Outros morros Distrito Federal despertavam a atenção da imprensa. Mais afastados do centro, localizados nos subúrbios e em bairros ocupados por classes privilegiadas, estes locais estavam submetidos a um olhar vigilante. Para o morro do Paim, na estação do Sampaio, reivindicava-se a presença da polícia, mas também na rua Vinte e Quatro de Maio, esquina com a de Antunes Garcia, no mesmo subúrbio, onde uma “malta de vagabundos” que se encontrava junto a um quiosque em ruínas, obrigava as famílias a manterem fechadas as janelas por causa das “cenas de vandalismo” ali praticadas. Ainda naquela rua, mas na estação do Riachuelo, um ajuntamento de desocupados teria escolhido aquele ponto para promover alterações à ordem pública. Solicitava-se, assim, que a companhia de gás instalasse um lampião na rua Conselheiro Magalhães Couto, “ponto bastante perigoso”. (Correio da Manhã, 3/7/1901, p.3). No alto da estação da Mangueira, onde se situava a Vila Savana, “[...] lugar outrora procurado pela sua salubridade [...]”, o “[...] sítio mais pitoresco de todos os subúrbios muito recomendado pela sua salubridade e sossego [...]”, residia um “perigo”. De um dia para o outro, o local poderia ser invadido por terríveis “epidemias da época”, mas principalmente pela “peste”, noticiava-se. E, em seguida, o alarde fora esclarecido. É que nos fundos das casas n 8 e 12, daquela vila, existe um barracão de madeira onde moram, numa promiscuidade repelente, diversos trabalhadores da Companhia de Melhoramentos, empregados no desaterro próximo, e no pequeno espaço do terreno junto ao barracão, dormem todos os muares que trabalham no desaterro. Trata-se, portanto, de um nauseabundo foco de todos os miasmas e podridões. O mau cheiro que daí se evoca e alastra pelas redondezas, é, por si só, uma coisa insuportável. (CORREIO DA MANHÃ, 3/11/1901 e 25/1/1902, p.3)

No morro do Salgueiro, o “crioulo” Benedito de Souza fora preso por promover desordem no lugar denominado Curicico, e reconhecido por um sacerdote quando ia à delegacia, soube-se que ele seria o autor de duas mortes no estado de Minas Gerais. (Correio da Manhã, 4/1/1902, p.2). No morro da Viúva, um barracão em frente à casa

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66 teria se tornado “valhacouto de malandros e ratoneiros”. O pavilhão ocupado, de propriedade da Diretoria de Obras Públicas, estaria há mais ou menos seis anos servindo de depósito para a guarda de material, porém, sem ninguém nele residir. Frente a isto, os “vadios” teriam se aproveitado do abandono e reuniam-se fazendo “algazarras” e “más ações”, gerando incômodo e revolta na vizinhança, que reclamava através do jornal. (Correio da Manhã, 11/1/1902, p.3) O que me chama a atenção nestas fontes são as referências à propagação de ocupações habitacionais de “desordeiros” e “vadios” pelo território da capital do país, ainda que seja possível objetar no sentido de que em distritos urbanos como Santana, Santa Rita, Espírito Santo e Glória, estes personagens assumiriam quantitativos maiores em função de serem mais densamente povoados que os subúrbios, e, por conseqüência, mais ocorrências criminais. Parece-me interessante colocar, entretanto, que a compreensão sociológica da chamada desordem social não pode se reduzir a quantitativos numéricos. Os temores, os incômodos e os prejuízos tão citados nos jornais foram interpretados e qualificados em diferentes localidades do Rio republicano e a menção aos “ajuntamentos”, tão corrente àquela época, fornece uma possibilidade de análise interessante, pois se todo ato de ajuntar-se significa a reunião de pessoas, o contrário não caberia nos contextos apresentados. Cabe, assim, recuperar a historicidade daqueles encontros coletivos. Porém, antes de enveredar neste caminho, com o intuito de relacionar a temática acima apresentada às condições habitacionais da cidade no pós-emancipação, saliento que a partir do que foi discutido nesta seção é possível apontar que moradias precárias construídas em morros da cidade e prédios abandonados tornavam-se habitações coletivas de “desocupados” e “vagabundos”, o que não impedia que trabalhadores das empresas privadas e militares de baixa patente se vissem submetidos a condições habitacionais semelhantes, como no morro de Santo Antônio e na Vila Savana, na estação da Mangueira. Aliado a isso, a referência a “batuques”, “sambas”, zé-pereiras, capoeiras, feitiçarias e “curas maravilhosas” demonstram que negros crioulos ou, quem sabe, antigos africanos, viviam nas áreas urbanas do Rio de Janeiro do início do século, tanto naquelas mais centrais quanto em antigos arrabaldes como Glória e Catete, bem como nos subúrbios. A população se espraiava e um projeto de urbanidade também: reivindicava-se a presença do Estado através das delegacias de polícia, das diretorias de higiene e de obras públicas.

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Assim, ao lado destas considerações, o que se insinua como questão é o fato de que, no início do século, a população negra estava de um modo geral dispersa na cidade como um todo. Baseando-me no recenseamento de 1890, e reagrupando em negros (as) e brancos (as), os dados disponíveis referentes ao número de habitantes segundo a classificação oficial – pretos (as), mestiços(as), brancos(as), caboclos(as)2 – foi possível estabelecer algumas proposições. A primeira delas é a de que nas freguesias comerciais da Candelária, São José e Sacramento, a relação entre negros e brancos era bastante desproporcional, com números mais elevados para o segundo grupo. Nas outras freguesias urbanas, notadamente nas de Santa Rita, Santana, Espírito Santo, Glória, Lagoa, Gávea e Engenho Velho, havia um equilíbrio entre brancos e negros, ainda que a população branca se apresentasse com contingentes maiores. Nas freguesias suburbanas tendia-se também a números mais proporcionais, exceto em Guaratiba, Campo Grande e Santa Cruz, que possuíam mais negros que brancos (Gráfico I). Gráfico I. Brancos (as) e negros (as) no Distrito Federal, 1890.

70000

60000

Número de habitantes

50000

40000 Brancos (as) Negros(as) 30000

20000

10000

C G am ua po rat Ilh G ib a S ra a do an nd G ta e ov Cr er uz na do r

ov o

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0

Freguesias urbanas e suburbanas

2

No gráfico não utilizei os dados referentes à população cabocla.

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A título de comparação, em meio século, de acordo com o censo de 1950, a população de pretos e pardos havia se tornado minoria nos distritos urbanos, principalmente naqueles que compunham a parte mais antiga do Rio de Janeiro, rompendo-se também a tendência à proporcionalidade nos distritos que se elitizaram – Glória, Lagoa e Gávea –, transformando-se em bairros dos mais privilegiados. Se o centro comercial e político da cidade e a chamada zona sul foram submetidos a um processo de branqueamento, o mesmo se deu em bairros como a Tijuca (que em 1890 fazia parte do distrito do Engenho Velho), cujo desequilíbrio entre brancos e negros se tornou maior. Simultâneo a isso, bairros suburbanos como Engenho Novo, Madureira, Pavuna, Anchieta, Realengo, Guaratiba e Santa Cruz apresentavam uma relação mais equilibrada, entre negros e brancos, e números absolutos mais elevados em comparação com a zona sul. (Gráfico II)

180000

160000

140000

100000

Brancoa(as) Negros(as) 80000

60000

40000

20000

da de P M av ad u ur na Peeira nh An a C am R ch po ealeieta G n G ra g o Sa uar nd nt ati e a ba C r I lh u z as

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0

Sa n

Número de habiatantes

120000

Distritos urbanos e suburbanos

Gráfico II. Brancos (as) e negros (as) no Distrito Federal, 1950.

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2.3 NEGROS LIVRES E LIBERTOS NA CIDADE E AS RESTRIÇÕES À LIBERDADE Discutidas em vários trabalhos, Chalhoub (1990), Gomes (1996, 2003), Soares (1998, 1998/1999), Soares e Gomes (2001), as temáticas dos “ajuntamentos” de escravos fugidos, libertos e africanos livres na Corte imperial e das medidas políticas que objetivavam proibir a formação destes encontros em uma sociedade escravista se apresentam como um caminho interessante no sentido de pensar a condição dos negros livres ou que se passavam por tais, e os seus desdobramentos no século XX. Pôr nestes termos a questão significa propor que durante o regime escravista as tentativas de controle sobre a população negra do Rio de Janeiro já esboçavam preocupações em relação à possibilidade de espraiamento da desordem social, na qual a perspectiva de africanização do espaço público era entendida pelas autoridades políticas como uma ameaça à ordem vigente. Em um artigo sobre as formas de resistência e rebeldia escrava no Rio de Janeiro, do período colonial às primeiras décadas do século XIX, Gomes (1996) discute que a formação de quilombos e mocambos localizados não apenas no Recôncavo, mas também próximos à capital, implicava o estabelecimento de redes de comércio clandestino, serviços, proteção e aliança entre escravos fugidos, escravos vivendo em senzalas, vendeiros, taberneiros e fazendeiros. Neste sentido, o autor aponta que diferentes lógicas sociais informavam o sistema escravista, ao mesmo tempo em que ameaças poderiam surgir da invenção de novos âmbitos de comércio e sociabilidade. O autor defende a idéia de que o isolamento e a marginalização atribuídos à existência de quilombos e mocambos dificultam o entendimento de quão multifacetadas e complexas poderiam ser as relações e arranjos sociais naquela sociedade, na qual quilombolas desenvolviam atividades econômicas, estabeleciam relações mercantis com pequenos comerciantes e fazendeiros, realizavam saques e roubos pondo objetos e mercadorias em circuitos de comércio clandestinos, recebiam informações acerca da proximidade de tropas e incitavam inssurreições. Deste modo, um dos perigos ligados aos “ajuntamentos” de negros cativos, escravos fugidos e homens pobres livres em tabernas e vendas residia justamente na constituição destes vínculos e alianças que do ponto de vista das autoridades, significava desordem social. Desde o século XVII até o XIX, a categoria do desordeiro aplicava-se, entre outras, a situações em que escravos fugidos, negros livres e forros, e

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quilombolas friccionavam o sistema social mostrando-se enquanto sujeitos capazes de criar relações, redes, defender interesses próprios, selecionar opositores e atacá-los. Negavam, por conseguinte, o estatuto jurídico de mercadoria que lhes fora imputado. Ainda de acordo com Gomes, Para um efetivo controle da massa escrava, inclusive dos quilombolas, tinha que se vigiar tanto o centro da cidade como o interior do Recôncavo. Quilombolas ou simplesmente escravos fugidos poderiam ser encontrados tanto nas profundezas das matas, protegidos por serras de difícil acesso, como no interior das senzalas, nas casas de negros, cativos ou forros, nas cidades e principalmente nas vendas e tabernas. A prática de "ajuntamentos de negros" em tabernas parecia já ser comum. Motivados ou não, tão somente por fins econômicos, taberneiros consentiam – fossem eles brancos portugueses ou pardos brasileiros – que os escravos as freqüentassem. Tal prática, por certo acontecia nos sábados, domingos, feriados religiosos, ou nos dias de semana durante a noite. Em cidades com portos próximos, as tabernas eram disputadas conjuntamente por escravos, soldados, marinheiros estrangeiros e caixeiros-viajantes. Quilombolas poderiam estar por perto, misturados com outros escravos. Apesar dos olhares atentos das autoridades, a vigilância nas cidades, pela própria natureza da escravidão urbana tendia a ser mais frouxa. Tentava-se contudo controlar o máximo possível a população das cidades, principalmente negros e mestiços. Ainda em 1693, repetia-se o bando que determinava a proibição do porte de armas depois do toque das Ave Marias. Os infratores de qualquer "qualidade e condição" pagariam multas, além de serem obrigados a trabalhar nas obras da cidade. Quanto à população de cor determinava-se que: “todo o mulato, negro ou carijó que de dia ou de noute for achado com arma de fogo, carregada hávera pena de morte, e sendo com qualquer outro genero de armas ofensivas ou defensivas, a saber, espadas, adagas, facõens, faquas, paos de ponta lhes tomarão os officiaes de Milícia ou Justiça que os haverão como suas, e os deliquentes serão castigados com penna de cem assoutes ao pé do pelourinho hirão ferir por tempo de seis mezes nas obras e limpeza de hua das fortalezas da Barra sendo achados de dia, e se forem achados de noute servirão na mesma forma por tempo de hu anno e somente lhes será permetido levarem espada na ocazião que acompanhão a seus senhores. (GOMES, op. cit., p.13)

Ao longo do século XIX o controle sobre as tabernas e vendas foi uma constante nos Códigos de Posturas Municipais, cuja sistematização em decretos e leis remetia a uma preocupação com um perigo social que, como demonstra a citação acima, vinha de longa data. No Código de Posturas de 1838, definia-se que “Ninguém poderá ter casa ou loja de comprar e vender trastes e roupas usadas, vulgarmente chamadas – casas de belchior – sem que assine termo nesta Câmara de não comprar coisa alguma a escravo ou pessoas suspeitas, obrigando-se a ter um livro, que será rubricado gratuitamente pelo fiscal respectivo, em que faça os assentos do que comprar, os quais serão assinados

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pelos próprios vendedores ou pessoas que os afiançarem [...]”; “Todo indivíduo que for encontrado fazendo negócio fraudulento ou ilusório, vendendo a roceiros, a pretos ou a outra qualquer pessoa objetos falsos por verdadeiros, será multado em 30$000 mil réis e sofrerá oito dias de cadeia, sendo posto em custódia até decisão do auto, e depois remetido ao chefe de polícia”. (CÓDIGO DE POSTURAS, op. cit., p.27- 28) A estas tentativas de bloquear a produção de redes clandestinas de comércio entre livres e escravos, pretos e roceiros, provavelmente quilombolas, somavam-se as atenções das autoridades imperiais quanto aos âmbitos de autonomia e liberdade (relativas é claro) que a população negra havia forjado no Município Neutro. Zungus, batuques, danças e tocatas eram os termos que demonstravam que havia, naquele contexto histórico, sujeitos sociais produzindo vida. Deste modo, se proibia as casas de zungú e batuques, submetendo-se os donos ou chefes à pena de oito dias de prisão e 30$000 mil réis de multa, e, em caso de reincidência, trinta dias de prisão e 60$000 mil réis de multa. Mas também o ajuntamento de pessoas com tocatas, danças ou vozerias em casas de bebida, tavernas ou outros lugares públicos, com multa de 30$000 para o dono da casa e 6$000 para cada infrator, e prisão para os que não pudessem fazer o pagamento; o “ajuntamento” de mais de quatro escravos em tavernas e outras casas públicas, incorrendo o proprietário em multa de 30$000. (CÓDIGO DE POSTURAS, op. cit., p.21). De acordo com Soares (1998), ao lado de atividades que à primeira vista poderiam ser identificadas como apenas ligadas às diversões e trocas sociais, nos zungús também se estabeleciam contatos e vínculos que instabilizavam a ordem senhorial: rebeliões, levantes, acobertamento de escravos fugidos e sua transferência para quilombos, venda de artigos roubados, eram as ações que, segundo as autoridades policiais e judiciais, poderiam ser planejadas nos encontros de cativos, livres e crioulos para ouvir música, comer, fazer batuques, rever e fazer amigos, assim como encontros amorosos. Ainda que a nomenclatura com relação a estas formas de sociabilidade e resistência negras tenha se transformado ao longo do século XIX – casa de quilombo no período joanino, casas de angu por volta de 1850, e casas de zungú nas décadas finais da escravidão –, os sentidos pejorativos e negativos que foram sendo aliados à sua clientela e às práticas sociais, oferecem uma medida de como o que era socialmente identificado ao negro no meio urbano poderia significar desordem coletiva.

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Através do texto de Soares identifica-se que em Beaurepaire-Rohan, o vocábulo angu era definido como “Angu de quitandeira. No Rio de Janeiro é o nome de uma comida consistente em angu a que se ajunta qualquer iguaria bem apimentada, temperada com azeite de dendê [..]”. Já um zungu foi visto enquanto “Casa dividida em pequenos compartimentos que se alugam, mediante paga, não só para dormida da gente mais baixa ralé, como para a prática de imoralidades, e serve de coito a vagabundos, capoeiras, desordeiros e ébrios de ambos os sexos”. (SOARES, 1999, p. 34-5, apud BEAUREPAIRE-ROHAN, 1889). Antonio Joaquim Macedo Soares, também em 1889, relacionava o comércio de angu aos africanos, sobretudo, às mulheres do grupo mina. Além disso, assim como Beaurepaire-Rohan, reatualizou um entendimento sobre a presença negra nas áreas urbanas, territórios que vinham sendo desde pelo menos os anos de 1870, postos em questionamento por discursos que almejavam o melhoramento das condições higiênicas e de habitação, ao recuperar através de notícias de jornais de época, as descrições das casas de zungú. De acordo com ele, um zungú era “Barulho, falatório, rixa de negros (...) Também se usa para desordem, conflito mais barulhento que grave [...]. Casa dividida por tabiques, habitada por gente réles; cortiço ou ‘muitas habitações pequenas e juntas à maneira de cortiços’. [...] É o que existe em Pernambuco e Pará chamam Calogi/ ‘Existe na rua Marquês de Pombal no 34 um zungú onde se reúnem vagabundos que se entregam à prática de atos imorais’, in Jornal do Commércio, ‘Gazetilha’ 07/04/1884/ ‘Um zungú composto de pretas e pardas, onde se recebem pretos livres e se acoitam escravos fugidos, para cometerem atos reprovados, e reúnem-se alta noite vagabundos que fazem alarido infernal’ in O Fluminense, 07/12/1883.[...] ‘A policia do 2o distrito do Sacramento tem ultimamente dado buscas em diversas casas denominadas zungús, e nelas encontrados diversos indivíduos sem ocupação.’ Jornal do Commércio, 02/05/1882”. (SOARES, 1999, p.35, apud ANTONIO JOAQUIM MACEDO SOARES, 1889). Presente em freguesias urbanas e suburbanas, a maior rede de casas de zungú era encontrada na freguesia do Sacramento, centro comercial da cidade, segundo Soares. Entretanto, a referência dos jornais à permanência de capoeiras, desordeiros, escravos fugidos e pobres livres neste tipo de casa popular, que por vezes era utilizado como moradia, revela uma articulação que se tornará cada vez mais freqüente na dinâmica urbana do Rio imperial a partir dos anos de 1870.

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Como chamou a atenção Chalhoub (1990), a luta pela autonomia e liberdade conduzida por escravos e escravas nas décadas finais da instituição da escravidão, luta que vinha sendo construída com diferentes sentidos desde pelo menos o século XVII, como demonstrou Gomes (1996), possibilitou que no meio urbano, notadamente na Corte, se construísse uma cidade na qual o anonimato e uma certa independência dos cativos os aproximassem da condição de livres. Subvertendo a ordem e por isso afirmando distintas visões de liberdade, homens e mulheres conseguiam “viver sobre si” realizando atividades e ofícios urbanos (e pagando o jornal a seus senhores), defendendo-se judicialmente para não serem afastados de suas famílias (irmãos, filhos e companheiros); criando meios para comprar a sua própria alforria e de seus entes, elaborando planos de fuga e agredindo fisicamente os que insistiam em obrigá-los a se deslocarem para o interior, que não permitiam que retornassem à cidade natal, maltratavam-nos, ou ainda pretendiam vendê-los sem considerar suas opiniões, além de em muitas situações cometerem crimes no sentido de permanecerem na capital do Império, presos e prestando trabalho forçado ou serviços públicos, a terem de ir para o trabalho agrícola no interior como mercadoria de novos proprietários. A politização do cotidiano na Corte se dava por meio destes eventos corriqueiros que, no entanto, colocavam em suspenso o domínio senhorial e em alguns casos, a vida de seus donos, funcionários, e autoridades policiais. Assim, a perspectiva do autor remete aos caminhos utilizados pelos cativos para conquistarem sua liberdade e neste sentido fazerem política na e através da cidade. À medida que ocupava cortiços, conseguia proteção em zungús, alugava um quarto em casas de cômodos para viver com parentes, estabelecia alianças com livres e era acoitada em prédios localizados em ruas estreitas, becos e vielas, a população negra do Rio de Janeiro apropriava-se de um modo muito particular da forma e sítio urbanos e incutia-lhes sentidos e experiências que passavam pela luta para tornar-se livre. As histórias que Chalhoub apresenta no livro são muitas e através delas nota-se que a vida urbana facilitou a invenção de formas de ser livre, mesmo em uma sociedade escravista, não devido a uma característica em si da cidade (como se fosse um atributo natural seu), mas porque através das disputas, dos desejos e projetos dos cativos e das cativas foi possível construir uma outra cidade. Não aquela que se procurava edificar e fazer funcionar através dos Códigos de Posturas Municipais, que no fundo davam conta de tudo aquilo que pulsava e fugia ao controle das autoridades imperiais.

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[...] os escravos, libertos, e negros livres pobres da Corte haviam instituído uma cidade própria, arredia e alternativa, ao longo de décadas de luta contra a instituição da escravidão no século XIX. Esta cidade negra se fez através de movimentos e racionalidades cujo sentido fundamental, independentemente ou não das intenções dos sujeitos históricos, foi inviabilizar a continuidade da instituição da escravidão na Corte. (CHALHOUB op. cit., p. 185)

Recuperar as estratégias de escravos, libertos e livres para reconstruírem suas vidas, erguendo âmbitos de solidariedade numa sociedade que lhes era hostil e lutando para manterem-se na “Cidade” apesar de todo o debate e medidas políticas que visavam retirá-los daquele território, inclusive através da interdição dos escravos ao mercado de trabalho e aos ofícios urbanos, são os exemplos que revelam que através do território era possível produzir lutas, edificar histórias e cristalizar memórias. Logo, esta discussão é interessante porque enfatiza que as áreas urbanas do Rio de Janeiro, principalmente as centrais nas quais se concentravam os percentuais populacionais mais elevados, eram do ponto de vista urbanístico e social, muito mais do que uma cidade colonial, formada por becos, ruas estreitas, cortiços, estalagens e antigos sobrados ocupados como habitação popular. Sendo assim, concordo com Chalhoub quando afirma que Ao perseguir capoeiras, demolir cortiços, modificar traçados urbanos – em suma, ao procurar mudar o sentido do desenvolvimento da cidade – os republicanos atacavam na verdade a memória histórica da busca da liberdade. Eles não simplesmente demoliam casas e removiam entulhos, mas procuravam também desmontar cenários, esvaziar significados, penosamente construídos na longa luta da cidade negra contra a escravidão. (CHALHOUB, op. cit., p.186)

Acredito, contudo, que a condição de livres assumida por cativos e cativas nas áreas urbanas, ou mesmo por aqueles que do ponto de vista legal já o eram, carregava significados políticos capazes de instabilizar o sistema escravista, não simplesmente porque ruía o regime de produção no qual se fundaram muitas das atividades econômicas nas cidades e nos campos. Do ponto de vista político o que ganhava a cena histórica eram manifestações que desestruturavam também o domínio senhorial branco, no qual práticas racializadas contribuíram para erigir as relações de poder e submissão. Como demonstrou Lara (2000) em livro que discute o momento histórico em que se forjou a idéia de pan-africanismo, assim com os sujeitos desta construção durante a primeira metade do século XIX, nos EUA, no Caribe e no Brasil, a presença de negros emancipados e africanos livres – estes últimos encontrados nos navios negreiros

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apreendidos pelas comissões antitráfico internacional – se tornou uma ameaça aos regimes escravistas nacionais, cujo caso emblemático fora a Revolução Haitiana. Entretanto, de acordo com o autor, em 1787 um grupo de abolicionistas ingleses já estimulava a deportação de negros livres de Londres para Serra Leoa, colônia britânica, na África. Esta servia de base para a sua marinha após a promulgação da lei de 25 de março de 1807, que proibia o tráfico negreiro internacional nas colônias inglesas. Depois destes negros livres transferidos, a Companhia de Serra Leoa favoreceu o transporte de mais 110 negros livres, que serviram na armada inglesa durante a Guerra de Independência dos EUA, ou eram prisioneiros jamaicanos durante a Segunda Guerra dos Marrons, em 1796. Nos EUA, entre os plantadores escravistas hostis à presença destes sujeitos, Thomas Jefferson produziu um texto intitulado Notes on Virginia, publicado em Paris (1785), Londres (1787) e na Filadélfia (1788), no qual propunha para esta população projetos de colonização, de emigração forçada, ou de deportação com o objetivo de afastá-la para as áreas distantes, a leste ou sul, para o Caribe ou África. Com relação à França, a deportação para o Senegal foi uma das medidas impostas para os negros livres das colônias de Guadalupe, Guiana e Martinica, também utilizada desde o final do século XVIII. Com a instrução ministerial de 12 de abril de 1823, todos os cativos encontrados em navios negreiros armados no Senegal, em Guadalupe, na Guiana e na Martinica, seriam liberados e recrutados pelas companhias militares locais, encaminhados à África e à Caiena. Conforme os acordos francoingleses antitráfico negreiro, os portos em que se podiam receber os navios capturados eram os de Goré, Martinica, Bourbon e Caiena, para os navios franceses, e os de Bathurst, na Gâmbia, Porto Real, na Jamaica, Cabo da Boa Esperança e Demerara, para os navios ingleses. Com a decretação definitiva da emancipação dos escravos nas colônias francesas, em 27 de abril de 1848, o governo francês elaborou uma política de deportação, estimulando o retorno dos antigos escravos de Guadalupe, Guiana e Martinica para a África ou para atuarem como mão de obra nas Índias Ocidentais. No Brasil, os debates políticos relativos ao retorno à África de negros se iniciam por volta de 1830-1835, sob a pressão das inssurreições de escravos e dos acordos antitráfico internacional. Destaca-se, neste período, a Revolta dos Malês, em janeiro de 1835, na cidade de Salvador. Conforme Lara, em função desta revolta negra, as autoridades baianas demandaram do governo imperial o estabelecimento de uma colônia

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em qualquer porto da costa da África onde fosse possível deportar os africanos livres, que significavam uma ameaça à segurança. Assim, africanos foram enviados à costa da África, entre presos, e outros embarcados em novembro de 1835. Ainda neste ano, os membros das comissões mistas antitráfico do Rio de Janeiro defenderam a introdução de cativos que haviam sido liberados porque encontrados nos negreiros, nas antigas colônias inglesas nas Índias Ocidentais. Já um representante da Secretaria de Estado de Assuntos Estrangeiros da Inglaterra, preconizava o envio a Trinindad dos negros emancipados pelas comissões mistas. Em 1839, a bordo de um navio inglês, estes saíram do Brasil e foram conduzidos a Trinindad, Demerara, às colônias inglesas no Caribe, e a Serra Leoa. Carneiro da Cunha (1985) também assinala que a deportação dos africanos livres com o levante Malê tomou proporções extremamente violentas, gerando a incorporação de uma série de restrições legais aos africanos livres em várias províncias do Império. Conforme a autora, em termos nacionais, a resposta às inssurreições foi consolidada com a Lei no 4 de 10/6/1835, que punia com pena de morte os escravos que ferissem ou matassem gravemente seus senhores, familiares,

feitores e administradores. Na

Assembléia Provincial do Rio de Janeiro solicitava-se o impedimento do desembarque de escravos da Bahia e de libertos de outros lugares. Na Bahia, a legislação provincial de 1835 autorizava a expulsão de africanos forros independente do sexo, caso houvesse alguma suspeita de participação em levantes de escravos. Deste modo, assim como Lara, destaca que toda embarcação que partisse para a África deveria levar os suspeitos e desembarcá-los na costa daquele continente. Por outro lado, fechava-se o cerco contra aqueles que permanecessem a partir da cobrança de um imposto de 10 mil réis aos africanos forros da província. Ainda referindo-se à legislação baiana de 1835, Carneiro da Cunha salienta que aos africanos livres dispensados do imposto acima citado impunha-se comportamento tais como o de deletar planos contra a ordem social e o de trabalharem em fábricas grandes da Bahia, de açúcar e algodão, sob a condição de residirem nas propriedades cujos donos se responsabilizassem pela conduta. [...] resguardavam-se os libertos nas grandes propriedades rurais, mas não tinham proteção os que se tivessem estabelecidos de forma independente; estimulava-se, por outro lado, as delações em nome da segurança provincial. (CARNEIRO DA CUNHA, op. cit., p. 75)

58

Para além destas medidas, a autora chama a atenção para uma articulação presente durante toda a primeira metade do século XIX e que passa a ser institucionalizada em diferentes locais, incluindo o Rio de Janeiro dos anos de 1870: a interdição dos negros, libertos e escravos, às ocupações profissionais e à própria permanência nas cidades. Saliento, contudo, que estas legislações produzidas diretamente em função dos temores de revoltas negras em todo o território nacional, foram posteriores a outras tantas medidas de controle sobre os africanos forros. E o que é interessante no texto da autora para o que estou procurando discutir diz respeito ao estatuto jurídico subalterno e inferiorizante atribuído aos negros africanos que já haviam conquistado a sua liberdade jurídica. Considerados como estrangeiros, entretanto, sem gozar das prerrogativas legais de seus países de origem, os libertos africanos não eram eleitores nem elegíveis, assim como não podiam fazer parte do Exército, Marinha ou Guarda Nacional e ingressar nas ordens religiosas. Um decreto de 1830 impedia os forros e forras africanos de circularem livremente para fora de seus domicílios senão portando um passaporte cuja duração era limitada, concedido mediante um exame freqüente de suas condutas. No ano seguinte, proibia-se o desembarque de libertos africanos em qualquer porto do Brasil, medida que vigorou até pelo menos fins de 1868. Para Carneiro da Cunha, todo esse aparato legal pretendia excluir os africanos do país na primeira metade do século XIX e a questão que estava subjacente se referia a como legitimar e viabilizar a recente nação segundo os ideais liberais e a extrema hierarquização e estratificação social e política vigentes. No entanto, as restriçõe à cidadania não haviam sido impostas apenas aos africanos forros ou livres, aos quais se atribuiu a condição de cativos ilegalmente, segundo as leis de 1830 contra o tráfico internacional, e cujos planos de deportação ecoaram e em alguns casos foram implementados. Os libertos foram incorporados aos projetos políticos que visavam a manutenção das relações de dependência e do sistema de propriedade privada, impossibilitando-os, entretanto, ao acesso à terra. Conforme a autora, as leis do Império estabeleciam os limites aos direitos de cidadania dos libertos, como a autorização ao voto apenas para as eleições primárias, ainda que o sistema eleitoral permitisse o acesso ao voto na proporção dos rendimentos; a impossibilidade de serem delegados ou subdelegados de polícia; de serem escolhidos para jurado, juiz de paz ou ainda de se candidatarem a

59

deputado ou senador; não poderiam assim como os escravos receber as ordens religiosas, nem serem altos funcionários do Estado ou prelados da Igreja. Poderiam ser vereadores, ingressarem no Exército, na Marinha ou na Guarda Nacional, porém sem chances de chegarem ao oficialato. No entanto, as capacidades civis como possuírem propriedade e dispor dela quando quisessem, herdarem bens, contratarem serviços e serem tutores ou curadores lhes foram atribuídas. A fixação dos libertos no campo de forma dependente – como agregados ou moradores, assalariados, diaristas ou ainda parceiros e arrendatários – seria sido a estratégia que viabilizaria tanto a reprodução da mão de obra de negros antes escravizados, forçando-os a trabalhar em atividades rurais e de acordo com os parâmetros dos proprietários, quanto a garantia de ordem nas cidades. Colônias agrícolas e a interdição dos escravos à realização de ofícios urbanos, proibindo-os de aprenderem ofícios, de atuarem como artífices em repartições públicas e em obras do governo, e a cobrança de taxas para que artífices africanos, escravos ou livres pudessem trabalhar, foram algumas medidas tomadas, por exemplo, na província da Bahia, em 1854. De acordo com Menezes (1996), um projeto de lei apresentado na Câmara dos Deputados, em 1870, intentava regulamentar o trabalho urbano em função da chamada “crise de braços” na lavoura. Deste modo, proibia-se o escravo de atuar em diferentes atividades nas cidades, que pouco depois se tornaram ocupações de imigrantes. Assim, após a promulgação da lei, ficaria proibido na Corte, nas capitais e nas cidades marítimas, o emprego de cativos nas indústrias de condução de veículos públicos, em tripulações de navios e embarcações grandes ou pequenas, na venda em quitanda fixa ou volante, no serviço de ganho para carreto ou outro fim, e nos serviços em lojas de alfaiate, sapateiro, costureiras, carpinteiro, marceneiro, ferreiro, ourives, caldereiro, tanoeiro, açougueiro, padeiro e pintor. Em São Paulo, por exemplo, em 1884, um projeto de um imigrantista, Martinho Prado Jr., defendia a decretação de um imposto sobre os escravos com a finalidade de financiar a imigração, desvalorizando assim a mercadoria escravo e estimulando os proprietários da província a substituí-la pela mão de obra européia, inclusive por artífices estrangeiros habilitados para as cidades. A chegada destes últimos permitiria, conforme o deputado, a migração dos negros citadinos para o trabalho em áreas rurais. Ainda na mesma província e no mesmo ano, um outro deputado, Delfino Cintra,

60

intentava, através da decretação de uma cobrança progressiva sobre os escravos das cidades, vilas e freguesias, forçar a sua retirada das áreas urbanas, substituindo-os por trabalhadores europeus. Em 1880, no entanto, o deputado Paulo Machado, já havia elaborado um projeto propondo a internação de “meninos desvalidos” em núcleos agrícolas, assim como o fechamento do Instituto de Educandos Artífices, alegando que o ensino de ofícios urbanos aos nacionais ocasionaria a uma concorrência com os imigrantes3. Ao recuperar todas estas restrições e interdições a africanos forros e livres, bem como a negros libertos no decorrer de parte considerável do século XIX, pretendo apontar a violência do sistema escravista em relação a categorias de homens e mulheres que mesmo sem serem cativos foram equiparados à condição de subalternidade destes, e, sobretudo, que os alicerces da sociedade fixavam-se em mecanismos de racialização da população, através das legislações civis, dos códigos de posturas municipais, e dos projetos políticos fundados nas perspectivas de desenvolvimento econômico do país. Como salienta Carneiro da Cunha, o vocábulo negro era empregado sempre como sinônimo de escravo, fosse este sujeito um cabra, um mulato ou um pardo. Escravo, por outro lado, significava negro, e os africanos eram preferidos aos crioulos. Neste sentido, “[...] um preto, a menos de prova em contrário, era um escravo”. (Carneiro da Cunha, op. cit., p.69) Dentro deste sistema classificatório, à medida que se tinha a pele mais escura, um homem ou uma mulher se aproximava mais da condição de escravo, e neste sentido negro (africano). Em contraposição, uma pele mais clara significava branqueamento e poderia conferir um outro estatuto ao sujeito, posto que era possível ser identificado como um livre. Deste modo, as estratégias das autoridades de racialização da população, cujos extremos seriam os escravos (negros) e os senhores (brancos) intercalavam uma série de gradações – pardos, mulatos, cabras, morenos, normalmente todos crioulos, isto é, nacionais – que ao invés de significar democracia racial e exaltação à mestiçagem, construíam o ser branco como o modelo social ideal que para ser alcançado implicava no afastamento das características que denotavam o ser negro africano. Até porque como a autora ressalva, àquela época a idéia de mestiçagem não estava posta como um problema, não havia sido incluída dentro de projetos e visões relacionadas à construção de uma nação liberal e capitalista, logo, a propalada homogeneidade do território e povo 3

Azevedo, 2004, p.140-1.

61

brasileiros tinham como antítese a eliminação da origem africana. Fora neste contexto, inclusive, que os projetos de deportação de que tratam Lara e Carneiro da Cunha foram elaborados. Lima (2003) também salienta que a intensa polissemia da mestiçagem, entre as décadas de 1830 e 1860, levou-a a se distanciar de uma construção que se popularizou na passagem do século XIX ao XX, que articulava ao termo mestiço idéias como democracia e intercâmbio entre os povos ou ainda degeneração e criminalidade. Neste sentido, chama a atenção que a intensa polissemia com a qual se deparou nos jornais publicados no Rio de Janeiro, entre os anos de 1831 e 1833, não permitia reduzir todos os termos empregados pelos editores – crioulos, cabras, fuscos, fulos, pardos, mulatos, homens de cor – a uma “questão racial” enquanto um fenômeno que percorreria a história, preservando uma essência e assumindo expressões variadas em contextos específicos. Desta perspectiva, as formulações das elites políticas e intelectuais para a modernização econômica e social do país cuja população negra e mestiça fora condenada por inúmeras teses e artigos acadêmicos, internacionais e nacionais, se inserem em um contexto particular, notadamente, a partir das décadas finais do século XIX. A partir deste raciocínio é possível indicar que os vocábulos mobilizados referentes à racialização da população atribuíam também outros sentidos e provavelmente novas identidades àqueles e àquelas a quem demarcavam. E quando faço esta consideração, penso especialmente no emprego conferido à palavra “crioulo” no pós-emancipação. O exercício da autora volta-se, então, à compreensão de como aqueles vocábulos acima citados foram apropriados de modo a que permitissem a invenção de identidades políticas, delineando uma “linguagem racial da política” no pós-independência, quando estava em jogo a edificação de um território e povo nacionais, ou seja, o que era o Brasil e quem eram os brasileiros. O que me parece interessante do trabalho de Lima é perceber que a mobilização de termos como mulato, homem de cor e pardo pelos jornais da Corte, que em muitos casos intitulavam os periódicos com estas expressões (O Crioulinho, O Brasileiro Pardo, O Mulato ou Homem de Cor) questionava, por exemplo, as tentativas que buscavam designar nos censos a cor dos cidadãos. Isto porque os mulatos ou os chamados homens de cor eram livres e, sob esta condição, passíveis dos mesmo direitos que os brancos. Logo, distinguí-los na categoria de livres por critérios fundados na cor iria contra à Constituição e aos direitos liberais. A

62

perspectiva de ampliação dos direitos de participação política e de melhores inserções profissionais, dos quais estavam excluídos, alinhavam as reivindicações de pardos, mulatos e crioulos, o que como aponta Lima, não impedia que alianças se estabelecessem entre este grupo, conhecido como os liberais exaltados e os brancos nãomoderados. Deste modo, esta discussão me leva a refletir que as categorias raciais ou que se referem à cor das pessoas devem ser pensadas não apenas como palavras que designam atributos físicos, visto que, durante a primeira metade do século XIX, o seu uso consolidava e também criava, a partir de textos diversos – jurídicos, da imprensa e peças teatrais –, as hierarquias sociais e as relações de poder que conformavam o cotidiano no Império. José Bonifácio em um projeto recomendando a alforria dos escravos estratificava-os de modo que os primeiros beneficiados fossem os mulatos, depois os crioulos, e em seguida os africanos4. Com base neste exemplo, a reivindicação de mulatos e homens de cor para que não fossem distinguidos por critérios que aludiam à cor, ainda que para serem ouvidos tenham se apropriado justamente das classificações raciais da época, preenchendo-as de outros sentidos políticos, aponta para uma convergência que perpassa os trabalhos de Lima e Carneiro da Cunha. A fórmula escravo=negro=africano, apesar de todas as gradações e nuances que se fundaram a partir dela, visto que o Brasil não era constituído apenas por cativos e senhores, localizava social e politicamente os não-cidadãos. E a questão que este tipo de hierarquização e estratificação traz refere-se a como passariam a ser posicionados, do ponto de vista social e político, aqueles que negros não eram africanos, posto que o tráfico internacional fora cessado em 1850, tampouco escravos, com a emancipação definitiva em 1888. Não me parece à toa que neste último contexto, os discursos sobre a desordem urbana ganhassem adeptos em diferentes áreas do Distrito Federal – a presença de capoeiras, feiticeiros, batuques, sambas –, e também as adscrições raciais tenham se tornado um mecanismo social através do qual era possível referir-se às desigualdades e diferenças de origem e de condição em uma sociedade juridicamente de livres. Note-se o seguinte caso, no qual a alusão à categoria “crioulo”, atribuída pelo Correio da Manhã ao carregador Apolinário, permite que se identifique através de uma característica pretensamente física, a posição social subalterna e clandestina do jovem, o 4

Carneiro da Cunha, op. cit., p.87.

63

que lhe rendeu uma detenção na delegacia. Em contrapartida, ao mencionar os patrões de Apolinário, o que permite situá-los socialmente não passou pela racialização explícita, pois eram “negociantes”. , soava como uma construção redundante, que não precisava ser enunciada, pois continuava não cabendo naquele contexto. Ontem, às 3 horas da tarde, foi apresentado, preso, a 11a delegacia urbana Apolinário Albino, crioulo, com 16 anos de idade, residente à rua das Mangueiras, na Boca do Mato. Este indivíduo foi mandado apresentar-se pela 12a delegacia urbana por ter sido preso na rua Lins de Vasconcelos, por um praça da Brigada Policial, quando conduzia um quarto de porco. Na delegacia foi inquirido e disse que vindo da casa do escrivão Lima Tavares, com o quarto de carne de porco ali rejeitado, no trajeto se encontrou com a praça que o prendeu, fazendo apreensão da carne; foram os negociantes Francisco dos Santos Mesquita & Comp., estabelecidos em armazém de secos e molhados, na rua Lins de Vasconcelos n 85 que fizeram a remessa de carne para o escrivão. Em poder de Albino, foi encontrada a nota, que é de 5 kilos de carne, à razão de 1$5000 o kilo. Essa nota acha-se na delegacia. Os negociantes serão intimados hoje a comparecer à audiência afim de prestarem esclarecimentos. (CORREIO DA MANHÃ, 2/12/1901, p.2)

Neste sentido, através do debate que procurei apresentar acerca dos libertos e livres, ou seja, no bojo do processo da emancipação lenta e gradual defendido pelo governo imperial, acredito que algumas proposições possam ser vislumbradas. Para isso procurei uma paragem do Rio republicano conhecida como Madureira.

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3 CAPÍTULO: SOLIDARIEDADES E DIFERENÇAS EM MADUREIRA 3.1 À PROCURA DE OUTROS CENÁRIOS Ao direcionar o olhar para a freguesia de Irajá, arranjo no qual Madureira se incluía, utilizando-me do Censo de 1872, é possível caracterizar as relações e práticas sociais sobre as quais a ruralidade daquele território se fundava. Com uma população geral de 5.9105 “almas”, entre os livres existiam 2.494 homens, dos quais 1.811 eram brancos, 816 pardos, 314 pretos e 8 caboclos.

Gráfico III. Homens livres segundo a cor na freguesia de Irajá.

Caboclos 0% Pretos 11%

Pardos 28%

Brancos 61%

Fonte: Recenseamento de 1872.

Das 2.022 mulheres que lá viviam sob aquela condição, 981 eram brancas, 620 pardas, 408 pretas e 3 caboclas.

5

Chamo atenção para um erro de cálculo presente no censo, em relação à soma de homens e mulheres livres; mesmo assim tomo estes dados como uma referência e não como informações exatas.

65

Gráfico IV. Mulheres livres segundo a cor na freguesia de Irajá. Caboclas 0% Pretas 20% Brancas 49% Pardas 31%

Fonte: Recenseamento de 1872.

No que concernia à população escrava, homens e mulheres chegavam a um total de 1.439 moradores, dos quais 174 eram pardos, 619 pretos, 167 pardas e 479 pretas, o que implica um número maior de pessoas de cor preta e bem menor de pardas, de ambos os sexos, submetida à condição de trabalho compulsório.

66

Gráfico V. Escravos segundo a cor na freguesia de Irajá.

Pardos 22%

Pretos 78%

Fonte: Recenseamento de 1872.

Gráfico VI. Escravas segundo a cor na freguesia de Irajá.

Pardas 26%

Pretas 74%

Fonte: Recenseamento de 1872.

Somando-se todos esses números, segundo um critério que este recenseamento não contempla, ou seja, classificando como negros todos aqueles enquadrados nas categorias pretos e pardos, àquela época, nesta freguesia viviam 3597 negros (pretos e pardos) e 3454 brancos, incluindo os imigrantes, 533 homens e 129 mulheres estrangeiros.

67

Gráfico VII. Negros e brancos na freguesia de Irajá.

Brancos (as) 49%

Negros (as) 51%

Fonte: Recenseamento de 1872.

Com relação às profissões, a de lavrador destacava-se entre brasileiros e imigrantes, agrupando 1.555 homens e mulheres neste tipo de atividade: respectivamente 471 e 299 escravos; 376 e 166 livres; 207 e 30 estrangeiros. Ocupações como criado e jornaleiro reuniam mais homens livres (280) e imigrantes (162) que escravos (81), e a participação feminina era reduzida neste tipo de função. Em contrapartida, na categoria serviço doméstico, achavam-se tanto mulheres livres (337) como escravas (178), e estas predominavam frente aos homens, independente da condição. Nota-se, com base nestas informações, que na lavoura predominava o trabalho agrícola de homens e mulheres que em sua maioria eram escravos pretos, em comparação com o maior número de livres – categoria na qual os chamados pardos eram privilegiados – de ambos os sexos, desenvolvendo atividades de serviços vinculadas ao interior da propriedade ou em tarefas subalternas ligadas ao funcionamento cotidiano daquela vida rural. Ressalto, contudo, o elevado contingente de pessoas inseridas no critério sem profissão, 2.425, que, se separadas por condição, livres e escravas, eram respectivamente, 761 homens e 1272 mulheres, e 172 homens e 154 mulheres. Entre os imigrantes, 28 homens não possuíam profissão, e 38 mulheres estavam nesta mesma situação. Profissões liberais e atividades ligadas a manufaturas e indústrias eram pouco comuns, destacando-se algumas atividades como as de comerciante e caixeiro, bem como a de operários que trabalhavam em madeira, o que

68

me leva a acentuar a importância do trabalho agrícola ligado à força de trabalho escravo, conforme as informações do documento apontaram.

Gráfico VIII. Profissões na freguesia de Irajá, segundo a condição de livres, escravos e imigrantes.

2500

2000

1500 Números absolutos

1000

500

0 Lavradores

Criados e jornaleiros

Serviço doméstico

Sem profissão

Homens e mulheres livres

542

285

359

2033

Homens e mulheres escravos

770

94

208

326

Homens e mulheres estrangeiros

237

162

73

66

Profissões e condição

Fonte: Recenseamento de 1872.

69

De acordo com o censo de 18906, dezoito anos depois, nesta freguesia passaram a residir 13.1267 habitantes, dos quais 6.902 eram homens e 6.224 mulheres. Do total da população masculina, 3693 eram brancos, 868 pretos, 1.753 mestiços e 588 caboclos.

Gráfico IX. Brancos, pretos, mestiços e caboclos na freguesia de Irajá.

Caboclos 9% Mestiços 25%

Brancos 53%

Pretos 13%

Fonte: Recenseamento de 1890.

Com relação à população feminina, havia 6.224 mulheres, das quais 2.760 brancas, 976 pretas, 2.004 mestiças e 484 caboclas. Destaca-se, neste contexto um contingente maior de mulheres pretas e mestiças se comparado ao de homens pretos e mestiços, assim como o de mulheres brancas.

6

A população total do município era a de 522.651 habitantes. No recenseamento de 1906, a freguesia de Irajá aparece com 13.130 habitantes, o que denota um pequeno acréscimo se comparado ao censo de 1890. 7

70 Gráfivo X. Brancas, pretas, mestiças e caboclas na freguesia de Irajá.

Caboclas 8% Mestiças 32%

Brancas 44%

Pretas 16%

Fonte: Recenseamento de 1890

E, se como no exemplo referente ao recenseamento de 1872, reúne-se a população preta e mestiça na categoria negros, tem-se o seguinte gráfico, nos quais na categoria brancos (as) incluem-se 1.398 homens e 386 mulheres estrangeiros.

Gráfico XI. Brancos (as) e negros (as) na freguesia de Irajá.

Negros(as) Brancos 46% de 1890. Fonte:(as) Recenseamento 54%

Fonte: Recenseamento de 1890.

71

Através do Mapa II identifica-se que a freguesia de Irajá – mas também a maior parte das freguesias suburbanas – ainda apresentava em fins do século XIX uma estrutura fundiária constituída principalmente por fazendas e engenhos, e no que diz respeito ao que venho a se configurar como Madureira, vê-se ainda as fazendas do Portela e do Campinho integrando a representação cartográfica deste período histórico.

Mapa II. Planta da cidade do Rio de Janeiro, 1888.

Fonte: Recenseamento de 1920. http://biblioteca.ibge.gov.br

Limite da Décima Urbana

No Cadastro das Habitações doCampinho Distri Fazenda do Portela e do

72

No Cadastro das Habitações do Distrito to Federal, integrante do Anuário de Estatística Demográfico-Sanitário, de 1895, o quadro é também o de uma freguesia na qual as atividades comerciais são incipientes. Através da tabela nota-se que o número de estabelecimentos relacionados a habitações populares tais como avenidas e estalagens, casas de aluguel, de cômodos, de pensão, hospedarias e hotéis – a referência do documento provavelmente estava nas áreas urbanas da cidade – é extremamente reduzido, o que remete a algumas considerações. A primeira delas vai no sentido de indicar que, em 1895, as relações de trabalho servil havia se extinguindo não fazia dez anos. Mesmo objetando-se o alcance que em fins do século XIX o sistema escravista tinha nestas áreas do município, em função da compra, concessão de alforrias ou ainda fugas – visto que de acordo com o censo de 1872, dos 5.910 moradores cerca de 24% do total, 1.439, permaneciam escravos – é possível pensar qual teria sido o impacto da emancipação oficial em relação à moradia em um cotidiano fundado em relações sociais informadas pela lógica senhores e escravos. Logo, a freguesia de Irajá não se torna imediatamente uma área de atração populacional neste período, nem mesmo possuía uma rede de serviços e comércio, assim como atividades industriais bem estruturadas. Armazéns, tavernas e botequins provavelmente eram os estabelecimentos mais comuns e freqüentados, não sendo por acaso que parte das histórias de que tratarei no segundo e terceiro capítulos, desenvolvase neste tipo de cenário. Continuando neste caminho, chamo a atenção para o número de residências particulares cadastradas no Anuário de 1895, 1.403 fogos. Levando-se em consideração os dados que foram registrados no recenseamento de 1890, existiriam na freguesia 1.753 prédios e 1.704 domicílios (acréscimo considerável se comparado com o documento que lhe é posterior) cujas densidades da população seriam, respectivamente, 7,49 e 7,70, o que abre espaço para se imaginar uma continuidade com um modo de organização da vida doméstica no qual uma família extensa e trabalhadores domésticos co-habitavam uma mesma propriedade, em fins do século XIX. Quadro II. Cadastro das Habitações do Distrito Federal. Estabelecimentos

Freguesia de

Freguesia de Inhaúma

Irajá Armazéns e tavernas

73

157

73

Armazéns diversos

-

7

Armarinhos

3

14

Alfaiatarias

1

5

Açougues

4

16

Arsenais e quartéis

1

-

Avenidas e estalagens

5

20

Botequins e bilhares

17

25

Barbeiros

6

16

Casas de aluguel e cômodos

-

-

Casa de pasto

3

12

Casas de pensão

-

-

Casa de quitanda

3

25

Carvoarias

-

-

Charutarias

1

5

Confeitarias e refinação de

-

5

Cemitérios

2

1

Drogarias e farmácias

5

8

Depósitos diversos

7

2

Estabelecimentos de educação

17

17

Estabelecimentos diversos

3

5

Estações diversas

7

14

Escritórios diversos

-

-

Estábulos e cocheiras

2

22

Edifícios públicos

1

2

Fábricas diversas

11

32

Hospedarias,hotéis,restaurantes

2

3

Hospícios,hospitais,asilos

1

1

Igrejas, conventos, etc

2

4

Jardins e praças

-

-

Lojas diversas

1

27

Oficinas diversas

7

23

açúcar

74

Pequenos negócios

5

1

Prédios fechados e em ruínas

-

-

Prédios em construção e obras

-

-

Padarias

3

11

Residências particulares

1403

4414

Repartições públicas

5

3

Teatros

-

1

Soma

1601

4897

Fonte: Anuário de Estatística Demográfico-Sanitário, 1895.

Uma outra leitura, ainda que com algumas continuidades, advém dos dados do recenseamento do Distrito Federal de 1906. Conforme este documento, a essa época moravam na freguesia 27.406 pessoas. Em termos comparativos entre 1890 e 1906 o crescimento populacional absoluto foi de 14.280 habitantes, ou 108,76%. O número de prédios e domicílios em relação ao censo anterior também sofreu um incremento, tendo sido registrados, respectivamente, 4.243 e 4.201, com densidades médias de 6,4 pessoas por prédio e 6,5 moradores por domicílio, apontando uma reduzida queda na concentração habitacional, de uso doméstico ou ocupacional. Acredito, contudo, que quando se confrontam estes dados com as narrativas e informações extraídos dos processos crimes daqueles que viviam nesta freguesia, especialmente em Madureira, é possível perceber que a essa época já prevalecia a consolidação de algumas ruas (ainda que muitos dos endereços se referiam a números de casas não existentes), e principalmente, a partilha de usos em um mesmo endereço, encontrando-se funções mistas, residenciais e de trabalho, assim como uma divisão entre diferentes famílias e pessoas de um mesmo terreno. Neste sentido, ainda que a densidade populacional tenha sofrido uma pequena diminuição entre os anos de 1890 e 1906, isto não impediria que nos primeiros anos do século XX, uma outra estrutura fundiária, não mais baseada na propriedade rural, estivesse ganhando relevo. Acrescenta-se a isso que no mapa da freguesia de Irajá (Mapa III) publicado no Recenseamento de 1906, Madureira já figura como o nome da localidade onde há menos de 18 anos, as fazendas do Portela e do Campinho haviam sido representadas na cartografia da cidade.

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Mapa III. Distrito de Irajá.

Estação

Madureira

Campinho

Estrada Marechal Rangel

Fonte: Recenseamento de 1906. http://biblioteca.ibge.gov.br Do ponto de vista da nacionalidade, foram encontrados, em 1906, 22.485 brasileiros (11.697 homens e 10.738 mulheres), 3.067 portugueses (2.283 homens e 784 mulheres), 757 espanhóis, (466 homens e 291 mulheres), entre os 27.406 residentes, apontando que a grande parte daqueles que lá moravam eram os chamados nacionais. Do ponto de vista profissional, no entanto, nos primeiros anos deste século reafirma-se a permanência da maioria da população de Irajá em atividades agrícolas, assim como o predomínio de funções com baixa qualificação e vinculadas a serviços domésticos e esporádicos. Agricultura, horticultura e atividades afins reuniam 1.194 brasileiros e 935 estrangeiros, do sexo masculino. Jornaleiros e trabalhadores braçais também se apresentavam como ocupações basicamente masculinas, com destaque dos brasileiros (957) frente aos estrangeiros (430). No serviço doméstico, por outro lado,

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notadamente de caráter feminino, segundo este censo, empregavam-se mais brasileiras (3.890) que mulheres de outras nacionalidades (635). A partir destes dados chamo a atenção para o fato de que a predominância de atividades ligadas à lavoura, tais como a agricultura e a horticultura, foi concomitante ao afastamento das trabalhadoras nacionais deste tipo de ocupação, pois apenas 162 brasileiras apareceram empregadas neste critério, conforme o censo de 1906. Considerando-se o quartel final do século XIX, por exemplo, através do censo de 1872 – o de 1890 não traz informações sobre as profissões –, vê-se que um contingente considerável de mulheres, notadamente escravas, se inseria socialmente via este tipo de trabalho, mais da metade dos homens, fossem livres ou escravos.O deslocamento para funções domésticas, no interior do cotidiano do próprio subúrbio, parece ter sido o espaço criado para as descendentes de pretas e mestiças que há pouco mais de três décadas formavam-se e viviam sob o regime servil. Além disso, sob a categoria profissões desconhecidas emergiu um número elevado de brasileiras (1.920) frente às estrangeiras (340), quantitativos bem mais elevados quando se olha para o outro gênero: 462 brasileiros e 126 estrangeiros. (Ver Gráficos XII e XIII) Saliento que ao lado desta estrutura sócio-ocupacional, ganhou mais expressão, em relação às informações de 1872, profissões ligadas à força e à segurança pública (Exército e Armada), ao funcionalismo público, ao setor de marítimos, à construção de aparelhos de transporte, mobiliário e cerâmica.

Gráfico XII. Profissões segundo o gênero masculino e a nacionalidade no distrito de Irajá.

1200 1000 800 Números absolutos

600 400 200 0 Agricultura, horticultura e

Jornaleiros e trabalhadores

Profissões desconhecidas

Brasileiros

1194

957

462

Estrangeiros

935

430

126

Profissões e nacionalidades

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Gráfico XIII. Profissões segundo o gênero feminino e a nacionalidade no distrito de Irajá.

4000 3500 3000 2500 Números 2000 absolutos 1500 1000 500 0 Agricultura, horticultura e afins

Serviço Doméstico

Profissões desconhecidas

Brasileiras

162

3890

1920

Estrangeiras

51

635

340

Profissões e nacionalidades

Fonte: Recenseamento de 1906.Fonte: Recenseamento de 1906.

♦♦♦ Como dever que tenho, não devo deixar escapar da crítica que merece, estes que envoltos em largas bombachas8 vagueiam molemente pelo bairro de Madureira, ora sentados nas redondas mesas do botequim do Viratripa, sócio do Zé-Lambão, esperando que eles deixem alguma esmola de Paraty ou alguma ponta de cigarro para saciar o vicio que lhes devora. (O CONDOR, Madureira, 1908, p.2)

Este comentário, presente em um jornal de Madureira organizado por um grupo de jovens que se declarava interessado na divulgação da literatura, chamou a minha atenção, primeiramente, por causa da descrição de um sujeito social bastante comum nos periódicos, nos documentos da polícia e nos relatórios dos órgãos responsáveis pelo 8

Bombachas: Bras. Calças muito largas em toda a perna, salvo no tornozelo.(Mini dicionário da língua portuguesa Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 4a edição. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001)

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higienização e saneamento das áreas urbanas do Rio de Janeiro desde o fim do século XIX: aquele que vagueia à procura da satisfação dos seus “vícios”, diriam as autoridades responsáveis pela ordem social, mas não apenas estas, como demonstra o trecho do jornal suburbano. No entanto, longe do perímetro urbano da capital republicana e em uma das paragens da Estrada de Ferro Central do Brasil, encontrei uma alusão através do olhar da imprensa local, a um tipo social que se enquadraria no perfil do chamado “vadio”, aquele que portaria as práticas e valores do anti-trabalho. Contudo, relendo o pequeno trecho, através de um indício percebi que a esta imagem somava-se aquela do capoeira, por meio do símbolo das “bombachas”, o que me permite chamar a atenção para a presença de conflitos sociais, neste capítulo e no seguinte, forjados através de estratégias de racialização no cotidiano de Madureira. Estratégias que iam recebendo mais ênfase, ou de outro modo, passaram a ser enunciadas de modo mais recorrente à medida que se pretendia denotar homens e mulheres inseridos em diferentes contextos de disputas, individuais e coletivas. Entre estas surgiram as travadas entre Ernani Rosa, conhecido como Otávio, e Joaquim Peixoto Guimarães, chamado de Silvestre ou Silvério, que com certa freqüência andavam “em disputa” por Madureira, situando-se em lados opostos nos grupos carnavalescos locais, mas também do primeiro com outros moradores; aquela entre um grupo de portugueses e “crioulos” no mercado de Cascadura, até então o centro de abastecimento dos subúrbios, em 1915, sendo os imigrantes em sua maioria moradores dos arredores da estação de Dona Clara, parada ferroviária da Central do Brasil situada em parte do que fora a fazenda do Campinho e cujas propriedades ao serem loteadas se incorporaram aos limites de Madureira; e por fim como as que levaram D. Clara a ser comparada por Orestes Barbosa, no livro Bambambã, ao morro da Favela, localizado no centro do Rio de Janeiro, e a ser chamada de “Favela Suburbana”, em publicações como a revista Rio Ilustrado, de 1937, e o Almanaque Suburbano, de 1941. Em torno da estação de Dona Clara, o estabelecimento de alguns moradores e moradoras gerou uma série de manifestações públicas – da imprensa local e de jornalistas reconhecidos do Rio de Janeiro – relativas aos perigos daquela paragem. Nestes discursos, a origem social, as condições de vida e a cor continuavam a se combinar no sentido de configurar identidades sociais. No entanto, simultaneamente a

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este processo, uma identidade territorial passa a localizar esta paragem em relação à cidade como um todo. Quanto à metodologia, estas questões foram sendo conformadas a partir de algumas fontes documentais. Utilizei-me dos inquéritos policiais produzidos no 23o Distrito Policial (14a e 7a Pretorias Criminais) incluído na 6a Circunscrição Suburbana, freguesia de Irajá, da qual Madureira fazia parte. Ao me debruçar sobre essa documentação identifiquei um caminho precioso para recuperar os agentes sociais que ali viviam nas duas primeiras décadas do século XX, mas não apenas isto. Ao me familiarizar com os nomes, os apelidos, bem como com as ruas e as referências locais, pude perceber que entre fragmentos, trajetórias interrompidas, algumas continuidades, e a partir de um olhar e uma questão específicos, poderia reconstruir uma rede de relações sociais na qual posicionamentos, práticas e valores possibilitariam iluminar um cotidiano fabricado através da mobilização de categorias raciais. Atenta a uma colocação de Crapanzano (2001) que enfatiza a importância da dimensão pragmática dos sistemas classificatórios, o que implica, conforme o autor, a atenção analítica voltada aos modos como as categorias de classificação “suscitam, proclamam e até criam seu contexto de relevância, incluindo o próprio sistema de classificação”, fui, à medida que lia as declarações das testemunhas, dos acusados e as conclusões das autoridades policiais e judiciais, buscando compreender em que contextos emergiam uma referência mais precisa a classificações raciais e quais – tomando de empréstimo uma construção deste autor – “falam menos do racismo do que ‘o mostram’”.(p. 444-446) Essas considerações me pareceram interessantes porque dão margem a uma análise que procura recuperar as relações de poder que perpassavam a ativação de categorias como pretos (as), crioulos (as), mulatos: em que situações sociais essas classificações tornavam-se recursos utilizados pelos sujeitos e o que estaria em jogo quando estes assim procediam? Nesse sentido, Crapanzano sugere metodologicamente que, Talvez seja mais proveitoso começar de modo mais impessoal, com compromissos e confrontações interpretativas no intuito de determinar as condições pragmáticas por meio das quais essas próprias categorias são definidas e aplicadas. Ou seja: descobrir a maneira como “raça”, “classe”, “gênero” e “etnicidade” emergem dessas confrontações interpretativas e como funcionam retórica e politicamente”. (CRAPANZANO, op.cit., p.447) (Grifo do autor)

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Ao recuperar esta passagem do autor dei-me conta, como sugere Cunha (2002) quando dialoga com trabalhos relativos às práticas discricionárias racializadas difusas em contextos coloniais, particularmente no Sudeste Asiático no século XVIII, de que se o racismo pode assumir a “forma de outras coisas”, o exercício analítico seria justamente o de procurar compreender as relações antagônicas de classe, gênero e poder que sustentam e contextualizam as categorias raciais. Saliento, no entanto, que algumas considerações devem ser feitas sobre esta fonte documental, os inquéritos criminais. A primeira delas vai no sentido da análise desenvolvida pela autora acima, que se centra nos discursos acerca da cientifização dos mecanismos de identificação criminal a partir da ligação destes enunciados com certas concepções que os atores envolvidos tinham a respeito da sociedade e dos indivíduos. Como demonstrou Cunha, que reservou parte de sua pesquisa aos discursos e às práticas de identificação criminal referentes à prevenção da vadiagem e à repressão aos vadios na década de 1930, estas atividades significavam uma espécie de conversão, tal qual aquelas relativas aos ritos religiosos. A “realidade” a ser descrita pelos funcionários responsáveis por esta tarefa demandava a criação de modos de se referir e falar sobre os acusados, transformando-os em contraventores (as), o que não excluía a possibilidade de negociação entre diferentes retóricas sujeitas a outras manipulações e interpretações que não aquelas elaboradas pelos funcionários e autoridades da polícia. As políticas e práticas de identificação não se restringiram à perseguição de vadios. Nem mesmo a penalização da vadiagem visou responder, necessariamente, a demandas do campo da identificação. Houve diferenciados mecanismos de identificação, de caráter civil e criminal, bem como diversas políticas institucionais [...]. Se existiu comunicação entre as rotinas identificatórias e os modos de corrigir e reprimir a vadiagem, ela pode ser localizada na atenção dada às figuras da reincidência e do reincidente. Foi a preocupação em registrar a marcar socialmente atitudes e comportamentos considerados perigosos, moralmente condenáveis e antisociais, que conferiu legitimidade às atividades de identificação. Foi pensando a política de erradicação do ‘ócio sem rendas’ que percebi a existência de rituais administrativos e burocráticos destinados a tornar possível a conversão: transformar o suspeito em vadio. Esses artifícios deram vida a um espectro disforme de situações, cuja descrição só foi possível através de uma linguagem jurídica. (CUNHA, op.cit., p.3) (Grifo da autora.)

Baseando-me nestas considerações, acredito ser relevante deixar explícito ao leitor que os inquéritos criminais devem ser vistos enquanto textos posicionados social e politicamente. Sendo assim, ao se fundamentarem em regras de descrição, critérios,

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procedimentos e visões de mundo formatam, como bem salientou a autora, situações e vivências díspares, atribuindo-lhes um caráter pretensamente objetivo assim como significados sociais e simbólicos comuns. Assim, sinalizo que é preciso estar atento para o fato de que os processos crimes em si mesmos são passíveis de serem problematizados enquanto objeto de estudo, na medida em que se inserem em um quadro mais amplo de institucionalização de práticas repressivas e de prevenção historicamente situadas, ligadas à legitimidade e ao funcionamento dos órgãos policias e judiciais. Contudo, para além desta apropriação, a que faço com relação a esse tipo de fonte documental, com as ressalvas que já assinalei, refere-se a tentar alargar o olhar para além do enquadramento oferecido pelo texto inquérito, extraindo informações de segunda mão – posto que selecionadas, condensadas, descritas e interpretadas por outros. Tento, assim, compreender através dos vários enunciados em questão, posicionamentos, valores e concepções que produzem e revelam outras conformações sociais e de poder sobre os atores envolvidos ou arrolados em um inquérito, dando conta de dimensões da vida coletiva tais como aquelas relacionadas aos âmbitos de trabalho e lazer. Por outro lado, saliento que a metodologia que proponho não pode se furtar da formatação e classificação institucionais que permitem a reconstrução deste cenário sócio-territorial, o subúrbio de Madureira. Isto porque as “histórias criminais” às quais se refere Cunha, fabricadas a partir da conexão de pessoas e eventos classificados como “suspeitos” ao longo dos processos burocráticos ligados à edificação dos arquivos policiais, implicam também a produção de identidades sociais. Neste sentido, é fundamental a atenção para o fato de que a identificação de homens e mulheres se insere em um contexto de produção no qual a alusão a categorias raciais foi utilizada como importante recurso de criminalização. Deste modo, ainda que as classificações racializadas enunciadas pelas autoridades policiais não sejam o foco principal da análise, tornam-se, no entanto, parte integrante das relações de poder que forjam e ratificam certas identidades sociais, atuando de modo fundamental no cotidiano local. Como aponta a autora ao questionar as considerações que priorizam a existência de uma confusão classificatória no campo das categorias raciais no Brasil, assim como enfatizam a sua difusão estigmatizante como tendo sido manipulada apenas junto ao

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senso comum, o que implicaria na isenção de atuações do Estado e dos discursos oficiais nesta construção, A noção de ‘fenótipo’ [...] não se opõe, mas é constitutiva das várias estratégias de ‘racializar’ o cotidiano das relações sociais e as diferenças de classe e gênero que são visíveis, reconhecíveis e identificáveis nos corpos. [...]. E se o discurso da nação [a partir dos anos de 1930] reafirma a mistura e a igualdade como valores, no cotidiano das ruas, prisões, dos hospitais e das escolas é a distinção e a singularização que conferem existência às pessoas e aos indivíduos. É justamente nesse plano, entrecortado por suas especificidades históricas, sociais e culturais, que um singular discurso sobre ‘raça’ é não só reinterpretado, mas produzido. É nesse contexto que a ‘cor’ emerge como sinal distintivo que deve ser perpetuado nos registros oficiais sobre a pessoa, graças ao seu valor simbólico, seu poder de aludir à herança, à origem social, às distinções públicas e às diferenças sociais. Ao contrário de dissimular a força das idéias racialistas, os discursos em torno da ‘cor’ das pessoas apropriamse daquilo que essas idéias oferecem de mais palpável: produzem conexões entre indexações – localizadas e sinalizadas no corpo – e representações sociais – cujo domínio e compreensão do seu significado semântico é extensivo a um número maior de pessoas. (CUNHA, op. cit., p.53) (Grifo da autora)

3.2 NOS CIRCUITOS DE TRABALHO E LAZER Fevereiro de 1902. Em Madureira9, “logar” no qual estavam localizadas uma estação de ferro da Central do Brasil, uma linha circular da mesma empresa (Dona Clara) e uma outra da Linha Auxiliar (estação de Magno), um desentendimento entre um proprietário de uma venda e uma freguesa trazem à cena sócio-histórica alguns dos agentes que comporão esta trama. Eulália de Almeida Magalhães Pinto foi à delegacia, quatro dias depois deste fato, acompanhada de Oscar Barros, Joaquim Peixoto e José Peixoto, e prestou queixa contra João Otaviano da Cunha10. Natural de Minas Gerais, com 25 anos, era solteira e disse saber ler e escrever. Trabalhava como doméstica e morava na rua São José, em Madureira. De acordo com Eulália, [...] no dia vinte e quatro deste mês seriam seis horas mais ou menos da tarde, quando pegou em uma garrafa e foi a venda de sic, conhecido por “Velho”, a fim de comprar sic e chegando na dita venda encontrou ali diversas pessoas como tinha pressa pediu ao mesmo “Velho”, dono da dita venda que lhe despachasse logo, ele em lugar de [sic] pelo contrário, fez foi pegar no braço [...] e empurrá-la para o lado de fora da venda e declarando-lhe que a declarante não levava mais nada, a declarante ficando [sic] com este procedimento, perguntou o “Velho” 9

Ver Lourenço Madureira. Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 7G 250.

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qual o motivo de assim proceder, pois que ontem [sic] era freguesa da tua casa, aí o mesmo “Velho” deu-lhe duas bofetadas em seu rosto, de modo que lhe veio gosto de sangue na sua boca, aí a declarante falou alguma coisa e retirou-se para a sua casa e sendo isto uma desfeita entendeu a vir a esta delegacia dar a sua queixa, acompanhada das testemunhas [...].

Entre as testemunhas de Eulália nenhuma afirmou ter visto João Otaviano, ou o “Velho”, como era conhecido, agredi-la fisicamente. Segundo Oscar de Barros, natural da capital federal, solteiro, servente de pedreiro, morador na estrada Marechal Rangel, principal via de Madureira, eram mais ou menos seis horas da tarde quando ouviu, de sua casa, um “falatório” na venda de “Velho”. Ao se dirigir até lá, encontrou o dono do estabelecimento discutindo com Eulália. Este teria então segurado no braço da mulher, colocando-a fora da venda “[...] dizendo que não lhe vendia mais parati; que se o velho deu bofetadas em Eulália o declarante não viu”. Joaquim Peixoto, também testemunha, assim como Oscar, havia nascido no Distrito Federal, tinha vinte anos, era solteiro, sabia ler e escrever. Trabalhava em uma padaria e morava na rua Domingos Lopes 12, Madureira. Declarou que passava pela venda quando viu Eulália do lado de fora, tratando de “descompor a Velho”, não sabendo o motivo de tal atitude. José Peixoto, provavelmente, irmão de Joaquim, pois ofereceu o mesmo endereço, tinha 22 anos e também trabalhava em padaria. A venda fazia parte do trajeto que tomava para ir trabalhar, e por lá passando viu Eulália do lado de fora do estabelecimento, “falando muito”, contudo não teria visto o dono da venda agredi-la. José Manoel Alves, um carpinteiro português que morava na rua Marechal Rangel 112, próximo à venda, de 39 anos, dizendo-se saber ler e escrever, também foi testemunha. De sua casa, quando jantava [...] ouviu nessa hora falatório na mesma venda e chegando a porta para ver o que havia, viu Eulália do lado de fora com uma garrafa na mão e batendo com os pés, dizendo que dali não se retirava, não sabendo [...] o motivo de ela assim dizer, que não viu Velho pegar em seu braço e nem dar-lhe bofetadas.

Nascido no município do Rio de Janeiro, João Otaviano da Cunha disse ser casado, negociante e saber ler e escrever. Com 31 anos, morava no mesmo endereço que José Manoel Alves, rua Marechal Rangel 112. De acordo com ele [...] pela manhã retirou-se para a cidade e voltando na tarde do mesmo dia, chegando em sua casa, foi informado por sua mulher de que Eulália tinha ido à sua casa e aí praticou muitos insultos, com palavras obscenas, com esta noticia o declarante disse que não consentiria mais Eulália em sua casa; que à tarde Eulália de novo dirigiu-se à sua casa

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com uma garrafa para comprar parati, o declarante não quis vender lhe parati e pediu-lhe com bons modos para que se retirasse e que em sua casa não tornasse mais, isto bastou para que Eulália ficasse raivada e [...] de muitas palavras indecentes, pelo que o declarante apenas botou de leve a sua mão no ombro de Eulália, pedindo-lhe de favor que se retirasse, no que só foi atendido quando ela bem entendeu. Que com isso quanto a dar lhe bofetadas é falso, pois tal não se deu.

Em torno da venda de Otaviano, um estabelecimento de secos e molhados conforme anúncio no jornal Echo Suburbano de Madureira de 1911, ocorreram alguns dos conflitos encontrados na documentação do 23o Distrito Policial, e que serão apresentados neste capítulo. Excetuando-se a doméstica Eulália, natural de Minas Gerais e o carpinteiro português José Manoel Alves, as declarações das testemunhas e do acusado foram de moradores que tinham origem na capital da República: dois trabalhadores em padaria, um servente de pedreiro, além do comerciante. Encaminharse à delegacia, junto com as testemunhas, teria sido uma decisão de Eulália cuja justificativa estava no considerou como uma “desfeita” de Otaviano em relação a ela – uma freguesa apressada que queria comprar em um estabelecimento, e, não atendida pelo dono, foi impedida de comprar e agredida. Na fala da doméstica Eulália no contexto da delegacia, uma relação impessoal de troca comercial entre um proprietário e uma freguesa havia sido posta em suspenso. A versão de Otaviano, no entanto, pessoaliza a figura de Eulália à medida que a caracterizou não apenas como uma compradora, mas como uma mulher que se utilizava de palavras “obscenas” e praticava insultos, e que por esta razão não deveria mais freqüentar o seu negócio nem ali comprar. Neste sentido, ao mau comportamento de Eulália Otaviano opõe suas maneiras civilizadas, pedindo com “bons modos” para esta se retirar do local, o que sem resultado, procurou fazer pondo “de leve” a mão nos ombros da doméstica. Nas duas narrativas, contudo, estabelece-se um princípio consensual quando Eulália e Octaviano expressam, ainda que em termos dos valores e normas ideais – não podemos saber se os insultos verbais e a agressão física de fato foram realizados –, o caráter negativo ao qual se ligavam atitudes violentas, fossem sob a forma de bofetadas, como afirmou Eulália, ou no incisivo repúdio a um tratamento grosseiro, como procurou demonstrar Octaviano em suas declarações. Ao chamar a atenção para a mobilização de um valor como o da impessoalidade de uma relação comercial entre um comerciante e uma freguesa e das expectativas em

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torno disso – tal como o fez Eulália – procuro recuperar a presença de um imaginário social naquele contexto histórico pós-emancipação: um subúrbio do Distrito Federal no qual residiam lavradores, pequenos comerciantes, trabalhadores braçais, domésticas, alguns operários e profissionais liberais, como apontou o censo de 1906, que há poucos anos atrás, encontrava-se organizado sob o regime servil. Ainda que neste processo crime não se tenha acesso à classificação racial dos envolvidos, duas assimetrias sociais manifestaram-se, em termos de classe e de gênero, pois vimos neste caso uma desavença entre um proprietário e uma não-proprietária. Como tentei demonstrar através das versões dos dois personagens desta contenda, um ato violento, verbal ou físico, seria condenável. Uma doméstica como Eulália não o aceitaria, e o proprietário da venda, em seu depoimento, esforçou-se para convencer que não havia agido assim. Aliás, um comportamento deste tipo transformaria o então acusado em culpado, e as testemunhas negaram ter visto a agressão física à qual aludiu a suposta vítima. A partir destas colocações seria possível fazer referência a um passado escravista, instituído pela coerção física e simbólica, para explicar as relações, sociabilidades e comportamentos então vigentes em uma sociedade emancipada e liberal-republicana? Proponho esta pergunta no sentido de apontar uma inquietação relativa ao tratamento teórico-metodológico a ser conferido a uma análise embasada neste momento histórico. Explicar a presença de agressões físicas e verbais, que marcam a maioria dos inquéritos pesquisados, em função da persistência de uma herança escravista no imaginário coletivo soa-me como um caminho simplista e pouco frutífero do ponto de vista sociológico. Afinal, apesar de todos os limites e dificuldades, a população negra já não era mais escrava e todos sabiam disso, e, como demonstrou Eulália ao reivindicar um tratamento impessoal entre um proprietário e uma não proprietária, não seria em termos de um atraso cultural – primitivismo, barbárie ou falta de educação – que as relações e concepções sociais poderiam ser explicadas. Joaquim Peixoto, o trabalhador em padaria natural do Distrito Federal, nascido em Madureira, que serviu de testemunha de Eulália, em 1902, após sua primeira aparição naquele inquérito, tornou-se um personagem recorrente na delegacia do 23o Distrito Policial, sendo em alguns processos identificado como um “desordeiro” e “vagabundo”. Apesar de algumas discrepâncias com relação à sua idade, no decorrer

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dos processos pesquisados outros elementos concorrem para eu acreditar que se trata da mesma pessoa. Em agosto de 1903, pela manhã, no botequim de José Alves Rodrigues, localizado na rua Firmino Fragoso 33, o caixeiro francês Edmundo Robert foi ferido na mão. De acordo com aqueles que se achavam no estabelecimento, o responsável pela agressão fora “Silvestre de tal”. Teodoro da Silva, carroceiro que trabalhava no mesmo botequim e residente nesta mesma rua, em uma casa sem número, natural do estado de São Paulo, com vinte oito anos e analfabeto, apresentou a seguinte versão na delegacia: [...] estando [...] nos fundos do botequim acima referido viu ali entrar Silvestre de tal armado de um canivete, o qual se dirigiu para Edmundo Robert, caixeiro do botequim pedindo a este um tostão que tinha ali deixado e, não querendo Edmundo atendê-lo, Silvestre entrou para dentro do balcão e feriu Edmundo na mão com o canivete de que vinha armado, quando o declarante agarrou-o e tomou-lhe o canivete; que Silvestre vendo-se desarmado, pondo escapolir-se de suas mãos e agarrado em uma faca que estava junto de um queijo, novamente investiu para Edmundo, dizendo que queria acabar-lhe com a raça, em vista do que o declarante agarrou-o novamente e tomou-lhe a faca e Silvestre pondo outra vez a escapolir-se e indo para a rua pegou em uma pedra e quando vinha com ela para atirá-la em Edmundo, apareceu Jacinto de tal, pai de Silvestre, o qual, vendo seu pai, fugiu.

Edmundo tinha trinta e oito anos, era solteiro e morava no mesmo endereço onde se localizava o botequim, há cerca de vinte dias. Conforme suas declarações, porque estava há pouco tempo na freguesia de Irajá não tinha nenhuma desavença com Silvestre, tampouco o conhecia. Alguns dias se passaram até que Silvestre fosse ao distrito policial prestar suas declarações. Lá disse se chamar Joaquim Peixoto Guimarães, ter dezessete anos – idade menor do que a que declarou quando foi testemunha da doméstica Eulália –, ser solteiro e trabalhador. Residente na rua Antônio de Abreu número um, havia nascido naquela freguesia e sabia ler e escrever. Nas narrativas de ambos, o conflito teria se iniciado por causa de um troco de cem réis, que Silvestre alegava ter de receber porque tomou café no botequim no dia anterior, e em relação ao qual Edmundo, após conferir a féria com o dono do estabelecimento, afirmou não existir no caixa. À medida que o inquérito seguia os trâmites burocráticos, Silvestre apresentouse como pedreiro no seu auto de qualificação, Edmundo se mudou para local desconhecido e por isso não foi comunicado sobre as sessões judiciais e Teodoro, junto à outra testemunha, Alacrino Ferreira da Silva, em uma das audiências criminais,

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mudaram as versões apresentadas na delegacia a favor de Silvestre, afirmando que conheciam-no, sendo o mesmo “morigerado” e “trabalhador”. Mesmo assim, o juiz decidiu procedente a denúncia e condenou Joaquim Peixoto Guimarães a três meses de prisão celular, ainda que este não tenha recebido o mandado de intimação, pois não morava mais no endereço apresentado à época da confusão. Quase dois anos tinham se passado. Uma briga entre um brasileiro e um imigrante francês, entrecortada por uma alusão à noção de raça, segundo as declarações do carroceiro Teodoro. Estas são algumas pistas presentes neste caso. Por ter sido endereçada a um imigrante europeu, a ameaça de Silvestre – que nos inquéritos pesquisados nunca foi classificado sob uma categoria de cor – sugere a possibilidade de pelo menos duas interpretações: ele poderia estar fazendo referência a Edmundo enquanto alguém cuja nacionalidade era diferente da sua, através da idéia de “raça”, o que era comum àquela época, ou ainda enquanto um indivíduo que não apenas era de outro país, mas que fosse identificado como de uma cor que não a sua. A pergunta que tenho em mente, deste modo, vai no sentido de imaginar por que o pedreiro brasileiro, que já havia trabalhado em padaria e que declarou ser pedreiro na época do confronto com o caixeiro francês Edmundo, formulou, conforme uma das testemunhas, a sua insatisfação da maneira como o fez. Teria sido apenas a discussão em torno dos cem réis – que segundo o caixeiro não poderia ser entregue ao brasileiro simplesmente porque este havia feito o pagamento da quantia exata pela refeição que fez no botequim no dia anterior – o que levou Silvério a agredi-lo? Por hora, deixo esta questão em aberto, e tentarei reinseri-la na discussão de um outro caso ocorrido já nos anos de 1910 envolvendo brasileiros e imigrantes. Ainda em 1903, só que alguns meses após o caso acima, em dezembro, Paulino Guedes e Manoel de Souza11, portugueses com 37 e 35 anos respectivamente, queixaram-se de terem sofrido agressões de três indivíduos residentes naquela “circunscrição”. De acordo com Paulino, que morava na rua Quinze de Novembro 4, em Madureira, por volta das onze horas da manhã, ao entrar em um botequim de propriedade de Manoel José Ribeiro, na rua Portela, foi agredido por indivíduos cujos nomes só sabia que eram Silvério, José e Otávio, os quais teriam fugido em seguida ao “crime” para local ignorado. Ainda segundo Paulino,

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ARQUIVO NACIONAL, Série Processos Criminais, Notação 7G403.

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[...] ele ofendido não deu motivo algum para ser ofendido pelos seus agressores pois que ele [...] é operário e de comportamento exemplar.

Conforme Manoel de Souza, quando chegou ao botequim, encontrou seu “compatriota” Paulino e [...] nessa ocasião este tem [teve] com três indivíduos que ali se achavam uma pequena alteração de palavras, resultando desse fato ser agredido ele declarante e o referido Paulino Guedes [...].

No dia seguinte, Manoel José Ribeiro, o dono do botequim, foi à delegacia prestar depoimento. Também português, com vinte e quatro anos, morava no mesmo endereço em que mantinha o seu negócio, rua Portela 29, e estava em seu estabelecimento quando viu chegarem Paulino e Manoel: [...] ambos portugueses e em termos pouco delicados exigiram [...] cem réis de água ardente; que havendo troca de palavras entre o declarante e os referidos indivíduos e como se achavam ali perto Silvério, José e Octavio estes interviram havendo luta corporal entre eles resultando desse conflito ficarem feridos Paulino Guedes e Manuel de Souza; que viu os três indivíduos [...] armados de pau darem cassetadas com a mesma arma nos dois ofendidos [...]. Após esta versão, José Luiz Gomes, um dos acusados, declarou que tinha ido à casa (o botequim) de Manoel Ribeiro, e viu os portugueses exigirem deste, fiado, sessenta réis de cachaça. O comerciante então havia se recusado, gerando-se deste fato uma pequena alteração entre os ofendidos e os demais fregueses que ali se achavam. José, no entanto, não saberia dizer os nomes dos que se encontravam no botequim tampouco conheceria os dos queixosos. Brasileiro, com quarenta anos, apresentou-se como operário e, além disso, residia na mesma rua em que o português Paulino, Quinze de Novembro, mas em outro número, 24. Silvério e Octávio não compareceram àquele distrito policial, e foram identificados por um inspetor secional, Alfredo da Silva. Assim, teve-se o conhecimento de que: [...] Silvério chama-se Joaquim Peixoto Guimarães e Octavio chama-se Octavio Chrisante por ser filho de Chrisante Maria da Silva e José é o mesmo José Luiz Gomes qualificado [...].

Após a expedição de alguns mandados de intimação e da solicitação de um oficial de justiça – que procurou os envolvidos nos endereços indicados para que comparecessem às sessões judiciais –, em agosto de 1904, três guardas da polícia são intimados como testemunhas para uma audiência. Suas declarações foram no sentido de

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afirmar que Silvério, Otávio e José seriam “desordeiros e vagabundos conhecidos”. Segundo Conrado Corrêa Barbosa, um dos guardas: Que sabe por ouvir dizer que no dia sete de dezembro findo, ao meiodia mais ou menos, os acusados Joaquim Peixoto Guimarães, Octavio Chrisante e José Luiz Gomes agrediram e ofenderam fisicamente a Paulino Guedes e Manoel de Souza. Que ignora qual o motivo da agressão dos ofendidos. Que conhece os acusados e sabe e pode afirmar que os mesmos são desordeiros e vagabundos conhecidos [...] (Grifo nosso)

Em setembro de 1905, depois de uma outra audiência realizada à revelia dos réus e das testemunhas em abril, Silvério, Otávio e José são condenados a sete meses e quinze dias de prisão celular, grau médio do artigo 303 do Código Penal. Segundo o juiz, a pena foi estipulada em conformidade com as provas dos autos e por não haver circunstância agravante ou atenuante. Algumas leituras vislumbrando a formação de redes e relações sociais em Madureira no início do século podem ser produzidas a partir deste caso. Um conflito entre brasileiros e portugueses, que partilhavam os mesmos espaços de lazer, o botequim do também português Manoel Ribeiro, e de moradia, pois o agredido Paulino morava na mesma rua – Quinze de Novembro – em que José, um dos acusados, parece ter sido o mote que conduziu à delegacia alguns dos envolvidos. Se pensarmos no caso anterior entre Silvestre ou Silvério e o caixeiro francês Edmundo, confrontos entre brasileiros e imigrantes não seriam uma novidade no cotidiano deste subúrbio. Contudo, atentando para os depoimentos, uma desavença que a princípio reuniria sujeitos de nacionalidades distintas, apresenta-se mais complexa quando se leva em consideração, como sugere as declarações em seu conjunto, que a contenda inicial deu-se entre os portugueses: o dono do botequim, o operário Paulino, e seu amigo e compatriota Manoel. Na narrativa de Paulino a agressão que sofreu foi interpretada como sendo sem “motivo algum”, visto que se apresentou como “operário e de comportamento exemplar”, o que explicita um movimento de aproximação de um padrão socialmente aceitável, e por outro lado, a manifestação da idéia de que ofensas físicas fariam parte do universo do anti-trabalho e do mau comportamento. Na narrativa do proprietário do botequim, no entanto, teria sido a postura “em termos poucos delicados” dos dois portugueses, exigindo água ardente, o motivo da “troca de palavras” que precedeu as agressões, o que acabou contestando a articulação ser operário e ter um comportamento

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exemplar produzida pela versão de Paulino, assim como a possibilidade de uma relação mais estreita entre ambos fundada apenas em um critério como o da nacionalidade comum. Além destas considerações, as intervenções de Joaquim Peixoto Guimarães ou Silvério, aquele que serviu de testemunha no caso da doméstica Eulália (e que neste contexto foi identificado como um “desordeiro”), de Otávio, e de José (o único que foi à delegacia prestar depoimento) produziram, através deste inquérito, a imagem de que os três estariam juntos ou mesmo seriam amigos, o que com o acesso aos outros processos no decorrer dos anos é posto em questão pelo menos no que se refere aos dois primeiros. Destaco, contudo, que ao se envolverem na discussão entre os portugueses – inseridos socialmente, em Madureira, de modo diferenciado como venho procurando demonstrar –, Silvério, Otávio e José, provavelmente também distintos entre si, poderiam estar reconstruindo, por meio de outros significados e concepções no contexto histórico do pós-emancipação, uma rede de relações forjada durante o sistema escravista entre pequenos proprietários de estabelecimentos comerciais e sujeitos pobres livres, cuja presença acentuada de “ajuntamentos” e “desordeiros” seria uma constante, conforme discutido em Gomes (1996) no capítulo anterior. Quem seriam os desordeiros do século XX e em quais contextos esta classificação social poderia ser enunciada e por quem? Como apontei no desenvolvimento do primeiro caso, que envolvia a doméstica Eulália e o proprietário de secos e molhados Octaviano, do ponto de vista do convívio coletivo, agressões físicas e verbais eram concebidas como atos inadequados, e no exemplo acima apresentado, algumas expressões do dono do botequim – “em termos pouco delicados exigiram do declarante cem réis de água ardente” – ratificam esta percepção. Logo, não me parece coerente recorrer a uma “herança” violenta da escravidão para justificar insultos, brigas e confrontos corporais, como se homens e mulheres agissem segundo um princípio irracional. Se a redução do escravo à “coisa” se apresenta como um equívoco metodológico e teórico, também o é a de homens pobres livres à “não-consciência”. A pergunta que me coloco então é a de tentar imaginar se o dono do botequim ou mesmo os fregueses que ali estavam chamariam Silvério, Octávio e José de “desordeiros”, ou se assim procedessem, o mesmo não valeria para os portugueses que insistiam em comprar

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água ardente fiada, sem o consentimento de Manoel, criando um certo alvoroço no estabelecimento. Uma das considerações que pode ser retirada da discussão de Gomes é que do ponto de vista dos taberneiros e vendeiros a presença de quilombolas, cativos, forros e homens pobres livres, bebendo, fazendo batuques e comerciando não significaria necessariamente desordem, pois era por meio destas redes e relações que seus estabelecimentos funcionavam. Do ponto de vista das autoridades coloniais e imperiais, entretanto, era tentando controlar estas práticas e vínculos entre diferentes setores da sociedade escravista que se instituiu categorias como as de “ajuntamentos” e “desordeiros”. O que representava ameaça particularmente para um segmento daquele universo social tornou-se, então, um problema público sistematizado em leis e decretos. Reis (1989) também assinala nesta direção ao estudar a posição das autoridades públicas, particularmente de um juiz de paz da freguesia de Nossa Senhora de Brotas, na Bahia, que insistia em considerar ilegal as manifestações religiosas africanas, na primeira metade do século XIX. O autor narra a “indignada surpresa” que aquela autoridade demonstrou ao encontrar em um candomblé que fora então invadido, crioulos e africanos, mas também mestiços e brancos. O ajuntamento de “gente de várias cores” em festa significava desordem social, da mesma que o sincretismo religioso operava uma subversão de símbolos. Para o juiz, a ordem estava na segregação, na separação vigiada. Separação entre pessoas de cores diferentes, mas também entre as que, iguais na cor, houvessem nascido em lados diferentes do Atlântico. Daí a sua indignada surpresa em encontrar crioulos e africanos em comunhão ritual no candomblé invadido. (REIS, 1989, p.44)

A partir destas colocações me parece importante chamar a atenção para o fato de que é praticamente impossível tentar produzir um entendimento sobre a chamada desordem social sem relacioná-la às tentativas espraiadas de controle e disciplinarização sobre a população negra da cidade no século XIX, e que, ao se pensar no capítulo que abre esta dissertação, continuavam vigorando nos primeiros anos do século XX. Correria o risco de ser incoerente com os argumentos que apresentei, no entanto, se fizesse uso, agora para entender o que se passava neste momento, de uma simples reprodução de preconceitos e estigmas. Como tenho assinalado, o contexto histórico é outro e acredito que isto não deva ser menosprezado.

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Desta perspectiva, concordo com Cunha (p.47) ao indicar que o país da virada do século, interpretado dentro de uma visão liberal e republicana de universalização dos direitos, reinventou, através da cientifização de práticas e rotinas burocráticas, bem como das políticas públicas, o domínio sobre as populações urbanas marginalizadas. Deste modo, a “lógica do confinamento” que perpassava a relação do Estado com os indivíduos ao limitar e demarcar comportamentos, relações e valores como impróprios e perturbadores, geria e regulava a construção da “desordem” nos espaços públicos enquanto um problema. Logo, não seria à toa que a identificação de Silvério, Otávio e José como “desordeiros” e “vagabundos” tenha sido enunciada por um guarda policial da delegacia. Uma das questões que busquei apresentar no primeiro capítulo referia-se a salientar que através das queixas e reclamações de diversos moradores do Rio de Janeiro, incluindo as de proprietários de vendas, botequins e casas de negócios, o Estado republicano – representado por delegados e guardas policiais – fora chamado a vigiar e controlar o que textualmente era citado nos jornais como “indivíduos suspeitos”, “desocupados” e “vadios”, estivessem estes estabelecidos nas áreas centrais, nos bairros mais privilegiados ou nos subúrbios. A força social deste imaginário estava propagada pelo território do Rio de Janeiro do início do século. Neste sentido, os rótulos, amplamente utilizados e banalizados, para dar conta de uma população de nãoproprietários – trabalhadores formalmente empregados, subempregados ou de desempregados – funcionaram como identidades sociais, o que não significava que estas fossem absolutas, por um lado, ou não passíveis a negociações, como se encerrassem os sujeitos em uma camisa de força, de outro. Silvério ou Silvestre, por exemplo, já havia trabalhado em uma padaria, foi identificado como “filho de Jacinto de tal” e atuava como pedreiro; José se declarou operário; Otávio foi reconhecido pela sua filiação materna, “filho de Chrisante Maria da Silva”. Isto, no entanto, não atenuou as intervenções do Estado, através de seus agentes e práticas – que iam muito além de técnicas e métodos científicos, como sugere Cunha –, na confecção da vida cotidiana. Ainda neste sentido, chamo a atenção que a estes personagens, neste momento, não se atribuiu nenhuma classificação racial, pois foram as suas inserções familiares e de trabalho que sustentaram os enunciados dos moradores e guardas policiais, situação que será modificada, por exemplo, à medida que Otávio estabelecia algumas trajetórias no subúrbio de Madureira.

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Com base nestas considerações, gostaria de chamar a atenção para uma outra questão. Ao intervirem no desentendimento entre os portugueses, os três brasileiros participaram de um conflito no qual poderiam existir desavenças de nacionalidade. Entretanto, sugiro que outras razões embasariam as agressões. Àquela época, por volta de 1903, Silvério ou Silvestre, já havia dito ao francês Edmundo que queria “acabar-lhe com a raça”, e neste sentido, acho importante relembrar que ele fora anteriormente um “trabalhador em padaria” – note-se que ele não se apresentou como padeiro –, o que pode significar que em algum momento exercera uma ocupação similar à do caixeiro. José, por outro lado, assim como um dos portugueses ofendidos fisicamente, disse na delegacia ser operário. Por outro lado, com relação a Manoel, o português proprietário do botequim, nenhum tipo de agressão foi mencionado. Imagino, assim, que mais do que uma diferença de nacionalidade fosse interessante enfatizar que aqueles homens não eram apenas brasileiros e portugueses, eles também tinham chances de ocupar funções comuns no mercado de trabalho. O desenrolar deste caso seguia seus percursos burocráticos – como apontado anteriormente a sentença foi definida em 1905 –, e novos encontros se deram entre Silvério e Otávio em Madureira. Alianças entre alguns dos personagens desta história emergiram e provavelmente se mantiveram no decorrer de um certo espaço de tempo. Em contrapartida, divergências e conflitos persistiram naquela vida social. Onze de maio de 1904 é a data em que nos documentos da polícia local aparece reunido José de Almeida12 ou Juca Bombacha ao lado dos já apresentados Joaquim Peixoto Guimarães, chamado de Silvério ou Silvestre, e Ernani Rosa, conhecido como filho de Chrisante Maria ou ainda moleque Otavio. Juca Bombacha era brasileiro, natural do Distrito Federal e trabalhava como cigarreiro. Analfabeto, solteiro, à época com 20 anos, residente na rua Praça Quinze 6, viu-se envolvido em um processo crime que o apontava ao lado de Otávio e Silvério, como um dos autores de uma agressão sofrida por Antonio Simplicio, também nacional, pardo, 30 anos, lavrador, natural de São Paulo, residente em Camboatá13. De acordo com Simplicio: [...] às oito horas da noite [...] foi à taberna de Candido Daval, na rua Firmino Fragoso, ocasião em que fazia compras, tendo sido agredido por três indivíduos que conhece pelos nomes de Juca Bombacha, Otávio de tal e um desordeiro por alcunha Silvério; nessa mesma ocasião a mulher do taberneiro Daval e o caixeiro da mesma taberna empurraram 12 13

Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 7G385. A travessa Camboatá, atualmente, faz parte do subúrbio Barros Filho.

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o declarante para a rua; além da mulher de Daval e o caixeiro, estavam ali outras pessoas que testemunharam o fato; afirmou que os ferimentos que apresentava lhe foram feitos pelos indivíduos já citados, que se achavam armados de paus.

Novamente em uma taberna na rua Firmino Fragoso, Silvério e Otávio se envolvem em uma briga. O que escapa, no entanto, da fala de Simplício, é a caracterização do primeiro como um “desordeiro”. Silvério, a essa época, 1904, respondia a pelo menos dois inquéritos policiais, um por ter agredido com um canivete Edmundo, o caixeiro francês, e outro por ter batido nos portugueses Paulino e Manoel. Neste último caso, os dois agredidos além de o acusarem, fizeram o mesmo em relação a Otávio. A esposa do dono da taberna, Victoriana Martinez Daval, também deixou entrever que Silvério já era conhecido naquele subúrbio. [...] se achando nos fundos da casa de negócio onde reside com seu marido, ouviu no estabelecimento uma alteração de palavras entre o caixeiro da mesma casa Antonio Manoel Pinheiro e Antonio Simplicio; que vendo este entrar para o lado de dentro do balcão, ela depoente e o referido caixeiro fizeram retirar-se para fora da casa de negócio o ofendido Antonio; que imediatamente mandou fechar as portas da casa de negócio, sabendo que ali se achava Joaquim Peixoto Guimarães, vulgo Silvério, que esbordoou o mesmo Simplicio.

Silvério não prestou declarações na 23o Distrito Policial, assim como no decorrer do processo os oficiais de justiça alegaram não ter informações sobre o seu endereço residencial. No entanto, em alguns depoimentos recolhidos, afirmou-se que ele era guarda policial, o que venho a ser confirmado quando da expedição de um dos mandados de intimação. Segundo o oficial de justiça responsável por comunicar os acusados e as testemunhas: Certifico que [...] dirigi-me ao lugar Madureira e sendo aí intimei os réus constantes [...], deixando de intimar o réu Joaquim Peixoto Guimarães, por constar-me ser este praça da Brigada Policial, e as testemunhas por terem se mudado para lugar não sabido [...].

A qualificação de “desordeiro”, da qual o agredido Antonio Simplicio fez uso para se referir a Silvério, surgiu, novamente, nos depoimentos de dois policiais que foram convocados posteriormente, em 1906, em função do não comparecimento às sessões judiciais, por várias vezes, das testemunhas e acusados. Aqueles eram Belmiro

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Julio Viana, brasileiro, casado, empregado público, 38 anos, morador na rua João Vicente 21, paralela à linha da Central do Brasil, em Madureira: [...] estava de dia na delegacia quando teve conhecimento de que os acusados promoviam conflito na venda de Candido Daval. Dirigindo-se para o local, encontrou o ofendido ferido, tendo os acusados se evadido. Ignora a causa do conflito. Somente conhece o acusado Joaquim Peixoto Guimarães e pode afirmar ser o mesmo desordeiro e vagabundo.

E, o já apresentado, Conrado Corrêa Barbosa, brasileiro, casado, empregado público, 48 anos, morador no lugar “Colégio”, freguesia de Irajá, [...] disse saber do fato de que trata a denúncia por ter assistido na delegacia ao depoimento de testemunhas, que ignora a causa do conflito e somente conhece o acusado Joaquim Peixoto e sabe ser um tanto desordeiro.

Tomando por base estas narrativas, a imagem de “desordeiro” parece se acoplar de modo inconteste a Silvério. Como salientou Cunha em relação à discussão que se deu no país, nos primeiros anos do século XX, em torno da utilização de técnicas visando à descrição de propriedades físico-anatômicas aliada à identificação civil como procedimento de distinguir os “cidadãos” dos “criminosos”, a produção de arquivos criminais revelava a possibilidade de “a memória de uma experiência, vista como constrangedora, manter-se preservada em um determinado lugar para um futuro uso”. (op. cit., p.22) A partir destas considerações da autora, é possível apontar, como quando iniciei este capítulo, que as identidades sociais formuladas através destas práticas e rotinas burocráticas que inventaram o texto processo-crime são parte fundamental da vida social analisada sob a ótica deste tipo de fonte documental. À medida que homens e mulheres se viam às voltas com a instituição policial, algumas marcas lhes eram imputadas no contexto desta relação. Se, como argumentei anteriormente, a identificação de Silvério como um “desordeiro” na contenda com os portugueses passou pelo conhecimento que os guardas do distrito policial afirmaram ter sobre ele, quase um ano após este evento, através das declarações do lavrador agredido Simplício e da espanhola Victoriana, esta classificação se difundiu em Madureira. Afinal, Silvério, por um motivo ou outro, havia se tornado alguém cuja inscrição social naquele subúrbio passava pelos arquivos da delegacia. Entretanto, acredito ser importante ressaltar que Silvério poderia “ser” mais que isso. Outras inscrições sociais surgem dos depoimentos, com a referência de uma das

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testemunhas no sentido de que ele trabalhava como guarda policial. Teria sido por isso que apesar de todos os envolvidos demonstrarem conhecê-lo, seu depoimento não fora recolhido, assim como seu endereço revelado neste inquérito? Afora a ligação que poderia ter com a própria polícia enquanto um membro da instituição, o que tensionava os limites do que se configurava na legislação e na prática social, como “ordem” e “desordem”, a partir da versão apresentada pelo caixeiro da taberna, reaparece uma rede formada entre pequenos comerciantes e homens pobres livres. Manoel Pinheiro, brasileiro, solteiro, 21 anos, residente no “lugar” denominado Rio das Pedras narrou que [...] ao anoitecer, achando-se na venda de Candido Daval onde é empregado, aí chegou Antonio Simplicio que pediu quarenta réis de cachaça, mais tarde pediu cem réis do mesmo líquido; que ele, declarante, não quis vender a cachaça por achar-se Simplicio um tanto embriagado; nesta ocasião, ele, testemunha, pediu socorro a diversas pessoas que se achavam na rua; sabe que estas pessoas chamam-se Ernani Rosas, conhecido por Otavio, Joaquim Peixoto Guimarães, conhecido por Silvério e José Bombacha, todos residentes nas imediações da rua Portela; ele, depoente, com sua patroa, conseguiram apaziguar o barulho promovido por Simplício empurrando-o para a rua, ignorando o que se passou depois.

O que me pareceu interessante na fala do caixeiro Manoel foi o fato dele recorrer a Otavio, José Bombacha e Silvério para ajudá-lo. Qual o papel que estes sujeitos eram chamados a cumprir, e por que o realizavam? Assim como no caso ocorrido no botequim cujo proprietário português se desentendeu com dois conterrâneos, homens pobres e livres teriam se envolvido em uma desavença que, ao que parece, não os dizia respeito diretamente. Um desentendimento entre um lavrador e um caixeiro, ambos brasileiros, deslizou para um confronto entre outros nacionais. Neste caminho, sugiro que a configuração político-administrativa da desordem social – através dos códigos de posturas municipais, dos decretos legislativos e da burocratização de práticas e rotinas no interior dos órgãos policiais e judiciais – dialogava de modo incessante com as diferentes dimensões da ordem cotidiana: se Silvério fora chamado a interferir junto a Simplício porque era um guarda policial, as agressões realizadas partiram justamente de um representante do Estado. Por outro lado, se Otavio e Bombacha também foram requisitados, demonstra-se que naquele contexto social a eles conferia-se alguma espécie de poder. Acrescento, também, que neste universo a presença de homens pobres e livres não os fazia obrigatoriamente iguais. Se disputas entre brasileiros e imigrantes se faziam presentes, entre os chamados nacionais distinções perpassavam o convívio coletivo.

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Otavio morava com sua mãe, Chrisanta Maria da Conceição na rua Firmino Fragoso sem número, onde ocorreu o “barulho”. Ela era brasileira, viúva e tinha 40 anos; o filho se ocupava como carroceiro, era analfabeto, solteiro, e disse ter 18 anos. Segundo as suas declarações, a agressão de Silvério se dera por causa de “rixas antigas” com Simplício. No dia do corrente achava-se na venda de Candido Daval; que chegou na referida venda Antonio Simplicio dizendo que foi ali matar o bicho para o que pediu dois vinténs de cachaça, pedindo logo em seguida mais cem réis do mesmo líquido; nessa ocasião, também ali estava Joaquim Peixoto Guimarães, vulgo Silvério, que devido a rixas antigas, este principiou a provocar Simplicio, que nesta ocasião a mulher do dono da taverna assim como o caixeiro da mesma venda fez Simplicio sair para a rua e nesta ocasião Joaquim Peixoto Guimarães deu uma cacetada em Simplicio produzindo-lhe um ferimento na cabeça.

Já Juca Bombacha afirmou em seu auto de declarações, que Antonio Simplicio não fora agredido na rua, mas no interior da taberna. [...] ao anoitecer [...] achava-se em casa de Chrisante, mãe de Ernani Rosas; [...] ouvindo grande barulho na venda de Candido Daval, dirigiuse à mesma venda e aí viu que Joaquim Peixoto de Guimarães, vulgo Silvério, espancava Antonio Simplicio; que o fato se dera dentro da venda de Candido Daval, sendo que quando o depoente chegou à referida taberna a mulher de Candido Daval e o caixeiro da mesma venda Antonio Manoel Pinheiro pediram ao depoente para ajudar a botar fora da porta o ofendido Antonio Simplicio que se achava caído e ferido junto ao balcão da mesma venda; que não sabe se Ernani Rosas, vulgo Octavio, também ajudou a esbordoar Simplicio, visto que [...] ao chegar ao lugar do barulho encontrou a mãe de Ernani conduzindo o filho para casa.

Ao chamar a atenção para e existência de “rixas antigas” entre Silvério e Simplício, Otávio apontara um elemento que viria a ser uma constante nos seus próximos encontros com Joaquim Peixoto Guimarães em Madureira. Por outro lado, quando utilizei a noção de distinção para caracterizar os confrontos entre brasileiros, não o fiz à toa. Silvério havia se tornado um praça da Brigada Policial, e para quem já havia trabalhado em padaria e como pedreiro, provavelmente este fato significaria ascensão social ou pelo menos implicaria um status diferenciado naquele subúrbio. E, ao que parece, ele apropriava-se desta condição também no sentido de conformar ou quem sabe rearranjar uma identidade, que era anterior à sua nova ocupação. Era chamado ou se mostrava disposto a intervir nas dificuldades que os taberneiros e proprietários de botequim tinham com os fregueses, mas também se manifestava como

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um sujeito que detinha algum poder no bairro. Parece-me importante enfatizar, no entanto, que isto também era objeto de disputas pessoais, e um caminho para a afirmação de outras identidades. Decorridos três anos da acusação do lavrador Simplício – julgada improcedente em 1906 –, em fevereiro de 1909, inicia-se mais um inquérito contra Silvério. Neste, ele é acusado de agredir e ferir Otávio. Era um sábado, e desde o início da manhã, Joaquim Peixoto Guimarães e Ernani Rosa andavam “em disputa”. Ao se encontrarem, à tarde, na rua Portela, em frente a uma venda, ambos agrediram-se e, ainda conforme uma das testemunhas, João Salgado Júnior, brasileiro, empregado no comércio e morador na rua Quinze de Novembro 30, [...] estando Peixoto Guimarães armado de um pau e Ernani armado de uma faca; o primeiro arremeteu contra o segundo dando-lhe umas cacetadas e atirando-o ao chão e com essa mesma arma o feriu na perna esquerda.

Irineu Gomes da Silva – guarda policial daquele dia no distrito –, brasileiro com vinte e dois anos, solteiro e analfabeto, narrou assim o que teria ocorrido: [...] estando no serviço de prontidão [...] e chegando ali a comunicação de um conflito na Estrada do Portela [...] saiu em companhia de um outro praça e encontrou na rua Portela um indivíduo moço de cor preta gemendo muito e dizendo-se espancado e ferido na perna esquerda [...] por um outro de nome Peixoto Guimarães que fora soldado de polícia; [...] que com efeito em pouco encontrou o indivíduo cujos sinais lhe haviam sido dados e o chamou a falar.

Quais seriam os “sinais” que caracterizariam a individualidade de Silvério? Otavio, que pela primeira vez fora identificado como um “moço de cor preta”, seria, a partir deste momento, alguém cuja referência a uma classificação racial se tornara constante, e como explicitei no início deste capítulo, racializá-lo – o que não lhe estava restrito, como será visto na próxima seção sobre os as rivalidades entre os grupos carnavalescos de Madureira – se transformou em um mecanismo cada vez mais comum em sua trajetória de conflitos, tema da parte final deste capítulo. Neste sentido, à medida que as “histórias criminais” de Otávio desdobravam-se, referir-se a ele como “de cor preta” cristalizava-se como um atributo indispensável nas narrativas dos moradores. Ao ser levado à delegacia, Silvério se apresentou novamente como pedreiro, com vinte e quatro anos, solteiro, e residente na rua Antonio de Abreu, onde já havia morado na época da briga como o francês Edmundo. Defendeu-se da acusação dizendo que fora provocado por Otávio, quando se encontrava, fazia pouco tempo, em uma

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venda na rua Portela. Do lado de fora do estabelecimento, Otávio teria o agredido com uma faca e ele, em resposta, o bateu com um pau. Neste momento, teria tropeçado em uma vala e caído, possibilitando, então, que fosse desarmado pelo próprio Silvério, que negou ter o ferido à faca. Após os depoimentos, a faca encontrada com Silvério, e que conforme o guarda que a apreendeu estava ainda suja de sangue, foi encaminhada para exame. Na filial do Gabinete de Identificação e de Estatística daquela mesma delegacia foi aberta uma ficha de identificação de Joaquim Peixoto Guimarães, na qual foram anotadas as seguintes informações, bem como as marcas dos polegares do acusado: “Joaquim Peixoto Guimarães filho de Jacinto Peixoto Guimarães e de Maria Francisca da Glória de 24 anos, natural de Irajá, Capital Federal, instrução rudimentar, profissão pedreiro, estado civil solteiro”. Diferentemente de Otávio, que no exame de corpo de delito teve novamente a sua cor revelada, a Silvério não se confere este tipo de adscrição. Alguns dias depois, o diretor do Gabinete de Identificação e Estatística encaminhou um ofício ao delegado do 23o distrito policial, comunicando que nada havia naquele órgão sobre Joaquim Peixoto Guimarães, e uma nova testemunha foi convocada. Luiz Antônio da Costa, português com vinte e quatro anos, solteiro, sabendo ler e escrever, que morava na rua Quinze de Novembro 16, disse que na tarde do dia 22 de fevereiro, passava pela rua Portela quando se deparou com um praça da polícia subjugando um indivíduo, que depois soube chama-se Joaquim Peixoto Guimarães, [...] o soldado tinha já em seu poder uma faca e disse havê-la tomado daquele indivíduo; que contou mais a ele depoente que o referido Guimarães dera uma facada em outro indivíduo de cor preta ao qual não viu.

Em junho de 1911 a denúncia contra Silvério havia sido definida como improcedente. Segundo o juiz, as testemunhas ouvidas – o guarda Irineu e o português Luiz Antônio – não esclareceram convenientemente o delito argumentado na denúncia, pois segundo ele, a primeira somente fez repetir o que lhe contaram Otavio e Silvério, e a segunda o que ouviu do praça policial. Contudo, antes desta decisão, um novo confronto posicionara Ernani Rosa e Joaquim Peixoto Guimarães em campos opostos em Madureira.

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3.3 SOLIDARIEDADES E DIFERENÇAS: AS RIVALIDADES ENTRE OS GRUPOS CARNAVALESCOS EM MADUREIRA Nos primeiros anos do século XX, vários grupos localizados nas chamadas áreas urbanas da cidade e nos subúrbios, solicitavam licença14 ao chefe de polícia do Distrito Federal para sair às ruas no Carnaval, bem como para funcionar durante o ano. Em Madureira, havia os Caprichosos de Madureira, o Sereno de Prata, as Cornetas de Madureira, os Democráticos de Madureira, a Sociedade Dançante Carnavalesca União da Floresta e o Grêmio Dançante e Carnavalesco Paz de Madureira, entre outros. Estas organizações de lazer podem ser vistas como uma forma dos moradores daquele subúrbio estabelecerem relações mais estreitas, que não necessariamente se estruturavam através do convívio no trabalho ou da vizinhança simplesmente física. Também através delas abre-se uma fresta – e digo isso porque as informações sobre a composição social dos grupos são escassas – para se entrever sobre que bases se estabeleciam solidariedades e confrontos entre os participantes e membros de um mesmo grupo carnavalesco e deste com outros. De acordo com um jornal local, apesar de suburbanos, aqueles que residiam em Madureira e procuravam partilhar a mesma forma de diversão, neste caso aquelas relacionadas às sociedades carnavalescas, não eram vistos como iguais. Algumas verdades É com imenso pesar que vamos tratar do melindroso assunto sem contudo fazermos referências diretas, esperançosos que os que reúnem em si os meios de obviar o mal a que nos propomos apontar isso o farão em benefício próprio ao menos. [...] Ultimamente está acontecendo isso nas sociedades localizadas nos subúrbios onde os indivíduos são admitidos somente com a recomendação da respectiva importância à mensalidade que pagam sem o devido escrúpulo, e onde levam muitas vezes, mulheres de vida alegre [...]. É sabido e notório, que onde se reúnem indivíduos diferentes e desconhecidos, a liberdade deve ser limitada a bem da ordem, e nunca ampla porque ela abusarão. (JORNAL SUBURBANO, Madureira, 1910, p.1)

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ARQUIVO NACIONAL, Série Justiça, IJ6 563 (1915) cx 528; IJ6 564 (1915), cx 528; IJ6 595 (1916), cx 553; IJ6 596 (1916), cx 554; IJ6 597 (1916) cx 554; IJ6 648 (1918) cx 598; IJ6 649 (1918) cx 598; IJ6 655 (1918) cx 602; IJ6 693 (1919).

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Era sábado, 16 de abril de 1911, quando os grupos carnavalescos Sereno de Prata, Caprichosos de Madureira15 e Cornetas de Madureira decidiram sair, à noite, pelas ruas da 6a Circunscrição Suburbana para realizar uma “passeiata”. Ao se encontrarem no largo do Otaviano – cujo nome faz referência ao dono daquela venda que proibiu a doméstica Eulália de fazer compras –, ocorreu uma briga entre os membros dos grupos, da qual saíram feridos dois integrantes do Sereno de Prata: Juca Bombacha, que não trabalhava mais como cigarreiro e sim como cozinheiro do navio Pestroe, cuja residência a esta época não era em Madureira, mas no centro da cidade, na rua Marquês de Pombal 61, e Leonel Rosa, brasileiro, criado doméstico, morador na estrada Marechal Rangel número ignorado, ambos identificados como pardos no exame de corpo de delito, com 27 anos e analfabetos. Mas também Beraldo Afonso da Costa, membro dos Caprichosos de Madureira, brasileiro, sabendo ler e escrever, também pardo, operário, 30 anos, cujo endereço era travessa Julio Fragoso 7A. Sendo o primeiro a prestar declarações junto à polícia, Beraldo disse que: [...] autorizado pela Polícia deste Distrito, esse grupo [Caprichosos de Madureira] saiu em passeata, com destino ao Rio das Pedras a fim de encontrar-se com o grupo “Corneta de Madureira”, e incorporados regressaram para a estação de Madureira, que ao chegarem próximo à respectiva sede que é nas proximidades do largo do Otaviano, surgiu o Grupo Sereno de Prata, do qual fazem parte José de Almeida, vulgo Juca Bombacha, Leonel Rosa, conhecido por Otavio, e José Rosa da Silva, digo Leonel Rosa, Ernani Rosa, conhecido por Otavio, e sem uma razão justa foi o Grupo Caprichosos de Madureira agredido por esses indivíduos que se achavam armados de navalha, revólver e cacete, resultando sair o depoente ferido, sendo o autor do seu ferimento Juca Bombacha, e originando o conflito para outros também feridos, sabendo depois que o dito Bombacha também recebeu um ferimento, assim como Leonel Rosa; que esse conflito foi originado pelos principais autores: Juca Bombacha, Leonel Rosa, Ernani Rosa e um preto que o depoente não conhece, e apenas de vista.

José Rosa da Silva, membro do Sereno de Prata, brasileiro, 21 anos, solteiro, trabalhador, residente na estrada de Inharajá, analfabeto, alegou que: [...] sabe que o mesmo grupo tem rixa antiga com o Grupo Caprichosos de Madureira, e depois de uma passeiata, este grupo, ao se aproximar da sua sede, o grupo Sereno de Prata que também regressava à sua sede, no largo do Octaviano, encontraram-se na rua Marechal Rangel, e aí surgiu discussões e estabeleceu-se o conflito, resultando sair feridos: Beraldo Afonso da Costa, Leonel Rosa, e José de Almeida, vulgo Juca Bombacha; que o depoente soube que o autor do ferimento de Juca 15

ARQUIVO NACIONAL, Série Processos Criminais, Notação 7G1630.

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Bombacha foi Antonio Beraldo do Nascimento, praça da cavalaria da Força Policial, sendo o mesmo policial o autor do ferimento de Leonel Rosa, ignorando, porém, quem feriu a Beraldo Affonso da Costa. Ernani não disse.

Na sucessão dos depoimentos, uma das testemunhas que compareceu à delegacia para prestar declarações sobre o caso foi Joaquim Peixoto Guimarães, o já conhecido Silvério. Sócio e integrante da diretoria do “clube” Caprichosos de Madureira, apresentou-se também como empregado da estrada de ferro Central do Brasil, morador da estrada do Areal 40, com vinte e cinco anos e casado. Segundo ele, não havia participado da passeata porque no dia do conflito estava no interior, entretanto, ouvira comentários que Juca Bombacha e Leonel de tal teriam sido os que “tomaram parte mais saliente”, tendo o primeiro ferido Beraldo com uma “navalhada” nas costas quando este “procurava defender o seu estandarte”.

Leonel Rosa, que se feriu no conflito assim como Bombacha e Beraldo da Costa, apresentou-se como o primeiro fundador do Sereno de Prata, e em suas declarações, produziu a seguinte narrativa: [...] no sábado, quinze do corrente, pelas quatro horas da tarde mais ou menos, veio a esta delegacia obter a licença para que a sociedade desse um passeio em zona deste distrito; que ao sair desta delegacia, foi informado pelo praça Manoel Porfírio da Silva, número quinhentos e setenta e cinco da Força Policial de que a Polícia naquela noite ia ter muito que fazer, pois assim lhe dissera Antonio Beraldo do Nascimento, também praça da polícia do regimento de cavalaria; que o depoente sendo sabedor disso, fez ciente ao Comissário que estava de dia e retirou-se deixando nesta delegacia o referido Antonio Beraldo; às dez horas da noite desse mesmo dia, saiu então o grupo Sereno de Prata com destino à estrada de Cascadura de onde regressaram e ao chegar, depois do largo de Madureira, encontraram-se os grupos: Sereno de Prata com os Caprichosos de Madureira e como o depoente que conduzia a Bandeira de sua Sociedade não cumprimentou o grupo Caprichosos de Madureira, o presidente deste grupo a quem o depoente só conhece de vista, agarrou o depoente pelo braço em atitude agressiva e nesse ínterim o depoente recebeu uma cacetada na cabeça, vibrada por Antonio Beraldo do Nascimento, que faz parte do grupo Caprichosos de Madureira; [...] não sabia quem havia ferido Beraldo Affonso da Costa e José de Almeida, vulgo Juca Bombacha, porque recebendo a pancada perdeu os sentidos.

Juca Bombacha, em suas declarações, confirmou que o encontro entre o Sereno de Prata, os Caprichosos de Madureira e a sociedade carnavalesca Cornetas de Madureira se deu no largo do Otaviano. Contudo, ressaltou que o conflito já era esperado.

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[...] de regresso à respectiva sede [...] apareceram os grupos Caprichosos de Madureira e Cornetas de Madureira, os quais estavam de comum acordo e premeditados para agredirem o grupo Sereno de Prata, que essa agressão ainda não tinha se realizado porque não havia se oferecido ocasião, e no sábado então, havendo esse encontro, foi o pessoal do grupo Sereno de Prata, agredido pelos referidos grupos[...], que o depoente não pode dar explicação a este respeito, porque recebeu uma cacetada vibrada por Beraldo Afonso de Costa, que faz parte do grupo Caprichosos de Madureira, recebendo logo após uma navalhada, não sabendo por quem, pois a confusão era enorme; que o pessoal do grupo Cornetas de Madureira, também tomou parte ativa no conflito, pois há tempos que estava de pleno acordo com o pessoal do grupo Caprichosos de Madureira para [promoverem] contra o grupo Sereno de Prata, uma agressão logo que se oferecesse oportunidade; que quanto aos demais feridos nada poder referir, porque perdeu os sentidos quando recebeu a primeira cacetada.

No decorrer das declarações que foram sendo recolhidas em dias distintos, o delegado solicita o comparecimento de Antonio Beraldo, o praça policial cujo envolvimento no conflito era sempre citado. Dando continuidade aos depoimentos, José Figueiredo Cardoso – português, com cinqüenta e nove anos, casado, empregado na Imprensa Nacional e morador na rua Carolina Machado 118, sabendo ler e escrever –, membro dos Caprichosos de Madureira foi ouvido. [...] foi em companhia de outras pessoas que fazem parte do grupo carnavalesco Caprichosos de Madureira, cumprimentar o grupo dos Cornetas com sede a travessa Portela, que cerca de onze horas da noite quando passavam pela estrada de Irajá, surgiu pela frente o grupo Sereno de Prata que se achava emboscado no centro de um matagal, tendo as suas lanternas apagadas, que nessa ocasião, ele depoente viu reluzir no espaço as lâminas de duas navalhas, não podendo reconhecer os indivíduos que empenhavam as ditas navalhas, que a [sic] de um seu filho menor que também fazia parte dos Caprichosos, avançou com outros em companhia para a frente, ouvindo nessa ocasião as seguintes palavras, proferidas pelo pessoal do grupo Sereno de Prata: “Já estão com medo” – que nesse momento travou-se então um conflito entre os dois grupos, não sabendo porém o depoente o que se passou por se achar a certa distância, pois retirava-se, para não ser cortado, que só no dia seguinte é que soube haver gente ferida no conflito por ter lido nos jornais.

No dia seguinte a este depoimento, Antonio Beraldo apresentou a sua narrativa. Natural do Ceará e com vinte e três anos, era solteiro, disse saber ler e escrever, ser praça da Cavalaria da Força Policial e morar na travessa Julio Fragoso 7A, o mesmo endereço declarado pelo operário Beraldo Afonso. Além disso,

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[...] já fez parte do grupo Caprichosos de Madureira, tendo deste pedido exoneração na qualidade de primeiro secretário, por ter assentado praça na Força Policial, que no sábado [...] tendo ciência que o grupo Caprichosos de Madureira ia sair em passeiata, o depoente resolveu acompanhá-la, tendo esta sociedade saído da respectiva sede até a sede da Sociedade Cornetas de Madureira, de onde sendo incorporados seguiram até digo saíram com destino à venda do “Velho”, de propriedade de João Octaviano da Cunha, situada à estrada Marechal Rangel; que nesse ponto as duas sociedades encontraram o grupo Sereno de Prata, que se acha nas proximidades desta venda, com os focos apagados; que vista a atitude daquele grupo, os dois [Caprichosos e Cornetas de Madureira] recuaram um pouco e nisto foram agredidos a navalha, pau e revólver pelo grupo Sereno de Prata; que resultou dessa agressão sair ferido Beraldo Afonso da Costa, que recebeu uma navalhada nas costas; que quanto aos demais feridos não sabe de nada; que esse conflito foi originado exclusivamente por Juca Bombacha, Leonel Rosa e outro do mesmo grupo; que Beraldo Afonso foi ferido pelo desordeiro Juca Bombacha; que no dia seguinte, domingo, Ernani Rosa, vulgo moleque Otávio, dissera a diversos indivíduos que no conflito não matou dois ou três, porque se esquecera de comprar balas para seu revólver, o que tencionou fazer antes de sair a passeata.

Um dos últimos a se encaminhar à delegacia, Ernani Rosa, o moleque Otávio, revelou em seu depoimento que o operário ferido Beraldo Afonso era irmão de Antonio Beraldo, o praça da polícia acusado de agredir com uma navalha Juca Bombacha. Neste momento, Otávio apresentou-se como estivador e morador na travessa Portela número ignorado, bem como sócio do Sereno de Prata, desde que foi fundado com o nome de “Pombeiros de Ouro”. Companheiro de Juca Bombacha há pelo menos sete anos, ao se considerar a contenda na venda de Candido Daval, em 1904, Otávio disse ter vinte e três anos e, diferentemente daquele, continuava morando em Madureira, no entanto, lá não mais trabalhava. Decorrido este tempo, deixou de se ocupar como carroceiro, pois se apresentou como estivador, provavelmente partilhando um âmbito de trabalho comum com Bombacha, que era cozinheiro de um navio. Este, contudo, não foi o único embate entre grupos carnavalescos locais. Era março de 1916, acabara de transcorrer o carnaval e chovia muito. Várias ruas foram inundadas nos subúrbios, particularmente nas localidades correspondentes ao 23o distrito policial16. Dentro das casas móveis foram arrastados pela força das águas e muitos morados se viram em apuros. Ao mesmo tempo em que na delegacia chegavam pedidos de socorro, iam sendo encaminhadas igualmente reclamações de que “desordens” e “roubos” eram realizados. De acordo com o delegado, 16

Arquivo Nacional, IJ6 595 (1916), cx 553, Autoridades Militares. Comunicado do delegado do 23o distrito policial ao 3o delegado auxiliar, 8 de março de 1916.

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[...] grupos de desordeiros e ladrões, que, aboletados nos botequins e armazéns provocaram desordens e assaltaram transeuntes. Quanto ao socorro às vítimas da inundação apenas se pôde enviar patrulhas de cavalaria para auxílio no que fosse possível, visto não dispormos de outros recursos. Quanto à vagabundagem, saiu o comissário Falcão com uma força de seis praças e, atravessando as ruas com água pela cintura dispersou os vagabundos. Como alguns proprietários de botequins estivessem mancomunados com os vagabundos, aguardando-lhes as armas, determinei que fechassem as portas. Foi uma providência salutar porque os desordeiros cessaram e o resto da noite correu calmamente.

Um dos “grupos de desordeiros” a que faz menção o texto era constituído pelos membros do Sereno de Prata. Continuando a informar um dos responsáveis pela chefia da Polícia da cidade, o 3o delegado auxiliar, Abelardo Wenceslau da Silva narra que por volta das seis horas da noite aquele grupo havia assaltado, portando revólver e atirando, o botequim de Aristides Galvão, no largo do Otaviano. Lá estariam presentes sócios da sociedade carnavalesca Paz de Madureira. Ainda segundo o delegado, o motivo do confronto teriam sido “rivalidades”, e neste feriram-se Ernani Rosa da Silva e Albino Rodrigues Teixeira. Após a confusão no botequim, aqueles que pertenciam ao grupo Paz de Madureira teriam se encaminhado à sede do Sereno de Prata, e ali chegando, “arrombaram as portas, invadiram a casa e espatifaram os móveis e utensílios”. Um sócio que se encontrava no interior da casa, Antônio Tomás, teria sido agredido, recebendo tiros e cacetadas dos “assaltantes”. Quando o comissário Falcão acompanhado de seis praças da polícia chegou ao local, trataram de remover os feridos para assistência médica. Ao final deste relato referente aos acontecimentos do dia anterior, o delegado Wenceslau estava convicto: Um dos principais autores do conflito, foi o indivíduo de nome Eusébio Rosa. Foram recolhidos ao xadrez alguns membros do Sereno de Prata que deram os seguintes nomes: João de Seda, residente na travessa Portela no 523 (presidente do Sereno de Prata), Joaquim Pacheco, residente na estrada Marechal Rangel no 693, Francisco de Souza, residente na travessa Portela no 523. O desordeiro Eusébio Rosa e sua amante que também tomou parte importante no conflito numa rua nova, à estrada do Portela.

Depois do encaminhamento deste comunicado a uma instância superior da Polícia, às dez horas da manhã, através de um telegrama, o citado comissário Falcão é

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suspenso de seu cargo por tempo indeterminado pelo 2o delegado auxiliar. O delegado do 23o distrito tece então um comentário sobre a notícia que acabara de receber: Este telegrama não me surpreendeu, pois ao amanhecer, já vários proprietários de botequins, prejudicados contra a ação do comissário Falcão contra os ladrões e vagabundos, haviam espalhado que o mesmo seria suspenso, em vista de suas reclamações ao senhor 2o Delegado Auxiliar.

Por causa da confusão entre as sociedades carnavalescas no largo do Otaviano, alguns membros do Sereno de Prata foram procurados pela polícia e levados à delegacia. O primeiro a depor, no dia seguinte à confusão, foi João Seda17, presidente do “cordão carnavalesco” Sereno de Prata. Italiano, analfabeto, com trinta e seis anos e casado, trabalhava como cocheiro dos bondes de Irajá e disse morar no endereço acima número 523. Segundo Seda, a sede do cordão era em sua própria casa, e ali os ensaios para o carnaval ganhavam lugar. Nos dias do festejo, em função das chuvas, o Sereno de Prata não teria saído às ruas para realizar seus desfiles, e as festas foram feitas em sua residência mesmo. Ainda segundo Seda, [...] às quatro horas da tarde [...] foi para o trabalho e quando estava tirando areia dos trilhos perto da Estação de Magno ouviu que no Largo do Otaviano havia um barulho, tendo havido um tiroteio; que cerca das oito para nove horas da noite, ao chegar à sua casa, foi preso por um comissário de polícia que o prendeu e trouxe para a delegacia; que ouviu dizer que do tal barulho, que se deu no botequim do Aristides, foram baleados dois indivíduos dos quais [...] não conhece, não sabendo também qual o motivo do conflito.

Joaquim Pacheco, primeiro secretário do Sereno de Prata, era brasileiro e tinha vinte e um anos. Morador da estrada do Marechal Rangel no 693, sabia ler e escrever e disse trabalhar em café. Assim como o cocheiro italiano, afirmou que o cordão não havia saído às ruas nos dias de carnaval por causa das chuvas. Segundo ele, havia sido preso à noite no largo do Otaviano, e apenas na delegacia soube que a razão de tal ação estava fundada no conflito entre sócios do clube Paz de Madureira e do cordão Sereno de Prata no botequim de Aristides, “[...] mas entre Ernani Rosa, Eusébio Rosa, sócios do Sereno de Prata com outros que [...] não conhece”. Francisco de Souza, também membro do cordão, provavelmente era cunhado do italiano Seda, posto que narrou o seguinte: ao chegar em casa, na travessa Portela 523 – endereço que o delegado Abelardo anotou ao referir-se a Seda no comunicado ao delegado auxiliar – por volta 17

Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 721742.

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das nove horas da noite, sua irmã, Carola de Seda lhe contou sobre o conflito entre os sócios dos cordões Sereno de Prata e Paz de Madureira, e nesta ocasião foi preso e conduzido ao distrito policial. Com vinte e cinco anos, era brasileiro, solteiro e trabalhava como bombeiro hidráulico. Uma semana após este caso, Abílio Rodrigues Teixeira, um dos feridos, prestou depoimento. Encaminhado ao exame de corpo de delito, foi identificado como “pardo”, e nesta ocasião declarou que fora atingido “no dia sete, à tarde, casualmente [...] por um tiro disparado por um conhecido contra terceiro”. Brasileiro, com vinte anos, sabendo ler e escrever, casado, operário, Abílio morava na estrada Marechal Rangel 664. Conforme sua versão, no último dia de Carnaval, entre seis e sete horas da tarde, estava no botequim cujo proprietário era Aristides de tal, no largo do Otaviano, e ali teria visto “[...] muitos indivíduos aos quais não conhece a todos, mas sabe serem sócios do cordão carnavalesco Sereno de Prata e Paz de Madureira, em animada conversa dois que dentre esses indivíduos estava o de nome Eusébio, preto que entrou a discutir com [sic] Gomes Figueiredo; que ele sendo [sic] o declarante viu Eusébio sacar de uma arma de fogo e desfechar um tiro contra [sic], indo o projétil atingir o declarante na coxa; que sentidose ferido [...] fugiu ouvindo tiros, mas não sabe quem os disparou”. Em 1917, Aristides Medeiros Galvão é chamado a prestar declarações. Um ano já havia transcorrido, e o inquérito parece não ter ido adiante. Em fevereiro de 1918, foi arquivado porque, segundo o juiz, não haveria base para qualquer procedimento contra quem quer que fosse. Otávio, que foi submetido ao corpo de delito poucos dias após o confronto – tendo se apresentado como estivador, solteiro, com vinte anos e morador em Rio das Pedras – foi novamente identificado como “preto”. Ferido por um projétil na face lateral direita do pescoço, conforme o parecer do médico, estaria “em boas condições”, contudo, não foi encontrado pelo oficial de justiça quando da audiência. Outro nome mencionado pelo funcionário do judiciário foi de um certo “Sebastião de tal”, que fora empregado do negociante Aristides e poderia dar informações sobre a briga entre os grupos carnavalescos. Segundo a narrativa do dono do botequim, que morava na rua Marechal Rangel 8, era brasileiro, casado, sabia ler e escrever, [...] quando se deu um conflito no botequim que [...] tinha, no Largo do Otaviano, não se achava ali nada sabendo por isso de fato; que no dia seguinte de manhã é que soube do conflito, mas o seu empregado, de nome Sebastião e que atualmente está em lugar ignorado lhe [sic] que um grupo de mascarados é que havia provocado o conflito, mão sabendo ele o nome dos turbulentos.

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3.4 “DESORDEIRO, TRABALHADOR E PRETO”: OS VESTÍGIOS DE UMA HISTÓRIA Em fevereiro de 1913, o inquérito relativo ao confronto entre os grupos Sereno de Prata, Caprichosos de Madureira e Cornetas de Madureira ainda não tinha chegado ao fim – a sentença final arquivando a denúncia contra Juca Bombacha e Antônio Beraldo, os únicos indiciados, fora decidida em 1919 –, quando Otávio18 se viu novamente às voltas com a polícia. Ainda residindo na travessa Portela em uma casa sem número, dizendo-se trabalhador do Lloyd, Otávio disparara tiros contra João Venâncio de Barros, ferindo-o na perna, devido a um desentendimento com sua examásia, Carlinda Maria de Oliveira. João Venâncio, ao ser encaminhado para o exame de corpo de delito, foi identificado como “pardo”. Com vinte e seis anos de idade, era solteiro, disse trabalhar como fundidor e morar na travessa Portela 25, além de saber ler e escrever. Carlinda nascera no interior do estado do Rio de Janeiro, tinha vinte e quatro anos, afirmou ser casada e morar, naquele momento, de favor na casa de uma amiga. Conforme ela, ao anoitecer – dois dias anteriores ao do seu depoimento – havia se dirigido a uma venda que ficava próxima à casa em que estava morando para fazer uma compra. Lá teria encontrado Otávio, seu ex-amásio, que queria então acompanhá-la. Carlinda havia recusado [...] alegando estar morando por obséquio em casa de uma sua companheira; que mesmo assim Otávio lhe acompanhou e ao chegar na casa, disse que lhe atirava e mostrou um revólver disparando um tiro que não a ofendeu; que findo isso Otávio pediu desculpas as pessoas ali presentes e se retirou, indo para a venda; que ainda estava naquela casa, Otávio empunhando a arma diria que atirava em qualquer um, pelo que sua vizinha Zulmira gritou por socorro, aparecendo João Venâncio de Barros, a quem ela pediu que acudisse Carlinda; que depois de haver se retirado Otávio, levado por João, voltou este chamando Carlinda para ir à venda; que diria João que a chamava a mando do mesmo Otávio, e acompanhando-o a declarante, ao chegar a venda foi recebida a bofetadas pelo mesmo Otávio, isso depois de haver dito João que a havia trazido, apesar de duvidar disso o mencionado Otávio; que tendo caído a declarante e quando se retirava do local, de gatinhos, Otávio mandou que João corresse e fosse embora, senão lhe atirava, e como este não saísse do lugar, Otávio desfechou um tiro, que feriu a João. João Venâncio disse que se encontrava na sua casa, quando viu Otávio “de revólver em punho para matar sua amásia Carlinda”. Não fez referência, por outro lado, ao fato de que após ter retirado Otávio e se encaminhado com ele à venda na mesma 18

Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 720707.

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rua, retornou à avenida solicitando que ela o acompanhasse a pedido deste, em relação a quem, conforme suas declarações, não tinha inimizade nem nunca havia discutido, pois o conhecia há apenas dois meses. Carlinda residia em uma avenida na qual moravam outras mulheres, que foram chamados a depor como testemunhas. Estas eram Maria Francisca da Conceição, que permitiu que aquela ficasse em sua casa, e Zulmira Maria Reis. A primeira, como Carlinda, era natural do estado do Rio de Janeiro, tinha vinte sete anos e disse ser casada. Afirmou que estava em casa amamentando sua filha quando surgiu Carlinda, com o açúcar que fora comprar, a comunicando que Otávio também estava na avenida. Maria Francisca [...] sabendo que este mesmo indivíduo já havia sido amásio da mesma, respondeu não o querer ali, porque havia dado agasalho a ela, mas não ao amásio; que Carlinda ficou do lado de fora conversando com Otávio e pediu a este para se retirar quando o mesmo zangando desfechou um tiro, saindo em seguida, para momentos depois voltar, pedindo desculpas às moradoras daquela avenida; que na ocasião em que foi desfechado o tiro, outra vizinha de nome Zulmira, gritou por socorro, apareceu João Venâncio de Barros, que conseguiu retirar Otávio; que algum tempo depois, tornou aparecer João pedindo para que fosse a referida Carlinda até a venda, onde se achava Otávio e quando lá chegou foi Carlinda recebida com uma bofetada, caindo no chão; que Otávio dera uma bofetada por ter se aborrecido com o fato de haver sua ex-amásia acompanhado João, tendo aquele dito que duvidava que este conseguisse levar aquela; que em seguida à bofetada o mesmo Otávio sacou do revólver e desfechou-o contra João, com quem estava aborrecido, ferindo-o; que o fato passado na casa [de negócio] não foi assistido pela declarante, que dele sabe por ouvir dizer da mencionada Carlinda.

Zulmira também tinha vinte e sete anos, era solteira e havia nascido na Bahia. Teria visto Carlinda e Otávio conversando no terreiro, e após o disparo chamou por João Venâncio no sentido de ajudar a primeira. [...] após haver se retirado Otávio em seguida ao tiro dado em Carlinda, voltou e pediu desculpas e depois sacando novamente o revólver, o girava no ar, ameaçando dar tiro em qualquer pessoa que se aproximasse.

Passaram-se três dias até que Otávio manifestasse sua versão. Na delegacia procurou se desvencilhar da acusação de ter atirado em João Venâncio, assim como da ida à casa em que Carlinda estava residindo. Segundo ele, estava em pé próximo a uma árvore na estrada, nos arredores da venda do “Neco”, quando ouviu muitos tiros, sem saber quem os havia disparado. Em seguida, um rapaz que sabia chamar-se João

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Venâncio de Barros, dizendo-se ferido e imputando-lhe a autoria do crime, o convidou para ir à delegacia. Sob a alegação de Otávio de que era inocente, João Venâncio teria concordado em confirmar isto. Otávio então o acompanhou e [...] aqui chegando, João o acusou novamente; tem a declarar que não foi quem disparou os tiros, não sendo também certo que houvesse chegado na casa onde mora Carlinda, sua ex-amásia. Daniel Antônio Viana Junior, após alguns dias do depoimento de Otávio, foi chamado a realizar um auto de declarações como testemunha. Nele afirmou ter visto o acusado atirar contra João Venâncio, ferindo-o na perna, além de ter sido uma das pessoas que intervieram no sentido de pôr fim à agressão. Ao final das declarações disse ainda poder afirmar que Otávio era “desordeiro”. Ao longo de 1913 vários mandados de intimação foram sendo expedidos, e de modo alternado, Otávio e as testemunhas não eram encontrados pelo oficial de justiça para comparecerem às sessões judiciais. Em setembro de 191419, outras testemunhas foram convocadas. Estas eram Nilo Eduardo Moreira Maia, Porfírio José dos Santos e João Ribeiro Maltez, no entanto, apenas o último compareceu à primeira sessão, realizada em fevereiro de 1915. Maltez era brasileiro, casado e tinha quarenta e quatro anos. Construtor, morava na rua Maria Freitas, em Madureira. Afirmou que não havia presenciado o “fato criminoso imputado ao acusado Otávio Rosa apenas assistiu este confessar na delegacia [...] de que havia de fato agredido e ferido ao indivíduo na denúncia, [...]”, e ainda segundo este, “[...] esse preto nada mais disse”. Frente a isto, o juiz responsável pelo caso expede outro mandado no qual intima que Nilo Eduardo e Porfírio José apresentem-se nem que fosse sob a “condução debaixo de vara”. Em março de 1915, Nilo comparece à audiência e declara não se recordar do fato narrado na denúncia e imputado a Otávio. Brasileiro, tinha vinte e seis anos, trabalhava no comércio e morava na rua João Vicente 13. A denúncia então é julgada improcedente, sob a justificativa de que os elementos da prova eram os depoimentos das testemunhas do sumário (audiências) e estas não teriam dito nada em relação ao “fato criminoso”. Vale ressaltar, contudo, que ainda que a formação de culpa produzida pelo delegado destacasse os disparos e o ferimento que Otávio realizou contra João Venâncio como motivo da denúncia, o juiz, em sua sentença, salienta que a acusação estaria fundada nos disparos contra Carlinda, e em 19

Arquivo Nacional, Processos Criminais, Notação 721191.

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seus supostos ferimentos – o que não foi mencionado no desenvolvimento do processo criminal. O fato de Daniel Antônio ter ratificado a denúncia que fora feita contra Otávio acabou gerando-lhe alguns problemas em relação a este. Pouco menos de duas semanas do desentendimento com Carlinda e da agressão em João Venâncio, Daniel – que havia nascido no estado do Rio de Janeiro, trabalhava como carroceiro e também morava na travessa Portela sem número – afirmou na delegacia que Otávio teria se tornado seu “inimigo” [...] por julgar ter sido ele quem ficara com uma navalha com que aquele tentava assassinar poucos dias antes, [...] a João Venâncio de Barros, quando o declarante interveio para livrar o agredido; que hoje pelas oito horas da noite, chegando à casa de negócio de Manoel Ferreira da Silva, na referida travessa número doze, viu ali seu desafeto e como soubesse que se achava pediu a Sebastião de tal, companheiro de Otávio, que o desarmasse, enquanto ele dormia ou fingia fazê-lo; que Sebastião tirou a arma, entregando-a ao declarante, que atirou fora as cápsulas, restituindo a arma a Sebastião; que Otávio, levantando-se do lugar onde se achava, tomou a arma do poder de Sebastião, saiu e voltou pouco depois com o revólver carregado de novo, provocando o declarante e fazendo-lhe fogo; que da agressão ficou ficar ferido no rosto por um projétil [...]

O proprietário da venda, conhecido como “Neco” – que se chamava Manoel Ferreira da Silva –, foi também chamado a prestar declarações sobre o que havia se passado em seu estabelecimento na noite do dia vinte de fevereiro. Manoel, natural do Distrito Federal, apresentou-se como negociante, solteiro, com trinta e um anos, e assim como os outros, residia na travessa Portela 14. Segundo ele, [...] apareceu em sua casa de negócio, no número doze da referida travessa um rapaz de cor preta, conhecido por Otávio Rosa, cujo verdadeiro nome ouviu dizer chama-se Ernani, armado de revólver e provocando a Daniel Antonio Viana Júnior; que sabendo ser Otávio capaz de fazer fogo contra o provocado, por ser Otávio desordeiro e já ter agredido a revólver outras pessoas, pelo que já esteve preso nesta delegacia, mandou retirarem-se as pessoas que estavam em seu estabelecimento e fechou as portas, vindo para fora, espiando do quintal e observando que Otávio sacando um revólver fez fogo contra Daniel ferindo-o no rosto do lado esquerdo; que algumas pessoas ali presentes intervieram não consentindo a continuação da agressão, retirando-se o agressor; que depois ouviu dizer que do lado de fora, antes do fato [...], havia sido tirado o revólver do poder do acusado, e, que sendo-lhe novamente entregue sem as cápsulas, ele fora em casa e carregara-o de novo indo [sic] agredir Daniel.

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Sebastião Pedro de Sousa, que foi apontado por Daniel Viana como companheiro de Otávio, havia nascido no Distrito Federal, tinha vinte e um anos, não sabia ler nem escrever e também residia na travessa Portela. No distrito policial confirmou a versão do ferido, fez referência ao fato de que “[...] o mesmo acusado poucos dias antes ter tentado assassinar, armado de revólver, a outro indivíduo de nome João Venâncio de Barros, desfechando-lhe tiros”, e informou ainda que não sabia para onde Otávio havia ido. Em maio do mesmo ano, 1913, três testemunhas depuseram sobre o caso, todas residentes na travessa Portela. Franklin Antônio Pereira – vinte e cinco anos, casado, pedreiro, nascido no Distrito Federal – disse que ao chegar na venda do Neco ouviu dois tiros ao mesmo tempo em que viu Otávio sair do estabelecimento, em direção à rua, questionando acerca da valentia de alguém que estava na varanda da casa de negócio; em seguida, encontrou Daniel Viana ferido no rosto. José Pedro de Souza, que tinha dezesseis anos de idade, era solteiro, também nascido na capital do país, apresentou-se como trabalhador braçal. Conforme sua narrativa, também estava na venda e ouviu uma discussão entre Otávio e Daniel “[...] quando este disse uma coisa que o declarante não percebeu o que fosse, o referido Otávio sacou de um revólver, dando dois tiros em Daniel, sendo o segundo quando este corria; que aparecendo o dono da venda, do lado de fora, o agressor fugiu, sendo que Daniel ficou ferido no rosto”. O último a falar, Getulino Alves dos Santos, assim como José Pedro, realizava trabalhos braçais, tinha vinte e nove anos de idade, era casado, e havia nascido no estado do Ceará. Segundo ele, “[...] ao receber os tiros o ofendido declarou estar ferido e aparecendo o dono da casa, o acusado foi se retirando, dizendo ainda: ‘Tu não és valente?’”.Getulino disse ainda que então se aproximou de Daniel e viu que o ferimento era “superficial”, um pouco abaixo da orelha. Oito meses após o encaminhamento da denúncia de Daniel e dos depoimentos que se seguiram, Otávio foi preso no 23o distrito policial. Apresentou-se como Ernani Rosa da Silva, com vinte e cinco anos, solteiro, natural do Distrito Federal, empregado da Companhia Lloyd e com endereço de moradia na rua Carolina Machado número 306 antigo. Em sua versão confirmou que esteve na venda do Neco, na travessa Portela, quando lá chegou “[...] o indivíduo a quem conhece por Antônio Daniel, mas que agora sabe chamar-se Daniel Antônio de Almeida Júnior, começando a discutir com o declarante, e dizendo que o declarante estava armado, que informou estar com um

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revólver, porque no caminho havia cachorros bravios; que Daniel sacou de uma faca e investiu para o declarante pelo que o declarante desfechou-lhe um tiro e correu; que no dia seguinte foi para Ribeirão da Lage, onde trabalhava, ali se demorou cerca de um mês, não sabendo se feriu Daniel”. Como Daniel Viana não foi conduzido pelas autoridades da polícia para a realização do corpo de delito, uma prática burocrática rotineira em situações de ofensas físicas e que neste caso não foi realizada, em maio de 1915, Otávio acabou sendo absolvido pelo juiz cuja alegação fora justamente a inexistência do exame que comprovasse a agressão que aquele havia sofrido. Neste espaço de tempo, contudo, um outro evento “criminal” reunira Otávio, Daniel Viana e José Pedro de Souza20, novamente em torno da venda do “Neco”. Agora, no entanto, de testemunha o último tornou-se acusado e acabou sendo indiciado, ao lado de Manoel Antonio de Oliveira, por furto. De acordo com o representante do Ministério Público, [...] os nacionais Manoel Antônio de Oliveira, com vinte e um anos de idade, solteiro, sem ocupação, residente à travessa Portela no 14 e José Pedro de Souza, com vinte anos de idade, solteiro, sem profissão conhecida, residente no local situado, por terem, a 10 de junho [de 1914], pelas dezessete horas e meia, mais ou menos, na casa 12 da travessa referida, furtado da caixa sic do turco João José Boeira, várias fazendas [..], os vulgos, “Repugnado” e “José Congo”.

José João Boeira era mascate e também vivia na travessa Portela, no número 31 Nascido na Turquia, tinha trinta e um anos, era casado e analfabeto. Segundo suas declarações, estava vendendo fazendas no número doze da mesma rua, à esposa de Neco – Manoel Ferreira da Silva, o proprietário da já citada casa de negócio –, e ao entrar na venda para entregar-lhe botões que comprara, foi furtado. As mercadorias eram morim e chita. Quando saiu do estabelecimento, Boeira percebeu que faltavam alguns metros de fazendas da sua caixa, e então perguntou a Ernani Rosa (Otávio) e Daniel Viana, que estavam na rua em frente ao local, se sabiam o que havia se passado, e estes informaram-no que José Pedro de Souza e Manoel Antônio de Oliveira eram os autores do furto. Boeira resolveu procurá-los, até que, cinco dias depois, os encontrou com o auxílio de um soldado.

20

Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 721266.

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Diferentemente dos outros processos pesquisados, neste, a adscrição de cor manifestou-se como uma constante, sendo atribuída a cada um dos envolvidos direta ou indiretamente no caso. Além disto, uma outra singularidade, em termos dos procedimentos administrativos que fundam a fonte documental com a qual estou dialogando, marca a captura da vida social segundo os documentos da polícia: mesmo não tendo sofrido nenhuma agressão corporal (o que daria margem para a realização do exame de corpo de delito no qual atributos físicos seriam descritos juntamente com informações civis), Boeira ao ser identificado, foi classificado pelas autoridades policiais como “branco”, o que aparentemente não se justificaria. No dia seguinte ao do depoimento do mascate Boeira, Otávio iria à delegacia, sob a condição de testemunha, e mesmo assim sua cor passa a ser novamente revelada. Seguindo o auto de declarações de Otávio produzido em função das perguntas do delegado do 23o distrito, manifestou-se uma versão um pouco diferente da de Boeira, porém manteve-se a afirmação sobre a responsabilidade do furto. [...] compareceu Ernani Rosa, de cor preta, com vinte e seis anos, solteiro, analfabeto, trabalhador braçal, natural do Distrito Federal e morador na travessa Portela casa sem número e disse que no dia da semana passada, não se recordando o dia certo, mas que há uns seis dias, mais ou menos, achava-se na venda de Manoel Ferreira da Silva, na travessa Portela, fazendo umas compras, quando ali entraram José Pedro de Souza e Manoel Antônio de Oliveira e puseram a conversar os dois; que este último disse o seguinte a Pedro: > e Pedro respondeu: >; que também nessa ocasião estavam na venda o turco João, não sabendo o sobrenome, e Daniel Antônio Viana, estes dois caçoavam abraçados um ao outro e conversavam também; que após a conversa de Pedro e Antônio de Oliveira, estes dois saíram para fora da venda, desaparecendo logo depois; que o turco João, saindo para o lado de fora, e verificando ter sido roubado em alguns metros de fazenda e dirigindo-se ao declarante, perguntou se havia visto quem roubou a sua mercadoria, respondendo o declarante que não pois se houvesse visto teria lhe dito imediatamente; que o turco então perguntou ao declarante onde estava Viana Júnior que havia saído também naquela ocasião, respondendo ainda, o declarante que Viana tinha saído mas que morava pouco adiante e apontou a direção da casa. ´ Ainda conforme Otávio, à noite, depois de algumas horas, teria saído de sua casa e retornado à venda do Neco, quando, na esquina da rua Domingos Fernandes com a travessa Portela, viu José Pedro e Manoel Antônio “[...] aos fundos da venda, [...] discuti[rem]am, tendo nas mãos um pouco de morim e outro tanto de chita, e cada qual queria escolher para si a melhor”. Frente a isso, Otávio teria lhes perguntado “, ao que eles responderam que não, que aquela fazenda eles haviam comprado para fazer camisa e ceroulas”. Ao encontrar no dia seguinte Daniel Viana, Otávio falou o que havia acontecido na noite anterior, o que resultou na decisão do primeiro ir contar o que soube ao mascate. Daniel, em seu auto de declarações, foi identificado como “de cor preta”. Assim como Otávio, mesmo tendo comparecido como testemunha, conferiram-lhe, na delegacia, uma classificação racial, procedimento pouco usual quando não se tratava de acusados e/ou ofendidos fisicamente. Contudo, destaco ainda que foi em relação ao mesmo Daniel – na contenda com Otávio surgida do desdobramento daquele desentendimento com Carlinda – que não se realizou o exame de corpo de delito cuja inexistência naquele processo foi utilizada pelo juiz como justificativa para absolver Otávio. Com vinte e quatro anos e trabalhando agora como pedreiro e não mais como carroceiro, mantendo o endereço de moradia, travessa Portela sem número, Daniel destacara em sua versão que estava distraído, brincando com Boeira na venda, só sabendo do furto no dia seguinte, em conversa com Otávio, que lhe falara da desconfiança do mascaste. [...] estava na venda de [...] “Neco”, [...], quando ali entrou o turco João, mascate ambulante de fazenda; que este turco é conhecido e tem por costume brincar com o declarante; que nesta ocasião estavam também na venda os indivíduos Pedro de Souza e Antônio de Oliveira e Ernani Rosa, este último fazendo compras, e aqueles dois encostados em um canto, conversando, não ouvindo o declarante o que conversavam, porque estava um pouco retirado e distraído com a brincadeira do turco João; que algum tempo depois, saiu o declarante para sua casa; que no dia seguinte encontrando-se com Ernani Rosa, este lhe disse que fosse procurar o turco e conversasse com ele, pois o turco estava desconfiado que era o declarante que tinha roubado a sua fazenda; que o declarante ignorando esse fato, perguntou a Ernani que história era essa, contando Ernani então o fato; [...] que o declarante procurou o turco e cientificoulhe do ocorrido; que assim fez e [...] com o auxílio de um praça prenderam Pedro de Souza e Antônio de Oliveira, em um botequim da travessa Portela, conduzindo-os a esta delegacia onde o turco João apresentou queixa ao comissário.

Ao serem conduzidos à delegacia, Manoel Antônio de Oliveira e José Pedro de Souza, conhecido também como “José Congo”, confessaram que eram os responsáveis pelo furto. Manoel, em seu auto de confissão, disse que já havia sido empregado da casa de negócio de “Neco”, mas que naquele momento se achava desempregado, “[...] não tendo meio algum em que ganhe [ganhasse] a vida”.

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[...] que na sexta-feira última [...], estava dentro da referida casa de negócio em brincadeira com outros companheiros, quando pelas dezessete e meia horas ali aparece um turco vendendo fazendas sendo seu conhecido pelo que sabe chamar-se João José Boeiro, o qual deixando a caixa na rua foi beber parati; que alguns menores começaram a falar sobre furtar fazenda daquela caixa; que ficando com desejos de praticar pequeno furto de fazendas, falou com José Pedro de Souza por alcunha “José Congo” mandando que este fosse tirar fazenda e respondendo José que fosse o declarante; enquanto este, entrando na venda entretinha o referido turco já tendo desaparecido o referido “José Congo”, que mais tarde o declarante se encontrou com “José Congo”, perto da mesma venda; que ali pediu sua parte recebendo dois e metros de morim, ficando aquele seu companheiro com porção maior, pois além de morim ficou também com alguns metros de chita; [...] que as fazendas a que se refere se acham na casa de Manoel Marques na mesma travessa onde o declarante e “José Congo” deixaram para serem desmanchadas em camisas e ceroulas; que o declarante já por duas

vezes tem sido preso nesta delegacia por desordem. José Congo em sua versão confirmou o que Manoel Antônio havia narrado, dizendo também que estava na travessa Portela, em companhia de alguns “garotos” e do segundo, quando este o “convidou” para juntos furtarem fazendas de Boeiro, que estaria no interior da venda bebendo parati. Ainda segundo ele, [...] influído pela garotagem e, enquanto Antônio Oliveira entretinha o turco, foi à caixa que se achava na rua e dela furtou alguns metros de morim e outros de chita e dando estas a um dos garotos, este correu e escondeu num mato próximo; que logo depois o turco saiu e mais tarde o declarante juntamente com Antônio de Oliveira e o garoto em questão, foram ao local onde haviam escondido as fazendas; [...] que o menor a que se refere pode contar apenas sete anos de idade; que repartidas as fazendas levaram-nas para casa de Manoel Marques para destas serem feitas camisas e ceroulas e ali ainda se acharem.

José Congo e Manoel Antônio moravam no número 14 da travessa Portela, mesmo endereço que Neco, o dono da venda onde o mascate estava quando suas mercadorias foram furtadas. Com vinte e vinte e um anos, respectivamente, ambos se disseram solteiros e analfabetos. O segundo, conforme o trecho acima, se apresentou como “desempregado”, enquanto que, em relação ao primeiro, nenhuma menção foi feita à ocupação ou meios de subsistência. Além disso, Manoel havia nascido na Bahia e José Congo era natural da capital federal. Também submetidos a adscrições raciais, foram classificados como “de cor preta”. Como testemunha, depôs também Maria Balbina, amásia de Neco. Natural do Distrito Federal residia com seu companheiro na mesma travessa Portela 14, apresentou-se como solteira e com trinta e dois anos. Identificada como “parda”, narrou que

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[...] estava [...] nos fundos de sua casa, fazendo doces, ouvindo apenas o rumor da discussão e conversa que se travava, cá fora na venda de seu amásio, [...], e que não saiu de onde estava para verificar do que se tratava; que mais tarde soube por ouvir dizer que o turco João, a quem [...] conhece como mascate e a quem costuma comprar fazendas havia sido roubado em alguns metros de morim e de chitas, quando se achava tomando parati na venda de seu amásio; [...] que ouviu também dizer que os autores desse furto haviam sido “José Congo” e Manoel Antônio de Oliveira; que conhece esses indivíduos que costumam freqüentar a venda de seu amásio, sendo que este último, Manoel Antônio de Oliveira, foi seu empregado e como tal, carregava água, rachava lenha e fazia outros serviços, deixando-o de ser porque era malandro e vivia brincando na rua quando tinha serviço em casa para fazer.

Outra testemunha foi Sofia Maria da Conceição, para quem José Congo e Manoel Antônio endereçaram o morim e a chita a serem transformados em roupas. Residindo em uma casa sem número na travessa Portela, casada e analfabeta, havia nascido em Minas Gerais, tinha trinta e um anos, e mesmo como testemunha, em sua apresentação na delegacia, foi anotada a sua cor, “preta”. Conforme ela, [...] sua filha entrou em casa, com um embrulho de fazenda, sendo alguns metros de morim e outros de chita, [lhe] dizendo [...] que estas fazendas lhe foram entregues por “José Congo” e Manoel Antônio, os quais pediram a ela sua filha para fazer umas camisas e umas ceroulas; que à vista disso [...] tomou a seu encargo de fazer esse trabalho, visto que sua filha não sabe coser; que de fato começou a fazer essas roupas [...] e já havia feito duas camisas e uma ceroula, quando apareceram em sua casa o referido “José Congo” acompanhado de duas praças. No decorrer dos meses, o promotor responsável solicitou que aqueles que estivessem presentes no 23o distrito policial, no dia em que “José Congo” e Manoel Antônio confessaram o furto, fossem chamados a prestar declarações como testemunhas. Três homens, entre eles um jornalista que estava de plantão na delegacia, ofereceram suas versões, confirmando que ouviram os dois assumirem a responsabilidade pelo desaparecimento das fazendas do mascate Boeira. Em dezembro de 1914, foi expedido o primeiro mandado de intimação dos réus e testemunhas, e ao oficial de justiça responsável pela comunicação da sessão judicial, foi informado que “José Congo” e Manoel Antônio estariam detidos na Colônia Correcional de Dois Rios. O promotor do caso então solicita que o juiz procure saber se de fato os dois estavam presos. Em 4 janeiro de 1915, o chefe da Polícia, 1o Delegado Auxiliar da 2a seção, comunica ao juiz da 7a Pretoria Criminal que De acordo com a solicitação constante do vosso ofício de 25 de dezembro próximo passado, faço-vos apresentar e passo à disposição

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desse Juízo, os indivíduos Manoel Antônio de Oliveira, vo Repugnado, e José Pedro de Souza vo José Congo, que se achavam recolhidos à Colônia Correcional de Dois Rios por motivo de ordem pública e que foram presos pela Delegacia do 23o DP, por serem gatunos conhecidos, os quais estão processados por essa Pretoria Criminal [...].

Algumas semanas após o encaminhamento deste ofício, José Congo e Manoel Antônio já haviam sido liberados da Colônia de Dois Rios, pois um novo mandado de intimação é expedido, e o oficial de justiça destaca que intimou o segundo, mas não o primeiro, posto que não fora encontrado. Na sucessão de outros mandados para a realização da audiência, Boeira deixa de residir na travessa Portela, os dois réus não são encontrados em seus antigos endereços, e apenas Ernani Rosa, Daniel Viana e o major Bernardino Fernandes Viana – um dos que assistiram à confissão – se apresentam como testemunhas. Em junho de 1915, a denúncia é prescrita por ter se passado mais de um ano. De testemunha a acusado, identificado como “desordeiro e vagabundo”, identificando-se como alguém que se ocupava – carroceiro, estivador, trabalhador braçal –, Otávio apareceu, em Madureira, através deste texto é claro, envolvido em alguns conflitos e processos criminais. Contudo, concomitante a esta trajetória, este personagem que inicialmente era conhecido como “filho de Chrisante Maria”, passou a ser o “moleque Otávio” até tornar-se “um preto”. Se nos primeiros inquéritos a enunciação da cor de Otávio não figurava nas narrativas dos moradores e mesmo dos guardas policiais, e o que era enfatizado dizia respeito justamente à rede na qual estava inserindo, sua filiação, sua localização espacial, este tipo de conhecimento foi cedendo lugar a outros modos de referir-se e posicionar Otávio naquele subúrbio. Mesmo tecendo vínculos com outros moradores – afinal foi possível ver através de alguns processos que ele estabeleceu relações amorosas, dividiu a moradia com outros companheiros, fez inimizades – o que me chamou a atenção nas falas dos personagens aqui citados, o italiano Seda, que mesmo se apresentando como presidente do Sereno de Prata afirmou não conhecer Otávio, baleado no confronto com o Paz de Madureira, mas principalmente do construtor Maltez e do dono do botequim Aristides, moradores de Madureira, bem como durante os procedimentos de identificação no distrito policial, inclusive nos caso do mascate Boeira, foi a mobilização da categoria preto para explicitar situações marcadas por turbulências, agressões e furtos. Foram justamente

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nestes momentos que, como ressalvou Crapanzano, as categorias suscitaram seu contexto de relevância.

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4 CENÁRIOS DE DISPUTA: GÊNERO, COR E TERRITORIALIDADES EM DONA CLARA 4.1 MARIA E SEUS TERRITÓRIOS: ENTRE A DIFERENÇA E A INDIFERENÇA Parecerá à primeira vista que o título deste artigo seja subversivo. Não o é: É antes a expressão perfeita, cabal, completa do estado anômalo a que chegamos na zona suburbana. Na zona de Irajá especialmente, o policiamento é imperfeito, falho, nulo, perambulando livremente a cafagestada réles que por cá dá aquela palha, agridem à faca, à navalha e a tiro, o pacato transeunte que tem a infelicidade de passar por estes lados. O jogo campeia, o meretrício infame existe a todos os cantos a moralidade de localidades como D. Clara e Anchieta, parece ter sido banida, para deixar somente avolumar-se o que é mau, o que ajuda a perder a humanidade, o que representa o atraso da nossa civilização. (ECHO SUBURBANO, Madureira, 1911, p.1)

Eram cerca de 8:00 horas da manhã, fevereiro de 1907, quando Maria Benedicta dos Santos21 foi detida pelo inspetor secional de polícia Belmiro Julio Viana, morador da rua João Vicente, próxima à estação circular citada, e encaminhada ao distrito policial da 6a Circunscrição Suburbana, freguesia de Irajá. Lá, junto ao delegado, ambos deram versões do que havia se passado. Segundo o condutor, [...] prendeu em flagrante na Estação de D. Clara a acusada [...] por ser vadia e não ter ocupação.

Em seguida, Maria respondeu às perguntas do delegado. Disse ter vinte e dois anos, saber quem eram seus pais, ser brasileira, analfabeta e solteira. Trabalhava como cozinheira e morava na rua Joaquim Silva 3, há nove meses. Como testemunhas, foram ouvidos Albino de Sant’anna Rosa e Julio Gomes dos Santos, também inspetores secionais. O primeiro alegou que naquele dia [...] às oito horas viu ser presa em flagrante na Estacão de Dona Clara a acusada [...], por ser vadia; que [...] não exercita profissão, ofício ou qualquer mister em que ganhe a vida e não tem meios de subsistência.

e o segundo, [...] viu a acusada presente [...] ser presa em flagrante na Estação de Mad. digo Estação de Dona Clara por ser vadia e não ter ocupação; que [...] não exercita profissão, ofício, ou qualquer mister em que ganhe vida e não tem domicílio certo ou que habite.

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Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 7G724.

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No prosseguimento do inquérito, Maria afirma, frente ao que foi declarado pelas testemunhas, que “não é vadia e que em tempo provará pois é empregada em Botafogo”. Processada no artigo 399 do Código Penal, contravenção por vadiagem, foi encaminhada à Casa de Detenção. No entanto, declarou, após novo interrogatório, no dia seguinte ao “flagrante”, “[...] não ser vadia pois se ocupa como cozinheira e tem domicílio certo (...), que espera na Justiça do Meretíssimo Juiz a sua liberdade.” Sem ter apresentado defesa, provavelmente por não ter condição econômica para tal ação, Maria foi presa e se viu detida por quase uma semana, quando um oficial de justiça a intimou na Casa de Detenção, para se apresentar em juízo. Vistos e examinados estes autos de contravenção, em que são partes – A., a Justiça, e R. Maria Benedicta dos Santos, processada como [sic] no art.399, parte primeira do Código Penal: Considerando que não ficou devidamente constatado pelos depoimentos tomados o concurso simultâneo dos três elementos formadores da referida contravenção, pois a primeira testemunha [...] afirma apenas que a acusada ‘não exercita profissão, oficio ou qualquer mister em que ganhe a vida e não tem meios de subsistência’; afirmando por sua vez a segunda que a acusada ‘não exercita profissão, oficio, ou qualquer mister em que ganhe vida e não tem domicílio certo ou que habite’: Julgo improcedente o presente processo e absolvo-a a acusada [...] da acusação que lhe foi intentada, mandando que em seu favor se passe alvará de soltura.

A liberdade de Maria Benedicta viria depois de alguns dias de detenção. Impossibilitada de exercer um dos chamados direitos naturais do indivíduo segundo a ordem social liberal – o de ir e vir –, este caso exemplifica algumas das interdições a que foi submetida a população livre do Rio de Janeiro no contexto pós-emancipação e republicano. Interdições que não eram novidades. Como apontei no primeiro capítulo, o controle sobre a população pobre do Império, negra africana, crioula ou mestiça, independente da sua condição (livre ou liberta) esboçava o quanto um status social inferiorizante estruturava, social e politicamente, o cotidiano daqueles que não viviam sob a marca do cativeiro já durante o Império. E ainda que nenhum tipo de adscrição racial tenha sido assinalado, a pergunta que pode ser feita vai no sentido de tentar imaginar por que Maria Benedicta fora acusada pelos inspetores secionais de ser “vadia”. O que nela Benedicta foi interpretado como passível de suspeição, atribuindolhe marcas de alguém que poderia ser uma contraventora? Teriam sido apenas a sua condição social e de gênero, acrescidas do fato de ter sido vista circulando em uma parada ferroviária os motivos da sua retirada das ruas, a impedindo-a de permanecer em

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um espaço público da cidade? Apesar de não ter informações suficientes para responder a esta pergunta, a acusada demonstrou, através de seu depoimento, firmeza perante às autoridades policiais. Sua profissão, e o seu endereço residencial, foram os argumentos de que se utilizou para contestar as acusações que recebera, e que, de certo modo, funcionaram como atenuantes pois, de acordo com o juiz, os depoimentos das testemunhas que prenderam-na não convenceram-no que a então ré praticava vadiagem. Se Maria Benedicta parecia estar de passagem por D. Clara, não foi esta a situação inicial de outras mulheres que darão vida a este capítulo. Conhecida como Flor da Gente22, Maria Antonia de Oliveira residia próxima àquela estação. Filha de pais desconhecidos, havia nascido no estado do Rio de Janeiro. Preta, declarou ter 19 anos e não possuir nenhuma instrução, profissão ou ocupação quando interrogada no distrito policial de Madureira, por ter agredido à navalha Francisco Candido, também preto, 22 anos, analfabeto, solteiro, natural do estado de Minas Gerais, e residente no subúrbio de Deodoro. Era junho de 1914, por volta das 18:30 da tarde, e Flor da Gente, que morava na rua Carlos Xavier 82, estava de palestra, na esquina da rua da Estação com Doutor Frontin, com uma outra rapariga de nome Maria Christina, quando se aproximou um indivíduo que a declarante não conhece mas que [sic] diz ser o de nome Francisco Candido; que este meteu-se na conversa das duas e deu uma bofetada na declarante; que vendo-se agredida, sacou de uma navalha e investindo para Francisco Candido vibrou-lhe diversas navalhadas; que após a agressão a declarante evadiu-se para dentro da Estação de Dona Clara onde foi presa por um cabo de Policia que se achava na referida Estação.

Sua confissão, no entanto, não impediu que Francisco Candido narrasse de outro modo o que teria se dado em frente ao botequim da rua Capitão Macieira, local em que disse ter sido agredido por Flor da Gente. De acordo com ele, [...] estava às seis horas e meia da tarde mais ou menos em Dona Clara na rua da Estação em frente ao botequim que faz esquina a rua Capitão Macieira, conversando com seus companheiros Luiz Germano e Américo de tal e Maria Antonia de Oliveira quando esta sem motivo algum, empunha uma navalha e desfere [...] vários golpes de navalha; que seus companheiros tomaram a navalha de Maria e conduziram esta em direção à Madureira para a Delegacia afim de apresentar sua queixa e medicar-se visto achar-se bastante ferido; que chegando à Delegacia não encontrou os seus companheiros mas soube que Maria já se achava presa, [...] pessoa que ora lhe é apresentada. 22

Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 722202.

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Três anos se passaram e o juiz da 7a Pretoria Criminal, em novembro de 1917, julgou improcedente a denúncia, absolvendo Flor da Gente, à revelia da ré e do ofendido, pois nenhum dos dois foi encontrado nos endereços citados à época da intimação, embora o representante do Ministério Público tenha assumido a posição no inquérito de que Maria Antonia ofendeu fisicamente Francisco Candido “sem o menor motivo”. Alegou ainda que as testemunhas que depuseram no sumário não tinham certeza sobre a autoria das lesões, e, além disso, a confissão da acusada teria sido dada sob condição extrajudicial, o que lhe retiraria o valor. A absolvição, entretanto, não impediu que Flor da Gente tivesse mais um evento arrolado à sua “história criminal”, pois ao ser identificada no distrito policial, aos agentes da polícia foi revelado que uma mulher chamada Maria Antonia havia sido registrada no Gabinete de Identificação e Estatística, com passagem pela Casa de Detenção do Distrito Federal, em julho de 1913, acusada de vadiagem no 8o Distrito Policial, ou seja, na área urbana da cidade; também não impossibilitou que ao referir-se à acusada, a sua racialização fosse tomada como a principal estratégia para conectá-la aos eventos em questão: a agressão à navalha e o ferimento produzido em Francisco Candido. Em dezembro de 1914, quando foram ouvidos três praças da polícia que estavam na delegacia no dia da prisão de Flor da Gente, um deles afirmou que [...] em data que não pode [sic] do mês de Junho, assistiu ser interrogada a crioula Maria Antonia de Oliveira mais conhecida pelo vulgo “Flor da Gente” que era acusada de haver, em Dona Clara agredido e ferido a navalha um indivíduo, ouvindo a mesma confessar o delito, sem coação alguma, livre e espontaneamente.

No decorrer do inquérito contra Flor da Gente, uma outra mulher, chamada Maria Benedicta23 (assim como aquela do primeiro caso desta seção), fora presa na rua Carlos Xavier, por Alfredo Corrêa dos Santos, praça do 3o Batalhão da Brigada Policial, natural do estado de Minas Gerais, “de cor branca”, com 27 anos, solteiro, sabendo ler e escrever, que residia no quartel em que trabalhava. Segundo ele, às 11:00 horas da manhã do dia 9 de setembro de 1914, Maria Benedicta, que não teria domicílio e vivia pelas ruas daquela localidade, “ofendendo a moral embriagando-se e praticando desatinos”, vagava por aquela rua, e foi então conduzida ao distrito policial. Interrogada pelo delegado, que construía o auto de qualificação através de uma série de perguntas,

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Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 721247.

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Maria teria dito, assim como o praça, que havia nascido em Minas Gerais. Preta, dissera ter 25 anos, ser analfabeta, solteira, não saber quem eram seus pais, não ter domicílio nem residência. Uma das testemunhas da sua prisão foi o empregado em comércio, natural do estado do Rio e morador na travessa Olinda, de vinte anos, que sabia ler e escrever, Mario de Almeida Guimarães. Em seu depoimento, afirmou que antes das 12:00 horas passava pela rua Carlos Xavier [...] quando viu ser presa em flagrante, uma mulher que agora sabe chamar-se Maria Benedicta, quando essa vagava na ociosidade, na rua acima, e que conhece como vagabunda e ébria e que vive perturbando o sossego dos moradores de Madureira, atentando contra o pudor dos moradores assim como sabe que a mesma não tem domicílio certo, profissão nem emprego [...].

João Joaquim de Almeida, a outra testemunha, havia nascido no Rio Grande do Sul, era empregado público, sabia ler e escrever, e tinha trinta e nove anos. Em sua versão narrou que “achava-se na rua Carlos Xavier, quando viu ser presa a acusada presente [...] por andar vagando e ser vagabunda”. Assim como o empregado em comércio, enfatizou que Maria não tinha arte, ofício, ocupação nem residência, vivendo ao relento e embriagada, e afora isso, praticaria desatinos que ofenderiam a moral e os bons costumes. Maria, em seguida, contestou o depoimento de ambos, dizendo não ser a expressão da verdade, e por isso sustentava o que havia dito. Com a palavra para que pudesse produzir sua defesa, ela declarou que não tinha ocupação atualmente, no entanto já havia sido empregada, realizando serviços domésticos e dormindo na casa de “várias conhecidas”. Mesmo assim, foi incursa no art. 399 do Código Penal, combinado com os artigos 52, parágrafo 1o e 53 do decreto 6994 de 16/6/1908, e no prazo de 24 horas deveria apresentar sua defesa formal. Abriu-se então uma ficha individual datiloscópica naquela delegacia, e procurou-se saber se havia antecedentes criminais contra Maria, contudo nada foi encontrado no Gabinete de Identificação Criminal, e após ficar mais de uma semana detida compareceu à audiência em que o juiz decidiu improcedente a acusação e a absolveu. [...] Considerando que não está provado ser a acusada vadia na verdadeira acepção da palavra e o [sic] a fls. fornecido pelo Gabinete de Identificação e de Estatística lhe é favorável.

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Alguns anos antes destas detenções realizadas nos arredores da estação de D. Clara, em 1912, na rua Domingos Lopes, Maria da Conceição24 fora detida pelo comissário Vellozo, às 17:00 horas da tarde, pois segundo este, ela era “vadia”. Diante do delegado, Maria apresentou-se como filha de André [Torres] e de Inácia da Conceição, com 22 anos, Casada e cozinheira, era natural de Minas Gerais, e residia na casa de seus patrões, porém naquele momento não possuía domicílio porque estava desempregada e, além disso, era analfabeta. Assim como no caso anterior, duas testemunhas depuseram sobre o “flagrante” do comissário, e declararam conhecer Maria há muito tempo, e saberem que ela vivia em completa ociosidade, entregando-se ao vício da embriaguez. Uma das testemunhas, o carpinteiro Paulino Cândido Pereira, solteiro, com 27 anos, sabendo ler e escrever, morador em um barracão na rua Tavares Guerra, disse que Maria havia sido sua vizinha e “nunca se dedicou a trabalho honesto para sua manutenção”. Maria, no entanto, contestou os dois depoimentos, e disse que os ignorava por serem “inverdades”. Tanto o carpinteiro Paulino como o operário Tomas Barrozo Guimarães, também sabendo ler e escrever, com 45 anos, casado e residente na rua Iguassú, em Madureira, assumiram o que haviam dito como expressão da verdade. Assim, entre contestações e afirmações de ambos os lados, Maria se colocara, declarando que em juízo provaria sua inocência. Quando de sua nota de culpa, alguns dias depois de sua prisão, a acusada ainda disse que passava pela rua Domingos Lopes quando fora detida; que não conhecias as pessoas que depuseram contra ela no inquérito; que não sabia a que atribuir sua acusação; e que possuía documentos os quais apresentaria em juízo. Pouco antes de completar um mês deste caso, ocorreu o julgamento, e a denúncia foi decidida improcedente. De acordo com o juiz responsável por este inquérito, nos autos do processo não constava nenhuma informação que comprovasse que Maria fosse uma ociosa, pois de acordo com as declarações da ré ela se ocupava com o ofício de cozinheira e atualmente estava desempregada. Maria Madalena da Silva25, chamada também de Maria Bexiguinha, teve uma trajetória um pouco diferente das Marias que foram apresentadas até aqui, considerando-se o seu processo crime. Detida por agredir Leonardo Galdino – operário do Lloyd Brasileiro e natural de Minas Gerais, com vinte dois anos –, com quem dividia 24 25

Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 72188. Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação: 721225.

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um “prédio” na rua Carlos Xavier 82 havia cerca de quatro meses, mesmo endereço indicado por Flor da Gente à policia um pouco antes, foi encaminhada à Casa de Detenção e condenada a sete meses e quinze dias de prisão, em novembro de 1914. No entanto, em maio de 1915, o diretor daquela instituição penal comunicou à 7a Pretoria Criminal o falecimento da presa por tuberculose. Maria Bexiguinha era de cor preta, natural do Maranhão e analfabeta. Solteira, com 26 anos, ignorava quem eram seus pais, e explicara na delegacia que [...] pelas cinco horas da tarde, estava na parte de sua casa, quando ali chegou Leonardo Galdino, também morador do mesmo prédio; que Leonardo pouco depois, voltou de dentro do quarto e dirigindo-se à declarante, disse que ela havia lhe tirado um lenço do bolso, ao que a declarante protesta, dizendo que não se sujava com um lenço; que Leonardo então a chamou de preta relaxada e ordinária e deu-lhe uma porção de sopapos na cara; que a declarante, vendo-se agredida, passou a mão em um cabo de enxada e com ele pretendeu agredir-se ou defender-se de Leonardo; que Leonardo tomou esse pau de sua mão e com ele bateu na declarante; que na ocasião chegava outro morador do prédio, de nome Antonio da Silva que tomou o pau das mãos de Leonardo Galdino; que Leonardo correu dentro do quarto e passou a mão em uma tranca de madeira e com ela deu ainda três pancadas na declarante, que correu para dentro da casa e aí a foi encontrar Leonardo que ainda a espancava muito, pisando-a a pés, sendo então nessa ocasião, que a declarante, desesperada, lançou mão de uma barra curta, de ferro, que servia de tampa de fogão, e com ela deu uma pancada na cabeça de Leonardo, [...] e confessa ter sido a autora desse ferimento, mas que o fez em legítima defesa.

Leonardo Galdino havia afirmado que fora ferido com uma barra de ferro que servia de tampa de fogão e também mencionou que o conflito teria se originado no momento em que Bexiguinha retirara um lenço de seu bolso. Nas duas versões, contudo, revelou-se uma identificação racializada a partir da qual Bexiguinha e Galdino se ofendem reciprocamente: a enunciação da categoria preto. De acordo com o operário, Madaglena sic numa formidável descompostura, injuriando-o com palavras obscenas tais como: >

Alguns anos mais tarde, em fevereiro de 1919, na rua D. Clara, um novo conflito trouxe à cena sócio-histórica naquela paragem a presença de mulheres Rosalina da Conceição, Manoela Thereza de Jesus, Maria Paulina dos Anjos, Zulmira Maria Gonçalves e Maria Benedicta da Silva residiam, com a exceção da primeira, em casas da avenida número 55 e, em sua maioria, não tinham origem no Distrito Federal.

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Eram cerca de 22:00 horas da noite e Rosalina, que trabalhava como doméstica e morava naquela mesma rua, na casa 54, saíra em direção a um botequim próximo para fazer compras e ao retornar, um soldado do Exército, “de cor preta, convidou [...] a dormir com ele, sendo repelido”. Vendo o que se passava, o amásio de Rosalina, o estivador Santilho de Souza26, com quem vivia há dois meses, dirigiu-se ao soldado, e o perguntou se a conhecia. Conforme Rosalina, “[...] o soldado sem trocar palavra com Santilho, sacou de uma faca ou punhal e embebeu-o no estômago do amásio [...], pondo-se em seguida em fuga”. Santilho, que só prestou depoimento dois dias após a agressão, fora encaminhado à enfermaria da Santa Casa de Misericórdia. Com 35 anos, era analfabeto, pardo e natural do Distrito Federal. No entanto, além de Rosalina, as outras moradoras da avenida da rua D. Clara compareceram ao distrito policial e ofereceram suas versões, que iam no sentido de responsabilizar o soldado pelo ferimento em Santillho. Manoela Thereza de Jesus disse ser doméstica, casada, analfabeta e ter 21 e um anos. Narrou que estava no portão da avenida em que residia, “[...] quando um soldado do Exército de cor preta, se dirigiu à Rosalina da Conceição”. Reafirmando a versão de Rosalina, de que o soldado agredira Santilho sem ao menos “trocar palavra”, Manoela concluiu dizendo que o militar seria “magro, estatura regular, usa cara raspada, tem boa dentadura e diz-se natural do estado do Sergipe” e havia fugido em direção ao Rio das Pedras. Maria Paulina dos Anjos, também afirmou ser casada e se ocupar como doméstica. Dizendo ter 21 anos, assim como Manoela, declarou que estava no portão quando viu “[...] um soldado de cor preta, que segundo consta pertence à Quinta Companhia de Metralhadoras, dirigir-se à Rosalina da Conceição e fazer-lhes propostas amorosas que ela repeliu, dizendo ser amasiada”. Falara ainda que, quando Santilho perguntou-lhe se conhecia Rosalina, “[...] sem que houvesse a mais leve disputa [...]”, recebeu uma facada na altura do estômago. Ao final destas declarações Maria Paulina disse ainda que seria capaz de reconhecer o soldado. Zulmira Maria Gonçalves, a outra doméstica moradora da avenida, estava junto com Manoela e Maria Paulina no portão e, neste momento, o tal soldado “de cor preta, magro, e de estatura regular” se direcionou a ela, fazendo-lhe propostas amorosas. Zulmira, então, o teria repelido e, em seguida, se recolhido à sua residência. Algum tempo se passou, e ouvindo “alarido”, saiu de casa para ver o que ocorria, e assim soube 26

Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 722728.

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que aquele mesmo soldado havia ferido Santilho à faca. Zulmira declarou que tinha 29 anos, era casada e analfabeta. Maria Benedicta da Silva, a última a narrar o que havia acontecido naquela noite de fevereiro de 1919, disse ser viúva, ter a mesma idade que Zulmira e trabalhar também como doméstica. Analfabeta e moradora da casa 4 da avenida, disse que ao ouvir um barulho chegou ao portão e foi informada que Santilho havia sido ferido por um soldado que, segundo ela, havia visto rondando as proximidades do local. Um dia após este confronto, um ofício do capitão do Quartel de Deodoro comunicou ao delegado do 23o distrito que o soldado Clarindo José da Silva, número 73 da 5a Companhia de Metralhadoras, encontrava-se preso naquele órgão pois havia se envolvido na noite anterior em um conflito em D. Clara. Ainda conforme o capitão Luiz Gonzaga dos Santos, em poder do delinqüente foi encontrado um punhal tendo numa das faces da lâmina a marca High Life, conforme declara foi-lhe entregue ontem por um senhor. Alves com charutaria à rua da Estação em D. Clara. Convocado a se apresentar à delegacia, Clarindo afirmara que pelas 22:00 horas, conversava em uma rua cujo nome não sabia, na estação de D. Clara, com duas mulheres [...] que conhece de vista, isto é, que vira pela primeira vez. Meia-hora havia transcorrido, e um indivíduo surgiu e [...] sem dizer palavra, entrou a dar pancada em uma das mulheres, levando-a para uma avenida próxima; que isto feito, o indivíduo voltou para o local em que o depoente deixara-se ficar com a outra mulher, e sem dirigir palavra, começou a esbofetear o depoente que, reagindo, também esbofeteou, pondo-se em seguida em fuga.

Ao chegar ao quartel Clarindo dissera que comunicara a um sargento de nome Vieira, para quem teria entregado a faca que portava, que, entretanto, não havia usado no conflito com Santilho, pois “[...] limitou-se a repelir o agressor a bofetadas”. Na delegacia, foi identificado como “preto, filho de Isidoro José da Silva e de Margarida Maria da Silva, natural do estado da Bahia, com 21 anos, solteiro, praça no 73 da 5a Companhia de Metralhadoras, residente no respectivo quartel, em Deodoro, sabendo ler e escrever”. Neste mesmo dia, Rosalina e Manoela reconheceram o soldado como o agressor de Santilho, no entanto, no exame microquímico não existiam marcas de sangue na arma, lâminas e no cabo. Ainda assim, o delegado Cândido Mendes de Almeida Jr. tinha certeza que Clarindo fora o autor dos ferimentos em Santilho – que passou por

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uma cirurgia no mesmo dia em que chegou à Santa Casa – e, neste sentido ordenou que os autos fossem remetidos ao juiz da 5a Vara Criminal. Os trâmites burocráticos foram realizados e encaminhou-se um comunicado ao juiz de direito no qual se explicava que Clarindo havia completado o tempo de serviço na unidade do Exército. O promotor do caso decidiu então solicitar um exame de sanidade em Santilho – que continuaria não habilitado ao serviço ativo por mais trinta dias –, para melhor orientar a ação da Justiça, pois face à situação em que se encontrava o ex-soldado, presumiu-se que seria difícil saber sobre seu paradeiro. Era março de 1919, e o delegado encaminhou ao juiz da 5a Vara Criminal a ficha datiloscópica de Clarindo. Em seguida convocou as testemunhas para prestarem depoimentos no sumário que visava a formação de culpa do ex-soldado, que foi excluído do Exército por tempo de serviço no mesmo dia em que se apresentou à delegacia, no dia seguinte dia à confusão. Manoela Thereza, Zulmira Maria e Maria Benedicta continuavam residindo na rua D. Clara 55 em julho daquele ano, mas Maria Paulina viveria na rua das Mangueiras, sem número, no subúrbio de Deodoro. Quanto a Clarindo, nada se sabia sobre seu destino. Uma nova intimação, em outubro, revelaria que Maria Paulina, também conhecida como “Caxangá” morava naquele momento na Vila Sócrates no 10, também em Deodoro, enquanto Zulmira e Maria Benedicta permaneciam em D. Clara. Já Manoela Thereza, não encontrada, estaria morando no morro de São Carlos, na área central da cidade. O promotor ainda solicitou a presença de Rosalina, que havia apenas acompanhado Zulmira na primeira audiência. Zulmira, Rosalina e Maria Paulina compareceram à audiência pública e, através das perguntas que lhes foram dirigidas descobriu-se que Zulmira era natural do Sergipe, Rosalina era mineira, e Maria Paulina, que apresentou a seguinte versão frente ao juiz de direito, tinha origem no Distrito Federal. [...] no dia referido da denúncia às nove e meia horas da noite [...] foi a um botequim comprar pão e voltando às dez e meia mais ou menos e recolhendo-se à sua casa; que quando se achava recolhida ouviu Zulmira gritar: ‘Acudam que mataram Santilho’; [...] chegando ao portão da casa em que residia Santilho encontrou-o ferido [sic] ouvindo Santilho dizer: ‘Ai meu Deus, eu morro’. Nessa ocasião também se achava no local um comissário, um praça de polícia que levaram a testemunha e as pessoas que lá se achavam para a Delegacia; que a testemunha não viu na Delegacia nenhum soldado do Exército; que o ofendido era amasiado com Rosalina da Conceição; que a testemunha não viu nenhum soldado do Exército conversando com Rosalina nem viu no botequim a mesma Rosalina”.

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Manoela não foi encontrada para depor. Porém o juiz da 5a Vara Criminal parecia estar determinado a encontrá-la. Havia se passado pouco mais de uma semana quando um inspetor do Corpo de Investigação e Segurança Pública enviou à autoridade judicial um ofício comunicando que Manoela residia no Morro do Salgueiro, “[...] em um dos barracões que ficam à esquerda de quem sobe, sendo ali mais conhecida por irmã de José Alves Ferreira e Altino Francisco de Azevedo, que com ela moram”. Em novembro, ao se apresentar em juízo, Manoela, nascida em Minas Gerais, disse então ter trinta e quatro anos, trabalhar como doméstica e residir de fato no morro do Salgueiro, em uma casa sem número. Segundo ela, em dia e mês que não se lembrava, estava no portão de sua antiga casa, na rua D. Clara 55, quando viu sair Rosalina para comprar uma caixa de fósforos e um maço de cigarros para seu amásio Santilho. Na calçada da rua, o soldado Clarindo passeava e conversava com algumas mulheres, o que teria interrompido ao ver Rosalina. Dirigindo-se a ela, disse-lhe algo, que Manoela afirmou não ter ouvido, e Rosalina seguira então ao botequim, com Clarindo a esperando no portão de sua casa, número 54. Ao retornar Rosalina encontrou o soldado à sua espera, mas também Santilho que, conforme Manoela, teria dado uma bofetada na amásia, “botando-a para dentro de casa”. [...] em seguida, Santilho dirigiu-se ao acusado e perguntou-lhe se conhecia aquela mulher, respondendo o acusado que não conhecia e o que é que você quer; [...] Santilho deu então uma bofetada no acusado, que sacando de um punhal vibrou um golpe em Santilho; [...] isto feito o acusado deu mais [sic] pela rua,e, em seguida deitou a correr tendo um capote no braço; [...]; que o ofendido na ocasião de fato estava bem embriagado.

Maria Benedicta, que compareceu a uma sessão judicial posterior a esta, também não morava mais na rua D. Clara em novembro de 1919. Ainda em Madureira, havia se mudado para a rua Maria José 108 e, em seu novo depoimento, disse também ter nascido em Minas Gerais, ter vinte sete anos – dois anos a menos do que na sua primeira declaração – e continuar se ocupando como doméstica. Estava sentada à porta de sua casa quando ouviu uns gemidos, e indo à rua ver o que havia acontecido viu Santilho ferido e um indivíduo correndo na rua. As pessoas que estavam no local teriam lhe dito que Santilho não havia realizado agressão nenhuma no soldado, que ela declarou não conhecer. Chegando ao fim os depoimentos, a denúncia foi julgada procedente, e ainda em novembro foi expedido o mandado de prisão contra Clarindo, detido na Casa de

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Detenção. Cinco anos se passaram, e em 1924, um promotor solicitou a intimação do réu para apresentar defesa legal assim como a suspensão dos mandados de prisão autorizados pelo juiz da 5a Vara Criminal, em função de uma nova lei de organização judiciária, o decreto 1627 de 20 de dezembro de 1923. Assim, os autos do inquérito chegam à alçada da 7a Pretoria Criminal e, em agosto do mesmo ano a denúncia havia sido prescrita. 4.2 A CLASSIFICAÇÃO RACIAL COMO ESTRATÉGIA DE LUTA A presença de mulheres negras e pobres, com uma expressão considerável de migrantes nos processos crimes de que me utilizei visando reconstruir alguns das redes e relações que conformavam Madureira nas primeiras décadas do século XX, não excluía a possibilidade de que nas ruas próximas à estação de D. Clara houvessem se fixado mais moradores. Atentando para este fato, é que discutirei na seção final deste capítulo como diferentes atores sociais participaram da construção de uma identidade territorial que, a partir dos anos de 1930 e 1940, foi reapropriada enquanto uma memória histórica que compunha o passado daquele subúrbio. Em 1915, contudo, em um conflito que ocorreu no mercado de Cascadura ente um grupo de portugueses e de “crioulos”, os imigrantes envolvidos na confusão expuseram na delegacia seus endereços de moradia, à rua Marechal Floriano, em D. Clara. Deste modo, ao lado da localização espacial, que me permite apontar que já na segunda década do século XX uma população de origem e condição diversas ali se estabelecia – mulheres negras, subempregadas ou desempregadas e migrantes, bem como trabalhadores imigrantes portugueses –, também através deste inquérito evidenciou-se um embate racializado. Através deste confronto procurou-se demarcar as possibilidades de inserção e manutenção em um âmbito de trabalho partilhado por brancos imigrantes e negros brasileiros. Exo Snr. Dr. Juiz da 7a Pretoria Criminal, O Representante do Ministério Público [...], vem perante Va Ex. dar denúncia contra o nacional Joaquim Marques Filho27, com 20 anos, solteiro, empo no comércio, residente à Rua Marechal Rangel [Cascadura] oitenta e dois, e os portugueses Antonio Ribeiro, com vinte e cinco anos, solteiro, negociante de verduras, José de Almeida, com trinta anos, solteiro, negociante de verduras, residente à Rua Marechal Floriano [D.Clara] vinte e nove, Manoel Joaquim com vinte e três anos, solteiro, negociante de quitanda, residente à mesma rua vinte e oito, João de Aguiar com vinte e quatro anos, casado, carroceiro, residente à 27

Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 721517.

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Carolina Machado sem número, e Anibal Joaquim, com dezenove anos, solteiro, negociante de verdura, residente à rua Marechal Floriano vinte e dois, pelo fato criminoso seguinte: A onze de maio p. findo, pelas oito horas, mais ou menos, no Mercado de Cascadura, à Estrada Real de Santa Cruz, o primeiro denunciado, após uma discussão com Jorge Manoel de Lima, no mesmo deu uma bofetada, resultando disso um conflito no qual tomaram parte o mesmo denunciado e os demais e saíram feridos, além do dito Jorge Manoel de Lima, Alberto Machado Coelho, Amâncio Irineu da Silva e Samuel Ferrreira como fazem certo os autos de exame de corpo de delito. Distrito Federal, 30 de junho de 1915.

Por volta das 8:00 da manhã, vários homens dividiam o espaço do mercado de Cascadura (Ver Mapa IV), e alguns acabavam de chegar ao que era tido como o maior centro de abastecimento dos subúrbios, até aquele período. Para lá se dirigiram quem estava à procura de verduras para serem revendidas ou de materiais para o trabalho. Encontravam-se ainda no local outros trabalhadores como carregadores, além de comerciantes e proprietários de pequenos negócios ligados à lavoura. O pedreiro Samuel Ferreira, por exemplo, morava em um dos subúrbios formados a partir da Linha Auxiliar, e havia ido ao mercado em busca de verduras, que objetivava revender, quando viu [...] um grupo de seis ou mais portugueses, armados de grossos cacetes esbordoando a diversos outros indivíduos que fugiam; que como nada tivesse com aquele fato não se afastou de onde se achava, quando os referidos portugueses o atacaram também, tendo o de nome José de Almeida lhe vibrado forte pancada no braço esquerdo, com um grosso cacete, fraturando o seu braço; que ignora por completo [sic] dessa estúpida agressão.

A incompreensão que Samuel demonstrou na delegacia diante do que ocorrera naquela manhã, provavelmente por não ter nenhum vínculo mais estreito com aqueles que trabalhavam no mercado de Cascadura, perpassou a narrativa do também pedreiro Alberto Machado Coelho, que procurava comprar sarrafos no madereiro, ocasião em que conforme ele, [...] um grupo de portugueses, todos armados de grossos cacetes, começaram a agredir a todos que ali se achavam, obrigando a todos a fugirem; que aquela agressão estúpida, provocou indignação da parte dos populares, que começaram a protestar contra aquele bárbaro procedimento; que depois de agredirem a diversas pessoas esse grupo refugiou-se dentro de uma serraria e para dentro dela alguns populares atiraram pedras sobre o grupo agressor; que ele [...] que se achava na porta da serraria a pedido do dono da mesma procurava acalmar os populares, quando José de Almeida, que fazia parte do grupo agressor e

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que estava refugiado na serraria, apanhou as pedras que caíram ali e as arremessa sobre os populares e como o declarante o repreendesse José de Almeida atirou-lhe duas pedras ferindo-o no braço e mão direitas; que só depois o declarante soube que esses portugueses que trabalham no referido mercado assim procederam já combinados, dizendo só quererem agredir aos pretos, mulatos e brasileiros.

As agressões a que se referiram Samuel, brasileiro, preto, 29 anos, analfabeto, casado e morador na rua Amália 288, mas também Alberto, brasileiro, branco, pedreiro, com 27 anos, sabendo ler e escrever, casado e residindo na rua Itaquaty 45, tiveram como alvo o jovem Jorge Manoel de Lima, vendedor de quitanda, preto, com 19 anos e residente no subúrbio da Piedade, rua Regina Reis 22, o primeiro a receber as ofensas físicas que desencadearam o conflito. [...] hoje pela manhã [...] estava no Mercado de Cascadura [...] onde fora comprar verduras, quando Joaquim Marques, que é filho do senhor [Fernão ?] Marques ali estabelecido, começou a provocar o declarante sem motivo e como protestasse Joaquim Marques lhe deu uma bofetada, tendo o declarante se atracado com o mesmo e nessa ocasião o português Antonio Ribeiro armou-se de um grosso pau e deu-lhe uma cacetada nas costas e como acudissem dois pretos para apaziguar o barulho diversos portugueses reuniram-se armados de cacete e começaram a agredir a todos e diziam que só queriam dar nos pretos, mulatos e brasileiros; que viu quando o português de nome José de Almeida deu um uma forte cacetada no braço esquerdo do preto Samuel Ferreira, sem que nada este fizesse; que também viu quando José de Almeida apanhando pedras e arremessando-as sobre todos, tendo uma das pedras atingido a um indivíduo que caiu ferido; ignorando o declarante quem seja este indivíduo e seu paradeiro; que o grupo de portugueses armados de grossos cacetes começaram a agredir a torto e a direito, obrigando todos a fugirem. Outros vendedores de verduras e moradores dos subúrbios que estavam no mercado no momento do conflito foram ao 23o Distrito Policial, e lá narraram através de uma linguagem racializada as divergências que levaram trabalhadores – portugueses e negros brasileiros – a se posicionarem em campos opostos. Além disso, estas versões reafirmaram uma certa hierarquia racial – expressa por alguns dos que foram feridos – que ordenava os sujeitos segundo o critério da cor da pele. Os primeiros a serem agredidos seriam os pretos, depois os mulatos e por fim os brasileiros. Um deles foi Amâncio Irineu da Silva com 27 anos, casado, residente na rua Maria José 132, Madureira, que declarou ter visto [...] Joaquim Marques agredi[r]u a um crioulo a quem provocara e em virtude disso diversos portugueses armados de cacetes vieram em auxílio de Joaquim Marques e começaram a agredir a diversas pessoas

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procurando sempre ofender aos pretos, mulatos e brasileiros, pois eles diziam que essa raça de gente não havia de ficar ali; que em dado momento Joaquim Marques armado de cacete investiu para o declarante e vibrou-lhe diversas cacetadas que não o atingiram por ter delas se desviado, porém foi alcançado por duas cacetadas nas costas vibradas pelo português Manoel Joaquim que correra em auxílio de Marques; que viu quando o português José de Almeida vibrou a cacetada em Samuel Ferreira quebrando-lhe o braço e bem assim quando o de nome Antonio Ribeiro vibrara duas cacetadas em Jorge Manoel de Lima; que diversos desses portugueses além dos paus que conduziam ainda arremessaram pedras sobre todos que ali se achavam; que assim em grupo afugentaram a todos e entraram em uma serraria de onde jogaram pedras; que nessa ocasião, viu o português de nome José de Almeida atirar duas pedras sobre Alberto Machado Coelho ferindo-o no braço e na mão direita.

Ramiro Bento do Nascimento e Olegário Ramos de Oliveira, analfabetos e solteiros, moradores no subúrbio da Piedade, respectivamente com 21 e 28 anos, produziram versões para o caso no mesmo sentido das que já foram citadas acima. A fala de Ramiro, no entanto, ao narrar que Joaquim Marques “vibrou” uma bofetada em Jorge, e nesta ocasião, teria recebido o “auxílio” do português Antonio Ribeiro, que “deu uma ou mais cacetada em Jorge”, aproximando-se então “dois pretos” que não consentiram que “continuasse[m] a esbordoar Jorge que também é preto”, construiu de modo interessante uma visão acerca da população negra naquele momento histórico. Em suas declarações Ramiro colocara que diversos portugueses começaram a armarrem-se de grossos cacetes e reunidos gritaram que precisavam acabar ali com os pretos, mulatos e brasileiros e assim dizendo foram agredindo a todos homens de cor que avistavam e brasileiros; que Joaquim Marques e Antonio Ribeiro que faziam parte do grupo agressor vibraram diversas cacetadas no declarante que por se livrar delas não foi atingido por nenhuma [...] (Grifo nosso)

Se o vendedor de verduras Olegário também chamou a atenção, como estou procurando enfatizar, que uma linguagem racializada foi utilizada como instrumento de luta para demarcar as posições entre os dois grupos naquele âmbito de trabalho, pois segundo ele “[...] diversos portugueses armarram-se de grossos cacetes e disseram que ali não havia de ficar um só preto, mulato ou brasileiro e assim começaram a distribuir cacetadas a torto e direito [...]”, no trecho apresentado por Ramiro, de modo mais explícito, os “homens de cor” foram separados dos “brasileiros”.

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Ao destacar este ponto pretendo sugerir que no contexto pós-emancipação é possível entrever que a incorporação da população negra, preta ou mestiça, à categoria de brasileiros, ou seja, enquanto integrante de uma nacionalidade, não se deu de forma mecânica e direta com a abolição da escravidão. A partir deste conflito ocorrido nos anos de 1910, sobressaem-se identidades marcadas por um pertencimento racial e étnico que não se confundiam com uma concepção de nação mais ampla. Todos os “pretos” agredidos eram brasileiros, entretanto, isto não foi considerado como o elemento principal nas falas das testemunhas, que ao procurarem reproduzir as enunciações dos imigrantes, construindo assim as suas interpretações para o que se passou, evidenciaram uma classificação na qual ser brasileiro apareceu como o último nível de uma percepção identitária. Aliada a estas proposições, proponho que o manejo da categoria crioulo parece cumprir um papel peculiar, pois no período republicando indicaria uma condição social inferiorizante dos negros cuja origem estava no país. Se durante o sistema escravista esta noção foi utilizada como própria àqueles escravos que tinham a pele preta assim como os africanos, porém nascidos no Brasil, seguindo à risca este entendimento, à medida que o tráfico internacional de africanos foi rompido e o regime escravista solapado, todos incluídos nesta hierarquização pela cor seriam crioulos, isto é, pretos nascidos no país. O que parece ocorrer, no entanto, é que apesar da origem em território brasileiro, aos que foram assim identificados atribuiu-se um status social e político ao invés de se enfatizar uma característica partilhada pelos pretos brasileiros, ou seja, parte dos cidadãos. Uma inversão deslocou o foco político que perpassava a categoria: de um mecanismo racializado que durante o escravismo servia para traçar distinções entre aqueles que pretos pudessem ser escravos, africanos (estrangeiros) ou brasileiros (nacionais), passou a uma divisão no interior da população negra, através da qual se aproximavam alguns e se afastavam outros de uma identidade nacional, na recente república. Ouvidos os portugueses no mesmo dia em que se deu o confronto, apareceram versões que afirmavam sobre a agressão de Joaquim Marques ao “crioulo” Jorge Manoel da Silva, porém que negavam a participação dos depoentes no grupo de portugueses. Manoel Joaquim, analfabeto e morador na rua Marechal Floriano 28, Madureira, falou que: [...] não é verdade que tivesse tomado parte do grupo de seus patrícios que hoje reunidos andaram armados de cacetes agredindo diversas pessoas no Mercado de Cascadura, que só viu Joaquim Marques dar

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uma bofetada em um crioulo de nome Jorge e Antonio Ribeiro dar também neste uma cacetada; que do grupo pode afirmar que faziam parte estes dois e mais o de nome José de Almeida que estavam armados de cacete; que é verdade que ele refugiou-se também na serraria, receioso de sofrer qualquer agressão, não fazendo, porém, parte do grupo agressor [...]

José de Almeida, sabendo ler e escrever, vizinho de Manoel Joaquim, pois residiam na mesma rua, em seu depoimento disse que: [...] não é verdade que fizesse parte do grupo de patrícios seus que hoje pela manhã armados de cacete, agredissem a diversas pessoas no Mercado de Cascadura, sendo falso que o declarante estivesse armado de cacete ou que agredisse a quem quer que fosse; que só viu Joaquim Marques agredir ao crioulo Jorge em quem deu uma bofetada [...]

Antonio Ribeiro, que possuía o mesmo endereço de José de Almeida, rua Marechal Floriano 29, analfabeto, narrou assim o caso: [...] negocia em verduras no Mercado de Cascadura [...], e ali se achava hoje pela manhã, por volta das oito horas, quando viu Joaquim Marques dar uma bofetada em um crioulo; que os vendo atracarem-se deles se aproximou para separá-los, sem no entretanto, ofender fisicamente a quem quer que fosse; que é falso que o declarante estivesse armado de cacete ou tomado parte do grupo que ali procurava desordem; que não sabe quais os seus patrícios que tomaram parte desse grupo [...]

João de Aguiar, Agostinho de Almeida, Anibal Joaquim e Antonio Teixeira, acusados de fazerem parte do grupo de portugueses, negaram uma participação ativa no conflito apesar de assumirem em seus depoimentos que ele se deu entre seus “patrícios” e um grupo de “crioulos”, quando Joaquim Marques deu uma bofetada em um destes. Assim como os outros portugueses acusados de desencadearem a confusão, estes sujeitos trabalhavam em torno de atividades comerciais, como negociantes de verduras no mercado. Majoritariamente solteiros com idades entre 19 e 32 anos, analfabetos, moravam todos na mesma rua, Marechal Floriano, na estação de D. Clara, quando não no mesmo número, 29, à exceção do primeiro que era carroceiro, sabia ler e escrever, casado e residia na rua Carolina Machado sem número. Diferentemente dos sujeitos que foram agredidos, quase todos negros, bem como dos portugueses acusados de tais ações, o “nacional” Joaquim Marques não depôs na delegacia quando da ocorrência da briga. Suas declarações só foram ouvidas quase quinze dias após o fato, e neste momento, ofereceu esta versão à polícia: [...] que na manhã do dia onze deste mês [maio] estava no Mercado de Cascadura, onde trabalha, quando, para se desviar de um crioulo, que caíra por cima do declarante, o empurrou, tendo por isso o crioulo se

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atracado com o declarante, que procurou defender-se dando-lhe com a mão no rosto, que outros crioulos em auxílio deste, quiseram agredi-lo, o que não conseguiram por ter o declarante fugido para dentro da casa; que só depois soube que por esse fato diversos portugueses armados de pau agrediram aos crioulos, não tendo presenciado o fato e ignorando quem tivesse tomado parte do conflito

Mapa IV. Carta Cadastral do Distrito Federal, 1918.

Arroz

Frutas e verduras

Frutas, hortaliças,batatas aipins, Legumes, bananas e verduras

Mercado Grande Laranjas, Ba fruta do conde, abacates, abóboras

Galinhas e ovos

Arroz, batatas, milho,mandi oca, legumes

Legumes e bananas

Uvas, maças, peixes, bananas, laranjas, batatas, aipins, verduras, legumes

Mercados

Bananas, legumes, milho,

Verduras, hortaliça, bananas

Fonte: Seção de Cartografia. Acervo do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

Mercado de Madureira Mercado de Cascadura

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4.3 DAS HISTÓRIAS QUE FAZEM UM BAIRRO Apesar de ser atribuída à D. Clara imagens negativas pela imprensa local como foi visto no Echo Suburbano, estas não restringiam àqueles que se apresentavam como os “suburbanos” que moravam na freguesia da Irajá. No entanto, do ponto de vista histórico, estas representações sociais foram forjadas a partir de um determinado momento, relacionadas a alguns dos que lá residiam e a certas práticas sociais. Corroborando este pressuposto faço menção a uma nota publicada na seção “Pelos Subúrbios”, do Correio da Manhã. É esta a localidade a menos movimentada de toda a zona suburbana e em sua maior parte não está edificada. As estradas, os caminhos, não obedecem a um alinhamento regular e quando chove se transforma em lagoas. A estação da estrada de ferro é uma pequena gaiola de madeira. Policiamento não há nesta localidade, que também não é das mais procuradas pelos desordeiros. Por ali há muito capim pelas ruas e não é de admirar, quando em outros lugares dos subúrbios há ruas em idênticas condições ou mesmo muito piores.(CORREIO DA MANHÃ, 13/1/1904.)

Estação de D. Clara, 1908.

Fonte: Fonte: www.estacoesferroviarias.com.br/efcb_rj_lin ha_centro/donaclara.htm

A partir de que momento e como a esta estação ferroviária e às ruas que foram sendo ocupadas se construíram aquelas imagens? (Ver Anexo I) É interessante que no início do século XX, mais precisamente em 1904, quando os projetos de reformas urbanísticas na área central do Rio de Janeiro estavam sendo implementados, o jornal fez menção a estradas e caminhos, apontando para uma paisagem de caráter rural, pouco edificada, assim como para a ausência de uma infra-estrutura urbana, além do pouco interesse de “desordeiros” por D. Clara. Acrescento a isso que através da pesquisa junto

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à documentação organizada sob a rubrica “Licenças para sociedades carnavalescas”28, foi possível identificar, pelo menos nos anos de 1910, grupos e organizações sociais distintos daqueles caracterizados como “cafagestada réles e meretrizes”, segundo o Echo Suburbano. Entre 1915 e 1920 – período em que consegui encontrar referências sobre Madureira e D. Clara na documentação citada –, existiam estabelecidas em torno desta última estação sociedades recreativas, carnavalescas e uma entidade política republicana, e imagino que também moradores de classes e status sociais distintos. Em 1o de janeiro de 1915, por exemplo, Tibúrcio [sic] Gonçalves de Souza, presidente do Lyrio Club29, sociedade dançante fundada em 25 de dezembro de 1914, solicitou ao chefe de Polícia do Distrito Federal a aprovação dos estatutos, bem como licença para o “livre funcionamento em D. Clara”. A sede do Lyrio Club, que se chamou anteriormente Lyrio dos Amores, ficava na rua Maria José no 113 e, de acordo com os seus Estatutos a sociedade seria composta de ilimitado número de sócios de qualquer nacionalidade; estaria presente no enterro de seus associados, bem como nos de membros de suas famílias. Além disso, no item “Da admissão dos sócios” definia-se que “O club admite em seu seio cidadãos de qualquer cor ou religião, que a ele queiram pertencer desde de que satisfaça[m] as exigências destes estatutos”, quais sejam: Parágrafo 1o: Dentro das condições estabelecidas para admissão dos sócios, serão observadas as seguintes: Não ser menor de 18 anos, não ter sua reputação manchada pela prática de qualquer ato reprovável ter ocupações honestas e não se achar envolvido em processo crime. Parágrafo 2o: As propostas para sócios serão feitas por escrito e assinadas por sócios quites, que declararão o nome, idade, estado, naturalidade, residência e lugar onde trabalham seus propostos, sendo as mesmas propostas remetidas à secretaria para o processo legal. Parágrafo 3o: Depois de ouvida a Comissão de Sindicância, que dará parecer a respeito, será a proposta submetida à aprovação da Diretoria, que observando o disposto do parágrafo 1o do presente artigo, poderá aceita-lo ou não, embora o parecer daquela Comissão seja favorável. (ESTATUTOS DO LYRIO CLUB, 1/6/1915, p.1-8)

Somados a estes condicionantes relativos à aceitação de cidadãos de “qualquer cor e religião”, que implicam no estado de suspeição a que estavam sendo relacionados justamente os que fossem de certas cores e religiões, o Lyrio Club cobrava um pagamento de 5$000 mil réis de contribuição, sendo 3$000 em jóias e 2$000 de mensalidade, por ocasião da admissão; impedia a formação de um par constante para as 28 29

Arquivo Nacional, Série Justiça. Arquivo Nacional, Série Justiça, IJ6 563 (1915), caixa 528; IJ6564 (1915).

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diversas danças e entre estas proibia o “‘Maxixe’, Passinho, Balancinho, Para-Queda ou danças com os braços cruzados ou unidos à dama”, mas também conversas entre homens e mulheres nas janelas, no recinto e na parte externa da entidade. Segundo o documento, a sociedade dançante ficaria responsável em arrendar ou alugar um botequim, cuja propriedade seria da entidade. Ainda no mês de janeiro daquele ano, o presidente do Club Carnavalesco Caprichosos da Vitória cuja sede era na rua Alaíde no16, João dos Santos, pediu licença para o funcionamento, pois os estatutos já teriam sido aprovados. Em fevereiro, também o Suspiro de Amor, sociedade carnavalesca situada na rua Dr. Frontin no 93, em D. Clara, solicitou ao chefe da Polícia da cidade através de seu presidente, Raul Olimpio de Oliveira Campos, uma licença para sair às ruas durante os três dias de Carnaval. A autorização, que dentro da rotina burocrática da instituição passava por diversos órgãos até chegar ao distrito policial no qual as sociedades estavam circunscritas, não sofreu nenhuma oposição do comissário local, que informava “[...] A Sociedade Suspiro de Amor [...] é composta de operários ordeiros e em 1914, saíram, licenciados, à rua, onde bem se portaram seus associados”. Já próximo ao final daquele ano, em novembro, o Prazer da Mociedade, um grupo infantil de pastorinhas organizado por Fausta Maria da Conceição, que morava na rua Carlos Xavier no 64, pedia licença “[...] para sair às ruas desta cidade, incorporadas com cantos musicais durante os festejos de Janeiro, garantindo tratar-se de pessoas idôneas”. No ano seguinte, a Concentração Republicana de Da Clara30 demandava a aprovação de seus estatutos. Fundada em 16 de abril de 1916, seus objetivos eram “pugnar pelo interesse material de Da Clara e Madureira; trazer a sua propaganda na praça pública, pela imprensa e na sede social; promover o alistamento como eleitores todos os sócios brasileiros; proteger os seus sócios a juízo da diretoria; e criar uma biblioteca e arquivo aonde se encontrem livros, jornais, revistas e documentos oficiais que facilitem o estudo do Distrito Federal”. Todo cidadão nacional ou estrangeiro que estivesse no gozo de seus direitos civis e residisse no segundo distrito eleitoral poderia participar da sociedade – desde que maior de 18 anos, de reputação conhecida, e proposto por sócio quite –, o qual deveria ainda pagar 1$000 mil réis mensais, até que a matrícula atingisse o número de 300 réis, quando então se passaria a pagar 500 réis por trimestre. 30

Arquivo Nacional, Série Justiça, IJ6 597 (1916), caixa 554.

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Ao final do documento os membros da diretoria apresentam-se e fornecem seus endereços, o que permite indicar que a entidade é formada por um número considerável de militares, moradores da localidade. A comissão que produziu os estatutos era formada pelos tenentes Manoel Vieira da Silva, presidente, que morava na rua Capitão Macieira 2, e Francisco Peraphan [?] Fernandes, primeiro secretário, residente na rua Luiz Fernandes 17; por Serafim Branco, vice-presidente, rua Portela 29; Eduardo Manoel Sacramento, segundo secretário, rua Alaíde 2; major Floriano Pereira, primeiro tesoureiro, rua Estação 1; capitão Bento Guedes de Magalhães, segundo tesoureiro, rua Frontin 7; João Antônio sic, primeiro procurador, rua Maria José 106 e Albano José de Souza, segundo procurador, rua Estação 8. A sede da entidade, no entanto, mudou de endereço, e em junho estava estabelecida na rua Domingos Lopes 213, e novamente requereria licença, que foi concedida, e a aprovação dos estatutos. João Pessoa, comissário da polícia do 23o Distrito Policial informou assim que a “[...] Concentração Republicana de Da Clara [...] é composta de pessoas idôneas. Quanto a Serafim Branco, foi o mesmo processado por esta delegacia, por se intitular autoridade estando os respectivos autos na 7a Pretoria Criminal”. Alguns anos depois, em 1920, o Club Recreio Familiar31, localizado na rua Maria José 113, por meio de requerimento do primeiro secretário Mário Lopes de Oliveira, também solicitava licença para funcionar em 1921, e Félix Moreira de Jesus, presidente do Grêmio Dramático Recreativo 22 de Março, fundado na data a que faz referência o nome da entidade, ao final de dezembro daquele ano, requer também licença, além da aprovação de seus estatutos. Aceitando sócios de qualquer nacionalidade, “Para serem admitidos, [...] deveriam estar em perfeita saúde e não ter defeito físico que no futuro o[s] impossibilite[m] de trabalhar”. Se o território da parada ferroviária de D. Clara fora conformado de modo heterogêneo no que se referia às origens e condições sociais daqueles e daquelas que lá viviam, como a imagem da desordem lhe foi sendo acoplada? No início dos anos 1920, Orestes Barbosa, jornalista e cronista atuante em vários periódicos de destaque do Rio de Janeiro, publicou um livro intitulado Bambambã após cumprir pena na Casa de Detenção por calúnia e difamação. Dentre os textos apresentados aos leitores, no “A Favela” estabelece uma correlação entre o chamado morro da Favela, localizado no centro da cidade, e as paragens suburbanas de Madureira e D. Clara. O autor enfatiza a 31

Arquivo Nacional, Série Justiça, IJ6 728 (1920).

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presença de um “ajuntamento” de sujeitos sociais diversos – marinheiros, soldados, fuzileiros navais, entre outros –, desenvolvendo práticas sociais que estariam caracterizadas pela ilegalidade e violência, embora uma inserção feminina, comum nas manifestações públicas sobre estes subúrbios, não tenha recebido relevo. Como Madureira e D. Clara, a Favela reúne o que há de eminente no nosso mundo criminal. Mas, também em Madureira e D. Clara, se o leitor saltar alta noite, há de dizer comigo que tudo isso é mentira de cronistas dos jornais. O leitor principiará vendo tudo direito e em silêncio. Mas se o leitor sair da estação, talvez não volte mais para desmentir o escritor. Se entrar pela travessa Carlos Xavier ou pelas bananeiras verá o monte fervendo.Em mesas toscas com os punhais cruzados num sinal apavorante de união e morte. Marinheiros, soldados, fuzileiros navais, ladrões do mar e rebombeiros das docas Floriano arriscam, sofregamente, as moedas escassas, num jogo que é comumente o prólogo do último dia, como foi para o Vicente Vigorito, negociante de bois, apunhalado e saqueado por João Agé que era o seu amigo do coração. (BARBOSA, 1923, p.114)

Esses pronunciamentos relativos à D. Clara extrapolaram as décadas de 1910 e 1920 e mais de vinte anos depois, no Almanaque Suburbano, uma publicação voltada aos moradores dos subúrbios, recuperou-se uma identidade territorial que vinha sendo forjada há algum tempo para aquela estação. Isto, no entanto, não era tudo. Nos anos de 1940, de acordo com esta revista, homens e mulheres que fizeram história e que haviam se tornado personagens daquela paragem foram localizados como participantes de um tempo passado. O “Arquivo Vermelho” que fora aquela “Favela Suburbana” – eivado de estatísticas criminais que faziam D. Clara figurar nas crônicas policiais de modo mais constante do que o morro da Favela – seria então “reminiscências”. A parada ferroviária havia se transformado em um subúrbio “pacato” graças às ações enérgicas do chefe da Polícia do Rio de Janeiro, Alfredo Pinto, que “tentara exterminar a alfúrgia suburbana. Mandara para a delegacia de Madureira um delegado ativo e enérgico, o ex-vereador Corrêa Dutra. Conseguiu fazer alguma coisa”. Alguns personagens locais, no entanto, mereceriam ser lembrados. Não podemos deixar de falar nessas reminiscências de uma figura que todos os cronistas policiais conheceram. “Maria Sapeca”. Na zona do barulho era a rainha da navalha, como fora dos malandros. Bonita cabrocha32. Fazia correr homem quando brandia a “sardinha”. Em roda de “ases” da malandragem, dos valentes, davam-lhe, de bom grado o melhor “jogo”. Revidava, porém toda a “sujeira”. “Topava a parada”. A 32

Cabrocha Bras. 1. Qualquer mestiço escuro. 2. Mulata jovem. In: Minidicionário da língua portuguesa Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 4a edição. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.

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própria polícia inúmeras vezes nos casos sangrentos, em que a autoridade corria perigo, ajudou “Maria Sapeca” a vencer os “bambas”. O destino de “Maria Sapeca” era acabar no próprio ambiente em que se criara. Era mulher. Tinha um coração. Sentiu uma paixão forte por um rapaz, filho de velho comerciante de Madureira. A cabrocha desviara-o do bom caminho. Fê-lo também para orgulho seu “bamba” respeitado. Por mais de vez, cortou o corpo do amante com a sua inseparável “sardinha”, presa, era ele quem se empenhava para soltá-la. Uma tarde, para os lados de Irajá, o rapaz cheio de ciúmes, matou “Maria Sapeca” a navalhadas. A navalha era o símbolo o imã daquelas duas vidas – a da messalina cor de chocolate e o filho da família que o mau fado impelira para o abismo (Almanaque Suburbano, 1941, p.85-86)

A trajetória de Maria Sapeca se tornou pública com a chegada do delegado Candido Mendes de Almeida ao 23o Distrito Policial em 31 de outubro de 1918. A saída daquela instituição, entretanto, não significou o seu afastamento do cotidiano da polícia. Em 1928, como presidente do Conselho Penitenciário do Distrito Policial, Candido Mendes apresentou a Augusto Vianna, Ministro da Justiça, o estudo intitulado As mulheres criminosas no centro mais populoso do Brasil, um ensaio do Cadastro Penitenciário que se pretendia realizar em todo o país, no qual eram identificadas e analisadas as condições das mulheres sentenciadas no Distrito Federal e nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo. Uma das conclusões do documento era que face ao número reduzido de mulheres condenadas na capital do país e nos estados acima citados, se construísse em Jacarepaguá, na cidade do Rio de Janeiro, uma penitenciária agrícola e uma colônia de trabalho livre onde as presas seriam recolhidas e educadas na prática de trabalhos rurais e agrícolas, e aquelas sob liberdade condicional mantidas em parcelas de lotes para a produção. Segundo ele, O problema da regeneração das criminosas exige cuidados meticulosos e é ocupando-se intensamente dessa regeneração que melhor e mais positivamente consegue a sociedade defender-se, evitando as reincidências das criminosas que se acostumaram à vida despreocupada das cadeias. (CANDIDO MENDES, op. cit., p.13)

Inquiridas a partir de perguntas relacionadas à nacionalidade, à naturalidade, à idade, à cor, à alfabetização e ao estado civil, destacou-se no texto a recusa em relação à declaração da cor pelas mulheres condenadas por vadiagem, considerada uma contravenção: entre as 16 detidas, todas brasileiras, 14 não responderam à pergunta que as identificava pela cor, e das duas que declararam, uma era preta e a outra branca. Ainda segundo Candido Mendes, o estudo deveria ser publicado no Diário Oficial, mas

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alguns comentários apareceram no Jornal do Comércio, no Imparcial, no O País, e na seção Feminismo, dirigida pelas representantes da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Presente em Madureira no caso narrado na primeira parte deste capítulo relativo à briga entre o estivador Santilho e o ex-soldado Clarindo em frente a uma avenida da rua D. Clara, Cândido Mendes, que também era jornalista, publicou após sair do cargo de delegado, algumas crônicas policiais no Correio da Manhã, e em uma delas, destacou o que havia vivenciado naquela paragem. Dona Clara incontestavelmente teve sempre a primazia dos noticiários policiais. O número de mulheres daquela estação era de tal forma impressionante que o dr. Aurelino Leal mandou fazer um recenseamento e resolveu que a polícia impedisse pelo menos o aumento, porque a tirar dali, viriam a se espalhar pela cidade dificultando ainda mais o policiamento. Dada a ínfima classe a que pertenciam, não raro se verificavam os crimes mais bárbaros movidos por ciúme e mesmo provocados por espírito de maldade e perversão. (apud RIO ILUSTRADO, 1936, p.169)

Através de um outro formato textual, a crônica policial, e alguns anos depois – o conflito aconteceu em 1919 –, ele reconstrói uma narrativa para o que havia acontecido naquela noite. De modo mais informal que a versão produzida através do processo crime, formatado por regras, princípios e vocabulário apropriados à linguagem jurídica, o jornalista, através do seu relato, atuava ainda de modo fundamental na construção de uma identidade territorial para aquele subúrbio. Não eram somente de mulheres negras e mestiças pobres que D. Clara vivia. Conforme o jornalista e ex-delegado, [...] Tarde da noite um homem varou com uma faca, cruelmente, a outro, deixando-o agonizante. Reuniam-se na casa número 55 da Rua Dona Clara, as nacionais Manoela Francisca de Jesus, vulgo “Chininha”, Maria Paulina dos Santos, conhecida como “Maria perna de pau” e Maria Benedicta da Silva, a célebre “Maria Sapeca”, que andava armada de navalha, dando sempre muito que fazer às autoridades do antigo 23o distrito policial. Santilho de Souza, pardo, estivador, visitante, proporcionava verdadeiras cenas de selvageria contra os incautos que, atraídos pelos agrados das moradoras entravam, bebiam e apanhavam... Um soldado da 5a companhia de metralhadoras, desconhecido da zona, tendo sido provocado por uma das mulheres que queria ver se ele era homem de fato, não teve dúvida e responde prontamente ao desafio: - Se sou homem!... dou em vocês três e em qualquer um que aqui apareça. - Fechado – disse a “Sapeca”. T’ou contigo, batuta, mas se tu apanha quem te risca sou eu ....

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Palestravam assim as mulheres com o soldado quando entra o Santilho que morava na casa em frente do número 54 e que já passara pelo botequim vendo tudo “roxo” diante dele. Ao defrontar o soldado, o estivador foi insultado e agredindo-o inesperadamente a bofetadas, o que provocou a reação silenciosa do ofendido que num gesto rápido saca de um punhal [...] A vítima é recolhida à Santa Casa, agonizante, e o acusado fugiu sem saber ao menos o nome. O mulheriu inquerido na delegacia, não podia esquecer a cena e choroso lamentava o valente que tombara e enaltecia o vencedor, tão bom na ponta do ferro. op. cit.] (Grifo do autor)

Ao confrontar o inquérito produzido a este relato, uma visão mais pessoalizada perpassa a narrativa do jornalista, e as mulheres que anteriormente foram identificadas a partir de seus nomes, são localizadas por apelidos. Assim, revelou-se que as domésticas mineiras Manoela Francisca de Jesus ou Manoela Thereza de Jesus, e Maria Benedicta da Silva – que em 1919 se apresentou como viúva – seriam conhecidas como, respectivamente, Chininha e Maria Sapeca; já a carioca Maria Paulina chamada àquela época de Caxangá33, era chamada de Maria perna de pau. A partir dos apelidos destas moradoras de D. Clara, que não permaneceram muito tempo na localidade depois da briga – Manoela, por exemplo, fora residir no morro do Salgueiro, e Maria Paulina no subúrbio de Deodoro –, manifestou-se uma alusão a características físicas ligadas aos membros inferiores, e provavelmente, ao exercício de capoeiragem que, no que se referia à Maria Sapeca, era apresentado como marca constante de seu comportamento pela imprensa. Com base nas crônicas de Candido Mendes e do Almanaque Suburbano, que deve ter se inspirado no relato do primeiro, pois foi publicada no início dos anos 1940, sinalizo para uma alteração semântica que perpassa a descrição daquelas moradoras de D. Clara, procurando indicar que isto poderia se relacionar com o contexto político da época, pós-30. Ao iniciar o seu texto, o jornalista se apropriou da noção de nacionais para se referir à Maria Sapeca, Chininha e Maria perna de pau (ou Caxangá), apesar de destacar que ao lado do Santilho, o estivador pardo, “cenas de selvageria contra os incautos que, atraídos pelos agrados das moradoras entravam, bebiam e apanhavam” eram comuns na casa em que elas moravam. Apesar da menção à cor de Santilho, em nenhum momento Candido Mendes menciona a das mulheres, e no início da crônica os resume a uma “ínfima classe”, que agiriam por “ciúme” e “espírito de maldade e perversão”, realizando os “crimes mais bárbaros”. O modo de falar das mulheres, que é 33

Caxangá é um crustáceo cujo corpo tem cinco patas. (op.cit)

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reconstruído no corpo da crônica, o porte da navalha e a chamada para uma disputa a partir de um questionamento sobre a masculinidade do soldado Clarindo, foram os símbolos utilizados para caracterizá-las. Por outro lado, no Almanaque Suburbano, uma linguagem racializada foi fundamental para descrever Maria Sapeca, mas o que se destacou remete a uma espécie de tangenciamento das categorias raciais ao se comparar àquelas manifestadas em relação à Flor da Gente e Maria Bexiguinha, identificadas como “crioula” e “preta”, contemporâneas de Maria Sapeca. “Bonita cabrocha” e “messalina cor de chocolate”, possivelmente, eram as definições que sustentavam uma das formas de entendimento social a respeito da inserção de mulheres negras quase vinte depois, em um contexto cuja ideologia da democracia racial e de país mestiço ainda apontava o branqueamento da nação como um caminho para o desenvolvimento social e econômico. Neste sentido, o processo de incorporação da população negra, preta ou mestiça, a uma identidade brasileira, poderia ser pensado, tomando-se os exemplos citados, através também de estratégias sociais, políticas e discursivas que visavam a atenuação da sua origem africana.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao aguçar o olhar para a desnaturalização das categorias raciais procurei, neste trabalho, apontar que através de noções ligadas à cor das pessoas é possível referir-se a relações de poder, hierarquias e condições sociais. Sugerir que estas práticas racializadas se materializam no espaço, em um processo que denota os sujeitos mas também os territórios, foi uma das propostas deste texto. “Povoado selvagem da África”, “quilombo” e “locanda”, por exemplo, eram as expressões que no início do século XX explicitavam que uma cidade africana era pensada como antítese da modernidade e do progresso pautados pelas classes dominantes. Se o então Distrito Federal deveria romper com este “passado” para se tornar civilizado, urbanizá-lo não foi uma prática nem um processo neutro, tampouco uniforme à cidade. Também não ocorreu de modo mecânico e imediato, como um ato mágico. Os confrontos marcaram presença, delimitaram territórios, e acredito que esta é uma das leituras possíveis do primeiro capítulo. O que me parece importante enfatizar, no entanto, é que este entendimento social não se restringia a uma interpretação cujo objeto seria apenas o espaço. Logo, aqueles que ocupavam-no, produzindo outras territorialidades, também eram vistos como incivilizados. Sugiro, inclusive, que ao desenvolver esta dissertação deparei-me com um contexto social e histórico duplamente violento no período pós-emancipação. Em primeiro lugar porque nele aliou-se desigualdade sócio-econômica à cor, de modo que os homens negros moradores de Madureira estavam inseridos no mercado de trabalho como trabalhadores subalternos ou subempregados – criados, trabalhadores braçais, pedreiros, carroceiros, estivadores –, e no caso feminino alcançavam-se situações mais extremas, pois a maioria das mulheres se apresentou como doméstica, além da suspeita constante de se utilizarem desta condição para a prostituição. Contudo, além de pobres, eram passíveis de serem identificados como menos humanos em função da cor, deslizando-se assim para uma construção social e política que os posicionava como os portadores dos barbarismos da não menos violenta sociedade escravocrata. Através do segundo e terceiro capítulos, no entanto, o passado fez-se presente, e não como reprodução de batuques, zungus, capoeiragens ou feitiçarias. Talvez o que me tenha permitido reunir Otávio, Juca Bombacha, Daniel Viana às contemporâneas Flor da Gente, Maria Bexiguinha e demais Marias em Madureira e D. Clara, não se reduza apenas às suas formas de sociabilidade, seus conflitos com imigrantes, mas também

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com brasileiros, pois sugiro que mesmo afirmando alianças e disputas, portavam modos particulares de conduta, de negociação ou de ativação de divergências. Não sabemos se Juca Bombacha, Caxangá ou Maria perna de pau, apesar de seus apelidos, eram de fato capoeiras, assim como Otávio por ter sido diversas vezes acusado de desordeiro, ou se Daniel Viana participava de batuques porque era negro. Neste sentido, chamo a atenção para o fato de que as tentativas institucionais de transformá-los em objetos identificáveis, possam ter forjado maneiras de se referir a eles nas quais a cor seria a principal marca. Este poderia ser um dos vínculos que ligava o passado ao presente. Além disso, destaco que entre os anos de 1902 e 1920, Madureira e D. Clara se espraiaram. Migrantes e imigrantes se estabeleceram naquelas paragens, ainda que houvesse aqueles e aquelas que estivessem lá de passagem. Alguns contaram com quem pudesse lhes oferecer abrigo, outros dividiam uma mesma morada, uns perambulavam pelas ruas. Muitos dos fragmentos das histórias mostram que a instabilidade habitacional esteve presente nas duas primeiras décadas do século XX; a mudança de endereços no interior do próprio subúrbio e a permanência em curtos espaços de tempo também corroboram esta afirmação, assim como a ausência da numeração de casas em muitas situações revela que os órgãos da prefeitura por lá não haviam passado implementando alguns serviços e cobrando taxas. De qualquer forma, novos moradores e moradoras chegavam. Destaco, no entanto, que estes não devem ser vistos em bloco. Havia diferenças de origem, condição social, cor, gênero que tinham um peso efetivo no convívio social. Ao longo daqueles anos Madureira e D. Clara vivenciaram disputas individuais, mas nem por isso menos coletivas, pelo mercado de trabalho, por posições de poder e status locais, e pelo território. Com base neste debate, espero que tenha conseguido colaborar com a temática dos estudos urbanos no sentido de propor um enfoque no qual um ideário racista possa ser considerado como um instrumento político que compõe os projetos e medidas que objetivam a intervenção do Estado e de concessionárias privadas na conformação das cidades – que devem ser vistas e pensadas enquanto totalidade. Além disso, explicitar que modelos de urbanidades podem ser partilhados e acordados por outros segmentos da sociedade que não exclusivamente agentes públicos e empresas particulares. O Rio de Janeiro do início do século reverberou seus incômodos e reivindicações contra uma população de não-proprietários, negra e mestiça. Neste sentido, a configuração que

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assumiu ao longo dos anos, muito nos diz sobre as interdições impostas a estes sujeitos no convívio coletivo.

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14a Pretoria Criminal Notação 7G403 14a Pretoria Criminal Notação 7G385 14a Pretoria Criminal Notação 7G1630 14a Pretoria Criminal Notação 7G 1296 7a Pretoria Criminal Notação 721742 7a Pretoria Criminal Notação 720707 7a Pretoria Criminal Notação 721266 7a Pretoria Criminal Notação 721191 7a Pretoria Criminal, Notação 722202 7a Pretoria Criminal, Notação 721517 7a Pretoria Criminal, Notação 721247 14a Pretoria Criminal, Notação 7G724 7a Pretoria Criminal, Notação 721225 7a Pretoria Criminal, Notação 72188 7a Pretoria Criminal, Notação 722728

Série Justiça, Polícia, Escravos, Moedas Falsas e Africanos IJ6 563 (1915) cx 528 IJ6 564 (1915), cx 528 IJ6 595 (1916) cx 553 IJ6 596 (1916) cx 554 IJ6 597 (1916) cx 554 IJ6 648 (1918) cx 598 IJ6 649 (1918) cx 598 IJ6 655 (1918) cx 602 IJ6 693 (1919) IJ6 728 (1920)

BIBLIOTECA NACIONAL Periódicos Consultados: Correio da Manhã Edições de: 17/6/1901, 18/6/1901, 20/6/1901, 24/6/1901, 3/7/1901, 8/7/1901, 1/8/1901, 11/10/1901, 13/10/1901, 18/10/1901, 19/10/1901, 24/10/1901, 26/10/1901, 27/10/1901,

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3/11/1901, 9/11/1901, 1/12/1901, 2/12/1901, 4/1/1902, 9/1/1902, 11/1/1902, 12/1/1902, 25/1/1902, 8/2/1902, 1/4/1903, 11/4/1903, 10/12/1903, 31/12/1903, 19/1/1904, 11/3/1904, 9/4/1904, 11/4/1904, 9/6/1905.

Tribuna Suburbana (Madureira) Edições de: 17, 18, 22, 25, 26 e 28 de janeiro de 1910.

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ANEXOS Anexo I. Planta dos terrenos desmembrados da Fazenda do Campinho na estação de D. Clara, 1919.

Fonte: Seção de Cartografia. Acervo do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

159

Anexo II. Estação de Madureira, 1909.

Fonte: Acervo da Fundação Museu Imagem e do Som.

160

Anexo III. Madureira, 1926. Provavelmente próximo ao largo do Octaviano.

Fonte: Acervo da Fundação Museu Imagem e do Som.

161

Anexo IV. Estrada Marechal Rangel, atual Av. Edgard Romero, 1923.

Fonte: Acervo da Fundação Museu Imagem e do Som.

162

Anexo V. Bonde puxado a burro. Madureira, 1926.

Fonte: Acervo da Fundação Museu Imagem e do Som.

163

Anexo VI. Rua Conselheiro Galvão, estação de Magno. Madureira, 1930.

Fonte: Acervo da Fundação Museu Imagem e do Som.

164

Anexo VII. Rua Carvalho de Souza. Madureira, [1928].

Fonte: Fundação Museu da Imagem e do Som.

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