Sumário para a preleção sobre a Tradição Cristã

June 13, 2017 | Autor: Ricardo Rizek | Categoria: Philosophy Of Religion, Filosofía, Cristianismo
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I CICLO DE ESTUDO DAS RELIGIÕES: JUDAÍSMO, CRISTIANISMO, BUDISMO E ISLAMISMO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO - UFOP REITOR RENATO GODINHO NAVARRO VICE-REITOR Dirceu do Nascimento

Instituto de Ciências Humanas e Sociais - ICHS DIRETORA Heliana Maria Brina Brandão VICE-DIRETORA Deisa Chamahum Chaves Departamento de História - DEHIS CHEFE José Arnaldo Coelho Aguiar Lima Laboratório de Pesquisa Histórica - LPH COORDENADOR Renato Pinto Venâncio Núcleo de Estudos da Religião - NER COORDENADOR Ivan Antônio de Almeida

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Índice

Apresentação ................................................................... 07 Uma apresentação do Judaísmo Alexandre Leone .............................................................. 11 Budismo: história e doutrina Carlos Kajiya ................................................................... 25 Sumário para as preleções sobre a Tradição Cristã Ricardo Rizek .................................................................... 55 Em busca de referenciais para compreender o Islam Beatriz Machado .............................................................. 81

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Apresentação A atual conjuntura é um momento privilegiado. A falta de referências hegemônicas permite que nos defrontemos com uma multiplicidade de opções que, embora sempre presentes, estavam obscurecidas. O tema religião está presente na história desde que o homem “viu que na natureza havia alguma coisa além da realidade, e para si alguma coisa além da morte”. 1 A discussão dessa temática, agora numa nova perspectiva, não partidarizada, atende a uma necessidade sentida em todo o planeta. Nós, professores, alunos e funcionários do ICHS, teremos – como uma das atividades que festejam essa semi-maioridade do Instituto – a oportunidade de conhecer um ponto de vista de cada uma das quatro grandes religiões que, de uma forma ou de outra, orientam a vida de grande parte da humanidade. Essa é também a principal atividade que inaugura o trabalho do Núcleo de Estudos da Religião – um centro de estudos vinculado ao Laboratório de História do Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFOP. A circunstância que nos leva a reunir esses quatro palestristas é favorecida pelo local em que estas conferências se realizam – um ambiente universitário onde deve imperar o espírito receptivo, condição que nos possibilita enxergar a riqueza de cores que compõe o mundo objetivo, e sem o qual, este mundo não se desvendará. 1

RENAN, Ernest. Vida de Jesus. Portugal: Lello,

1946. p.2.

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Alexandre Leone Graduou-se em Ciências Sociais pela USP, em 1990. De 1992 a 1994, estudou no Instituto Abarbanel, filiado ao Seminário Rabínico Latino-americano Marshall Meyer , fazendo o curso pré-rabínico. Atualmente, estuda a tradição judaica e dá aulas de preparação para cerimônias religiosas em sinagogas. Em 1995, começou o curso de mestrado na FFLCH da USP, pelo Centro de Estudos Judaicos, onde desenvolve estudos sobre o pensamento de Avraham J. Heschel, da perspectiva da tensão entre Tradição e Modernidade.

Endereço para correspondência: Rua Alceu Wamosy, 137, apto. 2113 CEP: 04005 – 050 São Paulo – Capital

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UMA APRESENTAÇÃO DO JUDAÍSMO A LEXANDRE L EONE

Conta uma lenda rabínica que, na época do segundo Templo, um grego procurou um sábio judeu de nome Shamai, dizendo-lhe que se ele fosse capaz de enunciar a essência da Torá, enquanto se equilibrava em um só pé, o grego se tornaria um prosélito judeu. Tomando aquilo por uma brincadeira, Shamai, muito conhecido por seu rigor, mandou-o embora. O grego então foi procurar outro sábio chamado Hillel, muito conhecido por sua paciência e bom humor, e lhe fez a mesma proposta. Ao ouvi-la, Hillel abriu um sorriso e, pondo-se sobre um pé só, disse: “Ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. O resto é comentário. Vai e estuda”.2 A maioria das pessoas, judias ou não, ao ouvir ou ler essa lenda, é facilmente tentada a se encantar com a resposta de Hillel e encarar Shamai com um olhar bem menos simpático. É verdade que a Halakhá, a lei comunitária judaica que baliza a conduta ética ideal, segue o caminho de Hillel. Há em Shamai, porém, algo de yidishkeit, do modo judaico de agir, que essa lenda não encobre, ainda que demonstre, claramente, a resposta de Hillel como a mais sábia. O Judaísmo tem sido, ao longo de seus quatro mil anos de história, uma experiência coletiva inseparável do Povo Judeu. Essa experiência religiosa e espiritual não deve ser encarada como uma teoria, pois ela permeia a vida cotidiana de pessoas reais e é permeada por ela. Os sábios 2

Essa lenda se encontra no Talmud. Uma tradução pode ser encontrada em "Um tesouro do folclore judaico." AUSUBEL, Nathan. Rio de Janeiro: Koogan, 1989. Coleção Judaica, v. 8. p. 72.

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jamais foram divinizados e encarados como perfeitos, e também os tolos e os malvados jamais foram encarados como não fazendo parte da alma coletiva de Israel. A palavra Israel, por sinal, admite muitas traduções e, se num extremo, pode ser entendida como "O Guerreiro de Deus", num outro, também pode significar "Aquele que Luta Contra Deus". Lutando com e contra Deus, e temos os profetas como testemunhas dessa tensão, forjou-se uma experiência de intimidade do humano com o divino, que por isso mesmo tornou-se universal, ainda que tenha permanecido como experiência particular de um povo. Três são as bases da experiência religiosa judaica: Deus, Sua Revelação e o Humano. Em termos judaicos, elas aparecem como YHVH (Aquele Que É Foi E Será Cujo Nome É Impronunciável), a Torá (que não revela segredos metafísicos mas, antes, o caminho do humano para sua elevação e, através dela, a de todo o planeta) e a existência dos filhos do Pacto, isto é, Israel (aqueles que tiveram a khutspá3, a audácia, de lutar com e contra Deus ao mesmo tempo e que carregam na própria carne o sinal dessa união coletiva e intergeracional). A liturgia diária tradicional recomenda que, durante as orações da noite e da manhã, sejam recitados um conjunto de trechos da Torá conhecidos como Shemá Israel, Ouve Israel, pois começam com a frase: Ouve Israel YHVH nosso Deus YHVH é único 4 . A tradição a explica como o testemunho diário da unidade divina. O judeu observante

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Pronuncia-se o KH como o j em espanhol ou o ch em alemão, como na palavra Bach. Deuteronômio,

6:4.

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pela manhã, mesmo que esteja sozinho, irá recitá-la em voz alta, alongando-se ao pronunciar a palavra único, com as quatro franjas de seu manto de orações5 nas mãos e de olhos fechados. O fechar dos olhos representa a impossibilidade de ver a Deus, isto é, abarcá-lo ou compreendê-lo racionalmente e também ressalta o papel do ato de escutar, entendido pela tradição como algo feito pelo coração. Quando em comunidade, o recitar, com os olhos fechados, ao ouvir inúmeras outras vozes se entrelaçando, é uma experiência de integração a um todo que transcende o pessoal. Aqui, talvez, esteja a finalidade do testemunho da unidade divina. O monoteísmo, enquanto experiência religiosa, é a característica básica da religião judaica há quatro mil anos. Isto não implica apenas numa monolatria, que seria a devoção a um deus específico – o Nosso. Antes, é a tomada de consciência da Divindade como única, universalmente. Deus é chamado pelos judeus por vários nomes, cada um ressaltando uma característica que, na experiência politeísta, é personificada em vários deuses. O nome Elohim, por exemplo, que é geralmente traduzido como Deus, num plural majestoso, também pode ser entendido como os deuses. Os vários nomes pelos quais É chamado são, meramente, nomes acessíveis à consciência e à razão humana. O Nome Revelado permanece impronunciável como um sinal da impossibilidade da compreensão da essência de Deus. Ao longo das gerações, a percepção de Deus tem se transformado. Na Bíblia, a concepção de Deus aparece, muitas vezes, de forma antropomórfica. Muito já se falou 5

Tsitsit, franjas colocadas nas quatro pontas do manto chamado talit, para que sejam vistas. (Números, 16:37).

de

orações,

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sobre este antropomorfismo. As concepções evolucionistas apresentam esse antropomorfismo como uma forma mais primitiva de conceber Deus. Uma leitura mais profunda, porém, deixa claro que tal antropomorfismo já é concebido na Bíblia como, antes de mais nada, algo simbólico. Deus não se parece a nada que exista neste universo e, por isso, nas tábuas da aliança, o segundo mandamento proíbe a feitura de imagens divinas. Maimônides, na Idade Média, se posiciona claramente de forma anti-antropomórfica, buscando demonstrar que não só as concepções antropomórficas têm a ver com contingências de época e da língua hebraica como vai mais longe: só podemos dar a Deus características na negativa, ou seja, dizer aquilo que Ele não é. No século XV, ao explicar o judaísmo para o imperador da China, os judeus de K’aifengfu descrevem Deus usando termos chineses como T’ien Tao, o Tao Celestial.6 Já Moshé Khaim Luzzato, na Itália do século XVIII, descreve Deus como “o Ser primário, sem começo nem fim, que trouxe todas as coisas à existência e continua sustentando-as”. Segundo Luzzato, “a verdadeira natureza de Deus não pode ser compreendida por outro ser que não seja Ele Mesmo”.7 Em pleno século XX Martin Buber descreverá Deus como o Tu Eterno, inacessível ao conhecimento, mas acessível através do diálogo e do encontro. Todas essas visões têm, basicamente, dois pontos em comum: a idéia de El-Khai, Deus Vivo, e a idéia de que existe uma ética para o humano, ética que é derivada da existência de Deus. O fundamento da ética judaica é a Torá. A palavra Torá tem a mesma raiz do verbo “atirar mirando”, que é a mesma 6

AUSUBEL, Nathan. Um tesouro do folclore judaico. Koogan, 1989. Coleção Judaica, v. 8. p.334.

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LUZZATO, M. O caminho de Deus. Editora Maayanot, 1992. p. 31.

Anotações

Rio de

de

Janeiro:

Aryeh

Kaplan.

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da palavra professor. A tradução de Torá por “lei” é uma tradução imprópria: a idéia mais próxima é a de “ensinamento divino”, sendo a lei apenas um aspecto da Torá. Basicamente, a Torá busca ensinar os fundamentos para a santificação da vida humana nesta existência e disto deriva o conceito de trilhar os caminhos de Deus. A Halakhá8, a lei comunitária judaica, que vem a partir das interpretações da Torá, por diversas gerações de rabinos, é também o paradigma da conduta pessoal concreta e traz esta ética aplicada à vida cotidiana, através das gerações. Mais do que uma série de afirmações em forma de credo, a Torá comanda ações neste mundo, isto é, mitsvot ou mandamentos. Por um lado, a Torá é um texto escrito e imutável – esta idéia de imutabilidade é colocada tão em prática que, ainda hoje, o texto é mantido e lido na forma de rolos de pergaminho com um cantilar próprio. A produção manual de um destes rolos da Torá, também chamado de Sefer-Torá, é cuidadosamente estabelecida, com leis que abordam tanto os materiais utilizados como a posição de cada letra na página e mesmo o tipo de pessoa que está apta a escrever um Sefer-Torá. Por outro lado, a Torá é também a tradição oral9, o ensinamento dos sábios de Israel interpretando a Torá através das gerações. Para cada ponto da vida, da liturgia ao comércio, da vida sexual ao tratamento dispensado aos animais, da guerra às regras de boa

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A palavra Halakhá vem da mesma raiz do o verbo caminhar e tem como fontes principais a parte legal do Talmud e as Responsas rabínicas.

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No início da Diáspora, a Torá Oral foi codificada nos tratados da Mishná (século II) e comentada na Guemará (aprox. século V). Essas duas obras formam o Talmud. Após essa publicação, outros Tratados e Responsas rabínicas foram escritos, entre eles os mais famosos são o Mishné Torá de Maimônides (século XII) e o Shulkhan Arukh, de Joseph Caro (século XVI).

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convivência, lá o judeu tem uma lâmpada para seus pés e uma luz para seu caminho. Tanto a Torá Escrita como a Torá Oral são, porém, uma única Torá, fruto da revelação do Sinai. A entrega da Torá no monte Sinai é um acontecimento mítico, não fazendo aqui nenhuma diferença, para nossa discussão, o acontecimento do fato histórico ou não. O caráter fundante da revelação do Sinai é ser o símbolo do selamento do Brit, o Pacto de Israel com Deus. É aqui que também reside a característica peculiar da revelação na tradição judaica, seu caráter coletivo, pois Deus se revela inicialmente a todo o povo e ao mesmo tempo. Os místicos afirmam que todo o povo significa que todos os judeus de todas as gerações receberam a Torá no Sinai, o que dá à revelação pessoal sempre um caráter coletivo, pois ela é um eco da revelação do Sinai. Outra peculiaridade da revelação é que nela Deus não revela Sua essência mas, antes, a Sua vontade. Uma vez entregue aos homens, porém, cumpre a estes interpretá-la através do tipo de consciência de cada geração, pois a Torá “não está no céu”.10 Este é o argumento básico para a validação da interpretação rabínica. O Povo Judeu não constitui uma unidade étnica, pois os dois mil anos de Diáspora permitiram o aparecimento de muitos grupos com língua e culturas diferentes dentro do povo judeu. O judeu ashkenazi, branco e de origem européia, se diferencia tanto do judeu etíope quanto o judeu secular americano ou israelense se diferencia dos grupos ultra-ortodoxos. Não se pode dizer também que o povo judeu seja uma comunidade de fiéis, com uma crença em comum, pois, fora um grupo muito reduzido de crenças 10

Deuteronômio,

30:11-14.

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básicas, conhecemos, hoje em dia, como na verdade sempre houve, resultados muito diferentes daquilo que Hillel chamou de “os comentários”. O que assombra, no entanto, é a possibilidade de nos reconhecermos como os descendentes de Avraham, nosso pai e, ao mesmo tempo, o reconhecimento mútuo entre os vários grupos por fazermos parte de uma grande comunidade: Am Israel (O Povo de Israel). Quando nos reencontramos no século XX nos países da América e, principalmente, em Israel, nos descobrimos como uma microhumanidade de gente proveniente das mais diversas partes do mundo. Mordekhai Kaplan vê no povo judeu uma “nacionalidade ética”, o ideal de uma humanidade pacífica. O pensador Abraham Ioshua Heschel disse, a respeito disto, “os judeus são um povo que, para ser um povo, têm de ser mais do que um povo”.11 A comunidade tradicional da Diáspora, que se seguiu à destruição de Jerusalém e seu Templo, nos anos 70 pelos romanos, entrou em crise com o surgimento da modernidade. Não deixa de ser interessante que, no mesmo ano em que Colombo saía com suas caravelas, os judeus eram expulsos da Espanha. No Ocidente, a crise da comunidade tradicional se aprofundou com a emancipação dos judeus nos estados burgueses. A partir do século XVIII, num processo cheio de idas e vindas, os judeus conquistaram direitos civis o que, por um lado, criou um problema conhecido no meio judaico como a assimilação, isto é, a perda da identidade judaica em troca do reconhecimento e da participação sociais. Por outro lado, intensificou as reações de preconceito anti-semita, o que gerou ações defensivas dos judeus para com a sociedade em geral que variam de país para país. O Brasil, The Earth is the Lord’s and The Shabbath. New York: Ed. Harper & Row Torchbook, 1966. p. 64.

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neste contexto, aparece como um país onde o preconceito anti-semita isolado é fato bastante raro como fenômeno cultural ou de massas. Dentro do âmbito religioso, a emancipação propiciou o aparecimento de três linhas básicas dentro do judaísmo moderno: a Reforma, uma linha que sustenta a prevalência da modernidade sobre a tradição; o movimento Conservativo, que sustenta a possibilidade do diálogo da tradição com a modernidade uma vez que este foi sempre o caminho da tradição em todas as épocas; e, finalmente, a Ortodoxia, que é uma reação (mais moderada ou mais fundamentalista, dependendo do grupo) à sociedade moderna e seu modo de vida. Muitos pensadores judeus, que se debruçaram sobre questões da espiritualidade do ponto de vista judaico, não podem, no entanto, ser classificados em nenhuma dessas tendências religiosas, entre eles podemos citar: Martin Buber, Franz Rosensweig e Emmanuel Lévinas, apenas para designar os mais conhecidos do público em geral. Há, nesses últimos, uma tensão especial que permeia suas vidas e obras, o pressentimento de que algo para além da Modernidade está para acontecer. No decorrer do século XX, dois acontecimentos marcaram profundamente o consciente e o inconsciente coletivos do povo judeu e serão, daqui para frente, cada vez mais importantes em sua experiência espiritual: o genocídio de um terço dos judeus do mundo, durante a barbárie nazista, conhecido como o Holocausto, e o aparecimento de uma terceira reunião judaica na Terra de Israel, quase dois mil anos depois da última. Esses dois acontecimentos, únicos na história humana e judaica, levarão, possivelmente, várias gerações para serem melhor compreendidos em toda intensidade de seu significado. Esses acontecimentos deverão ser vistos à luz da nova consciência eco-planetária

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que agora começa a florescer. A Torá nos ensina a observar os ciclos cósmicos, em nós e na Natureza, e a ver a eterna renovação na vida e na morte. A Tradição, enquanto memória coletiva viva, enriqueceu-se muitíssimo com essas vivências que chegam quase ao limite da existência humana e que clamam pela renovação espiritual. Como dizia Rav Kook : “O antigo se renovará e o novo santificará”.

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Bibliografia ASHERI, M. Judaísmo Vivo: as Tradições e as Leis dos Judeus Praticantes. Rio de Janeiro: Imago, 1995. BOROWITZ, E. B. Choices in Modern Jewish Thought, a Partisan Guide. New York: Behman House, 1983. BUBER, M. História do Rabi. São Paulo: Perspectiva, 1967. GOLDEMBERG, D. J., RAYNER, J. D. Judeus e o Judaísmo. Rio de Janeiro: Xenon, 1995. HERSCHEL, A.J. Deus em busca do homem. São Paulo: Paulinas, 1975. SCHOLEM, G. O Talmud Essencial in Coleção Judaica. Rio de Janeiro: Kogan, v.7, 1990. SELTZER, R. M. Povo Judeu, Pensamento Judaico, in Coleção Judaica, v. 1 e 2. Rio de Janeiro: Kogan, 1990.

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Carlos Kajiya Graduou-se em Biologia, pela USP, com mestrado pela Otani University/Japão, onde apresentou dissertação sobre a filosofia de Vasubandhu. Monge e secretário geral do Instituto Budista de Estudos Missionários. Lecionou Biologia no Colégio Rudolf Steiner. Ensina e pratica massagem oriental. Como doutorando no Departamento de História da USP, desenvolve trabalho sobre a obra científica de Goethe.

Endereço para correspondência: Avenida do Cursino, 753 CEP:04133-000 São Paulo/Capital

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BUDISMO: HISTÓRIA E DOUTRINA Carlos Kajiya

“O brilho de uma estrela solitária pode indicar o rumo certo a um navegante perdido nas ondas do oceano.”

INTRODUÇÃO Este texto foi elaborado para servir como subsídio para as aulas de História e Doutrina do Budismo no I Ciclo de Estudo da Religião no Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto. Iniciamos com uma introdução histórica e, na segunda parte, fizemos uma explanação resumida da doutrina budista.

HISTÓRIA O budismo teve sua origem com Sidarta Gotama, mais ou menos há 2500 anos. Este ensinamento propagou-se até o Ceilão por intermédio dos filhos de Asoka, Mahinda e Sanghamitta, que, em 252 a.C., plantaram uma semente da árvore Bodhi. Propagou-se até a Birmânia e a Tailândia, atravessando o arquipélago até o Camboja e Jaca. Uma outra corrente rumou ao leste via rotas comerciais para a China, Coréia e Japão, depois rumou para o norte chegando ao Tibete e à Mongólia. O budismo cindiu em várias escolas. No século III a.C. cindira-se em dezoito escolas, sendo a principal, o Theravada ou Doutrina dos Decanos (anciões), encontrável hoje em dia no Ceilão, na Birmânia, no Sião e no Camboja. Seu cânone é completo, tendo boa parte dele sido redigida

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no século I a.C. Todo esse cânon pode ser encontrado em língua inglesa, graças à obra da “Pali Text Society”. Grandes escrituras foram compostas na Índia. Grupo de grande importância foi o da literatura Prajnaparamita, ligada à Sabedoria; duas obras famosas são os Sutras do Diamante e do Coração. Todas elas estão relacionadas com a Sunyata, doutrina do Vazio, que corresponde a doutrina Theravada de Anatta, levada ao seu limite extremo. Mais ou menos na mesma época, surgiu o Sutra MahaParinirvana, contendo o desenvolvido ensinamento de Bodhisattva, o famoso Sutra do Lótus da Boa Lei (Saddharmapundarika), baseado nestes foram fundados duas escolas, a escola Tendai e a de Nichiren. Os dois Sutras Sukhavati que desenvolveram os ensinamentos da Terra Pura, posteriormente, no Japão, transformaram-se na Verdadeira Escola da Terra Pura (Jodoshinshu), fundada pelo Mestre Shinran, que terá um capítulo à parte detalhado. Todos esses temas e idéias se desenvolveram a partir de sementes já visíveis no budismo primitivo e foram objeto de grande discussão na Universidade de Nalanda, onde, durante quase mil anos, os maiores cérebros do Oriente ensinaram e debateram a doutrina do budismo. A partir do budismo básico, formaram-se duas das mais importantes escolas do budismo Mahayana. O genial Nagarjuna fundou, no século II. d.C., a escola Madhyamica, baseada na literatura do Prajnaparamita. Posteriormente, no século V, os irmãos Vasubandhu e Asanga sistematizaram a escola Yogacara ou escola da Consciência (vijnavada). Em suas escrituras destacam-se o Lankavatara e o Avantamsaka. Todas essas doutrinas e escolas levaram tempo para desenvolverem-se, durante um milênio de anos (de 300 a.C. até 700 d.C.), tiveram o apoio do Imperador Asoka,

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do rei Kanishika e do rei Harsha. Pela rota da seda, além das mercadorias, circulavam também idéias. No século II, o budismo chegou à China. Entre os grandes tradutores, encontramos Kumarajiva (séc.V) que traduziu vários textos e foram criadas várias escolas em torno dele. Numerosos peregrinos chineses, entre os quais Fa-hien, Hiuen-Tsang e I-Tsing, trouxeram consigo grande número de textos os quais foram traduzidos e estudados. O budismo chinês foi transmitido para o Japão , no século VII, com os auspícios do Imperador Shotoku. A arte budista floresceu: a arte semi-helênica de Gandhara e a encantadora arte da Escola de Mathura, sob a dinastia Gupta.

OS GRANDES TRADUTORES: A INTRODUÇÃO DO BUDISMO NA CHINA Quando o budismo começou a penetrar na China, defrontou-se com uma sofisticada cultura filosófica e literária por mais de um milênio de existência, em que cumpre destacar o Confucionismo, sistema de filosofia moral e política, e o Taoísmo, um complexo conglomerado de teorias místicas associadas a práticas dietéticas e alquímicas e com movimentos de religiosidade popular. Com o aumento do prestígio das doutrinas místicas do Taoísmo resultou que as primeiras traduções de textos budistas para o chinês, elaboradas por missionários oriundos da Índia ou da Ásia Central, fossem fortemente influenciadas pelo Taoísmo. Na falta de vocábulos chineses, apropriados para expressar os conceitos budistas, totalmente estranhos à cultura do país do centro, os tradutores recorriam a

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vocábulos técnicos do Taoísmo que exprimissem idéias mais ou menos próximas das idéias budistas. Assim, o vocábulo taoísta wu-wei (não-ação ou ação espontânea) foi utilizado para traduzir o termo budista Nirvana, talvez porque na dogmática budista o Nirvana é considerado um Dharma (categoria) asamskrta (não construído ou incondicionado), sendo que esta última idéia se mostra relativamente bem expressa pela palavra chinesa supramencionada. Budistas e taoístas superpuseram as figuras de Sakyamuni e Lao-tsé. Além disso, na própria China, foram confeccionadas escrituras budistas apócrifas desenvolvendo discursos de índole confuciana ou taoísta, como o famoso Sutra da Piedade Filial (Bumo-onjû-kyô). À medida que o budismo ia se enraizando na sociedade chinesa, os estudiosos iam se tornando mais exigentes e passaram a demandar traduções mais exatas. Nesse sentido, foi importante a atuação do grande missionáriotradutor Kumarajiva (344-413). Natural da cidade-estado de Kuccha, na Ásia Central, estudou na Índia, onde se especializou nas doutrinas da Escola Madhyamika (Escola do Caminho do Meio ou do Vazio, fundada por Nagarjuna). Com a colaboração de discípulos e auxiliares chineses, verteu para o idioma do Celeste Império os principais tratados da Escola Madhyamika e numerosos Sutras da tradição Mahayana. Dentre suas traduções, cumpre destacar a do Vimalakirtinirdésa (O Ensinamento de Vimalakirti), importante Sutra do Grande Veículo. Devemos ao colaborador e discípulo Seng-Tchao (374-414) a compilação de um importante documento, o Tchou Weimo-kie king (Chû-Yuimagyô em japonês) ou “Notas sobre o Vimalakirtinirdésa”. Os métodos e técnicas de tradução foram posteriormente aperfeiçoados por Hsuen-Tsang (660-664), o mais famoso e importante tradutor-viajante chinês. Depois de uma longa

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viagem de estudos à Índia de 629 a 645, instalou, em ChangAn, sob patrocínio imperial, uma oficina de tradução onde, com a colaboração de numerosos discípulos e auxiliares, dedicou-se à tarefa de traduzir o imenso material que trouxera da Índia. A ele devemos a tradução dos principais tratados da Escola da Consciência (Yogacara), fundada pelos irmãos Asanga e Vasubandhu, trabalho graças ao qual passou a ser considerado o primeiro mestre chinês dessa escola. Também traduziu ou retraduziu numerosos Sutras do Mahayana, por exemplo, o Vimalakirtinirdésa. Tivemos mais dois importantes tradutores: Paramartha (499-569) e I-tsing (635-713). O primeiro era um monge budista, oriundo de uma família bramânica da região de Ujaini, no noroeste da Índia. Chegou à China, por via marítima em 548, trazendo uma imensa quantidade de textos budistas. Entretanto, as guerras dinásticas do momento dificultaram sua missão, obrigando-o a levar uma vida errante e privando-o de patrocínio oficial. Assim mesmo, traduziu muitos Sutras e tratados com um rigor comparável ao de Hsuen-Tsang.

A VIDA DE BUDA Buda nasceu nos meados do século VI antes da era cristã (a data aproximada é de 563 a.C.), em uma família nobre pertencente à casta dos guerreiros e dos príncipes, casta situada logo abaixo da dos brâmanes. A família de Buda se estabelecera na aldeia de Kapilavastu, no reino de Kosala, situado aos pés do Himalaia, na fronteira meridional do atual estado do Nepal. Sua família gozava de importante posição no clã dos Sakya, daí o seu nome mais conhecido – Sakyamuni. O nome patronímico de Buda era Gautama e seu nome pessoal Sidarta.

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Sidarta, ao que parece, levou, durante longos anos, vida relativamente tranqüila, gozando de luxo principesco. Casou-se e teve um filho. Teve acesso à religião e à educação com grandes professores. É descrito que teve uma profunda insatisfação, os prazeres que o envolvia já não o satisfazia de modo algum e ele acabou abandonando tudo para se consagrar à única verdade realmente válida, aquela que poderia, de forma definitiva, libertar o homem do samsara. Depois de 6 anos de procura, encontrou essa verdade e tornou-se o ACORDADO (desperto), Buda. Após a experiência do Despertar, Buda iniciou um período de pregação que se estendeu por mais de 40 anos. Durante esse período, alguns discípulos se congregaram em torno dele e formaram, assim, a primeira comunidade búdica, a Samgha. Com oitenta anos (aprox. 483 a.C.), faleceu.

A EXPERIÊNCIA DA ILUMINAÇÃO O Buda Sakyamuni atingiu a experiência da iluminação. O Buda na sua experiência fundamental vivenciou a unidade entre corpo e mente, rompendo com a dualidade: observador e coisa observada. Na experiência da iluminação, ele teve plena consciência que o alimento que ele tinha ingerido (mingau de leite) era parte da vaca e esta era parte da grama e esta era parte da terra. Assim ele rompeu com a mente dualista. Essa experiência foi transmitida na sua primeira pregação (Dharma-cakra). O conteúdo da iluminação do Buda é denominado “O Princípio da Originação Dependente (pratitya-samutpada). Os textos do budismo primitivo são unânimes em afirmar que, na noite da sua iluminação, o Buda histórico compreendeu o Princípio da Originação Dependente e meditou sobre o mesmo. Esse princípio é a constatação da existência

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interdependente e interrelacionada de todos os fenômenos. À luz desse princípio, cada ente, cada fenômeno, aparece como uma malha de uma intrincada rede de interrelacionamento, co-responsável pela totalidade. Essa visão corresponde ao que hoje chamamos de compreensão holística da realidade.

PRINCÍPIO DA ORIGINAÇÃO DEPENDENTE Todos os estudiosos do budismo são unânimes em reconhecer que o princípio da originação dependente (sânscrito: pratitya-samutpada, japonês: engi) é a idéia central, não só do budismo primitivo como de todo o budismo, em todas as suas formas, escolas e seitas. Uma declaração conjunta proclamada pelos representantes das dez organizações que compõem a Verdadeira Escola da Terra Pura, em Kyoto, a 4 de outubro de 1989, afirma textualmente: "Consideremos que os 2500 anos da história do budismo são marcados pelo princípio da originação dependente. Os que vivem pela doutrina da Verdadeira Escola da Terra Pura despertam para a compreensão do princípio da originação dependente graças à sapiência da fé recebida do tathagata." Reduzindo à sua expressão mais simples, esse princípio é a constatação da existência interdependente e interrelacionada de todos os fenômenos. A percepção dessa lei sentida por Sakyamuni como algo difícil de ser compreendido, como a gnose libertadora que rompe as trevas da ignorância e liberta o homem de toda a angústia e todo o sofrimento.

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À luz desse princípio, cada ente, cada fenômeno aparece como uma malha de uma intrincada rede de interrelacionamentos, co-responsável pela totalidade. Essa visão corresponde ao que hoje chamamos de compreensão holística da realidade, ou seja, uma compreensão que considera o inter-relacionamento entre o todo e as partes e vê em cada parte como que a síntese da totalidade. A visão holística ganha, cada vez, maior número de adeptos entre os estudiosos de física e outras ciências de ponta. Como reação à visão newtoniana-cartesiana atual de um universo fragmentado, característica de um paradigma substancialista e mecanicista, instala-se de maneira progressiva um novo paradigma holístico, isto é, que traduz uma perspectiva na qual "o todo" e cada uma de suas sinergias estão estreitamente ligados, em interações constantes e paradoxais. Esse paradigma considera cada elemento de um campo como um evento que reflete e contém todas as dimensões do campo. É uma visão na qual "o todo" e cada uma de suas sinergias estão estreitamente ligados, em interações constantes e paradoxais.

A RODA DA LEI (Dharma - cakra) O Buda, após ter realizado a experiência do despertar, teve uma grande perplexidade: deveria ou não apresentar aos outros a verdade que descobrira? Tinha perfeita consciência de que a maior parte dos homens, por causa de sua ignorância espiritual, não compreenderia a profundidade da verdade, por ele atingido. Foi nesse momento, segundo a

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lenda, que o próprio deus Brahma interveio junto a Buda e intercedeu em favor de todos os seres viventes. Acompanhado por uma multidão de devas, Brahma suplicou então ao Buda que fosse proclamar aos homens a verdade libertadora que instruíra. Comovido pelas súplicas, Buda pensou naqueles que, mesmo pouco numerosos, já estavam perto da verdade e que só precisavam de pequena ajuda para atingi-la. E movido de compaixão, optou, finalmente, por movimentar a roda da Lei (Dharma cakra), ou seja, resolveu pregar a sua doutrina a serviço da humanidade. Tendo resolvido que revelaria o conteúdo de sua experiência do Despertar, Buda refletiu para saber quem seriam as pessoas aptas a ouvir o seu ensinamento. Sua primeira escolha se voltou para os mestres brâmanes com os quais estudara imediatamente após a sua grande renúncia, mas já tinham falecido. Pensou, então, naqueles cinco companheiros, com os quais praticara o ascetismo. Como sabia que moravam no Parque das Gazelas, na cidade de Benares, Buda foi procurá-los, mas os cinco ascetas, vendo-o, sentiram somente desprezo pelo ex-colega das práticas ascéticas, pois ele havia abandonado tais práticas. O Buda, sabendo desses pensamentos, aproximou dos cinco ascetas com tamanho amor no coração que eles ficaram transformados. Inclinaram-se diante dele e,por não soubessem que ele atingira o Despertar, lhe falaram como a um irmão. Buda, depois de ter anunciado a boa notícia do seu despertar, assentou-se e principiou, diante desse grupo, a sua primeira pregação. O conteúdo dessa pregação é conhecido como as Quatro Nobres Verdades.

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AS QUATRO NOBRES VERDADES

A primeira coisa que Buda vai explicar a seus antigos companheiros é esta: nem a vida fácil e luxuosa, como a que vivera na qualidade de príncipe, nem a vida de ascese extremamente rigorosa, que levara com seus cinco colegas, servem para conseguir sucesso na busca espiritual da libertação. Este ensinamento está no âmago do ensinamento budista e é conhecido como o “caminho do meio para chegar ao Despertar”. A essência da sua pregação é as Quatro Nobres Verdades, que podemos resumir da seguinte forma: 1) A vida é sofrimento. 2) Existe uma causa para esse sofrimento; é o desejo. 3) Existe um meio para suprimir esse desejo e, por conseguinte, o sofrimento. 4) Esse meio é o Nobre Caminho Óctuplo. Devido a importância deste ensinamento, vamos repassálas uma por uma, para obtermos uma clara compreensão da doutrina budista.

A PRIMEIRA NOBRE VERDADE "Eis, ó monges, a nobre verdade sobre o sofrimento. O nascimento é sofrimento, a velhice é sofrimento, a doença é sofrimento, a morte é sofrimento, estar unido a uma pessoa que não se ama é sofrimento, estar separado de alguém que se ama é sofrimento, não ter aquilo que se

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deseja ter é sofrimento. Em suma, os cinco agregados de apegos são sofrimento."

A SEGUNDA NOBRE VERDADE "Eis, ó monges, a nobre verdade sobre a causa do sofrimento. É o desejo que produz a reexistência e o redevir, que se acha ligado a uma cobiça exacerbada e encontra um novo prazer, ora aqui, ora acolá, isto é, a sede dos prazeres dos sentidos, a sede da existência e do devir, e a sede da não-existência."

A TERCEIRA NOBRE VERDADE "Eis, ó monges, a nobre verdade sobre a cessação do sofrimento. É a cessação completa dessa sede, deixá-la de lado, renunciar a ela, libertar-se dela, desapegar-se dela."

A QUARTA NOBRE VERDADE "Eis, ó monges, a nobre verdade sobre o caminho que leva à cessação do sofrimento. É o Nobre Caminho Óctuplo, a saber: a reta compreensão, o reto pensamento, a reta palavra, a reta ação, o reto meio de existência, o esforço reto, a atenção reta e a concentração reta." Podemos subdividir da seguinte forma: 1) Conduta ética 1. palavra reta 2. reta ação 3. reto meio de existência

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2) Disciplina Mental 4. esforço reto 5. atenção reta 6. concentração reta 3) Sabedoria 7. reta compreensão 8. reto pensamento

A PALAVRA RETA Os três aspectos do Nobre Caminho que correspondem à conduta ética são, já o vimos no esquema acima, a palavra reta, a reta ação e o reto meio de existência. O sentido da expressão “a palavra reta.” “A palavra reta significa abster-se: 1) da mentira; 2) da maledicência e de toda palavra que possa provocar ódio, inimizade, discussão, conflito entre as pessoas; 3) de toda a linguagem dura, brutal, descortês, malévola ou injuriosa; e enfim, 4) de toda tagarelice ociosa, fútil, vã e tola. Uma vez que alguém se abstém de todas essas formas de palavras falsas e prejudiciais, deve dizer a verdade, deve usar palavras amistosas e benévolas, agradáveis e mansas, que tenham sentido e sejam úteis. Nunca se deve falar com negligência, mas no momento e no lugar convenientes. Quando não se tem nada de útil para dizer, deve-se guardar um “nobre silêncio.”

A RETA AÇÃO A reta ação exige que a vida daquele que pretende seriamente seguir por esse caminho espiritual seja pacífica. Deve abster-se de atos que impliquem em destruição de

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outros seres, o roubo, a desonestidade, as relações sexuais proibidas, etc.

O RETO MEIO DE EXISTÊNCIA O reto meio de existência exige do seguidor de Buda que ganhe a vida por meios retos e honestos. Essas são as três condutas éticas. Os próximos três são parte da disciplina mental (o esforço reto, a reta atenção e a concentração reta). Através da atitude mental correta, o homem torna-se cônscio da sua verdadeira natureza.

O ESFORÇO RETO Trata-se de mobilizar uma vontade energética em vista da purificação do espírito. Existem quatro tipos de esforço: o esforço para evitar, o esforço para superar, o esforço para desenvolver e o esforço para manter ou conservar. O primeiro esforço se dirige contra o aparecimento das paixões. Trata-se de manter em alerta os sentidos contra todo contato que possa resultar em maus atos, daí o enorme esforço para evitar. O segundo esforço é contra as más disposições do espírito que já existem no homem. Existe também o esforço para manter as boas disposições da mente; não só manter o esforço mas desenvolver e intensificar. O impulso desse esforço reto se resume nas palavras seguintes, também colocadas como autoria do Buda: "Na verdade, o discípulo que possui a fé e compreendeu a doutrina do Mestre está completamente penetrado deste

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pensamento: que murchem minha pele, meus músculos e meus ossos, que minha carne, meu sangue se ressequem, se eu abandonar meus esforços antes de ter alcançado (o despertar), por uma perseverança viril, com energia e esforço.” (Majjhina-nikaya)

A RETA ATENÇÃO Reta atenção significa tomar consciência da verdadeira natureza das coisas. Constitui o coração da meditação budista. Pois, se o homem está preso no mundo do samsara, isto é porque ele se considera uma coisa que não é. Não há mais a ilusão de existir um eu substancial. Esta posição está resumida na obra Buddaghosa, o Visuddhimagga: “A dor existe, mas ninguém está aflito. Não existe agente, mas é um fato a atividade. O nirvana é, não há porém sujeito nirvanado. Existe o caminho, mas ninguém envereda por ele.”

CONCENTRAÇÃO RETA A concentração reta consiste em fixar o pensamento num ponto ou num objeto único. Esta atenção se caracteriza pela ausência de distração e pela quietude mental. A concentração reta leva, se o praticante for assíduo aos exercícios, aos quatro estados sucessivos do Dhyana, termo que se costuma traduzir como recolhimento ou êxtase. Ao entrar no primeiro Dhyana, o praticante terá

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desembaraçado seu espírito dos “cinco impedimentos da meditação” (isto é, desejos sensuais, má vontade e ódio, torpor, excitação e remorso e, por fim, dúvidas). No entanto, tem sempre no espírito os poderes mentais de análise e o juízo. Conservam-se também os sentimentos de felicidade e alegria. Suprimindo a análise e o juízo, passa ao segundo tipo de Dhyana, e aí, tendo a mente fixa em um único ponto, a felicidade se intensifica. Quando chega ao terceiro Dhyana, é suprimido o sentimento de alegria, mas ainda persiste a disposição de felicidade. No quarto Dhyana, desaparece toda a sensação, incluindo a felicidade, e somente subsiste a pura atenção. O importante nesse processo ou nesse tipo de iniciativa é que o praticante desenvolva poderes de concentração que lhe permita obter uma clara compreensão do objeto escolhido. Em suma, essa prática, associada aos outros passos, é importante para preparar o praticante para aprofundar a compreensão da verdade e desenvolver sua própria sabedoria. E assim, chegamos ao terceiro elemento do caminho óctuplo.

A SABEDORIA O que abre as portas à clara compreensão da verdade e permite ao praticante progredir no caminho lúdico é “o olhar penetrante” ou a “visão analítica” (vipasyana). Essa visão leva à extinção da ignorância, que é a origem de todo sofrimento. A sabedoria que suplanta a ignorância não é uma espécie de intuição de conteúdo vago e impreciso. Quando os budistas falam da ignorância, referem-se ao desconhecimento das quatro nobres verdades. A clara compreensão dessa verdade é a reta compreensão e o reto pensamento.

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AS FONTES PARA O ESTUDO DO BUDISMO BÁSICO O budismo básico, também conhecido como budismo primitivo, é o conjunto de doutrinas fundamentais do budismo. Chama-se budismo básico porque compreende as doutrinas básicas, centrais do budismo, alicerce e fundamento de todas as escolas e ramificações doutrinárias surgidas posteriormente. É chamado também de budismo primitivo porque compreende as mais antigas formulações doutrinárias do budismo que a investigação histórica consegue reconstituir. Sakyamuni, o Buda histórico, nada escreveu. Deixou a seus discípulos imediatos uma série de instruções orais que foram memorizadas, a princípio sob a forma de versos, e depois sob a forma de discurso em prosa. Os primeiros textos escritos só surgiram após várias gerações. Existem hoje três coleções de textos sagrados budistas: O Cânon Pali, escrito na língua Pali, utilizado pelos budistas do sudeste Asiático; o Cânon Sino-Japonês, utilizado pelos chineses e japoneses; e o Cânon Tibetano, usado pelos budistas Tibetanos. Existem muitos textos avulsos em sânscrito que não chegam a formar uma coleção completa. Essas coleções canônicas são chamadas de Tri-pitaka (três cestos, ou três receptáculos) porque cada uma delas compreende três modalidades diferentes de texto: 1 - Sutra - Pitaka: coleção de Sutras ou discursos doutrinários proferidos pelo Buda histórico Sakyamuni ou por anônimos seguidores em seu nome. 2 - Vinaya - Pitaka: Coleção de regras de conduta e preceitos

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éticos a serem obedecidos pelas comunidades monásticas budistas. 3 - Abidharma - Pitaka: coleção de tratados filosóficos que sistematizam e aprofundam questões esboçadas nos Sutras e no Vinaya. Os textos mais antigos são o Suttanipata e o Dhammapada, ambos pertencentes ao Cânon Pali.

SAMSARA E NIRVANA Aqui é necessário explicar estes dois termos muito utilizados no budismo: Samsara e Nirvana. Bem, Samsara, em japonês, significa rinne ou ruten; literalmente significa "fluxo ou escoamento em círculos". A palavra rinne tem o significado de movimento em círculo e ruten tem mais o significado de escoar, ser arrastado. Segundo essa idéia, todos os seres vivos, inclusive os deuses, se acham envolvidos num incessante ciclo de nascimentos e mortes. Essa concepção é anterior ao surgimento do budismo. É uma concepção da religião hindu predominante na época do Buda Sakyamuni. Segundo essa religião, todos os seres estão presos a um ciclo incessante de nascimento e morte. Nesse encadeamento, sem princípio e sem fim, o ser vivo, conforme a qualidade dos atos realizados durante uma existência dada, renasce em uma situação mais ou menos feliz no decurso de suas vidas ulteriores. Poderá renascer como um deus, como homem, como animal, como espírito maligno ou até nos infernos aterrorizadores. Para essa religião, era necessário celebrar ritos sacrificiais, pois este era considerado um ato bom por excelência e garantiria um bom nascimento. Ora, a eficácia desses sacrifícios dependiam da utilização de

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fórmulas sagradas conhecidas exclusivamente pelos brâmanes. Nesse sentido, o budismo foi uma religião que requestionou e fez severas críticas à religião hinduísta. O Buda deu uma nova interpretação ao conceito de Samsara. Para o budismo, Samsara expressa estados de consciência pelos quais nós seres humanos passamos. São estados de intenso sofrimento dos quais não temos o controle. Na religião Hindu, é dito que podemos transmigrar para seis mundos: Inferno, espíritos famintos, bestas, asuras, humano e celestial. Este conceito também no budismo foi reinterpretado não como lugares reais ou substanciais, mas como estados de consciência que passamos. Buda afirma, com efeito, que é precisamente a ilusão insensata de existir algum atman no fundo do homem que o faz prisioneiro do samsara. É a partir da rejeição do Veda, como meio válido de acesso ao conhecimento que se definem os principais tópicos da crítica que caracteriza o budismo. Dessa forma, a rejeição do veda pode ser assim resumido: 1. Rejeição da idéia de um universo criado e regido pela vontade Divina. 2. Rejeição da desigualdade inata dos homens, expressa na sociedade de castas. Propunha uma sociedade fundamentada na igualdade e fraternidade. 3. Rejeição e crítica das superstições ou crenças irracionais errôneas alicerçadas no egoísmo; magia do Atharva-Veda, artes divinatórias, medo dos mortos, etc. 4. O estabelecimento de uma ética fundamentada na razão

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e não numa pretensa revelação divina. O segundo termo que apareceu foi "Nirvana", em japonês Nehan e significa "Extinção". Expressa o estado de iluminação obtido pelo Buda Sakyamuni. Significa a extinção da ilusão, ignorância e destruição de todo o Karma que causa o ciclo de nascimento e morte.

OS CINCO AGREGADOS A doutrina budista afirma que, em síntese, no homem nada existe que corresponda realmente à idéia de um eu permanente. O que chamamos “eu” é apenas uma combinação de forças ou energia em estado de constante mudança. Existem, segundo a doutrina budista, cinco grupos de forças chamadas de Skandhas (ou agregados). Estes, em resumo, podem ser apresentados da seguinte forma: 1) A corporeidade ou o agregado da matéria: os quatro elementos fundamentais (terra, água, fogo e ar) e a matéria derivada (os órgãos sensoriais e os objetos desses órgãos). 2) O agregado das sensações: toda sensação (agradável, desagradável ou indiferente) que resulta dos órgãos físicos e do órgão mental com seus objetos. 3) O agregado das percepções: as noções de cor, som, odor, sabor, etc. E as imagens sensórias. 4) O agregado da volição ou dos compostos psíquicos: todo ato voluntário, todo impulso, toda tendência. 5) O agregado da consciência ou do conhecimento: os cinco órgãos sensoriais e o conhecimento mental.

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Esses cinco agregados, que constituem uma formação dada, correspondem ao que percebemos como um indivíduo, condicionam-se mutuamente e estão, como toda forma de existência, submetidos a mudanças constantes. O erro fundamental, segundo o budismo, é acrescentar a esses agregados a idéia de um eu permanente que os manteria juntos ou que os governaria por assim dizer – isto é, um eu substancial que existiria independentemente desses cinco skandas. E neste fato, reside a causa do sofrimento, pois é a origem do apego a si. Essa ilusão é a base da cobiça, do apego às idéias e coisas.

YOGACARA OU A ESCOLA DA CONSCIÊNCIA Existe uma escola dentro da tradição budista que enfatizou a prática do Yoga e divulgou o conceito da “SomenteConsciência” (Vijnapti-matrata) ou Yuishiki, em japonês. Essa escola é chamada de Yogachara-escola do Yoga ou vijnanavada (escola da consciência). Ela floresceu nos séculos III e IV, na Índia, e teve como, representante máximo o Bodhisattva Vasubandhu. Essa escola prega que nada existe separado da consciência. A consciência cotidiana divide entre eu e coisa observada fora de nós, sendo duas realidades distintas. Segundo essa escola, todos os fenômenos são emanações de “sementes” armazenadas na Consciência depósito (Alayavijnana). O objetivo básico do budismo é a libertação do sofrimento que foi o motivo básico da renúncia ao mundo feita pelo Buda Shakyamuni. A causa básica do sofrimento, segundo o budismo, são as paixões (tanha em sânscrito – essa palavra no original expressa uma sede insaciável). Paixão significa uma mente

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que tem apego. Na cadeia dos doze fatores da Originação Dependente, temos que a causa primária é a ignorância. Tanto a paixão, o apego e a ignorância são devidos às impurezas da nossa mente que é denominado de Bonno, em japonês, ou Klesa, em sânscrito. As Klesas encobrem a mente e não permitem que tenhamos a Paz interior (nirvana) e nem a sabedoria (prajna). O Buda Shakyamuni descobriu que o apego advém de uma concepção errada do Eu. Ele criticou a idéia hindu vigente que pregava o Atman. Ele pregou o Anatman ou Muga em japonês. Ele negou a existência de um Eu permanente Substancial. Só quando compreendermos que tudo no Universo é impermanente, efêmero, uma cadeia de causas e efeitos sem realidade substancial, e que tudo aquilo que julgamos ser eu é apenas um agregado impermanente, efêmero, não real, só então a compreensão da unidade do todo se dará e, com isso, o dissipar da ilusão. O dissipar da ilusão do eu é o despertar completo, é a permanente Vigilância ou plena atenção. Devido a esta falta de uma mente vigilante, nossa ação é sempre uma reação em função dos desejos. A filosofia budista não nega a existência de um ser, ou de um indivíduo, mas prega que somos um fluxo ininterrupto ou fenômeno de continuidade mental e física condicionado pelo Karma. Como disse o Buda: “O mundo é um fluxo contínuo e em permanente transformação; uma série de causas e efeitos”. A escola da Consciência prega que o eu é uma criação da consciência. Segundo essa escola, eles pregam a existência de oito tipos de consciências. São cinco consciências ligadas aos cinco sentidos, e a sexta consciência está ligada à percepção do Dharma, ou seja, dos fenômenos, corresponde à consciência dos pensamentos. A sétima consciência é chamada de Manas e originalmente significa pensar, medir. A sétima consciência é que cria a consciência de um Eu. Ela toma a oitava

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consciência como sendo o Eu. A oitava consciência é chamada de Alayavijnana ou consciência – depósito onde estão armazenadas todas as vivências passadas, tanto individuais como de toda a humanidade, na forma de sementes (bijas). A relação dessas duas consciências criam a idéia de Eu e de Meu. Segundo esse pensamento, todos os fenômenos são criações da consciência. Tanto o mundo exterior quanto o Eu são produtos das atividades das consciências.

VERDADEIRA ESCOLA DA TERRA PURA (JODO SHIN SHU) Essa escola é muito popular no Japão e faz parte das correntes Amidistas. Foi fundada pelo Mestre Shinran (1173 – 1262). Ele foi um reformador do budismo do período Kamakura. Rompeu com o antigo budismo estatal e ritualizado. Mestre Shinran era filho de Hino Arinori, que pertencia ao clã Fujiwara. Diz-se que a mãe de Shinran morreu quando ele era jovem. Quando tinha nove anos, sob a orientação de seu tio Noritsuna, foi ordenado pelo mestre Jichin, no Templo Shorein, em Kyoto, e recebeu o nome de Hannen. Então foi para o monte Hiei, nordeste de Kyoto, onde estudou o budismo. Depois de vinte anos de estudos e práticas que provaram não possuir efeito para atingir a iluminação, ele deixou a montanha para fazer um retiro de cem dias no Templo Rokkakudo, construído em homenagem ao príncipe regente Shotoku. Perguntava e meditava por um caminho budista correto. No amanhecer do nonagésimo quinto dia, Shinran recebeu em sonho a inspiração do Bodhisattva Kannon. Nessa ocasião, o ensinamento do Nembutsu estava sendo entusiasticamente propagado por Mestre Genku (Honen)

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e Shinran, levado pela inspiração, foi até Genku e sob sua orientação, atingiu a Salvação de Amida. Tornou-se um ardente discípulo de Genku e foi chamado de Shakku. Mais tarde, esse nome foi mudado para Zenshin. Quando a prática do Nembutsu foi proibida, e Genku exilado para Shikoku, em 1207, Shinran foi também perseguido e exilado para Kokubu, na província de Echigo (a atual Niigata). Em Echigo, casou-se com Eshi-ni. Foi perdoado em 1211. Em 1214, aos quarenta e dois anos, deixou Echigo e foi para Hitachi (a atual Ibaragi). Na área de Kanto, ele propagou o ensinamento do Nembutsu entre homens de todas as classes. Após lá permanecer durante uns vinte anos, retornou a Kyoto. A maior parte dos seus trabalhos foram escritos desde então. Faleceu no ano de 1262. O mestre Shinran compôs o Kyo Gyo Shin Sho (Ensinamento, Prática, Fé e Iluminação). Escreveu as três coleções dos hinos (wasan). Deixou também curtos ensaios, em japonês, e suas cartas aos seus discípulos, que foram mais tarde compiladas no Matto sho. O Tannisho é uma coleção de palavras de Shinran, compiladas por Yuien e é um dos livros religiosos mais lidos no Japão. No Tannisho temos: “Quando firmes na certeza de que, salvos pelo Voto de Amida, que escapa ao alcance de nosso pensamento, alcançaremos o renascimento na Terra Pura, brota, em nosso coração, o desejo de recitar o Nembutsu, imediatamente alcançamos a graça de estarmos definitivamente seguros, sem a possibilidade de sermos rejeitados. O Voto Original de Amida não faz distinções entre velhos e jovens, bons e maus; reclama apenas um coração sincero, puro e inabalável. Isso porque é um voto que visa salvar os seres carregados de pesadas culpas e profundo mal, que têm paixões e desejos fortes e resistentes. Assim, para se confiar no Voto Original, não

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são necessárias outras práticas virtuosas, por não haver prática virtuosa superior ao Nembutsu, nem se deve temer o mal por não existir mal que possa obstruir a ação do Voto Original de Amida.” Assim disse o mestre. Nesse texto, fica evidente que a Fé e o Nembutsu são idéias centrais, constituindo os conceitos chaves do Shin Budismo. A Fé implica a confiança na “chamada” de Amida e a mente, abandonando o próprio esforço como fútil diante do Poder Salvador do Amida. Mestre Shinran afirma: “A Fé é a mente que não duvida no Voto do Tathagata (ou denominação de Amida). A nossa dúvida na Salvação de Amida está enraizada na nossa ignorância e no apego ilusório ao eu”. Neste sentido, confiar no Amida só é possível graças à Sabedoria do Buda que nos liberta do apego do eu. Esta Fé, portanto, é considerada como sendo de Amida e não nossa. A prática do Nembutsu, da mesma forma também, é considerada como uma prática do Buda Amida e não nossa, porque o homem é sempre preso ao seu ego. Pronunciar o Nembutsu e confiar no Amida são atos que não são separados. Aquele que confia em Amida, pensa nele, e aquele que nele pensa pronuncia o seu nome. O Nembutsu é a tradução japonesa da expressão sânscrita “Buddhasmriti”, pensar ou manter a mente fixa na imagem de Buda. Exprime a recitação da frase Namu Amida Butsu, que expressa o ato de entrega ou refúgio incondicional do praticante em Amida ou no Absoluto. É a resposta do homem ao chamado do Absoluto, que apela para que ele desperte para o Real. Através dessa resposta, o Absoluto

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e o contingente se fundem num só. Quando falamos em Fé, nos textos do Budismo Shin, referimo-nos a Shinjin. Esse termo é normalmente traduzido como Fé. A palavra fé tem duas palavras no japonês que possuem um sentido aproximado. Uma delas é "Shinrai" e significa confiança. Confiar em algo ou alguém. Outra palavra é "Shinko" e esta tem o sentido de Fé, utilizada nas religiões. No entanto, Shinjin, utilizado por Shinran, tem o sentido do original sânscrito "prasada" , o qual descreve um estado de calma, silencioso, tranqüilo, puro, etc. Temos a expressão Cittaprasada que significa "uma mente tranqüila e silenciosa". Cittaprasada em alguns textos Pali é usada como sinônimo de Samadhi, o estado no qual a mente e o corpo estão calmos, e pode penetrar a realidade ou a verdade. Em outras palavras Cittaprasada é a habilidade de “ver o Buda”.

(Tannisho - cap.1)

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Bibliografia CONZE, Edward. Budismo – sua essência e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. GONÇALVES, Ricardo M.(org.) Textos budistas e zen budistas. São Paulo: Cultrix, 1993. GONÇALVES, Ricardo M. O caminho do despertar. São Paulo: Instituto Budista de Estudos Missionários, 1992. HUMPHREYS, Christmas. O budismo e o caminho da vida. São Paulo: Cultrix. JUNG, Carl G. Psicologia e religião oriental. Petrópolis: Vozes, 1980. GIRA, Dennis. Budismo – história e doutrina. Petrópolis: Vozes, S/D. REVISTA DO INSTITUTO BUDISTA DE ESTUDOS MISSIONÁRIOS. v.1, 1995. SHOSHINGE. Hinos da verdadeira fé e Nembutsu. IN Coleção Jodo Shinshu – Centro Internacional de Hongwanji. Kyoto: Japão. SHIGARAKI, Takano. The buddhist world of awakening. Buddhist Study Center. Honpa Hongwanji Mission of Hawaii, 1982. TANISMO. O tratado de lamentação das heresias. Instituto Budista de Estudos Missionários, 1987.

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Ricardo Rizek Bacharel em História, dedica-se à música desde a infância num aprendizado pontuado por professores particulares, cursos livres e instituições acadêmicas. Lecionou em todas as Bienais Internacionais de Música (ECA-USP) e no Departamento de Música dessa instituição . Foi Professor em Formas de Expressão e Comunicação Artística. Coorganizou o Setor de Música no Departamento de Artes da Universidade Federal de Viçosa-MG, no qual também atuou como professor orientador a nível de pós-graduação. Lecionou Harmonia e Contraponto por sete anos na Fundação das Artes de São Caetano do Sul-SP. Atualmente, professor titular de Composição e Musicologia no Departamento de Música da FAAM-FMU. Vem coordenando vários grupos de estudo e pesquisa no âmbito das Ciências Tradicionais, em especial, aqueles das artes liberais, ou seja, o Trivium e o Quadrivium. Os resultados de tal direcionamento de pesquisa vêm sendo apresentados em palestras e cursos ministrados nas seguintes instituições: a FMU, a Associação Paulista de Medicina, a Associação Paulista de Homeopatia e a Fundação Palas Athenas.

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Sumário para as preleções sobre a Tradição Cristã Ricardo Rizek Para abordar uma tradição, como a tradição cristã, antes de mais nada, precisamos deixar de temer o risco de redundância e percorrê-lo, sempre com a ressalva de que pode ser através do óbvio que, por vezes, encontramos os verdadeiros fundamentos ou princípios que estipulam o pano de fundo indispensável para toda uma ordem de contextualizações as quais, somente assim balizadas, deixam de ser simplesmente apenas dados mais ou menos significativos e adquirem uma maior plenitude de significado e sentido. Dessa forma, o pré-requisito de qualquer abordagem de uma tradição é definir, dentro dos marcos mínimos de uma clareza necessária, o conceito de tradição. Mal enunciamos tal empreendimento e já podemos nos dar conta da dificuldade, pois, afora conotações associativas infantis que relacionam tradição e tradicionalismo, seria impossível uma definição que não se estabelecesse em patamares minimamente metafísicos. Essa imposição é, contudo, a clara colocação de um caminho que, para ser trilhado, exige, da parte de quem pretende realmente percorrê-lo, uma aceitação implícita do que está imposto, ou seja, da Metafísica. Embora possa parecer que estamos simplesmente transpondo a questão, ou seja, substituindo, tautologicamente, a tarefa de definir tradição a partir da definição de metafísica, isto não é verdade, uma vez que esse último termo mantém laços ainda muito vivos e, portanto, presentes, na tradição filosófica ocidental. Sua pista etimológica, mesmo infantilmente banal, configura um ponto de partida mínimo: o que está além da física, isto é, além da fenomenicidade do mundo, ou do que podemos entender

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como realidade exterior e objetiva e, portanto, de sua contraparte interior e subjetiva, ou seja, dos aparatos biológico-sensíveis e tecno-instrumentais que lhe concorrem. Assim, vemos que, seguindo a simples etimologia de uma expressão que nos foi imposta pelo conceito de tradição, fomos obrigados a discernir a existência de, no mínimo, dois patamares de realidade, distinção esta que distendeu-se naturalmente do objeto para o sujeito, uma vez que um além-physis corresponde, forçosamente, em alguma instância, a uma transposição simultânea das faculdades humanas que lhe competem. “Meu reino não é deste mundo”, afirmou Jesus no momento exato em que era julgado por este. Tais mundos receberam diversos nomes no transcorrer da história da filosofia ocidental, para não extrapolar o âmbito da nossa civilização. Não precisamos retroceder muito, nesta história, para reconhecermos o esforço terminológico kantiano que, muito pertinentemente, denominava estes dois mundos respectivamente de fenomenal – o mundo percebido pelos sentidos que fornecem os fenômenos sobre os quais a razão opera posteriormente – e de numenal – objeto de uma intuição racional direta que, segundo ele, captaria o “noumenon”, quer dizer, o puramente inteligível, que, livre das ilusões sensoriais, seria a “coisa em si” ou a realidade absoluta. Assim, em sua “Crítica da Razão Pura”, Kant cogitava a existência de “coisas” que, em sendo somente objetos do entendimento racional, e, no entanto, captáveis por uma intuição, se bem que não pela intuição sensível, seriam denominados de “noumena”12. Quantas implicações poderíamos extrair de uma citação tão breve! Mas em consonância com essa brevidade, destacaríamos o reconhecimento de um mundo inteligível composto de 12

Cf. KANT, E. Crítica da razão pura. Trad. Valério Rhodem, Udo Baldur Moosburger. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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coisas ou “seres” intelegíveis, acompanhado da admissão de uma faculdade humana, tão eminentemente humana que poderíamos defini-la como sobre-humana – a intuição intelectual que reúne, anabasicamente, a universalidade da atividade racional-meditativa com a concretude da percepção direta, análoga ao conhecimento de uma pêra pelo ato de sua degustação, gerando, portanto, uma espécie de “tato espiritual”, uma percepção intelectual tão pura quanto as “Inteligências” por ela percebida. Se a etimologia da palavra metafísica nos deu algumas pistas para uma abordagem do conceito de tradição, podemos, agora, usar este instrumento com o próprio étimo “tradição”. Antes, porém, é importante lembrar que o pequeno jogo etimológico que fizemos com “metafísica”, embora nos tenha sido muito útil e não seja nenhum pouco errado em si mesmo, tem uma validade moderna e jamais grega, uma vez que esta palavra simplesmente não existe em grego. Na verdade, a palavra metafísica surgiu de uma necessidade puramente classificatória de fragmentos de Aristóteles que tratavam de questões que, realmente, abordavam os princípios primeiros mas que, por não terem um nome específico, foram chamados por Andrônico de Rhodes, no primeiro século da era cristã, apenas classificatoriamente, de escritos que sobrevêm ao livro da Física. Se procurássemos um nome mais solidamente grego no seio da metafísica de Aristóteles, esse nome seria, sem nenhuma dúvida “teologia”, nome que faz justiça à tradição e que, quando muito, poderia ser substituído por “filosofia primeira”. Cabe, neste sentido, ressaltar que S. João foi o único dos evangelistas que veio a ser chamado, pela tradição, de teólogo, porque foi o único que teologizou no seu evangelho, enquanto os outros três são mais narrativos e lineares. Esta é uma das razões de o esoterismo cristão ser designado como joanino. Parece pertinente observar que a raiz latina da palavra tradição, “transducere”, é a mesma de tradução, ambas

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trazendo etimologicamente a mesma idéia de transmissão, processo que pode dar-se de um lugar a outro, de uma língua a outra, ou de um tempo a outro. No entanto, no que diz respeito à Tradição, como também à tradução, isto nem sempre pode ocorrer de maneira estática, linear e literal, pois neste processo algo deve ser abandonado e superado (em última instância, sua forma anterior) para que algo possa ser preservado e atualizado. Neste sentido, tradução e tradição envolvem, necessariamente, uma intelecção particular, uma exegese, num processo sempre dinâmico e dialético. Somente assim, torna-se possível conceber uma transmissão não apenas nos planos espacial, temporal ou lingüístico, mas especialmente de um nível de realidade a outro, de uma tradição a outra (a este respeito, lembremos que, quando um mito utiliza momentos seqüenciais temporais, normalmente assim o faz para transformar em narração um encadeamento vertical, uma ordem hierárquica de níveis de realidade; é nesta medida que devemos entender, por exemplo, a derrota de Cronos por Zeus, o roubo do cetro deste último por Hermes, e assim sucessivamente). Nessa breve peregrinação, que nos foi exigida pela necessidade de um pano de fundo – identificado aqui com a própria definição do conceito de tradição – atingimos um pequeno resultado que já nos permite, numa sintaxe mínima do real – e válida tanto para a esfera da realidade objetiva quanto para a da subjetiva –, uma afirmação de princípio: “ Há duas naturezas: uma de ordem física e outra de ordem metafísica; há a natureza mortal e a dos imortais; há a região superior do ‘ser’ e há a inferior do ‘devir’; por fim: há um visível e um tangível e, antes e para além dele, há um invisível e um intangível como supramundo, princípio e vida verdadeira”.13 13

EVOLA, J. Revolta contra o Mundo Moderno. Trad. José Colaço Barreiros. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989. p.23.

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Até aqui, o patamar metafísico que nos foi exigido em busca de uma definição de tradição não nos permite diferenciar os dois conceitos. Tradição e Metafísica parecem envolverse numa mútua implicação; e de fato isso acontece. Porém, tudo mudaria se abandonássemos, por um momento, o caráter universal do conceito de tradição em direção a um mais particular; e uma mudança análoga se daria no conceito de metafísica. Podemos tomar a palavra tradição num sentido mais etnológico. Tal direção nos leva às tradições, entendidas como manifestações particulares do conceito universal e geral de tradição. Neste sentido, a especificidade de uma tradição particular configura uma tonalização, uma modulação que não somente particulariza como também concretiza a universalidade e a generalidade da Tradição. Torna-se evidente que a manifestação particular e concreta de uma tradição específica nos dá uma noção de contigüidade hierárquica suficientemente direcional: uma vez que Tradição e Metafísica se implicam mutuamente, uma tradição não pode abarcar a Metafísica, mas sim compreendida por esta. E se, por outro lado, direcionássemos a metafísica para a particularidade de uma doutrina metafísica específica, obviamente esta última não poderia abarcar a Tradição, mas seria compreendida por ela. Após este resultado, que não ilude sua excessiva abrangência, nem sua decorrente parcialidade, podemos combiná-lo com o fundamento do engano simplista que associa tradição e tradicionalismo. O fundamento desse erro, que o explica em sua raiz, é a própria idéia de manutenção, ou seja, o manter ou reter de algo que foi recebido e que, dessa forma, perdura. Claro que já sugerimos, suficientemente, que a forma de tal manutenção muda significativamente, sendo que o tradicionalismo aspira a uma manutenção literal e exterior, sem discernir a diferença entre um fragmento da verdade e a totalidade

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desta, enquanto que a tradição enseja, quando necessário, a superação do que se cristalizou como verdade parcial, sempre em nome de formas mais vigorosas de tradução da verdade total. Este procedimento da tradição, que nunca é o do tradicionalismo, também é uma mensagem concreta que foi e é transmitida tradicionalmente por histórias, lendas, mitos e até mesmo por fatos históricos, desde que transpostos para sua realidade simbólica que, para a tradição, é sua verdadeira realidade. Em diversos mitos, por exemplo, o herói, que é uma estirpe que está abaixo da dos proto-homens – os titãs – somente ao não reproduzir, e até certo ponto negar, o procedimento de um titã, que se confrontou com uma situação análoga, redime a si mesmo e ao titã em questão. É assim que Héracles liberta Prometeu de seu agrilhoamento à pedra e o reconcilia com o Olimpo, ou seja, com o elemento divino. É assim também que o rei Artur, um rei herói, vencendo a tentação de reproduzir seu pai, o titã Uther, faz de Uther e de si mesmo um grande rei. A superação de um fragmento enrijecido de verdade que liberta a verdade total para uma renovada atividade intrínseca desta é a mesma mensagem que se configura na morte do que é mortal para que a imortalidade se realize. É por isso que, quando Héracles incandescia tragicamente no pico do monte Eta, Zeus, seu verdadeiro pai, feliz, podia exclamar: “A parte imortal de Héracles libertou-se da morte, e em breve poderei acolhêlo nesta região bem-aventurada”. Quantas semelhanças, sempre respeitando as significativas diferenças, podemos encontrar com a própria história de Jesus!, o hierofante que, na sua própria oferta sacrificial, se entrega à morte para, ao libertar-se, libertar toda a humanidade. Superar um fragmento, que nega a verdade, por e para uma verdade, que, em sua totalidade, compreende aquilo

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que antes a negava, é um tipo de procedimento dialético muito especial: uma dialética simbólica. Seu ápice sintético foi denominado por Hegel “aufhebung”, palavra alemã que significa, simultaneamente, superar e conservar o que foi superado. A síntese na dialética simbólica é Aufhebung, ou seja, ao mesmo tempo que supera a oposição da tese e da antítese, conserva-as, tensionalmente opostas, em seu interior. Hegel conduziu Heráclito de Éfeso às últimas conseqüências. No famoso fragmento heraclitiano discutido no terceiro discurso do “Banquete” de Platão, “a unidade, ao discordar de si mesma, concorda consigo”. Erexímaco explica-nos que Heráclito está afirmando que a harmonia não somente resolve a desarmonia – desarmonia que clamava ser resolvida pela harmonia que ela mesma prometia – como a sustentava em seu seio. Podemos concluir que pólos tensionalmente opostos produzem convergência, mas, uma convergência que só continuará a existir se as balizas que estavam opostas permanecerem, de certa forma, opostas. É evidente que a forma de manutenção, que, longe da literalidade, procede dinâmica e, dialeticamente, é a verdadeiramente tradicional. Assim, a Tradição ao transformar Metafísica numa doutrina metafísica, também transformando-se numa tradição específica, consegue traduzi-la no tempo e no espaço sob a forma de uma manutenção, que perdura, enquanto uma cadeia de transmissão regular, a qual necessariamente frutifica para todos os níveis de participação que possam existir, enquanto diversificação dos seres humanos. Estes últimos encontram nela os meios suficientes para realizar seus objetivos cósmicos e metacósmicos, tão diversificados quanto as indefinidas modulações individuais, sociais e comunitárias possam ser. Neste sentido, tal como uma tradição específica, não poderia existir sem a antecedência lógica e ontológica da Tradição, esta também está na dependência de uma tonalidade particular que seja

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adequada a um tempo, um lugar e uma comunidade concreta, pois seu maior objetivo não poderia deixar de ser a “eceidade” eterna de cada ser humano, sua alma individual, sua personalidade metafisicamente concebida, em suma, as pessoas. E por mais que a Tradição compreenda uma infinidade de aspectos suprapessoais, como de fato obrigatoriamente os compreende, estes, ainda assim, são ofertados ao homem, porque ele é o ponto de tangência entre o metacosmos e o cosmos. O homem é o “ponto impróprio” onde, no finito, essas duas paralelas se encontram (enquanto que Deus é o “ponto impróprio” no qual todas as paralelas se encontram no infinito). Ele, o homem, é o representante do metacosmos em relação ao cosmos, e é o representante do cosmos em relação ao metacosmos. A Tradição, e com ela cada tradição, é, e não poderia deixar de ser, um todo orgânico. Dessa forma, ela reconhece no ser humano um todo orgânico. O homem pode tornar-se o que de fato ele é, somente por aquela que, em sendo um todo orgânico, o reconhece, à revelia das pseudoparcialidades humanas cristalizadas, como de fato ele pode ser, um todo orgânico. Uma tradição não pode viver se o homem todo não viver por ela, nela e para ela. É a verdadeira natureza humana que determina se uma tradição viverá ou perecerá, na medida em que só a natureza humana é capaz de conservá-la viva. E a recíproca também é verdadeira: a humanidade sem a Tradição, ou uma comunidade sem sua tradição específica, se não está fadada a um extermínio literal, fica reduzida à desesperança daquela “vida” enquanto contínuo morrer no decurso da vida humana, uma vida que não passa de morte. Em João 10,10 Jesus diz: “Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância”. É esta vida que a tradição nos oferta: uma vida que, através da tradição, pode tocar-nos como um sopro de vida eterna. Tal toque é

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plenificador de nossas vidas, que passam, a partir dele, a ser livres. Liberdade e destino se unem e conferem sentido e significado às nossas vidas. E na, e para além da, curta existência humana terrestre, os seres humanos, que se tornam verdadeiramente plenificados, retribuem vida com vida. Dão vida à Tradição, constituem a própria presença concreta desta, sustentando-a, mantendo-a, conservandoa, forjando-a, e retroalimentando a própria cadeia de transmissão regular que os alimentou. Porém, esta interdependência entre humanidade e Tradição, ou entre uma comunidade – e até mesmo uma cultura e civilização – e uma tradição, é uma espécie de segredo que só se efetiva, como uma verdadeira realidade, quando é plenamente realizada no único campo pertinente de tal realização, ou seja, no âmbito da vida íntima, espiritual e esotérica da alma individual de um ser humano. O resto é barulho, pois “a porta é estreita”. Acreditando que, dentro de uma insuficiência cabível para um sumário, esclarecemos alguma coisa do que entendemos como nosso imprescindível pano de fundo, podemos agora abordar algo de nossas ordens contextuais, começando pelos antecedentes histórico-tradicionais do cristianismo. “Vejo os homens como árvores que andam”. 14 Tal declaração, de um homem, no momento em que foi curado de sua cegueira por Jesus, sintetiza, entre várias outras analogias, perfeitamente pertinentes e possíveis, uma empatia entre a Tradição e o homem. O homem é, em princípio, uma árvore cuja raiz, sua cabeça, está no Céu, da qual tronco e ramos, seus membros, distendem-se em

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Idries Shah, Los Sufies, op. cit., p. 178.

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direção à Terra. A Tradição Universal, a Grande Tradição, também. A partir de sua raiz celeste despontam grandes troncos, dos quais despontam ramos e, destes últimos, galhos, e assim sucessivamente, que se distanciam gradativamente da Tradição supra-histórica e metageográfica – distanciam-se enquanto viabilizam-na; ou ainda, distanciam-se para viabilizá-la – em direção a imersões contextuais que buscam, em última instância, teofanizar o mundo, até em seus mínimos detalhes. Um destes grandes troncos acima mencionados é corretamente denominado abrahâmico. É a partir dele que despontam as três tradições abrahâmicas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Talvez por uma fatalidade entrópica, o ensejo teofanizador do mundo, embora seja a razão de ser da vertical comunicativa, que descende da grande Tradição em direção às tradições, não é o único fator a acompanhar este processo. Sem dúvida, a teofania é uma transmissão vertical neguentrópica que pressupõe a simultaneidade de um acordo entre o que está em cima e o que está em baixo. Mas esta vertical é cortada por uma outra vertência – esta, horizontal – que determinará toda uma ordem (talvez uma desordem) de efeitos colaterais. Enrijecimento, cristalização, fragmentação, entre vários outros, são alguns dos sintomas que surgem a partir da interferência ruidosa da vertência horizontal sobre a transmissão vertical (notese que já podemos ver, aqui, um dos vários aspectos do simbolismo da cruz). É dessa forma, que as imersões contextuais teofanizantes se transformam, gradativamente, em imersões alienantes; e as religiões passam a ser exclusivistas, quando não ideologizadas, psicologizadas e desatualizantes, ou seja, simplesmente profanas. Assim, a verdade, fragmentada em teses religiosas exclusivistas, determinadas pelas circunstâncias mental e moral, acaba por não ser mais vislumbrável e, por fim, quase que completamente obstacularizada.

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Tendo localizado o cristianismo como uma das três tradições abrahâmicas, podemos, agora, adentrar com mais detalhes, seus enlaces históricos e tradicionais. O cristianismo destaca-se de suas duas irmãs, entre outros fatores, por uma muito especial fusão doutrinal que se dá no próprio corpo de sua revelação: o Evangelho, segundo S. João, é uma fusão do hebraísmo e do helenismo (recordemos que o esoterismo cristão é joanino). Assim, na doutrina cristã, podemos encontrar o traço fundamental do hebraísmo, assentado nas diversas fases desta revelação profética, e o traço fundamental do helenismo, particularmente na perspectiva ineditamente moral realizada no platonismo. O traço, quiçá, mais decisivamente marcante do hebraísmo, encontra-se na perspectiva de redenção messiânica do universo. Nessa perspectiva, a falha humana, quando comunicada ao cosmos, caracteriza uma doença universal para a qual está prometida uma cura. Esta, enquanto promessa, constitui-se num processo cujo ponto culminante é a vinda do Messias – para os cristãos Yeshua (Jesus), literalmente, em hebraico, o curador (sendo que Messias em grego é Cristo). Se o “mal” é comunicado ao mundo pela queda do homem, a recíproca de tal processo, a cura espiritual do homem redimiria o universo. Em síntese, na visão judaico-cristã, o mundo está doente, esta doença tem cura, e não há libertação real que também não liberte a totalidade da manifestação do mal que lhe aflige. A este respeito, observemos o que escreve São Paulo (Rm 8,19-63): “Pois a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus. De fato, a criação foi submetida à vaidade – ... – na esperança de ela também ser libertada da escravidão da corrupção para entrar na glória dos filhos de Deus”. Já pelo lado da influência grega, frente ao pano de fundo de uma filosofia esteticista – com um de seus pontos culminantes nos sofistas – o platonismo estabeleceu um

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contraponto que, sem deixar de reproduzir aquilo que aparentemente repudiava, pretendia mais equilibrar do que subordinar o domínio do discurso – a filosofia enquanto técnica filosófica (identificada com a retórica) – com a metafísica, e mais propriamente com uma metafísica crivada pela ética. Na perspectiva ética, que advém com Platão, a realidade transcendente ou imanente do Ser em si é transplantada para uma noção também metafísica, mas que, não estacionando no Ser, dirigi-se para o valor supremo: o Bem. Como este mundo, no qual vivemos uma vida aparente, participa do Bem mas não é o Bem, este último pertence a outro mundo, governando, como Forma suprema de todas as Formas (Idéias), o mundo das essências. Assim, histórica e tradicionalmente, a herança helênica, direcionada pelo platonismo, determinaria uma transformação na hermenêutica que o cristianismo realizaria no próprio hebraísmo, uma vez que, como nos lembra o maior tomista do século XX – Étienne Gilson – antes mesmo que a definição grega do Ser em si fosse, de uma forma documental, formulada – noção metafísica que Platão transporia para a do Valor Supremo, o Bem – Moisés já a propunha –, afirmando a existência de um só Deus perfeitamente identificado com o Ser, na própria colocação revelada que Deus mesmo lhe comunicava:“Eu sou aquele que sou”, fórmula dinâmica que seria irresistivelmente traduzida pelos gregos como “Eu sou aquele que é”. O Bem pôde ser lido pela perspectiva judaico-cristã como sendo a noção filosófico-abstrata da realidade concreta do Amor. Portanto, a hermenêutica que a cristandade realizou da herança helênica parte, como não poderia deixar de fazê-lo, da idéia de dois mundos, não apenas para superprivilegiar o superior em si mesmo, mas para também enfatizar que eles se tangenciam na relação, ou seja, no encontro, ou ainda, no Amor: no Amante que ama, no Amado que ama e no Amor de ambos que ama,

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concepção tri-unitária, que é um harmônico da trindade, tri-unidade que ressoa e é consonante com princípios análogos em outras tradições (ressalvando, evidentemente, as peculiaridades enfáticas de cada tradição, dentre as quais poderíamos destacar, na trindade cristã, o fato de esta ser composta por três Pessoas). Este aspecto relacional será traduzido, perfeitamente, pelo conceito joanino de que Deus, antes mesmo de ser o Ser em si, é Amor, a realidade forjada na relação, e somente na relação. Deus, neste sentido, deve ser entendido como um Deus pessoal, particularmente na mediação realizada pelo Filho, através do qual podemos contatar o Pai. O Amor é o ponto de tangência entre os mundos. Na versão grega do Novo Testamento, duas palavras são usadas para amor: agape e philia. Agape é usado para o amor divino, mas também para o amor do homem para com o homem e do amor do homem para com Deus. Quando Pedro pergunta se Jesus o ama, a palavra usada é philia. Jesus responde afirmativamente, mas com a palavra agape. Agape é a essência da relação entre Jesus e João; João, que colocou a cabeça no peito de Jesus e ouviu o coração do Mestre. No “Tratado sobre o Evangelho de São João”, Santo Agostinho evidencia que Pedro é o que mais ama, embora em um certo sentido de amor, enquanto João é o mais amado. Agostinho conclui que o amante Pedro e o amado João correspondem à vida exterior e à vida interior da Igreja, ou seja, ao exoterismo e ao esoterismo cristão, um ponto de vital importância que necessitamos adentrar. Já afirmamos que o transcodificador do metacosmos no cosmos, e vice-versa, é o homem, ou seja, o microcosmos. Ele é, portanto, o campo divinamente humano e humanamente divino (o criado que cria, a criatura) onde se pode dar tal ponto de tangência entre os mundos. Ele é o enviado para o macrocosmos pelo metacosmos. Porém, da mesma forma que ele sintetiza em si mesmo o encontro

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entre os mundos, necessariamente há nele uma capacidade análoga que realiza, microcosmicamente, o ponto de tangência, dos correspondentes internos destes mundos, dentro de si. Dessa forma, sendo o homem o enviado para o macrocosmos, assim ele o é – ou em sua realidade empírica, pode tornar-se –, porque há nele um enviado do metacosmos para o microcosmos. O nome deste enviado varia conforme a perspectiva de sua percepção: Intelecto (o nous platônico) ou Amor. O símbolo para ambos é o mesmo: o coração. Claro é que, embora interpenetrantes, temos aqui duas visões que também são suficientemente distintas. A primeira é gnóstica, e vê neste coração, concebido, evidentemente, como órgão sutil, resplandecência, ou seja, seu lado luminoso. A segunda é “bhakti” (clássico termo sânscrito que designa a mística devocional e parece-nos mais adequado, porque menos corrompido, do que conota, hoje, a palavra “mística”, dado o grau de sua degenerescência pseudo-esotérica), a via amorosa de união com a divindade pessoal, e vê, neste mesmo coração, ardência, ou seja, seu lado calorífico. É assim, então, que temos a mais importante e significativa de todas as proporções (lembremos que proporção é analogia e analogia é símbolo): o coração está para o homem assim como o homem está para o universo. Nem é preciso lembrar o quanto o simbolismo do coração é importante em todas as tradições. Evidentemente, ele tem uma especial importância no cristianismo, pois, o coração de Jesus é o coração do segundo Adão, ou seja, do Homem universal regenerado. O coração de Jesus comporta o duplo aspecto que mencionamos acima: luz e calor. Luz, para a gnose cristã, e calor, para sua “mística” devocional. Porém, antes que abordemos essa divisão, é necessária uma breve digressão sobre o caráter mais geral da polaridade esoterismo-exoterismo.

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Quando descrevemos acima a vertical descendente, que conduz a grande Tradição em direção a uma tradição específica, definimos tal rumo como uma rítmica de imersões contextuais crescentes. Tal ritmo é o próprio ritmo ideal do manifestar a manifestação. Novamente, estamos reincindindo na polaridade ontológica PrincípioManifestação, os dois mundos que já mencionamos no início deste texto. O princípio supremo, a suprapessoalidade absoluta da suprema Realidade, ou Deus em Si-mesmo, congrega indiferenciadamente dois aspectos (que só são vistos como dois desde o nosso ponto de vista, uma vez que são indistintos em tal Realidade): absoluto e infinito. A absolutez do princípio supremo é absolutamente transcendente, é o Si-mesmo inefável e suprapessoal, simbolizável geometricamente pelo ponto, uma vez que simbolizar o não-simbolizável é correr o risco da representação menos inadequada, sendo a mais adequada uma não-representação. É no ponto que uma reta virtual indissocia absolutez e infinidade; mas, a partir de um olhar doutrinal ascencional humano, os termos que estavam indistintos passam a ser discerníveis. Conjuntamente com tal distinção desponta, a partir do ponto, uma reta cuja horizontalidade significa sua pertinência, ainda não comunicativa, ao campo divino em si mesmo. Essa reta, que sendo atual em si mesma se mantém virtual frente à realidade do ponto, compreende uma outra – agora, vertical e, portanto, comunicativa – também atual em si mesma e virtual frente à primeira. Esta vertical comunicativa emana da infinidade principial, pois, segundo Frithjof Schuon: “a infinidade exige, por sua natureza, de certa forma transbordante, a expansão universal, enquanto a absolutez, pelo contrário, exclui, por definição, todo desdobramento e toda diversificação”.15 15

SCHUON, F. O Esoterismo como princípio e como caminho. Trad. Setsuko Ono. São Paulo: Pensamento, 1985. p.14.

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Assim, a infinidade é o meio pelo qual o absoluto se dirige para o relativo, ou seja, para o indefinido; a Potência tornase possibilidade e a Verdade verossímil; é o meio pelo qual o relativo participa da absolutez, fazendo, ao mesmo tempo, com que a relatividade seja sempre relativa e não absoluta. Na rítmica descencional, que visa manifestar o princípio, a lei da manifestação impõe-se, e o princípio – que permanece uno em si mesmo – polariza-se, dualiza-se, ao manifestarse. Com essa mesma estrutura dá-se a passagem da Tradição para uma tradição particular e concreta. Dessa forma, a Tradição submete-se sacrificialmente à tradição que, enquanto manifestação específica daquela, polariza-a em dois aspectos fundamentais: o esotérico e o exotérico, duas dimensões incomensuráveis que se opõem num determinado nível e se complementam em outro mais abrangente (na verdade, opõem-se para, heraclitianamente, complementarem-se). O esoterismo é a dimensão interior de uma tradição que, tal como topo de uma montanha – topo este que necessita de uma base para ser sustentado enquanto tal –, é sustentado, no mundo inferior, pelo exoterismo, ou seja, a distensão horizontal e exterior da mesma tradição (recordemos que essa contigüidade hierárquica, onde o exoterismo antecede o esoterismo, se inverte quando a enfocamos de cima para baixo). Na tradição hebraica, quando Moisés desce do topo do Sinai trazendo a revelação, encontra seu povo dividido frente à adoração do bezerro de ouro. Imediatamente, conhece a inexorabilidade da necessidade de dividir a tradição em duas facetas opostas e complementares: entrega a lei escrita e exterior para Aarão, reservando aos que permaneceram fiéis à transmissão oral e direta da dimensão interior e secreta da revelação. Eis aqui um exemplo suficientemente claro da contingência da polarização esoterismo-exoterismo.

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Há, assim, um esoterismo e um exoterismo cristão; uma Igreja interior, ou a vida interior e secreta (a mesma raiz etimológica de sagrada) da Igreja – a de João, e uma Igreja exterior, ou a vida exterior e regulamentadora da Igreja – a de Pedro. Vários episódios simbólicos retratam essa divisão. Narraremos, agora, dois deles: Pedro, o que mais ama, que vai ao Santo Sepulcro junto com João, é o primeiro a chegar ao portal, mas o primeiro a atravessá-lo é o discípulo mais amado, João. Eis a exegese de Erígena, grande irlandês do renascimento carolíngio: a razão é a faculdade humana que conduz até o portal, mas é a intuição quem o transpõe. No primeiro encontro que ambos, Pedro e João, têm com Jesus ressuscitado, embora nenhum dos dois o reconheça a princípio (o que é muito significativo), passado algum tempo –, é João quem o reconhece, enquanto Pedro, em pânico, atira-se ao mar. Infelizmente, essa inexorável polarização insere-se na dinâmica entrópica cósmica e histórica cuja lei determina o devoramento dos aspectos interiores pelos exteriores. Tal lei advém da intervenção nefasta da vertência horizontal que, como já foi comentado acima, modifica a vertical comunicativa enrijecendo gradativa e crescentemente a exterioridade, obliterando a dimensão interior. Não é preciso dizer o quanto essa dinâmica é importante para um diagnóstico analítico dos fatores intrínsecos que conduziram o cristianismo para o seu atual estado juntamente com toda a civilização que se autodenominou cristã. Porém, acusar a entropia é fazer uma acusação excessivamente genérica. É evidente que ela é, talvez, a razão mais importante, mas sua amplitude também diagnostica a decadência de todas as tradições, e não especificamente a do cristianismo. Dessa forma, a decadência da civilização cristã, vista pela ótica do cristianismo, exigiria um maior nível de detalhamento.

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Devemos distinguir dois tipos de esoterismo: um esoterismo absoluto que, na polarização tradicional – que comentamos acima –, distingue-se claramente do exoterismo com o qual se relaciona, e um esoterismo relativo que, exatamente por sua relatividade, redunda, por vezes promiscuamente, em formas “mesotéricas” que não deixam claras as linhas demarcatórias entre sua dimensão interior e seu exoterismo. Martin Buber, em “Eu e Tu”, ao diagnosticar o budismo em um de seus exemplos, insiste que Buda não se propunha a ensinar uma doutrina, mas um caminho. Talvez esta seja uma pista para a compreensão do papel mesotérico que, na expansão do budismo pela China, este viesse a cumprir uma função intermediativa, sem dúvida solicitada pelas circunstâncias, entre taoísmo e confucionismo. A este propósito, René Guénon, em “A Grande Tríade”, lembra-nos que quase todas as histórias de ensinamento do budismo chinês são, na verdade, taoístas16. Vemos, neste exemplo, que quando o que está sendo proposto, enquanto tradição, se pauta como um caminho, portanto enxuto doutrinalmente, é porque está pressuposta tanto uma doutrina já formulada, no caso a do hinduísmo, quanto aquela a ser formulada pela própria rítmica da transmissão tradicional (observemos que o núcleo esotérico do hinduísmo considera Buda como o avatar da era sombria, um avatar para os nossos tempos). Merece nossa atenção o quanto este exemplo recorda o caso do cristianismo! “Não há esoterismo sem exoterismo”, insiste Guénon, em praticamente toda sua obra, enquanto porta voz da 16

GUÉNON, Paulo:

R.

A grande tríade. Pensamento,1990.

Trad.

Daniel

Camarinha

da

Silva.

São

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Tradição, da mesmo forma que, num exemplo já citado, não pode haver cume de montanha sem as camadas inferiores e intermediárias desta. Claro que esses termos podem ser invertidos, pois uma forma exterior, somente assim o é, enquanto forma exterior de um conteúdo interior. Mas, neste nosso mundo-mentalidade aparente e, de certa forma, ilusório, a vida interior só pode desenvolver-se de sua latência para um grau de patência se este desenvolvimento for sustentado pela vida exterior. É assim que a composição ontológica humana, vista na ótica deste mundo, demonstra que o espírito necessita da alma e esta do corpo. Jesus, através dos quatro evangelistas (ou seriam os evangelistas através de Jesus?), fala significativamente sobre doutrina, mas quantitativamente pouco. Fala com eloqüência quase silenciosa de comportamento e conduta, mais do que dando exemplo, sendo-o. Não tem nada a dizer sobre cosmologia a não ser implicitamente, como no caso da morte da figueira. Jesus veio mostrar um caminho. E a doutrina? Está no background hebraico e helênico, e a ser, como de fato o foi, constituída no seio da rítmica da transmissão tradicional. Quão vã é a proposição protestante de ficar somente com o núcleo evangélico. Uma tradição não se esgota em sua revelação, nem no que a precede, mas se realiza, sendo forjada e constituída, também no que a sucede. Uma doutrina constitui-se também no transcorrer dos elos da corrente que a tradição engendra. Com a confiança de quem anunciava o final dos tempos, Jesus veio ensinar um caminho. Pedro entendeu este ensinamento como um esoterismo dentro do exoterismo judeu. Tanto é que, no primeiro concílio da história da Igreja, acusa Paulo de cristianizar gregos – pagãos – sem antes os circuncisar. Paulo entende

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que não tem sentido impor a lei de Moisés para pagãos que já possuem uma lei análoga, ou seja, já têm um exoterismo suficiente. Paulo entende que a mensagem revelada no Novo Testamento é diretamente esotérica e que este esoterismo, de tão puro, é perfeitamente pertinente a outros exoterismos de outras tradições. Ele entende que a cristianização é uma circuncisão no espírito que dispensa a circuncisão da carne. A posição de Paulo venceu historicamente; e a história não discute com a história. Mas, hoje, estando o ciclo praticamente fechado, podemos e devemos, filosoficamente, discutir a questão. Como esoterismo dentro do judaísmo, o cristianismo é um escândalo esotérico, pois a mensagem revelada no texto evangélico carece de velamento. As revelações em livros sagrados são todas exotéricas, ficando o esoterismo a cabo da hermenêutica profética. Esta tem como missão a realização de uma passagem dos conteúdos subjacentes velados do estado de potência para uma plena atualidade. O ciclo da hermenêutica profética é o próprio ciclo vital de uma tradição revelada, e não poderia ser diferente com a tradição cristã. Clemente de Alexandria, Orígenes, Dionísio – o Areopagita, o pseudo-Dionísio, Scotus Erígena, Mestre Eckhart, Nicolau de Cusa, Jacob Boehme, Angelus Silésius, entre vários outros, demonstram claramente isso, ou seja, onde quer que a gnose – que não é outra senão o próprio esoterismo em si mesmo que mencionamos acima – tenha se manifestado como gnose cristã, a hermenêutica deu provas de sua vitalidade. Porém, uma importante ressalva é necessária: no texto evangélico, diferenciando-se das duas outras tradições abrahâmicas – onde a mensagem direta é exotérica, sendo a esotérica indireta por ser universal e supraformal –, a mensagem direta é relativamente esotérica, articulando o esoterismo relativo que comentamos acima. O supraformalismo quase explícito do cristianismo acabaria gerando um mesoterismo que, por sua vez, redundaria em

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um bhaktismo generalizado que, propenso por suas características excepcionais, tenderia ao sentimentalismo que neutralizaria a influência da gnose. Nessa mesma trilha, o voluntarismo sentimental, de cunho individualista, teria que ser pendularmente compensado com o enrijecimento de uma casta sacerdotal. Essa casta, tentando regular a própria hermenêutica, acabaria mantendo relações cada vez mais tensas com a gnose cristã, gerando uma tensão maior que a habitual entre exoterismo e esoterismo. Com a gnose cristã em baixa, embora ainda não aniquilada, restava a possibilidade de um esoterismo, relativamente limitado, que consistia nas iniciações artesanais, que não comentaremos neste sumário. Por fim, tendo o cristianismo sacralizado, sem dúvida, algo do império romano – o latim, algumas de suas instituições, etc., o mundo cristão também teria alguns de seus aspectos profanados por ele. Já em Paulo, podemos encontrar o protesto de ver cristãos decidindo disputas sobre propriedade privada à luz do direito romano; algo de vergonhoso entre aqueles para quem havia sido anunciado o final dos tempos. Já no final deste processo de corrupção, Dante, comentando o que ele entendia por seu início, lamentava que Constantino tivesse doado sua fortuna para o Papa, não porque a tivesse doado, mas por este tê-la aceito. Porém o diagnóstico insinuado por Dante amplia o horizonte da tensão entre esoterismo e exoterismo. Tal amplitude atinge dimensões sociológicas uma vez que abrange as relações entre duas castas: a sacerdotal e a real. Sabemos que, em princípio, essas duas castas correspondem respectivamente a dois poderes: o espiritual e o temporal. Sabemos também que, numa civilização tradicionamente normal, o poder temporal está subordinado ao espiritual. Finalmente, sabemos ainda que a casta sacerdotal, no

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exercício do poder espiritual, deveria deter a salvaguarda do esoterismo. No entanto, a maioria de nossas análises, nos parágrafos anteriores, embora não constituam uma negação absoluta dessas últimas afirmações de princípio, não apontam nessa direção. Essa também não é a direção que insinua Dante, um dos baluartes do esoterismo cristão. Dentro da civilização medieval cristã, essas duas castas configuraram duas formas e coragem de ser radicalmente diferentes, conforme a vertência tradicional que cada uma delas espelhava. Cada uma delas realizava uma leitura peculiar do cristianismo e, portanto, do próprio Cristo. Claro que houve momentos de relativa harmonia entre essas duas perspectivas , porém as tensões subjacentes, inéditas no mundo da Tradição, estavam destinadas a uma eclosão irremediável. A rítmica de tal destinação teve seu tom dado não pela função temporal da casta real, casta que Dante, de certa forma, inocenta ao inocentar Constantino, mas na atração corruptora, que as condições históricas tornaram irresistíveis, que o poder mundano exerceu na casta sacerdotal. Essa gravitação crescente para o exercício do poder temporal degradado, acabaria por direcionar, gradativa e inexoravelmente, a transformação da casta sacerdotal em uma burocracia, cuja estrutura de poder, visando perpetuar riquezas e privilégios, tomou o celibato, que por si tem fundamento na tradição cristã, como refém. Dessa forma, a casta real, cujos fundamentos tradicionais em perspectivas de civilizações guerreiras antecessoras ao próprio cristianismo – inclusive, neste caso, a fundamentação no próprio Império Romano – sem deixar de padecer uma corrupção que não lhe era intrínseca, acabou sendo chamada, em seus setores esotericamente mais ativos, a compensar a degenerescência da igreja burocrática, em nome da sua interpretação do cristianismo, uma interpretação guerreira de matiz indo-européia. Nesse sentido, cabe lembrar o surgimento de lendas medievais que, contrapondo um nobre a uma personagem da alta

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hierarquia burocrática da igreja, caracterizando o segundo como malfeitor, reservavam ao primeiro o papel de guardião da dimensão esotérica da Tradição. É evidente que esse resumo carece de muitos pontos que seriam desenvolvidos nas preleções e nos debates. Mas acreditando que, como um texto base, alguns dos aspectos a serem explanados estão claramente enunciados e, também, por falta de espaço, damos por finalizado este sumário.

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Beatriz Machado Bacharel em psicologia e, atualmente, pós-graduanda, na FFLCH da USP, para elaboração de tese sobre Ibn ‘Arabi – filósofo espanhol do século XIII –, considerado um dos maiores expoentes da espiritualidade islâmica. Vem estudando a obra de Ibn ‘Arabi há quase 12 anos, e, durante este tempo, tem exercido atividades docentes , participando de congressos e feito contatos internacionais em torno desse tema. Membro da Ibn ‘Arabi Society, sediada em Oxford , e do conselho executivo do Centro de Pesquisas das Tradições Abrahâmicas, sediado em São Paulo.

Endereço para correspondência Rua José Maria Lisboa, 541, casa 1 CEP: 01423 - 000 São Paulo / Capital

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Em busca de referenciais para compreender o Islam “Allahu Akbar! Allahu Akbar! Quando Deus criou a mulher, criou também a Fantasia. Um dia, a Verdade resolveu visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun alRashid. Envoltas as lindas formas num véu claro e transparente, foi ela bater à porta do rico palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas. Ao ver aquela formosa mulher, quase nua, o chefe da guarda perguntou-lhe: – Quem és? – Sou a Verdade! – respondeu ela, com voz firme – Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun al-Rashid, Emir dos crentes! O chefe da guarda, zeloso da segurança do palácio, apressou-se em levar a nova ao grão-vizir. – Senhor, – disse, inclinando-se humilde, – uma mulher desconhecida, quase nua, quer falar ao nosso soberano. – Como se chama? – Chama-se Verdade! – A Verdade! – exclamou o grão-vizir, subitamente assaltado de grande espanto. – A Verdade quer penetrar neste palácio! Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Verdade aqui entrasse? A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que uma mulher nua, despudorada, não entra aqui!

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– Voltou o chefe da guarda com o recado do grão-vizir e disse à Verdade: – Não podes entrar, minha filha. A tua nudez iria ofender nosso Califa. Volta, pois, pelo caminho de Allah.

Allahu Akbar! Allahu Akbar! Quando Deus criou a mulher, criou também a Obstinação. E a Verdade continuou a alimentar o propósito de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun al-Rashid. Cobriu as peregrinas formas de um couro grosseiro como os que usam os pastores e foi novamente bater à porta do suntuoso palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas. Ao ver aquela formosa mulher vestida tão grosseiramente com peles, o chefe da guarda perguntou-lhe: – Quem és? – Sou a Acusação! – respondeu ela, em tom severo – Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun al-Rashid, Comendador dos crentes! O chefe da guarda, zeloso da segurança do palácio, correu a entender-se com o grão-vizir: – senhor, – disse inclinandose humildemente –, uma mulher desconhecida, com o corpo envolto em grosseiras peles, deseja falar ao nosso soberano. – Como se chama? – Chama-se Acusação! – A Acusação! – exclamou o grão-vizir, aterrorizado. – Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Acusação aqui

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entrasse? A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que não, não pode entrar! Dize-lhe que uma mulher, sob as vestes grosseiras de um zagal, não pode falar ao nosso amo e senhor! – Voltou o chefe da guarda com a proibição do grãovizir e disse à Verdade: – Não podes entrar, minha filha. Com estas vestes grosseiras, próprias de um beduíno rude e pobre, não poderás falar ao nosso amo e senhor, o sultão Harun alRashid. Volta, pois, em paz, pelo caminho de Allah. Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou ainda mais triste a Verdade, e afastou-se vagarosamente do grande palácio do poderoso senhor. Mas...

Allahu Akbar! Allahu Akbar! Quando Deus criou a mulher, criou também o Capricho. E a Verdade encheu-se do vivo desejo de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun al-Rashid. Vestiu-se com riquíssimos trajes, cobriu-se com jóias e adornos, envolveu o rosto em um manto diáfano de seda e foi bater à porta do palácio em que vivia o glorioso senhor dos Árabes. Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta lua do mês de Ramadã, o chefe da guarda perguntou-lhe: – Quem és? – Sou a Fábula! – respondeu ela, em tom meigo e mavioso.

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– Quero falar ao vosso sultão Harun al-Rashid, Emir dos crentes! O chefe da guarda, zeloso da segurança do palácio, correu a entender-se com o grão-vizir. – Senhor, disse, inclinando-se humilde, uma linda e encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicita audiência de nosso amo e senhor, o sultão Harun al-Rashid, Emir dos crentes! – Como se chama? – Chama-se Fábula! – A Fábula! – exclamou o grão-vizir, cheio de alegria. – A Fábula quer entrar neste palácio! Allah seja louvado! Que entre! Bendita seja a encantadora Fábula. Cem formosas escravas irão recebê-la, com flores e perfumes. Quero que a Fábula tenha, neste palácio, a acolhida digna de uma verdadeira rainha! E, abertas de par em par as portas do grande palácio de Bagdá, a formosa peregrina entrou. E foi assim que, vestida de Fábula, a Verdade conseguiu entrar no grande palácio do poderoso califa de Bagdá, o sultão Harun al-Rashid, Príncipe de todos os Crentes.”

Introdução A Europa deve ao Islam uma parte considerável de seu desenvolvimento a partir da Alta Idade Média. Houve um tempo em que qualquer inovação de que se tivesse notícia

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era imediatamente reputada ao inventivo gênio muçulmano17. Nas ciências, nas artes, na medicina, nas técnicas de construção, nos sistemas de irrigação, nas traduções, nas práticas comerciais e, sobretudo, na filosofia, os muçulmanos teceram o tapete voador da evolução cultural que se seguiu no Ocidente, do Renascimento em diante. Judeus, cristãos e muçulmanos conviviam em perfeita harmonia na Espanha medieval, e os “diálogos” intelectuais por eles travados, em torno do Mediterrâneo, produziram um patrimônio de rara magnitude na história da humanidade18. Não obstante, nossos estudiosos, a partir da Modernidade, passaram a designar o Ocidente apenas como “sociedade judaico-cristã”. Quando Miguel Asin Palácios, no começo do século XX, demonstrou que a Divina Comédia foi baseada na obra de Muhiyddîn Ibn ‘Arabî19, criou-se uma polêmica na qual cientistas de áreas diversas recusaram-se a admitir tal fato. Nos anos que se seguiram, várias outras teses, com novos documentos, determinaram definitivamente a razão de Palácios.

Cf. PONSOYE, P. El Islam y el Grial. Grial. Barcelona: J. Olañeta, 1984. p. 30.

17

Cf. ASÍN PALACIOS, M. El Islam cristianizado e la musulmana en la Divina Comédia. Madrid: Hiperión, 1884.

18

escatologia

Muhiyddîn Ibn ‘Arabî, um dos maiores gnósticos do Islam, sobre quem falaremos com mais detalhe no tópico “A Mística”, no presente artigo. Sobre a relação de sua obra com a Divina Comédia, Cf. ASÍN PALÁCIOS, La escatologia musulmana en la Divina Comédia. Madrid: Hiperión, 1984.

19

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Atualmente, chegamos a um tipo de requinte como o que pude constatar em recente matéria publicada pelo jornal O Estado de São Paulo20. Uma janela no texto dizia o seguinte: “entre os demônios do Irã e da Argélia, estão os ‘anjos’ do Taleban”. Estava escrito assim mesmo, anjos com aspas e demônios sem. Nada mais sintético e denotativo da postura “racional” do Ocidente frente ao Islam – como, sob certos aspectos, frente a toda manifestação espiritual verdadeira: o aspecto “demoníaco” deste – suas imperfeições – é aceito como realidade, a forma angélica – sua verdade intrínseca – são apenas metáforas. Como um esquimó que, ao ouvir uma descrição de praias equatoriais, busca, em seu vasto saber sobre as diversas formas de neve, algo com que representar-se as brancas areias sob um sol a pino, assim procede boa parte da sociedade ocidental de nossos dias, ao ouvir falar do Islam. Se a brancura pode aplicar-se tanto à neve quanto às areias, não é menos verdade que elas não se referem à mesma coisa e pretender tomar uma pela outra seria uma aberração visível para quem conhece as duas regiões. Do mesmo modo, quando um homem ocidental aprendeu que muçulmano (muslim), em árabe, quer dizer “o submisso” ou “aquele que se submete”, o que ele imagina é um tipo primitivo e supersticioso, vítima do “autoritarismo espiritual” que exclui e anula toda forma de liberdade individual. Isto é, imagina o “submisso” que o ocidental seria – e que de fato é – às ditaduras, às demagogias, à ideologia de um sistema político e econômico. Para o ocidental tornou-se extremamente difícil representar-se – com todas as suas implicações – a diferença que existe entre submeter-se à

O ESP. “Divisões de março, 95.

20

enfraquecem

onda

fundamentalista”.

São

Paulo:

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dominação humana, seja ela qual for, e submeter-se a Deus. Aqui, visivelmente, não se trata de discutir a questão da fé em Deus – trata-se de perceber que há um grande engano em tentar entender uma cultura utilizando-se dos referenciais de uma outra cultura. No entanto, para o estudioso, é absolutamente imperativo que ele seja capaz de adotar uma postura heterocêntrica21. Caso contrário, não estará estudando nada além de sua própria imaginação. Talvez, para corresponder à exigência de concisão de um artigo, pudéssemos começar a buscar uma posição mais próxima de nosso estudo elegendo apenas um termo de referência para nortear nosso caminho: pretendemos aproximar-nos do Islam através de sua dimensão simbólica. A dimensão simbólica, para efeito da presente introdução, será definida em termos neoplatônicos – perspectiva sincrônica ao evento histórico do Islam. Entender que uma perspectiva é simbólica é entender que ela é necessária, portanto não-arbitrária. É dar-se conta do fato de que as leis do tecido simbólico não têm origem na vontade de um indivíduo ou de uma classe social, assim como não podem estar limitadas às circunstâncias específicas. Claro está que uma determinada classe social, em certas circunstâncias específicas, pode apropriar-se das leis simbólicas para exercer um tipo qualquer de dominação, e, nesse caso, com toda evidência, deixa de haver simbolismo e passa a haver cristalização. À plasticidade do simbólico substitui-se a rigidez da lei

21

Como e até que ponto isso é possível é uma questão pertinente e merece um estudo à parte.

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genérica e exterior; o símbolo torna-se imagem fixa e de interpretação unívoca, “oficial”, e o que era inteligência e criatividade torna-se repetição e automatismo. Mas isso, por definição, já não é mais religião. Quem diz simbólico, diz uma estrutura que permite a passagem entre universos irredutíveis entre si, isto é, um tecido de relações que viabilizam a comunicação entre a Verdade absoluta e infinita e o mundo das imagens relativas e definidas, apreensíveis pela consciência humana comum. Entre o Real invisível e o conjunto das imagens que lhe dão visibilidade, está o istmo do simbólico, assim como entre a alma e o corpo está a linguagem. Pensemos: a linguagem é material ou imaterial? Como atributos do simbólico, temos, em parte, os que atualmente reconhecemos como próprios da linguagem, isto é, a possibilidade de desdobrar-se em múltiplos significados e a exigência de contextualização. Desse modo, não se pode dizer que um símbolo simboliza uma certa coisa porque toda simbolização, como uma cartola de mágico, é sempre e inesgotavelmente evocadora de séries de formas virtuais: “toda a Criação está contida no Corão, todo o Corão está contido na basmalah22, toda a basmalah está contida no pontinho da letra bá”. 23 Igualmente, não se pode falar em um símbolo, a não ser metonimicamente, pois um símbolo sempre simboliza realidades em um contexto (e pode simbolizar o oposto

22

Frase que abre o Corão (e que “abre” as ações de todo muçulmano, devendo ser proferida antes de cada ato): bismi Illah ar-rahman ar-rahim (Em Nome de Deus, o Compassivo, o Misericordioso).

23

A letra bᒠ(b), que inicia a palavra bismi, é escrita em árabe com um ponto em baixo.

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em outro), o mais apropriado seria falar em lugar simbólico: o casamento, no Islam, ocupa um lugar simbólico muito diferente do que ocupa no Cristianismo. Finalmente, o simbólico não é propriamente um domínio, um reino distinto das coisas, mas ele é um modo de ver o reino das coisas, um registro, para usar um termo atual. Para recorrer a uma metáfora, quando mergulhamos um pedaço de bambu nas águas do rio, sabemos que a refração que observamos é função da diferença de densidade entre o ar e a água. Do mesmo modo, o simbólico opera uma refração entre o Invisível e o visível de modo a revelar não exatamente a Verdade, mas uma forma suficientemente distorcida como para ser verdade neste meio visível. Ora, se essa idéia é correta, o simbólico seria a água e não a imagem distorcida do bambu na água. Por outro lado, a imagem distorcida pela água, é que é a imagem do bambu verdadeiro. A rigor, portanto, o simbólico é, ao mesmo tempo, o “meio” e é a “coisa”, depende do observador, ou da perspectiva utilizada. Numa imagem da física quântica: ora é partícula, ora é onda. Exemplo: a idéia de Unidade que, embora com mais ênfase no Islam, é o fundamento das três Tradições Abrahâmicas é, ao mesmo tempo, um contexto simbólico que institui toda uma ambiance existencial e uma síntese – numa forma, numa idéia, num paradigma – do caráter absoluto de Deus, como veremos mais adiante. Toda essa explicação é necessária para fazer ver que o símbolo não é – como o senso comum ocidental pretende – uma realidade puramente mental. Ele, também, não é um objeto, muito menos um objeto externo e passivo, cuja contemplação é meramente um ato circunstancial e igualmente passivo. O símbolo é, necessariamente, uma

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experiência porque ele é a atualização da Verdade nas águas simbólicas do indivíduo ou nas águas simbólicas da cultura 24 . Simbolização é atividade, é criatividade, é transformação. A atividade simbólica produz efeitos, sem o quê não é simbólica e sim meramente imaginária. Isso posto, podemos prosseguir em nossas considerações preliminares. Toda religião tem seu fundamento numa Revelação, isto é, no Real invisível, isto é, na Intenção divina de revelar-se. Ou é isso, ou não é religião. Não sendo arbitrária, a Lei religiosa deve ser escrita com “L” maiúsculo para distinguir-se das leis imaginadas num contexto estritamente prático e não-simbólico. A Lei religiosa é menos um simples conjunto de leis que um corpo vivo de diálogo entre a cultura e seus membros. Nesse sentido, ela possui uma coerência interna que é a sua própria razão de ser: todas as proposições da Lei encontram-se entrelaçadas de modo a formar um todo orgânico que, em qualquer de seus elementos particulares, afirma sempre a mesma Verdade doutrinal. A Lei existe porque os indivíduos, os tempos e os lugares variam, devendo, portanto, variar o modo como a Verdade invariável expressa-se neste mundo. Em certo sentido, o que comanda a forma da Lei é a condição humana da comunidade a que Ela se dirige, entendendo por comunidade algo bem mais amplo, isto é, a Tradição que é fundada a cada Revelação.

24

Numa perspectiva menos anacrônica que a neoplatônica, poderíamos dizer que o que leva J. Lacan a afirmar que “o inconsciente está estruturado como linguagem” é, em última análise, a constatação de que o símbolo não é apenas uma realidade pensada ou imaginada conscientemente, mas que, antes disso, a consciência é que é resultado da estruturação simbólica.

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Nesse sentido, toda Lei possui dois aspectos, um descensional, por assim dizer, e outro ascensional. A “descida” da Lei refere-se à emancipação misericordiosa com a qual a Verdade torna os homens Seus representantes – revela-lhes uma religião cuja prática é verdadeira e legítima; e a “ascensão” refere-se ao rigor da Lei, que estabelece os procedimentos que permitem o acesso à Verdade, segundo os diferentes níveis de possibilidades individuais. Em síntese, “toda religião revelada é ao mesmo tempo a religião e uma religião; a religião na medida em que ela contém a Verdade e os meios que permitem atingi-la, uma religião porque ela acentua um aspecto particular da Verdade que corresponde às necessidades espirituais e psicológicas dos homens aos quais ela se destina e aos quais ela se dirige”.25 Para nortear o presente artigo, escolhi basear-me principalmente em dois autores contemporâneos, Seyyed Hossein Nasr e Frithjof Schuon, ambos muçulmanos, sendo que o primeiro é de origem oriental e o segundo, ocidental.

Islam, a Doutrina da Unidade

Não há Deus se não Deus (Lâ ilâha ill’Allah), a primeira Shahâdah26 é o fundamento da Unidade islâmica: o Deus Único, o Deus de Abrahão, por Quem ele procedeu à destruição dos ídolos, é Allah. 25

26

NASR, S. H. Islam. Paris: Buchet/Chastel,1975. p. 17. A primeira Shahâdah, “Lâ ilâha ill’Allah” (Não há Deus se não Deus), e a segunda, “Muhammad rasul Allah” (Muhammad é o seu Enviado), constituem as duas afirmações que deve proferir aquele que deseja tornar-se muçulmano.

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Nessa perspectiva, o Islam vem, ao mesmo tempo, reafirmar e sintetizar a totalidade da Tradição Abrahâmica. Como forma simbólica, a Shahâdah é meditada pelo muçulmano na forma do dikr (recordação) ou “prece do coração”, a prática de repetição de palavras que “acorda” seus significados no coração “daquele que se submete”. Ela também aparece meditada em comentários como este, de Nasr: “O Islam, de fato, acentua de tal forma a Unidade que, para um não-muçulmano, isso pode parecer um pleonasmo, uma espécie de reafirmação excessiva de uma evidência mas, para o Muçulmano, a idéia de Unidade não se resume à afirmação de que há um Deus reinando no céu e não dois ou três. Nenhuma religião poderia ter convertido um quarto da população do globo e estenderse do Marrocos à Indonésia com uma idéia tão simples. Uma tal concepção não seria suficiente para atrair os homens para a religião. A Unidade não é somente uma afirmação metafísica, concernente à natureza do Absoluto, mas também um método de integração, um meio de o homem realizar sua própria totalidade e a profunda “unicidade” de toda existência. Cada aspecto do Islam gravita em torno da doutrina da Unidade, unidade que o Islam busca realizar, antes de tudo, no ser humano, em sua vida interior e exterior. Toda manifestação da existência humana deveria estar organicamente ligada à Shahâdah “Lâ ilâha ill’Allah”, que é a forma mais universal de se exprimir a Unidade. Isso significa que o homem não deveria compartimentarse, estabelecer separações entre seus pensamentos e ações.”27 27

Nasr, S.H. Islam. Paris: Buchet/Chastel,1975. p. 35.

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O que, do olhar distante do ocidente, aparece como uma sociedade rígida e intransigente, ganha contornos mais precisos quando se compreende que “...o homem, a família e a sociedade são forjados segundo a idéia da Unidade; são adaptações dela; eles são unidades como Allah e como Sua palavra, o Corão (...). Deus afirma-Se por sua Unidade, Ele não Se Incarna em virtude de uma distinção interna; Ele não resgata o mundo, mas o absorve pelo islâm”.28 Se no Cristianismo trata-se de dar “a César o que é de César”, no Islam, a perspectiva é totalmente outra. A religião perpassa todas as instâncias da vida e o muçulmano é seu próprio padre, por assim dizer, é ele mesmo o representante de Deus na terra e seu cotidiano é inteiramente sagrado. Poder-se-ia argumentar que essas considerações são demasiado ingênuas frente à realidade do mundo atual e à probabilidade de que, na prática, o muçulmano tenha de fato tal relação com seu cotidiano. Ora, não pode haver dúvida de que o Islam, como, de resto, qualquer sociedade tradicional, sofre a corrupção do tempo e que, hoje em dia, o contato cada vez mais intenso com o ocidente tem resultado na importação da laicização contemporânea e na sua absorção por parte de um contingente do Islam. Os tempos não são os mesmos dos de há 14 séculos e não haveria porque ser diferente. No entanto, aqui se trata, antes de tudo, de buscar compreender uma doutrina. O que acontece de fato nos

28

SCHUON, Frithjof. Christianisme et Islâm, in Le Voile d’Isis. Rev. Études Traditionelles, número especial sur la Tradition Islamique, Paris, août-septembre, 1934, p. 319.

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países islâmicos ainda não merece nossa atenção. Não obstante, cabe observar que a facilidade com que, no ocidente, se desconfia da sinceridade religiosa de outros povos é diretamente proporcional à capacidade que se tem de acreditar no inverso, na hipocrisia e na má fé. É preciso deixar claro que os sinais da decadência religiosa estão cada vez mais evidentes e aparecem, com nitidez, em movimentos arbitrários – de “modernização” ou de “resgate” – que, segundo Nasr, vêm surgindo no Islam com intensidade gradativa há cerca de dois séculos. Não é com esse tipo de dado, no entanto, que se compreende uma religião e muito menos que se pode pretender medir a sinceridade cultivada no coração de um fiel. Uma das implicações da Doutrina da Unidade é a relação do fiel com a História. De fato, o historiador das religiões está habituado, por força de sua metodologia, a investigar as causas históricas do fenômeno religioso e a buscar a autenticidade de documentos para comprovar a “legitimidade” dos elementos tradicionais do corpo doutrinal. No Islam, um curioso paradoxo oferece-se a essa metodologia: das três Tradições Abrahâmicas, o Islam é a mais “histórica”, seja porque, sendo a mais recente, há uma documentação bastante mais farta a respeito, seja porque os fatos da Torá judaica constituem antes uma mitologia que um relato histórico propriamente dito, seja porque o Profeta, diferentemente do Cristo, é um homem como todos os outros, que nasceu e morreu como homem, ou, enfim, porque o contexto religioso abrange os mais mínimos gestos do dia-a-dia da vida do muçulmano; no entanto, a ênfase no fato em si é desprovida de sentido na perspectiva islâmica, os acontecimentos – as batalhas citadas no Corão, por exemplo – são, antes, paradigmas da tradição que fatos históricos, e, como observa Nasr, “...não há termos em

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árabe, em persa ou outra língua islâmica para dizer temporal ou secular...”. Na comparação de Schuon29: “Os fatos têm, de resto, no Islam, um papel muito menos importante que no Cristianismo, cuja base religiosa é essencialmente um fato, e não uma idéia, como é o caso no Islam.” Assim, a história tradicional do Islam vem afirmar que as sociedades, com o passar do tempo, distanciam-se de sua Origem legítima e são acometidas pelos conseqüentes processos de decadência, ou, numa imagem, passam do monoteísmo para o politeísmo com tudo o que este implica de fragmentação. Para resgatar o Deus Único, faz-se necessária a Revelação e a vinda de um Enviado.

O Profeta Possivelmente, um dos grandes obstáculos à compreensão verdadeira do Islam resida na imagem que, se fez no ocidente de seu fundador – o Profeta Muhammad30. Sua vida voltada para atividades sociais, econômicas e políticas contrasta, em larga escala, com o estereótipo de “santidade” exigido de uma autoridade espiritual.

29

SCHUON, Frithjof. Christianisme et Islam, in Le Voile d'Isis Rev. Études Traditionelles, Paris, número especial sur la Tradition Islamique, aoûtseptembre, 1934. p. 317.

30

Uma postura séria exige que se escreva e pronuncie corretamente o nome do Profeta. Maomé, como se diz habitualmente em português, assim como Alá, não quer dizer nada. Seria o mesmo que escrever e pronunciar Sigismundo Freud, Alberto Einstein, Joana Fonda e assim por diante.

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Se compreendemos, no entanto, como insistimos acima, que nada há de arbitrário no tecido da religião, podemos ultrapassar a superficialidade dessa visão para alcançar um domínio no qual veremos o Profeta como o Enviado de Deus e como o intérprete por excelência da Palavra revelada, o Livro do Corão. Nessa perspectiva, seus atos (sunnah) e suas falas (ahadith) constituem ensinamentos e prédicas para a vida do muçulmano. Mas, aqui é preciso atenção, pois tais ensinamentos não se reduzem a uma moral. A Lei islâmica (shari’ah ), revelada no Corão e acrescida da sunnah e dos ahadith, nunca é demais enfatizar, é um exercício permanente de integração na Unidade, de abandono do fiel a Sua Vontade. O Cristo não teve mulher, nem filhos, não teve profissão, não legislou nem julgou, enfim, o fundamental em sua pessoa é a Encarnação do Verbo. Nesse sentido, pode-se dizer que o Cristo não tinha “personalidade”, isto é, não se sabe do que ele gostava ou o que preferia, seus atos – milagrosos – eram supra-humanos, e seus sentimentos, o sofrimento do mundo. O importante no Cristo é justamente o que ele tem de divino e não de simplesmente humano. Exatamente o contrário é o que sabemos do Profeta, que não apenas teve uma vida social e política repleta de acontecimentos – típicos da vida mundana – como também, expôs uma “personalidade” cujas características desempenham um vigoroso papel no lugar simbólico por ele ocupado na alma do fiel. De acordo com suas biografias, a alma contemplativa do Profeta determinou que a condição de chefe político fosse para ele um pesado fardo. Nada é mais grotesco e contrário aos relatos de seus contemporâneos que a imagem de ávido guerreiro e amante dos “prazeres da carne”, que alguns pretendem atribuir-lhe. Nasr nos lembra que os que se apressam em ver na poligamia uma expressão da

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“concupiscência” esquecem-se – ou não sabem – que, durante a plenitude de sua juventude – quando, em princípio, o desejo sexual é sentido com mais intensidade –, o Profeta foi casado com uma única mulher, Khadijah, bem mais velha que ele, tendo mais tarde realizado casamentos de aliança política com o objetivo de solidificar a sociedade nascente. Tampouco dão-se conta de que o casamento poligâmico constitui, tanto para o homem quanto para a mulher, uma responsabilidade e um modo de preservar a estrutura patriarcal fundante da cultura. Mas é preciso manter em mente que o Profeta forjou uma comunidade na qual era um líder, antes e acima de tudo, pela sua presença espiritual. De fato, não eram suas incontestáveis habilidades como negociador e orador que lhe permitiam exercer o poder de chefe mas, antes, essas habilidades adquiriam sentido no contexto da religião pelo fato de o profeta ser aquele que, de tempos em tempos, recebia a Revelação diretamente de Allah. “...o Profeta ordenou uma pausa no primeiro poço que alcançaram. Mas um homem de Jazrach, Hubab ibn a Mundhir se aproximou dele e disse: “Oh, Enviado de Deus! Foi Ele quem te revelou que devemos avançar ou retroceder desde este lugar onde agora estamos, ou é uma questão de opinião sua e estratégia militar? O Profeta lhe respondeu que se tratava simplesmente de um assunto de opinião, então, Hubab disse: ‘Este não é o melhor lugar para fazermos uma pausa...’ O Profeta assentiu, imediatamente, e o plano de Hubab foi posto em prática em todos os seus detalhes.”31

31

LINGS, Martin. Muhammad - Su antiguas. Madrid: Hiperión, 1989.

vida, basada p. 162.

en

las

fuentes

más

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Assim, a baraka (bênção) que recai sobre todo muçulmano é o que ilumina suas qualidades, e, sem ela, nenhuma habilidade, estritamente mundana, tem valor por si só, o que, mutatis mutandis, se dá igualmente no Cristianismo. Em outras palavras, a pessoa do Profeta constitui, para o muçulmano, um modelo, como o Cristo o é para o cristão, mas a presença do Cristo situa-se, por assim dizer, numa esfera diferente, o Profeta tendo que estar “presente” em todas as esferas da vida porque assim é o Islam. E ocupando um lugar no domínio social, a fortiori, como Profeta e Enviado de Deus, ocupa o mais alto grau da espiritualidade islâmica. Isso significa que as falas e os atos do Profeta possuem um alcance metafísico e constituem a primeira hermenêutica do Corão. Trata-se, portanto, de aparente paradoxo o fato de que o Profeta é ao mesmo tempo um sábio e aquele de quem se diz ter sido analfabeto. Numa fina comparação, nossos autores afirmam que o Profeta era iletrado para receber a Revelação do Corão na mesma condição de pureza em que Maria recebeu Jesus.

O Corão “O Corão é como uma jovem recém-casada; mesmo que tentes levantar seu véu, ela não se mostrará a ti. Se discutires o Corão, nada descobrirás, e nenhuma alegria te chegarás. É por teres tentado levantar o véu que o Corão se recusa a ti; empregando esperteza e fazendo-se feio e indesejável a teus olhos, ele te diz: não sou aquele que amas. Ele pode, portanto, mostrar-se sob qualquer ponto de vista.”32 32

Jalaluddîn Rumi, um dois maiores mestres do Islam. Trad. por Schuon in Comprendre L’Islam. Du Seuil, 1976. p. 49.

e

citado

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O Corão, como Palavra divina, ocupa o centro do Islam, como Jesus, o Verbo Encarnado, está no centro do Cristianismo. Aqui, torna-se essencial partir da compreensão do simbólico a que nos referimos de início, sem o quê o Livro somente poderia ser visto como um manual de exortação moral com passagens absolutamente incompreensíveis. Na realidade, como toda Escritura, como todo texto sagrado, o Corão é uma teofania, isto é, a atualização de uma Presença divina. Como tal, ele é inesgotável no sentido qualitativo e quantitativo do termo. Nesse sentido, não há nenhum exagero em dizer que o “universo está contido no Corão” pois seria, em parte, como dizer que a língua inglesa está contida no francês ou vice-versa. São estruturas análogas; isso é simbolismo. Por outro lado, e retomando a metáfora do bambu nas águas do rio, que utilizamos acima, o Corão, como as águas, é o universo, mas, como a imagem do bambu, é a Palavra divina. Assim sendo, para “conter” ou expressar a Intenção de Deus, o texto é obrigado a realizar “refrações”. Como diz Schuon: “A aparente incoerência de tais textos – como o Cântico dos Cânticos ou certas passagens de São Paulo – tem sempre a mesma causa, a saber, a desproporção incomensurável entre o Espírito, de um lado, e os limitados recursos da linguagem humana, de outro: é como se a linguagem coagulada e pobre dos mortais se partisse, sob a formidável pressão da Palavra celeste, em mil pedaços, ou como se Deus, para exprimir mil verdades, dispusesse apenas de uma dezena de palavras...”33 33

Comprendre L’Islam, op. cit., p. 48.

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Em síntese, há um duplo aspecto que encerra o corpo do Livro. Novamente, um descensional e cosmológico, outro ascensional e metafísico. A leitura “sistemática” do texto propicia um enquadre do leitor na Lei, a Palavra desce ao seu coração e, através dele, é bombeada para sua vida e suas vicissitudes, ligando a uma atmosfera própria dessa Revelação. De outro lado, o “diálogo” interior com o texto eleva o espírito do fiel – segundo seu destino espiritual – para níveis superiores de entendimento e sutileza, de conhecimento de si, de proximidade com o Amigo. Um exemplo de hermenêutica do Livro, referente ao aspecto descensional, pode ser visto na história contada por Nizami34, em que o secretário do Rei salvou o reino utilizando a eloqüência e o poder veraz de um versículo do Corão.35 E, para um exemplo do aspecto ascensional da leitura, podemos evocar o relato de Ibn ‘Arabî sobre um santo sufi para quem se “abriu” uma certa passagem do Corão, provocando-lhe um estado (hâl) extático.

34

Mestre sufi persa, do séc. XII.

35

NIZAMI, Aruzi. Los quatro discursos. Madrid: Editorial Sufi,

1994.

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A Mística36 Nas palavras de um Shaykh contemporâneo, residente na Turquia, “o taçawwuf 37 , em relação à escola, é a universidade. Todos devem, obrigatoriamente, freqüentar a escola, mas nem todos querem ou precisam ir à universidade.” Enquanto no Cristianismo, por razões que não cabe aqui discutir, a chamada Realização espiritual esteve, desde o início, situada num plano alheio ao social (mosteiros, celibato, etc.) e, mais tarde, com a gradativa laicização do ocidente católico, foi transformada em quimera pueril da “idade das trevas”, no Islam, ao contrário, o sufismo é visto

36

Alguns autores, como Guénon e Schuon notadamente, preferem reservar o termo mística para as manifestações não-intelectuais da via espiritual. Distinguem-no do termo esoterismo, com o qual buscam expressar a via iniciática por excelência. De minha parte, uso o termo mística como sinônimo exato de esoterismo, levando em conta, primeiramente, que sua ressonância em ambiente cristão é diversa da sentida no universo muçulmano, e, além disso, com o objetivo de, por um lado, evitar as associações costumeiras acarretadas pelo uso indiscriminado e distorcido do esoterismo por parte dos soi-disant “esoteristas modernos”, e, por outro, acentuar o aspecto experiencial da Via - conotado de imediato na idéia do misticismo -, que aqui trato de enfatizar como parte do enfoque previamente escolhido para o presente artigo. Faço também observar que, em função deste enfoque, deixei propositalmente de lado as distinções entre esoterismo e exoterismo, tão habitualmente assinaladas por esses autores. Trata-se aqui, apenas, de uma diferença de perspectiva e nunca de uma discordância.

37

O taçawwuf corresponde, no árabe, ao esoterismo em geral, independentemente da forma assumida, isto é, seja ele islâmico, cristão ou outro. No ocidente, no entanto, o termo é habitualmente traduzido por sufismo, e refere-se especificamente ao esoterismo islâmico. GUÉNON, René Cf. Le Soufisme. In Le Voile d’Isis, op. cit.

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pelo muçulmano comum como parte da religião e a Realização como uma possibilidade efetiva para aqueles que seguem a Via. Claro está que seria impensável pretender sequer dar um panorama do sufismo num artigo de tal natureza. No entanto, forneceremos algumas indicações apenas a título de primeira informação para o leitor leigo no assunto. Dizer Realização espiritual é dizer, antes de tudo, aquisição do mais alto grau de conhecimento (ma’arif) possível ao ser humano. Trata-se do conhecimento por evidência imediata, a intuição das Idéias platônicas, para usar uma referência conhecida. No entanto, o caleidoscópio das múltiplas formas de manifestação da Verdade oferece as mais diversas designações para essa Realização. Sendo o caminho espiritual, segundo uma fala do Profeta, único e ao mesmo tempo “tão diverso quanto há de almas no mundo”, não obstante, o sufismo concebe três modos distintos de enfocá-lo, a saber, as vias do Intelecto, da Censura38 (malâmyyia) e do Amor. Nessa última, o Conhecimento buscado é representado pela união entre Deus e o homem. O que é posto em relevo nesse ângulo de visão do caminho espiritual é seu aspecto experiencial, no qual essa união explicita uma mudança de qualidade de ser, uma alquimia na interioridade. Sem anular os amantes “dissolvendo” o dois no um, mas, ao contrário, evocando a idéia de uma bi-unidade, a

38

Censura no sentido de que seus condenável segundo os padrões e as inúmeras vezes, o ódio dos legalistas.

seguidores agem de maneira leis sociais, atraindo para si,

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realização desse amor marca o encontro do buscador com o “Gabriel de seu ser”, com o Anjo-Arquétipo da qualidade divina em cada homem, através da qual o Adorado desnuda-se para o adorador. Como se vê, já estamos distantes da vida cotidiana e das formas coletivas da prática religiosa. No caminho (tarikah), trata-se de conhecer-se a si mesmo pois, segundo outro hadith, “quem conhece sua alma, conhece seu Senhor”. A seguir, pequenas anedotas a respeito de Râbi’a alAdawiyya, uma das maiores santas do Islam, e uma brevíssima biografia de Ibn ‘Arabî, também conhecido como Al-Skaykh al-akbar (o maior dos Mestres). “Um homem disse a Rabi’a: cometi muitos pecados e muitas transgressões, mas se eu me arrepender, Deus me perdoará? Ela disse: não, tu te arrependerás se Ele te perdoar.” “Conta-se que um ladrão entrou no quarto de Rabi’a enquanto ela estava dormindo. Tomou suas roupas e buscou a porta para sair mas não a encontrou. Devolveuas e a encontrou. As retomou e a porta desapareceu ante seus olhos. Isto se repetiu várias vezes. Depois, um interlocutor invisível lhe disse: ‘Deixa essas roupas. Nós somos os custódios e não te permitimos tomá-las ainda que ela esteja dormindo.” “Um dia, estava Rabi’a a caminho da Ka’aba com um asno sobre o qual havia carregado seus utensílios domésticos. Mas o asno morreu. Alguém da caravana disse: – Carregaremos teus pertences sobre nossos cavalos. Ela respondeu: – Não pus meu apoio sobre vós quando vim. Minha confiança está posta em Deus – exaltado seja! Ide

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daqui! Quando a caravana partiu, Rabi’a invocou a Deus dizendo: – Deus meu, por acaso assim procedem os reis com seus débeis e impotentes servos? Tu me convidaste a visitar Tua casa e deixas que meu asno morra no deserto e que eu fique sozinha na solidão? Não havia terminado de dizer essas palavras quando o asno levantou-se cheio de vida. Ela o carregou com seus pertences e continuou seu caminho até alcançar a caravana.”39 Mohyiddîn Âbu Bakr Mohammad Ibn Âli ‘Ibn Arabî al-Hâtimî (1165 / 1240), nasceu em Murcia, na região da Andaluzia, Espanha. Autor de uma obra monumental – 846 títulos conforme a compilação de Osman Yahia40 – Ibn Arabî foi poeta, filósofo, cosmólogo, metafísico e como tal percorreu a Europa, desde a Espanha indo até o Oriente Médio. Considerado místico , visionário , iluminado , o mestre andaluz tem seu nome associado a produções cruciais da cultura européia de seu tempo e mesmo posteriormente. Embora muito possivelmente sua importância tenha sido negligenciada no Ocidente devido a questões de ordem político-ideológica, há uma vasta documentação a seu respeito hoje, compilada por diversos historiadores entre a Espanha e o Oriente.

39

Todas as anedotas extraídas do Aires: Dervish International, 1986.

40

Histoire et classification Damas, 1964.

de

l’oeuvre

livro d’Ibn

Rabi’a Arabî.

al-Adawiyya. Institut

Buenos

français

de

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“...Em sua pessoa, os filósofos e místicos muçulmanos não hesitam em reconhecer o “maior Shaykh” do sufismo (al Shaykh al-akbar ), isto é, o Mestre por excelência. A legitimidade desse título superlativo conferido a Ibn ‘Arabî torna-se evidente à simples leitura de algumas páginas de sua obra monumental que representa um ápice da literatura mística universal. Assim, não é de se admirar que seus discípulos o tenham chamado de “o filho de Platão” (Ibn Aflâtûn), não apenas para prestar homenagem à nobreza de sua metafísica e atestar a elevada filiação espiritual desta, mas ainda porque eles sentiam que em sua doutrina reencontravam a expressão ideal de uma “filosofia profética” aparentada com a “sabedoria inspirada” de Platão.”41 Como um Mestre do Caminho, o lugar que Ibn ‘Arabî ocupa pertence à Unidade Transcendente das Religiões, de tal modo que já não seria correto dizer que ele, como Rumi, Saadi, Abu Yazid e todos os Mestres do Silsilah42, é um muçulmano no sentido religioso do termo, mas sim que esses Mestres utilizaram a terra fértil do Islam para ali plantar suas sementes celestiais. Não estão, portanto, sujeitos à ortodoxia, mas, antes é esta que lhes está sujeita. Suas vidas e seus ensinamentos deixam mais do que claro e evidente que o que está em jogo na cena espiritual é uma experiência de conhecimento e transformação única, em que todo fiel, em maior ou menor grau, participa

41

42

RUSPOLI, Stéphane. Présentation, in “L’Alchimie Paris: Berg International éditeurs, 1981. p. 9.

du

Bonheur

Parfait.

Lit.: corrente. Em seu sentido metafórico, a expressão é explicada por Nasr do seguinte modo: "...a corrente que relaciona cada período, episódio da vida e do pensamento no mundo tradicional com a Origem, como se "Vê tão claramente no Sufismo". Traditional Islam in the modern world. Kegan. Londres: Paul International, 1987. p. 13.

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pessoalmente – e não como uma parte indiferenciada de um coletivo abstrato - de uma evolução proposta para este mundo tanto quanto para o próximo: “Ibn Arabî é uma dessas fortes e raras individualidades espirituais que são por si mesmas a norma de sua própria ortodoxia e a medida de seu tempo próprio, porque não pertencem nem ao que se convencionou chamar de “seu” tempo, nem à ortodoxia de “seu” tempo. O que, historicamente, se convencionou chamar de “seu” tempo, não é seu tempo real. Eis porque afetar e ainda crer que esses mestres sejam apenas os representantes de uma certa “Tradição” é esquecer a contribuição importantíssima de seu esforço pessoal, é negligenciar a confiante segurança com que um árabe da Andaluzia como Ibn ‘Arabî ou iranianos, como Abû Ya’qûb Sejestânî (X séc.), Sohravardî (XII séc.), Semnânî (XIV séc.), Molla Sadrâ de Shîrâz (XVII séc.), proclamam que determinada idéia, desenvolvida em determinada página de seus livros, nunca será encontrada em nenhum outro lugar, pois é sua própria descoberta ou fruto de sua experiência pessoal.”43

A Língua Árabe Um costume antigo das famílias árabes era mandar seus filhos recém-nascidos para serem cuidados por famílias de beduínos, nômades do deserto. As crianças ficavam entre suas famílias adotivas até cerca de 8 anos de idade, quando já tinham aprendido o fundamental da vida errante.

43

CORBIN, Henry. L’Imagination créatrice Paris: Flammarion, 1958. p. 12-13.

dans

le

soufisme

d’Ibn

Ârabi,

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O motivo principal desse costume residia na idéia de que os hábitos sedentários continham aspectos de corrupção do corpo, da alma e do espírito. Na bela narrativa de Martin Lings: “A forma de vida de seus antepassados havia sido a mais nobre, a dos moradores de tendas freqüentemente em movimento. Nobreza e liberdade eram indissociáveis, e o nômade, livre. No deserto, o homem se sentia consciente de ser o senhor do espaço e, em virtude desse senhorio, escapava, de certo modo, do domínio do tempo. Ao levantar o acampamento, se desprendia de seu passado e o amanhã parecia ter uma fatalidade menor se o onde e o quando ainda estavam por vir. O habitante da cidade, contudo, era um prisioneiro; estar estabelecido em um lugar – ontem, hoje, amanhã – era ser um alvo para o tempo, o destruidor de todas as coisas. As cidades eram centros de corrupção. À sombra de seus muros, a ociosidade e a negligência viviam à espreita, prontas para embotar a atenção e a vigilância do homem. Tudo decaía ali, inclusive a linguagem, uma das posses mais preciosas do homem. Poucos árabes sabiam ler; ainda assim, a beleza da fala era considerada uma virtude que todos os pais desejavam para seus filhos. O valor de um homem era, em grande parte, julgado por sua eloqüência, e o coroamento da eloqüência era a poesia. Ter um grande poeta na família era motivo de grande orgulho e os melhores poetas procediam, quase sempre, de uma ou outra das tribos do deserto, porque era no deserto que a língua falada encontrava-se mais próxima da poesia. Assim, pois, a cada geração era preciso renovar o vínculo com o deserto – ar puro para o peito, árabe puro para a língua, liberdade para a alma (...).”44

44

LINGS, Martin. Muhammad, op. cit., p. 31

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A expressão “língua simbólica” seria certamente considerada um pleonasmo entre os lingüistas contemporâneos. No entanto, no caso de línguas como o árabe e o hebraico essa expressão se aplica com um sentido particular. Trata-se de línguas cujas letras e palavras obedecem às leis não apenas de um simbolismo mas de uma ciência simbólica. Na obra de Ibn ‘Arabî, a Ciência das Letras (ilm al-hurûf) constitui o conhecimento da comunidade (umma) que é o alfabeto (alifat ), com seus Enviados (rusul), suas Leis ( sharî’a ), enfim, com sua estrutura análoga à das comunidades humanas. Trata-se, portanto, de seres vivos, não de signos abstratos, o que vem trazer implicações de inúmeras ordens, entre elas, a perspectiva de que a língua não seria nem convencional, nem uma representação das coisas e nem uma aquisição gradativa, histórica, do homem. Diferentemente de representações, seres vivos interagem entre si e produzem realidade. Longe de ser um espelho do mundo, a língua seria a sua fonte, a paisagem original de onde brotam as formas da Criação. É por esse motivo que a ciência das letras, como, de resto, toda ciência simbólica, é reputada como tendo o poder de prever acontecimentos, realizar curas, operar “magias”. Mas esta seria, segundo o Shaykh, uma virtude menor dessa ciência cuja vocação é metafísica. Nesse sentido, sua grandeza reside na possibilidade da “leitura” do “grande Corão” que é o universo, isto é, na instrumentalização do homem, que é o “livro” intermediário entre o universo e o Livro revelado. O Corão, por ter sido revelado numa “língua simbólica”, é uma síntese do universo humano (microcosmos) ou natural (macrocosmos). Particularmente interessante é o estudo das raízes nas línguas semíticas. As consoantes da língua cumprem um

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papel paradigmático na estrutura das significações. No caso do hebraico, esse papel é tanto mais evidente com a “supressão”45 dos diacríticos (que cumprem o papel de vogais) das primeiras versões da Torá. No árabe, os diacríticos existem desde sempre, mas a raiz trilítera é básica na língua, basta saber que é pela raiz que as palavras são buscadas no dicionário. Tomemos um exemplo. A raiz MLK, do verbo malaka – cujos significados são reger, reinar, exercer autoridade, ser senhor de, dominar, tomar posse, adquirir, possuir, ter, ser proprietário – produz o significado rei (malik), anjo (malaka), reino terrestre (mulk) e reino celeste (malakut) conforme variam as vogais. Na dimensão interior, há, portanto, uma vinculação, uma cadeia simbólica diretamente expressa na raiz das palavras, que unifica o anjo ao rei, àquele que reina, que possui, que é senhor de, que exerce autoridade sobre o reino terrestre e celeste46 que constitui cada homem, cada um de nós. Desse modo, “ler” apenas a raiz MLK significa ler ao mesmo tempo todas essas significações. Isto é, ler passa a ser sinônimo de meditar, de atravessar um paradigma, de percorrer uma cadeia analógica, de galgar os degraus da escada simbólica dos planos (céus) de realidade que compõem o tecido cósmico. Além da meditação possibilitada pela leitura fluida e corrente do texto, há outras dimensões propostas pela língua árabe.

45

Na verdade elas não foram suprimidas, simplesmente elas não existiam no livro. Muito recentemente é que uma versão, com diacríticos, foi fixada como oficial.

46

Lâhût e nâsût, respectivamente, as naturezas espiritual e humana de cada homem.

110

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O texto escrito pode ser experimentado, a partir da ciência das letras, através de recursos apenas possíveis à estrutura dessas línguas. O chamado Sistema ABJAD é um procedimento “cabalístico” no qual as letras do alfabeto são assimiladas a números. Segundo o valor numérico de cada palavra, obtido pela soma das letras, é possível obter outras palavras e, assim, “revelar” outros significados implícitos: tomemos a palavra Muhammad: as consoantes são m, h, m, m, d, e a soma equivale a (m=40) + (h=8) + (m=40) + (m=40) + (d=4) = 132 Erro! Indicador não definido. 132 é igual a 100 + 30 + 2, ou seja, três outras letras, a saber, q=100, l=30 e b=2, formando a raiz qlb, que é a raiz da palavra qalb, coração. Assim, um dos desdobramentos simbólicos de Muhammad é o que é expresso pela palavra/símbolo Coração. Além da evidente riqueza oferecida por esse sistema para o estudo metafísico, o ABJAD fornece pistas para a compreensão de textos excessivamente herméticos. Um exemplo disso é a explicação fornecida por Idries Shah com relação às crenças sobre as bruxas na Idade Média47. Segundo ele, a origem da palavra bruxa (bruja) encontrase na Espanha sarracena, mais precisamente na ordem sufi dos maskhara, também chamados mabrush, “marcados pela pele”. O imaginário da época construiu uma série de

47

SHAH, Idries. Los Sufies. 1975. p. 208 – 215.

Luis

de

Caralt.

(Ed.

)

Barcelona,

España.

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falsas interpretações sobre as atividades dessa ordem, até hoje vigentes como “práticas” de “bruxaria”. Shah nos fornece uma análise exaustiva da questão, esclarecendo cada ponto em particular, o que não seria o caso reproduzir aqui. Eis, como ilustração, dois exemplos: 1. Com relação à crença de que os bruxos faziam um “caldo com os membros esquartejados de crianças não batizadas”, os mabrush utilizavam um ungüento feito com raiz de mandrágora que, como se sabe, lembra uma forma humana diminuta, ou uma “criança” que, por ser uma planta, não é batizada. 2. Quanto à idéia de um culto demoníaco, em que um dos membros usaria chifres para representar o Diabo numa dança macabra, ficamos sabendo que essa ordem é originária de uma tribo de beduínos, os Aniza, que adotou a cabra (Anz), cujo nome é análogo ao da tribo, para celebrar um de seus poetas, o mestre Abu elAthahiyya, e simbolizar “a luz da iluminação do intelecto (cabeça) da cabra”, o mestre aniza. Num estudo sobre a “linguagem secreta” dos “Sufis”, o mesmo autor fornece outra série de exemplos da utilização do Abjad como chave interpretativa: “Suponhamos que queremos nomear um livro, cujo título indique que seu conteúdo é algo secreto, talvez informações de processos secretos. Poderíamos chamálo Fonte de Crônicas, em árabe Umm el Qissa. Examinemos as palavras que escolhemos e seus significados: UMM = mãe, matriz, fonte, princípio, protótipo EL = de QISSA = crônica, história, conto Agora vemos que Umm el Qissa pode significar algo

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equivalente a: Mãe de crônicas, Fonte de histórias, Protótipo de contos. Se todas essas alternativas nos parecem aceitáveis, cifraremos as letras substituindo-as por seus equivalentes numéricos da lista Abjad. Ao juntarmos, a soma é 267. Agora temos que encontrar um título para nosso livro que seja bastante descritivo ou poético, constituído por letras que nos dêem o mesmo número 267. Nosso novo título pode ser: Alf layla wa layla. Isto significa As mil e uma noites.”48 Enfim, em seus quatorze séculos de existência, o Islam deu ao mundo uma cultura simbólica que, estendendo-se, hoje, por mais de um quarto do planeta, comporta a variedade, a harmonia e a unidade de um caleidoscópio; mas, quem quiser realmente vê-lo, terá de ajustar suas lentes e produzir termos de referência mais sofisticados que os do racionalismo imposto pela já tão antiga Modernidade. Uma religião que, como previu seu Profeta, já não possui o mesmo vigor inicial mas que, não obstante, ainda mostra sinais de uma potência capaz de, mais uma vez, sacudir o esquecido ( al-insân) homem ocidental, profundamente adormecido para a dimensão simbólica do Real.

48

Idries Shah, Los Sufies, op. cit., p. 178.

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Bibliografia Básica MARTIN, Lings. Muhammad – Su vida, basada en las fuentes más antiguas. Hiperión: Hiperión, 1989. NASR, Seyyed Hossein. Islam. Paris: Buchet/Chastel. 1975. NASR, Seyyed Hossein, Traditional Islam in the modern world. Londres: Kegan Paul International, 1987. SCHUON, Frithjof. Comprendre L’Islam, Paris: Du Sevil, 1976. SHAH, Idries. Barcelona: Los Sufies . Luis de Caralt. 1975, p. 152.

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