Superando as restrições testamentárias \"pressupostas\" no Brasil em razão de deficiências físicas: auditiva, fonadora, visual e motora.

June 12, 2017 | Autor: Lisieux Borges | Categoria: Civil Law, Direito Civil, Inclusão de pessoas com deficiencia, Direito de Sucessão
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Superando as restrições testamentárias “pressupostas” no Brasil em razão de deficiências físicas: auditiva, fonadora, visual e motora Lisieux Nidimar Dias Borges. Advogada. Mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Especialista em Direito Civil pelo IEC-PUC/MG. Professora de Direito Civil. Sumário: 1) Introdução. 2) Entender a deficiência, para então, superar as restrições testamentárias. 3) Os testamentos, no Brasil, estão em descompasso com a nossa realidade social. 4) Restrições Testamentárias “pressupostas” em razão das deficiências físicas: 4.1) A pessoa com deficiência auditiva total (pessoa surda), 4.2) A pessoa com deficiência fonadora total (pessoa muda), 4.3) A pessoa com deficiência auditiva e fonadora totais ( pessoa surda-muda), 4.4) A pessoa com deficiência visual total ( pessoa cega),4.5) A pessoa com deficiência motora, ou com ausência de um, ou alguns, membros. 5) Considerações Finais. 6)Referências Bibliográficas. Resumo: O presente artigo tem como finalidade refletir e repensar as restrições testamentárias pressupostas, e impostas, às pessoas que têm deficiências físicas: auditiva, fonadora, visual e motora. O atual sistema social e jurídico que hoje se tem no Brasil, Pós-Constituição de 1988, de caráter inclusivo, democrático e que busca a implementação da dignidade de cada um de seus cidadãos, não mais comporta que direitos sejam negados com base em presunções de incapacidade, que na atualidade, não são mais absolutas. Hoje, em virtude de diversas tecnologias assistivas, bem como de ações inclusivas de setores públicos e privados, o fato de possuir alguma deficiência não significa estar segregado do meio social que se faz parte, e muito menos, que não se tenha capacidade de exprimir sua vontade de forma plena e sem obstáculos. Assim, no Brasil do século XXI, se faz necessário refletir e superar estas restrições de caráter excludente, e buscar novas soluções para o tema. Palavra – Chave: Deficiência Física; Restrições Testamentárias; Dignidade da Pessoa Humana; Constituição Brasileira de 1988. Abstract: This present article aims to reflect and rethink the testamentary restrictions that are presupposed, and imposed, to people with physical disability: hearing, speech, visual and of movement. Today, the Social and Law Systems, that we do have on Brazil, after Constitution of 1988, that is inclusive, democratic, and pursuits the implementation of human dignity to all the citizens, do not accept anymore, that rights be denied based on presumptions of inabilities, that nowadays, are not absolutes. Now, there are lot of assistive technologies, and too many inclusive polices from public and private sectors, so, the fact that anyone have a disability, do not necessary means that this person is segregated from social environment where belongs, or that is not able to expose your will with plenitude and without obstructions. Then, in the Brazil of XXI century, it’s necessary to rethink, and get over these restrictions that are segregating, and bring out new solutions for the theme. Key-Words: Physical Disability; Testamentary Restrictions; Human Dignity; Brazilian Constitution of 1988. 1) Introdução O presente artigo tem como finalidade refletir, e repensar, as restrições testamentárias que o legislador civil pressupõe, e impõe, para certas pessoas que possuem deficiências de natureza física 1,

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O presente artigo limitou-se a tratar da superação das restrições testamentárias relacionadas às deficiências de natureza física, deixando, assim, de tratar das restrições que também são impostas àquelas pessoas que possuem deficiências de natureza mental. No entanto, defende-se de igual modo, à possibilidade de superação das restrições testamentárias no que tangem as deficiências mentais, que devem ser apuradas em cada caso, pois, o nosso atual sistema jurídico de caráter inclusivo precisa se adequar, bem como agir com temperança sobre o tema, uma vez que, as deficiências mentais possuem graus e limitações distintas. Hoje, na atualidade, temos diversos casos de pessoas que possuem certas deficiências, e mesmo assim, estão totalmente integradas em nosso meio social, exemplos clássicos, são as pessoas que possuem Síndrome de Down ( RUSCHEL; FONTES, 2015) (FSDOWN, 2015). Do ponto de vista jurídico brasileiro, as pessoas que possuem esta síndrome são consideradas pessoas com desenvolvimento mental incompleto, logo,

independentemente, de que estas mesmas pessoas sejam totalmente capazes de discernir sobre os atos de sua vida, e, de exprimir sem quaisquer obstáculos, ou vícios, a sua vontade. Há, assim, uma presunção legal de incapacidade, e, em muitos casos, absoluta, de que pessoas com deficiências não podem exercer suas faculdades de testar de forma plena e livre, ficando restritas a certos modos de testar, ou mesmo em certas circunstâncias, sem a possibilidade de fazer seus testamentos. Apesar destas restrições, a priori, possuírem um viés protetivo da pessoa com deficiência, se faz necessário a reflexão de que esta presunção de incapacidade legal não pode ocorrer de forma absoluta em nossa atualidade, primeiramente, porque vivenciamos um momento social e cultural inclusivo, onde nosso Estado busca integrar em sua ação política e jurídica os conceitos de igualdade e de diferença. Logo, o pluralismo social em todas as suas nuances faz parte, e, é algo próprio das democracias contemporâneas, de modo que reconhecer direitos às minorias é um dos sustentáculos dos Estados hoje. E, sendo assim, é necessário que se avalie que as pessoas, ainda que com suas diferenças inatas, em respeito a sua personalidade e dignidade, devem de forma livre exercer seus direitos, de modo que quaisquer restrições somente devem ter lugar, se comprovado real possibilidade de prejuízo para estas pessoas. Em segundo lugar, a integração e a inclusão destas pessoas com deficiências em nossa sociedade hodierna trata-se de realidade patente, principalmente, em razão de diversas tecnologias assistivas, que já estão disponíveis, e, corroboram com esta inclusão. Logo, partindo destas premissas de inclusão e de possibilidade de superação das deficiências, que serão desenvolvidos aqui argumentos, no sentido de que se faz necessário outro olhar para as restrições testamentárias impostas em razão destas deficiências físicas auditivas, fonadora, visual e motora, donde concluiremos, que em nosso atual paradigma de Estado Democrático de Direito se fará necessário, urgentemente, de outra práxis, tanto legal, quanto judicante, quando estivermos diante de atos jurídicos praticados por pessoas com deficiências. No Brasil, não temos a cultura de fazer testamentos, as nossas sucessões causa mortis em sua maioria ocorrem ab intestato, ou seja, sem testamento2. Opera-se, então, aquela sucessão em decorrência da

relativamente incapazes, art. 4, inc. III, CC/02. Porém, vários são os exemplos de pessoas que têm a síndrome e estão totalmente integradas, e participam da sociedade: são trabalhadores em grande multinacionais (G1,2015), ou são artistas (GALVÃO,2013), ou concluintes de graduação (SAMPAIO, 2015), ou até mesmo, estejam incluídos na vida pública, como é o caso da espanhola Ângela Bachiller, que possui a síndrome, e se tornou vereadora na cidade de Valladolid(FOLHA,2013). Estes poucos exemplos, apenas mostram que aos graus de deficiência são diversos. Outra possibilidade de reflexão diz respeito à capacidade de testar daquelas pessoas que mesmo com alguma deficiência tenham, no entanto, alcançado o desenvolvimento mental de pessoa com 16 anos, assim, seria necessária a reflexão de que mesmo com desenvolvimento mental retardado teriam capacidade para testar de forma personalíssima e sem a intervenção de terceiros (vide parágrafo único, art. 1860, CC/02). Assim, em razão da complexidade do tema, e extensão, optou-se por tratar apenas das restrições relacionadas às deficiências físicas neste artigo, e, em posterior artigo, que se seguirá a este, serão tratadas as restrições testamentárias relacionadas às pessoas com deficiências mentais. 2

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não possui os números totais de testamentos que são registrados e executados em âmbito nacional, ao se compulsar o site da referida instituição, e seus documentos sobre o tema, vemos que os dados são abrangentes e não possuem números divididos por tipos processuais (CNJ, 2015). A busca por estes dados específicos também restou infrutífera ao proceder igual pesquisa no site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O referido Tribunal, a par de também possuir dados estatísticos sobre os processos que lá tramitam, de igual modo possui dados abrangentes, e não especificamente por tipos processuais (TJMG, 2015) No entanto, é possível averiguar a discrepância entre os números de sucessões hereditárias e testamentárias de forma indireta, através dos dados do Colégio Notarial do Brasil que afirmam que no ano de 2014 foram registrados em média 28 (vinte e oito) mil testamentos, e que entre os anos de 2010 e 2014, houve um crescimento de 62% (sessenta e dois por centos) do número de testamentos lavrados no Brasil (CNB-SP, 2015)(DIÁRIO, 2015). Com estes dados, podemos concluir que as sucessões ab intestado, que ocorrem diuturnamente em nosso país, são um número ínfimo ao se comparar com as sucessões hereditárias. Porém, é preocupante, que em plena Era da Informatização, estes dados não sejam exatos e concretos, e que não sejam também colacionados pelo Poder Judiciário, mas que tenhamos que concluí-los por estimativa percentual entre os testamentos lavrados e mortes as efetivas. Além disso, nesta porcentagem apurada pelo Colégio Notarial do Brasil, não se incluem os testamentos particulares, que apenas se conhecem quando levados a execução pelo Poder Judiciário.

lei, chamada entre nós, de sucessão hereditária. Não temos o hábito de refletir e planejar a morte, como se a morte não fosse uma parte essencial e inevitável da vida (DIAS, 2008)(HIRONAKA, 2014) (TARTUCE, 2011). Perecer, deixar de existir fisicamente, sem quaisquer indagações metafísicas, é uma das poucas certezas científicas e imutáveis que nossa Ciência comprova e afirma, mas, ainda assim, temos dificuldades de enfrentar esta máxima. Se, é assim, se a morte um dia irá tocar a todos nós, por que, então, não utilizar da liberalidade que a lei nos faculta de estabelecer os destinos de nossos bens patrimoniais, pessoais, personalíssimos e imateriais para depois de nossa morte, de forma coerente com nossas vontades e em respeito a nossa dignidade? Os testamentos, deste modo, devem ser vistos como um verdadeiro ato de expressão da liberdade e da dignidade de cada um de nós, onde nos é permitido não apenas tratar de questões de natureza patrimoniais, que de regra sempre são tratados nestes instrumentos, mas, no entanto, devem ser entendidos como um verdadeiro ato de auto-afirmação de nossa dignidade e de nossa individualidade, que uma vez tendo existido e produzido relações sociais e jurídicas merecem respeito pela constatação da vida 3, e da vida humana, como sendo algo de maior relevância, bem como o centro de preocupação impreterível dos Estados Contemporâneos. Logo, já que a morte é inevitável, e, que os testamentos são uma forma de irradiar nossa personalidade humana, denotando nossa possibilidade de criar, modificar e extinguir as relações jurídicas mesmo no post mortem, e ainda, que testar significa se situar no mundo enquanto pessoa capaz, apta e única, eis que surge uma inconstância em nosso sistema legal em sede de sucessão testamentária, onde existem algumas pessoas, que mesmo consideradas capazes, em razão de suas deficiências físicas ficam restritas quanto ao seu modo de testar, ou mesmo vedadas de fazê-lo. Não é mais factível, que em pleno Século XXI, depois de tantos avanços em sede de inclusão social, e após diversos documentos legislativos neste sentido, sejam nacionais4, sejam internacionais, que ainda hoje, persistam entre nós restrições “pressupostas” de caráter inafastável, sem que se considere que as deficiências possuem graus diferenciados, logo, o tratamento dado a estas deficiências deve ser diferenciado, e avaliado caso a caso. A própria noção de conferir dignidade a pessoa humana tem em si esta conotação ampliativa, pois, cada um possui seus anseios, aspirações e entendimentos de mundo diferenciados, e , respeitar que a diferença é algo inerente ao humano, trata-se da ordem do dia em nosso Estado Brasileiro, que se propõe ser de Direito e Democrático. Diante disto, não se torna compreensível e nem mesmo aceitável, que não seja feita uma devida adequação desta hermenêutica constitucional às disposições sobre testamentos produzidos por pessoas com deficiência. O presente artigo tem como finalidade refletir sobre estas restrições testamentárias “pressupostas” em razão de deficiências físicas da pessoa humana, bem como ponderar a necessidade de um novo rumo legislativo para estas questões, bem como uma readequação doutrinária sobre o tema.

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Neste sentido, a vida, em todas as suas expressões, merece respeito e deve ser protegidas pelo Estado, de modo a compreender que o homem está contextualizado em um ambiente com vida por todos os lados, e prescinde deste ambiente saudável para sua própria manutenção e sobrevivência (AZEVEDO, 2008). Além disto, do ponto de vista, constitucional, há fortes argumentos que nos permitem a compreensão de que o biocentrismo tem lugar em nosso sistema jurídico, ao proteger a dignidade da pessoa humana em sua toda sua dignidade no art.1º, CF/88, e mais adiante, ao estabelecer a necessidade de um meio ambiente equilibrado e sustentável para as gerações atuais e futuras, art. 225, caput, CF/88. 4

Ressalta-se que recentemente, no ano de 2015, foi promulgado no Brasil, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, denotando a posição de nosso Estado em conferir e proteger estas pessoas. Porém, ainda que signifique grande avanço legislativo, esta lei deixou de tratar de tema de grande relevância, qual seja, a necessidade de compreender que a capacidade jurídica deve ser ponderada e considerada caso a caso. No entanto, ainda que, não se tenha tratado desta questão de forma direta, Rodrigo da Cunha Pereira (2015) acredita que a partir desta lei será possível esta reflexão.

2) Entender a deficiência para, então, superar as restrições testamentárias Antes de ser possível propor uma superação de um paradigma ainda vigente entre nós, é importante discutir, ainda que brevemente, a compreensão de deficiência que hoje temos no Brasil. O Direito, em regra, agregou para dentro de si, conceitos de natureza médica sobre o tema, porém, a partir de 2006, com a Convenção da ONU sobre pessoas com deficiência, que foi ratificada pelo Brasil em 20085, o conceito de deficiência passa a sofrer um alargamento de sentido, onde os contextos e interações sociais passam a contribuir também com a sua compreensão: A deficiência é um “conceito”. Essa declaração contida na letra “e” do Preâmbulo da Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência traz em si uma mudança fundamental de paradigma no entendimento do fenômeno da deficiência. A partir dela, a deficiência, em sendo um conceito, não é mais somente uma condição pessoal definida por critérios funcionais, como a paraplegia ou a surdez, por exemplo. Segundo o conceito de deficiência da ONU, esta passa a ser um fenômeno social, cuja manifestação requer a interação entre a as condições pessoais e as barreiras ambientais que impeçam ou limitem a interação social. No Brasil, particularmente, com a recepção da Convenção pelo sistema jurídico com natureza de emenda constitucional, é preciso que o novo conceito de deficiência seja analisado a fundo para que a legislação e mais, a sociedade brasileira, passem a ter uma nova percepção do fenômeno da deficiência. (MONTANARI, 2015).

Com esta nova compreensão de deficiência, temos que se trata de um conceito aberto, adaptável às modificações sociais, e que não apenas as condições pessoais e funcionais das pessoas irão construir o referido conceito, mas também, as condições objetivas do ambiente em que se inserem, e que poderão inviabilizar a interação social destas pessoas. Neste sentido, faz parte do próprio entendimento da deficiência a necessidade de que estas barreiras sociais sejam suplantadas, a idéia de inclusão surge como conseqüência do próprio conceito abrangente que se tem para a deficiência hoje. Mas, ainda que um conceito, não significa dizer que as definições de caráter médico estejam dispensadas, pois, para fins de concessão de direitos vários, é necessário que entre nós, exista a fixação de critérios hábeis para a conferência de certos direitos que estejam relacionadas às estas pessoas. Porém, estes critérios em razão da abertura do conceito poderão sofrer alterações, sempre que a sociedade se modificar. Neste sentido, vale aqui uma diferenciação de caráter médico entre deficiência, incapacidade e desvantagem, todos estes conceitos estão intimamente relacionados e determinam o grau, ou intensidade, das deficiências. Esta classificação foi proposta na IX Convenção Internacional da Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1976, surgindo, então, a Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (CIDID). Esta classificação, apesar de ser limitada para tratar do tema, ainda sim, mostrou-se hábil, pois, “é referência unificada para a área. Estabelece com objetividade e abrangência e hierarquia de intensidades, uma escala de deficiências com níveis de dependência, limitação e seus respectivos códigos” (AMIRALINAN, et al, 2000, p.98). Esta classificação proposta pelo CIDID tem sido utilizada por diversos países para “a determinação da prevalência das incapacidades, aplicada à área de seguro social, saúde ocupacional, concessões de benefícios e, em nível comunitário, em cuidados pessoais de saúde ou como forma de avaliar pacientes em reabilitação” (AMIRALINAN, et al, 2000, p.98). Conforme o CIDID tem-se que deficiência é: Perda ou anormalidade de estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, temporária ou permanente. Incluem-se nessas a ocorrência de uma anomalia, defeito ou perda de um membro, órgão, tecido ou qualquer outra estrutura do corpo, inclusive das funções mentais. Representa a exteriorização de um estado patológico, refletindo um distúrbio orgânico, uma perturbação no órgão (AMIRALINAN, et al, 2000, p.98).

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Trata-se do Decreto nº6949, de 25 de Agosto de 2009.

Já incapacidade é entendida como: Restrição, resultante de uma deficiência, da habilidade para desempenhar uma atividade considerada normal para o ser humano. Surge como conseqüência direta ou é resposta do indivíduo a uma deficiência psicológica, física, sensorial ou outra. Representa a objetivação da deficiência e reflete os distúrbios da própria pessoa, nas atividades e comportamentos essenciais à vida diária (AMIRALINAN, et al, 2000, p.98).

E, por fim, considera-se desvantagem o: Prejuízo para o indivíduo, resultante de uma deficiência ou uma incapacidade, que limita ou impede o desempenho de papéis de acordo com a idade, sexo, fatores sociais e culturais Caracteriza-se por uma discordância entre a capacidade individual de realização e as expectativas do indivíduo ou do seu grupo social. Representa a socialização da deficiência e relaciona-se às dificuldades nas habilidades de sobrevivência. (AMIRALINAN, et al, 2000, p.98).

Com base nestas três distinções, já podemos de antemão afirmar que na contemporaneidade, em razão das diversas ações de natureza inclusiva de caráter público e privado, hoje disponíveis, e em razão das diversas tecnologias de apoio às pessoas com deficiência, a máxima de que todas as pessoas com deficiência têm incapacidades, e estão em desvantagens não é absoluta. Neste sentido de argumento tem-se que: Podemos afirmar, assim, que se o impedimento que a pessoa tem não lhe traz qualquer dificuldade de integração social, seja no trabalho, seja no desenvolvimento das demais atividades cotidianas, não se enquadra tal pessoa no conceito de pessoa com deficiência trazido pelo nosso sistema jurídico (MAIA, 2015).

Porém, o que vemos em nossa legislação civil é uma postura totalmente avessa a esta realidade, que pressupõe que deficiência é sinônimo de não ser apto a produzir seus atos jurídicos de forma plena e autônoma. A seguir, passaremos a necessária reflexão de que este paradigma deve ser afastado, e que existe real possibilidade de que em certas situações, pessoas que possuem deficiências possam testar, mesmo naqueles momentos em que a principio a lei vem vedar totalmente a hipótese. 3) Os testamentos, no Brasil, estão em descompasso com nossa realidade social Hoje, no Brasil, nós testamos quase que exatamente da mesma forma como que há cem anos, ou seja, do mesmo modo que testava o homem brasileiro do início do século XX, sob a vigência de nossa primeira codificação civil, o Código Civil de 1916. Isto ocorre, porque mesmo tendo acontecido diversas modificações sociais, culturais e mesmo legislativas no âmbito infraconstitucional e constitucional de diversas ordens no Brasil, a nossa tradição civil codificada, e nosso processo legislativo demorado, fez com que a proposta de renovação da legislação civil, enquanto, código, tramitasse pelas casas do Legislativo por quase trinta anos. Assim, o Anteprojeto de Código6, que posteriormente veio a se tornar o Código Civil de 2002, acabou por representar a mentalidade do homem brasileiro do século passado, da década de 70, que ainda se adaptava as modificações sociais e tecnológicas que surgiam, bem como, com a franca, porém lenta, conferência de direitos às mulheres e às minorias sociais, que, enfim, passaram a ocupar os espaços públicos e privados, participando mais efetivamente nas decisões políticas do Estado, provocando uma verdadeira revolução dos costumes sociais.

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Os idealizadores do anteprojeto do Código Civil de 2002, que sem quaisquer embargos, eram homens de vasta cultura jurídica e buscaram legiferar em conformidade com condições temporais que possuíam, pelo tardar do processo legislativo (que emendaram e reemendaram suas propostas legislativas, sem, contudo, conseguir fazer uma atualização a contento), viram a sua louvável tentativa de atualização de nossa lei civil, ser transformada em uma verdadeira colcha de retalhos, com partes realmente modernas e atualizadas, e outros momentos com partes de mera reminiscência histórica sem qualquer representatividade para nós.

Com este cenário, tem-se uma legislação totalmente em descompasso com nossa sociedade atual do século XXI, que é extremamente informatizada (LEVY, 1999), de massa e globalizada (GIDDNES, 2003), volátil (BAUMAN, 2004), centrada na busca da concretização de sua felicidade (PEC nº19/10). Assim, o Código Civil de 2002, que nem ao menos completou vinte anos de existência não representa de forma fiel o homem do seu tempo. Em muitos momentos, como é o próprio caso das disposições sobre a sucessão testamentária, o Código Civil de 2002, apenas repete as disposições contidas na codificação de 1916. Trata-se de um anacronismo patente e pungente. Especificamente, no que concerne aos testamentos, a repetição das disposições passadas neste século que se desponta, pois, em nada acompanhou nossas tendências tecnológicas 7, que muito poderiam contribuir para uma maior segurança jurídica dos testamentos8, e até mesmo possibilitar uma ampla inclusão das pessoas com deficiência, através das diversas tecnologias assistivas9. Hoje, existem diversos recursos disponíveis de tecnologia assistiva, que podem variar de uma simples bengala a um complexo sistema computadorizado, incluem-se também brinquedos e roupas adaptadas, computadores, softwares e hardwares especiais, que contemplam a acessibilidade, dispositivos para adequação da postura sentada, recursos para mobilidade manual e elétrica, equipamentos de comunicação alternativa, chaves e acionadores especiais, aparelhos de escuta assistida, auxílios visuais, materiais protéticos e milhares de outros itens confeccionados ou disponíveis comercialmente (O QUE É, 2015). Contudo, ainda que em descompasso, ainda que em real perigo de cair no ostracismo, ainda vigoram entre nós estas formas testamentárias tipificadas e que repetem as disposições de nosso código civil revogado10. Há que se vislumbrar, também, que o legislador civil de 1916 era premido de uma necessidade

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Ressalte-se, que no Brasil, a partir de 2002, com a edição da Medida Provisória 2.200/2, os documentos eletrônicos passam a ter a mesma validade e efetividade dos documentos físicos, e ainda maior segurança em razão das assinaturas digitais que conferem a esta espécie a presunção de veracidade e de idoneidade, uma vez que, o sistema criptográfico dos mesmos impossibilita modificações do documento original, e, acena qualquer alteração que possa ser feita posteriormente a sua criação deste documento. 8

É inevitável a reflexão, ainda que incômoda para nós (uma vez que sempre tivemos a idéia e noção de testamento relacionada uma realidade cartular ou física), que enfrentamos e aventemos a possibilidade de que também os testamentos sejam feitos mediante documentos eletrônicos e com a devida assinatura digital. Esta possibilidade não é nada além do que já estamos enfrentado com a informatização do Poder Judiciário através do PJe ( Processo Judicial Eletrônico) (Resolução do CNJ nº185/2013). Se, o próprio Processo Judicial, que será o responsável pelo registro e pela a execução do testamento, ocorrerá em ambiente virtual, onde todos os documentos serão devidamente digitalizados, ou mesmo digitais, com uma posterior assinatura digital, devidamente certificada, por que os testamentos, objeto da demanda não poderiam sê-los da mesma forma? Argumentos contrários a esta hipótese, afirmando que isto seria atentar contra a segurança jurídica do instrumento testamentário, põe em questionamento a própria segurança e legitimidade do Processo Judicial Eletrônico, que hoje se impõem e não temos como afastar. Além disso, a possibilidade de que existam Testamentos Digitais, com assinaturas digitais devidamente certificadas por uma autoridade certificadora reconhecida por nosso Estado, poderiam superar diversas dificuldades que hoje temos em matéria testamentária, como por exemplo, a desnecessidade de que em sede de testamento particular, uma testemunha fosse sobreviva ao testador, pois, se todas as assinaturas fossem feitas digitalmente, e devidamente certificadas, nesta hipótese haveria presunção de veracidade, conforme determina a MP nº2002/2.A tecnologia a serviço dos testamentos é inegável e confeririam maior segurança para estes atos. Contudo, para tanto será preciso, sem quaisquer sombras de dúvidas, um trabalho legislativo e doutrinário atento às novas mudanças que nos cercam. 9

Assistive Tecnology, ou Tecnologia Assistiva no Brasil, é um termo inglês surgido no Direito Norte-Americano através do Public Law 100/407, e renovado em 1998 como Assistive Tecnology Act. Este termo é utilizado para englobar todos os recursos e serviços disponíveis que possibilitem, ou ampliem, as capacidades funcionais da pessoa com deficiência, e por via de conseqüência, sua inclusão social. (O QUE É, 2015). 10

O Código Civil atual repete os mesmos tipos testamentários que eram contemplados pelo revogado Código Civil de 1916. Deste modo, os testamentos podem ser divididos em: Ordinários (Testamento Público, Testamento Cerrado e Testamento Particular), e Especiais ( Marítimo, Aeronáutico e Militar), conforme estabelecem os artigos. 1862 e 1886 do CC/02. O presente artigo restringiu-se a tratar dos testamentos ordinários, pois são a todos permitidos, não sendo necessária a existência de sujeitos qualificados pela lei, porém, muito do que aqui se reflete e sugere poderá se aplicado aos testamentos especiais fazendo as devidas adequações.

de modernização de nossas leis, naquele período Pós-Império e da recente República que surgia, buscava desta forma, aparelhar nossas leis com o que acreditava ser o mais adequado àquele momento histórico. Assim, ao se criar as leis, utilizaram-se dos meios e das tecnologias que dispunha na sociedade de seu tempo. Este deve, sem dúvidas, ser o espírito também do legislador atual, que acompanhando a sociedade e seu desenvolvimento deve agir de tal modo, que as leis estejam de acordo com os modos de agir e com os costumes culturais que hoje adotamos, tais como a informatização e da cibercultura que inevitavelmente vivenciamos (LEVY, 1999). Deste modo, tal como as leis pretéritas acompanharam as novas tecnologias que surgiram com a revolução industrial, devem do mesmo modo as leis atuais acompanhar estas novas tecnologias dos séculos XX e XXI. Assim, é chegado o momento de repensarmos toda nossa práxis testamentária de maneira a reconhecer que não apenas nossas leis sobre o tema estão em desacordo com nossa realidade social, bem como que a par disto, temos toda a possibilidade de refletir e utilizar as novas tecnologias para aperfeiçoar estes instrumentos. E, temos ainda, todo um substrato também de natureza ideológica, filosófica, política e jurídica que se instala entre nós a partir da Constituição brasileira de 1988, onde se busca difundir a idéia de que o ser humano é um ser único e substancialmente diferente de todos demais, de modo que a concretização da sua dignidade está diretamente ligada ao reconhecimento de que somos inerentemente diferentes, e, uma vez sendo diferentes, reconhecer a diferença como inato a todos nós, significa incluir a todos, e conferir tratamento adequado a todos em razão de suas especificidades. Logo, manter este equilíbrio entre as diferenças de cada um de nós, e, as características de abstração e generalidade da lei que a todos devem ser impostos é o desafio que temos que buscar a superar em prol da efetivação deste Estado Democrático de Direito que o Brasil se propôs a partir de 1988. Diante do exposto, a seguir, buscaremos refletir sobre a necessidade de que os testamentos, que hoje estão disponíveis entre nós, superem algumas presunções absolutas de incapacidade que são pressupostas em razão de deficiências de natureza físicas das pessoas humanas. Por óbvio, como ser verá, em alguns momentos estas presunções deverão permanecer, para proteger a hipossuficiência das pessoas, porém, reconhecer que as incapacidades e as deficiências têm graus diferentes, trata-se de reconhecer, como já explicitado, a noção de diferenças de cada um de nós, que deve também ser respeitada. Na atualidade de nosso Direito, no Brasil, bem como do desenvolvimento social e cultural dos dias de hoje, fazer quaisquer restrições de direitos às pessoas sem fundamentos justificáveis, tenham elas deficiência ou não, é um atentado contra sua dignidade e desrespeito aos direitos e garantias individuais que tão arduamente conquistamos na história dos povos. Assim, restringir, proibir e vedar o exercício de qualquer direito11 somente deve ter lugar, quando se tem um jogo a proteção de bens sociais e coletivos, ou ainda, para proteger os titulares dos direitos em questão. 4) Restrições Testamentárias “pressupostas” em razão das deficiências físicas Do ponto de vista histórico, bem como do contexto social em que surgiu o Código Civil de 1916, existia sentido e até mesmo certa coerência, que o legislador daquela época se preocupasse e criasse restrições testamentárias para aquelas pessoas tinham certas deficiências. Pois, naquele cenário a mentalidade em relação às pessoas com deficiência era iminente excludente, e inexistia um aparato tecnológico hábil a superar tais deficiências. Havia, de fato, uma exclusão social dos indivíduos com deficiência, então, o legislador buscava proteger esta pessoa que vivia marginalizada.

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Importante trazer aqui uma noção básica de Teoria Geral do Direito, qual seja, a idéia de que o exercício de qualquer direito conferido, tem como fundamento a autonomia de cada um, porém, esta autonomia somente se mantém se considerarmos que a liberdade é expressão máxima desta autonomia, e sem liberdade, nenhum direito chega a sua efetivação e concretização. Deste modo, a idéia de liberdade, este direito fundamental (art.5º, caput, CF/88), é o sustentáculo de todo o sistema jurídico que construímos baseado na conferência de direitos, que somente chegam a termo, se pessoas livres puderem decidir pelo exercício destes mesmos direitos (AMARAL, 2008). Logo, fazer restrições à liberdade de alguém, sem uma justificava fundamentada, e que não se sustente por suas circunstâncias, é atentar contra o sistema jurídico como um todo, e na própria compreensão de validade e legitimidade dos Estados Democráticos.

Porém, com o passar do tempo, e do evoluir da sociedade no século XX, vimos grandes conquistas de direitos em prol das pessoas com deficiência, onde há uma verdadeira sensibilização sócio-cultural, no sentido, de compreender que a diferença é parte fundamental de uma democracia, e conviver com diferenças, e idéias contrapostas, em equilíbrio, é ponto fundamental dos Estados contemporâneos democráticos e de direitos. Além disso, vimos, também, uma explosão tecnológica e de informatização, que se agrega diariamente aos nossos costumes, e, muitas destas tecnologias, de caráter assistivo, têm corroborado para que as pessoas com deficiências participem da sociedade de forma integrada e inclusiva. Assim, neste século XXI, cenário social totalmente contrário aquele cenário de desenvolvimento do Código Civil de 1916, faz-se necessário refletir estas restrições testamentárias pressupostas, que tal como antigamente, ainda sem impõe e permanecem inalteradas hodiernamente. Conforme já explicitado, a nossa atual legislação sobre o tema, Código Civil de 2002, apesar de sua promulgação ter pouco mais de uma década, cingiu-se a repetir estas restrições testamentárias que valiam, e tinha razão de ser a cem anos atrás. Não é mais aceitável, ou mesmo sustentável, que existam pressuposições de incapacidade de praticar certos atos, sem a necessária ponderação de que a pessoas com deficiência hoje, não mais se equiparam as pessoas com deficiências de um século atrás. O que vemos atualmente, é que certas pessoas capazes, mesmo as sendo, mesmo tendo total compreensão da vida e podendo discernir sobre todas as coisas, estão impossibilitadas de fazer certos tipos de testamentos, ou mesmo impossibilidades de fazer quaisquer tipos de testamentos. Pontes de Miranda, inclusive, ao comentar nossa codificação anterior, sobre este tema especificamente já afirmava, hoje em nosso sistema, temos pessoas capazes que não podem testar. (MIRANDA, 1984, p.127). Sem embargo, de que em certos momentos é necessário que se criem normas que busquem proteger aquelas pessoa que não podem por si mesmas ter um total entendimentos da prática de seus atos, ou mesmo que não possam exprimir sua vontade de forma coerente e com o que de regra se espera na vida comum12, certo é também, que esta pressuposição de incapacidade nos dias atuais, não pode mais ser absoluta, porém, relativa, e baseada e conferida caso a caso. No entanto, nossa doutrina pátria, ainda hoje, se mantém em repetida glosa sobre o tema, repetindo tais restrições, e fazendo as mesmas interpretações, tal como eram feitas em nosso passado, sem levar em consideração que é necessário uma readaptação da legislação as novas tendências inclusivas de nosso Estado. Com isto, temos que as restrições testamentárias contidas em nosso direito, se aplicadas sem qualquer ponderação, sem levar em conta que as deficiências possuem graus diferentes, bem como que existem meios ou veículos que possam superar ditas dificuldade, estaríamos mais uma vez criando um sistema de exclusão entre as pessoas, o que nosso Estado a partir da Constituição de 1988, não mais aceita. Hoje, em nossa legislação civil, temos duas ordens de restrições testamentárias, restrições testamentárias para as pessoas com deficiências físicas (auditiva, fonadora, visual e motora), e restrições testamentárias para pessoas com deficiências mentais (diversas doenças de natureza psíquicas ou neurológicas podem ter natureza incapacitante total ou parcial da vontade de alguém). Em geral, nem o legislador, e nem mesmo a doutrina (comentadores da lei), ou a jurisprudência tratam da questão de forma ampla, de modo a fazer uma análise caso a caso das referidas restrições. Aqui, ainda que de forma breve, iremos tratar de cada uma destas hipóteses no que concerne às deficiências físicas, na tentativa de refletir

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Um exemplo clássico seria daquela pessoa que possui deficiência visual, auditiva, e, conseqüentemente, não desenvolve a fala, está seria uma hipótese clara de incapacidade, em regra. Nesta hipótese, em razão das impossibilidades sensoriais da pessoa, a mesma poderá não conseguir ter uma interação com o mundo externo de modo hábil a compreender o seu funcionamento, e muito menos, de conseguir impor sua vontade na criação de atos e relações jurídicas. Esta pessoa, a princípio, seria completamente incapaz na ordem civil, e não apenas para a feitura de seu testamento. Porém, existem casos reais de sucessos de pessoas com estas múltiplas deficiências, que mesmo assim interagem com mundo ao seu redor, a título exemplificativo, temos Helen Keller, escritora estadunidense, que possuía deficiência visual e auditiva, mas, que aprendeu a ler, escrever e falar com certa dificuldade, graduando-se cum laude, e que posteriormente, tornou-se ativista em prol de pessoas com múltiplas deficiências (AFB,2015). Deste modo, uma vez que a pessoa tenha possibilidade de se exprimir claramente sua vontade no meio em que vive, há que se considerar a possibilidade de que possa produzir atos jurídicos quaisquer que sejam.

estas restrições, mas, buscando sempre que possível, superá-las com um viés interpretativo-inclusivo, e que agregue as tecnologias como aliadas destas pessoas para a expressão clara e induvidosa de suas vontades. Todas estas restrições, hoje presentes em nossa legislação sobre testamentos, decorrem de uma única causa, qual seja, apurar se a vontade do testador é clara, consciente e sem intervenção maliciosa de terceiros, eis o porquê de se exigir a capacidade de testar, e ainda, que caso exista uma, ou algumas deficiências, que possam interferir na averiguação desta vontade produtora do ato jurídico, que se tenham meios de controle desta vontade, e este controle, em regra se dará pela vedação de que se pratiquei este ato de alguma forma. O cerne da restrição, em suma, consiste no controle da vontade, com o objetivo precípuo de proteger aquele que supostamente não consiga controlar os atos jurídicos que produz, em razão de suas deficiências. Porém, como já dito, a suposição de incapacidade é excludente, e deve ser afastada. Porém, antes de falarmos das restrições testamentárias em si mesmas, se faz necessário compreender a natureza dos testamentos e sua finalidade precípua, para então buscarmos entender os motivos que levaram o legislador, em determinados momentos, restringir a certas pessoas, tipos específicos de testamentos, pressupondo que suas deficiências necessitariam da intervenção estatal com a finalidade de proteção. Os testamentos são atos jurídicos 13 unilaterais, solenes, personalíssimos e revogáveis 14 que irão expressar as disposições de última vontade da pessoa humana capaz, de modo a estabelecer para depois de sua morte como seus bens patrimoniais, ou não15, irão ser distribuídos para seus herdeiros instituídos, porém respeitando sempre a legítima dos herdeiros necessários acaso existentes. São deste modo, atos jurídicos, e como todo ato jurídico visa firmar a vontade de alguém para a criação, modificação ou extinção das relações jurídicas. Em última análise, buscam que a vontade daquele que não mais está entre nós seja devidamente respeitada e cumprida depois de sua morte. E, porque em teses estas disposições possuem um grande condão de modificação patrimonial, chegando até mesmo a diminuir o patrimônio de herdeiros hereditários, que o legislador busca criar uma série de requisitos objetivos e subjetivos para que estas manifestações de vontades tenham validade e eficácia entre nós.

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Aqui, entendam-se, atos jurídicos em sentido lato, não iremos aprofundar a discussão sobre a natureza jurídica dos mesmos, se atos jurídicos em sentido estrito, ou se negócios jurídicos. Majoritariamente, a doutrina o tem entendido como negócio jurídico (DIAS, 2008). 14

O nosso Código Civil atual, não se ocupa de conceituar o que vem a ser um testamento, cingindo-se em seus artigos 1857 e 1858 em trazer alguns requisitos e finalidades do testamento, que após suas leituras, permite-nos extrair o conceito acima proposto, assim estabelecem os referidos artigos: Art. 1856: “Toda pessoa capaz pode dispor por testamento, da totalidade de seus bens, ou de parte deles para depois de sua morte.§1º A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.§2º São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas tenham se limitado. Art.1857: O testamento é ato personalíssimo, podendo ser mudado a qualquer tempo. O Código Civil de 1916, diferente do atual, propunha uma definição para o testamento em seu artigo 1626, a saber: “Considera-se testamento o acto revogável, pelo qual alguém, de conformidade com a lei, dispõe no todo ou em parte, do seu patrimônio, para depois de sua morte. No entanto, a definição trazida pelo Código de 1916, é pouco precisa deixando de considerar alguns requisitos (Benvilaqua, 1947, p.89). Em maior, ou menor grau, não existe dissonância doutrinária conceitual sobre o que vem a ser um testamento, em regra, a definição daqueles que se dedicam ao tema, é quase sempre muito aproximada, vejamos: “Testamento é o acto personalíssimo, unilateral, gratuito, solemne e revogável, pelo qual alguem, segundo as prescrições da lei, dispõe, total ou parcialmente , de seu patrimônio para depois de sua morte; ou nomeia tutores para os seus filhos; ou reconhece filhos naturaes; ou faz outras declarações de última vontade(BENVILAQUA, 1947, p.89)”. “Testamento é o ato pelo qual a vontade de alguém se declara para o caso de morte, com eficácia de reconhecer, criar, transmitir ou extinguir direitos (MIRANDA, 1984, p. 59/60). Caio Mario da Silva Pereira utilizou-se da própria definição contida no artigo de 1626 do Código de 1916, para construir sua definição própria de testamento, porém, acentuou que “definimo-lo sucintamente, sem a preocupação de enunciarmos desde logo os seus caracteres, destacando, porém, a sua idéia central, como disposição de vontade para produzir efeitos num tempo posterior à morte (PEREIRA, 1974, p. 136), entre outros. Estes conceitos são apenas a título exemplificativo. 15

Vide artigo art. 1856,§2º, CC/02.

Qualquer pessoa que se propõe a fazer um testamento terá que cumprir uma série de requisitos gerais, e alguns requisitos que dizem respeito a cada hipótese específica de testamento. Vamos nos limitar a refletir aos requisitos gerais a todos os testamentos impostos: 1) Capacidade do testador (art.1860, CC/02); 2) Documento escrito (art.1864, I; art.1868; art.1876, CC/02); 3) Leitura oral do documento (art.1864, II; art. 1876,§1º e §2º; exceto na modalidade cerrada de testamento, nesta hipótese, não ser lerá o testamento, mas sim, o auto de aprovação feito por tabelião, art.1868, III, CC/02). 4) Testemunhas (art.1864, II; art.1868, II; art. 1876,§1º e §2º, CC/02). 5) Assinatura do documento pelo testador e por suas testemunhas (art.1864, III; art.1868, IV, neste caso de assinatura do auto de aprovação; art. 1876,§1º e §2º, CC/02). A assinatura do tabelião também é requerida na modalidade de testamento público. O que o legislador busca com a exigência destes requisitos é ter a certeza irrefutável de que a vontade do testador, no momento que declara sua vontade, é real, idônea, e, sem quaisquer embaraços ou enganos, busca, assim, a certeza, de que a vontade declarada no testamento condiz com a vontade efetiva do testador, para que depois de sua morte, possa produzir os efeitos desejados por ele, quando ainda em vida. Logo, nesta direção de proteger a vontade do testador, o legislador pátrio criou restrições testamentárias em razão de certas deficiências, de modo que estas pessoas, em certos momentos apenas têm a possibilidade de testar de um modo, e em certas hipóteses até mesmo ficam vedadas de produzir seus testamentos. Há, neste sentido, uma pressuposta incapacidade16 para estas pessoas para a produção deste ato jurídico, tão solene e formal. Esta presunção absoluta de incapacidade trazida pela lei17 para este ato tem uma razão sociológica de ser, pois quando o Código Civil de 1916 teve o início de sua vigência, as pessoas com deficiências eram tidas como inaptas, como pessoas à margem da sociedade e que precisavam ser assistidas e protegidas em todos os seus atos, havia um real estigma de párias sobre estas pessoas, a mentalidade social era no sentido de excluir, ou mesmo de tratar ditas pessoas como invisíveis no seio da sociedade (BORGES, 2014). Inexistia, também, naquele tempo tecnologias, ou recursos, que poderiam contribuir para a inserção destas pessoas no meio social, bem como para a produção de atos jurídicos seguros e com idoneidade que pudessem realmente resguardar tais pessoas. Por óbvio, que neste contexto descrito havia uma razão de ser do legislador pátrio em criar regras no sentido de proteger ditas pessoas. E, o meio encontrado foi exatamente estabelecendo restrições. Porém, neste novo século XXI, em que tônica social e estatal é no sentido de incluir, e ainda, onde temos ao nosso dispor tecnologias assistivas, que diuturnamente melhoram a vida e as atividades de pessoas com deficiência, não faz qualquer sentido lógico que se mantenham restrições pressupostas de forma absoluta. Claro que, em determinada situações, que realmente ficar comprovado que as pessoas com deficiência, de modo algum, tenham como certificar a sua vontade descrita no instrumento testamentário, que

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Interessante ressaltar, que esta incapacidade pressuposta, ou mesmo uma redução da capacidade habitual é aplicada para este ato especificamente. Uma pessoa cega, ou mesmo um surdo-mudo (que a princípio não consiga expressar claramente sua vontade), podem produzir atos na sua vida civil, sem que sua eficácia e validade sejam questionadas. Imaginemos aqui, a título exemplificativo, que uma pessoa cega vá a uma loja e compre um sapato, este ato tão cotidiano, reveste-se de juridicidade, uma vez que se trata de um ato de vontade, negócio jurídico, contrato de compra e venda. Nesta hipótese, o ato de vontade produz seus devidos efeitos. Mas, então, qual seria a razão de que o ato de vontade, em vida, da pessoa cega, no exemplo, teria validade, porém, não teria seu testamento feito sem a interferência do Estado? A resposta para esta questão do ponto de vista de nosso legislador é simples: segurança jurídica, proteção para aquele que a princípio não poderia defender sua vontade, e muito menos, não poderia ter certeza que sua vontade expressa em certo documento estaria realmente de acordo com sua vontade. 17

Conforme disposto nos artigos 1866 e 1867 do Código Civil de 2002, no que concernem as deficiências de natureza físicas, e os artigos 1860 e 1861 também do Código de 2002, no que tangem as deficiências de natureza mental. Todos estes artigos serão discutidos oportunamente.

esta pressuposição de incapacidade deverá se manter, porém, com base no próprio princípios da dignidade de todos, e da diferença enquanto fundamento de nosso Estado, que a aplicação restrita e absoluta da incapacidade das pessoas com deficiência deve se moderada, e ponderada, caso a caso. É necessário, que esta pressuposição de incapacidade não seja absoluta, porém relativa, o que conferirá o adequado respeito as pessoas individualmente consideradas. Aqui, no entanto, o grande dilema que teríamos que enfrentar seria o exercício interpretativo, pois relativizar estas disposições de restrição, de um ponto de vista legalista significaria atuar contra legem18. Porém, esta atuação contra legem é aparente e não se mantêm. As disposições sobre testamentos são encaradas pelo nosso Estado e por nosso Direito, como normas de ordem pública, com pouca e diminuta possibilidade de derrogação de suas disposições pela autonomia privada ou existencial dos interessados, são atos jurídicos de acordo com a lei e previamente tipificados. Razão pela qual, a jurisprudência em sede de testamento costuma seguir uma legalidade restrita sobre o tema. No entanto, interpretar os dispositivos do código civil vigente de acordo com os princípios constitucionais não se trata de conduta contra legem, muito pelo contrário, trata-se de uma real adequação de regras, que se interpretadas de forma diversa representariam patente inconstitucionalidade e ilegalidade. Todas as leis devem ser interpretadas de acordo com a Constituição ( SILVA,1994 ) (MORAES, 2004) (BARROSO, 2009). Logo, faz-se necessário que nossos operadores do direito e intérpretes da lei compreendam que uma relativização das restrições testamentárias em se tratando de pessoas com deficiências está totalmente de acordo com a hermenêutica constitucional de nossos dias. E, em sendo assim, não é mais cabível que exista uma presunção absoluta desta incapacidade, mas sim relativa. As presunções são comuns e necessárias em nosso Direito, e por regra, ocorrem, quando não temos meios concretos para comprovar as vontade ou circunstâncias fáticas pretéritas (PEREIRA, 1998, p.390)(AMARAL, 2008, p.55)19. Por todo nosso Código Civil, temos diversos momentos em que o legislador utiliza-se, ora de presunções absolutas, e ora de presunções relativas, para estabelecer a relações e situações jurídicas, trata-se de uma técnica jurídica usual e mesmo necessária para firmar o que de regra seria o agir social em determinados contextos jurídicos. A seguir, iremos repensar e mesmo desconstruir estas presunções absolutas em sede testamentária quando restringem o agir das pessoas com deficiências. O ato de testar é um ato de liberalidade, ligado deste modo a idéia de um ser individual, livre, e capaz, que tem o direito e poder de decidir sobre os destinos de seus bens. Neste sentido, a restrição de direitos a todos conferida, em regra, somente, faz sentido, e se torna legítima se ficar comprovado de forma cabal que a incapacidade da pessoa é tamanha, que a prática do ato traria lesão a si mesma, ou aqueles herdeiros necessários, onde a legítima deve ser preservada. Porém, se a deficiência física não for debilitante ou alienante, é necessário que adotemos outra postura sobre o tema, ainda, que existam dispositivos legais contrários a este exercício interpretativo inclusivo. As pessoas são capazes até que se prove que não as são, e a pressuposição de que não sejam capazes, sem qualquer contraditório, trata-se de patente discriminação e desrespeito a dignidade e a personalidade destas. É nesta linha argumentativa, que trataremos a seguir dos modos de testar das pessoas com deficiência físicas, e, em muitos momentos serão indagados a validade dos artigos legais vigentes sobre o tema. 4.1) A pessoa com deficiência auditiva total (pessoa surda) A pessoa que é inteiramente surda, a princípio, poderá testar de todos os modos, através do testamento público, cerrado e particular, porém, veremos que as disposições sobre o tema são lacunosas, e em alguns momentos até conflituosas, ora conferido possibilidades, ora restringindo outras, sem uma coerência legal e sistemática sobre a questão. Importante ressaltar, que a pessoa surda pode ou não ser muda,

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Contra legem é o mesmo que contra a lei (VALLE, 1998, p. 59).

Segundo Amaral (2008, p.55), as presunções são processos lógicos que se baseiam nas regras de experiências da vida, de modo que em regra surgem da dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de se provarem certos fatos, o que obriga ao legislador a contentar-se com indícios para a prova de fatos jurídicos.

pode ou não ser alfabetizada, de modo que o legislador não necessariamente refletiu todas estas hipóteses. Vamos analisar cada uma das hipóteses de forma específica. Para todas as espécies de testamentos ordinários, a lei exigirá documento escrito, leitura do documento perante testemunhas, ou no caso do testamento cerrado leitura pelo tabelião do auto de aprovação, bem como as assinaturas do testador, das testemunhas e do tabelião quando participar do ato. O legislador exige documento escrito, com a vontade declarada, oralidade da vontade declarada, para assim, que todos os participantes do ato possam conferir a existência de quaisquer equívocos entre o que foi declarado e o documento que foi escrito, e por fim, que a vontade exarada seja certificada através das assinaturas de todos aqueles que participaram do ato. Primeiramente, vamos analisar a pessoa que é surda, porém alfabetizada e que saiba ler (oralmente). Se a pessoa é surda, porém, alfabetizada, significa que ela própria poderá conferir o termo testamentário produzido por ela mesma, ou por terceira pessoa, e mesmo que não possa ouvir a leitura feita por si mesma, ela conhece os termos escritos e tem consciência plena de seu significado. Nesta situação, a pessoa, mesmo que tenha a deficiência auditiva, tem condições de conferir os termos que declarou no testamento que produziu, seja qual for sua espécie, não obstante, o requisito da oralidade para confirmação dos termos fique prejudicado, uma vez que ausente para o testador o sentido da audição. Aliás, sentido algum se faz que alguém leia, ou que o próprio testador faça a leitura do referido documento, há que se considerar neste ponto, que a lei na verdade exigiu que o requisito da oralidade estivesse direcionado para as testemunhas (art.1866, CC/02). Mas, do ponto de vista lógico, bem como do ponto de vista daquele que emite a vontade, uma vez que o interessado não pode ter certeza do que se fala, exceto se tenha habilidade de ler os lábios, trata-se de requisito totalmente inócuo e sem sentido, pois, o testador que saiba ler, irá basear a certeza do ato que produz não pela fala, mas sim, pelo o que está escrito no documento, e, que posteriormente irá firmar com sua assinatura. Mas, o problema realmente surge quando a pessoa surda não saiba, ou não possa ler os termos do testamento. Nesta hipótese, teremos duas situações distintas, a pessoa não sabe ler porque é analfabeta, ou não possa ler os termos descritos, ainda que transitoriamente, ou podendo ler, sua fala tornou-se confusa, ou dificultosa em razão da deficiência auditiva. O primeiro ponto de reflexão sobre a pessoa que é inteiramente surda trata-se dela ser, ou não alfabetizada. Em regra, se a pessoa não possui qualquer deficiência, mas é analfabeta, a ela aplica-se o art.1865, CC/02. A lei estabelece na hipótese da pessoa que não saiba assinar, o tabelião assim o declarará, e alguém ao rogo do testador assinará por ele (art.1865, CC/02). O artigo 1866, CC/02 trata da questão da leitura do testamento e afirma que o indivíduo inteiramente surdo, que não souber ler, designará alguém que leia em seu lugar o testamento. Vejamos, que a lei neste ponto, não é clara, não identifica se este saber ler está relacionado com conhecer a língua portuguesa escrita, ou saber ler no sentido de reproduzir com sua voz o que está descrito no instrumento testamentário20. Porém, de acordo com a interpretação majoritária que se tem hoje sobre a pessoa surda que testa, não se admite que ela não saiba falar, ou se expressar oralmente, pois se é também muda, a ela estaria restrita a forma de testamento cerrado. Porém, se não sabe ler, porque é analfabeto, qual o sentido da lei em exigir que alguma testemunha faça a leitura, já que o testador surdo, por si, não tem como conferir os termos escritos, e nem mesmo conferir o que é falado por quem está lendo o testamento feito pelo tabelião? Neste sentido, tem-se que o inteiramente surdo analfabeto21, poderá fazer seu testamento publicamente, porém, não

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Outro ponto a ser considerado, é o fato de ser surdo e não mudo, porém, a fala ser muito confusa ou difícil de entendimento, o que inviabilizaria também uma leitura oral clara dos termos do testamento. 21

Qual segurança jurídica, então, reveste-se para o surdo analfabeto, a não ser confiar no tabelião e nas suas testemunhas, que tipo de proteção reveste-se a ele, para conferir a regularidade de sua vontade e do seu ato praticado? Na atualidade, esta segurança poderia ser firmada através das novas tecnologias, como por exemplo, gravação de áudio ou vídeo da leitura feita do documento pela testemunha. Outro ponto de reflexão seria, por que conferir ao surdo analfabeto a possibilidade de fazer testamento publicamente, e não conferir igual direito para o mudo alfabetizado e que possa ouvir a leitura do testamento feita pelo tabelião, ou mesmo, por sua testemunha? Trata-se de uma incoerência legal que ainda hoje se mantém, mas que deve ser superada.

tem como certificar os termos escritos e lidos de seu testamento, o que já não ocorre com aquele que é apenas analfabeto, pois, após a leitura do testamento pode conferir se o que declarou para o tabelião está de acordo com a leitura posteriormente foi feita. A princípio, então, o inteiramente surdo pode testar publicamente se fizer suas declarações perante o tabelião, e em seguida, deverá ler o termo perante o oficial e suas testemunhas, na sabendo ler pedirá que alguém o faça a seu rogo. Quando a lei, no artigo 1866 do CC/02 estabelece que “sabendo ler, lerá seu testamento, e, se não souber, designará quem o leia”, refere-se, em regra, à oralidade, e não a alfabetização do testador que se pressupõe22, ou seja, o testador, ou alguém ao seu rogo, fará a leitura de viva voz 23. Porém, devemos considerar que a alfabetização de uma pessoa surda, poderá ocorrer através da linguagem de sinais, Libras24, e muitas vezes, a pessoa surda, não desenvolve a fala, não porque possui algum problema fonador, mas em razão da deficiência auditiva. A lei claramente fala “leia”, porém, hoje, a interpretação de ler, pode ser mais ampla, pois a leitura poderá ser feita tanto oralmente, quanto através da linguagem de sinais, de um ponto de vista inclusivo. Assim, se o testador surdo que não possa ler, mais que tenha conhecimento da linguagem de sinais, faça a leitura mediante os sinais, perante o tabelião e suas testemunhas que tenham o conhecimento desta linguagem, este requisito da leitura seria válido25. E, ressalta-se, que a lei que dispõe sobre a Libras – Linguagem Brasileira de Sinais (Lei nº 10.436/02) afirma em seus artigos1º e 2º que esta linguagem é meio legal de comunicação, e que os órgãos e repartições públicas devem agir de modo a aceitála e torná-la a todos acessível. Logo, se a pessoa é surda, mas é alfabetizada e, saiba ler oralmente, a ela serão conferidas todas as hipóteses de testamentos ordinários, ressalte-se, no entanto, que a hipótese de fazer testamento particular ficará prejudicada se o testador não puder fazer a leitura oral de termos testados, já que a leitura do testamento pelo testador perante suas testemunhas de forma pessoal e direta, é requisito essencial para este ato conforme, art.1876, §1º. E, não há permissivo legal de que alguém leia os termos testamentários a rogo do testador, por se tratar de um instrumento particular, e sem que exista alguém apto ao controle do ato, como é no caso do testamento publico, onde o tabelião funciona exatamente para controle da regularidade deste negócio jurídico. Mais uma vez, aqui, reforçar-se o entendimento de que a leitura oral, do instrumento perante os testador ou testemunhas parece inócua, uma vez que, o sentido utilizado pelo testador surdo para

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Esta alfabetização se pressupõe, porém, pode não existir, e não existindo, não existem impedimentos de que alguém assine, ao seu rogo, porém, como já tratado, a segurança do ato e a certificação do mesmo pelo testador ficarão prejudicadas. 23

Este é o entendimento da doutrina que comentou o CC/16, e ainda e a entendimento da doutrina de hoje,que comentar o CC/02, porém, de um ponto de vista inclusivo, precisamos temperar esta interpretação, como veremos a seguir. 24

LIBRAS, ou, Linguagem Brasileira de Sinais, trata-se da uma linguagem visual-gestual direcionada para a comunicação daquelas pessoas que não desenvolveram a fala, e, foi devidamente regulada pela Lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002, e assim dispõe : Art. 1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados. Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil. Art. 2o Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e empresas concessionárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais - Libras como meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil 25

Aqui, podemos considerar que a alfabetização seja feita apenas na linguagem brasileira de sinais, em regra, aprendese primeiro a linguagem de sinais, e, posteriormente, faz-se a alfabetização da língua portuguesa escrita, mas o bilingüismo entre os surdos não é obrigatório (SALERMO, 2003)(RÚBIO, 2014)(LUCIZANO, 2015) (PLOENNES,2015), o que importa é que a vontade seja manifestada de forma clara e induvidosa, e, assim como existem intérpretes de Libras que atuam com o Poder Judiciário, e que são auxiliares da justiça, poderíamos ter, por que não, um intérprete juramentado de Libras atuando junto com os tabeliães de modo a permitir a este devida, e necessária inclusão.

produzir, conferir e afirmar o ato praticado por ele, não será o sentido que lhe falta, mas sim os demais sentidos que possui. Assim, como já afirmado, pouca, ou, nenhuma segurança assiste aquele que é surdo e analfabeto, pois, não possui possibilidade alguma de confirmar as disposições que declarou perante o tabelião. Inexiste, assim, previsão que venha assegurar ao surdo analfabeto que as disposições descritas em seu testamento condizem que o que ele declarou, porém, na nossa atualidade seriam cabíveis outros meios de assegurar este ato, por exemplo, uma gravação por áudio ou vídeo da vontade do testador, ou mesmo da gravação da leitura feita pelo tabelião na presença do testador e das testemunhas dos termos testados. Com as tecnologias digitais e de criptografia26 que possuímos, problema algum existiria com relação à veracidade destas mídias, que seriam também parte integrante do testamento, aliás, confeririam sem dúvidas maior segurança para estas relações (ITI, 2015). Porém, inexistem, disposições legais neste sentido, e pelo fato dos testamentos serem atos jurídicos formais, sendo da exigência do ato o cumprimento de todos os requisitos tidos como essenciais (art.104, inc. III; art.1864, caput; art.1868, caput; art.1876, CC/02), ainda que existam provas cabais e lícitas sobre a prática do ato, a ausência da forma prescrita em lei, do ponto de vista da Teoria dos Atos Jurídicos implicaria na invalidade absoluta do ato (art.166, inc.IV,CC/02). Esta é uma lacuna, que deve ser refletida e sanada em nosso sistema. Se a pessoa além de surda for muda, a ele somente caberá fazer o testamento cerrado, conforme estabelece o artigo 1873, CC/02 como se verá a seguir em seção específica. Porém, se a pessoa for surdamuda e analfabeta não seria possível fazer a princípio qualquer forma de testamento. A esta estaria vedada a hipótese de testamento público, pois, não poderia fazer suas declarações diretas para o tabelião, nem mesmo minutar sua vontade (art.1864, I, CC/02), não teria como ler e nem mesmo como assinar seu testamento (art. 1864, inc. II e III; art.1866, CC/02). Ficaria vedado de fazer seu testamento através da forma cerrada, pois, a lei afirma que “não pode dispor em testamento cerrado quem não saiba ou não possa ler”(art.1872, CC/02). E, também, não poderia testar de forma particular, vez que a lei a exige escrita pelo próprio testador e a leitura do testamento pelo mesmo (art.1876, CC/02). No entanto, esta vedação total da faculdade de testar, deve ser analisada de forma mais equilibrada, pois, o que deve ser considerado é a possibilidade, ou não, de que alguém possa exprimir sua vontade, mesmo que esta expressão se dê do modo diverso do que estamos acostumados em regra, mesmo que aconteça mediante sinais. Não parece ponderado que se negue alguém a fazer seu testamento, ainda que seja apenas na modalidade pública, pois de regra esta deveria ser a hipótese a todos permitida, vez que, tem-se a figura do notário como represente do Estado, e que garantiria a segurança jurídica desta relação. 4.2) A pessoa com deficiência fonadora total ( pessoa muda) A lei, inicialmente, não traz restrições explícitas testamentárias para a pessoa que é muda, inclusive, somente trata da questão da deficiência da fala, quando considera que a pessoa além de muda é também surda-muda, ao permitir nesta hipótese a possibilidade de confecção de Testamento Cerrado (art.1873, CC/02). Porém, a doutrina é uníssona no sentido de que à pessoa muda fica restrita a esta espécie de testamento, sendo-lhe vedado fazer outras formas, pois, segundo esta corrente majoritária, no caso do Testamento Público, o testador deverá exarar sua vontade de viva voz ao tabelião, e que o uso de minuta, ou anotações são apenas meios auxiliares ao testador, mas, que não serviriam para substituir os seus dizeres diretos ao tabelião (VELOSO, 2015)(HIRONAKA, 2003). Já no caso do Testamento Particular, a vedação decorre do fato de que a lei civil exige que o testador faça a leitura oral do seu testamento perante suas testemunhas (art.1876,§§ 1º e 2º, CC/02). Zeno Veloso (2015), inclusive, chega a afirmar que deveria ser permitido à pessoa muda testar através da forma pública, porém, em razão da vedação trazida no artigo 1864, I, do Código Civil esta possibilidade seria inviável. Data vênia, ao ilustre doutrinador, há que se ponderar que todos os dispositivos

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A criptografia “(do grego kryptós, "escondido", e gráphein, "escrita") é uma forma sistemática utilizada para esconder a informação na forma de um texto ou mensagem incompreensível. Essa codificação é executada por um programa de computador que realiza um conjunto de operações matemáticas, inserindo uma chave secreta na mensagem. O emissor do documento envia o texto cifrado, que será reprocessado pelo receptor, transformando-o, novamente, em texto legível, igual ao emitido, desde que tenha a chave correta” (ITI, 2015).

legais infraconstitucionais devem ser interpretados à luz de nossa Constituição vigente, sob pena de patente inconstitucionalidade, há que se considerar, então, que toda a matéria sobre testamentos deve estar adequada ao nosso sistema constitucional, e em acordo com os diretos e garantias nele descritos, e de acordo com o ideal inclusivo vigente. O artigo 1864, inciso I, dispõe que o testamento público deve “ser escrito por tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador, podendo se servir de minuta, notas ou apontamentos”. Em momento algum, a lei estabelece que estas declarações devem ser feitas de viva voz, este entendimento doutrinário se consolidou, por óbvio, no inicio do século XX, em razão de que naquela época, como diversas vezes aqui dito, inexistia uma mentalidade social inclusiva, ou meios outros para confirmar a vontade daquele que testava. As declarações de vontade, orais ou não, são aptas a criar os negócios jurídicos, e vedar que alguém totalmente capaz, e que possa exprimir vontade de outro modo, não produza seus atos jurídicos é atentar diretamente contra sua personalidade (art. 1º e 2º, CC/02) e dignidade (art. 1º, inc. III, CF/88), e ainda, praticar uma exclusão de direitos sem fundamentos que justifiquem tal conduta (art. 3, inc.I e IV, CF/88). Além disso, a lei não faz esta restrição de forma direta, sobre a impossibilidade que a pessoa muda possa testar através do testamento público, e, é regra básica de hermenêutica que não cabe ao intérprete restringir o que a lei não o faz27, e, mesmo que a lei restringisse expressamente a pessoa muda, há que se considerar que nosso sistema jurídico busca a compreensão da diferença como algo a se conviver, e se adaptar a nossa nova realidade social, assim, as leis de um ponto de vista sistemático devem ser adequadas ao plano hermenêutico-constitucional como um todo. Argumentos no sentido de que o testamento é um instituto formal, solene, e que certos requisitos a ele, a princípio destinados, não podem ser adequados a nossa realidade inclusiva, devem ser de pronto afastados. Não se quer com isto desconstruir todo o sistema testamentário, ou, exigir que os requisitos sobre testamentos sejam abolidos, por óbvio que não, mas urge sim, que toda regra sobre o tema seja repensada e refletida sobre esta luz inclusiva. Sem sombra de dúvidas, melhor seria uma reforma legislativa sobre o tema, que de forma clara abrangesse a pessoa com deficiência nos diversos modos de testar, mas a ausência legislativa é aparente, pois, aos juízes cabem na interpretação e na aplicação da lei usar os princípios, os usos e costumes para suprir as lacunas existentes (art. 4º e 5º, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). E, como já afirmava Maria Helena Diniz (2008, p. 61-62) as lacunas são sempre da lei, e nunca do Direito, enquanto sistema, ou enquanto ciência. Além disso, temos outro forte argumento no sentido de permitir que a pessoa muda possa testar mediante forma pública, pois vejamos, a lei permite que a pessoa surda teste deste modo, e que não sabendo ler, alguém ao seu rogo faça em seu lugar, conforme estabelece o artigo 1866, CC/02. Ou seja, além de ter que cumprir com os requisitos do artigo 1864, CC/02, deverá ler seu testamento, o que a principio não é exigido para todos, pois a leitura do testamento é feita em regra pelo tabelião (inciso, II do art. 1864). Na hipótese da pessoa surda, ela irá declarar sua vontade e deverá ler o instrumento testamentário na presença de suas testemunhas, porém, o fato de declarar sua vontade perante o tabelião, não significa que irá exprimir sua vontade de forma clara, até mesmo porque a deficiência auditiva pode ter inviabilizado que sua fala se desenvolvesse normalmente. Se a pessoa é surda, declara, mas sua declaração não é perfeita, sem quaisquer dúvidas, que tanto o testador, quanto o tabelião irão utilizar da minuta ou dos apontamentos escritos do testador. A lei, além disso, exige que seja feita a leitura pelo testador surdo ou alguém em seu lugar, esta leitura, é inócua no sentido de que o testador mesmo lendo não tem a certeza que seus dizeres estão sendo compreendidos por suas testemunhas, e se outra pessoa faz a leitura em seu lugar, não há garantias, que está sendo fiel o que realmente está escrito.

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Conforme princípio de hermenêutica que afirma “ubi lex non distinguit, nec nostrum distinguere debemus”, ou seja, onde a lei não distingui, não cabe ao intérprete distinguir ( VALLE, 1998, p. 381).

Neste sentido, o mudo por ter condições de ouvir e compreender o que está sendo lido, mesmo que a seu rogo, teria mais capacidade de conferir, se o que é lido, está em conformidade com o que se escreveu e declarou, do que o surdo, que pede para outrem ler seu instrumento. Tanto a pessoa surda, quanto a pessoa muda, não irá basear sua compreensão de mundo naqueles sentidos que não possuem para produzir seus atos, sejam estes jurídicos, ou não, de modo que o que lei deve exigir é plena congruência da vontade de quem testa e o que é escrito no testamento, sem se preocupar com qual meio será usado para tanto expressar esta declaração. Logo, há que se vislumbrar a possibilidade de que as declarações para fins de testamentos sejam tais que exprimam sem quaisquer dúvidas a vontade do testador, percebendo, também, que na atualidade temos diversos meios e tecnologias que seriam aptos suprimir tais dificuldades ou deficiências, permitindo assim a concretização da faculdade de testar. Vale, aqui, parafrasear Pontes de Miranda que afirmou “ na faculdade de testar há inteiro reconhecimento legal da dignidade humana e concessão de ser assaz respeitável, só por si, a vontade individual (MIRANDA, 1984, p.60). Mais uma vez, reafirmar-se que a vontade é expressão da dignidade e personalidade de cada um de nós, devendo ser respeitada quando incólume. A seguir passaremos, então, a refletir sobre as hipóteses viáveis de que o mudo teste por formas distintas ao testamento cerrado, e, ad argumentandum tantum28, já se firma que as pessoas capazes podem e devem produzir seus atos, se nenhuma pressuposição de incapacidade de forma restrita, indelével e que seja iuris et de iure29. E, além disso, a incapacidade passa, hoje, por um olhar mais sensibilizado, especialmente, com o Estatuto da Inclusão recentemente promulgado entre nós, e como já advertiu Rodrigo da Cunha Pereira (2015) este novo estatuto permitirá uma maior reflexão sobre os incapazes, de modo a temperar esta noção de incapacidade sempre tão rígida entre nós. Como já adiantando, a possibilidade de testar publicamente é uma práxis vedada às pessoas mudas, que é uma incoerência por si só, pois, a princípio esta forma de testar, através de testamento público deveria ser a forma a todos permitida, sem quaisquer restrições, pois é a o modo de testar que o Estado administra e controla a regularidade dos atos, através da atuação do tabelião. Com relação ao testamento público, se a pessoa muda for alfabetizada, e puder conferir tanto os termos escritos, quanto os lidos de seu testamento, já que pode ouvir sem nenhum embaraço, não restam dúvidas quanto à viabilidade desta forma de testamento, pois, a lei exige que a leitura seja feita pelo tabelião na presença do testador e das testemunhas, mas não exige que este leitura se dê pelo próprio testador, faculta ao testador optar se a leitura será feita por ele ou pelo tabelião ou não (art. 1864, inc. II, CC/02). Já a pessoa muda, segundo nossa lei vigente, mesmo sendo alfabetizada, não poderia fazer seu testamento pelo meio particular, pois impossível seria a leitura oral do instrumento pelo próprio testador. Esta restrição testamentária não possui qualquer sentido lógico e devemos buscar afastá-lo. Se, a pessoa muda é totalmente, capaz, possui sua visão e audição normais, sendo apta a discernir sobre os termos que testa qual o motivo que levaria a restringi-lo a este ato, se o sentido que utiliza para confirmar seu ato não é a fala. Urge a reflexão de que é à vontade a formadora do ato, que é a vontade que deve ser devidamente confirmada, e não importa qual o meio ou veículo que esta vontade será expressa, desde que seja inequivocamente expressa30.

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Expressão latina que significa “apenas para argumentar” (VALLE,1998, p.17).

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Expressão latina que significa “de direito e por direito. Presunção legal, que não se admite prova em contrário”(VALLE, 1998, p. 168). 30

A lei civil em diversos momentos irá requerer que a pessoa confirme o ato, deixando induvidosa sua vontade. Tão solene quanto o testamento, temos o casamento, em que a lei expressamente determina que os nubentes perante o oficial do registro e testemunhas confirmem sua vontade em convalescer núpcias. O artigo 1533 do CC/02 diz que “ ouvida aos nubentes a afirmação de que pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará efetuado o casamento”. A lei fala em “ouvida afirmação dos nubentes”, então, seria aceitável que os nubentes mudos não pudessem se casar, que a lei afastaria destas pessoa a possibilidade de praticar tão solene ato em razão de sua deficiência fonadora? A resposta,

Mais uma vez, aqui, clama-se pela necessidade de readequação de nossa realidade atual e as tecnologias que nos cercam. Existe, hoje, a possibilidade de que as tecnologias se agreguem aos nossos atos de modo a corroborar com um menor distanciamento da exclusão destas pessoas com deficiência na prática de seus atos em sociedade. Nesta direção, aqui, vamos imaginar que uma pessoa muda faça seu testamento particular, mas, que uma vez impossibilitado de ler oralmente seu instrumento, utiliza-se da linguagem de sinais para traduzir o que está escrito em seu testamento escrito na presença de suas testemunhas, que também entendem a linguagem de sinais, e ainda, para dar mais segurança, faça uma gravação de vídeo de sua leitura através da Libras. Ou ainda, se esta pessoa muda não tiver conhecimentos da linguagem de sinais, mas que peça alguém ao seu rogo, alguma de suas testemunhas leia seu testamento, e que grave através de vídeo ou áudio esta leitura. Será que nestas hipóteses aqui trazidas, ficaria alguma dúvida da vontade desta pessoa muda, porém capaz? Por óbvio que não. É necessário que sejam superados estes velhos paradigmas que ainda hoje envolvem o direito testamentário no Brasil. Quanto ao testamento cerrado, não existe restrição para que a pessoa muda alfabetizada o faça, já que a lei apenas exige que o testador desta modalidade o escreva por si mesmo, oponha sua assinatura e deixe de forma explícita sua vontade diante do tabelião, conforme artigos 1868 e 1873do CC/02. Ainda, que o artigo 1873 CC/02, refira-se expressamente ao surdo-mudo, pondere-se que a disposição é muito mais voltada para a deficiência da fala. Neste sentido, já afirmou Clóvis Benvilaqua, ao comentar o artigo 1642 do CC/16, que correspondente ao artigo vigente em comento: O mudo está nas mesmas condições que o surdo-mudo, porque a provisão do artigo visa à impossibilidade de falar e não a falta de audição. Por não poder o testador enunciar, de viva voz, a sua vontade de obter a approvação do testamento, é que a lei lhe faculta manifestá-la por escripto na face externa do papel ou do envoltório, na presença das testemunhas (BENVILAQUA, 1947, p. 108).

No que concerne a mudez, o problema realmente surge quando ela é também analfabeta, pois não existe hipótese testamentária alguma que lhe alcance. Pois, se é muda, e não sabe escrever, como a princípio poderia expor sua vontade para o tabelião nas hipóteses de testamento público e cerrado? E, muito menos ainda poderia fazer seu próprio testamento particular. Diante da legislação que hoje possuímos, teríamos que a pessoa muda analfabeta31 está excluída da possibilidade de testar, cabendo-lhe apenas a sucessão hereditária. Claro, que do ponto de vista social e principiológico, trata-se de uma restrição, ou exclusão, inadmissível, pois ser analfabeta e muda não torna a pessoa incapaz. E como já afirmamos há que se utilizar de outros meios para confirmar a vontade das pessoas, tais como a linguagem de sinais, mídias de vídeo, entre outros, que corroborem em deixar incontestada a vontade dos titulares de direitos. 4.3) A pessoa com deficiência auditiva e fonadora totais ( pessoa surda-muda) A pessoa surda-muda, de acordo com nossa legislação vigente e doutrinária sobre o tema, apenas poderia fazer o testamento na modalidade cerrada (MIRANDA, 1984), conforme estabelece o artigo 1873 do Código Civil de 2002, ficando-lhe vedado fazer o testamento público e o particular. O próprio, Pontes de Miranda, ao comentar o Código Civil de 1916 no que concerne aos testamentos feitos por surdo-mudo, declarou a necessidade de uma adequação da lei à realidade social, bem como a necessidade de aceitar outras formas de expressão para firmar a vontade da pessoa com deficiência:

por óbvio, é negativa, desde que seja feita a confirmação sem quaisquer embaraços da vontade dos nubentes o ato é válido. Neste sentido, devem ser também todos os demais atos jurídicos, a vontade é o fundamento e não modo que ela se expressará, pois, caso assim não seja, teremos uma lei extremamente formal, que é excludente das pessoas com certas deficiências físicas, e o cerne de qualquer ato jurídico está na capacidade de discernir sobre ele, e anuir com ele, e não o modo que se materializará no meio externo. 31

Analfabeta, aqui, no sentido de desconhecer a língua portuguesa escrita, e não necessariamente analfabeta em Libras.

No assunto de mudez e surdez, seria acertado que as legislações estabelecessem princípio mais adequável às realidades: desde que possa ser suprida a falta de um dos sentidos, comprovado assim, o conhecimento e a causa do que se lhe atribui, pode testar o mudo ou surdo. Ficariam às espécies à apreciação do juiz. Suprir-se-ia, pela escrita a mudez; a surdez, pela leitura direta; as duas pela escrita ou outro meio de expressão. (MIRANDA, 1984, p. 127).

Apesar de ser este o entendimento geral sobre a questão, de que apenas poderia fazer o testamento através da forma cerrada, é possível dentro de uma interpretação mais extensiva, aplicar a hipótese do artigo 1866, II parte, CC/02 a esta pessoa (surda-muda) para que também pudesse testar de forma pública, pois se o inteiramente surdo, que não saiba ou não possa ler poderá pedir que alguém ao seu rogo leia seu instrumento testamentário, por que não utilizar do mesmo critério para aquele que é também surdo e mudo, desde que a pessoa surda-muda seja alfabetizada e tenha pleno entendimento da vontade que expressa em seu testamento? No caso, da pessoa surda-muda também ser analfabeta lhe fica vedada a possibilidade de fazer qualquer tipo de testamento, tornado-se absolutamente excluída do direito testamentário, se considerar o legalismo estrito de nossas leis atualmente vigentes (art. 1872 e 1873, CC/02). O que deve ser levado em conta, a priori, é exatamente se a pessoa pode ou não exprimir sua vontade, e uma vez podendo, é necessário que as nossas leis se renovem no sentido de aceitar que outros meios de expressão da vontade possam ser utilizados para a produção do ato testamentário, desde que de modo inequívoco. Importante, ressaltar também que impor a pessoa o testamento cerrado como única hipótese possível de testar, acaba desestimulando a prática, por se tratar de um fazer testamentário cheio de ritos, inclusive, onde ainda hoje faz parte do ato coser o instrumento, e qualquer violação neste cerramento torna nula à vontade nele materializada e declarada (art.1869 e 1875, CC/02). De modo, que em razão da fragilidade deste instrumento, a vontade do surdo-mudo poderá não ser respeitada para depois de sua morte, prevalecendo à sucessão hereditária, sucessão esta que o testador quis exatamente afastar ao produzir seu testamento. Não merece, desta forma, respeito a vontade do testador surdo-mudo capaz, não se deve ele também respeito a sua dignidade e vontade, que se contextualizam e materializam em seu testamento? O entendimento que não reconhece o mesmo direito de testar para o surdo-mudo é excludente e não tem lugar em nosso atual sistema jurídico. E para completar, as taxas cartoriais para esta hipótese de testamento são bastante altas32, logo, estaríamos impingindo a pessoa com deficiência, em razão de sua deficiência, ter que arcar com taxas superiores à daquelas pessoas que não têm deficiência e podem testar de todos os modos, inclusive, de forma particular, onde não precisam pagar taxa alguma. 4.4) A pessoa com deficiência visual total (pessoa cega) Com relação à pessoa cega, a restrição legal sobre o tema é direta, dizendo que a pessoa cega somente pode testar pela forma pública, ficando-lhe vedada as outras formas de testamentos ordinários, a jurisprudência e a doutrina são uníssonas neste sentido (BORGES, 2014), tal como descreve o art. 1867, CC/02, in verbis: Ao cego só ser permite o testamento público, que lhe será lido, em voz alta, duas vezes, uma pelo tabelião ou por seu substituto legal, e outra por uma das testemunhas, designada pelo testador fazendo-se tudo circunstanciada menção no testamento.

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No Estado de Minas Gerais, por exemplo, o emolumento cobrado para o testamento cerrado é o dobro do valor cobrado para o testamento público, sendo R$411, 26 para o cerrado e R$205,62 para o testamento público (TABELA, TJMG, 2015). Em outros Estados, os valores praticados costumam ser os mesmos, para uma espécie, ou para outra, em São Paulo o valor é de R$1.305,18 (TABELA, TJSP, 2015), no Rio Grande do Sul de R$213,70 (TABELA, TJRS, 2015), no Estado da Bahia é de R$271,06 (TABELA, TJBA,2015). No Estado de Goiás, no entanto, o valor do testamento cerrado é de R$81,39, já o testamento público é no valor de R$ 219,50 (TABELA,TJGO,2014).

Pela dicção do referido artigo fica claro que o legislador considera que a pessoa cega seria incapaz de conferir os termos escritos do seu testamento, feito por si, ou por outrem, e sendo assim, determina a intervenção do Estado no ato para controle da regularidade da vontade desta pessoa, para que não sofra prejuízos, e que sua vontade real seja respeitada para depois de sua morte. Há, assim, uma pressuposição absoluta de que a pessoa cega não pode praticar o ato de testar de forma diversa da que estabelecida na lei. Esta restrição feita para a pessoa com deficiência visual total podia até ter uma razão de ser, naquela época do início da vigência do Código Civil de 1916, onde a pessoa cega em regra não era alfabetizada, e ainda, onde a escrita em braile era pouco difundida entre nós (BORGES, 2014). Neste contexto, onde a pessoa cega realmente não possuía os meios e mesmo as tecnologias assistivas para conferir o ato de vontade que produzia, torna-se compreensível a postura legislativa restritiva. Porém, a realidade atual, é outra, a pessoa com deficiência visual tem plena capacidade de escrever e ler através do método braile, e, existe, também, diversos programa de computadores que podem reproduzir os documentos através do áudio, impressoras em braile que permitem que a pessoa com deficiência visual confira os termos digitados nos computador. Existe, inclusive, a possibilidade de utilização de mídias em vídeo para corroborar com o ato praticado. Aliada a todas estas tecnologias disponíveis, temos ainda que durante todo o século XX, e também neste século XXI, o Instituto Benjamin Constant teve importante papel em alfabetizar e divulgar o braile para as pessoas com deficiência visual, bem como outras tecnologias assistivas. (BORGES, 2014). Assim, desde que a pessoa cega seja capaz, alfabetizada e tenha meios próprios para controlar o ato que pratica não há o porquê vedar-lhe a prática de testar em toda sua integralidade, seja através do testamento público, testamento cerrado e testamento particular. Inclusive, defendemos aqui a possibilidade de que ditas pessoas com deficiência visual possam fazer seu testamento particular em braile33, sem quaisquer embargos: Mais um argumento contrário que poderia ser trazido para contestar a possibilidade de testamento em braile seria o fato de que o Código Civil expressamente veda a possibilidade de que pessoas com deficiência visual possam fazer esta espécie de testamento de modo que não seria possível interpretação contra legem, ou seja, contrária a lei. Contudo, do ponto de vista interpretativo e sistemático, o Código Civil, ao trazer esta vedação, vai contra diversas disposições constitucionais que visam à igualdade e inclusão de todos os seus cidadãos, sendo assim, tal argumento não tem como prosperar diante de nossa ordem constitucional democrática, inclusiva e que visa à dignidade de todos os seus cidadãos (BORGES, 2014, p. 90).

Como tem se firmado durante todo o presente texto, é importante que se fixe qual o grau de incapacidade caso a caso, e, deste modo, deve-se avaliar se existe razão para restringir os direitos das pessoas com deficiências. A lei, não obstante tenha a finalidade de estabelecer os modos de agir, as condutas gerais, deve se flexionar diante de situações, que previamente sem uma análise mais amiúde, estabeleça vedação às práticas de atos. A lei deve ser repensada, mas, também, a prática judicial, mesmo sem leis expressas sobre esta questão tem todos os meios principiológicos hábeis e suficientes para controlar normas de caráter excludentes das pessoas com deficiências. 4.5) A pessoa com deficiência motora, ou com a ausência de um, ou alguns membros

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Para uma melhor reflexão sobre os modos de testar da pessoa com deficiência visual total, remete-se o leitor ao artigo feito por esta autora, intitulado: “Testamento Particular em braile, por que não? Inclusão já. Este artigo abordou todas as mudanças e paradigmas, bem como estigmas superados pelas pessoas com deficiência visual, demonstrando como na atualidade estas pessoas têm totais condições de praticar seus atos de forma autônoma, sem a necessidade de uma intervenção direta do Estado, para o controle da legalidade dos mesmos. Posicionou-se, inclusive, sobre a real possibilidade de que a escrita braile seja um meio viável para testar (BORGES, 2014). Neste artigo, não se tratou da hipótese de que o braile também fosse utilizado para fazer o testamento cerrado, porém, com as devidas adequações para a espécie, não se vê empecilhos para tanto.

A lei não é explícita sobre a deficiência motora, e nem mesmo sobre a hipótese de ausência de membros da pessoa que testa, apenas, cinge-se a afirmar que não sabendo, ou não podendo assinar, alguém assinará a rogo do testador, conforme dicção do artigo 1865, CC/02. Na primeira hipótese, temos a pessoa analfabeta que mesmo podendo, não tem como assinar, pois desconhece a linguagem escrita e gráfica do português, precisando deste modo que alguém lhe substitua a assinatura, que é requisito essencial dos testamentos. E, na segunda hipótese, temos uma pessoa que mesmo sabendo, e conhecendo a linguagem escrita, não tem como assinar, pois, definitivamente, ou temporariamente, possui uma deficiência de natureza motora que a inviabiliza para tanto, ou ainda, a hipótese que esta pessoa não possua os membros superiores que permitiriam à escrita. Passemos à análise de cada uma destas hipóteses aventadas. Na hipótese da pessoa que sabe assinar, mas, não pode fazê-lo, pode-se se dar, por duas circunstâncias distintas, a primeira de deficiência motora, que inviabiliza a pessoa de praticar sua assinatura escrita, e a segunda circunstância, trata-se da ausência de membros da pessoa que testa, impossibilitando deste modo a sua assinatura. No caso da deficiência motora, esta pode ser transitória, ou não, em que uma pessoa capaz, que declarou de forma inequívoca sua vontade, estabelecendo suas disposições de última vontade, não tem como firmar a sua assinatura, porém, pode determinar que alguém ao seu rogo, assine-lhe o documento. Vejamos que, mesmo sem fazer menção direta, é possível concluir que a pessoa capaz, que tenha deficiência motora e que não possa firmar sua assinatura, somente poderá testar através de Testamento Público, pois, somente nesta hipótese legal será permitida a assinatura por representação, nas demais hipóteses testamentárias ordinárias, testamento cerrado ou testamento particular, a assinatura pelo testador de forma própria é requisito essencial do ato, conforme artigos 1868 e 1876 CC/02, que determinam que mesmo o testamento seja feita a rogo, no caso do cerrado, o por processo mecânico em ambos os casos, devem ser assinados pelo testador. Importante ressaltar, que a assinatura “escrita” exigida pelo legislador no documento testamentário, bem como demais documentos em que se tenha que firmar a vontade de alguém, deve-se a necessidade de comprovar que o praticante do ato anui com o que é declarado no documento. Porém, em nossa atualidade, como já citado e comentado, existem novas tecnologias que substituem a assinatura escrita, a assinatura digital34, por exemplo. Na verdade, o que se busca com a assinatura escrita é certificar que quem firma certo documento representativo do ato jurídico é realmente o titular daquele direito, porém, temos hoje em dia, diversas outras tecnologias aptas a certificar as pessoas, tais como biometria35 (identificação através da íris da voz, entre outras). Antigamente, apenas tínhamos o meio grafológico para certificar as pessoas, porém, não mais faz sentido que este seja o único meio possível de certificação de nossos documentos, principalmente, se outros meios forem aptos a incluir e permitir que as pessoas pratiquem suas faculdades legais. Mais uma vez, aqui, propugna-se, para a necessária reflexão de que nossos costumes atuais não são os mesmo do homem do século passado, de modo que temos que perceber que a tecnologia hoje disponível, deve ser utilizada em prol da sociedade e da prática dos direitos. No caso da ausência de um, ou alguns membros, não necessariamente se fará necessário que a assinatura se dê por outrem, têm-se diversos exemplos de pessoas que não possuem os braços, mas, que suas pernas e pés substituem-lhes todos os atos, inclusive de escrever. E, ainda assim, pode-se aqui usar os

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Não há razões justificáveis para se negar que alguém que tenha uma deficiência motora, mas, que possuísse assinatura digital, que deste modo, assinasse seu testamento, qual seja, por meio eletrônico. E, poderia, inclusive, neste caso, de assinarem digitalmente, que lhe fossem admitidos também à possibilidade de testar através de testamento cerrado e particular. 35

A utilização biométrica entre nós é cada vez mais cotidiana, vemos seu uso nos Bancos, em nossos postos de trabalho na marcação do ponto, e até mesmo o Poder Judiciário, através da Justiça Eleitoral, que está implantando seu uso em larga escala para ser utilizado em nossos processos eleitorais. Assim, a biometria “é o estudo das medidas físicas dos seres vivos. Atualmente, a identificação biométrica é usada para identificar pessoas por meio das características únicas de cada indivíduo, como a face, a íris e a impressão digital, fixando sua identificação perto da margem zero de erro. Além desses, existem outros métodos de identificação biométrica, como o reconhecimento pela voz, palma da mão e assinatura. Embora todos sejam ótimos métodos de identificação biométrica, o mais seguro é pela íris, com uma margem de erro de 0,05%, porém, seu custo ainda é alto” (IDENTIFICAÇÃO, 2015).

mesmos argumentos acima utilizados, que para a certificação da pessoa, que pratica atos jurídicos não apenas existe a assinatura escrita para tanto. Porém, se as pessoas que não podem escrever em razão de deficiências motoras ou por ausência de seus membros superiores resolvessem testar hoje, tal como nossa lei estabelece, teríamos que só poderiam fazê-lo mediante testamento público, e mesmo assim, se alguém ao seu rogo, ou em sua representação assinasse em seu lugar. Tem-se, então, que pessoas totalmente capazes, que possuem convicção sobre a sua vontade ficariam vedadas de testar de outro modo, em razão de uma suposta incapacidade intransponível de que as mesmas não pudessem assinar por si mesmas. Esta exigência legal absoluta deve ser flexionada e elastecida, e, somente deverá tomar lugar, se ficar comprovada a impossibilidade que a pessoa por si mesma não possa assinar de outro modo, ou mesmo certificada com as novas tecnologias que dispomos. 5)Considerações Finais As deficiências físicas, antes tidas como incapacitantes para a produção de atos jurídicos, devem hoje ser refletidas sobre um novo paradigma social e estatal. É necessário, que as leis vigentes, no Brasil, estejam adequadas a este novo paradigma de Estado que buscamos implementar, qual seja, o Estado Democrático de Direito, no qual as idéias de igualdade, inclusão social, diferenças e dignidade caminham lado a lado. Não é mais sustentável, que nosso sistema jurídico atual deixe de considerar que muito se evoluiu em sede cultural e tecnológica, no que concernem àquelas pessoas que possuem deficiências físicas, tais como, auditiva, fonadora, visual e motora. Assim, se faz urgente, uma readequação das nossas normas, a estas novas realidades, sob pena se assim não agirmos, de nossas leis virarem puro ostracismo e caiam em desuso entre nós, principalmente, em relação aqueles institutos que fazemos em tão pequena escala, como é o caso dos testamentos no Brasil. Os dispositivos legais que tratam sobre testamentos, hoje, no Brasil, e que estão contidos em nosso Código Civil vigente, estão totalmente em descompasso com as idéias de inclusão, que visam diminuir, ou mesmo extirpar de nosso contexto social e jurídico as restrições de direitos às pessoas em razão de suas diferenças. Neste sentido, então, temos uma legislação civil que ainda hoje traz presunções de incapacidade com base nas deficiências físicas, sem ao menos considerar que hoje, na atual evolução social, estas pessoas estão integradas nos diversos setores sociais e são plenamente aptas, sem a necessidade de intervenção de terceiros, na prática de seus atos cotidianos e para sua própria conservação. Assim sendo, é necessário uma profunda reflexão sobre estas questões, de modo a perceber que não é mais factível, que hoje tenhamos uma legislação assistencialista, que pressuponha que toda pessoa com deficiência física precisa ser protegida em todos os casos, e ainda, que esta pessoa não é apta produzir seus atos jurídicos e exprimir sua vontade de forma válida, e por via de conseqüência, que sempre precisará da necessária intervenção do Estado para o controle da regularidades de seus atos, ou ainda, pior, no caso do Estado lhe vedar por completo a possibilidade de testar em razão de suas deficiências. As restrições testamentárias que ocorrem de forma pressuposta, sem que tenha qualquer temperamento, sobre cada caso, e que não avaliem a possibilidade da vontade ser expressa de forma inequívoca, mesmo que a pessoa tenha alguma deficiência física, está em desalinho com as nossas diretrizes constitucionais e precisam de profunda reflexão e readequação. Logo, para uma real coerência lógica entre nossas leis e estas restrições testamentárias será preciso dois movimentos de igual importância. O primeiro, destes movimentos, deve ser o movimento legislativo, que precisa reconhecer a inclusão como a ordem do dia, e como fundamento lógico de diversos princípios constitucionais hoje em vigor (dignidade, igualdade, liberdade, entre outros), e com isto, perceber que possuímos na atualidade diversos aparatos tecnológicos aptos a corroborar com integração das pessoas com deficiência em nossa sociedade, e, principalmente, para produção e certificação de seus atos jurídicos, dentre deles, o testamento. O segundo movimento seria o de natureza judicante, onde é necessária uma sensibilização de nosso Poder Judiciário, para que as normas sejam sempre interpretadas com o um viés inclusivo, que permita uma adequação e equilíbrio sempre que estivermos diante de restrições de direitos,

pois, como já afirmado durante todo o presente texto, as restrições absolutas aos direitos somente devem ter lugar se ficar comprovado real possibilidade de prejuízo para aqueles que os praticam, caso contrário, deve prevalecer à regra geral de capacidade. Por fim, pelo o exposto, é urgente que os testamentos sejam entendidos como expressão da liberdade, da dignidade e da diferenças de cada um, onde a faculdade de testar representa à pessoa humana, a possibilidade de firmar para depois de sua morte, a sua vontade de forma plena e sem embaraços, como representação da sua personalidade, que uma vez existiu, e por ter existido, e criado diversas relações sociais e jurídicas deve ser respeitada. Assim, todas as pessoas sem exclusão, desde que capazes e aptas a certificar sua vontade devem ter este direito garantido e conferido. A lei sobre tema deve ser instrumento integrador das pessoas, e não agente excludente, vez que nosso paradigma jurídico e social é totalmente avesso a segregações sem quaisquer fundamentos válidos. 6) Referências Bibliográficas AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 7ª Ed. rev. ampl.e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

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