Superanimal, infra-humano: animalidade e gênero na leitura popular de práticas biomédicas na Primeira República

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

GIULIA BAUAB LEVAI

Superanimal, infra-humano: animalidade e gênero na leitura popular de práticas biomédicas na Primeira República

CAMPINAS 2016

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 30 de novembro de 2016, considerou a candidata Giulia Bauab Levai aprovada.

Profª. Drª. Nádia Farage Prof. Dr. Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia Prof. Dr. Rodrigo Camargo de Godoi

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

À memória de meu avô, Emeric Lévay (1929-2004).

AGRADECIMENTOS À minha família, pelo apoio incondicional e pelo afeto que nunca me faltou: aos meus pais, Tamara e Laerte, e aos meus irmãos, Marcel e Fernando, por serem referências que sempre me despertam enorme admiração; pelo companheirismo e pelas vivências, de perto e de longe. A Nádia Farage, cujo trabalho influenciou grandemente esta dissertação. Por ter sido um referencial de pensamento que opera em costuras finas e sensibilidade rara. Pelos caminhos que me proporcionou, e também pela amizade. Aos membros da banca de qualificação e de defesa, Professores Sidney Chalhoub, Rodrigo Camargo de Godoi e Alfredo Luiz Suppia, pelo olhar perspicaz e pelas sugestões preciosas e elementares. Aos Professores Bernardo Freire e Rosa Oliveira pelo encorajamento inicial. A Professora Suely Kofes, pela leitura atenciosa no meio do caminho. A Thamires Sarti, Guilherme Christol, Rafaela de Carvalho e Allan Moura, pela cumplicidade, por todas as conversas saídas das nossas relações de vizinhança entre pesquisas, que foram um constante estímulo. E, é claro, por todas as demais conversas e parcerias menos sérias e não menos importantes. Agradecimentos enfáticos a Guilherme e Thamires, pelo auxílio nas miudezas do texto e no trato das fontes da imprensa, e também por me oferecerem um sem número de aprendizados ao longo desses anos. A Mariana Simarro, Thamires Sarti, Jaqueline Gonçalves, Andrei Campanini e Felipe Mello, pela vivência ímpar nos anos de graduação, e aos demais amigos historiadores, que têm me inspirado desde o início. A Clari Botzo e a Caro, por terem me instigado a leituras fundamentais à concepção deste trabalho, e a tantos outros assuntos. A Sarah Rossetti, a meus pais, a Isaac Maciel e a Michelle Alcântara, pelo interesse que tiveram em acompanhar esta pesquisa, pelas sugestões e pelas leituras atenciosas. A Maria Cataria Bózio, Igor Scaramuzzi e Giulie Amaral, pelas revisões do projeto. A Livia Tiede, Ian Lopes e Maria Fernanda Moreira, pela interlocução animadora na fase final. A Vinícius Zanoli e Rubens Mascarenhas, pela ajuda com os trâmites burocráticos. Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da turma de 2014, com saudades. Aos funcionários do Arquivo Edgard Leuenroth, Arquivo Miroel Silveira, Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional, Centro de Memória e Documentação da UNESP e Real Gabinete Português de Leitura, pelo enorme auxílio prestado. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pela concessão do auxílio financeiro que possibilitou esta pesquisa.

RESUMO

O propósito desta pesquisa é analisar as premissas que informam e entrecruzam os conceitos de animalidade, gênero e sexualidade no estabelecimento da endocrinologia no Brasil, durante as três primeiras décadas do século XX. Naquele período, em que tal ciência procurava se estabelecer no campo científico, o debate relativo a seu método e sua finalidade chega à imprensa, registrando a reação do pensamento leigo e popular à mistura de substâncias entre seres humanos e outros animais, que a pesquisa endocrinológica promovia. Para tanto, focaliza um episódio controverso da história da medicina, registrado nos jornais brasileiros nas décadas de 1920 e 1930: o caso do médico Serge Voronoff – um cirurgião franco-russo, que desenvolveu um pretenso método de rejuvenescimento através do enxerto de glândulas de primatas e símios em seres humanos – e sua visita às capitais do Rio de Janeiro e de São Paulo, em 1928. A partir deste episódio pretende-se investigar, no debate sobre as fronteiras entre humanidade e animalidade, as concepções e transformações conceituais relativas ao gênero, à reprodução, e à sexualidade humanas. Palavras-chave: Voronoff; endocrinologia sexual; animalidade; gênero.

ABSTRACT

The purpose of this research is to analyze the assumptions that inform and intersect the concepts of animality, gender and sexuality in the establishment of endocrinology in Brazil, during the first three decades of the twentieth century. In that period, in which such developing science sought to establish itself in the scientific field, the debate concerning its method and its purpose comes to press, recording the reaction of the lay and popular thought to the mixture of substances between humans and other animals, promoted by endocrinological research. To do so, it focusus on a controversial episode in the history of medicine, registered in brazilian newspapers in the 1920s and 1930s: the case of doctor Serge Voronoff – a french-russian surgeon, who developed a so-called rejuvenation method through the grafting of primate and simian‟s glands into human beings – and his visitation to the capitals of Rio de Janeiro and São Paulo. From this significant episode, we attempt to investigate within the debate on the boundaries between humanity and animality, conceptions and conceptual changes relating to gender, reproduction, and human sexuality. Keywords: Voronoff; sex endocrinology; animality; gender.

ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: O “comitê científico internacional”........................................................................................................34 Figura 2: “A masculinização da mulher, ano 1999”..............................................................................................45 Figura 3: “She-goat”..............................................................................................................................................49 Figura 4. “No dia da chegada do dr. Voronoff...”..................................................................................................60 Figura 5. Voronoff operando no Hospital Evangélico...........................................................................................70 Figura 6. Caricatura sem título...............................................................................................................................72 Figura 7. Ilustração de capa do romance Nora, la guenon devenue femme..........................................................97 Figura 8. Ilustração alternativa para a capa do romance Nora, la guenon devenue femme..................................97 Figura 9. Ilustração de capa do romance Doutor Voronoff..................................................................................109 Figura 10. Capa da partitura “„Seu‟ Voronoff: marcha-enxerto”.........................................................................127 Figura 11. “Resultado do Enxerto Voronoff”......................................................................................................130 Figura 12. Ilustração humorística sem titulo........................................................................................................130 Figura 13. Lon Chaney como Corcunda em cena do filme A Blind Bargain (1922)...........................................142 Figura 14. O Corcunda e o Homem-Besta em cena do filme A Blind Bargain (1922)........................................142 Figura 15. “La Revanche”....................................................................................................................................144 Figura 16. “A chegada de Voronoff”...................................................................................................................145 Figura 17. “As glandulas da juventude”..............................................................................................................146 Figura 18. “Soros”................................................................................................................................................152 Figura 19. “A Varíola – ou – os Maravilhosos Efeitos da Nova Inoculação!”,...................................................153

SUMÁRIO

Introdução................................................................................................................... ...........................................12 Capítulo I: “A conquista da vida”...................................................................................................... .................21 1.

Dr. Frankenstein..........................................................................................................................21

2.

Uma centelha de vida..................................................................................................................22

3.

A tecnologia wireless das secreções internas..............................................................................25

4.

Dr. Voronoff e o “fluido vital”...................................................................................................28

5.

O método da enxertia glandular de Voronoff.............................................................................30

6.

“Superanimais”...........................................................................................................................31

7.

A enxertia glandular em seres humanos.....................................................................................36

8.

Um estoque de glândulas e gônadas...........................................................................................40

9.

“Super-homens”..........................................................................................................................42

10.

O sexo instável...........................................................................................................................44 10.1. Da pecuária à ginecologia..................................................................................................46 10.2. A “reversão sexual” e os hormônios “fora de lugar”.........................................................48 10. 3. A “inversão sexual” e o tratamento hormonal..................................................................51

11. “Voronoff vem ahi” .....................................................................................................................52 Capítulo II: Voronoff visita o Brasil....................................................................................................................53 1.

Voronoff no Rio......................................................................................................... .................59 1.1 Pelo “Alcantara”..................................................................................................................59 1.2 “A história antecipada”........................................................................................................61 1.3. Controvérsia nas Jornadas Médicas.....................................................................................63 1.4. Uma visita ao Jardim Zoológico e a abertura das JsMs.......................................................64 1.5. Uma conturbada sessão na SMC do Rio de Janeiro............................................................65 1.6. A conferência na Academia Nacional de Medicina do Rio de Janeiro................................66 1.7. A operação de Feliciano Ferreira de Moraes.......................................................................68 1.8. A “voronoffização” de um carneiro.....................................................................................72 1.9. A operação da misteriosa Mme. Lima.................................................................................74 1.10. A conferência na SMC do Rio de Janeiro e a partida a São Paulo....................................75

2.

Voronoff em São Paulo...............................................................................................................76 2.1. Algumas visitas e uma conferência na Associação das Classes Laboriosas......................76 2.2. A operação de “Mozart” e algumas cordialidades.............................................................77 2.3. A conferência na SMC de São Paulo.................................................................................79

3.

Parte Voronoff; ficam os macacos e os operados.......................................................................80

4.

A classe médica debate Voronoff...............................................................................................83

5.

Charlatanismos............................................................................................................................87

Capítulo III: Ficção e “pilhéria” científica.........................................................................................................91 1.

“Nora, la guenon devenue femme”.............................................................................................91

2.

“Doutor Voronoff”....................................................................................................................106

3.

Voronoff em cartaz...................................................................................................................110

4.

A velhice em regabofe................................................................................................ ..............112

5.

A animalização dos “voronoffizados”......................................................................................120 5.1. “A macacada de Voronoff”................................................................................................124 5. 2. A “alma de macaco”.........................................................................................................126 5.3. Os “filhos de Voronoff”.....................................................................................................129

6.

Além do chiste..........................................................................................................................133

7.

Intemperança e animalidade.....................................................................................................135

8.

“Frankenstein by Voronoff”.....................................................................................................137

9.

Uma história de terror................................................................................................. ..............140

10. A melancolia dos macacos e a crítica à ciência........................................................................144 11. Soros........................................................................................................................ .................150 12. Entre o humor e o terror............................................................................................................155 Capítulo IV: Maus encontros.............................................................................................................................157 1.

A virada da década....................................................................................................................157

2.

Desdobramentos imprevistos....................................................................................................158

3.

A morte do mago da vida..........................................................................................................165

Considerações finais............................................................................................................................................168 Bibliografia................................................................................................................. .........................................172 1.

Fontes primárias........................................................................................................................172

2.

Fontes secundárias....................................................................................................................181

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INTRODUÇÃO

Nas primeiras horas do dia 12 de julho de 1928 atracou, no porto do Rio de Janeiro, um dos maiores transatlânticos ingleses da época, o “Alcantara”. Era um dia extraordinário para a antiga capital federal, que o aguardava alvoroçada, pois o evento que os jornais brasileiros anunciavam há meses acabara de se concretizar: o doutor Voronoff estava no Brasil. Vinha a bordo do transatlântico, e trazia com ele uma dezena de macacos do Congo Belga. Serge Samuel Abrahamovitch Voronoff (1866-1951), então diretor do Laboratório de Cirurgia Experimental do Collège de France, foi um médico-cirurgião nascido na Rússia e naturalizado na França que se tornou, certamente, um dos nomes mais populares do nascente campo da endocrinologia, no início do século XX. Através dos jornais brasileiros, o leitor atento poderia conhecê-lo, pelo menos, desde 1913. Mas na década de 1920, sobretudo no ano de 1928, era improvável encontrar carioca ou paulistano que nunca tivesse lido ou ouvido seu nome, fosse pelos veículos jornalísticos, pelas peças de teatro ou filmes em cartaz, pelos livros, pelos sambas e marchinhas de carnaval, ou mesmo pelas conversas miúdas do cotidiano. O Rio aguardava-o com grande curiosidade naquela manhã. Mas ansiavam pela chegada deste doutor, principalmente, alguns senhores e algumas senhoras na faixa dos sessenta anos. A visita de S. Voronoff ao Brasil fora motivada por ocasião de sua participação nas Jornadas Médicas do Rio de Janeiro, evento organizado pelas Associações MédicoCirúrgicas, no qual atendeu como um dos representantes da França, a convite do secretário geral das Jornadas, o urologista Dr. Belmiro Valverde (1884-1963). Os macacos que vieram a bordo do Alcântara estavam reservados para serem utilizados nos procedimentos cirúrgicos de Voronoff em seu tour pela América do Sul, cujos próximos destinos seriam São Paulo, Montevidéu e Buenos Aires1. Durante sua estadia em solo brasileiro, que durou treze dias, foram feitas pelo Dr. Voronoff conferências e demonstrações práticas, com o intuito de apresentar, ensinar e difundir, entre a classe médica brasileira e a população em geral, seu método cirúrgico, que

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Grosso modo, assim informam os jornais cariocas Correio da Manhã (13 jul 1928, p. 3), A Esquerda (13 jul 1928, p. 1), Gazeta de Notícias (13 jul 1928, p. 1), O Imparcial (13 jul 1928, p. 1), Jornal do Brasil, A Manhã (13 jul 1928, p. 1) e A Noite (13 jul 1928, p. 1), que cobriram o evento da chegada de Voronoff a então capital federal.

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prometia aplicar os princípios da endocrinologia para operar o rejuvenescimento de seres humanos e o aperfeiçoamento de raças animais. Dr. Voronoff não foi o grande pioneiro da endocrinologia, tampouco o único a propagandear um método de rejuvenescimento nessa época. No entanto, este médicocirurgião tornou-se uma verdadeira celebridade na década de 1920. No início do século XX, S. Voronoff iniciava um estudo experimental inspirado em duas grandes novidades do meio médico-científico: a primeira, a nascente ciência dedicada ao estudo das glândulas e do efeito de suas secreções hormonais, e a segunda, os pioneiros transplantes e enxertos de tecidos e órgãos. A hipótese de Voronoff era de uma relação direta entre a atividade das glândulas sexuais e a vitalidade dos seres humanos e animais. Nela, o envelhecimento seria resultado do deterioramento orgânico destes órgãos. Ao longo da década de 1910, Voronoff desenvolveu uma técnica para o enxerto de glândulas, de um organismo a outro, a partir da qual afirmava poder reverter quadros de senilidade entre seres humanos, bem como revolucionar a produtividade dos rebanhos animais. Supostamente, o enxerto de glândulas genitais, novas e saudáveis, atuaria revitalizando e potencializando o vigor físico dos organismos que as recebessem. O operador de tal transformação seria a substância secretada por essas glândulas, referida por Voronoff como “fluido vital”. Tal substância, na época também referida como secreção interna, era aquela dos hormônios sexuais, conceito então bastante recente no meio científico. O método de Voronoff consistia, enfim, em uma intervenção cirúrgica na qual uma nova glândula era enxertada nas gônadas sexuais (testículos e ovários) de suas cobaias e de seus clientes, para que a produção hormonal desses corpos fosse estimulada. A endocrinologia já havia tentado algo similar, através das injeções de extratos glandulares animais, mas o objetivo de Voronoff era beneficiar os sujeitos pela inserção da própria fonte orgânica dos hormônios sexuais em seus corpos. Seu método foi difundido e posto em prática por uma série de médicos e veterinários, conceituados ou amadores, no Brasil e no mundo, durante as primeiras décadas do século XX. No caso da aplicação do método em seres humanos – motivo de maior frisson entre a população e a própria comunidade científica –, Voronoff pretendia rejuvenescê-los utilizando as glândulas genitais de símios. Tratava-se, afinal, de transferir a vitalidade dos macacos aos humanos, alargando a expectativa de vida de homens e mulheres, transformando-os em provas vivas da vitória da ciência sobre a natureza e a morte. Para o caso dos animais da indústria pastoril e pecuária, pretendia-se forjar superanimais, cuja vida produtiva e

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reprodutiva seria alargada e potencializada. A Conquista da Vida: tal era a esperança de Voronoff, como sugeria o título do livro deste médico-cirurgião, publicado em 1928 (Voronoff, 1928). Suas teorias, nada ordinárias, ganhariam ampla repercussão na década de 1920. “Como nos tempos de Wells...” é o título de um artigo publicado pela Gazeta de Notícias, na primeira página da edição de 19 de janeiro de 1927, que evoca a ficção científica de H. G. Wells para noticiar as primeiras pesquisas científicas em torno das propriedades atômicas e seu incomensurável potencial energético, apresentado às exclamações e explicado com uma matemática vertiginosa: Calculou-se que a energia atomica de um pedaço de metal do tamanho de uma noz bastará para dar movimento no mar a um transatlântico em uma viagem de ida e volta da Europa á America! [...] Para que os profanos se ajuisem do problema, diremos que a 70ª parte de um grão de radio (o grão pesa 0,648 do gramma) emite 30 milhões de particulas electras por segundo (Gazeta de Notícias, 19 jan 1927, p. 1)2.

Os trabalhos de Voronoff foram mais um assunto dentre as sensacionais novidades científicas que eram noticiadas, pela imprensa brasileira, durante o primeiro quartel do século XX. No entanto, ao longo da década de 1920 Serge Voronoff se tornaria progressivamente uma das maiores referências nesse âmbito, conforme seu trabalho ganhava progressiva repercussão nos jornais, que encontraram nele uma fonte inesgotável de publicidade. Não raro, sobretudo durante a visita do médico-cirurgião ao Brasil, o assunto Voronoff aparecia nas primeiras páginas dos jornais. Fausto, Mefistófeles, remoçador, alquimista, sábio eslavo, mago do bisturi, mágico, feiticeiro, charlatão, descobridor do elixir da longa vida ou da fonte de Juventa: estes são alguns dos adjetivos que acompanharam o nome do Dr. Voronoff na imprensa carioca e paulistana da época. “Fala o dr. Voronoff... As suas promessas maravilhosas mais parecem declarações phantasticas dum personagem de Wells. No entanto, é Voronoff – o mago do enxerto das glandulas simiescas – que fala...” (Correio Paulistano, 21 mar 1927, p. 7). Muitas reportagens reagiam com entusiasmo às novidades trazidas por Voronoff, não raro exagerando-as, a ponto de tornar as teorias deste médico ainda mais fantasiosas. Em outras sessões dos mesmos jornais, podemos encontrar reportagens que seguiram outros caminhos. Algumas, redigidas com ampla seriedade jornalística, agregando, por vezes, o ponto de vista de alguns médicos, tentaram se orientar por uma abordagem factual e técnica sobre o caso; outras encontraram

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Nesta dissertação, todas as citações de fontes as mantêm em sua grafia original.

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nas práticas do Dr. Voronoff ponto de partida para uma série de ironias humorísticas e divagações filosóficas, feitas por uma variedade de literatos, cronistas e cartunistas. A partir do mapeamento das referências a este médico-cirurgião na imprensa carioca e paulistana, bem como de fontes literárias e audiovisuais ainda referentes ao tema, esta pesquisa persegue algumas controvérsias, médicas e populares, para nelas localizar um debate referente às fronteiras entre humanidade e animalidade e às concepções e transformações conceituais relativas à reprodução e à sexualidade. Interessa-nos, sobretudo, rastrear um dos temas que, entre outros, atravessou a popularização de Serge Voronoff no Brasil, a saber: aquele da zona de perigo que emerge na articulação entre a sexualidade e a animalidade, e a ameaça que ela representa à delimitação da categoria de humano. No horizonte teórico desta pesquisa, entre outras referências, estão algumas formulações da obra de Michel Foucault (Foucault, 1988; 2005). Se, em equação diametralmente oposta ao axioma da soberania, inaugurando “o direito de fazer viver e de deixar morrer”, o biopoder busca o controle do homem enquanto ser vivo, este controle depende fundamentalmente de um poder científico, ligado à manutenção da vida (Foucault, 2005). O biopoder se forma a partir de dois polos, complementares e intimamente ligados: [...] o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade [...] tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população [...] Abre-se, assim, a era de um “bio-poder” [grifos no original] (Foucault, 1988: 151153).

Segundo Foucault, no século XIX, para governar a vida “vai ser preciso modificar, baixar a morbidade; vai ser preciso encompridar a vida; vai ser preciso estimular a natalidade”. No século do biopoder, surge a regulamentação sobre as taxas de fecundidade e mortalidade, sobre a produção, o combate à doença, à velhice, às diversas anomalias e a tudo aquilo que “[...] cai para fora do campo de capacidade, de atividade” (Foucault, 2005: 291). Em sua última aula do ano de 1976, no Collège de France, Foucault se pergunta: “[...] por que a sexualidade se tornou, no século XIX, um campo cuja importância estratégica foi capital?” (Foucault, 2005: 300). A resposta é dada, em seu pleno desenvolvimento, no primeiro volume de História da Sexualidade. No entanto, naquela ocasião, Foucault sintetiza:

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“a sexualidade está exatamente na encruzilhada do corpo e da população”, por depender, a um só tempo, da disciplina e da regulamentação (Foucault, 2005: 301). Deste raciocínio, desenvolve: Daí também a ideia médica segundo a qual a sexualidade, quando é indisciplinada e irregular, tem sempre duas ordens de efeitos: um sobre o corpo, sobre o corpo indisciplinado que é imediatamente punido por todas as doenças individuais que o devasso sexual atrai sobre si [...] Mas, ao mesmo tempo, uma sexualidade devassa, pervertida, etc., tem efeitos no plano da população, uma vez que se supõe que aquele que foi devasso sexualmente tem uma hereditariedade, uma descendência que, ela também, vai ser perturbada [...] (Foucault, 2005: 301).

O leitor poderá perceber, conforme avançamos na exposição do corpo documental desta dissertação, que não são raras as passagens de fontes que nos remetem ao edifício teórico foucaultiano. Por ora, podemos citar as últimas palavras de Voronoff na obra Vivre3, de 1920, que deixam uma promessa: O enxerto dessa glândula vai não só contribuir para a conservação e multiplicação da raça humana, e daqueles animais cujas vidas nos interessam intensificar, mas também na duração dos nossos poderes intelectuais e nossa habilidade para trabalhar. O ideal relativo aos nossos esforços tende a preservar a vida na plenitude das suas diversas e múltiplas manifestações, para forçar a morte a recuar para os seus limites mais longínquos [tradução livre]4 (Voronoff, 1920: 128).

O percurso do Dr. Voronoff, dentro do nascimento da ciência endocrinológica e do contexto mais amplo das primeiras décadas do século XX, pode ser lido como um episódio expressivo da era do biopoder. Suas intervenções somar-se-iam a muitas outras que expressaram um movimento geral na ciência, que passava a assumir a função de gerir a vida. De modo mais pontual, esta pesquisa se orienta por aquilo que Nádia Farage propõe em seus trabalhos recentes no campo dos animal studies, voltados a uma leitura de perspectiva histórica sobre os naturistas libertários5 no Brasil moderno.

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Citada ao longo desta dissertação na sua edição em língua inglesa, Life: A Study of the Means of Restoring Vital Energy and Prolonging Life. “The graft of this gland will not merely contribute to the conservation and multiplication of the human race, and of those animals whose life we are interested in intensifying, but also to the duration of our intellectual powers and our ability to work. The ideal toward which our efforts tend is to preserve life in the plenitude of its diverse and multiple manifestations, to force death to retreat to its farthest limits” (Voronoff, 1920: 128). Por naturismo libertário, entenda-se aqui a zona de convergência entre as tendências anarquistas “naturiana, neo-naturiana, primitivista, anti-científica ou libertária”, que “floresceram na Europa meridional ao final do século XIX”, para repercutir na América no início do século XX (Farage, 2015: 153). Poder-se-ia dizer a respeito deste ideário, de modo sintético: “Em grandes linhas, o naturismo libertário sustentava que o capitalismo havia degenerado a condição humana por havê-la afastado da natureza; combatê-lo exigia, assim, a recusa à técnica e ao artifício que, necessariamente, supunha o modo de produção industrial. Viver naturalmente, ao lado de outros seres vivos, era a bandeira principal do movimento” (Farage, 2011: 293-294).

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Nestes estudos (Farage, 2011, 2013a, 2013b e 2015), cujo contexto é aquele da modernização urbana e industrial na cidade do Rio de Janeiro, N. Farage persegue na resistência popular ao projeto higienista e à “máquina moderna” ideias dissidentes à ordem industrial no início do século XX, insufladas pelo naturismo libertário, como um contraponto ao biopoder, que se erguia sobre as “vidas miúdas” dos animais e das classes populares, companheiros em suas misérias (Farage, 2011 e 2015: 163). Resistências correlatas – ainda que sob outros arranjos – podem ser encontradas no caso Voronoff. A abordagem proposta nesses trabalhos – que teve grande impacto sobre o modo como foram lidas as fontes desta dissertação – deu origem a uma equipe de estudos e pesquisa, composta pela profª. Nádia Farage e por parte de seus alunos e orientandos, à qual a presente pesquisa pretende somar suas contribuições. Há uma especificidade no artigo “De ratos e outros homens: resistência biopolítica no Brasil moderno” (Farage, 2011), que interessa especialmente a esta pesquisa, e que a inspira: as reações populares à inoculação de substâncias animais em corpos humanos. Para o caso da modernização brasileira pretende-se, aqui, desdobrar as interrogações de N. Farage (2011) para o período imediatamente anterior, em que o debate acerca da mistura entre substâncias animal e humana esteve acirrado, na consolidação da bacteriologia no Brasil. Por enquanto, vale reter que as contribuições da autora nos alertam para a importância de um olhar sobre o lugar dos animais no contexto industrial. Os animais não escapam ao biopoder, afinal, a vida aparece como “denominador comum entre animais e homens” (Farage, 2011: 305). Vale frisar que, em âmbito nacional, o caso do Dr. Voronoff e seu impacto no Brasil foram previamente analisados pela historiadora Ethel M. Cupershmid, em artigos publicados entre 2007 e 2014. O artigo em conjunto com Tarcisio Campos, “Os curiosos xenoimplantes glandulares do doutor Voronoff”, de 2007, foi referência elementar para o desenvolvimento do projeto que resultou nesta pesquisa, cujo intuito é estender tal investigação, abordando o mesmo objeto a partir de outras referências analíticas. De modo geral, este trabalho se apoia nas referências da antropologia, da história social da cultura e, mais precisamente, do cruzamento de duas abordagens teóricas: aquela dedicada às questões de gênero – privilegiada no primeiro e no quarto capítulo da dissertação – e aquela que atenta às questões da animalidade – privilegiada no terceiro capítulo. Entre uma e outra passamos, ainda que tangencialmente, pela questão racial6. Interessa,

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Ainda que o escopo inicial desta pesquisa não previsse uma discussão de raça, o assunto, por vezes, aparece emaranhado à discussão de animalidade e sexualidade. Trato-o nessa sua transversalidade. Mas vale frisar que,

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particularmente, perseguir aquilo que o caso de Voronoff nos informa sobre temáticas como fronteiras entre as categorias conceituais de humano e animal, animalidade e sexualidade, naquele início de século XX. É preciso alertar o leitor sobre o fato de este trabalho não ter pretensões analíticas profundas e conclusivas, mas sim o caráter preliminar e experimental de uma investigação que pretende ser desdobrada em etapas futuras. Neste primeiro momento, a pesquisa privilegiou o levantamento de um amplo arsenal de fontes, e manteve-se aberta – por vezes, de modo incauto – a uma variedade de caminhos analíticos. A vastidão de documentos com a qual esta pesquisa se deparou, somada à riqueza e à diversidade de formato destas fontes, colocou-nos, não raro, em situações adversas, haja vista nossas limitações técnicas. Em especial quanto aos romances que aparecem nesta dissertação, é preciso ponderar que este trabalho não pretende enveredar pelos caminhos da crítica literária e especializada. Nosso interesse, mais modesto, limita-se a oferecer uma apresentação do conteúdo das fontes literárias ao leitor, ou, então, evocar certas referências que permaneciam frescas no imaginário popular brasileiro do início do século XX, uma vez que elas nos ajudam a trabalhar os temas revolvidos pelo caso Voronoff. O capítulo que abre esta dissertação não se debruça sobre as décadas de 1920 e 1930, mas retorna a alguns episódios da história da medicina na Europa, que anteciparam ou fundamentaram o nascimento da ciência da endocrinologia, e os próprios experimentos de Serge Voronoff. Nosso propósito aqui é introduzir o leitor ao contexto atrelado ao início da carreira e da fama deste cientista. Acompanharemos o desenrolar da carreira de Voronoff por meio dos livros deixados pelo próprio autor na década de 1920 e de alguns excertos da imprensa brasileira. O intuito é o de apresentar o modo como, influenciado pela nascente teoria da endocrinologia e por alguns de seus antigos professores, Voronoff torna-se uma das figuras médicas mais célebres de seu tempo, quando anuncia, na primeira década do século XX, ao meio científico e à imprensa, os experimentos que vinha desenvolvendo: enxertos glandulares que prometiam elevar sensivelmente a capacidade produtiva e reprodutiva dos animais da indústria pastoril e pecuária, bem como rejuvenescer os seres humanos, potencializar a fertilidade, a juventude e a vitalidade desses corpos, e produzir “superanimais” e “super-homens”. Ainda neste capítulo, a análise se desloca para o cenário mais amplo daquilo que vinha sendo feito na endocrinologia, paralelamente ao trabalho de Voronoff. Para tanto, atentaremos ainda dentro da repercussão do caso Dr. Voronoff no Brasil, o tema da raça, em si, seria capaz de originar uma pesquisa à parte.

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a uma produção teórica feminista dedicada à história das ciências reprodutivas e à “arqueologia do conceito de gênero” na medicina (Preciado, 2008; Oudshoorn, 1994), que contempla um aspecto do nascimento da endocrinologia que é caro a esta pesquisa. Referimonos ao enorme impacto que suas teorias produziram sobre a medicina científica do século XX, ao afirmar a centralidade do papel das glândulas sexuais na determinação dos sexos dos animais e dos humanos. O texto aborda, finalmente, a forma como a atuação profissional de Serge Voronoff atraiu o interesse de numerosas instituições governamentais e científicas ao redor do mundo. O capítulo se fecha em 1928, ano em que este médico-cirurgião anuncia oficialmente sua tournée pela América do Sul. É neste ensejo transatlântico que Voronoff chega às terras brasileiras, em julho de 1928, para realizar, no Rio de Janeiro e em São Paulo, conferências e demonstrações empíricas das suas cirurgias de enxertia glandular. Este é o tema do segundo capítulo, dedicado a um acompanhamento detalhado da visita do médico franco-russo a estas capitais, através do que foi noticiado pelos jornais da época. O capítulo começa com algumas considerações acerca do panorama da imprensa do período e dos principais veículos utilizados nesta pesquisa para, a partir deles, organizar a sequência noticiosa sobre os eventos públicos que Voronoff mobilizou e participou enquanto esteve Brasil: os pormenores das demonstrações operatórias, conferências, entrevistas e declarações de sua autoria, bem como polêmicas a ele veiculadas e homenagens a ele prestadas por parte da comunidade científica. Depois de detalhar os movimentos de Voronoff nas instituições brasileiras, apresentaremos a visão de alguns médicos sobre as intervenções do franco-russo, que expuseram aos jornais seus argumentos e pontos de vista sobre o caso, através de artigos, declarações e entrevistas. Este capítulo, majoritariamente descritivo, encerra-se com uma breve revisão da produção historiográfica recente sobre o tema do charlatanismo7, uma vez que o episódio da passagem de Serge Voronoff pelo Brasil esteve envolto em tensões e embates a ele relacionados. As conferências e demonstrações cirúrgicas feitas por Voronoff, tanto no Rio quanto em São Paulo, foram quase todas públicas. Deste modo, além da presença de profissionais, jornalistas e estudantes de medicina e veterinária, somaram-se ao público destes eventos uns “curiosos”, homens e mulheres do público leigo, adjetivados pela imprensa como ansiosos, tímidos, desconfiados e maliciosos, que se acotovelavam no espaço concorrido das salas de 7

Veja-se a coletânea Artes e ofícios de curar no Brasil (2003), lançada pelo Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (CECULT) – IFCH/UNICAMP.

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conferência e operação. É ao olhar popular sobre a polêmica figura de Serge Voronoff que o terceiro capítulo se dedica. Para tanto, reúne uma conjunto de narrativas que deixam entrever aspectos do imaginário popular acerca do Dr. Voronoff e das práticas por ele promovidas. O terceiro capítulo focaliza a produção cultural erguida sobre o tema das cirurgias de Voronoff. Abre-se com uma obra literária francesa, cujos reflexos serão pouco a pouco projetados sobre as fontes brasileiras, literárias e audiovisuais, que compõem o objeto central deste capítulo. Mais exatamente, pequenos contos, crônicas, ilustrações, caricaturas e charges, marchinhas de carnaval e sambas, bem como um romance, algumas produções da dramaturgia e do cinema, que discutem as teorias científicas de Voronoff e/ou sua visita ao Brasil. Trata-se de perseguir tais narrativas, em sua vertiginosa profusão, visando apresentar uma segunda leitura sobre o caso de Voronoff, dessa vez, feita sob uma perspectiva leiga e popular. Em tais histórias, que aparecem, basicamente, no registro do humor e da ficção científica, tema recorrente é o das alterações no comportamento sexual e moral daqueles sujeitos que se submetiam à intervenção cirúrgica de Voronoff. Podemos adiantar que, em grande parte das narrativas, o conceito de humano parece, por via da sexualidade, ameaçado pela animalidade. Soma-se à análise destes temas, ainda, o debate racial, que aparece fortemente entrelaçado a tais discussões. O quarto capítulo, mais breve, destina-se a algumas considerações sobre o desfecho da carreira de S. Voronoff. Aborda ainda alguns dos desdobramentos, dir-se-ia, o “mau encontro” entre a técnica cirúrgica desenvolvida por este médico-cirurgião e a ampla ascensão da endocrinologia clínica e das terapêuticas por ela promovidas ao longo das décadas de 1930 e 1940. Isto é, o modo como os estudos dos hormônios fizeram parte da veia da medicina que se dedicou, por décadas, à “correção” das sexualidades desviantes, no período que envolveu a ascensão dos regimes extremos da biopolítica.

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CAPÍTULO I “A Conquista da Vida”

1.

Dr. Frankenstein

Em 1818 foi publicada, pela primeira vez, a obra que se tornaria, mais tarde, um dos maiores clássicos da literatura e espécie de mito fundador da ficção científica: Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de Mary Shelley. A história se passa em um período incerto do século XVIII e narra a tragédia de Victor Frankenstein. O destino de Victor seria traçado pelas ciências naturais, a partir do momento em que o personagem se vê, aos treze anos de idade, fascinado pelas obras milenares dos alquimistas Cornellius Agrippa, Paracelso e Albertus Magnus, que moldariam os anseios do jovem Frankenstein às estranhas e ambiciosas pretensões da alquimia e firmariam nele um “fervoroso desejo de penetrar os segredos da natureza” (Shelley, 2003: 44). Alguns anos mais tarde, instruído sob os métodos da ciência e da química moderna na Universidade de Ingolstadt, na Alemanha, sua obsessão pela pedra filosofal e pelo elixir da vida deu lugar a infatigáveis estudos nas áreas da história natural, da fisiologia, e da anatomia. Na universidade, os assuntos que intrigaram Frankenstein foram, de um lado, a estrutura dos corpos vivos e, de outro, o mistério em torno do “princípio da vida”. O jovem cientista passou a procurar, a partir do primeiro, uma possível origem para o segundo. Ainda que reconhecesse a ousadia de sua investigação, os vertiginosos progressos que vinham sendo feitos nas ciências e na mecânica instigavam-no a se perguntar quantos avanços não poderiam ser feitos se a covardia ou a displicência não atrapalhassem as pesquisas científicas (Shelley, 2003: 58-59; 61). O enigma da vida acabou levando Victor a um estudo minucioso da morte e da desintegração e corrupção naturais do corpo humano. Quando, enfim, assaltado pela espantosa descoberta da causa da criação da vida e tomado de euforia pela possibilidade de animar a matéria morta, Dr. Frankenstein iniciou o projeto da construção de um ser humano, em um sinistro ofício: Quem poderá imaginar os horrores de meus trabalhos secretos, enquanto eu profanava sepulturas frescas ou torturava animais vivos para animar o barro sem vida? [...] Eu recolhia ossos nos ossuários e perturbava, com dedos profanos, os tremendos segredos da estrutura humana [...] A sala de dissecação e o matadouro forneciam a maior parte do meu material (Shelley, 2003: 62).

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Depois de um ano imerso em exaustivos trabalhos, “foi numa sombria noite de novembro” que Frankenstein contemplou a realização de sua obra, depois de finalmente verse apto a “infundir uma centelha de vida” no corpo inerte que jazia aos seus pés (Shelley, 2003: 65). Famigerado é o profundo horror do Dr. Frankenstein ao contemplar o resultado de seu experimento.

2.

Uma centelha de vida

É prudente avisar ao leitor que não pertence ao escopo do presente trabalho o intuito de fazer uma análise literária sobre o romance de M. Shelley. A razão para sua utilização é que Frankenstein mostrou-se uma referência fértil para se pensar o caso de Voronoff, e apresentar sua trajetória. Há uma pertinente produção acadêmica a respeito das figuras e do contexto que teriam inspirado o romance de Mary Shelley. No capítulo “Dr. Frankenstein and the soul”, do livro The Age of Wonder (2008), Richard Holmes aborda o assunto e nos mostra que, por mais fantástico que o Dr. Frankenstein pareça aos olhos contemporâneos, sua figura não seria de todo estranha ao contexto da medicina europeia do século XVIII. Segundo o autor, a personagem de Victor Frankenstein evoca a figura de certos cirurgiões da Europa de fins do século XVIII e início do XIX, adeptos de uma corrente da medicina em voga neste contexto, que ficou conhecida pelo nome de vitalismo. Os defensores de tal corrente procuraram na galvanização, na eletricidade voltaica e no eletromagnetismo algo como um princípio vital, capaz de animar os corpos e infundi-los com vida8. Este debate foi envolto por uma atmosfera bastante peculiar. Na Inglaterra dos primeiros anos do século XIX, por exemplo, o anatomista italiano Giovani Aldini chegou a 8

O Brasil do século XIX não esteve alheio a tais referências: “O emprego generalizado da eletricidade para o tratamento de enfermidades acompanhou as experiências realizadas nos séculos XVIII e XIX na Europa. Os conhecimentos e aparatos tecnológicos desenvolvidos pelos pesquisadores rapidamente ganharam a atenção da medicina, as páginas dos formulários médicos e dos dicionários [brasileiros] de medicina popular” (Bertucci, 2009:209). Tal foi o caso das chapas medicinais, inspirada pelos estudos de Luigi Galvani, que “já eram anunciadas na cidade do Rio de Janeiro antes da metade do século XIX” (Bertucci, 2009: 209). Outro exemplo dado pela historiadora é o dicionário de medicina popular Chernoviz, que aconselhava seus leitores ao emprego do galvanismo em moléstias como a paralisia, entre outras, por conta da “virtude da corrente galvânica, que parece excitar o princípio vital amortecido” (Chernoviz apud Bertucci, 2009: 209). Outras referências a tais teorias aparecem nos romances naturalistas O Mulato e Bom-Criolo, respectivamente, nos seguintes trechos: “[...] esses duros corpos encarquilhados (de sexagenárias do tempo do padre Diogo, que fazia agora uma missa), que envelheceram com Diogo, pareciam reviver por instantes, como cadáveres sujeitos a uma ação galvânica, e, trêmulos, mordiam o beiço roxo e franzido, palpitante de recordações” (Azevedo, s/d: 175). “[...] dilatavam-se-lhes os músculos da face em contrações galvânicas; o sangue, convulsionado, rugia dentro, nas artérias, no coração, no íntimo da sua natureza física, palpitante, caudaloso, numa pletora descomunal!” (Caminha, 1995:45).

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realizar, em praça pública, experimentos bastante excêntricos, cujo intuito era o atrativo desafio de reanimar cadáveres; o barulho da reação pública foi tamanho que estas exibições precisaram ser banidas (Holmes, 2008: 317). R. Holmes descreve a controvérsia que as teorias vitalistas provocaram no meio científico e popular da Inglaterra daquele período. Segundo o autor, os fisiologistas ligados às vertentes teóricas materialistas e mecanicistas – proeminentes na França e na Alemanha – recusaram veementemente as “teorias da vida”, por não admitir no meio científico da medicina uma corrente que se orientasse pela especulação teórica abstrata, pela metafísica ou pela teologia (Holmes, 2008: 313). Fora do contexto acadêmico, o vitalismo seria ainda um dos primeiros grandes debates científicos a despertar o interesse popular na Inglaterra, por especular sobre a natureza da alma humana, da vida e da morte, e ter causado certo horror e fascinação entre a população (Holmes, 2008). Em 1814, o cirurgião calvinista John Abernethy (1764-1831) trouxe à cena acadêmica, mais uma vez, o debate do vitalismo, ao retomar nos “manuscritos caóticos e manchados de sangue” de seu velho professor, John Hunter, aquilo que veio a chamar de “a Teoria da Vida de John Hunter”, para fazer dela o tema de um conjunto de conferências na Escola de Anatomia de Londres naquele ano9 (Holmes, 2008: 308). O escocês John Hunter (1728-1793) foi o fundador da cirurgia experimental e um dos maiores nomes da anatomia e da fisiologia do século XVIII. A reputação deste cientista se apoiava em suas habilidades, “de fato, assustadoras”, como cirurgião, junto de seu vasto conhecimento da anatomia comparada (Holmes, 2008: 308). Entre os manuscritos em questão, constava sua última obra, publicada postumamente: A Treatise on Blood, Inflammation and Gunshot Wounds. Nela, Hunter descarta a explicação mecanicista sobre a fisiologia para defender outra tese, mais holística, baseada em um princípio vital, capaz de animar os corpos, coordenando as funções de cada órgão, e que estaria contido na corrente sanguínea:

[...] a organização pode decorrer das partes vivas, e produzir ação, mas a vida nunca pode emergir, ou depender, da organização. Um órgão é uma conformação peculiar da matéria, para atender a um propósito, cuja operação é mecânica; mas, a mera organização não pode fazer nada, mesmo na mecânica, ela deve ter algo que corresponda a um princípio vivo; nominalmente, algum poder... Se o sangue não fosse o princípio vivo ele seria, em relação ao corpo, uma substância estranha. O sangue não só é vivo em si, mas é o suporte da vida em toda parte do corpo; razão pela qual a

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An Enquiry on the Probability and Rationality of Mr. Hunter‟s Theory of Life (1814).

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mortificação decorre imediatamente quando a circulação é cortada de qualquer parte [tradução livre] (Hunter, 1840: 121)10.

É digno de nota que, em Monstruosities: Body and British Romantism, Paul Younquist (2003) evoque a figura de John Hunter para analisar a personagem do Dr. Frankenstein: Frankenstein fala na própria linguagem de John Hunter: “De onde, eu frequentemente me perguntei, provinha o princípio da vida?” Hunter o encontrou na matéria particular de um organismo e na função coordenada das partes. De acordo com seu próprio testemunho Frankenstein segue esta direção: “Eu...resolvi, daí por diante, aplicar-me mais particularmente a estes ramos da história natural que se ligam à fisiologia”. Ele estuda a “causa e o progresso” do “declínio natural e da corrupção do corpo humano” e prepara uma estrutura corpórea “com todos seus emaranhamentos de fibras, músculos e veias” [tradução livre] (Younquist, 2003: 53) 11.

J. Abernethy, no entanto, acreditava que a “teoria da vida” de John Hunter não estava completa. R. Holmes sintetiza o ponto de vista do cirurgião calvinista: “O sangue, por si só, não era o suficiente para explicar a vitalidade, embora possa carregá-la” (Holmes, 2008: 309). Abernethy cita os trabalhos de outros defensores do vitalismo, que testaram os efeitos da eletricidade em membros animais, para argumentar que o sangue – como o músculo e o cérebro, diferente da pele e das membranas – mostrava-se um condutor ideal para a substância vital, por ele descrita como algo bastante móbil, sutil, capaz de se propagar para o corpo todo (Abernethy, 1814: 58-59). Abernethy defendia que esta substância seria a eletricidade voltaica ou, ao menos, uma força correlata a ela. Entendendo-a como substância externa e adicionada à estrutura evidente do organismo, o calvinista acrescenta, mais tarde, que tal teoria “trouxe evidência científica – se não exatamente prova – para a noção teológica de alma” [grifo meu] (Holmes, 2008: 309).

10

“(…) organization may arise out of living parts, and produce action, but that life can never rise out of, or depend on, organization. An organ is a peculiar conformation of matter, to answer some purpose, the operation of which is mechanical; but, mere organization can do nothing, even in mechanics, it must have something corresponding to a living principle; namely, some power…If blood had not the living principle, it would be, in respect to the body, an extraneous substance. Blood is not only alive itself, but is the support of life in every part of the body; for mortification immediately follows, when the circulation is cut off from any part” (Hunter, 1840: 121). 11 “Frankenstein speaks in the very language of John Hunter: „Where, I often asked myself, did the principle of life proceed?‟ Hunter found it in an organism‟s particulate matter and coordinative function of parts. According to his own testimony Frankenstein follows that lead: „I…determined thenceforth to apply myself more particularly to those branches of natural philosophy which relate to physiology‟. He studies the „cause and progress‟ of „the natural decay and corruption of the human body‟ and prepares a bodily frame „with all its intricacies of fibers, muscles and veins‟” (Younquist, 2003: 53).

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3.

A tecnologia wireless das secreções internas

A carreira de John Hunter foi marcada pelas investigações experimentais que este cirurgião empreendeu, de forma massiva, sobre uma ampla variedade de espécies animais. Dentre elas, praticou, diversas vezes, um transplante de testículos de galo, para o abdômen do próprio espécime ou para o de uma galinha. Abernethy sugere que seu intuito tenha sido provar possível o funcionamento de um órgão fora de seu organismo original, sob a hipótese de que a vida orgânica se manteria em estado dormente por um bom número de horas, podendo sobreviver a um transplante. Hunter, aliás, acreditava que havia logrado fazer o sangue circular pelo órgão transplantado (Abernethy, 1814: 252-253). Mas pouco se pode dizer sobre esses experimentos, cuja própria data é desconhecida, pois eles aparecem reportados de forma extremamente lacônica na obra postmorten de seu autor. Os manuscritos a respeito destes estudos foram destruídos e excluídos dos volumes que organizam a obra de John Hunter12. No entanto, o cientista preservou um destes espécimes experimentais – uma galinha com fragmentos testiculares em seu abdômen – que permanece até hoje no Hunterian Museum13, instituição à qual Hunter se dedicou com afinco, em vida. J. Hunter também foi responsável por inaugurar, na fisiologia, a noção de “caracteres secundários do sexo”, entendendo-os como características extragenitais que diferenciam machos e fêmeas, sem necessidade do exame de seus órgãos sexuais (Marañon, 1930: 6). Hunter acreditava, ainda, que estas características teriam relação com ações simpáticas existentes entre partes remotas do corpo (Abernethy, 1814: 78). No século seguinte, em 1849, o fisiologista e zoólogo alemão Arnold Adolph Berthold (1803-1861) faria um estudo muito similar, dessa vez, com maior impacto. Tratava-se de um experimento com galináceos, que começava com a castração dos animais, seguido do isolamento de suas gônadas (testículos) e do seu implante nas cavidades do corpo de algumas destas aves. O efeito dessa operação, apesar de curto, teria sido significativo: os animais que 12

A. Clarke (1998) nos conta que John Money, o famoso psicólogo e sexologista neozelandês, atribui isso a um recuo de Hunter diante as possibilidades de uma acusação de bruxaria. Afinal, no contexto em que viveu John Hunter, ainda afetado por reminiscências da Inquisição, havia perigo em fazer vir a público um assunto como esse, que unia galinhas, sexualidade e seres “desnaturados” (Money apud Clarke, 1998: 238). 13 Como consta no “Catalogue of the Hunterian Collection in the Museum of the Royal College of Surgeons in London” de 1830. Disponível em https://books.google.com.br/books?id=hxYzAQAAMAAJ&pg=PR1&lpg=PR1&dq=Catalogue+of+the+Hunte rian+Collection+in+the+Museum+of+the+Royal+College+of+Surgeons+in+London&source=bl&ots=qxx75T Sc31&sig=kGmX3Sg89Bpvr1QsEEZXQ_JtQhs&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwiM6YHq5TNAhVIQCYKHbMwCbAQ6AEINDAC#v=onepage&q=Catalogue%20of%20the%20Hunterian%20Colle ction%20in%20the%20Museum%20of%20the%20Royal%20College%20of%20Surgeons%20in%20London& f=false Acesso em 9 de junho de 2016.

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não receberam os implantes tornaram-se “gordos pacifistas”, enquanto aqueles que os receberam tornaram-se mais viris do que nunca, com todos os aspectos físicos e comportamentais da masculinidade ressaltados (Fausto-Sterling, 2000: 149). O experimento, que “transformou capões lânguidos em galos de briga”, veio a se tornar uma das maiores referências para a endocrinologia sexual, um século mais tarde (Preciado, 2008). Na época de Berthold, porém, a conclusão mais impactante foi a de que os implantes não tinham conexão alguma com o sistema nervoso, o que sugeria que o efeito veiculado às gônadas sexuais – além de prover as marcas da masculinidade ao organismo – era transmitido através do sangue (Fausto-Sterling, 2000: 149). Até então, não se tinha notícia de regulações orgânicas não nervosas na fisiologia. Em 1865, Claude Bernard (1813-1878), um dos maiores nomes da fisiologia, registrou a descoberta da bile, substância secretada pelo fígado no trato intestinal. Pouco depois o cientista cunhou o termo “secreções internas”, como conceito da fisiologia, para designar substâncias químicas que atuavam no organismo, sem o intermédio de dutos especiais e, portanto, capazes de, à distância, regular seus órgãos. Em 1889, aos setenta e dois anos de idade, o renomado neurologista e fisiologista francês, Charles E. Brown-Séquard (1817-1894) – sucessor da cadeira de Claude Bernard no Collège de France –, que ficou conhecido como “pai da endocrinologia”, anunciava à Sociedade de Biologia de Paris que havia injetado em si mesmo os extratos de testículos de cobaias animais, que vinha pesquisando. Brown-Séquard dizia ter experimentado resultados espetaculares, como a renovação do vigor, da virilidade e da clarividência mental, e sugeria que estas preparações poderiam trazer juventude eterna aos homens; o caso feminino também era previsto: o fisiologista indicava às senhoras a injeção de um filtrado de ovário de cobaia para tratar diversos distúrbios uterinos e casos de histeria (Oudshoorn, 1998: 779)14. Até o fim de sua vida, Brown-Séquard foi um grande defensor e promotor da opoterapia, ou seja, o emprego de extratos de órgãos animais com fins terapêuticos. No início do século XX, os chamados “transmissores” de caracteres do sexo, as “secreções internas” ou, ainda, o “elixir da juventude”, apareceriam sob o nome de “hormônio” (do latim, eu excito). Este termo foi utilizado pela primeira vez em 1905, em uma conferência proferida por Ernest Starling (1866-1927) – professor de fisiologia da Universidade de Londres – na Inglaterra, para designar os “mensageiros químicos” do

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Este comunicado, que se tornaria um episódio famoso, trouxe enorme embaraço a Brown-Séquard diante da comunidade científica (Clarke, 1998: 242), por mais que sua reputação fosse, até então, impecável e invejável aos olhos desta mesma comunidade.

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organismo. O conceito de hormônio operaria, ao longo da primeira metade do século XX, uma verdadeira revolução na fisiologia, que passaria a ser explicada pela agência de reguladores químicos do organismo, e não mais somente pelos estímulos nervosos, controlados pelo cérebro (Oudshoorn, 1994: 16). Em 1904, o austríaco Eugen Steinach (1861-1944), diretor da Divisão de Fisiologia no Instituto Vienense para Biologia Experimental, iniciou um estudo sobre a ação das secreções internas na determinação dos caracteres sexuais dos animais e, entre 1912 e 1913, repetia o experimento de transplante de gônadas de Berthold, desta vez transplantando testículos e ovários de um sexo ao outro, avaliando seus efeitos sobre a determinação da masculinidade e da feminilidade de suas cobaias (Fausto-Sterling, 2000: 158). Mais tarde, Steinach desenvolveria alguns métodos de “rejuvenescimento” a partir da substância liberada pelas glândulas sexuais15. No mesmo período, Serge Voronoff iniciaria seus estudos na área da endocrinologia, para desenvolver uma técnica de “rejuvenescimento” concorrente aos métodos de Steinach. O encadeamento de episódios experimentais traçado neste tópico foi feito de forma similar, mais ou menos completa que esta, por algumas fontes – jornais, sobretudo – que se preocuparam em apresentar ao leitor os antecessores de Voronoff na história da medicina 16. Aliás, o próprio Voronoff o faz, em sua autobiografia (Barnabà, 2014). Quanto à expressão que dá título a este tópico, ela é proposta por Paul Beatriz Preciado (2008) em Testo Yonqui, quando o autor analisa o surgimento da noção de hormônio na história da ciência. No entanto, a ideia já aparece na própria obra de divulgação científica de Voronoff, de 1920. No prefácio de Life (1920), ao divagar os possíveis avanços da ciência da vida, Voronoff associa, acidental ou intencionalmente, o futuro da biologia às tecnologias científicas das transmissões à distância: “As ciências físicas deram-nos exemplos: o vôo de objetos mais pesados que o ar, a transmissão da palavra falada, a telefonia wireless sem condutor, etc. Será que a biologia, a ciência do fenômeno da vida, oferece-nos possibilidades similares?” [tradução livre] [grifo meu] (Voronoff, 1920: xvii-xviii)17.

15

Seriam eles: injeções de extratos glandulares para ambos os sexos, intervenções cirúrgicas sobre os canais deferentes, para os homens, e sessões de aplicação de raios-x sobre os ovários, para as mulheres. 16 Veja-se Editorial, 21 jul 1928, p. 4; Correio da Manhã, 5 ago 1928, p. 10, Folha Médica, 15 mar 1928, p. 95 e Moura, 1931: 36-40. 17 “The physical sciences have given us examples: the flight of objects heavier than air, the transmission of the spoken word, wireless telephony without a conductor, etc. Does biology, the science of the phenomena of life, offer us similar possibilities?” [grifo meu] (Voronoff, 1920: xvii-xviii).

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4.

Dr. Voronoff e o “fluido vital”

Aos olhos da população leiga, a novidade da ciência dos hormônios acabou se personificando na figura de alguns médicos, que se basearam nos fundamentos da endocrinologia para desenvolver pretensas terapias rejuvenescedoras, que lhes renderiam um grande destaque na imprensa mundial durante as décadas de 1920 e 1930. Este foi o caso de Serge Voronoff e Eugen Steinach. É sobre a figura do primeiro que esta dissertação se apoia. Os próximos tópicos se fundamentam nas obras deixadas pelo próprio Serge Voronoff (1920; 1928; 2014 [1951]18), com o intuito de apresentar seu projeto, tal como ele o fazia, e elencar os principais movimentos de sua trajetória dentro da cirurgia experimental, até o ano de 1928. A carreira de S. Voronoff começara na França, onde o jovem russo – de família polonesa e judaica – iniciava seus estudos em medicina, no Collège de France, em 1887. Depois de formado e naturalizado cidadão francês19, Voronoff se estabeleceu em Paris, dedicando-se à ginecologia e à cirurgia. Em 1898, Voronoff mudou-se para o Egito, a convite do Khediva do Cairo, onde permaneceu por pouco mais de dez anos, atuando como cirurgião do palácio e diretor do hospital da cidade. Neste período de clínica, teve a oportunidade de observar de perto a excepcional condição morfológica dos eunucos, nos haréns do Cairo. O cirurgião (Voronoff, 1920) conta ter observado que, junto à esterilidade e às formas afeminadas de seus corpos, os eunucos tinham uma vida muito curta e pareciam muito mais velhos do que realmente eram. Algo lhes causava a decadência da atividade celular e, com ela, um aspecto senil e a morte precoce. No tópico anterior falamos de Brown-Séquard. Em fins do século XIX ele havia proposto uma relação entre juventude, virilidade e a atividade hormonal. Este fisiologista foi professor de Voronoff no Collège de France. Na esteira de suas teorias, a hipótese de Voronoff a respeito da condição dos eunucos era a de que estes homens tinham seu desenvolvimento endócrino seriamente debilitado por terem sido castrados na infância, o que os impactava tanto no desenvolvimento e na manifestação fisiológica de sua masculinidade quanto no encurtamento de sua expectativa de vida.

18

Trata-se da autobiografia de Voronoff, publicada pela primeira vez em 2014, por Enzo Barbanà, que a traduziu integralmente para a língua italiana. 19 Doravante, franco-russo, como Voronoff será referido, eventualmente, ao longo deste texto, além de médicocirurgião.

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Voronoff passou a dedicar-se ao estudo das glândulas, sobretudo as sexuais, às quais se refere, mais tarde, como a fonte do misterioso “fluido vital”, ou mesmo “a faísca de ignição ao motor humano”, capaz de reger a vitalidade dos corpos e organizar a “anarquia” das células na “máquina humana” (Voronoff, 1928: 38). Dito de outro modo, defendia que as glândulas sexuais eram responsáveis pela produção de um fluido – o hormônio sexual – constantemente secretado na corrente sanguínea, que por sua vez o conduzia para todos os tecidos, provendo o estímulo e a energia necessários para o funcionamento do organismo (Voronoff, 1928: 44). Segundo Voronoff, essas glândulas, tão minúsculas em si mesmas, escondidas pela natureza nas profundezas dos tecidos, permaneceram desconhecidas por séculos, até que a investigação endocrinológica finalmente compreendesse nelas um dos mecanismos chave do corpo humano (Voronoff, 1928: 39). Na ousadia de tentar apreender cientificamente algo sobre as causas da vida e da morte, a hipótese de Voronoff flertava com possibilidades extraordinárias: Será que poderíamos alcançá-lo [o desconhecido em torno das causas da morte] e penetrar o mistério do nosso organismo, e conhecer a causa primordial da velhice e da morte? A solução desse problema, sozinha, por desvelar o segredo da Natureza, pode nos guiar em direção ao possível remédio contra a condição senil [...] Por mais difícil que seja, esse problema não deve ser contemplado como algo acima e além dos limites da pesquisa científica possível [tradução livre] (Voronoff, 1928: 17-18) 20.

O entusiasmo de Serge Voronoff é similar ao do Dr. Frankenstein: [...] eu fui perseguido pela idéia de que talvez fosse possível ganhar controle sobre essa maravilhosa força potencial, e utilizá-la para as nossas necessidades quando, conforme nós avançamos na idade, sua fonte natural começa a mostrar sinais de exaustão [...] seria possível, mesmo quando nós tivéssemos restaurado a produção desse precioso fluido, infundir uma vitalidade crescente dentro dos órgãos enfraquecidos e tecidos exaustos de um corpo desgastado pela idade? [...] Nós não vencemos a tremenda lei da gravidade, que nos condenava desde o nascimento da humanidade, a rastejar na superfície da terra? Nós desejamos estar no ar, e aeroplanos agora nos levam a alturas que nenhum pássaro pode atingir. [...] Até os últimos anos essa luta [entre homem e Natureza] esteve concentrada na conquista das forças mecânicas e inorgânicas da Natureza. Nós agora temos ambições maiores; nós aspiramos trazer a Vida em si sob o domínio da nossa vontade [tradução livre] (Voronoff, 1928: 63-64) 21.

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“Could we reach it [the unknown towards the causes of death] and penetrate the mystery of our organism, and get to know the primordial cause of old age and death? The solution alone of this problem, by unveiling Nature‟s secret, might guide us towards the possible remedy against the senile condition (…) Difficult as it is, this problem must not be regarded as above and beyond the limits of possible scientific research” (Voronoff, 1928: 17-18). 21 “[...] I was haunted by the idea that it might be possible to gain control over this wonderful potential force, and utilize it for our needs when, as we advance in age, its natural source begins to show signs of exhaustion. […] would it be possible, even when we have restarted the production of this precious fluid, to instill increased vitality into the weakened organs and exhausted tissues of a body worn out by age? […] Have we not

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Restava encontrar um meio de testar tal teoria.

5.

O método da enxertia glandular de Voronoff

Em 1910, depois de regressar do Egito, Voronoff tornou-se assistente do famoso cirurgião Alexis Carrel, no Instituto Rockefeller, em Nova Iorque. A. Carrel (1873-1944) foi um cientista que ganhou notoriedade, no campo da medicina, por seu pioneirismo no desenvolvimento de teorias e experimentações com o transplante de tecidos e órgãos, que lhe renderiam o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1912. Ao longo desta década, Serge Voronoff dedicou-se à investigação da função das glândulas sexuais na vitalidade do organismo. O médico-cirurgião reconhecia a originalidade da teoria daquele velho professor, Brown-Séquard, sobre o assunto. Mas não via grande eficácia no seu método opoterápico de injeções de extratos glandulares, pois ele demandava um fornecimento constante de injeções diárias e frescas, cujo preparo – feito através da trituração das glândulas sexuais de animais – poderia danificar as propriedades da substância hormonal, ou até mesmo torná-la tóxica (Voronoff, 1920: 78). Na opinião de Voronoff, era preciso encontrar um meio mais orgânico de regular a produção hormonal. O contato com a técnica de Alexis Carrel para os transplantes e enxertos de órgãos levou o franco-russo à ideia de operar um enxerto glandular, pois, mais interessante do que obter os hormônios por meio de inoculações, seria revitalizar um organismo, inserindo nele a própria fonte dos hormônios sexuais (Voronoff, 1920: 65). Entretanto, o enxerto de uma glândula estranha a um organismo era uma possibilidade de difícil execução; um bom número de médicos e cirurgiões já o haviam tentado em outras ocasiões, mas a história da medicina, até então, não registrava enxertos glandulares bem sucedidos, com efeitos duradouros22. Voronoff atribuía esta falha ao fato dos órgãos serem simplesmente transplantados de um organismo a outro, sem que fosse estabelecida qualquer ligação com a corrente sanguínea23. Desse modo, a glândula enxertada acabava sendo reabsorvida pelo organismo, vanquished the tremendous law of gravitation, which has condemned us, since the birth of humanity, to crawl along on the surface of the earth? We willed that we would rise into the air, and aeroplanes now carry us to heights that no bird can attain. (…) Up to recent years this struggle [of men and Nature] was concentrated on the conquest of mechanical and inorganic forces of Nature. We have greater ambitions; we now aspire to bring 21 Life itself under the domination of our will ” (Voronoff, 1928: 63-64). 22 Todos os casos referidos no item 3, que envolveram enxertos deste tipo, registram efeitos bastante efêmeros. 23 Hunter, entretanto, acreditava tê-lo conseguido.

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inevitavelmente, dentro de pouco tempo. A única forma de fazer com que um órgão fosse integrado ao novo organismo seria através de uma ligadura de seus vasos sanguíneos com os do organismo receptor, como previsto por A. Carrel, para que a continuidade vascular entre um e outro garantisse a nutrição sanguínea do enxerto. No entanto, as glândulas apresentavam a desvantagem de ter veias e artérias de calibre excessivamente diminuto para que pudessem ser manipuladas e ligadas a outros vasos (Voronoff, 1928: 84). Buscando um meio de resolver este problema, Voronoff passa a dedicar-se ao estudo das inflamações, partindo do pressuposto de que toda inflamação é acompanhada pela formação de novos vasos sanguíneos em número considerável. Como narra o médicocirurgião em suas obras, ocorreu-lhe a ideia de provocar, durante o enxerto glandular, uma inflamação intencional na região afetada, feita de forma controlada e asséptica. Esta era a descoberta da qual Voronoff se vangloriava: dizia ter desenvolvido, assim, uma técnica apurada para realizar um enxerto glandular que fosse capaz de aderir plenamente ao novo organismo. Inspirada no modelo mais simples de enxertia, o de plantas, a técnica de Voronoff consistia em fazer pequenos arranhões na superfície da glândula que seria enxertada e/ou no tecido que a receberia, de modo a produzir uma inflamação, capaz de fazer nascerem ali novas redes vasculares, permitindo que o sangue penetrasse na glândula ou no fragmento glandular transplantado, nutrindo-o, e tornando sua vida orgânica possível (Voronoff, 1928: 79). É de se notar a forma como a teoria de Voronoff parece mesclar as teses vitalistas de John Hunter e John Abernethy, por falar em um princípio vital contido em uma substância igualmente invisível, móvel e sutil, propagada pelo organismo todo, através do sangue.

6.

“Superanimais”

A tese de Voronoff para a enxertia glandular começou a ser testada em 1912, na forma de experimentos sobre cobaias animais. Naquele ano, o médico-cirurgião fez a primeira comunicação a este respeito, ao Congresso Francês de Cirurgia, em Paris. Voronoff apresentava um experimento inédito: removera os ovários de uma ovelha, para substituí-los pelos de outra ovelha (irmã). No ano seguinte, anunciava ao Congresso Internacional de Cirurgia, em Londres, os resultados completos de sua experiência do ano anterior. Dizia que os órgãos foram não só bem recebidos pelo organismo do animal donatário como preservaram

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sua função reprodutiva, uma vez que a ovelha enxertada tinha dado à luz24 (O Pharol, 8 out 1913, p. 1). Nos próximos anos, em laboratório no Collège de France, que em breve ganharia o nome de Estação de Cirurgia Experimental - Fundação Voronoff 25, o franco-russo deu início a uma série de experimentos – que chegaram ao número de cento e vinte, em 1919 – com enxertos testiculares em carneiros e bodes26: em machos e fêmeas27 férteis e castrados e em machos muito velhos, debilitados e desprovidos de faculdade reprodutiva (Voronoff, 1920: 69). Em 1919, Voronoff apresentou ao Congresso Francês de Cirurgia os “impressionantes resultados” alcançados nestes experimentos. Sua comunicação, intitulada “Enxertos testiculares”

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, narra que os animais em condição senil, depois de receberem os enxertos do

material glandular de animais mais jovens, curavam-se das mazelas da velhice, como incontinência urinária, tremor nos membros e comportamento depressivo, para recuperarem seus chifres, o porte e o vigor que tinham na juventude, bem como seu comportamento viril e combativo, o interesse pelo sexo oposto e a fertilidade (Voronoff, 1920: 74). Na ocasião dessa comunicação, Voronoff exibiu uma série de fotografias desses animais, antes e depois dos enxertos, com o intuito de ilustrar um notável rejuvenescimento. No início da próxima década, Voronoff avançou em outras hipóteses. Ao que este médico nos narra em The Conquest of Life (1928), a observação sobre os animais rejuvenescidos conduziu-lhe à ideia de aplicar seu método em animais particularmente jovens: [...] Não seria possível criar uma raça de super-carneiros, e super-touros, ao forçar a natureza animal do mesmo modo que os agricultores conseguiram forçar a natureza vegetal a produzir, via enxerto, frutas melhores que as ordinárias? [tradução livre] (Voronoff, 1928: 105)29.

Na proposição de Voronoff, a criação animal, até então, tinha um único meio para a melhoria de seus espécimes: a seleção artificial. Mas, muito melhor que a seleção, seria o enxerto: “[...] o enxerto deve, ao contrário, intensificar as melhores qualidades e resultar na 24

Ainda que o carneirinho tenha nascido morto. Tratava-se de um laboratório particular, conseguido mediante a influência da fortuna de sua segunda esposa, grande colaboradora da Estação Experimental do Collège de France, cujo pai, juntamente com John Rockefeller, fundou a gigante petrolífera Standard Oil, futura Esso (Barnabà, 2014:57). 26 Estas espécies foram escolhidas por apresentarem mudanças significativas na aparência, de acordo com variações na fertilidade ou esterilidade, juventude ou velhice dos animais. 27 Na época, Voronoff ainda não tinha obtido sucesso com o enxerto ovariano. As fêmeas citadas nesse estudo receberam enxertos testiculares. Voltaremos a esse assunto mais adiante, neste capítulo. 28 Voronoff apresenta o texto dessa comunicação, na íntegra, no livro Vivre (1920). 29 “[...] Would it not thus be possible to create a race of super-rams, and of super-bulls, by forcing animal nature in the same way as nurserymen have succeded in forcing vegetable nature to produce, by grafting, finer fruits than the ordinary ones?” (Voronoff, 1928: 105). 25

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criação de raças animais que seriam muito superiores ao melhor que a seleção pudesse dar” [tradução livre] (Voronoff, 1928: 105)30. Assim, Voronoff testou novamente os enxertos testiculares, desta vez, aplicando-os em animais que ainda não tinham chegado à idade adulta. Segundo o próprio cientista, os resultados foram, mais uma vez, impressionantes. Como sintetiza A. Guimarãis, em tese de doutorado de 1929, o enxerto de Voronoff antecipava-lhes a puberdade e tinha impacto significativo sobre o aumento do tamanho, do peso, da robusteza das formas e do crescimento do pelo destes animais (Guimarãis, 1929: 112 e 114). Não surpreende o fato de a indústria pecuária ter acompanhado os trabalhos do cirurgião franco-russo com vivo interesse. Em 1924, o Dr. Voronoff esteve na Argélia, colônia francesa, para testar, em rebanhos inteiros, o efeito de seus enxertos glandulares para a indústria pastoril. Através do aval de M. Trouette, um dos docentes da Escola de Agricultura francesa e entusiasta das teorias de Voronoff, o franco-russo conseguiu que o Departamento de Agricultura da França pusesse a seu dispor um rancho argelino com três mil ovelhas, para experimentos com a enxertia glandular (Diário Nacional, 25 jul 1928, p. 1). O método de Voronoff foi, então, instruído para os veterinários do serviço sanitário do governo argelino, sob supervisão de M. Trouette. Voronoff afirma que oferecia, assim, uma oportunidade para que eles próprios pudessem acompanhar o efeito destas intervenções (Voronoff, 1920: 110). Dois anos mais tarde, os resultados seriam apurados por um comitê científico internacional, que os avaliariam positivamente. Segue uma fotografia do grupo:

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“(…) grafting must on the contrary, intensify these best qualities and result in the creation of races of animals that would be far superior to the best that selection could give” (Voronoff, 1928: 105).

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Figura 1. O “comitê científico internacional”. Imagem extraída do livro The Conquest of Life (Voronoff, 1928: 124). Acompanha a legenda: “Delegados dos governos da Inglaterra, Itália, Espanha, Tchecoslováquia, Argentina e França, que em 4 de novembro de 1927, testemunharam os notáveis resultados obtidos pela enxertia segundo o método do Dr. Voronoff”. Nota-se, na fotografia, Voronoff ao centro, de frente, destacado dos demais em sua estatura avantajada.

Entre a primeira e a segunda década do século XX, Voronoff ia se tornando uma figura conhecida não só no meio científico mas, também, entre a população leiga. Os jornais nacionais – assim como os internacionais – acompanhavam os movimentos do Dr. Voronoff, cujo nome ia se tornando cada vez mais famoso entre os brasileiros. Em 1928, durante o período da visita de Voronoff ao Brasil, as notícias sobre a enxertia dos carneiros são revisitadas por alguns jornais. O Diário Nacional lembra os resultados dos experimentos nos rebanhos da Argélia: [...] O processo Voronoff está perfeitamente constatado. Supponhamos um carneiro de oito mezes, cuja capacidade de reprodução se verificará, sómente daqui a alguns annos. O dono necessita ultilizal-o immediatamente, como carneiro pastor, visto se achar velho e inutilizado o que possue. Além disso, esse carneiro é de boa raça, sendo portanto de todo proveito um avanço, sobre a natureza. Voronoff affirma a possibilidade de uma transplantação nesses animaes, e em varias experiencias, pôde affirmal-a, com segurança. Tomou carneiros diversos de oito mezes e enxertou-lhes testículos de carneiros de 3 annos. O resultado foi assombroso. Os carneiros augmentaram, em 10 kilos, no peso, e a lã se apresentou bem mais espessa, com uma vantagem de 750 grammas [...] com uma antecedencia de tres annos [...] Como vê os resultados do processo Voronoff, applicado á industria pastoril, são

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simplesmente surpreendentes e palpaveis. O enxerto glandular é o futuro da industria pastoril [...] (Diário Nacional, 25 jul 1928, pp. 1 e 8).

Mas, ainda em 1924, depois de poder se atualizar quanto aos experimentos de Voronoff na Argélia, o público leitor era informado sobre outra novidade trazida pelo médicocirurgião: na continuidade do seu projeto do “supercarneiro”, Voronoff também estava testando seu método sobre os rebentos dos animais outrora enxertados. A hipótese era a de que as novas gerações seriam mais robustas e ainda mais rentáveis à indústria pastoril, ou seja, a aposta agora era feita sobre a hereditariedade das qualidades adquiridas e o desenvolvimento de uma nova raça. O jornal carioca A Noite, na véspera da chegada do franco-russo ao Rio de Janeiro, comenta com entusiasmo o dito sucesso do projeto de Voronoff para uma “super-raça” de carneiros, e impressiona o leitor com números e projeções, depois de exaltar a oficialidade desses dados, citando os nomes de quase todos os representantes do tal comitê científico internacional (Figura 1) que os estimaram: [...] um carneiro enxertado na edade de 8 mezes, quando elle chega á edade adulta, isto é, 2 annos, elle ganha cerca de dez quilos de carne e 750 grammas de lã a mais do que o outro carneiro não enxertado. Os filhos desses animaes já nascem pesando mais 6 a 7 kilos do que os testemunhas e cerca de 450 grammas de lã a mais e como cada carneiro póde procrear, por anno, 50 filhos, vê-se a extensão formidavel e o alcance pratico que o enxerto glandular representa para a fortuna publica ou particular de quem seguir esse processo de aperfeiçoamento ou selecção. Nestas condições para cada grupo de cem carneiros enxertados haverá uma descendencia de 5.000 filhos e como cada um delles ganha 7 kilos de peso teremos, annualmente, um acréscimo de 36 mil kilos de carne a mais nesse grupo animal, e 2.500 kilos de lã! (A Noite, 13 jul. 1928, p. 1).

Vislumbrava-se, enfim, uma revolução na produção ovina e bovina. Os animais mais velhos voltariam produzir e a reproduzir como jovens, e os animais mais jovens receberiam um estimulante geral que aceleraria o desenvolvimento do organismo, beneficiado desde cedo pelas secreções internas (Hierarchia, out 1931, pp. 187-189). Acrescia-se, ainda, a dita superioridade física dos filhos que esses animais poderiam gerar. Como sintetiza o médico e autor Hector Ghilini: “A par de revitalização, „supervitalização‟” (Hector Ghilini. “O segredo do dr. Voronoff”. O Paiz, 5 nov 1928, p. 1). Carneiros e bodes não foram os únicos animais submetidos às intervenções do Dr. Voronoff. Ele operou também uma boa quantidade de touros e cavalos 31. “Don Zuniga” foi um dos animais que teve seu caso divulgado pelos jornais; tratava-se de um famoso cavalo de corrida, aposentado pela idade avançada, que teria voltado aos hipódromos de Paris, depois de 31

Note-se que os animais utilizados eram referências de virilidade no imaginário popular.

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“voronoffizado”, e reconquistado seu título de campeão (Diário Nacional, 13 dez 1928, p. 9; A Reforma, 26 mar 1933, p. 4).

7.

A enxertia glandular em seres humanos Se os “superanimais” contribuíram significativamente para levar o nome de Voronoff

à imprensa nacional e internacional, foi a aplicação de seu método sobre os seres humanos que fizeram com que ele se tornasse uma das celebridades da década de 1920. Desde o início de seus experimentos, o objetivo do franco-russo extrapolava a aplicação do enxerto para a melhoria das raças animais, pois sua real pretensão era outra: a extensão da vida humana ao seu limite máximo. Em seus livros voltados à vulgarização de seu método (1920; 1928) Voronoff defende a ideia de que a espécie humana vive uma vida bastante curta em relação às outras espécies animais. Explica, ao revisar o assunto em uma conferência proferida no Brasil: os animais, de modo geral, vivem, em média, sete vezes o período que levam para se formar como adultos. De acordo com essa lógica, o ser humano teria potencial para viver até os cento e quarenta anos, mas a espécie humana foge à regra, morrendo antes de chegar à metade dessa previsão (Correio Paulistano, 24 jul 1928, pp. 7 e 8). Talvez a substituição de uma “peça desgastada” por uma “peça nova”, na “máquina viva” do corpo humano, pudesse reverter esse quadro, ou seja, talvez a substituição de uma glândula envelhecida por uma glândula jovem pudesse prolongar a vida por alguns anos (Voronoff, 1928: 72). Assim defendia Voronoff em sua metáfora a um só tempo fordista e cartesiana. No entanto, os cento e quarenta anos ainda eram uma fantasia distante, mesmo dentro da proposta do próprio Voronoff, pois as glândulas enxertadas não viviam mais do que cinco anos. A solução provisória por ele sugerida era repetir a operação nos mesmos pacientes, quando cessassem os efeitos do primeiro enxerto, como foi o caso de alguns poucos sujeitos que se submeteram a um segundo ou mesmo um terceiro enxerto (Diário da Noite, 18 jul 1928, p. 8). O intuito inicial de Voronoff era testar o rejuvenescimento de seres humanos a partir de glândulas provenientes de indivíduos da mesma espécie. No entanto, o número de pessoas dispostas a doar suas próprias glândulas era extremamente escasso. Ainda que, em ocasiões muito excepcionais, tenham se voluntariado alguns doadores, a matéria-prima para o enxerto glandular em seres humanos mostrava-se praticamente inacessível.

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Em seus livros acima referidos (1920; 1928), Voronoff lamenta a proibição que vigorava sobre a utilização dos órgãos de seres humanos saudáveis mortos em acidentes e a forma como a lei francesa, com isso, atravancava o avanço científico. O médico-cirurgião cogitou solicitar autorização para utilizar as glândulas de prisioneiros condenados à morte (Voronoff, 1920: 86), no entanto, conta-nos que a ideia de receber o órgão de um criminoso gerava grande repulsa entre seus clientes (Voronoff, 1928: 129). Foi então que Voronoff resolveu recorrer às glândulas dos nossos “irmãos evolutivos”: os símios e antropoides. Além de suas afinidades orgânicas com a espécie humana, os macacos apresentavam a vantagem de poderem ser utilizados “com menos escrúpulos” (Voronoff, 1920: 87). A compatibilidade sanguínea e o porte estrutural eram os principais requisitos para se pensar uma operação deste tipo entre duas espécies distintas, e os macacos eram os animais que melhor atendiam a ambos. Nas palavras de Voronoff: E‟ preciso ter em vista que a glandula enxertada no homem leve consigo toda a sua trama histologica, as suas rêdes vasculares, de callibre e elasticidade peculiares á sua especie. E‟ nesta trama vascular, nessas arterias e veias, visiveis a capillares, que tem de circular o sangue humano, d‟onde a exigencia de uma estreita analogia entre a especie escolhida para doadora e o homem (O Jornal, 19 jul 1928, p. 3).

Voronoff realizou a primeira operação de enxertia glandular em um ser humano em 1913, mas a intervenção não teve intuito de rejuvenescimento. Foi feita em um garoto acometido pelo que, na época, se conhecia por cretinismo, condição consequente a uma deficiência da glândula tireoide, que lhe comprometia o desenvolvimento físico e mental. O enxerto foi feito com um fragmento de glândula simiesca. O resultado foi atestado três anos mais tarde, quando o pai do garoto em questão relatou, por carta, que o filho havia revertido progressivamente seu quadro e normalizado completamente seu desenvolvimento físico e intelectual para aquilo que era esperado de sua idade. Em 1917, soube-se que o garoto estava servindo na guerra (Voronoff, 1928: 136). Em 1918, o franco-russo operou outro rapazinho acometido pelo mesmo quadro. Dessa vez, utilizou uma glândula doada pela mãe do paciente. No entanto, segundo Voronoff, o resultado, comparado ao procedimento feito com a glândula de macaco, deixou a desejar. Ao proceder com seus experimentos, nos anos seguintes o médico-cirurgião pôde observar que, de fato, os enxertos feitos com material simiesco produziam efeitos mais eficazes do que aqueles feitos com glândulas humanas. Segundo o Dr. Voronoff, tal vantagem poderia ser o resultado de uma superioridade dos animais em relação aos humanos: aquela relativa à

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qualidade dos órgãos animais, que dispunham de uma constituição física mais robusta, menos afligida por males desenvolvidos pela vida em civilização (Voronoff, 1920: 109). No ano seguinte, Voronoff conseguiu pôr em prática, pela primeira vez, uma operação de “rejuvenescimento” humano, a partir do enxerto da glândula sexual de um macaco. O candidato à operação era um senhor que se queixava de fraqueza, perda de memória, sobrepeso, fadiga a qualquer esforço, tensão arterial alta e dificuldades respiratórias. Ao que nos conta Voronoff, depois de enxertado, este senhor lhe relatou, também por carta, as “maravilhas” que o enxerto provocara em seu organismo (Voronoff, 1928: 156-158). Arthur Liandert, como se chamava o homem, alegava ter experimentado um verdadeiro revigoramento físico e mental, depois de “voronoffizado”. O cliente do franco-russo destaca a recuperação da memória e da “boa forma”, mediante a qual pôde voltar à sua rotina de trabalho, que já havia abandonado há alguns anos, e sustenta que sentia a força, a energia e o bem-estar energia dos trinta anos. Nos anos subsequentes, reportou que o rejuvenescimento teria se intensificado. Voronoff conta-nos, ainda, que este senhor, depois de viúvo, casou-se outra vez (Voronoff, 1928: 158). Voronoff deu início, assim, a uma longa sequência de operações cirúrgicas com o enxerto de glândulas de macaco em seres humanos. Não obstante a larga promoção que o médico-cirurgião fazia das próprias operações nessa época, a aplicação de seu método para o rejuvenescimento de seres humanos começava a encontrar reações negativas no meio médicocientífico. Na Faculdade de Medicina da França, em outubro de 1922, Voronoff faria uma comunicação para apresentar os resultados dos seus últimos experimentos. O tema era o rejuvenescimento de seres humanos. Poucos instantes depois de tomar a palavra, Voronoff se referia a uma nota que havia saído na imprensa estadunidense sobre suas investigações recentes, quando foi interrompido pelo professor Hartmaan, que presidia a sessão, proibido de prosseguir sua comunicação. A explicação dada a esse gesto de censura foi que o regulamento do evento não poderia permitir a apresentação de um trabalho que não fosse inédito, e se o de Voronoff havia sido antecipado pela imprensa, dever-se-ia suspender a comunicação. Tendo todas as suas objeções recusadas, Voronoff retirou-se do local, seguido de um bom número de colegas. O médico Hector Ghilini, grande amigo e espécie de biógrafo de Voronoff, interpreta o ocorrido como expressão de um boicote a Voronoff, que vinha acontecendo em parte da

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ciência oficial francesa32: “Era uma emboscada (...) a sciencia official queria mesmo um escandalo” (“O segredo do Doutor Voronoff”. Hector Ghilini. O Paiz, 24 out 1926, p. 4). No dia seguinte, o franco-russo exonerava-se da Associação Francesa de Cirurgia, organizadora do Congresso, da qual era membro desde os quinze anos de idade. O cientista faria sua apresentação, dois dias depois, no Laboratório de Fisiologia Experimental do Collège de France, perante um enorme público (“O segredo do Doutor Voronoff”. Hector Ghilini. O Paiz, 24 out 1926, p. 4). Apesar da recepção negativa de muitos setores médicos e acadêmicos, Voronoff prosseguiu com seus trabalhos. Na década de 1920, sobretudo, ele mesmo promovia seu método em conferências, publicações e entrevistas à imprensa internacional. No Brasil, os enxertos glandulares ficaram conhecidos como cirurgias de “voronoffização”. Até 1924, Voronoff ainda não oferecia seus serviços de rejuvenescimento às mulheres, pois atestava que o enxerto ovariano, por si, não suscitava na mulher efeito proporcional ao que o enxerto testicular provocava no homem. Para o caso feminino, foi só em 1924 que Voronoff encontrou uma solução, com desenvolvimento de uma técnica específica, mais complexa, que envolvia o enxerto combinado das glândulas sexual, tireoide e hipofisária (Correio Paulistano, 19 jul 1928, p. 9). Neste mesmo ano, Voronoff operou uma senhora brasileira, de quarenta e oito anos de idade, caso que aparece reportado em seus livros (1920; 1928) e relembrado pela imprensa brasileira (Correio da Manhã, 15 jul 1928, p. 6; Diário Nacional, 21 jul 1928, pp. 1 e 8). Como apontado pelo próprio Voronoff, este caso, aliás, mais se parece com uma anedota: depois de ter sido abandonada pelo marido, que passara a considerá-la “velha demais”, esta senhora “embarcou no primeiro vapor à Paris” para se consultar com Voronoff. Depois da operação, com o passar dos meses, a cliente do Dr. Voronoff teria emagrecido dezesseis quilogramas e rejuvenescido significativamente. Dois anos mais tarde, o médico-cirurgião afirma que ela passara a aparentar trinta e cinco anos de idade e, quando ele lhe pergunta se havia encontrado felicidade com o marido, ela responde: “não, não retornei ao meu marido. Ele não merecia!” (Voronoff, 1928: 188). Em meados da década de 1920, Voronoff já tinha uma fama consolidada no Brasil. Alguns jornais promoviam seus enxertos glandulares como verdadeiros milagres que fariam o ser humano viver cento e quarenta, ou mesmo duzentos anos (O Pharol, 7 nov 1923, p. 1; O Paiz, 4 jul 1924, p. 8). 32

Ao menos assim o expressa na obra O segredo do dr. Voronoff, que foi publicada pelo jornal O Paiz na forma de folhetim, em 1926.

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8.

Um estoque de glândulas e gônadas

Em 1925, somando-se as cirurgias praticadas por Voronoff e por seus colegas, em diversas partes do mundo, já haviam sido praticados mais de trezentos enxertos glandulares em seres humanos (Voz do Chauffer, 14 set 1925, p. 7). Até 1928, segundo Voronoff, esse total teria aumentado exponecialmente, ultrapassando o número de mil e trezentos. O fornecimento de macacos para tantas operações não era algo simples. Os macacos utilizados por Voronoff eram animais caríssimos, provenientes do continente africano. No entanto, na qualidade de milionário, Voronoff não encontrou, nessa questão monetária, grande impedimento. Problema maior era a o limite da população dos cinocéfalos33, que corria risco de entrar em extinção enquanto espécie, se os enxertos continuassem nesse ritmo. Em 1927, Voronoff tornou-se proprietário de um suntuoso palácio – o Château Grimaldi – localizado na Riviera francesa, a Côte d‟Azur, mais precisamente entre a cidade de Menton e a fronteira franco-italiana. A propriedade milionária ficava no alto de um penhasco, com vista para o Mar Mediterrâneo. Mantinha-se nela a torre do antigo castelo sarraceno da família Grimaldi, cuja construção data do século XI. No fim do século XIX, fora construído ali um palácio de granito maciço. Uma vez proprietário do Château, sabe-se que Voronoff lhe fez algumas adaptações, para consolidar ali um anexo de seu laboratório no Collège de France34, que incluía a construção de um “macacário”. Ao que indica um documento oficial levantado pelo biógrafo de Voronoff, Enzo Barnabà, o “laboratório” era um complexo que contava com uma biblioteca, um gabinete, três laboratórios, uma sala operatória, uma maternidade e um grande cativeiro para os seus macacos35. Desse modo, Voronoff poderia iniciar uma “fazenda de criação de macacos”, dispondo de seu próprio estoque de glândulas. Nas palavras do médicocirurgião: “[as fazendas de macaco constituiriam] uma grande fábrica designada a suprir peças-reserva para a máquina humana” (Voronoff, 1928: 143).

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Gênero de grandes macacos africanos, elegido por Voronoff como gênero simiesco ideal para atender às exigências e expectativas de suas cirurgias. 34 Como diria o próprio Voronoff, naquilo que parece ser o único registro remanescente de uma aparição deste médico-cirurgião em vídeo. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=MKdjOQ2E3q8 Acesso em 3 de junho de 2016. 35 No último andar da torre medieval, Voronoff fez um escritório. O manuscrito autobiográfico de Voronoff, utilizado como uma das fontes deste trabalho, chegou às mãos de Enzo Barnabà em 2005, quando encontrado pela primeira vez, em uma das prateleiras deste escritório, por uma funcionária da equipe de restauração da torre. O autor traduziu o texto para o italiano e publicou-o em livro no ano de 2014.

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Interessa que nos afastemos, por alguns instantes, da trajetória de Voronoff, para atentar ao que vinha se passando, naquele mesmo período, na área de pesquisa da ciência dos hormônios, na Europa de modo geral e nos Estados Unidos. À medida que a pesquisa no campo da endocrinologia tornava-se mais complexa e intensa, a demanda pelos hormônios – até então, conseguidos exclusivamente a partir de ovários e testículos – aumentava, a ponto de se tornar um grande problema para os pesquisadores, pois obter extratos puros de hormônios era uma tarefa que exigia toneladas de gônadas (Oudshoorn, 1994: 67). Em contextos anteriores, do século XIX, a pesquisa nesta área tinha demandas muito mais simplórias em relação à quantidade de matéria-prima exigida, muitas vezes obtida nas próprias clínicas de ginecologia, quando a extração de ovários das pacientes era prática legal, então estabelecida como uma cirurgia terapêutica para uma série de irregularidades menstruais e “neuroses femininas” (Corner apud Oudshoorn, 1994: 8). Mas, na década de 1920, frente às novas demandas, os endocrinologistas precisaram buscar outras soluções. O pós-guerra foi uma fase de significativa ascensão da pesquisa sobre os hormônios, período que ficou conhecido mais tarde como “a corrida do ouro da endocrinologia” (Fausto-Sterling, 2000: 170). Alguns doutores optaram por meios inesperados. Como nos conta Nelly Oudshoorn (1998), Allan Parkes, fisiologista no Instituto Nacional para Pesquisa Médica, de Londres, por exemplo, chegou a conseguir, mediante intervenção do Museu Britânico, os enormes ovários de uma baleia azul, uma criatura gigantesca cujo peso ultrapassava 70 toneladas. No entanto, a má conservação dos órgãos fez com que todo o material fosse perdido. De modo correlato, cientistas alemães consideraram o uso dos testículos das baleias. No entanto, o acesso a estes animais não era nada simples, tampouco prático (Oudshoorn, 1998: 68). Solução mais conveniente para obter grandes quantidades de órgãos animais seriam os matadouros urbanos. Segundo Nelly Oudshorn (1998), neste contexto, na ânsia de encontrar matéria prima para prosseguir com suas investigações sobre os hormônios, os laboratórios farmacêuticos começaram a se instalar estrategicamente ao lado de matadouros, garantindo, assim, uma “provisão regular de glândulas” (Oudshoorn, 1998: 68). Esse cenário mudaria em 1926, quando dois cientistas holandeses descobriram a altíssima concentração de hormônios sexuais na urina das mulheres grávidas e na urina dos homens. Além dos matadouros, os endocrinologistas iriam recorrer às clínicas ginecológicas e às instituições militares e penitenciárias, coletando litros de urina (Oudshoorn, 1998: 77). Estava, assim, parcialmente resolvido o problema do fornecimento de matéria-prima da

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pesquisa endocrinológica, que daria saltos significativos em seu desenvolvimento nos próximos anos. Na leitura de Paul B. Preciado, nesses arranjos “se criam as primeiras redes de tráfico dos materiais orgânicos entre ginecologistas, cientistas de laboratório, indústrias farmacêuticas, cárceres e matadouros” (Preciado, 2008: 122-123). Arranjos similares, entretanto, podem ser localizados na história da medicina em período bastante anterior. Assim nos informa Nádia Farage (2011), ao comentar a avaliação de P. Linebaugh (1975), C. Lansury (1985) e R. French (1975) para revoltas populares inglesas contra a utilização de corpos humanos nos estudos científicos, no período que assistiu à implementação do modelo experimental na fisiologia e na anatomia, e, consequentemente, à consagração das práticas de dissecação e vivissecção no meio médico-científico: [...] já na primeira metade do século XVIII, segundo P. Linebaugh (1975), registramse na Inglaterra tumultos de rua contra a profanação dos cadáveres dos enforcados, que eram comprados, privadamente, por cirurgiões ou enviados, oficialmente, à Academia de Medicina, por força de lei, que impunha a dissecação como maior castigo para os criminosos. [...] Ao longo e, sobretudo, na segunda metade do século XIX, aos protestos contra a profanação de cadáveres vieram se somar aqueles contra os experimentos em corpos vivos, tanto a vivissecção, quanto a exibição de humanos, via de regra, mulheres pobres em aulas públicas (R. French,1975; C. Lansbury, 1985 apud Farage, 2011: 283-284).

Poder-se-ia dizer, enfim, que essa articulação estreita entre a medicina e o corpo vulnerável de que falam N. Oudshoorn e P. Preciado seja coextensiva a práticas médicocientíficas muito mais antigas.

9.

“Super-homens”

Voltemos aos laboratórios de Voronoff, em Paris. Em 1926, este médico-cirurgião iniciava um trabalho colaborativo com Illya Ivanov, endocrinologista e compatriota de Voronoff 36. O resultado dessa colaboração foi um excêntrico experimento, feito em uma macaca chamada Nora. Iniciou-se com a ablação dos ovários deste animal, intervenção cujo efeito imediato foi a interrupção de sua menstruação. No ano seguinte, esta macaca recebeu em seu corpo o ovário de uma mulher e voltou a menstruar. Estava feita a transposição de órgãos de um ser humano para um macaco, com êxito. Mas a macaca ainda sofreria uma última 36

Em meados da década de 1920 o Dr. Illya Ivanov, de Moscou, realizou uma série de experimentos com o intuito de investigar o “elo perdido” entre os símios e os seres humanos, tentando o cruzamento genético destas espécies, para provar a teoria evolutiva de Darwin (Gazeta de Notícias, 8 dez 1925, p. 1).

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intervenção: Nora foi inseminada artificialmente, com sêmen humano, e fecundada. Entretanto, em pouco mais de um mês, a macaca sofreu um aborto espontâneo e veio a falecer37 (Barnabà, 2014: 131). O caso deste experimento, nada ordinário, foi levado à literatura pelo romancista francês Félicien Champsaur, em sua obra publicada em 1929, de que trataremos adiante. Em 1927, Voronoff começou a expressar seu intuito de desenvolver, a partir de seus macacos, uma raça de “super-homens”. O franco-russo (Voronoff, 1928) dizia já ter rejuvenescido um enorme número de seres humanos, mas admite sua inquietude em torno daquilo que poderia conseguir testando seus enxertos em crianças, sob o mesmo raciocínio que o levou aos “superanimais”: Uma vez demonstrado que um jovem animal enxertado com meu método adquire qualidades superiores, que seu organismo se torna mais vigoroso, que sua energia vital é enormemente aumentada, porque não poderíamos ir igualmente longe e enxertar crianças excepcionalmente inteligentes e talentosas, para intensificar as qualidades de seu organismo? Ao enxertar jovens carneirinhos nós tivemos sucesso em desenvolver super-carneiros. Porque não tentar criar uma raça de super-homens, dotados de atributos físicos e intelectuais muito superiores aos nossos? [tradução livre] (Voronoff, 1928: 178)38.

A mesma afirmação aparece em uma entrevista concedida por Voronoff a George S. Viereck, em 1930. Intitulada “From super-sheep to superman”, a entrevista foi incluída no livro Glimpses of the Great, onde Viereck reuniu trinta e duas entrevistas feitas com as personalidades por ele consideradas como as mais eminentes da época; entre elas, Sigmund Freud, Albert Einstein, Henri Ford, Benito Mussolini, Eugen Steinach e Serge Voronoff. É possível encontrar entre esses nomes uma série de articulações. Trataremos de algumas delas adiante.

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Nos próximos anos, o Dr. Ivanov continuaria empenhado em seus experimentos que visavam à obtenção de um ser híbrido, nascido do cruzamento entre um macaco e um ser humano. Este cientista chegou a ludibriar o governo soviético com a possibilidade de conseguir, desse modo, uma geração de trabalhadores e soldados de potencial físico especialmente vantajoso (Barnabà, 2014: 131). Por intermédio da recomendação de Voronoff, o governo da Guiné concedeu a Ivanov a possibilidade de dispor da estação primatológica do Kindia para testar suas hipóteses. A relação de influência entre Voronoff e tal instituição é precisada pelo jornal Voz do Chauffer, quando este veículo noticia que Voronoff esteve na Guiné em 1925, ocasião em que teria tomado providências para que o Instituto Pasteur de Kindia organizasse ali uma criação de macacos (Voz do Chauffer, 14 set 1925, p. 7). O próprio Voronoff afirma ter feito a contribuição de cem mil francos para tal empreendimento (Barnabà, 2014: 131). 38 “Since it has been demonstrated that a youthful animal grafted according to my method acquires higher qualities, that its organism becomes more vigorous, that its vital energy is enormously increased, why should we not also go far as graft intelligent and really gifted children, in order to intensify the qualities of their organism? By grafting young lambs we have succeeded in developing super-rams. Why not try creating a race of supermen, endowed with physical and intellectual attributes very superior to ours?” (Voronoff, 1928: 178).

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Mais uma vez, agora mais demoradamente, convém olhar o quadro mais amplo das pesquisas e teorias que a endocrinologia vinha desenvolvendo em torno dos hormônios sexuais, enquanto Voronoff operava seus enxertos glandulares.

10.

O sexo instável [...] Girls were girls and boys were boys when I was a tot Now we don‟t know who is who or even what‟s what! Masculine Women, Feminine Men which is the rooster, which is the hen? It‟s hard to tell „em apart today! And say!39 [...]40 (“Masculine Women, Feminine Men”, 1925. James Monaco e Edgar Leslie 41).

A confusão na determinação da masculinidade ou da feminilidade dos jovens, metaforizada na interrogação sobre o sexo dos galináceos, que aborda a letra do charleston estadunidense acima referido, expressa uma crise de paradigmas em torno da sexualidade, que Anne Fausto-Sterling descreve como “uma das marcas do início do século XX” (FaustoSterling, 2000: 151). Em São Paulo, em período coincidente com o carnaval do ano de 1929, a revista A Cigarra publicou a seguinte charge, que lançava uma previsão para as relações entre os sexos – ou aquilo que hoje entenderíamos por relações de gênero – dali a setenta anos:

39

Garotas eram garotas e garotos eram garotos / quando eu era pequeno, /Agora não sabemos quem é quem ou / mesmo o que é o que! / Mulheres Masculinas, Homens Femininos / qual é o galo, qual é a galinha?/ É difícil distinguí-los hoje! E dizer! [tradução livre]. 40 Para a letra completa, veja-se http://queermusicheritage.com/MWFM.html Acesso em 2 de novembro de 2016. Áudio disponível em https://www.youtube.com/watch?v=iSlfQ49Bq1s Acesso em 10 de janeiro de 2017. 41 Aparentemente, a canção se tornou bastante popular nos EUA durante a década de 1920, período em que foi gravada por nove artistas: em 1926, por Frank Harris (Irving Kaufman), Savoy Havana Band, Merrit Brunies & his Friar-s Inn Orchestra, Bill Meyerl & Gwen Farrar, Joy Boys, Harry Resers‟s Six Jumping Jacks, Bert Firman Orchestra, Phil Huges & His High Hatters e Cabaret Novelty Orchestra; em 1927,pela Hotel Savoy Orpheans (Savoy Havana Band); e em 1929, por Norah Blaney.

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Figura 2. “A masculinização da mulher, ano 1999”. A Cigarra, 2ª quinzena - Fevereiro de 1929, p. 24.

“A masculinização das mulheres” viria acompanhada da docilidade dos homens. Mulheres ao centro, dominantes e expansivas, e homens em segundo plano, tímidos e servis. Elas fumam – e, possivelmente, discursam – enquanto eles as contemplam e admiram. Para o contexto brasileiro, podemos nos orientar por uma das proposições de Tiago de Melo Gomes (2004) no capítulo “Crônicas em movimento: O teatro de revista como palco de reestruturação de diferenças”.

Nele, o historiador revisa, para a década de 1920, as

ansiedades sociais relativas aos chamados temas da modernidade, que vinham tencionando uma série de estruturas tradicionais, ao propor reestruturações nos hábitos e práticas cotidianas da vida urbana. Entre essas ansiedades, o autor se detém nas novidades sobre as relações de gênero naquela década: os novos passos de dança, as novas modas de vestimenta para homens e mulheres, o surgimento de “tipos” como o afeminado “almofadinha” e a ousada “melindrosa”, a presença das mulheres nos eventos públicos, o feminismo, os cortes de cabelo à la garçonne e as calças para as mulheres, a maquiagem e os ternos justos e acinturados para os homens, entre outras tantas práticas que levaram certos cronistas à hipótese de que “a vida moderna havia desfigurado homens e mulheres, transformando boa parte dos primeiros praticamente em mulheres, e vice-versa” (Gomes, 2004: 227)42. 42

Vejam-se as crônicas “O sexo barbeado” (Gazeta de Notícias, 29 jul 1926, p. 2) e “A cabeça das mulheres” de Mendes Fradique (Gazeta de Notícias, 12 jun 1926, p. 2), “Os calções, as barbas e a mulher...” de Garcia de

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No contexto científico euro-americano, enquanto Sigmund Freud continuava a solidificar seu legado na teoria psicanalítica, erguido em torno das experiências humanas com a sexualidade, a endocrinologia encontrava nas glândulas sexuais um papel central para o desenvolvimento e funcionamento do organismo. Não por acaso, S. Freud inclui a discussão sobre a teoria química das secreções internas na penúltima edição dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, de 192043, chegando a mencionar Voronoff. A relação entre as teorias de Freud e Voronoff é sugerida pela imprensa carioca: “Woronoff esta respondendo ao seu patrício, o grande psychoanalysta Freud, quando ensina que toda vida physica é resultado da vida sexual, ensinamento incomportável consoante o progresso desses assumptos” (“A mocidade eterna”. Dr. Alfredo Pinheiro. O Paiz, 16 jul 1925, p. 2); Freud e Voronoff são os nomes da moda [...] Freud quer que toda a humanidade esteja possuida da mania sexual. Voronoff encontra meio de satisfazer essa mania, até depois dos annos mais maduros... Ha uma enorme differença entre ambos: Freud faz theoria, e essa theoria pode ser amanhã relegada ao cesto de papeis da indifferença. Voronoff atira-se á pratica, e parece já ter vigorizado bom numero de macrobios (“Voronoff”. Dr. Juvenal. Correio da Manhã, 15 jul 1928, p. 6).

Incorporada às ciências reprodutivas44, a teoria dos hormônios traria grande impacto sobre o conhecimento em torno das faculdades de reprodução, da diferenciação sexual e da sexualidade.

10.1. Da pecuária à ginecologia No início do século XX, a nascente ciência da endocrinologia atraía atenções dos departamentos acadêmicos de zoologia e medicina, das indústrias de criação animal, bem como das especialidades médicas da obstetrícia e da ginecologia45, sob o interesse comum do aumento da fertilidade e da cura da esterilidade em animais e mulheres (Clarke, 1998: 237).

Rezende (Diário da Manhã, 20 abr 1927, p. 1), as marchas carnavalescas “Mulher barbada”, de 1925 (ou anterior) e “Mulher de cueca” e de 1927, ambas com versos de Ary Kerner e música de Eduardo Souto, e o conto “O ex-homem”, constante no livro Século XXI, de Berilo Neves (1934: 197-200). 43 Diga-se de passagem, S. Freud chegou a se submeter a uma intervenção de Steinach – a vasectomia que prometia um rejuvenescimento físico e mental, que consistia na vaso-ligadura do canais deferentes, com a intenção de provocar a atrofia da porção seminal do testículo e, consequentemente, um aumento na glândula intersticial, potencializando a produção de líquido espermático, e, portanto, a produção de hormônios sexuais (Meireles apud Malcher, 2007) – com a esperança de retardar o retorno de seu câncer oral (Sengoopta, 2003: 122). 44 Bloco que reunia as especialidades da obstetrícia, ginecologia, endocrinologia, biologia e medicina reprodutiva. 45 Lembremos que a própria carreira de Voronoff começou na área da ginecologia e da cirurgia, sendo suas primeiras publicações as seguintes: Feuillets de Chirurgie et de Gynécologie (1886), Etudes de gynécologie et de chirurgie générale (1886) e Manuel Pratique d‟Operations Gynécologiques (1899).

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Já na década de 1910, Lima Barreto, tematizava, na novela As Aventuras do doutor Bogóloff e em algumas crônicas, as novidades científicas de seu tempo, ironizando o crescente interesse do governo e da indústria pecuária na área da bioquímica, que se voltava ao controle da produção animal. Esse assunto é devidamente analisado por Nádia Farage (2013b), no artigo “Um dever de Antígona: o nexo entre o feminino e o animal na obra de Lima Barreto”. Além das Aventuras do doutor Bogóloff, a autora analisa outros escritos de Lima – como as crônicas “Hortas e Capinzais”, “Criação de gado” e “Plantação de galinhas” – que lhe são extensivos e correlatos, e que formulam a crítica bem-humorada às ambições das novidades da ciência e da tecnologia, aliadas à ambição capitalista sobre a produção agropecuária, numa espécie de “caricatura premonitória da produção industrial de animais” (Farage, 2013b: 13). N. Farage alerta-nos ainda para outro aspecto que cruza todos esses textos de Lima, qual seja, a sugestão de uma continuidade entre o controle sobre a reprodução animal e o controle sobre a fertilidade feminina, estabelecidos pelo biopoder (Farage, 2013b: 2 e 8). Mas não é preciso recorrer ao campo da ficção científica para abordar o tema, neste início do século XX, quando inflexões semelhantes começavam a se concretizar no mundo real. Se, de um lado, os pecuaristas buscaram fortunas aplicando técnicas opoterápicas – injeções de extratos ou enxertos glandulares – em seus animais, com o intuito de intensificar seu potencial produtivo e reprodutivo, de outro, os ginecologistas foram os primeiros a reconhecer a relevância das experiências de Brown-Séquard. Estes especialistas já vinham pesquisando, há algum tempo, as funções orgânicas dos ovários, e estavam familiarizados com os efeitos produzidos por estes órgãos no corpo feminino (Oudshoorn, 1994: 19). A partir da metade do século XIX, o olhar biomédico sobre o corpo feminino, que até então se resumia ao estudo do útero46, começou a se direcionar para os ovários. Estes órgãos passaram a ser concebidos como “essência da própria feminilidade”, e vieram a se tornar referência paradigmática da ginecologia, ciência estabelecida no fim do século XIX (Oudshoorn, 1994: 8). Neste contexto, os ovários se tornaram objeto de intervenções cirúrgicas, amplamente praticadas na Europa e nos Estados Unidos nas décadas de 1870 e 1880, com o objetivo de testar os efeitos de sua remoção (Oudshoorn, 1994: 8).

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O romance A Carne, de Julio Ribeiro, publicado em 1888, ainda faz referência a tal teoria, citando o axioma do médico belga Jan-Baptiste Van Helmot (1577-1644), através da reflexão da personagem do estudioso Barbosa – que era um homem bastante familiarizado com a tradição das ciências médicas europeias – a respeito dos desvarios femininos que ele via em Lenita: “Tota mulier in útero bem disse Van Helmont” (Ribeiro, 1999: 33).

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No início do século XX houve outra mudança de paradigma na ginecologia. A “essência” da feminilidade já não era mais localizada num órgão, mas em substâncias químicas: os chamados hormônios sexuais, os “mensageiros químicos” da feminilidade ou da masculinidade, agenciadas pelos ovários e pelos testículos (Oudshoorn, 1994: 9). Em 1920, ainda que inseguro sobre os efeitos do enxerto glandular nas mulheres, cuja execução mostrava-se mais complexa que a do enxerto masculino, Voronoff afirma que a mulher, sem dúvida, “[...] possui sua própria glândula, análoga à glândula do homem”, e que há, seguramente, no corpo feminino “[...] uma conexão direta entre as funções dos ovários e as de todos os outros órgãos [...]” (Voronoff, 1920: 114-115).

10.2.

A “reversão sexual” e os hormônios “fora de lugar” Nas primeiras décadas do século XX foram realizadas, no contexto da medicina

científica, inúmeras experiências que testaram, em cobaias animais, o papel das glândulas sexuais e das secreções internas na diferenciação dos sexos. Algumas delas são abordadas e discutidas em seus detalhes na tese de doutorado de Afonso Guimarãis, de 1929: “A Secreção Interna das Glândulas Sexuais: Pesquisas experimentais nos mamíferos”. O autor analisa a forma pela qual animais como galos e galinhas, carneiros e ovelhas, bodes e cabras, a princípio, tão marcadamente distintos na expressão fisiológica do seu sexo, embaralhavam suas características nos experimentos de “reversão sexual”, feitos desde a década de 1910 nos laboratórios de endocrinologistas e médicos como M. Juhn e E. D‟Amour, A. Pézard e H. Goodale, M. Thorek, A. Lipschütz, E. Steinach, e S. Voronoff, entre outros (Guimarãis, 1929). A imprensa brasileira da década de 1920 mostra-se particularmente atenta às investigações de E. Steinach: “as experiências de Steinach em animaes têm conseguido até que indivíduos de um sexo acabem com algumas das características physiologicas do outro” (Jornal do Brasil, 8 jul 1925, p. 6). A notícia se refere aos experimentos desenvolvidos pelo austríaco Eugen Steinach, entre 1912 e 1913 – referidos no início deste capítulo – nos quais testou em ratos e porquinhos-da-índia os efeitos do transplante de gônadas ovarianas, para machos castrados, e de gônadas testiculares, para fêmeas esterilizadas. Os resultados deste experimento “cruzado” apontaram que, mediante tais transplantes, boa parte das características secundárias físicocomportamentais da feminilidade e da masculinidade apareciam no sexo oposto47. 47

Freud comenta esse experimento na edição de 1920 da obra Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. Este ponto será retomado no tópico seguinte.

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O fato de Steinach propor que o comportamento dos sexos, sobretudo o chamado instinto materno, era redutível à presença das glândulas sexuais femininas e passível de ser transferido para o outro sexo, é registrado como um marco científico notável, ou mesmo “um dos maiores feitos da ciência”, segundo a expressão da matéria d‟O Jornal a respeito do caso (O Jornal, 23 out 1921, p. 3). Em seu livro Vivre (1920), traduzido para a língua inglesa no mesmo ano da publicação original, em francês, Voronoff relata suas experiências de “reversão sexual” testadas em espécies caprinas e ovinas. As cobaias nas quais a reversão foi operada são por ele referidas como “she-goats” e “ewe-lambs”. Voronoff inclui neste livro uma fotografia da cobaia “she-goat”, cabra na qual ele havia enxertado os testículos de um bode:

Figura 3. Imagem extraída de VORONOFF, Serge. 1920. Life: A Study of the Means of Restoring Vital Energy and Prolonging Life. New York: E. P. Dutton & Company, p. 73.

O autor reporta que o animal manteve seu tamanho original, mas adquiriu algumas características físicas e comportamentais de um jovem bode. Voronoff conclui, a respeito deste exemplo, que não recomendaria a nenhuma mulher o enxerto da glândula sexual masculina, pois com ele surgiriam os aspectos físicos marcadamente masculinos, “que a mulher não tem nenhum desejo de adquirir”, além do risco da “perversão do instinto materno

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e uma mudança em seu estado psíquico, em seus sentimentos afetivos”, como havia verificado na cobaia da cabra que serviu ao experimento de “reversão sexual” (Voronoff, 1920: 113114). Interessa retomar aqui um fragmento da famosa revisão de Anne Fausto-Sterling, feita no livro Sexing the Body (2000), relativa às variações paradigmáticas da medicina em torno da sexualidade ao longo do século XX. A autora pontua que a ciência dos hormônios, em sua fase mais incipiente, firmava-se em um paradigma dualista, que concebia a existência de dois tipos de hormônios: masculinos e femininos. Tal conceito, que prevaleceu até o início da década de 1920, previa que estes hormônios deveriam ser encontrados, exclusivamente, no sexo que lhes era correspondente. A principal formulação da concepção dualista era que os sexos eram perfeitos opostos, e isso se refletia, naturalmente, sobre os hormônios sexuais (Fausto-Sterling, 2000). Nessa esteira, Eugen Steinach formularia, na década de 1910, a teoria do antagonismo. Aquele mesmo experimento de reversão sexual em porquinhos-da-índia, referido acima, dependia da castração prévia das cobaias, sem a qual não era possível obter os resultados esperados, qual seja, a “troca do sexo” desses animais. Segundo o experimentador, isso corroborava a ideia de que os hormônios sexuais, como os sexos, eram forças opostas, mutuamente excludentes. Para Steinach, somente em circunstâncias “anômalas” – experimentais ou “patológicas” – os hormônios poderiam aparecer “no corpo errado”; estes hormônios, diga-se, fora de lugar, eram classificados como “cross-sex hormones” ou “hormônios heterossexuais”. O “natural” seria que a gônada de cada indivíduo antagonizasse ou suprimisse por completo a presença do hormônio do sexo oposto48 (Fausto-Sterling, 2000: 191). A década seguinte seria marcada pelo “desconcertante” aparecimento de dezenas de relatos médicos que registraram atividade hormonal feminina em corpos masculinos “normais” e, inversamente, atividade hormonal masculina em corpos femininos “normais”. Tais relatos foram reportados nos artigos científicos da época como ocorrências “curiosas”, “inesperadas” e “paradoxais” (Fausto-Sterling, 2000: 182).

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Tal conclusão era derivada do seu estudo de “reversão sexual”, previamente descrito. No caso de animais não castrados que recebiam o transplante do órgão sexual do sexo oposto, a presença de testículos tendia a inibir o desenvolvimento das características femininas, do mesmo modo que a presença do ovário tendia a inibir o desenvolvimento masculino (Fausto-Sterling, 2000:160).

51

10.3. A “inversão sexual” e o tratamento hormonal No início do século XX, a partir do desenvolvimento da noção de hormônio sexuais “o sexo se tornou químico” (Fasuto-Sterling, 2000: 158) e a endocrinologia sugeriu ter encontrado a chave para entender “o que faz um homem, homem, e uma mulher, mulher” (Oudshoorn, 1994: 16). Disso derivariam inúmeras interações entre a endocrinologia sexual e as questões relativas à sexualidade. Em uma nota da edição de 1920 da obra Três Ensaios Sobre a Teoria Sexual, Sigmund Freud discorre sobre os experimentos de reversão sexual, praticados por Eugen Steinach, e inclui no mesmo parágrafo alguns comentários sobre uma cirurgia de enxerto testicular feito por A. Lipschütz, em um homem que havia perdido seu testículo por conta de uma tuberculose. O sujeito era, segundo Freud, um homossexual passivo e, depois da operação, “começou a comportar-se com masculinidade e a orientar sua libido para as mulheres de maneira normal”. No entanto, o psicanalista considera precipitado afirmar que estes “belos experimentos” conduzissem imediatamente a uma “cura universal do homossexualismo” (Freud, 2012[1920]: 25-26, nota 1). Embora não fosse o intuito de Voronoff aplicar sua técnica de enxertia para reverter quadros de indivíduos homossexuais – na época, referidos também como “afeminados”, “invertidos” ou “intersexuais” – o médico franco-russo chegou a praticá-la, com este fim, ao menos uma vez. Pelo menos assim afirma O Paiz em 1925, ao noticiar a Semana Cirúrgica de Paris, realizada no ano anterior, à qual Voronoff atendeu, aplicando seu método cirúrgico em ingleses, noruegueses, espanhóis e italianos, cujas idades variavam entre vinte e cinco e sessenta anos, recebendo-os em sua própria casa de saúde, em Neuilly. A matéria cita o caso de um desses europeus – mantendo-os anônimos – que recorreu a Voronoff em busca de uma “therapeutica regeneradora”: [...] um rapaz de 24 annos de idade, forte, sanguineo, bem constituido, de fórmas femininas que ha oito annos vinha soffrendo irreversivelmente de perversão do instincto masculino. Com repugnancia de si proprio, segundo sua textual expressão, procurára na cirurgia de Woronoff um remedio curativo, depois de tentar suicidar-se com dois golpes fundos nos punhos [...] (“A mocidade eterna”. Dr. Alfredo Pinheiro. O Paiz, 16 jul 1925, p. 2).

Durante esta pesquisa não foi encontrado nenhum outro registro que vincule, diretamente, o nome de Voronoff à tentativa de reversão da orientação sexual de algum indivíduo homossexual através do enxerto glandular. No entanto, alguns dos colegas e admiradores do trabalho de Voronoff não hesitaram em indicar, defender e praticar a cirurgia

52

enxertia glandular como “cura” para o “homossexualismo”. Voltaremos a este assunto no quarto capítulo.

11.

“Voronoff vem ahi”

As promessas da enxertia glandular atraíram a atenção não só das instituições científicas, como também de muitas instituições governamentais ligadas aos setores de criação animal. Ao longo da década de 1920 Voronoff viajou pelo mundo todo, atendendo aos inúmeros convites internacionais que recebia para apresentar e introduzir seu método em dezenas de países. À medida que suas cirurgias de enxertia glandular iam se estabelecendo como um modelo clínico, muitos médicos, endocrinologistas, zoologistas e veterinários passaram a praticá-lo. Em 1927, o “método Voronoff” já era empregado nos seguintes países: França, Argélia, Grã-Bretanha, Espanha, Portugal, Itália, Alemanha, Áustria, URSS, Estados Unidos, Argentina, Chile, Brasil, Uruguai, Turquia, Egito e Indonésia (Barnabà, 2014: 100; 134). Em 1926, Voronoff já indicava o intuito de vir à América do Sul, depois de ser convidado pelo Dr. Le Breten, ex-ministro da Agricultura da Argentina, a testar seu método de enxertos glandulares na indústria pecuária do Prata. Le Breten, aliás, já havia contado com a colaboração de outro cientista, Dr. Masse, que passou a trabalhar para o governo argentino no desenvolvimento de um sistema experimental para aumentar a engorda do gado (Gazeta de Notícias, 9 jun 1926, p. 1). Em janeiro de 1928 foi confirmada a visita de Voronoff ao Brasil. O franco-russo havia recebido um convite de Belmiro Valverde, um colega brasileiro, urologista e então secretário da organização das Jornadas Médicas do Rio de Janeiro (JsMs), para participar deste evento, como um dos representantes da França. O aceite do médico franco-russo veio acompanhado do anúncio oficial de seu tour pela América do Sul. Visitaria, assim, as capitais do Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires e Montevidéu. Tratemos, a seguir, do episódio de sua estadia no Brasil.

53

CAPÍTULO II Voronoff visita o Brasil

A estadia de Serge Voronoff no Brasil, compreendida entre os dias 12 e 25 de julho de 1928, configurou uma oportunidade ímpar para a imprensa da época. O assunto de um método de rejuvenescimento, a partir de uma cirurgia de enxerto de glândulas de macaco em seres humanos, por si só, já evocava um tom escandaloso. Inevitavelmente, de forma mais ou menos interessada no potencial publicitário do tema, os jornais acompanharam de perto os movimentos deste médico franco-russo em terras brasileiras. A partir da presença de S. Voronoff no Brasil, a imprensa pôde explorar não só debates científicos, como controvérsias, escândalos, entrevistas, eventos públicos, rumores, curiosidades e opiniões em torno de sua polêmica figura. Voronoff, aliás, já era assunto nos jornais desde a década de 1910, bastante comentado durante a década de 1920 e explorado à exaustão em 1928. Acompanharemos, neste capítulo, o modo como a visita de Voronoff ao Brasil foi registrada na imprensa carioca e paulistana. Mas, antes de fazê-lo, interessa tecer algumas considerações acerca das fontes utilizadas. A imprensa, naquela época, havia se estabelecido como o veículo de notícias da sociedade por excelência. Na virada do século, muitos jornais aumentaram significativamente suas tiragens, procurando também tornar seu conteúdo mais atrativo a parcelas maiores da população, que se transformava em seu público leitor. Talvez seja exagerado adjetivar a população em geral de “público leitor”, considerando-se as baixas taxas de escolaridade e alfabetização da época49. No entanto, como nos lembra S. Chalhoub, já em fins do século XIX os jornais se mostravam capazes de atingir, com sua influência, os mais diversos grupos sociais, “fato explicado por hábitos como a leitura em voz alta e a rápida difusão oral daquilo que era publicado” (Chalhoub, 2005: 18). Como reforçado por Ivana Stolze Lima (2001), o alcance da palavra impressa encontraria outras vias, como o hábito das leituras coletivas em praças e largos, feitas desde o século XIX, bem como a conversa miúda do cotidiano, que faziam com que esses veículos jornalísticos extrapolassem o público leitor previsto, em geral homens brancos, letrados e de maior

49

Cerca de 25% da população brasileira, em 1920 e 38%, em 1930 (Sussekind, 2006: 207).

54

ascendência social, para alcançar outras classes e outros setores da população, ainda que de modo indireto. Na revisão do historiador Marcio Castilho (2013), a imprensa carioca, no início do século XX, aparece como uma expressão da transformação da cidade e das ideias que nela circulavam. Construía-se para os indivíduos uma nova temporalidade, surgida com o telégrafo e as novas tecnologias de impressão, que revoluciona verdadeiramente as condições da circulação de informação sobre os acontecimentos do Brasil e do mundo, fazendo dos jornais os narradores privilegiados dos fatos que se passavam a quilômetros de distância do leitor (Castilho, 2013: 5). E isso era uma novidade e tanto. Tal formulação, aliás, corrobora aquilo que Marie-Ève Théranty aponta para a imprensa francesa do fim do século XIX: “[...] o jornal se torna rapidamente o principal sistema discursivo, suporte de uma representação de mundo” (Théranty, 2007: 22). Segundo Flora Sussekind: De um ponto de vista estritamente técnico, a grande transformação por que passa a imprensa brasileira na virada do século é o início do emprego dos métodos fotoquímicos de reprodução. E isto se dá, de fato, a partir de 1º de maio de 1900, quando começa a circular a Revista da Semana, de Álvaro de Teffé. Até então, os processos de reprodução mais comuns eram ou a litografia [...] ou a gravura de zinco e cobre [...] E outra transformação significativa foi a “publicação de clichê a cores, em papel acetinado, em máquinas rotativas” pela Gazeta de Notícias a partir de 7 de julho de 1907. Modificações que se fariam acompanhar de um crescimento das tiragens e do número de páginas, de uma agilização da distribuição, do barateamento e da possibilidade de um melhor acabamento gráfico para as folhas. Na verdade, assiste-se, na virada de século, à transformação do jornal numa empresa industrial de certo porte (Sussekind, 2006: 72-73).

O Rio de Janeiro, especificamente, configurou-se como o grande centro da imprensa brasileira: “A capital da República, imbuída de aspirações modernizantes, era fonte permanente de informações e centro das discussões políticas, fornecendo cenário ideal para o desenvolvimento da imprensa” (Castilho, 2013: 5). A respeito das fontes utilizadas com maior frequência na presente pesquisa, interessa pontuar algumas particularidades. Ao longo da década de 1920, o jornal A Noite, por exemplo, fez de Voronoff o assunto de centenas de matérias. É possível que isso se ligue ao fato de A Noite ter sido, por bastante tempo, um jornal oposicionista e independente, que não recebia financiamento do governo ou de outras instituições, precisando manter-se por si só. É sabido que o jornal apostava em assuntos polêmicos, matérias sensacionalistas e de alto interesse popular, cuja procura fosse capaz de sustentá-lo economicamente.

55

Um dos aspectos mais marcantes deste jornal vespertino, de preços baixos e grandes tiragens, era seu apelo popular. O verbete de Bruno Brasil50 para o A Noite frisa que o jornal havia se tornado “um dos primeiros a valorizar os fatos do cotidiano e, desta forma, os gostos do grande público, da chamada massa urbana que se ia formando nas grandes cidades do país”51. Marieta de Moraes, em verbete de sua autoria, afirma que A Noite caracterizava-se, de modo geral, por um editorial oposicionista, que prevaleceu até 1925, ano em que o jornal sofreu um golpe que tirou Irineu Marinho de sua direção, mudando radicalmente sua orientação política, passando do oposicionismo “ao mais irrestrito apoio às oligarquias dominantes”52. O Paiz foi um diário de ampla circulação, conservador e de grande expressão, considerado o mais robusto órgão governista da República Velha. Seu período de maior popularidade coincidiu com o período em que a administração esteve nas mãos de João Lage, responsável por uma ampla modernização material e técnica do jornal (Castilho, 2013: 6). Entretanto, na década de 1920, O Paiz passava por momentos de crise. Depois de ter sofrido grande prejuízo causado por um incêndio em sua sede, no ano de 1917, o jornal entrou em dificuldades financeiras e reunia esforços para se reerguer; mas a situação piorava com a entrada de Arthur Bernardes na presidência da República, que governou em estado de sítio de 1922 a 1926, mantendo, inicialmente, a imprensa nacional sob censura (Castilho, 2013: 10). Este jornal, mesmo mantendo a sua lealdade ao governo, acabou por sentir os efeitos indiretos do estado de sítio, pois, nesse momento posições favoráveis ao governo repercutiam mal junto ao público, isto é, a imprensa situacionista estava isolada (Castilho, 2013: 11). De acordo com Bruno Brasil53, devido a tal situação política e à “falta de assunto”, o editorial d‟O Paiz passava a focalizar variedades internacionais e amenidades. Talvez o assunto Voronoff tenha sido explorado neste sentido. Em 1926 O Paiz publicou integralmente, em folhetim, o livro O Segredo do dr. Voronoff54 escrito por um colega e defensor de Voronoff, dedicado à popularização e exaltação dos métodos desse médico-cirurgião.

50

A Noite, por Bruno Brasil, BNdigital-FBN Disponível em https://bndigital.bn.br/artigos/a-noite/ Acesso em 8 de maio de 2016. 51 Informação extraída do verbete A Noite, por Bruno Brasil, BNdigital-FBN Disponível em https://bndigital.bn.br/artigos/a-noite/ Acesso em 8 de maio de 2016. 52

53

Informação extraída do verbete A Noite, por Marieta de Moraes Ferreira, CPDOC-FGV. Disponível em http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/NOITE,%20A.pdf Acesso em 2 de junho de 2016.

Informação extraída do verbete O Paiz, por Bruno Brasil, https://bndigital.bn.br/artigos/o-paiz/ Acesso em 2 de junho de 2016. 54 O mesmo que aparece referido no primeiro capítulo.

BNdigital-FBN

Disponível

em

56

Outro jornal que passava por um momento delicado na década de 1920 era o Jornal do Brasil. Depois de atravessar uma crise financeira, a apresentação deste veículo era a de um diário moderado, caracterizado por sua neutralidade política55. Com o intuito de não se comprometer em campanhas políticas de risco, desde 1919, o jornal vinha privilegiando sessões de arte e literatura, “com colunas assinadas por membros da Academia Brasileira de Letras e outras figuras de vulto no meio intelectual” como Carlos de Laet, Luís Murat, Medeiros de Albuquerque, Benjamin Costallat, entre outros56. De modo geral, foi um jornal popular orientado pelo mote do “interesse das massas”, que investia em crônicas, ilustrações, caricaturas, cobertura dos carnavais e campanhas populares de humor crítico, com algum sensacionalismo57. O Jornal foi um diário matutino de grande circulação, lançado em 1919 e comprado por Francisco Chateubriand58 em 1924, movimento que deu início à organização jornalística nomeada Diários Associados. O editorial d‟O Jornal, independente e alinhado às forças conservadoras, foi mantido e atualizado pelo novo diretor, que procurava mantê-lo tão moderno quanto possível em suas técnicas de impressão e em seu formato59. O Jornal pretendia-se um referencial da modernidade cosmopolita, e entre as décadas de 1920 e 1930 dava destaque às notícias internacionais e preferência aos assuntos científicos e literários do Brasil e do mundo60. Seus leitores podiam acompanhar as novidades no campo da endocrinologia, noticiadas atentamente pelo jornal desde 192061. Ao longo deste capítulo poder-se-á notar que O Jornal, como nenhum outro, preocupava-se em enfatizar os detalhes técnicos das operações de Voronoff, apresentando-os, muitas vezes, de modo didático. O Diário Carioca foi um jornal declarada e enfaticamente oposicionista, que circulava entre as elites cariocas. Criado e dirigido por José Eduardo de Macedo Soares – o mesmo criador d‟O Imparcial, veículo do qual foi diretor até o ano de 1922, quando foi preso –, um ferrenho opositor de Washington Luís que dispunha de uma situação financeira confortável, a 55

Informação extraída do verbete Jornal do Brasil, por Bruno Brasil, BNdigital-FBN Disponível em https://bndigital.bn.br/artigos/jornal-do-brasil/ Acesso em 2 de junho de 2016. 56 Idem. 57 Idem. 58 Que, mais tarde, ainda dentro da década de 1920, compraria os Diário da Noite, tanto o carioca como o paulistano, e, ainda, o Diário de Notícias, o Diário de S. Paulo, O Estado de Mina e a revista O Cruzeiro. Informação extraída do sítio virtual dos Diários Associados. Disponível em http://www.diariosassociados.com.br/linhadotempo/decada20.html Acesso em 23 de julho de 2016. 59 Informação extraída dos Cadernos da Comunicação - Série Memória, lançado pela Secretaria Especial de Comunicação Social do Rio de Janeiro. http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204434/4101426/memoria18.pdf Acesso em 3 dejunho de 2016. 60 Informação extraída do verbete O Jornal, por Bruno Brasil, BNdigital. Disponível em http://bndigital.bn.br/artigos/o-jornal/ Acesso em 2 de junho de 2016. 61 Veja-se O Jornal, 22 dez 1920, p. 1; 23 out 1921, p. 3; 15 out 1922, p. 4; 5 nov 1922, p. 4; 26 mai 1923, p. 12; 09 abr 1926, p. 5 e 28 set 1927, p. 1.

57

ponto de poder manter seu jornal com o editorial de sua preferência (Costa, 2011: 61). O Diário Carioca foi fundado em 17 de julho de 1928. Na capa de seu primeiro número, o recém-nascido jornal lançou a primeira matéria de uma série de cinco partes, publicada entre 17 e 25 de julho, sobre uma polêmica construída em torno do Dr. Voronoff por parte de algumas figuras da classe médica carioca, que marcou o período em que o franco-russo esteve no Rio. Ao que nos informa o verbete referente a este jornal, fornecido pelo CPDOC62, a tradicional Gazeta de Notícias assumiu um editorial situacionista na década de 1920. Jornal extremamente bem equipado, a Gazeta de Notícias mantinha-se acuradamente atualizada em relação às novidades na tecnologia e no formato dos jornais desde a virada do século, privilegiava a charge, a crônica e a entrevista e contava com contribuições de importantes referências da literatura nacional em suas colunas63. Ao que nos interessa, Mendes Fradique foi um de seus cronistas regulares. Voltaremos a este autor mais adiante. Os veículos paulistanos utilizados neste trabalho são o Diário Nacional e o Correio Paulistano. O primeiro surgiu em 1927 e aparecia como um jornal de oposição dirigido às classes médias da população. Este veículo foi um entusiasta da modernidade industrial paulista, exaltando-lhe o progresso e a índole laboriosa (Aducci, 2004)64. De modo geral, o Diário Nacional mostrou-se favorável a Voronoff. O Correio Paulistano foi o primeiro diário da província e o terceiro do Brasil. Tradicional e oligárquico, foi dirigido e sustentado por aristocratas e tradicionalistas. Tornou-se um porta-voz do Partido Republicano Paulista (PRP) e, na década de 1920, esteve pautado pelo conservadorismo e pelo governismo. Todavia, na prática, as diferenças reais de conteúdo e editorial entre o Diário Nacional e o Correio Paulistano não eram tão evidentes. O Correio da Manhã e A Manhã figuravam como os oposicionistas de peso no campo da imprensa carioca. O primeiro foi o grande concorrente e opositor d‟O Paiz e “um dos mais respeitáveis periódicos da imprensa diária de grande tiragem do país”, atraindo as atenções das classes médias e populares e posicionando-se, normalmente, a favor das forças modernizadoras65. Chegou a ser fechado em 1924 por Arthur Bernardes, reabrindo em 1925. No ano seguinte, voltava a ser a principal referência de oposição no jornalismo. O Correio da 62

Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – Fundação Getúlio Vargas. Informação extraída do verbete Gazeta de Notícias, por Carlos Eduardo Leal, CPDOC-FGV. Disponível em http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeirarepublica/GAZETA%20DE%20NOT%C3%8DCIAS.pdf Acesso em 2 de junho de 2016. 64 Disponível em http://www4.pucsp.br/neils/downloads/v7_cassia.pdf Acesso em 8 de junho de 2016. 65 Informação extraída do verbete Correio da Manhã, por Bruno Brasil – BNdigital. Disponível em https://bndigital.bn.br/artigos/correio-da-manha/ Acesso em 2 de junho de 2016. 63

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Manhã procurava manter-se sempre a par do noticiário internacional, dedicando sua segunda página ao conteúdo fornecido pela agência de notícias Havas66. Este jornal não deixou de acompanhar, em detalhe, todos os eventos públicos de Voronoff no Brasil. A Manhã foi um jornal lançado em 1925, marcadamente oposicionista e combativo: “Crítico aguerrido, usava linguagem mordaz, panfletária, demagógica, além de bemhumorada e acessível. Confrontava o autoritarismo, as oligarquias e a estrutura política da República Velha, buscando comprometimento com causas populares”. Este diário apostou grandemente nas charges, caricaturas e ilustrações67. Apesar de seu sucesso, já no ano de 1928, A Manhã afundava em dívidas, situação que conduziu o jornal a uma troca de diretor e redator-chefe. Não obstante, o veículo não alterou sua postura e sua primeira fase funcionou até o fim do ano de 1929, momento em que o jornal encerrou suas atividades, devido às pressões políticas que vinha sofrendo68. Por fim, temos as revistas ilustradas e humorísticas O Malho e Careta, ambas cariocas e semanais, cujas capas traziam charges vivamente coloridas, ocupando a página toda. O Malho, “semanário humorístico, artístico e literário”, como dizia seu subtítulo, aparecia a cada sete dias para comentar, com humor e ironia, os tópicos mais quentes da semana. Ainda que o foco do editorial fosse a vida política, O Malho tematizava também a cultura e os costumes. Destacou-se na inovação tecnológica de suas impressões, tornando-se referência na arte da charge e da ilustração na imprensa 69. Seu conteúdo, fundamentado em gravuras, dispensava parte da retórica escrita, o que contribuía para o interesse das camadas iletradas na revista70, vendida em todo país a 1$000 réis durante a década de 1920. A Careta era uma revista de formato similar, satírica e humorística, que também se beneficiou do investimento na qualidade das gravuras. Era uma revista de variedades, popular e multiforme (Nogueira, 2010). Surgiu como concorrência direta d‟O Malho (Garcia, 2005: 31), marcando uma posição política mais pautada pelo oposicionismo, com preço mais acessível, vendida a 600 réis no ano de 1928. A revista contou com contribuição regular de Berilo Neves, que publicava também, eventualmente, n‟O Malho. Talvez por fazer da ironia um hábito, quase todas as menções a Voronoff – ao menos as que puderam ser levantadas nesta pesquisa – terminam por desqualificá-lo, na maioria das vezes por meio do chiste. Pode66

Idem. Informações extraídas do verbete A Manhã, por Bruno Brasil, BNdigital-FBN Disponível em https://bndigital.bn.br/artigos/a-manha/ Acesso em 2 de junho de 2016. 68 Idem. 69 Informação extraída de texto disponível em https://caminhosdojornalismo.wordpress.com/linguagem-graficano-impresso/artista-grafico-joao-carlos/inovacoes-de-j-carlos-em-o-malho/ Acesso em 3 de junho de 2016. 70 Idem. 67

59

se dizer que a Careta, de forma praticamente unânime, combateu, a seu modo, as práticas de Voronoff. Enfim, por mais variados que fossem seus motivos e posições, esses veículos deram destaque ao evento que constituiu a passagem de Serge Voronoff pelas capitais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Os próximos tópicos tentam interpretá-la a partir do que nos informam os jornais aqui referidos.

1.

Voronoff no Rio

1.1.

Pelo “Alcantara” A chegada de Voronoff ao Rio de Janeiro, antecipada na introdução deste trabalho, se

concretizou nas primeiras horas da manhã do dia 12 de julho de 1928, na baía da Guanabara. Como era de se esperar, além de representantes das Jornadas Médicas, um grande número de jornalistas aguardava o célebre cirurgião. Voronoff recebeu alguns deles, no salão principal do Alcântara, em uma espécie de coletiva de imprensa improvisada. Segundo o Correio da Manhã, a bordo do transatlântico vinham ainda outras figuras de destaque: Dra. Suzanne Noel, chefe do serviço de Dermatologia do Hospital de S. Luiz, em Paris, e especialista em cirurgia estética, que também participaria das Jornadas Médicas; o senador carioca Paulo de Frontin, voltando de uma conferência interparlamentar na capital francesa; Dr. Parreiras Horta, o diretor do Serviço de Indústria Pastoril do Rio de Janeiro; o capitão Vital Ramos de Castro, proprietário de quatro cinematógrafos cariocas, dentre eles o Parisiense; o time futebolístico “Sporting Club”, de Lisboa; a bailarina russa Anna Pavlova e sua companhia de sessenta bailarinos, trupe que vinha se apresentado ao redor do mundo; e a pianista brasileira Maria Antonia, uma jovem de dezoito anos de idade que dava concertos internacionais desde 1920. Mas o Dr. Voronoff e seus macacos foram o centro das atenções (Correio da Manhã, 13 jul 1928, p. 3).

60

Figura 4. “No dia da chegada do dr. Voronoff...” Careta. 21 jul 1928, p. 12

A fotografia publicada pela Careta brinca com a concentração de pessoas no cais “no dia da chegada do dr. Voronoff”, sugerindo que era o senador Frontin quem mobilizava toda aquela gente. Naquela ocasião, dentre as declarações dadas à imprensa, Voronoff informava que pretendia fazer, no Rio de Janeiro e em São Paulo, operações de enxertia não só em seres humanos como também em animais. Afinal, como ele próprio pontua: O vosso senhor embaixador em França, sr. Souza Dantas, sciente da minha partida para o Rio, recomendou-me, alegando que tal interessava sobremaneira o Brasil, de fazer também enxertos em animaes. Dois são os aspectos deste caso, porque a operação póde ser feita não somente no animal velho como também no de pouca edade. Em ambos, satisfactorios têm sido os resultados conseguidos [...] Torna-se imprenscindivel que eu conheça a qualidade ou raça dos animaes daqui (Correio da Manhã, 13 jul 1928, p. 3).

Explica as vantagens econômicas que seu método traria à indústria pecuária, dizendo poder aumentar em dez quilogramas o peso de cada animal enxertado e em setecentos e cinqüenta gramas o montante de lã por ele produzido. Ademais, estes animais teriam sua capacidade de fertilidade e reprodução significativamente aumentada. E fala brevemente sobre o assunto que concentrava suas atenções recentes:

61

– Se o meu methodo applicado a animaes novos deu bom resultado, observou o dr. Voronoff, porque não applical-o ás crianças de 8 a 10 annos, intelligentes, afim de augmentar os seus merecimentos? Pela enxertia de cordeiros obtive super-carneiros; quero criar uma raça de super-homens dotados de qualidade physicas e intellectuaes superior aos nossos. – A primeira mãe que me confiar o seu filho – escreverá talvez uma grande pagina na historia da humanidade (Diário Nacional, 13 jul 1928, p. 1).

Por fim, Voronoff especificou que trazia consigo dez macacos cinocéfalos, oito machos e duas fêmeas, pois contava poder operar ao menos uma mulher. Responde ainda às “indiscrições” dos jornalistas, dizendo que seu método de rejuvenescimento não constituía remédio afrodisíaco e que era um grande engano pensar que ele se voltava à renovação das aptidões amorosas de seus clientes, frisando que estes lhe procuravam, sobretudo, para restabelecer o vigor intelectual e a energia vital da juventude (Diário Nacional, 13 jul 1928, p. 1; Correio da Manhã, 13 jul 1928, p. 3). Terminada a coletiva, os jornalistas se apressaram em redigir matérias e reportagens sobre a chegada de Serge Voronoff no Brasil, que ocupariam as capas de alguns jornais do dia seguinte. Ainda nessa ocasião, Voronoff foi apresentado ao Dr. Madeira de Freitas71 e pôde tomar conhecimento da obra que havia enriquecido este médico brasileiro: o romance “Doutor Voronoff”, de sua autoria – ou quase isso, como veremos –, publicado em 1926 e relançado em 1928, com o anúncio da visita de Voronoff ao Rio de Janeiro.

1.2.

“A história antecipada” Antes de prosseguir com a narrativa sobre a estadia de Voronoff no Brasil, interessa

retroceder alguns anos. Era 1923 quando o famoso Mendes Fradique anunciou que começara a redigir seu primeiro romance: “Doutor Voronoff”, que veio a ser concluído em 1924. Dois anos depois a obra foi publicada e recebida como um verdadeiro sucesso de livraria (Gazeta de Noticias, 27 jan 1926, p. 2). De acordo com a Gazeta de Noticias, suas envolventes 467 páginas poderiam ser lidas “de um fôlego” pelo público em geral, com seu enredo fácil, sugestivo, capaz de tornar assuntos científicos interessantíssimos a qualquer leigo (Gazeta de Noticias, 19 jan 1926, p. 2). Mendes Fradique, o famoso humorista, cartunista e escritor carioca, era o pseudônimo do médico José Madeira de Freitas (1893-1944). Embora todos o soubessem, Madeira de 71

Que, junto de Belmiro Valverde, acompanharia Voronoff em praticamente todos os eventos que o franco-russo participaria, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

62

Freitas brincava com o público, referindo-se a seu pseudônimo como uma personalidade à parte. Se o médico aparece, mais adiante neste capítulo, sempre ao lado de Voronoff – literalmente, nas fotografias, e conceitualmente, nos artigos científicos – é o literato que aparece aqui, como autor de um livro de sátira humorística dirigida ao franco-russo. Há mais uma curiosidade relativa a este romance: nele, Mendes Fradique escreve sobre a tournée de Voronoff pela América do Sul – utilizando, aliás, estes termos – e, mais exatamente, sua passagem pelo Rio de Janeiro, com quatro, senão cinco anos de antecedência. Até então, ninguém imaginava uma possível visita do sábio eslavo – como Voronoff foi, muitas vezes, referido na imprensa – ao Brasil. Mendes Fradique narra-a, ficcionalmente, como um grande evento, que causou um enorme rebuliço na então capital federal. O autor escreve sobre a primeira cirurgia de “voronoffização” e o fato de ela ter sido realizada no Hospital Evangélico – como de fato veio a ocorrer – e narra os acalorados debates que o método Voronoff provocou no meio científico nacional, bem como na conversa miúda das pessoas comuns: [...] Os humoristas exploraram largamente o assumpto; no cartaz do theatro de revista o nome Voronoff apparecia com todas as letras, como efficiente chamariz de curiosidade pública. [...] Mesmo no seio das academias, onde a obra de Voronoff se conhecia de sobejo, surgiram elementos discidentes da legitimidade do processo de rejuvenescimento, julgado por elles attentatorio ao pudor e condemnavel ao senso da moral conservadora (Fradique, 1926: 321).

“A história antecipada”, assim descreve todas essas coincidências uma matéria do Diário da Noite (Diário da Noite, 24 jul 1928, p. 1). Conteúdo similar aparece na Gazeta de Noticias, quatro dias mais tarde: [...] Dir-se-ia que o grande sabio [Voronoff] veiu para confirmar, em todos os detalhes, as paginas fascinantes de Mendes Fradique. Seja como fôr, o caso demonstra que ha execpções para o alcance limitado que a sabedoria popular empresta á visão dos prophetas (Gazeta de Noticias, 28 jul 1928, p. 1).

A presença de Voronoff no Rio de Janeiro realmente “tomou as proporções dum grande acontecimento” (Fradique, 1926: 319), como veremos neste e no próximo capítulo. É mesmo surpreendente a forma como a ficção de Mendes Fradique se aproxima do que de fato veio a ocorrer. No entanto, Madeira de Freitas, na qualidade de médico e jornalista bem inserido no meio da produção cultural carioca, conhecedor dos círculos científicos e das instituições médicas de sua cidade, atento aos movimentos de Voronoff – que, naqueles anos começava a visitar uma série de países para demonstrar e implementar seu método –, poderia muito bem se apoiar em sua criatividade de escritor e “prever o futuro”, da forma como o fez.

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Este romance fez, vale reter, uma contribuição importante para a composição da figura de Voronoff no imaginário popular dos brasileiros. Guardemos seu conteúdo narrativo para o terceiro capítulo, pois que ele se liga às demais fontes ali abordadas.

1.3.

Controvérsia nas Jornadas Médicas Enquanto Voronoff procedia com as cordialidades seguidas à sua chegada ao Rio de

Janeiro, sua recepção no meio científico brasileiro seria motivo de polêmica. Antes mesmo de sua chegada, a visita de Voronoff ao Brasil já era criticada. O artigo publicado no jornal A. B. C., por exemplo, defende que, depois de ter sua carreira fragilizada na França, ao longo da década de 1920, Voronoff começou a procurar publicidade em outros países, onde ainda era celebrado, e assim teria procedido quando decidiu partir para o Brasil (A.B.C.,7 jul 1928, p. 7). A princípio, uma vez na então capital federal, o célebre cirurgião deveria ser recebido pela Academia de Medicina brasileira e fazer suas demonstrações no Hospital de Pronto Socorro do Rio de Janeiro, como estava previsto pelo programa oficial das Jornadas Médicas. No entanto, nas vésperas da chegada de Voronoff à cidade, a Academia de Medicina deliberou não o receber, e o Pronto Socorro cancelou a acolhida que seria dada, em suas dependências, ao médico franco-russo, para que este realizasse suas demonstrações. O Hospital Evangélico amparou Voronoff neste momento, comprometendo-se a recebê-lo oficialmente, mediante a recusa do Pronto Socorro. Mas não foi só isso. Assim que Voronoff desembarcou no Rio de Janeiro, ergueu-se, ao redor de sua figura, uma ampla controvérsia na classe médica carioca e nacional, pois parte dela questionava a legitimidade científica de suas teorias e de sua própria presença nas JsMs. O Diário da Noite descreve e interpreta: [...] partindo da França, ecoou aqui o grito de guerra ao vitalizador [...] Transformou-se tudo. Voronoff não será recebido na Academia de Medicina, o Prompto Socorro trancou-lhe as portas da sua sala de operações [...] E o Mephistopheles da biologia moderna ficou entregue á esquerda scientifica. [...] Há um verdadeiro scisma no pacato ambiente medico nacional. Pouco affeitos á turbulencia das grandes batalhas scientificas que, de quando em quando, extremecem os centros conductores da cultura mundial em homenagem a uma innovação de alto merito, a presença de Voronoff veio alarmar a tranquilidade das nossas igrejinhas (Diário da Noite. 16 jul 1928, p. 2).

Este “grito de guerra” contra Voronoff, vindo da França, seria uma suposta carta do professor E. Vaquez, conhecido cardiologista de Paris, dirigida a Carlos Chagas – nas palavras do Diário Carioca, “a mais alta figura na clínica nacional” – recomendando-o

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contrariamente a Voronoff. Segundo o mesmo jornal, o conteúdo da carta insistiria que a ciência oficial da França não reconhecia legitimidade científica no trabalho de Voronoff e o descreveria como um ridicularizador da cirurgia moderna (Diário Carioca, 17 jul 1928, p. 1). No dia seguinte, Belmiro Valverde, abordado pelo Diário Carioca, resumiu tudo a um boato, declarando que não houve carta alguma, mas reconhece em Vaquez o autor da campanha contra Voronoff no Brasil. Segundo Valverde, este era um grande adversário de Voronoff, conhecido por insuflar ideias contra seu método. O secretário das JsMs ainda avança em suas opiniões: afirma que o mensageiro dessas informações depreciativas não teria sido nenhum postal, mas sim o Dr. Carlos Chagas (Diário Carioca, 18 jul 1928, p. 1; Diário Nacional, 19 jul 1928, p. 3). Valverde descreve-o da seguinte forma: “Aquelle hygienista foi o portador dos odios, dos rancores, das mesquinharias de alguns medicos europeus” (Diário Carioca, 18 jul 1928, p. 1). Acusa-o, ainda, de ter conseguido, nesse boicote ao franco-russo, a adesão do Hospital de Pronto Socorro. Carlos Chagas recusou-se a dar quaisquer declarações quando procurado pela imprensa (Diário Carioca, 18 jul 1928, p. 1).

1.4.

Uma visita ao Jardim Zoológico e a abertura das JsMs No dia 13 de julho Voronoff visitou o Jardim Zoológico do Rio de Janeiro,

acompanhado por outros médicos, e pode observar demoradamente a coleção de macacos desta instituição. Os símios que trouxera consigo, a bordo do Alcântara, foram confiados aos cuidados do Jardim Zoológico, que não demorou a anunciar que “os macacos do Dr. Voronoff” achavam-se em exposição aberta ao público (A Noite, 13 jul 1928, pp. 5 e 8). O médico-cirurgião ainda dedicaria algum tempo de sua visita ao Brasil à avaliação de algumas espécies de macacos nativos, para verificar se alguma delas serviria de material para suas operações. Na manhã do dia 15 de julho foi realizada, no Teatro Municipal, a sessão solene que inaugurou oficialmente as Jornadas Médicas do Rio de Janeiro. Presidida pelo então ministro da Fazenda, além do diretor e do secretário geral da comissão organizadora das JsMs, Miguel Couto e Belmiro Valverde, a mesa foi composta pelos representantes das delegações estrangeiras. Dentre eles, Serge Voronoff (Gazeta de Notícias, 15 jul 1928, p. 2). Belmiro Valverde, idealizador do evento, fez um discurso saudando os participantes das JsMs e ressaltando a honra que era recebê-los. Miguel Couto saudou Belmiro Valverde, cumprimentando-lhe pelo seu sonho que viera a se concretizar: ele havia logrado realizar no Brasil as primeiras Jornadas Médicas. Saudou, também, todos os hóspedes das Jornadas, vindos da Europa, da América do Sul e de vários estados brasileiros (Correio da Manhã, 17

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jul 1928, p.3). Este evento era, afinal, uma edição brasileira das JsMs, que vinham se realizando na Europa, reunindo delegações de diversos países para discutir as novidades e os avanços da medicina em perspectiva transnacional. Ainda falaram, brevemente, Voronoff e os demais representantes da mesa, delegados da França, da Bélgica e da Argentina, representantes da “Sociedade de Sciencias” de Lisboa e da “Revista Medica” de Paris, fazendo seus agradecimentos (Correio da Manhã, 17 jul 1928, p. 3). A assistência, absolutamente repleta, contava com figuras de destaque como o presidente da República, Washington Luís, diversos ministros e representantes de diferentes sociedades científicas (Correio da Manhã, 17 jul 1928, p. 3). A programação da tarde contou com a inauguração da exposição lúdico-artística do “Salão das Jornadas”, no saguão da Policlínica, na Avenida Rio Branco. Encontravam-se ali reunidos os trabalhos artísticos de autoria dos próprios médicos membros das Jornadas. Mendes Fradique contribuiu com uma série de caricaturas e charges, que ganhou uma sessão especial (Gazeta de Noticias, 15 jul 1928, p. 2). O programa oficial do dia terminou com um banquete presidido pelo ministro das Relações Exteriores, Dr. Octavio Mangabeira, no Copacabana Palace-Hotel, onde Voronoff estava hospedado. Neste banquete, deveria ser orador oficial, em nome das JsMs, o professor Fernando Magalhães, diretor da Sociedade de Medicina e Cirurgia (SMC) do Rio de Janeiro. No entanto, sua presença havia sido cancelada.

1.5.

Uma conturbada sessão na SMC do Rio de Janeiro Em 17 de julho de 1928 os jornais noticiavam um escândalo provocado no seio da

comunidade médica carioca. O caso se passou numa sessão da SMC do Rio de Janeiro, quando o médico Figueiredo Vasconcellos tomou a palavra para propor que fosse formalizado um convite ao professor Voronoff para que este fizesse uma conferência naquela instituição. O presidente da Sociedade, o famoso ginecologista Fernando Magalhães, intentou vetar a proposta, solidário à Faculdade de Medicina e à Academia de Medicina, que haviam deliberado por não receber oficialmente o médico franco-russo. O Dr. Vasconcellos confrontou tal posição, alegando que o presidente não poderia tomar uma decisão sem antes submeter a questão à assembléia. Esta, uma vez consultada, aprovou a proposta de Figueiredo Vasconcellos. Julgando-se gravemente desacatado, Fernando Magalhães renunciou a presidência da SMC do Rio de Janeiro.

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Nesta ocasião, desentenderam-se os Drs. Figueiredo Vasconcellos e Fernando Magalhães, dando início a uma desavença tornada pública pelo jornal Diário Carioca. O recém-nascido diário oferecia ao leitor a possibilidade de acompanhar de perto esse embate, publicando uma sequência de cartas e declarações destes médicos a respeito do caso, que se apoiavam em uma espinhosa troca de acusações e difamações mútuas, que não cessaria até o início de agosto daquele ano72. Em linhas gerais, Figueiredo Vasconcellos insistia que a oposição que Magalhães fazia a Voronoff não tinha fundamento, pois o próprio Magalhães já havia feito enxertos glandulares na Pró-Matre, onde trabalhava (Diário Carioca, 25 jul 1928, p. 6). Magalhães nega, dizendo que, de fato, assistiu às tais operações em sua clínica, mas que as iniciativas nunca partiram dele e que, pelo contrário, sempre expressou suas críticas e ressalvas. O exdiretor da SMC carioca salienta que Vasconcellos fazia acusações gratuitas a Carlos Chagas, associando-o, sem fundamento algum, à autoria da “campanha anti-Voronoff”73; e que o fazia obedecendo ao único objetivo que tinha em sua carreira: derrubar Carlos Chagas. Este, quando abordado pela imprensa, preveniu-se novamente de dar quaisquer declarações (Diário Carioca, 25 jul 1928, p. 6). Não obstante, a SMC do Rio de Janeiro recebeu Voronoff em sessão especial, em 21 de julho. A Sociedade de Ginecologia e d‟Obstetrícia do Brasil pôs-se ao lado de Magalhães, ao deliberar não comparecer à reunião conjunta com a SMC carioca, que deveria ouvir os médicos estrangeiros presentes na capital.

1.6.

A conferência na Academia Nacional de Medicina do Rio de Janeiro No dia 17 de julho foi feita a primeira conferência de Voronoff, na Academia

Nacional de Medicina, realizada no Edifício Syllogeu, na Lapa. Não se sabe se intencionalmente ou não, o local designado para este evento foi bastante inadequado. Segundo a descrição do Correio da Manhã, era uma sala “de dimensões acanhadas”, com muitas janelas voltadas para a praia, de um lado, e vulnerável a todo o barulho da rua, do outro, o que tornava a audição precária e deficiente. A grande assistência, que desejava ouvir Voronoff,

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Curiosa e coincidentemente, Figueiredo Magalhães foi o nome do cirurgião que se envolveu num caso similar de interminável troca de acusações e desavenças públicas com outro médico, Monat, um colega da Academia Imperial de Medicina, “a associação dos mais renomados médicos da Corte” depois de ter sua competência como cirurgião questionada por este seu rival, na imprensa carioca, em 1888; este caso chegou mesmo a ser tema de um “carro de crítica” da Sociedade carnavalesca Clube dos Democráticos, que o abordou em tom piadesco (Sampaio, 2005: 31-38). 73 Sua teoria era a mesma de Belmiro Valverde, mencionada anteriormente.

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espremeu-se como pôde, abafadamente, naquela sala, que claramente não era espaçosa o bastante para comportá-la (Correio da Manhã, 17 jul 1928, p. 3). Muitos viam, pela primeira e única vez, o célebre Voronoff. Estava ali o homem, em seus quase dois metros de altura, palestrando em francês. Não raro, os jornais o descrevem como uma figura marcadamente carismática, cordial, bastante eloquente e hábil no trato com o público (A Noite,12 jul 1928, p. 1; Diário Nacional, 13 jul 1928, p. 1; Correio Paulistano, 19jul 1928, p. 9 e 24 jul 1928, p. 8). O leitor do Correio Paulistano podia informar-se por um relato detalhado desta conferência. O tema privilegiado na fala de Voronoff foi o da enxertia glandular em animais. O médico expôs em detalhe as vantagens de seu processo para a indústria pecuária e o êxito das operações realizadas nos carneiros na Argélia, encomendadas pelo governo francês, e também nos rebanhos bovinos do Rio do Prata, pelo governo argentino (Correio Paulistano, 19 jul 1928, p. 9). Voronoff discorreu sobre o modo como seus resultados teriam ultrapassado os benefícios inicialmente esperados, pois, nestes animais, não só sua virilidade fecunda fora aumentada, como também sua produção de lã. A conferência ia sendo ilustrada com projeções fotográficas e cinematográficas, controladas por seu irmão, Alexandre Voronoff74. Depois de expor o caso dos animais, passou a falar das operações de enxertia em seres humanos. Neste caso, Voronoff fez questão de afastar o foco da esfera sexual, frisando os efeitos dos enxertos glandulares sobre as faculdades intelectuais, o vigor e a saúde dos operados, e o fato de que sua cirurgia de enxertia não constituía nenhum remédio afrodisíaco para a renovação das aptidões amorosas de seus clientes (Correio Paulistano, 19 jul 1928, p. 9). Falou, ainda, a respeito da complexidade da aplicação de seu método sobre as mulheres. Explicou o médico que o caso feminino exigia enxertos conjugados e que, na mesma operação, eram feitas intervenções cirúrgicas de enxertia nas glândulas ovárias, tireóide e hipofisárias (Correio Paulistano, 19 jul 1928, p. 9). Sobre as espécies simiescas do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, que pudera avaliar brevemente, comentou que eram animais muito interessantes e inteligentes, mas, a princípio, impróprios para os fins de enxertia (Correio Paulistano, 19 jul 1928, p. 9). Encerrou sua fala dissertando sobre suas pretensões de criar uma nova raça de super-homens, dotados de qualidades físicas e intelectuais superiores. Explicou o médico que pretendia testar essa

74

Que acompanhou Serge Voronoff em seu tour pela América do Sul, para auxiliá-lo, tanto nas operações quanto nas projeções cinematográficas apresentadas nas conferências.

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hipótese enxertando crianças “superdotadas”, para produzir “gênios” (Correio da Manhã, 17 jul 1928, p. 3).

1.7.

A operação de Feliciano Ferreira de Moraes Estava anunciada para as nove horas do dia 18 de julho a operação do coronel

Feliciano Ferreira de Moraes, no Hospital Evangélico. Houve nesta instituição uma enorme movimentação naquela manhã. Pouco a pouco chegavam automóveis, conduzindo uma porção de membros das JsMs, médicos e veterinários. Vinham também estudantes, jornalistas, fotógrafos e curiosos, todos para assistir à operação de Feliciano. A reportagem d‟O Paiz atenta para a presença de médicos que vinham do interior de São Paulo, Minas Gerais e outros estados (O Paiz, 19 jul 1928, p. 1). O Diário da Noite estima que compareceram ao Hospital, nesta ocasião, cerca de duzentas pessoas. O espaço reservado para a operação foi a sala Dr. Castro Araújo. Este recinto tinha algumas paredes envidraçadas, em torno das quais foi erguida, do lado externo, uma arquibancada de madeira, que comportava cerca de sessenta ou setenta pessoas, para que o público – composto por profissionais das ciências médicas que não estavam inscritos como membros das JsMs, jornalistas e curiosos – pudesse acompanhar dali a operação de “voronoffização” de Feliciano (Diário da Noite, 18 jul 1928, p. 8). Os membros das JsMs, alguns jornalistas e fotógrafos tiveram lugar garantido dentro da sala de operações. Segundo a reportagem d‟O Paiz, dentre o que se podia ouvir das conversas na arquibancada, muitos confessavam que só conheciam o assunto da operação de enxertia glandular a partir do que vinha sendo publicado na imprensa desde a chegada de Voronoff (O Paiz, 19 jul 1928, p. 1). Às nove horas em ponto Voronoff chegou, sendo ovacionado pelo público da arquibancada, manifestação à qual o cientista respondeu com um sorriso e um aceno de agradecimento. Enquanto verificava os detalhes prévios da operação e procedia com a assepsia dos ferros cirúrgicos, o macaco era preparado na sala contígua. Este procedimento não pôde ser assistido pelo público do palanque externo, mas seria, mais tarde, apresentado pelos jornais, em tom de espetáculo: [...] o primeiro “half-time” da operação [...] era um espetaculo emocionante: a luta do homem com o macaco. O cynocephalo defendia-se dentro da sua pequena jaula com uma agilidade extraordinaria, para não se deixar prender no interior de uma caixa de metal, onde era preciso que ele cahisse afim de ser anesthesiado [...] Depois de uma luta de 15 minutos, verificou-se que era impossivel fazel-o atravessar a porta para entrar na caixa da anesthesia.

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A luta assumiu então outro aspecto. O dr. Alexandre Voronoff mandou buscar 30 tubos de clorethyl e nada menos de 5 medicos inclusive o dr. Belmiro Valverde, o dr. F. Coimbra, o dr. Alceu de Menezes e o tratador dos macacos, o preto da Guiné franceza, Yero, entraram a esguichar o ether no focinho do animal. Esse combate prolongou-se por mais dez minutos. Afinal, tonto, cambaleando, as narinas esbranquecidas de ether, o cynocephalo deixou-se cahir pesadamente na jaula (Diário da Noite, 18 jul 1928, p. 8).

O macaco, finalmente vencido, foi cloroformizado pelo Dr. Alexandre Voronoff e amarrado à mesa cirúrgica. Observe-se que ao operar, Voronoff contava sempre com a assistência de uma equipe de médicos, enfermeiros ou veterinários. Quanto ao tratador de macacos, supõe-se que este o acompanhasse nas cirurgias realizadas entre símios e humanos. Um “preto da Guiné franceza”: é alarmante o modo como Yero é apresentado, sob um vocabulário do tempo de cativeiro75, a quarenta anos da abolição da escravatura. Conseguiram lugar dentro da sala de operações, correspondentes d‟O Jornal, d‟O Paiz, d‟A Noite, do Diário da Noite e da Gazeta de Notícias, a saber. Consequentemente, a cobertura desses jornais sobre o evento apresenta detalhes mais apurados. O Jornal, por exemplo, reporta um trecho do que Voronoff teria dito ao explicar à assistência o motivo da preferência pelo cinocéfalo para sua operação. Dizia ele que o principal critério na escolha da espécie utilizada era a compatibilidade sanguínea, e os que atendiam a este requisito eram os símios antropóides e os cinocéfalos. No entanto, Voronoff conformara-se em utilizar apenas cinocéfalos: os gorilas eram excluídos por seu porte gigantesco e por seu aspecto “pouco dócil à technica operatoria”; os orangotangos, porque eram praticamente inacessíveis, “pois vivem perdidos para o recesso da selva asiatica”; e os chimpanzés, por sua “precaria resistencia ao captiveiro” (O Jornal, 19 jul 1928, p. 1). Depois de anestesiado na sala vizinha, foi levado à sala de operações o Sr. Feliciano. Informam-nos o Diário da Noite e O Jornal que este senhor, de sessenta e dois anos, era um engenheiro civil, fazendeiro e avicultor, pai de onze filhos, além de “sobrinho do barão de Duas Barras, primo do deputado Dr. Raul Veiga e membro da importante família Moraes, muito conhecida na sociedade fluminense, sobretudo no antigo regimen” (Diário da Noite, 18 jul 1928, p. 8; O Jornal, 19 jul 1928, p. 1). Enquanto aguardava os preparativos da cirurgia, Feliciano punha-se a “pilheriar76 com os medicos e jornalistas que o cercavam” (O Paiz, 19 jul 1928, p. 1). A reportagem d‟O Paiz (19 jul 1928, pp. 1 e 3) atenta aos detalhes técnicos da cirurgia: Depois de acautelar-se, como os demais operadores, com a “toallete”, que

75 76

Veja-se G. Freyre, 2012. Dizer pilhérias, brincar. Fazer gozação, algazarra, zombar.

70

compreendia “os enluvamentos das mãos, a sepsia dos braços, mascaramento a gaze” (A Manhã, 19 jul 1928, p. 7), Voronoff deu início à cirurgia, debruçando-se sobre o macaco, para fazer uma incisão com o bisturi no saco escrotal do animal e retirar do tecido intersticial a glândula sexual. Esta glândula foi seccionada em duas partes. No homem, que se encontrava em outra mesa cirúrgica, a poucos metros do macaco, foi feito o corte da túnica vaginal de seu testículo, seguido da escarificação da região que receberia o enxerto. A glândula do macaco foi novamente seccionada em dois fragmentos e um deles foi costurado à superfície receptora do órgão humano; esse processo foi repetido com o segundo fragmento, sobre a parte diametralmente oposta do testículo. Todo o processo foi repetido no outro membro, pois o donatário fez questão de ser duplamente enxertado.

Figura 5. Voronoff operando no Hospital Evangélico. Fotografia extraída da revista Fon-Fon, 28 jul 1928, p. 43. (Imagem utilizada previamente por Ethel Cuperschmid, em publicação na Revista de História da Biblioteca Nacional, n. 35, ago de 2008.) À esquerda, ao fundo, um dos lados da parede envidraçada através da qual o público de “curiosos” pôde acompanhar a demonstração. À direita, à frente, fitando diretamente o fotógrafo, Voronoff. À direita do franco-russo, a julgar pela fisionomia, Madeira de Freitas.

Terminada a operação, que durou cerca de uma hora, o intendente Oliveira Menezes fez um discurso, saudando o Dr. Voronoff em nome do Hospital Evangélico e do Conselho Municipal. Voronoff posou para fotografias e foi interpelado por médicos e jornalistas (Correio da Manhã, 19 jul 1928, p. 1; O Jornal, 19 jul 1928, p. 3).

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Vale lembrar a relevância e a potência das fotografias nos veículos jornalísticos, num período ainda muito próximo daquele no qual [...] o deslumbramento visual com a fotografia, assim como a confiabilidade e a aparência de “evidência” que adquiria qualquer cena fotografada, foi a regra. Assistiuse, pois, na virada do século, a uma verdadeira corrida por parte dos jornais, das revistas ilustradas e da nascente “indústria” publicitária em direção à imagem técnica, no Brasil (Sussekind, 2006: 35-36).

Momentos depois da operação, em discurso dirigido a Voronoff e aos demais médicos presentes, reunidos na diretoria do hospital, B. Valverde lamenta o fato da classe médica brasileira, pela primeira vez, ter quebrado a “proverbial linha de gentileza com que sempre recebeu os scientistas estrangeiros que nos visitam”, e deixa seus agradecimentos à presteza do acolhimento oferecido pelo Hospital Evangélico (O Jornal, 19 jul 1928, p. 3). Entre outras declarações à imprensa, Voronoff frisa sua satisfação com a “alta compreensão dos medicos brasileiros, que lhe aceitam a obra como um progresso da sciencia contemporanea” (O Jornal, 19 jul 1928, p. 3). No período da tarde Voronoff esteve no Itamaraty, onde foi recebido pelo Sr. ministro das relações exteriores, Octavio Mangabeira (Correio Paulistano, 19 jul 1928, p. 9). Assim, o público leitor desses jornais pôde informar-se a respeito da primeira operação do Dr. Voronoff no Brasil. Marie-ÈveThéranty nos chama a atenção para a aura de legitimidade e valorização que envolvia esse tipo de escrita jornalística, que parte da perspectiva do aventurado repórter – uma novidade do fim do século XIX –, este informante que sublinha sua presença como observador, oferecendo ao leitor, em primeira mão, o ponto de vista de quem pôde acompanhar de perto “a coisa vista” (Théranty, 2007: 23). Segundo a historiadora, é no século XIX que surge, na imprensa francesa, a figura do jornalista, substituindo o escrivão, que atua como o grande repórter, o interventor e o entrevistador. Essa foi uma mudança de paradigma que impactou profundamente a imprensa da época, pois, nesse contexto, “o jornal já não deve mais só contar, mas testemunhar, acima de tudo” (Théranty, 2007: 23). Há de se observar, por fim, a seguinte caricatura, assinada por Mendes Fradique, que acompanha a longa reportagem d‟O Jornal sobre a operação de Feliciano de Moraes:

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Figura 6. Caricatura sem título, de Mendes Fradique. O Jornal, 19 jul 1928, p. 3.

Vemos, de um lado, o Dr. Voronoff manipulando ferros cirúrgicos, de luvas e avental, com uma expressão serena; logo acima, o perfil do rosto branco do Dr. Castro Araujo. De outro, Voronoff na mesma situação, porém agora com uma expressão corporal menos relaxada, e com o rosto todo coberto pela gaze da touca e da máscara cirúrgica, que lhe deixava exposta somente a região dos olhos; acima de sua figura vai o rosto negro de Yero, de perfil. Abaixo, a legenda: “duas attitudes do prof. Voronoff, quando operava, ao lado do dr. Castro Araujo, e Yero, o guarda negro dos macacos daquele scientista”. Mendes Fradique parece zombar do exagero de Voronoff na prevenção higiênica de suas vestes cirúrgicas, como se o médico-cirugião temesse grandemente contaminar-se, ao operar ao lado de Yero. Outras considerações racistas acerca deste rapaz seriam feitas pelo próprio O Jornal e pelo A Noite, como veremos adiante.

1.8.

A “voronoffização” de um carneiro Em 20 de julho de 1928, seria a vez de um animal. No Posto Experimental do Serviço

de Indústria Pastoril, perante uma audiência de “médicos, veterinários, jornalistas e curiosos”, Voronoff operou um carneiro de oito meses, enxertando-lhe fragmentos da glândula sexual de outro animal da mesma espécie, de três anos e meio de idade. Neste caso, o intuito não era o

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rejuvenescimento, mas a antecipação da puberdade do animal. Segundo Voronoff, além do aumento da produção de lã, o enxerto, nesses casos, era capaz de tornar “mais desenvolvida a faculdade procriadora” e garantir melhor saúde e maior desenvolvimento às próximas gerações (A Noite, 20 jul 1928, p. 2). Enquanto a equipe tosquiava e higienizava o animal “doador”, na região em que seria feita a intervenção cirúrgica, Voronoff escolhia o animal que receberia o enxerto, entre os que lhe foram dispostos pelo Posto Experimental. Este, igualmente tosquiado e higienizado, foi posto sobre uma mesa, ao lado do primeiro. Enquanto anestesia ambos com novocaína, Voronoff declara que se opõe a qualquer sofrimento desnecessário causado aos animais e, além disso, que o emprego da anestesia era um bom meio de ser bem recebido pelas sociedades protetoras dos animais. A forma como A Noite floreia sua reportagem parece brincar com a seriedade médica em relação à higiene e à assepsia cirúrgica, e com a própria autoridade de Voronoff: Rondava o ar uma nuvem espessa de moscas inquietas. De repente, quando o Dr. Voronoff, erguendo o indicador enluvado cominava na eloquencia para demonstrar as vantagens desse enxerto, uma das moscas, desgarrando do bando irrequieto, foi posar-lhe no nariz. O professor russo parou um instante, mirou, com os cantos dos olhos, o insecto impertinente e, depois, erguendo a dextra, enxotou-o, para retomar o fio de seu discurso. – Na operação, disse o professor Voronoff – a assepsia deve ser muito rigorosa, para evitar, mesmo, a propagação de microbios! (A Noite, 20 jul 1928, p. 2).

A operação propriamente dita se inicia com a abertura da túnica revestidora do testículo do carneiro mais velho e a ablação de sua glândula. Na sequência, Voronoff passou a trabalhar no carneiro mais novo, seccionando-lhe a camada externa do testículo, em seguida a albugínea, até atingir a túnica vaginal. Da glândula do animal adulto tirou um segmento esguio, cujas faces foram arranhadas por uma agulha cirúrgica, visando provocar a afluência de sangue na região. O médico-cirurgião aproveitou a ocasião para explicar ao público o momento crucial da enxertia, qual seja, provocar intencionalmente uma inflamação no local, a partir da irritação dos tecidos, para que o fragmento glandular enxertado sobrevivesse, ligando-se vascularmente ao corpo receptor (Correio da Manhã, 21jul 1928, p. 3). Voronoff procedeu do mesmo modo no carneiro beneficiário, arranhando com uma agulha a região que receberia o enxerto, para provocar ali a mesma afluência de sangue. Sobre essa ferida foi posto e costurado o fragmento da glândula do outro animal, fragmento que media cerca de um centímetro de largura e tinha o mesmo comprimento da glândula do animal mais novo. Este procedimento foi repetido mais três vezes, cada testículo recebendo dois enxertos (Correio da Manhã, 21 e 29 jul 1928, pp. 3 e 9).

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Terminada a operação, Voronoff almoçou na companhia do Dr. Parreiras Horta, o já referido diretor do Serviço de Indústria Pastoril do Rio de Janeiro, e seus auxiliares (Correio da Manhã, 21 jul 1928, p. 3).

1.9.

A operação da misteriosa Mme. Lima Estava marcada, de forma nebulosa e pouco divulgada ao público, para às treze horas

desse mesmo dia, a operação de uma senhora, no Hospital Evangélico. Ainda que a expectativa pública em torno da operação de “voronoffização” de uma mulher fosse grande, o número de médicos, jornalistas e curiosos presentes nesta ocasião foi bastante reduzido, em razão de uma chuva forte que se estendeu pelo dia todo. Os poucos que compareceram, entretanto, chegaram com bastante antecedência (A Manhã, 22 jul 1928, p. 1). Os funcionários do Hospital recusaram-se a revelar qualquer coisa sobre a identidade da paciente. Mas alguns jornalistas não deixaram de fazer tudo o que estava ao seu alcance para extrair alguma informação sobre a dama que seria “voronoffizada”. Um repórter do Correio da Manhã utilizou-se de artifícios engenhosos, em uma conversa aparentemente despretensiosa com uma enfermeira, a respeito do jogo do bicho. Conseguiu com que ela lhe revelasse, inocente e desavisadamente, o número do quarto da paciente, por meio do qual ele descobriu o nome com que a paciente do Dr. Voronoff havia dado entrada: Mme. Lima, além do fato de ela ter cabelos curtos (Correio da Manhã, 22 jul 1928, p. 3). Segundo a mesma reportagem, Serge Voronoff, ao chegar, foi recebido pelos Drs. Castro Araújo e Coimbra, respectivamente diretor e secretário do Hospital Evangélico, e logo se pôs a conferir os preparativos da cirurgia. Ao avaliar os dados sobre as condições receptivas da operanda, o médico-cirurgião verificou que faltava um exame, e inteirou-se de que, de fato, ele não havia sido feito. A operação não podia prosseguir, sendo adiada para o início de agosto, quando o transatlântico de Voronoff fizesse uma parada no Rio de Janeiro, vindo da Argentina (Correio da Manhã, 22 jul 1928, p. 3). O Correio da Manhã, na reportagem que noticia o ocorrido, lembra o leitor sobre a “finalidade muito mais clínica” que a “voronoffização” feminina assumia, afirmando que esta não tinha o intuito de restabelecer a fertilidade nas senhoras, mas que era empregada, antes, para regularizar desordens e restabelecer o equilíbrio das funções orgânicas, conferindo às operadas um “estado geral sereno”, num aproveitamento harmônico de suas energias, traduzido na forma de rejuvenescimento do corpo (Correio da Manhã, 22 jul 1928, p. 3). Conforme previsto pelo itinerário de Voronoff, no começo da tarde, ele foi recebido, em audiência, pelo então presidente da República, Washington Luís (Correio Paulistano, 21

75

jul 1928, p. 2). Ainda na tarde do dia 21, às dezesseis horas e trinta minutos, teve início a conferência de Voronoff na SMC do Rio de Janeiro.

1.10. A conferência na SMC do Rio de Janeiro e a partida a São Paulo Depois de introduzido pelo Dr. Estellyta Lins, Voronoff abriu sua palestra dissertando sobre o ceticismo e a prevenção que encontrou, tantas vezes, entre seus colegas, em relação ao seu método. Talvez o franco-russo tentasse responder ao dito boicote lançado contra ele por certos círculos médicos do Rio de Janeiro, diga-se, dentro da própria SMC. Mostrava reconhecer que o enxerto era uma questão antiga na medicina, mas pontuava que nenhum outro profissional havia chegado a conclusões como as suas, que inauguraram o uso do enxerto como “meio de aperfeiçoamento”. Defendeu o próprio vanguardismo, especificando o aspecto diferencial do seu método, qual seja, a inflamação intencional e controlada que provoca no local que receberia a glândula, para que esta fosse irrigada pela corrente sanguínea (Diário Carioca, 22 jul 1928, p. 2). Referiu-se, finalmente, às experiências feitas na estação pastoril da Argélia e em outras localidades, em que teve oportunidade de praticar seus enxertos em rebanhos, a convite de instituições governamentais. Encontravam-se na assistência dessa conferência, aliás, entre outras autoridades, o embaixador da França e representantes do governo nacional (Correio Paulistano, 22 jul 1928, p. 7). Por fim, na noite do dia 21, Voronoff partiu para São Paulo, pelo comboio de luxo da Central do Brasil, junto de seu irmão, Alexandre Voronoff, e dos Drs. Belmiro Valverde, Madeira de Freitas, Estellyta Lins e Castro Araújo. O jornal A Manhã reporta a “curiosa estatística” feita por um funcionário da estação: “nunca a Central vendeu tantas passagens para S. Paulo, a gente de idade tanto ou quanto avançada” (A Manhã, 22 jul 1928, p. 1). Enquanto esteve no Rio de Janeiro ou em São Paulo, Voronoff recebeu uma série de cartas e telegramas de senhores que se propunham a pagar fortunas para uma operação de enxertia. Alguns tentaram abordá-lo pessoalmente, inclusive. Mas a resposta de Voronoff era a mesma para todos: ele não viera ao Brasil para fazer cirurgias particulares, pelo contrário, suas intervenções praticadas nesta viagem, todas gratuitas, tinham fins demonstrativos e pedagógicos para a classe médica e veterinária nacional. Recomendava-lhes, portanto, que se consultassem com os médicos brasileiros que vinham empregando seu método cirúrgico em âmbito nacional. Ademais, a visita de Voronoff a S. Paulo seria voltada à demonstração das

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possibilidades econômicas do seu método aplicado à pecuária; não seria operado ali nenhum ser humano77 (Diário Nacional, 24 jul 1928. p. 8)78.

2.

Voronoff em São Paulo Às nove horas da manhã do dia 22 de julho, o “ilustre visitante” foi recebido na

estação Norte por um grande número de médicos, entre eles, o diretor da Faculdade de Medicina, membros da congregação desse estabelecimento, representantes da SMC de São Paulo, o diretor geral do Serviço Sanitário e, ainda, afetuosos compatriotas, membros da colônia russa de São Paulo. Estiveram ali também outros médicos, jornalistas e cidadãos comuns. Segundo o Diário Nacional, era possível notar na capital, naquele domingo, um movimento de curiosidade que não se observava nos dias comuns (Diário Nacional, 24 jul 1928, p. 1).

2.1.

Algumas visitas e uma conferência na Associação das Classes Laboriosas Em seu primeiro dia na capital paulista, Voronoff foi recebido em algumas

instituições. O franco-russo compareceu ao Posto Zootécnico de São Paulo, onde pôde avaliar o estado do touro que seria por ele operado no dia seguinte. Fez uma visita demorada ao Instituto Butantã, onde foi recebido pelo diretor, Dr. Afrânio do Amaral, e por todo corpo de médicos e assistentes, podendo percorrer laboratórios, serpentários e outras dependências, conhecendo assim, brevemente, o trabalho do Instituto, pelo qual Voronoff se mostrou bastante entusiasmado. Por fim, visitou brevemente as instalações da Companhia Armour do Brasil, o grande matadouro e frigorífico da Vila Anastácio79. Nesse mesmo dia, às vinte e uma horas, Voronoff fez uma conferência popular na Associação das Classes Laboriosas. Apesar de pouco anunciada, a apresentação foi concorridíssima (Diário Nacional, 24 jul 1928, p 1).

77

Há uma reportagem do Diário Nacional que sugere que Voronoff tenha se comprometido a operar um “cavalheiro de nacionalidade síria” em São Paulo (Diário Nacional, 22 jul 1928, p. 1). No entanto, nenhuma sugestão semelhante foi encontrada nos outros jornais. 78 No levantamento de fontes para esta pesquisa, aliás, foi possível notar que os jornais paulistanos, se comparados aos cariocas, registram um número expressivo de matérias que tratam dos impactos trazidos por Voronoff à criação animal. 79 O estabelecimento, onde trabalhava boa parte dos imigrantes daquela região de São Paulo, era uma franquia bem-sucedida do famoso matadouro Armour do Rio Grande do Sul. O Armour fez parte das Cinco Grandes Companhias de carne de Chicago – sendo as demais a Swift, a Wilson, a Morris e a Cudahy – que, no final do século XIX, se expandiram para diversos países, dentre eles o Brasil (Veja-se os trabalhos de M. Castro, 2014, e de J. Dias, 2009).

77

Voronoff, logo que tomou a palavra, alertou que pouparia o público dos detalhes técnicos de seu método, que seriam deixados para a próxima conferência. O franco-russo dissertou sobre a função orgânica das glândulas e a revolução que a endocrinologia havia operado na medicina, a partir da ideia que os órgãos não funcionam por si só, como se acreditava até duas décadas atrás, mas que a ação dos órgãos dependia do comando de certas glândulas – como a tireoide, a paratireoide, a pituitária, as suprarrenais e a genital –, comando este veiculado pelas substâncias por elas excretadas (Correio Paulistano, 24 jul 1928, p. 7; Diário Nacional, 24 jul 1928, p 1). Procurou embasar este argumento, discorrendo sobre os efeitos que as deficiências ou excessos dessas substâncias traziam ao organismo, apresentando, em projeções fotográficas, casos de nanismo, gigantismo, idiotismo, dentre outros, que, segundo ele, poderiam ser revertidos com intervenções médicas sobre as glândulas desses indivíduos. Mas centrou suas explicações na relação entre a atividade das glândulas sexuais e a determinação da vitalidade dos organismos (Correio Paulistano, 24 jul 1928, pp. 7 e 8). Reportou, então, suas primeiras experiências com o enxerto glandular em animais de criação, que testaram a hipótese de que tal intervenção poderia resultar num rejuvenescimento orgânico. Projeções fotográficas ilustravam sua comprovação, evidenciando as alterações produzidas nos corpos desses animais, antes e depois do enxerto. Voronoff mencionou as vantagens que este tipo de intervenção poderia oferecer aos países que se sustentavam economicamente à base da criação animal, a exemplo do sucesso obtido nas experiências da Argélia. Entretanto, endossou também que, desde o começo, seu objetivo era outro: aplicar a enxertia na espécie humana, narrando que, para tanto, uma vez impossibilitado de usar o material humano, recorreu aos símios, por conta de suas amplas afinidades orgânicas com aquela. Reportou o sucesso obtido nos casos de rejuvenescimento humano, exemplificando-o em quatro casos, também apresentados à assistência sob a forma de registros fotográficos, projetados na sala. Ao terminar, Voronoff recebeu demorados aplausos (Correio Paulistano, 24 jul 1928, p. 8; Diário Nacional 24 jul 1928, p. 8).

2.2.

A operação de “Mozart” e algumas cordialidades No dia seguinte, atendendo ao convite do governo paulista, foi feita a operação do

célebre touro reprodutor “Mozart”, de propriedade do estado. Considerado o mais belo e puro reprodutor da raça Caracu, o touro era agora um ancião, de dezenove anos de idade. Três dias antes, o Diário Nacional já noticiava a expectativa que acompanhava a operação do veterano

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“Mozart”, correspondente à possibilidade do desenvolvimento de um “tipo racial perfeito” para a pecuária nacional (Diário Nacional, 21 jul 1928, p 1). Na improvisada sala de operação, Voronoff logo preveniu o público de que não havia garantia para o sucesso da operação, dada a idade significativamente avançada do touro, cuja espécie, segundo ele, não costumava viver mais que vinte anos. Nesta cirurgia, o franco-russo foi auxiliado pelos Drs. Moura Azevedo Filho e Desiderio Stapler. Assim que procedeu com a abertura da bolsa testicular do animal, comentou ser notável a condição de envelhecimento orgânico de seu órgão, a julgar pelo marcado desenvolvimento do sistema venoso (Diário Nacional, 24 jul 1928, p. 1). Outro contratempo foi a própria sala do Posto Zootécnico em que se deu a operação, que não dispunha das instalações adequadas para tal. Voronoff e sua equipe precisaram operar de joelhos o animal, cuja má contenção “os pos em embaraço diversas vezes” (Diário da Noite, 23 jul 1928, p. 8). Não obstante, a operação correu normalmente. Dessa vez, o intuito era mesmo o rejuvenescimento. A glândula empregada na operação foi a de outro touro, também da raça Caracu, de dois anos e meio de idade. Assistiram aos trabalhos de Voronoff, além de uma boa variedade de médicos, estudantes de medicina, professores e alunos da Escola de Veterinária de São Paulo, diretores e veterinários do Departamento Estadual da Indústria Pastoril80 (Diário Nacional, 24 jul 1928, p 1). O procedimento técnico seguiu o padrão das operações anteriores, com a diferença do animal idoso ter recebido a glândula inteira do animal mais novo (Diário da Noite, 23 jul 1928, p. 8). Terminados os trabalhos cirúrgicos, Voronoff dirigiu algumas palavras aos presentes, frisando que aquela operação fora feita com intuito de demonstrar sua técnica operatória, que poderia ser facilmente reproduzida por qualquer veterinário (Diário da Noite, 23 jul 1928, p. 8). Às quinze horas e trinta minutos, Voronoff esteve no Palácio do Governo, em audiência especial com o presidente do Estado, Júlio Prestes, com quem manteve longa palestra81. Enquanto isso, o Correio Paulistano recebeu a visita de cortesia dos Drs. Belmiro Valverde e Madeira de Freitas, que foram ao prédio da redação agradecer pessoalmente as atenções que o jornal vinha dispensando às Jornadas Médicas e à estadia de Voronoff no Brasil (Correio Paulistano, 24 jul 1928, p. 7). Estes médicos visitaram também o Diário da Noite (Diário da Noite, 23 jul 1928, p. 1).

80 81

Entre os veículos de notícia pesquisados, nenhum menciona a presença de “curiosos” e leigos nesta operação. Dessas audiências com representantes do governo, nenhum detalhe chegou à imprensa.

79

2.3.

A conferência na SMC de São Paulo A segunda conferência de Voronoff em São Paulo, na SMC desta capital, foi realizada

na noite do dia 23. Mais uma vez, o espaço designado para a conferência de Voronoff – um pequeno anfiteatro na sede da Sociedade – mal comportava o público que a aguardava: médicos, estudantes, jornalistas e leigos que, sem demora, lotaram o anfiteatro e foram se acumulando pelos corredores e saguão, ficando completamente lotada a sede da agremiação médica (Correio Paulistano, 24 jul 1928, p. 7). O Correio da Manhã, o Diário Carioca e o Noite Jornal sugerem que nesta ocasião, antes de tomar a palavra, Voronoff teria sido agredido por um sujeito, descrito como um “maníaco anônimo”. Segundo a reportagem, conservando calma incomum, Voronoff teria sorrido ao agressor, afastando-o de si com o braço, para começar a conferência, enquanto a assistência, indignada e aos gritos, teria expulsado o homem do recinto, provocando uma nova onda de aplausos. Esta informação não consta em muitos dos outros jornais que cobriram o mesmo evento. Disto decorrem duas possibilidades: uma, muito mais provável, de que o incidente na conferência de Voronoff na Sociedade de Medicina e Cirurgia tenha sido fruto da imaginação jornalística e outra, mais remota, de que o episódio tenha de fato ocorrido, mas sido omitido pela maioria dos jornais. O Correio da Manhã cita o comentário irônico feito pelo Noite Jornal: “A maioria estava inclinada a acreditar que se tratava apenas de uma scena preparada pelo sr. Fernando Magalhães, que ficou sériamente irritado com a pouca importancia que a classe medica brasileira deu ás suas palavras e actos contra o professor Voronoff” (Correio da Manhã, 25 jul 1928, p. 6). Rumores ou incidentes à parte, iniciada a palestra, Voronoff discorria sobre o percurso que o levou à ideia de revitalizar seres humanos pela enxertia de glândulas endócrinas, versando sobre o processo histológico do envelhecimento orgânico e a importância dos hormônios sexuais para a vitalidade dos indivíduos de ambos os sexos. Projeções luminosas ilustravam alguns casos dentre os de seus clientes, que, àquela data, se somados aos clientes de seus colegas que aplicavam o “método Voronoff”, já ultrapassavam a cifra de mil e trezentos indivíduos (Diário Nacional, 24 jul 1928, p. 1). Auxiliado pela projeção de um filme cinematográfico dirigido por seu irmão, Alexandre

Voronoff,

o

médico-cirurgião

terminou

sua

conferência

descrevendo,

demoradamente, os detalhes técnicos do seu método, sob o ponto de vista da histologia e da anatomia, frisando a importância da irrigação sanguínea do enxerto (Diário Nacional, 24 jul 1928, p. 1).

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3. Parte Voronoff; ficam os macacos e os operados

No dia seguinte, depois de receber as últimas visitas no Esplanada Hotel, no qual se hospedava, Voronoff partiu para Santos, onde conheceu a Delegacia de Saúde e o Hospital de Isolamento, na companhia de Desiderio Staples, Madeira de Freitas e Belmiro Valverde, que o acompanharam, ainda, em um passeio ao Guarujá (Correio Paulistano, 25 jul 1928, p. 4). A reportagem do Correio Paulistano informa que na manhã do dia 25, Voronoff se dirigiu ao porto de Santos, para embarcar no “Cap Arcona”, o navio que o levaria para Montevidéu. Dos macacos que havia trazido consigo e que ficaram expostos no Jardim Zoológico durante o mês de julho, dois foram enviados a Buenos Aires. Os nove82 demais foram doados a instituições científicas brasileiras83, para que o Brasil pudesse iniciar sua própria criação de cinocéfalos (Diário Nacional, 25 jul 1928, p. 3). Uma vez que o valor de cada macaco era estimado em torno de nove ou dez mil francos, o “gesto de cordialidade” de Voronoff à classe médica brasileira foi calculado como algo em torno de noventa mil francos. (Diário Nacional, 25 jul 1928, pp. 1 e 3; Correio Paulistano, 20 jul 1928, p. 10). O Diário Nacional acrescenta: Sabemos que se vae promover, junto ao governo do Estado, uma representação medica, solicitando que seja enviada aos nossos sertões uma commissão scientifica que se destinará ao estudo dos nossos macacos, suas especies e modalidades, procurando, ainda, proceder a uma captura, em grande escala, dos que forem considerados bons, para servirem de doadores ao homem (Diário Nacional, 25 jul 1928, p. 1).

No dia primeiro de agosto foi noticiado que Feliciano de Moraes havia retornado ao Hospital Evangélico. Acompanham esta notícia alguns rumores, sobre o operado de Voronoff, impaciente, não ter respeitado o repouso que lhe fora recomendado, o que lhe teria trazido complicações de infecção, fazendo-se necessária uma segunda intervenção, executada pelo Dr. Castro Araújo, ou mesmo a remoção do enxerto (A Noite, 1º ago 1928, p. 3; Diário Nacional, 2 ago 1928, p. 1). Mais tarde, o próprio Diário Nacional e o Correio da Manhã divulgam o esclarecimento que lhes deram o Dr. Castro Araújo e o próprio Feliciano de Moraes sobre o caso. Estes afastam os rumores, explicando aos jornais que o ocorrido havia sido um simples retorno do paciente para avaliação de seu estado, em data prevista, que não implicou em nenhuma intervenção. Havia um pequeno hematoma na região operada, avaliado

82

Note-se aqui uma imprecisão em relação a este número. Se eram dez os animais que vieram pelo Alcântara, e dois os encaminhados para a Argentina, os macacos que restaram, incluindo aquele utilizado na operação de Feliciano, deveriam ser oito. 83 Não se sabe ao certo quais.

81

pelo médico como inofensivo e até esperado (Correio da Manhã, 2 ago 1928, p. 3; Diário Nacional, 3 ago 1928, p. 8). Ao que indica o Diário Nacional, o touro Mozart, mais de vinte dias depois de enxertado, continuava doente. Desde a data de sua operação sua saúde não era das melhores e um dos enxertos havia supurado (Diário Nacional, 12 ago 1928, p. 8). É bem provável que o animal tenha morrido naquele mesmo ano. Quanto ao carneiro “voronoffizado” no Rio de Janeiro, não foi encontrada, nesta pesquisa, nenhuma informação relativa a seu estado depois da operação. No dia 7 de agosto Voronoff esteve, mais uma vez, no Rio de Janeiro, durante uma escala do Andalucia – o transatlântico que o conduziu de volta à Europa – no cais Mauá. A brevidade desta escala fez com que Voronoff suspendesse de vez a operação da “Mme. Lima”, pensada para aquele dia. No entanto, enquanto o transatlântico esteve atracado no porto, o médico-cirurgião pôde receber na cabine de luxo do Aldalucia alguns colegas e admiradores, falar a alguns jornais, e avaliar as condições de Feliciano de Moraes. Houve ainda, um rápido passeio de automóvel pela cidade e, por fim, um discurso entusiasmado feito por um jovem clínico, Dr. Wenceslau Junior, em sua homenagem. Pode-se inferir que Voronoff esteve mais preocupado com a publicidade em torno de sua figura do que com as operações propriamente ditas. Foi um representante d‟O Jornal, “em lancha especial”, que conseguiu abordar Voronoff para uma última entrevista, na qual o médico-cirurgião reporta a excelente impressão que tivera das repúblicas do Prata, e o vivo interesse dos governos locais sobre seu método de enxertia de animais. A indústria pastoril argentina, aliás, já o empregava em seus rebanhos havia cerca de um ano (O Jornal, 8 ago 1928, p. 1). Nas palavras do redator d‟O Jornal, “debruçado à amurada”, o franco-russo expunha “todo o contentamento que lhe ia n‟alma”, em razão do sucesso de sua tournée pela América do Sul (O Jornal, 8 ago 1928, p. 1). Ao seu lado, ia o dedicado o irmão, Alexandre Voronoff. Próximo ao entrevistado ia também Yero, o tratador dos macacos que o auxiliou na operação de Feliciano de Moraes. O Jornal insere em meio à sua matéria um longo devaneio, para comentar a presença de Yero no transatlântico: Mais adeante, não debruçado ao parapeito da amurada, mas erecto, firme, attento a tudo, naipe negro da trinca espreitava os acontecimentos: era o já celebre Yero, criado senegalez de que Voronoff se faz acompanhar, dizendo-o seu “valet de chambre”, mas que bem mais parece assim uma espécie de mammifero de luxo, mixto de “mascotte” e de bicho decorativo. Yero, cuja carinha redonda apparecia como um borrão de nankin sobre a alvura lavada dos esmaltes de bordo – esboçava, a espaços, um sorriso de dentes brancos, ethiopicos. E era muito de pensar nos caprichos do destino, que enfarpelou em roupa

82

européa, e alojou em transtlanticos de luxo aquelle egresso da selva africana, emquanto, às mesmas horas, os seus irmãos de raça e, quiçá, de sangue, vagueiam ainda semi-nús, untados de banha de hyppopotamo, pela brenha de seu paiz de origem... E todavia elle ali estava, pobre Yero, gozando e sofrendo (sabe-o Deus e elle) as maneiras e os costumes da civilização... E Yero sorri... Yero passeia em derredor da nave, o olho arisco e branco... Entretanto, uma sombria expressão de tristeza, de uma tristeza imensa, cae, por vezes, sobre o semblante do senegalez... E‟ que Yero suspeita, talvez, de seu proprio destino, nas mãos de Voronoff (O Jornal, 8 ago 1928, p. 1).

Senegalez, etíope ou “preto da Guiné francesa”, Yero foi abertamente hostilizado pelo Jornal. Nota-se de imediato o racismo transbordante dessas linhas. Mas em segundo plano, no último parágrafo do trecho citado, aparece outro tipo de formulação, que sugere uma continuidade entre as atrocidades que recaíam sobre os negros e sobre os animais. O redator talvez tenha sido o mesmo que escreveu a matéria que cobriu a operação de Feliciano de Moraes, onde se lê: A dois metros da mesa do animal humano, do donatário venturoso, imóvel, atados tambem pés e mãos, chloroformizado, dormia o cinocephalo. Yero olhava o seu irmão africano com infinita ternura. Era o irmão a apiedar-se da sorte daquela victima imbelle do egoismo civilizado (O Jornal, 19 jul 1928, p. 3).

Mas voltemos à cena da partida do Dr. Voronoff, no cais Mauá. Em relação ao Brasil, Voronoff expressou que levava daqui as melhores impressões; ficara bastante admirado com as belezas naturais do Rio de Janeiro e com o espírito profissional e cortês que havia encontrado entre os médicos brasileiros. Comentou com pesar o incidente com o Dr. Fernando Magalhães, mas frisou não guardar qualquer ressentimento pessoal, por acreditar que Magalhães tenha agido de boa fé e que lhe tenha feito oposição em termos puramente teóricos (O Jornal, 8 ago 1928, p. 1). Voronoff recebeu Feliciano de Moraes, em sua cabine, constatando o êxito da intervenção, depois de avaliar o operado: os quatro enxertos haviam aderido bem ao organismo, sem sinais de rejeição. Diz aos jornalistas que, para aqueles que desacreditavam da eficácia dos enxertos, deixaria aqui a prova viva: Feliciano de Moraes e o progressivo rejuvenescimento que deveria operar-se em seu organismo nos próximos meses. Estiveram a bordo, ainda, representantes da Associação de Medicina e Veterinária do Exército, bem como diretores e médicos do Hospital Evangélico (Correio da Manhã, 8 ago 1928, p. 3). Por fim, o Dr. Wencelsau Junior proferiu um discurso no qual passou em revista a evolução da carreira de Voronoff e os benefícios de suas contribuições. Enquanto palestrava, comentou que era natural que o célebre cirurgião encontrasse alguma oposição dentro da própria classe médica, obstáculo enfrentado por tantos gigantes da ciência ao longo da história

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da medicina, e elogiou a persistência de Voronoff em suas investigações. Por fim, aclamou o sucesso que vinha sendo atestado sobre seu método, por outros profissionais de renome no meio médico-científico. Emocionado com as palavras do orador, despediu-se o médico franco-russo (O Jornal, 8 ago 1928, p. 1). Depois de passar por Montevidéu e Buenos Aires, Voronoff seguiria viagem ao Oriente, visitando o Egito, a Índia, a Pérsia e a Indochina, ao fim da qual retornaria aos Estados Unidos e, finalmente, à França, em 1929 (Barnabà, 2014: 134). Os Drs. Moura Azevedo, Castro Araújo e Belmiro Valverde foram os médicos que se responsabilizaram por dar prosseguimento às “voronoffizações” no Brasil. Já o faziam antes mesmo da visita de Voronoff. Em janeiro de 1929, O Jornal anunciava a fundação da “primeira casa de saúde especialmente adaptada ás necessidades da technica de Voronoff”, no Rio de Janeiro (O Jornal, 10 jan 1929, p. 1). No início do mês seguinte chegaram ao Rio de Janeiro, pelo vapor Eubée, dezessete macacos provenientes de Dakar: doze machos e cinco fêmeas, enviados pelo Dr. Voronoff ao Dr. Belmiro Valverde, para que fossem por ele utilizados em operações de enxertia glandular. De acordo com a matéria publicada pelo A Noite, Belmiro Valverde, em rápida entrevista ao jornal, teria adjetivado o grupo de símios como “hóspedes meus [...] prisioneiros africanos” (A Noite, 6 fev 1929, p. 1). O próximo capítulo explora equações sintomáticas como esta, que volta e meia aparecem dentre as fontes, sobrepondo raça e animalidade. Se por um lado, este tipo de material expressa um racismo latente, por outro, deixa-nos entrever uma condição de opressão comum a negros e animais.

4. A classe médica debate Voronoff

Ainda durante a estadia de Serge Voronoff no Brasil, os jornais publicaram uma variedade de artigos assinados por médicos brasileiros, que expressavam suas reações às teorias do famoso franco-russo. De um lado, dizia-se que Voronoff só havia logrado notoriedade nos ambientes extracientíficos, que seu vínculo com o Collège de France não era fruto do mérito de seu trabalho, mas antes de uma relação monetária, e que sua ciência era charlatanesca. De outro, Voronoff era defendido como um pesquisador generoso, interessado unicamente em contribuir para o progresso da humanidade, e como um injustiçado, vítima do mesmo ranço científico que sofreram outrora Galileu Galilei, Claude Bernard, Louis Pasteur e Oswaldo Cruz.

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Como mencionado anteriormente, entre os dias 18 e 21 de julho, o Diário Carioca publicou uma sequência de reportagens intitulada “Voronoff boycottado pela sciencia oficial”, para abordar, em detalhe, a polêmica relativa à recepção de Voronoff na SMC do Rio de Janeiro. Em uma dessas reportagens, o Dr. Wenceslau Junior – o mesmo que exaltou o médicocirurgião em discurso, no cais Mauá – mostra-se indignado com as acusações de charlatanismo que recaíam sobre a pessoa de Voronoff. Buscava responder à acusação de que os resultados da enxertia de Voronoff não passavam de efeitos do poder de sugestão – onde o paciente seria apenas ludibriado pela ilusão do rejuvenescimento, a ponto de conseguir um efeito placebo – apoiando-se na avaliação positiva que Voronoff ganhara do renomado histologista E. Retterer. O orador brasileiro se referia ao estudo que este cientista realizou em alguns dos pacientes de Voronoff, com o intuito de avaliar microscopicamente o estado do tecido testicular antes e depois do enxerto. A conclusão foi favorável a Voronoff. Nas palavras de Wenceslau Junior, Retterer verificou que à “revivificação psicológica” correspondia “a vivificação anatomica microscópica”. E conclui: “Será charlatão, porventura, um homem como Voronoff, que observa, pesquiza, experimenta e conclue baseado em questões estrictamente scientificas?” (Diário Carioca. 19 jul 1928, p. 5). No dia seguinte foi entrevistado o Dr. Octavio Rodrigues Lima, diretor secretário da Revista de Ginecologia e d‟Obstetrícia, que até então não tinha dado declarações à imprensa por achar “o caso todo lamentável”. Mas, naquela ocasião, manifestava-se, inconformado. Aponta o fato de Voronoff não discutir suas teorias nos ambientes puramente científicos das academias ou das revistas médicas, mas preferir logo a imprensa, ludibriando o público leigo “com sua ciência charlatânica” (Diário Carioca, 20 jul 1928, p. 4). Diria ainda que o pomposo título de Voronoff como diretor do Laboratório de Cirurgia Experimental no Collège de France não havia sido obtido com mérito, mas com dinheiro. Dr. Octavio o explica: o Collège de France conta com laboratórios oficiais e particulares. O laboratório do qual Voronoff era diretor fora financiado pela falecida esposa de Voronoff – que, por sua vez, era uma milionária – e doado ao Collège de France. De acordo com o procedimento de praxe nestes casos, o Collège de France deixava a cargo do financiador a escolha do diretor do laboratório. Ou seja, o vínculo de Voronoff com tal instituição seria apenas uma formalidade, não uma consagração da qualidade de seus trabalhos (Diário Carioca, 20 jul 1928, p. 3).

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O Dr. Antonio de Almeida Prado, catedrático da Faculdade de Medicina de São Paulo, compareceu às conferências de Voronoff no Rio de Janeiro e concedeu uma longa entrevista ao Diário Nacional. Nela, defende a legitimidade do trabalho científico de Voronoff, frisando que o resultado de seus enxertos vinha sendo constantemente acompanhado e verificado pelo referido Édouard Retterer. Admite que a ideia diretriz de sua obra, de fato, vinha de BrownSéquard, mas que a proposição prática de seu método seguiu por caminhos originais. Por fim, afirma que a classe médica paulistana deveria receber Voronoff com as homenagens que a Paulicéia costuma reservar aos seus hóspedes ilustres (Diário Nacional, 21 jul 1928). Na mesma data, o jornal Editorial publica uma matéria assinada pelo Dr. Thales Martins, docente de fisiologia da Faculdade de Medicina e assistente no Instituto Oswaldo Cruz. Neste longo artigo, o autor se dedica a demonstrar que nada de original se encontra na obra de Voronoff “senão a applicação defeituosa de idéas e processos alheios, orientados por doutrinas que não contem acquisições novas, ou hypothese fecundas, mas simplesmente sediças e caducas” (O Editorial, 21 jul 1928, p. 4). Para tanto, T. Martins revisa as contribuições científicas sobre as secreções internas, deixadas por Berthold, Brown-Séquard, Steinach e uma série de outros endocrinologistas. O autor insiste na afirmação de que o sucesso de um enxerto não poderia se resumir a uma questão de vascularização, como defendia Voronoff. Mesmo devidamente irrigado pela corrente sanguínea, o transplante tendia a ser, invariavelmente, absorvido, por ser inadaptável a um organismo de outra espécie. Aponta, ainda, que Voronoff só conseguia apresentar evidências histológicas favoráveis aos seus enxertos quando estas eram tiradas de experiências feitas em cabritos ou carneiros. E que, do sucesso do enxerto entre animais da mesma espécie, nada se poderia concluir para o caso de um enxerto entre um ser humano e um macaco cinocéfalo (O Editorial, 21 jul 1928, p. 4). Por fim, declara que Voronoff ainda não tinha se mostrado capaz de provar que os efeitos de seus enxertos glandulares não se resumiam a uma absorção do estoque de hormônio presente na glândula implantada. Assim, compara o enxerto glandular a uma injeção hormonal de absorção lenta, e conclui seu texto isolando os trabalhos de Voronoff dos avanços da endocrinologia e da fisiologia: “Houve nesses ultimos 15 annos um grande progresso no conhecimento da physiologia das glandulas sexuaes: o sr. Voronoff em nada contribuiu para elle, nem aprehendeu seus resultados” (O Editorial, 21 jul 1928, p. 4). No dia 22, o Diário Nacional publicou, em meio à matéria de capa sobre a chegada de Voronoff a São Paulo, uma entrevista mais curta com outro professor da Faculdade de Medicina de S. Paulo, o Dr. Moura Azevedo Filho. Este cirurgião era não só um entusiasta

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dos trabalhos de Serge Voronoff como foi o primeiro a empregar o processo de enxertia do franco-russo em São Paulo, em 1926. Apesar do fracasso desta primeira experiência, o médico paulistano chegou a praticar o método Voronoff para seres humanos em outras duas ocasiões, segundo ele com resultados bastante positivos. Declara ao Diário Nacional que os trabalhos de Voronoff apareciam como uma confirmação das “theorias physiologicas do endocrinismo” que, desde Brown-Séquard, vinham “salientando cada vez mais a importancia do hormônio testicular como revitalizador organico e estimulante intelecutal” (Diário Nacional, 22 jul 1928, p. 1). Um último ponto a se frisar nessas discussões é o modo como os médicos utilizaram tal embate para defender suas posições políticas dentro do cenário da medicina nacional. Fizeram-no, sobretudo, alguns defensores da vanguarda científica, para marcar uma posição contrária ao conservadorismo acadêmico. O Correio Paulistano publica a notícia veiculada pela Havas-Radio: [Na cidade de São Paulo] o classicismo ferrenho e quase irracional não predomina [...] Na sua Faculdade de Medicina não ha medalhões [...] os laboratórios ali ficam abertos á sciencia experimental das cousas, sempre ansiosas de descobertas e innovações illimitadas (Correio Paulistano, 25 jul 1928, p. 9).

É de se notar, ainda, a forma como alguns médicos, sobretudo os representantes das Jornadas Médicas, se esforçaram para mitigar o desconforto gerado por outros representantes da ciência nacional, que se recusaram a receber Voronoff em suas instituições ou simplesmente se abstiveram de propor qualquer convite ou pronunciar qualquer opinião: Segundo ressalta a leitura de jornaes paulistas, o professor Voronoff teve a sua expectativa muito excedida, quanto ao acolhimento que lhe fizeram na capital do vizinho Estado, tanto por parte do mundo official, como das associações scientificas. [...] Em São Paulo proporcionaram-lhe todas as facilidades, e os scientistas da terra o cumularam de attenções, franqueando-lhe hospitaes e cédes de sociedades scientificas. Os sabios daqui foram logo boycottando, numa ostensiva e brusca attitude prévia, o colega [Voronoff] (Correio da Manhã, 26 jul 1928, p. 2).

Por fim, temos a defesa que Maderia de Freitas faz de Voronoff, por detrás do pseudônimo de Mendes Fradique, na forma mais solta e literária da crônica84: O burro, segundo todos os fabulistas, é o animal opiniatico, por excelencia. E, em verdade, quando um burro impaca, não há argumento terreno que dahi o demova. Por mais que o esporeiem, que o rêlhem, que o contundam, prefere antes o burro largar os

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Cito-a em sua publicação de 1933, pelo jornal A Reforma, mas seu conteúdo indica que a crônica seja de dezembro de 1928, por comentar o caso da “voronoffização” do cavalo Don Zuniga, que havia sido noticiado “ainda na semana passada”.

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cascos no sítio em que empacou, do que dahi arredar o pé. E‟ assim, o burro, com justa razão, o prototypo do teimoso do obstidado, do irreductivel. Se, entretanto, ao burro cabe a primasia com respeito a taes qualidades, ficam em segundo logar, a esse respeito, os representantes de sciencia official franceza. De facto, quando um professor de França se tranca dentro de um principio é inutil fazel-o mudar de idéa. Ao lado de um notável saber, cultuam os mestres da velha escola franceza uma philaucia e uma arroganica que gente de nenhum outro povo fora capaz de igualar (“Don Zuniga”. Mendes Fradique. A Reforma, 26 mar 1933, p. 4).

Talvez o leitor se recorde da opinião de Belmiro Valverde, apresentada no início do capítulo, ao localizar a origem do boicote que Voronoff sofreu no Rio de Janeiro na influência que a ciência francesa exercia sobre Carlos Chagas e importantes instituições da medicina nacional. De modo similar, mas menos pessoal, Mendes Fradique (ou Madeira de Freitas) sugere que o ataque à legitimidade científica do método de Voronoff era um reflexo do conservadorismo da tradição da escola francesa na medicina85. Fradique, depois de comentar o modo como a medicina francesa ignorou, negou e acusou de charlatã a teoria de Pasteur, por duas décadas, volta ao caso de Voronoff: [...] Mutatis-mutands, o que sucecedeu a Pasteur é o mesmo que esta succedendo a Sergio Voronoff. Tomando a peito um velho problema de biologia, conseguiu Voronoff resolvel-o de modo genial. Isso envenenou de despeito os grosbonets da sciencia franceza que entrou por todos os meios a perseguir Voronoff. [...] As provas que Sergio Voronoff, tem dado da efficacia de seu processo, não commovem os sábios augustos a meditarem, sequer, sobre o caso. O hetero-enxerto não foi descoberto pelo grupinho, pela camarilha que lhe é axiliar – e portanto não pode ser coisa certa (“Don Zuniga”. Mendes Fradique. A Reforma, 26 mar 1933, p. 4).

Não só o Dr. Voronoff, mas a endocrinologia clínica como um todo, nessa época, esteve às voltas com o estigma do charlatanismo.

5.

Charlatanismos

Na análise de Adele Clarke (1998) para o contexto estadunidense, a contínua associação da endocrinologia com o charlatanismo fez parte dos conflitos em torno do processo de legitimação das chamadas ciências reprodutivas (Clarke, 1998: 242). Desde a famigerada declaração de Brown-Séquard, em 1896, comentada anteriormente, esta ciência ganhava uma aura de ilegitimidade científica, sobretudo por conta do sensacionalismo midiático que se criava em torno da opoterapia (Clarke, 1998: 242). Mas 85

Vale lembrar o que nos conta Richard Holmes (2008), quanto ao fato dos grandes opositores do vitalismo serem defensores das correntes da medicina francesa.

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se as acusações de charlatanismo corroíam sua legitimidade no campo científico, o frenesi gerado em torno da endocrinologia clínica contribuiria significativamente para a publicidade desta nascente ciência (Clarke, 1998: 245). Algo similar aconteceu com Voronoff, pode-se dizer. A respeito dessa associação, entre endocrinologia e charlatanismo, há um artigo publicado na Folha Médica, intitulado “A endocrinologia e a chimica”, que traz rentáveis apontamentos sobre o modo como a endocrinologia começava, nos últimos anos da década de 1920, a encontrar caminhos científicos com respaldo de legitimidade. “Como de regra, tudo quanto é mysterioso e mal conhecido presta-se á exploração e ao charlatanismo, e, assim, a endocrinologia entrou, violentamente, a ser usada e abusada para todas as explicações e para todas as curas” (Folha Medica, 25 mai 1928, p. 184). O texto argumenta que isso se deve ao fato do conhecimento químico sobre essas “enganadoras substâncias” estar apenas em sua infância, ainda que a experimentação nessa área avançasse velozmente: Uma brilhante pleiade de experimentadores deixou bem assentado, por ininterrupto trabalho das ultimas decadas, que os innumeros desvios quanto á estatura corporal, á configuração facial, a sexualidade, o metabolismo geral e até a mentalidade estão na dependencia do augmento ou diminuição das funcções dos orgãos productores desses “hormonios”, de tamanha significação (Folha Medica, 25 mai 1928, p. 184).

Ou seja, junto à fisiologia experimental, a investigação das glândulas de secreção interna era cada vez mais associada ao “estigma de falsa ciência e de charlatanismo”. Neste sentido, o artigo aponta que muito se vislumbrava, mas pouco se explicava. A solução para este problema viria de outra área: “Foi o chimico que veio em socorro do physiologista”. Ao que nos conta o redator anônimo, a química começava a lograr legitimar a nascente endocrinologia, ao isolar as substâncias ativas de certos órgãos de secreção interna – inicialmente, a adrenalina, a tiroxina e a insulina – viabilizando o estudo de suas propriedades funcionais com maior acuidade. [...] Pelo menos, já é de nosso dever contar com as promessas de uma contribuição que, como assignalou Abel, já libertou o experimentador e o manufacturista “dos produtos dos matadouros”: a adrenalina e a thyreoxina já são syntethizadas em laboratorio. E a insulina, a ultima chegada mas a primeira nos usos, vae cedendo á insistente perscruta do chimico, que já lhe estabelece a formula empirica (Folha Medica, 25 mai 1928, p. 184).

Assim, contemplava-se a salvação da ciência bruta dos hormônios: “[à luz da química] toda a merecida dignidade scientifica e toda a incontestavel utilidade therapeutica serão reconhecidas á endocrinologia, de que tanto mal se tem dito e a que tanto mal se tem feito”

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(Folha Medica, 25 mai 1928, p. 184). Como visto, em fonte citada anteriormente, haveria quem dissesse que os trabalhos de Voronoff não teriam acompanhado em nada os avanços que se operavam na endocrinologia. Dos opositores de Voronoff, quase todos apontaram nele um charlatão. Esta é uma categoria acusatória que tem uma história própria no Brasil e que merece atenção. A historiografia recente, em trabalhos como a coletânea Artes e Ofícios de Curar no Brasil (2003), e o estudo Nas trincheiras da cura (2005), vem demonstrando como a “guerra” contra o charlatanismo fez parte do lento e conflituoso processo de institucionalização da medicina científica no Brasil, ao longo do século XIX até o início do XX. Como avaliado por Luiz Otávio Ferreira (2003), “a implantação efetiva do ensino médico no Brasil”, a partir da transformação das “precárias escolas de cirurgia instaladas no Rio de Janeiro e em Salvador em faculdades de medicina” só se deu na terceira década do século XIX, e “sua atuação no esforço de expansão quantitativa e de renovação epistemológica da medicina ficou muito aquém da expectativa” (Ferreira, 2003: 102-103). De acordo com o autor, a medicina acadêmica, nessa época, lutava para se distinguir da medicina popular, sendo parca sua legitimação social. As referências culturais da população eram outras: “[...] a medicina praticada no dia a dia da Colônia esteve quase sempre a cargo de curandeiros, feiticeiros, raizeiros, benzedores, padres, barbeiros, parteiras, sangradores, boticários e cirurgiões” (Ferreira, 2003: 101). Esta era a concorrência da medicina científica. Segundo Gabriela Sampaio (2005), dentre esses especialistas das artes da cura, alguns foram extremamente célebres e populares, chegando mesmo a fazer fortunas com o exercício de suas procuradas terapêuticas, enquanto os médicos formados pelas faculdades de medicina do Império, recém-inauguradas, sentiamse preteridos e desprezados em seus empenhos acadêmicos e pela baixíssima receptividade e credibilidade que encontravam entre a população (Sampaio, 2005: 53; Ferreira, 2003). Depois de décadas de insucesso, a saída escolhida pela medicina científica brasileira e pelas autoridades higienistas nacionais foi a de iniciar um movimento de “perseguição generalizada a todos os que exercessem alguma arte de cura que não fossem formados ou autorizados pelas faculdades de medicina do Império” (Sampaio, 2005: 24). G. Sampaio descreve este movimento como uma “verdadeira „cruzada anticharlatanismo‟” empreendida pela classe médica brasileira (Sampaio, 2005: 24), que encontrou na condenação desses outros terapeutas uma forma de garantir a legitimidade social e o monopólio sobre as práticas de cura (Chalhoub, 2003).

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A medicina científica englobava, assim, na categoria acusatória “charlatanismo” todas as artes de cura, exceto a própria, e as enxergava com extrema repugnância, por considerá-las um obstáculo ao seu desenvolvimento (Sampaio, 2005: 25). Entretanto, por vezes, essa acusação foi feita sobre os próprios representantes oficias da medicina que, por um motivo ou outro, tiveram sua legitimidade científica questionada. Alguns médicos estrangeiros e certas teorias científicas encontraram grandes problemas quanto à sua legitimidade e aceitação, desconfiança que aparecia não só entre a população, mas entre a própria classe médica (Sampaio, 2005). Gabriela Sampaio (2005) exemplifica esta situação com o caso de uma desavença entre dois médicos conceituados, tornada pública nos jornais cariocas86, para depreender: A partir deste conflito, em que importantes médicos eram acusados de forma semelhante à que se usava para atacar curandeiros e outros “charlatães”, percebeu-se que aqueles doutores não tinham muita legitimidade e prestígio junto a muitos pacientes. Eram ironizados e combatidos abertamente pela imprensa, sentiam-se desrespeitados, chegavam a ser objeto de crítica pública nos dias de carnaval. [...] Foi possível perceber o quanto os médicos estavam longe de atingir seu ideal de legitimidade, sobretudo perantes os setores populares e iletrados (Sampaio, 2005: 146).

Nota-se uma continuidade entre esses embates e aquilo que aconteceria com o caso de S. Voronoff, bem como com a própria endocrinologia nas primeiras décadas do século XX. Há um segundo ponto que nos interessa nos referidos trabalhos do CECULT (2003; 2005) e nos artigos de Nádia Farage (2011; 2013a; 2013b), característico da abordagem da história social. Trata-se do tipo de análise empregado quando esses autores deixam de fazer uma história das instituições ou uma história dos médicos, como vinha sendo feito nos volumes de história da medicina, para propor uma análise que privilegia o ponto de vista das pessoas comuns em relação às novidades da medicina. Tal perspectiva propõe outro modo de pensar a história da medicina brasileira, ao entender a ciência como uma “atividade integrante de uma realidade histórica permeada por conflitos e interesses de ordem política, econômica e ideológica” (Almeida, 2003: 130), atentando para as complexidades sociais, políticas e científicas que os envolveram e, sobretudo, ao “buscar as reações das pessoas comuns diante de todo esse processo” (Sampaio, 2005: 47). É este movimento que orienta o próximo capítulo.

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Veja-se a nota 72 deste capítulo.

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CAPÍTULO III Ficção e “pilhéria científica”

Do que foi apresentado até aqui, não são poucos os aspectos e elementos da história de Serge Voronoff que porventura façam o leitor associá-lo a uma figura caricata ou a um personagem saído de uma obra de ficção científica. E, de fato, Voronoff não tardou a ser transformado em personagem e trazer ao público risadas e arrepios. Se o assunto das cirurgias do doutor Voronoff suscitou debates cheios de seriedade científica nos jornais, ele também aguçou a imaginação de uma série de escritores, cronistas e ilustradores, nesses mesmos veículos. O tema apareceu ainda nas livrarias, nos cinematógrafos e nos teatros, em canções populares e em alguns carnavais. Este capítulo reúne parte da produção cultural que abordou a chamada cirurgia de “voronoffização”. Busca, nessas fontes, um olhar que escapa aos registros oficiais da história da medicina: o ponto de vista leigo e popular, que produziu suas próprias leituras e narrativas sobre o Dr. Voronoff e seus enxertos. Neste material, precioso em guardar fragmentos do imaginário popular que se formou em torno da figura de Voronoff, há um fio condutor que interessa especialmente a este trabalho: aquele que evidencia “zonas de perigo” (Douglas, 1976) conceituais entre animalidade e humanidade, que os procedimentos de Voronoff trouxeram à tona.

1.

“Nora, la guenon devenue femme”

Ao fim da década de 1920 Félicien Champsaur (1859-1934) era um renomado autor de ficção científica. De sua produção literária cabe mencionar o título de duas de suas novelas fantásticas: Ouha: le roi des singes (1923) e Homo-Deus: le satyre invisible (1924), de onde sairiam dois personagens que foram integrados à sua obra de 1929: Nora: la guenon devenue femme (“Nora, a macaca que virou mulher”). É esta que nos interessa. Trata-se de uma ficção narrada em terceira pessoa, que conta a história de dois macacos feitos cobaia nas mãos de quatro excêntricos cientistas, entre os quais consta, como personagem, o doutor Serge Voronoff. Como enunciado no primeiro capítulo, este romance de ficção foi inspirado em um experimento científico que de fato ocorreu no laboratório de Serge Voronoff, em 1926

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(Berliner, 2013). O experimento foi uma colaboração de Voronoff com Illya Ivanov, em que os cientistas testaram o enxerto do ovário de uma mulher em uma macaca – chamada Nora – para depois inseminá-la artificialmente, com sêmen humano (Correio da Manhã, 19 ago 1928, p. 8). Apesar de Champsaur ser, na época, autor conhecido no Brasil, esta novela, em particular, parece não ter tido ressonância entre os brasileiros, a julgar pelas fontes da imprensa nacional que esta pesquisa pôde cobrir. Por mais que fuja ao escopo brasileiro privilegiado nesta pesquisa, a história de Nora atravessa a um só tempo todos os grandes temas e debates conceituais que esta dissertação busca relacionar, sobretudo, neste capítulo: o embaralhamento dos conceitos de humanidade e animalidade, raça, gênero e sexualidade, em fins dos anos 1920. Posta em cronologia, a trama de Nora inicia-se em 1913, no momento em que a personagem Abraham Goldry, um antropólogo norte-americano que havia dedicado sua carreira ao estudo dos primatas, recebeu uma carta vinda da ilha de Bornéu. Tratava-se de um convite para investigar um caso singular: o de uma mulher negra que vivera entre um grupo orangotangos, depois de ter sido raptada pelo líder do bando. Impressionado com o caso, Goldry partiu, imediatamente, para Bornéu, “a ilha dos orangotangos”. Lá o antropólogo foi testemunha e vítima de uma disputa que surge quando um macaco chamado Ouha rapta duas mulheres, conflito que se transformaria numa luta homérica entre homens e macacos, e que perduraria por anos, tomando as proporções de uma verdadeira guerra entre as duas espécies primatas. Além de muitas mortes, a guerra deixou frutos de relações sexuais interespecíficas: Narcisse, filho de uma mulher negra (Dilou) e um orangotango (Ouha), e Nora, filha de uma macaca e, muito provavelmente87, de Abraham Goldry. Na última batalha, quando a estratégia dos homens finalmente foi capaz de vencer a força dos animais, quase todos os macacos adultos da região morreram, deixando uma porção de órfãos nas florestas de Bornéu. A trégua era provisória, pois os outros macacos da ilha ainda viriam para vingar a morte de seus irmãos. A aventura do antropólogo aí se encerra, e ele retorna à América do Norte levando consigo uma trintena de órfãos simiescos, dentre eles, dois que eram excepcionalmente inteligentes: Narcisse e Nora. Goldry, como estudioso dos primatas, interessava-se bastante pela obra de Serge Voronoff, e inicia uma troca de correspondências com o franco-russo no intuito de oferecer87

Esta inferência, que tanto constrange o antropólogo Goldry, é feita repetidas vezes ao longo do romance, não só pelas personagens, como pelo próprio narrador.

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lhe os jovens macacos. O resultado dessa colaboração foi a fundação de um estabelecimento na Côte d‟Azur, destinado à criação e reprodução dos macacos: a Pêtit Bornéo. Aqui Champsaur faz referência direta à “fazenda de macacos”, que Voronoff havia construído em sua propriedade do Château Grimaldi para dispor de uma reserva particular de macacos, como visto no primeiro capítulo desta dissertação. Dois anos mais tarde, o Dr. Voronoff (personagem) depara-se com um caso clínico curioso. Ele havia sido contratado para fazer a ablação dos ovários de uma ex-princesa russa, que decide abrir mão destes órgãos para levar uma vida “libertina” sem sofrer as consequências da gravidez. Com os jovens macacos à sua disposição e, agora, os ovários saudáveis de uma mulher que os dispensa, Voronoff percebe diante de si a oportunidade de realizar um experimento pioneiro: enxertar em uma macaca os ovários de uma mulher. Nora é a escolhida, sendo levada à mesa cirúrgica de Voronoff aos dois anos de idade – já adulta na idade simiesca. Ao receber os ovários humanos, a macaca sofre algumas transformações: sua inteligência aumenta de maneira sensível e sua menstruação ganha o aspecto daquela de uma mulher. Nora assim permanece até o dia em que é apresentada ao Dr. Marc Vanel, na Pequena Bornéu. Este colega de Voronoff, maravilhado com o experimento do transplante ovariano praticado em Nora, propõe ir ainda mais longe: “fazer dessa macaca uma mulher!” É com a aparição de tal personagem, e deste momento em diante, que a narrativa das intervenções científicas praticadas em Nora começa a tomar proporções cada vez mais fantásticas. Interessa fazer uma breve introdução à personagem de Marc Vanel, de codinome Homo-deus, que aparece como uma das figuras mais peculiares do romance. Desde sua juventude, Vanel já apresentava o perfil de um notável cientista. Passou dez anos viajando o mundo, boa parte deles na Índia88, entre yoghis e fakirs, onde se interessou pelo estudo de fenômenos sobrenaturais. Marc Vanel tornou-se um dos maiores gênios dos estudos metafísicos, ele próprio se sujeitando a uma série de experimentos científicos bastante excêntricos, que fizeram de si uma espécie de feiticeiro semideus. Se, por um lado, Vanel tem qualidades sobrenaturais, por outro, sua personagem é também bestial, por ter o furor carnal de um sátiro e o corpo escravizado por um “instinto sexual” incontrolável, que aparece como um escape à sua genialidade intelectual e quase divina. Esta dualidade é descrita por outra personagem, ao discursar sobre a condição humana:

88

O leitor pode lembrar que as viagens pelo mundo e a experiência de ter vivido uma década no Oriente foram aspectos que marcaram a biografia de Serge Voronoff.

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[...] [o homem] é submetido a uma escravidão, à qual, apesar de sua inteligência, ele não pode se abster. Escravidão do instinto, tipo de tara física, irresistível, que domina sua razão [...] essa lei que Edgard Poe chama: o demônio da perversidade. Sem encontrar uma justificativa ao ato realizado, o intelectual sente perfeitamente que ele cometeu um ato estúpido; no entanto ele cede, porque está fora de sua vontade. Será talvez loucura? Uma vez que a razão não pode dominar; então, haveria entre todos os homens um grão de loucura que apenas espera para germinar e prosperar [tradução livre] (Champsaur, 1929: 154-155)89.

É oportuno que o leitor retenha esta passagem, que encontrará seus pares mais adiante neste capítulo. A fala transcrita aqui é de Jean Fortin, gênio das ciências físicas, mentor e “pai” de Marc Vanel. Na consolidação de sua carreira, o Dr. Fortin fora auxiliado e talvez precedido por sua filha, Jeanne Fortin, “verdadeira personificação da ciência”, por quem o Homo-deus fora apaixonado. Marc, Jean e Jeanne trabalharam juntos por muitos anos. A reunião desses três extraordinários cientistas rendeu uma série de experimentos completamente inovadores, a exemplo da maestria sobre a propriedade da invisibilidade, sobre a telepatia, e um grande feito onde eles ressuscitaram um cadáver. Jeanne Fortin, todavia, morreu muito jovem. Mas não o fez sem antes, em seus últimos suspiros de vida, fazer passar sua alma a Marc Vanel, a quem ela amava espiritualmente. Assim, Vanel tornou-se uma personagem dupla, que agrega a genialidade e a alma de Jeanne à sua própria. Marc Vanel torna-se por dentro, então, homem e mulher. Consequentemente, há nele uma constante luta entre os dois sexos, vencida pelo masculino90 (Champsaur, 1929: 158). A intimidade colaborativa entre o trabalho desses cientistas faz com que Marc Vanel proponha que Jean Fortin trabalhe junto dele no caso de Nora. Assim, surge um concílio misterioso no estabelecimento da Côte d‟Azur, entre Abraham Goldry, Serge Voronoff, Marc Vanel e Jean Fortin, que decidem trabalhar em conjunto, fazendo de Nora um grande projeto científico. Mais tarde, Narcisse seria a segunda cobaia. O intuito de tais incursões experimentais é narrado por Fortin: – Nós sonhamos, disse Fortin, regenerar a espécie humana mergulhando novamente na sua origem [...] nosso cérebro não chegou ainda ao seu completo desenvolvimento, um superhomem pode decifrá-lo, arrancar o véu que nos oculta o grande mistério, o “porquê” do que é. [...] [O homem] levou milhares de anos, talvez séculos, para se 89

“[...] [l‟homme] subit un esclavage auquel, malgré toute son intelligence, il ne peut se soustraire. Esclavage d‟instinct, sorte de tare physique, irrésistible, qui domine sa raison [...] cette loi qu‟Edgard Poe appelait: le démon de la perversité. Faute de trouver une justification à l‟acte accompli, l‟intellectuel sait parfaitement qu‟il commet un acte stupide; pourtant il y cède, parce que c‟est en dehors de sa volonté. Peut-être est-ce folie? Puisque la raison ne peut dominer; alors, il y aurait chez tous les hommes un grain de folie qui ne demande qu‟à germer et à s‟épanouir” (Champsaur, 1929: 154-155). 90 Vale reter esta imagem para item 2 do Capítulo 4 desta dissertação.

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tornar o que ele é hoje. Faltará o mesmo para que sua inteligência cumpra o trabalho total? [...] É seu dever apressar, acelerar o trabalho da natureza, e, se necessário, de a antecipar. E é isso que nós tentamos fazer, meus colaboradores e eu; e, não podendo trabalhar com o homem (nos impediram), nós trabalhamos com os macacos 91 [tradução livre] (Champsaur, 1929: 44-45).

J. Fortin discursa como Voronoff (o autor, na vida real), em The Conquest of Life (1928), insistindo na necessidade de conquistar e dominar a natureza, e a própria vida, em seus segredos e em benefício do progresso da ciência e da humanidade, servindo-se de macacos, já que a lei francesa proibia o uso de órgãos provenientes de seres humanos. No romance, por ocasião de um acidente de trabalho que ocasionou a morte de um dos funcionários do Instituto, os cientistas conseguiram uma glândula pineal humana para enxertar em Nora. Daquele homem ainda se aproveitou a glândula da tireoide, também agregada ao organismo da macaca. Na mesma ocasião os cientistas decidiram aumentar-lhe a caixa craniana, de forma a dar mais espaço ao encéfalo, e permitir seu desenvolvimento sem que o cérebro o comprimisse. A macaca, com a surpreendente resistência física que caracteriza os orangotangos, sobreviveu a todas as intervenções. As modificações nas formas corpóreas da macaca foram feitas a partir de um molde que simulava o corpo de uma menina. Adormecida magneticamente, Nora teve seu corpo de macaca manipulado dentro desse molde, onde suas formas foram moldadas como argila. Algumas partes receberam inoculações celulares e seus membros foram ajustados à medida humana por meios cirúrgicos e mecânicos: os braços encurtados, e as pernas alongadas por trações graduais com pesos de chumbo. Este empreendimento exigiu um ano de trabalho árduo, ao fim do qual o projeto foi finalmente concluído. Nora renasceu, desta vez como mulher. Mais precisamente, como uma menina de dez anos de idade, em desenvolvimento. Narcisse teve outro destino. Com ele, a pretensão dos cientistas foi a de elevar o macaco à dignidade de um super-homem, fazê-lo alcançar uma inteligência que superasse a deles próprios. As intervenções feitas foram unicamente inclinadas à meta do desenvolvimento intelectual. Como Nora, Narcisse recebeu os enxertos da glândula pineal e 91

“– Nous rêvons, dit Fortin, de régénérer l'espèce humaine en la retrempant à sa source. [...] notre cerveau n‟est pas encore à son complet dévelopemente, un surhomme peut le déchiffrer, arracher le voile qui nous masque le grand mystère, le “pourquoi” de ce qui est. [...] [L‟homme] a mis des milliers d‟années, de siècles peut-être, pour devenir ce qu‟il est aujourd-hui. En faudra-t-il autant pour que son intelligence comprenne l'œuvre totale? Ce qui sera ne peut satisfaire l‟homme actuel. Il est de de son devoir de hâter, d‟accélérer le travail de la nature, et, au besoin, de la devancer. Et c‟est que nous ensayons de faire, mes collaborateurs et moi; et, ne pouvant travailler sur l‟homme (on nous en empêcherait), nous travaillons sur des singes” (Champsaur, 1929: 44-45).

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da tireoide, mas, desta vez, em dobro. Sua figura simiesca foi mantida, exceto pelo formato de seu crânio, que foi alargado artificialmente. Sua laringe também foi objeto de modificações, com intuito de desobstruir a língua e as cordas vocais, tornando-o apto à fala92. O projeto é incrivelmente bem sucedido. Narcisse torna-se um macaco brilhante e um perfeito cavalheiro; ele raciocina e fala, mas seu corpo ainda é o de um macaco. Mantido no Instituto, Narcisse é educado como um pupilo de A. Goldry e torna-se, mais tarde, o secretário de Ernest Paris. Este é um dos protagonistas do livro, um intelectual da Academia Francesa e famoso romancista que, depois de completar setenta e nove anos, submeter-se-ia a uma cirurgia de rejuvenescimento glandular. A hipótese de Sylvie Chalaye é que o modelo para esta personagem teria sido uma caricatura de Anatole France, o consagrado literato francês (Chalaye, 2004: 173). Quanto a Nora, terminadas todas as etapas de sua transformação experimental, Goldry assumiu a qualidade de pai adotivo da jovem, cedendo-lhe seu sobrenome. Nora Goldry é então confiada por ele a um convento na França, e os quatro doutores passam anos sem ter qualquer notícia da menina-macaca. No entanto, o narrador onisciente conta-nos seu destino. Informa-nos que a personagem cresceu entre freiras e histórias bíblicas, mas não deixa de se caracterizar, desde cedo, por uma perversidade primitiva e animal. A menina Nora sonhava com mundos fantásticos, misturando seu misticismo religioso com o mundo da fantasia e da fábula; sofria crises histéricas de exaltação religiosa, excitada pela presença do padre; apaixonou-se pela figura de Cristo e tinha fantasias eróticas com a imagem de sua nudez, exposta nos inúmeros crucifixos que a cercavam. Alguns anos mais tarde Nora foge do convento para ganhar o mundo e tornar-se, aos dezessete anos, uma estrela do Folies-Bergère. É lá que se passa a primeira cena do romance, onde Nora é apresentada ao leitor. Exceto por uma espécie de saia feita de bananas, que adorna sua cintura, e um colar de marfim, Nora está nua, dançando ao som de um jazz alucinante, com uma flexibilidade acrobática, que é animalesca e sobre-humana a um só tempo. A performance da vedete é um verdadeiro escândalo que hipnotiza o público: [O corpo de Nora] emana uma animalidade indefinível, mas inegável, que desconcerta um pouco. Ela espanta, encanta, galvaniza [...] ela [Nora] simboliza perfeitamente um 92

Durante a estadia de S. Voronoff em São Paulo informa-nos o Correio da Manhã, a notícia de um cientista alemão, cujo nome não é incluído na matéria, que pretendia trazer, ou melhor, devolver aos macacos a capacidade da fala, através de uma delicada operação das cordas vocais. Conta-nos o breve informativo que o alemão, dissidente da teoria de Darwin, sustentava que os símios haviam sido seres humanos outrora, mas perderam a condição humana, por causa ou consequência da perda da capacidade da fala, depois de terem sofrido uma atrofia do órgão vocal (Correio da Manhã, 22 jul 1928, p. 8).

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tipo de volúpia animal, ancestral e viciosa93 [tradução livre] (Champsaur, 1929: 20 e 24).

Assistem-na, também, Jean Fortin, Serge Voronoff, Marc Vanel e Georges Clemenceau, “o tigre” (uma representação do estadista francês e figura icônica da época). Segue a impressão de Clemenceau sobre Nora: “Desconcertante. É uma mulher ou um animal?” Jean Fortin responde: “Diga: uma macaca que virou mulher, e você estará certo!” (Champsaur: 1929: 20). Nora, enfim, parece amplificar os temores quanto à parcela animal na mulher, a exaltar promiscuidade e sensualidade. Outro aspecto marcante desta apresentação é aquele das cores de Nora. O narrador descreve, nesta cena, a pele de Nora como “rosa, amarela, marrom, azul, sim, azul”, ou ainda, “perturbadora, estrangeira, rosa, bronzeada, toda acariciada de azul escuro”. Durante todo o romance a cor da pele de Nora permanece enigmática: não é descrita como negra nem como branca. Quando muito, aparece como “bronzeada”. É bem possível que Nora tenha sido pensada por Champsaur como mulata ou mestiça – ainda que ela apareça branca nas ilustrações de capa das duas edições da novela – pois Nora é “a estrela do balé negro”, e “é lá que todas as raças se encontram” (Champsaur, 1929: 13).

Figuras 7 e 8. Ilustrações de capa para o romance Nora: la guenon devenue femme, em duas edições distintas. 93

[Le corps de Nora] émane une animalité indéfinisable, mais indéniable qui déroute un peu. Elle étonne, charme, galvanise [...] elle [Nora] symbolisait à merveille une sorte de volupté animale, ancestrale et vicieuse (Champsaur, 1929: 20 e 24).

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Ademais, a inspiração do autor francês para Nora é, declaradamente, aquela de uma real estrela do Folies-Bergère: a afro-americana Josephine Baker, figura icônica da década de 1920. Além de aparecer em duas ilustrações da folha de rosto da edição de 1929, é ela que é evocada, imediatamente, quando Champsaur descreve Nora no palco. Segue um trecho da matéria de um redator francês, publicada no jornal A Esquerda, relativo às apresentações de Josephine Baker em Paris: E‟ uma mulher? E‟ um homem? Caminha remexendo-se sempre; seu corpo se balança como o de uma cobra, ou mais como uma sanfona em movimento, porque os sons da orchestra até parecem sair della mesma. Incha as bochechas, desarticula-se toda, solta um guincho de macaco selvagem, como um cinocephalo apanhado pelo Voronoff, dá um pincho e finalmente vae-se do palco, em quatro patas, com as pernas tortas, as nadegas retorcidas e como que fora do logar, os hombros mais altos que a cabeça, como si fosse uma girafa nova. Sua figura é horrível, é repellente, é negra, é branca, é tudo... Tem cabellos ou tem o cancro raspado e pintado de pixe? Não se sabe, não se tem tempo de sabel-o. Ella se vae com a mesma rapidez que chega: veloz como um passaro “de rag-time”. Não é uma mulher; não é uma bailarina; é qualquer coisa extravagante e fugitiva como uma musica mesmo [...] (A Esquerda. 1 ago 1928, p. 3)

Este excerto evidencia o modo como a personagem de Josephine Baker escandalizava o público e o leitor, a borrar fronteiras entre os conceitos de homem e mulher, animal e humano, negro e branco. “Sua figura é horrível, é repelente”, diria o autor que a observa. Entretanto, Josephine Baker não deixou de fascinar a década de 1920. Como ela, a personagem Nora também produz desordem e o terror ao mesmo tempo em que encanta. É notável a maneira pela qual a protagonista do romance de F. Champsaur parece personificar o que Mary Douglas viria a elaborar em sua obra Pureza e Perigo (1976). Pensando o romance a partir dos termos propostos pela antropóloga, pode-se avaliar que a intervenção científica operada em Nora cruza uma linha proibida, a da divisão das espécies, cuja mistura produz poluição (Douglas, 1976). Nesse sentido, a história de Nora tem seus pares, que despontam quando representações do feminino e do animal se cruzam em “monstruosidades” selvagens, e convergem na ambiguidade de um corpo inclassificável. Uma das alcunhas de Josephine Baker, por exemplo, foi “Vênus Negra”, título que evoca um dos “símbolos esquecidos da época colonial”, qual seja, a “Vênus Hotentote” (Fauvelle-Aymar, 2004). Este foi o epíteto sob o qual o público europeu conheceu Sara Baartman, no primeiro decênio do século XIX. Na historiografia recente, sua trajetória foi estudada por uma ampla

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variedade de autores, dentre eles P. Mason (2002), F. Fauvelle-Aymar (2004), S. Qureshi (2004) e M. Rago (2010). Nascida em fins do século XVIII entre os Khoisan, nas proximidades da colônia britânica do Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, a Khoi-khoi Sara ou Saartje Baartman viveu como criada em uma fazenda holandesa até 1810. Neste ano, Baartman desembarcou na costa inglesa, vindo de uma embarcação que trazia animais, plantas e pessoas do continente africano, destinados a serem exibidos como objetos exóticos “representando a expansão colonial e como meio de ganho monetário” (Qureshi, 2004: 235). Em solo britânico, S. Baartman participou de exibições etnológicas94, onde era apresentada como um “espécime raro” da espécie humana, por conta das dimensões e formas corpóreas “inusitadas” de suas nádegas e genitália (Fauvelle-Aymar, 2004:111), exposta dentro de uma jaula, praticamente desnuda, enfeitada com colares de pérola, plumas e tinta, “de acordo com o que a imaginação européia esperava de uma mulher negra africana” (Rago, 2010: 9). Em 1814, quando as exibições da “Vênus Hotentote” começaram a entrar em decadência no Reino Unido, S. Baartman foi vendida a um francês, um domador de feras, que explorou à exaustão o potencial lucrativo de sua figura em casas noturnas parisienses, sujeitando-a às mais terríveis humilhações. Ainda em Paris, Baartman foi apresentada a um grupo de médicos naturalistas, servindo como objeto de um estudo de observação anatômica, que teve lugar no Jardin du Roi e durou três dias. Liderada por professores de Museu de História Natural parisiense, a observação resultaria nas ilustrações científicas da “fêmea bosquímana”, que aparecem no primeiro volume da Histoire naturelle des mammifères, de Étienne Geoffroy Saint-Hilaire e Georges Couvier (Qureshi, 2004: 241). Depois de seu falecimento em 1815, Sara Baartman teve seu corpo entregue ao Museu de História Natural de Paris, onde foi dissecado por Georges Couvier, o famoso naturalista francês que analisou minuciosamente suas “anomalias” genitais. O corpo da chamada Vênus Hotentote, além de ter sido reconstituído em molde para servir a estudos anatômicos futuros, permaneceu em exposição museológica até meados da década de 1970, sendo devolvido ao seu vilarejo de origem na África do Sul somente em 2002, depois de uma campanha ativista que atravessou seis décadas, e que contou com o decisivo envolvimento de Nelson Mandela (Qureshi, 2004: 245). 94

Tais exibições eram corriqueiras na Europa do século XVIII, interessadíssima nas coleções etnográficas do Novo Mundo, e em tudo que pudesse vir de lá. Segundo S. Qureshi, as exibições etnológicas, onde um sujeito representava não só a própria figura, como todo o seu grupo étnico, além de representarem a atividade imperial, “borravam de modo perturbador a fronteira humano/animal” (Qureshi, 2004: 238).

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A história de Sara Baartman – e de outros tantos sujeitos submetidos a infortúnios similares – é bastante expressiva, sobretudo no que nos diz acerca do imaginário europeu para o “exótico” universo africano, que buscou “destacar a pequena diferença se não a ausência de qualquer lacuna entre certos povos não-europeus e o mundo animal” (Mason, 2002: 247). O modo como Baartman chegou à costa inglesa, num navio de tráfico de animais e plantas, o fato de ter sido adquirida por um domador de feras na França e de seu corpo ter sido dissecado por um fisiologista não são detalhes menores de sua história. Pelo contrário, trata-se de um paralelismo revelador, onde o tratamento dado a animais e a seres humanos como Sara Baartman – completamente alheios aos privilégios de que gozam os protagonistas do eurocentrismo – faz com que um e outro partilhem misérias correlatas. Fechado estes parênteses, voltemos ao romance. É no Folies-Bergère que os “pais” de Nora – os cientistas – reencontram-na, depois de sete anos. Pouco depois, Goldry entra em contato com a dançarina, prometendo-lhe esclarecer algo sobre sua origem. Nora, ainda ignorante de sua própria história, visita o Instituto Voronoff, onde trabalham os quatro cientistas. O passado de Nora é, para ela, envolto em uma aura de mistério, e ela não se lembra com clareza de nenhum acontecimento anterior ao convento por ter, até então, a memória curta de um macaco. Nora acredita ter nascido uma mulher, como todas as outras, mas sabe que há nela “qualquer espécie de anomalia”, por conta do excesso de força e flexibilidade de seu corpo. Em sua visita ao Instituto Voronoff, Nora conhece Narcisse e outros macacos, e passa por uma série de situações onde se vê tomada por sentimentos fortes, hipnotizada por um atavismo animal, sensações que lhe acompanham durante todo o romance. Nora tem vontades súbitas de saltar e se pendurar nas cortinas, correr de quatro e morder, entre outras pequenas reações involuntárias que revelam nela um animal. O tema do atavismo, aliás, atravessa o romance todo. Nora e Narcisse, cada qual sujeito a um tipo de desventura imputada pelo arbítrio dos cientistas, são personagens antagônicas. Na narrativa de Champsaur, Nora é belíssima, sedutora, inclinada a devaneios. O registro dessa personagem é marcado, sobretudo, no domínio da sensualidade, do descontrole. Sua sensualidade animal latente oferece risco à civilidade humana. Não são raros os episódios onde Nora é rendida aos impulsos do desejo sexual e animal, frequentemente expressos na forma da dança, arte à qual o corpo de Nora se rende por completo. Os devaneios de Nora remetem-nos àquilo que Mary Douglas escreve (1976) sobre a aposta do ritual nas desordens da mente, nos sonhos, nos desmaios e nos frenesis. Segundo a

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antropóloga, o ritual reconhece neles a potência da desordem e uma via para buscar poderes e verdades que estão aquém do esforço consciente. Do mesmo modo, M. Douglas menciona “a aventura pelas regiões desordenadas da mente”, através de andanças pelas florestas, loucuras e poderes mágicos (Douglas, 1976: 118), elementos que também aparecem no desenrolar do romance de F. Champsaur, de forma marcante. Cinco são as personagens apaixonadas por Nora: Jules Ducon – tutor de Nora e uma espécie de cáften da dançarina –, Maud McField – “uma charmosa e astuta menina de hábitos masculinos” –, Ernest Paris, Marc Vanel e Narcisse. Exceto por Ernest Paris e Jules Ducon, os outros protagonizam ao menos uma cena erótica com a vedete. A sexualidade de Nora é algo como uma libido desgovernada que transborda para todas as direções95. Ao longo do romance Nora relaciona-se sexualmente com homens, mulheres, um sátiro e um macaco. A personagem de Narcisse é descrita como uma besta, repulsiva e feia, registrada, entretanto, no domínio intelectual. Narcisse é apresentado como uma personagem profunda. Ele não só deseja, mas sofre de amor, passa por crises psicológicas e existenciais, é excepcionalmente inteligente. O macaco veste-se com elegância, pensa e fala com grande eloquência. Junto de Nora, entretanto, é dominado pela parcela animal que nele ainda vive, pelo impulso sexual e predador. Ao ver Nora dançar, Narcisse ruge, bate no peito e ataca quem ameaça tirar-lhe sua fêmea. É Narcisse quem revela a Nora sua origem simiesca, e os dois tornam-se amantes. A princípio, o orangotango apaixona-se por Nora, ainda sem saber que ela era também uma macaca. Quando finalmente confessa-lhe seus sentimentos, Nora, que até então ria de sua figura, passa do riso ao desprezo, ao nojo; expulsando-o de sua casa, aos gritos, chamando o sensível macaco de “bicho sujo”. Narcisse, possesso, ameaça Nora, que reage de modo feral. O orangotango pasma ao associar esta cena às suas lembranças de algumas frases proferidas, aqui e ali, pelos cientistas em Riviera, a Pequena Bornéu... e entender que Nora é de sua espécie. Narcisse faz com que Nora se lembre de um passado remoto na ilha de Bornéu, descrevendo as florestas tropicais, a terra da liberdade e do sol, à qual suas almas pertenciam. O orangotango, tão habituado aos modos da cidade, encanta-se enquanto discursa, pois o apelo da floresta toma-lhe a alma. Narcisse e Nora abraçam-se e comunicam-se na língua simiesca, sentindo-se, pela primeira vez, completos. Ernest Paris, igualmente enamorado de Nora, depois de muito a cortejar, decide se submeter à enxertia de Voronoff – por mais que a ideia lhe parecesse um tanto pavorosa e

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Esta é uma segunda imagem que interessa reter para a leitura do item 2 do Capítulo 4.

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ousada – pois seu corpo já não respondia mais aos seus afãs amorosos, não podendo o acadêmico amar Nora como ela desejava. O capítulo sobre a “voronoffização” de Ernest Paris começa a ser narrado a partir do ponto de vista de dois macacos: Romeu e Julieta. Ambos são levados do verde cativeiro da Pequena Bornéu para uma jaula fria e hostil no Instituto Voronoff. Desconhecendo seu destino, os macacos sentem uma tragédia porvir. Há algum tempo já notavam que os companheiros, normalmente brincalhões, amorosos e cheios de juventude, uma vez que deixavam a Pequena Bornéu, a ela retornavam tristes e depressivos: [...] esses infelizes retornavam como seres decepcionados com a vida, e para os quais a existência não tem outro objetivo senão a morte; enquanto os outros pulavam, bêbados de alegria e de loucura erótica, eles se contemplavam, parecendo dizer „Irmão, deve-se morrer!‟ Os pensionários de Voronoff, tinham esse instinto, esse pressentimento, que eles estavam destinados a uma misteriosa operação, que os faria inválidos para o amor, como aqueles que reconquistavam o Paraíso dos macacos, tornado seu purgatório96 [tradução livre] (Champsaur, 1929: 206).

O narrador mostra-se bastante sensível ao sofrimento dos animais rendidos às mãos dos cientistas. Conta-nos que Romeu e Julieta se abraçam, apavorados. O pressentimento dos macacos confirma-se quando Romeu é arrancado dos braços de Julieta, que protesta com todas as suas forças. Finalmente rendida, a parceira de Romeu olha o enfermeiro com seus olhos piedosos, e “parecia lhe endereçar censuras mudas” (Champsaur: 1929: 208). O macaco macho é anestesiado à força e amarrado à mesa cirúrgica, onde aguarda o receptor de suas glândulas e o início da operação. Neste momento, “Romeu fica sozinho, livre a vagas e tristes meditações obscuras” (Champsaur, 1929: 210). Nesta manhã, Ernest Paris acorda atrasado, com grande desânimo, e por pouco não desiste da sua operação, comparecendo à clínica, ainda receoso. O autor parece brincar com o receio do velho acadêmico, situando-o tão próximo da descrição do pavor dos macacos. O velho Paris e o macaco Romeu são operados quase simultaneamente. Feita a cirurgia, o acadêmico permanece no Instituto, em repouso, por alguns dias, oportunidade em que Voronoff lhe explica, passo a passo, a intervenção que fora operada em seu corpo, auxiliado pela projeção de um filme que narra e ilustra didaticamente uma enxertia glandular97. Neste

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“[...] Ces malheureux retournaient comme des êtres déçus de la vie, et pour lesquels l‟existence n‟a plus d‟autre but que la mort; tandis que les autres bondissaient, ivres de gaîté et de folie érotique, eux se contemplaient, semblant se dire: “Frère, il faut mourir!” Eh bien! Les pensionnaires de Voronoff, avaient cet instinct, ce pressentiment, qu‟ils étaient destinés à une mystérieuse opération, qui en feraient des invalides de l‟amour, comme ceux qui regagnaient le Paradis des singes, devenu leur purgatoire” (Champsaur, 1929: 206). 97 Champsaur faz referência, desta vez, aos registros cinematográficos de suas cirurgias, dirigidos por Alexandre Voronoff. Possivelmente, descreve a mesma película que foi projetada nos cinemas brasileiros, anunciada como “As operações do dr. Voronoff”.

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capítulo Champsaur revisa, com acuidade de detalhes, o procedimento da cirurgia de Voronoff. O efeito esperado era o de um rejuvenescimento progressivo para os próximos meses. E. Paris decide passar por este processo da forma mais discreta possível, afastando-se da França durante esse período. Pouco antes da sua cirurgia, vem a calhar a notícia de sua nomeação para o Prêmio Nobel de Literatura daquele ano, ocasião que demandava sua presença na Suécia. Conforme os efeitos do seu rejuvenescimento vão aparecendo – sendo eles a presteza que a personagem adquire, a precisão de seus gestos, a sonoridade de sua voz, o brilho em seus olhos e a segurança do seu andar – o despertar do desejo sexual não tarda. Plenamente rejuvenescido, aparentando vinte anos a menos, pensando com frequência em Nora, bastante apaixonado, decide voltar à França. Mas dois meses se passaram nessa viagem, de modo que Ernest Paris desconhecia o caso amoroso ao qual Nora se entregara nesse meio tempo: [...] o despertar da besta ancestral a jogou [Nora] nos braços peludos do orangotango. Até então, as mulheres e os homens encontrados, no acaso da vida, não a satisfizeram senão pela metade. Com Narcisse, foi a plenitude. Para ela, o macaco não era o que ele era para os outros: o monstro, o animal; ela sentia, ela sabia, agora, que existia entre eles um intenso elo de raça, um atavismo, uma hereditariedade, que, dessa forma, os fazia semelhantes98 [tradução livre] (Champsaur: 1929: 249).

Ernest Paris chega de viagem “[...] todo vivaz e borbulhante de impaciência amorosa”, quando se depara com Nora em sua cama, nos braços de Narcisse. E o vencedor do prêmio Nobel de literatura tem um disparate animalesco: A raiva e a repulsa borbulhavam na cabeça de Ernest Paris, enquanto a fotografia viva, que lhe era mostrada, em seu impudor bestial excitava sua virilidade já despertada por sua imaginação esperançosa das alegrias de seu retorno. Com um verdadeiro grito de bicho no cio, ele pula sobre os dois, golpeia com toda sua força o macaco [...] e se lança sobre ela com uma sensualidade animal selvagem99 [tradução livre] (Champsaur: 1929: 251-252).

O orangotango é igualmente possuído por uma ferocidade animal e enfrenta Ernest Paris, cedendo ao “instinto da besta”. O homem que se tornou animalesco e o animal que fora “[...] le réveil de la bête ancestrale l‟avait jetée dans le bras velus de l‟orang-outang. Jusqu‟alors, les femelles et les mâles rencontrés, au hasard de la vie, ne l‟avaient qu‟à demi satisfaite. Avec Narcisse, ce fut la plénitude. Pour elle, le singe n‟était pas ce qu‟il était pour d‟autres: le monstre, l‟animal; elle sentait; elle savait, à présent, qu‟il existait entre eux un intense rapport de race, un atavisme, une hérédité qui, à la forme prés, les faisait semblables” (Champsaur: 1929: 249). 99 “La rage et le dégôut bouillonnaient dans le cerveau d‟Ernest Paris, tandis que le tableau vivant, qui se montrait à lui, dans son impudeur bestiale, excitait sa virilité déjà éveillée par son imagination escomptant les joies du retour. Avec un véritable cri de bête en rut, il bondit sur le groupe, frappa de toute sa force le singe [...] et se jeta sur elle avec une sensualité d‟animal sauvage” (Champsaur: 1929: 251-252). 98

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humanizado travam uma batalha selvagem pela fêmea. “Entre esses três animais, que o instinto, o frenesi sexual dominava, a razão não existia mais” (Champsaur, 1929: 252). E. Paris é morto, estrangulado pelos pés de Narcisse. Depois da morte de Paris, aquilo que poderia ser uma união feliz entre os dois macacos revela-se uma grande frustração aos olhos de Narcisse, que não encontra em Nora nada senão a sensualidade de um “magnífico animal de prazer”. Segundo o orangotango, nessa mulher, nada vem do espírito, e seu espírito, que é sobretudo romântico, entra num estado de desilusão amorosa. Por fim, Narcisse, cuja inteligência torna-se mais genuína que a dos próprios cientistas, desiludido também com eles, enfrenta-os, na cena final do romance. Nesta cena o leitor é informado sobre os futuros planos dos cientistas e aquele que eles decidem para os macacos. Fortin sugere para Nora dois possíveis destinos: deixá-la seguir sua vida ou retomá-la para novas experiências. Voronoff o interpela, indignado: “– Que diabo você quer mais fazer? [...] Ela é mulher e deve continuar assim”. Mas Fortin – cuja nacionalidade estadunidense é tratada por Champsaur como o estereótipo da ambição e da ganância – tem planos maiores “– à conquista do globo... nós vamos ao progresso, sobre tudo, sobre todos!”. A fala final é de Narcisse: “– Decididamente, eu prefiro continuar orangotango” (Champsaur, 1929: 282). Entediados com seus macacos e seus projetos científicos na França, o quarteto de cientistas sugere desfazer-se para dar lugar a novas investigações em outras partes do mundo, como exposto por Marc Vanel e Jean Fortin, que andavam interessados no estudo dos fenômenos ondulatórios do cérebro e o desenvolvimento de uma “Comunicação PsychoTelephatica” a longa distância. Desorientado com a possível partida de seus tutores, Narcisse pergunta o que seria feito dele: – Você tem Nora, acrescenta Marc Vanel sorridente. Que memória luxuriosa passou, de repente pela cabeça do orangotango, e resultando em cólera! Ele se levanta entre os quatro doutores, sentados, e, do alto, com seu grande focinho, e seus olhos brilhantes, os olha, deixando cair essa palavra sobre eles como um insulto: – Cérebros! E retoma, à surpresa de todos: – Nora, que eu amo, apesar de todas as suas práticas de cirurgia estética, continua uma macaca. E eu, apesar de todos seus trabalhos científicos sobre a minha cabeça, eu não sou ainda mais que um homem de madeira... Ouha!...Ouha! O orangotango, de braços erguidos, agitava suas fortes mãos, gritava, grunhia, furioso, terrível, e por um instante os quatro doutores, assim encurralados, tiveram medo dessa Besta, subitamente acordada no ser civilizado que eles tinham feito. Narcisse, agora, batia sobre o seu largo peito como sobre um tambor e repetia com desprezo:

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– Cérebros! Pobres cérebros!...Ouha!...Ouha!...100 [tradução livre] (Champsaur, 1929: 285-286).

O comovente protesto dos macacos, apreendido pelo narrador em cenas anteriores, marcadamente, aquela protagonizada pelos macacos Romeu e Julieta, é agora verbalizado por Narcisse, neste impactante diálogo que fecha o romance. O desfecho de Nora traz uma crítica aguda às ambições dos cientistas, que não poupam suas cobaias para perseguir o progresso da ciência, “sobre tudo, sobre todos!”. Aqui, F. Champsaur parece convidar o leitor a uma reflexão sobre os limites éticos da ciência, sensibilizando-o ao triste destino das personagens animais, à deriva da arbitrariedade da curiosidade científica. Embora tenha se transformado numa mulher, Nora é um desses animais, não podemos deixar de lembrar. A trajetória da personagem atravessa tantas instâncias categóricas que faz dela um verdadeiro pária: uma macaca, cobaia, simultaneamente fêmea e mulher. Os ovários por ela recebidos têm origem nobre, porém decadente, estrangeira, de uma “ex-princesa russa”. As demais glândulas nela enxertadas, tireóide e pineal, são oriundas de um operário. Uma vez mulher, o tom de pele de Nora assume uma coloração indizível. Aos olhos de qualquer personagem do romance, Nora é fascinante. Pode-se dizer que a personagem seja a própria materialização da ambiguidade do animal, que, por sua vez, se desdobra nas ambiguidades do gênero e da raça. No romance, todas essas ordens aparecem como categorias perigosas, que despertam uma série de hesitações. Interessa aqui refletir sobre o grande dilema que é a distinção entre animal e humano, que parece ter ancorado uma maneira de se pensar dilemas de gênero e raça, naquela época. O romance de Champsaur costura, enfim, uma série de ansiedades que eclodiram na década de 1920, e que não ficaram restritas à França. Para voltar ao Brasil e ao Rio de Janeiro desta década, sem nos afastarmos do tema acima desenvolvido, podemos pensar no trabalho de T. Gomes (2004), mencionado anteriormente, que persegue tais questões na cultura de massas da sociedade carioca da época. “– Tu as Nora, ajouta Marc Vanel en souriant. Quel souvenir luxurieux passa, tout à coup, dans le crâne de l‟orang-outang, et l‟entraîna dans une colère? Il se dressa parmi les quatre docteurs, assis, et, de haut, avec son large mufle et ses yeux brillants, les regarda, laissant tomber ce mot sur eux comme une insulte: – Cerveaux! Il reprit, dans l‟étonnement de tous: – Nora, que j‟aime, malgré sur elle toutes vos praticques de chirurgie esthétique, est restée une guenon. Et moi, malgré tous vos travaux savants sur ma tête, je ne suis encore qu‟un homme de bois...Ouha!...Ouha! L‟orang-outang, les bras levés, agigant ses fortes mains, criait, glapissait, furieux, terrible, si bien qu‟un instant les quatre docteurs, ainsi acculés, eurent peur de cette Bête, tout d‟un coup réveillée en l‟être civilisé qu‟ils avaient fait. Narcisse, à présent, tapait sur sa large poitrine comme sur un tambour et répétait avec mépris: – Cerveaux! Pauvre cerveaux!...Ouha!...Ouha!...” (Champsaur, 1929: 285-286).

100

106

Lemos na análise deste historiador o modo como a imprensa do Rio de Janeiro reagiu às primeiras peças de teatro parisienses – e, mais tarde, cariocas – que introduziram nus e atores negros nos palcos, bem como ao estouro do jazz e suas vertentes musicais e às novas modas de vestuário, enfim, às novidades da modernidade. Grosso modo, as crônicas e artigos mais refratários à questão procuravam ridicularizar tais elementos classificando-os como “manifestações negras”, apoiando-se basicamente em duas leituras: uma que endossava o estereótipo da hiperssexualização sobre a população afrodescendente, e outra que introduzia a questão no tema civilização e barbárie, e os danosos efeitos que tal encontro traria à cultura e à sociedade (Gomes, 2004: 263-264). Prossigamos com os ecos que a história de Voronoff produziu no Brasil, no debate popular a respeito de sua figura, perseguindo seus rastros na produção cultural popular carioca e paulistana das décadas de 1920 e 1930.

2.

“Doutor Voronoff” Podemos, agora, voltar ao livro “Doutor Voronoff”, de Mendes Fradique, atentando,

desta vez, para o seu conteúdo. Ao analisá-lo em artigo de 2008, Cleverson Carneiro101 descreve o romance como “uma espécie de proto-ficção científica brasileira”. Contada por um narrador onisciente, em terceira pessoa, a história trata das desventuras de Eduardo Marinho, um senhor abastado de sessenta e oito anos102, que vivia em uma mansão com sua filha adotiva, Glorinha, e há muitos anos se mantinha celibatário, até o dia em que se apaixona perdidamente por uma mulher que tem pouco mais de trinta anos a menos que ele. O protagonista fica profundamente envergonhado por flertar na terceira idade, pois já perdera o vigor sexual que tinha na juventude. Ao longo da trama, acaba convencido de tirar a sorte com uma operação do doutor Voronoff, que estaria de passagem pelo Rio de Janeiro. No romance, quando Voronoff chega ao Brasil, não traz apenas macacos, mas também doadores humanos: “robustos latagões de excelente aparência”, apresentados de acordo com sua nacionalidade: “alguns húngaros, cinco franceses, quatro belgas e um negro norteamericano” (Fradique, 1926: 326). Desse modo, o enxerto de Eduardo Marinho não é feito

101

Veja-se também Cuperschmid, E. 2014. “O Doutor Voronoff de Mendes Fradique” in WebMosaica. Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall v.6 n.2 (jul-dez) 2014. pp. 112-123. 102 Idade considerada avançada, naquela época.

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com glândula de símio, mas com a glândula de um robusto rapaz húngaro, campeão de bicicleta em Anvers. Feita a intervenção cirúrgica – um tanto arriscada, por ser uma das primeiras que Voronoff (a personagem) fazia com material glandular humano –, o enxerto começa de fato a resultar no rejuvenescimento do corpo do protagonista, porém, vem acompanhado de uma série de complicações e efeitos colaterais que levam Eduardo a uma situação miserável. Com o passar dos dias, acumulam-se consequências orgânicas imprevistas que desequilibram por completo seu organismo, no qual se instala uma luta entre órgãos rejuvenescidos e estruturas envelhecidas. O caso do enxerto de Eduardo torna-se objeto de agitadas conferências entre um pequeno grupo de médicos, convocados pelo próprio Voronoff. Entre eles, aparece um médico jovem, sujeito petulante – apelidado de “pernilongo” pelo narrador, por conta de seus modos insistentes e irritantes – entusiasta da escola francesa de medicina, que não poupava citações tiradas das revistas médicas, e que via Voronoff como um charlatão que vinha sendo protegido apenas pelo fato de ser estrangeiro. Mas foi o próprio Voronoff que compreendeu o problema em torno dos resultados desastrosos do enxerto de Eduardo: Nos enxertos em que se empregára glandula de macaco, e que haviam pegado, não se tinham verificado taes perturbações, porque, com o tecido dos simios, dada a differença de especie animal entre doador e donatario, o rejuvenescimento operára-se sempre de modo parcial, em gráu mais moderado de revitalisação; e assim não chegava a chocar as condições anatomicas do paciente; conseguia apenas exaltar-lhe as funcções peculiares á glandula enxertada. Agora, porém, com a utilisação do material humano, se realisára, em virtude de affinidade especifica entre doador e donatario, um rejuvenescimento quase integral em determinados tecidos, d‟ahi a flagrante disparidade entre as aptidões novas das partes remoçadas e a incapacidade dos orgãos que permaneceram em estado senil (Fradique, 1929: 371-372).

A conclusão de Voronoff é que somente o levantamento do enxerto, ou seja, sua retirada, poderia curar o homem. Entretanto, o operado se recusava terminantemente a ter seu enxerto removido, decidido a enfrentar os efeitos adversos de seu rejuvenescimento. E, assim, Eduardo é acometido de dores insuportáveis, torna-se parcialmente cego e ganha uma libido incontrolável. Além de afundar sua própria empresa, seus planos de casamento caem por terra, pois o bom caráter do velho Eduardo se perde numa juventude inconsequente, descrita pelo autor como animalesca, regida pelo afã sexual. Ao fim do romance, Eduardo é tomado por impulsos praticamente incestuosos, quando começa a desenvolver desejos carnais por sua filha adotiva:

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[...] era o vigor do instincto remoçado que tripudiava sobre os ultimos resquicios do senso senil. Desgraçadamente esta mentalidade nova, ébria de vida animal, empolgára completamente Eduardo (Fradique, 1926:328).

O sexagenário chega mesmo a revelar à Glorinha que ela fora adotada – fato que a moça, até então, desconhecia – para lhe pedir em casamento. Mas seu estado de saúde passa por uma piora grave e, depois de sofrer na pele as “angústias criadas pelas inovações tecnológicas de seu tempo” (Carneiro, 2008: 42), Eduardo morre, poupando Glorinha de um destino que ela repugnava, mas ao qual estava prestes a se submeter, em sacrifício. Interessa sublinhar o fato do enxerto do protagonista ter sido feito com glândula humana, e não animal. No entanto, ao descrever o despertar da libido que acompanha o rejuvenescimento de Eduardo, Mendes Fradique o faz no registro do descontrole animal. Em certos trechos, a jovialidade parece se equacionar à animalidade, pela via da sexualidade. A sugestão de uma indiferença do protagonista ao incesto parece vir para confirmá-la103. Mendes Fradique insere, ainda que discretamente, a questão da raça. O doador escolhido para Eduardo, afinal, era um nórdico húngaro, esportista de uma “robustez animal” (Fradique, 1926: 344). Dentre os demais doadores europeus e o negro norte-americano, era ele quem “parecia, sem duvida, o mais desempenado e intelligente dentre os doadores trazidos pelo sabio” (Fradique, 1926:334). Um dos efeitos adversos sentidos por Eduardo, depois do enxerto, foi uma insistente urticária, que o empipocara todo, atormentando-o com intermináveis coceiras. Gonzaga, o melhor amigo de Eduardo, que, aliás, demonstrava enormes reservas em relação a Voronoff, brincava com o amigo “voronoffizado”, dizendo que a história do moço europeu não passaria de um engodo, e que o enxerto parecia ter sido feito com a glândula de um macaco, ou mesmo uma única injeção de “soro de macaco”, concluindo: “Olha que essa coceira não quer dizer outra coisa...” (Fradique, 1926: 384).

103

Veja-se “O problema do incesto” em C. Lévi-Strauss, 1982.

109

Figura 9. Ilustração de capa do romance Doutor Voronoff

A gravura de capa do romance, possivelmente feita pelo próprio Mendes Fradique, que era também um renomado cartunista, traz elementos que se distanciam do enredo do romance, mas que talvez instigassem o público leitor de maneira mais eficaz. A história de Mendes Fradique, que não tinha macacos, médicos sinistros, tampouco preparações e frascos misteriosos, foi ilustrada nesses termos. Elemento um pouco mais condizente com o enredo talvez seja a sedutora silhueta feminina ao centro da gravura. Este romance fez uma contribuição importante à composição da figura de Voronoff no imaginário popular dos brasileiros, chegando mesmo, talvez, a dar o tom do modo como ele seria recebido. Além do livro de Mendes Fradique, muitos dos registros abordados neste capítulo – como o leitor poderá notar, observando as datas de cada fonte – são anteriores à visita de Voronoff ao Brasil, o que sugere a dimensão da expectativa popular em relação à chegada do médico franco-russo, em julho de 1928.

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3.

Voronoff em cartaz

De fato, como previsto por Mendes Fradique, ao longo da década de 1920 a figura de Voronoff transformou-se em tema de uma série de peças de teatro, películas do cinematógrafo, colunas jornalísticas, crônicas, pequenos contos, ilustrações humorísticas e canções populares, aparecendo, ainda, em alguns carnavais. Um personagem transmidiático, pode-se dizer. Em 1923, antes mesmo de Mendes Fradique iniciar a redação de seu romance, começaram os ensaios do que parece ter sido a primeira peça de teatro brasileira sobre o Dr. Voronoff, autoria de Brito Mendes e Romain Vouloir: a comédia “Voronoff arranja tudo!”. No ano seguinte, um número do teatro de revista Allô!...quem fala?, de Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes, trouxe à cena um personagem que volta da Europa “retemperado pelos novos e curiosos processos do professor Voronoff” (O Paiz, 11 mar 1924, p. 5). Em dezembro de 1926 estreava a peça que vinha sendo exaustivamente anunciada pelo Correio Paulistano, a elogiada “charge-comédia” de três atos da Companhia Jayme Costa, dirigida por Fernando Lacerda, autoria de Cândido de Castro: “O Processo Voronoff” (Correio Paulistano, 8 dez 1926, p. 4). Em julho de 1928 entrou em cartaz o quadro “Doutor Voronoff”, de Carlos Queirolo no Cadê as notas?. No mesmo mês, apareceu ainda o quadro “Doutor Boronoff”, autoria de Marques Porto e Luis Peixoto, pela Revista do Recreio (O Jornal, 31 jul 1928, p. 16). No mês seguinte104, a peça escrita por Eduardo Rocha “Elixir de Voronoff ou Elixir Paz e Amor” passava pela censura teatral, cuja exibição foi julgada como “imprópria para menores”. Por fim, em 1929 Romano Coutinho escreve a peça “Effeitos de Voronoff”105. Entre estes autores estão alguns dos maiores nomes do teatro de revista da década de 1920, como podemos ler na obra de T. Gomes (2004), com a qual o historiador nos oferece uma análise rica e bastante informativa em relação à cultura de massas do Rio de Janeiro dos “anos loucos”. O teatro de revista106 é por ele descrito como gênero polissêmico, capaz explorar – frente a um público de diferentes extratos socioeconômicos – as “questões mais

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Não se sabe ao certo a data em que a peça foi escrita, apenas a data em que foi censurada pela Polícia do Distrito Federal, no Rio de Janeiro em 21 de agosto de 1928. 105 Desta lista de peças teatrais, foram quatro as que puderam ser acessadas ao longo da pesquisa: “O Processo Voronoff”, “Elixir de Voronoff”, “Doutor Voronoff” e “Effeitos de Voronoff”. Do restante das peças, sabemse apenas as informações expostas no parágrafo acima, e que todas se encaixam no gênero da comédia. 106 Que ganha este nome pelo hábito de passar em revista os acontecimentos do ano, “como um veículo de difusão de modos e costumes, como um retrato sociológico, ou como um estimulador de riso e alegria através de falas irônicas e de duplo sentido, canções „apimentadas‟ e hinos picarescos” Informação disponível em http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/Bilontra/trevista.htm Acesso em 27 de outubro de 2016.

111

palpitantes do momento”, travando “permanente debate sobre as questões da atualidade” (Gomes, 2004: 35). Nas casas de cinema, a comédia à qual se vinculava o nome de Voronoff esteve em cartaz em julho de 1928. Trata-se de um filme que hoje é considerado perdido, do qual pude acessar apenas alguns anúncios: The Rejuvenation of Aunty Mary, propagandeado nos jornais como Tia Maria virou criança!, “uma hilariante comédia”. Os anúncios ilustrados, publicados na Gazeta de Notícias e n‟O Paiz, trazem uns versinhos sobre o enredo: “Virou criança a titia. E poz tudo em rega-bofe107 – Talvez – um rapaz dizia – Effeitos do Voronoff”108 (O Paiz, 14 jul 1928). Outro domínio elementar da cultura popular brasileira do início do século XX é o conjunto da música carnavalesca, descrito por Renato Vivacqua nos seguintes termos: Um verdadeiro almanaque musicado, um repositório de “fait-divers”, retratando com senso crítico apurado e de maneira espirituosa o dia a dia da história. Nenhum acontecimento digno de registro deixou de ser pinçado pelos argutos criadores de nosso cancioneiro popular: a política, as descobertas da ciência, as modas e modismos, os conflitos mundiais, as vicissitudes sociais, enfim um painel cronológico fotografado pelo talento de nossos compositores (Vivacqua, 2004: 9).

Somando-se as marchinhas de carnaval e outras referências mais ou menos diretas, Voronoff foi referenciado ao menos oito vezes nas folias carioca e paulistana dos anos de 1927, 1928 e 1929. Como o leitor poderá notar ao longo deste capítulo, o humor deu o tom de quase todas as narrativas da produção cultural em torno de Voronoff, em âmbito nacional. Em janeiro de 1928 foi oficialmente anunciada a vinda do franco-russo ao Brasil, notícia que gerou enorme expectativa pública, sobretudo entre os cariocas e paulistanos, que teriam a oportunidade de ver de perto o “sábio eslavo” (Gazeta de Notícias, 28 jul 1928, p. 1). A partir de março a população já podia se inteirar de todos os detalhes da cirurgia de enxerto glandular, pois, neste mês, entrou em cartaz um filme que foi anunciado como As operações do dr. Voronoff, O Segredo do dr. Voronoff, ou mesmo Voronoff109. Trata-se de

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Festa em que se come e bebe à farta. Por analogia: abuso, exceder os limites. Como podemos ler no ensaio de Flora Sussekind (2006), nas décadas de 1910 e 1920, era comum que os jornais pagassem (em boas quantias) escritores e literatos para produzirem esses tais versinhos, que deveriam resumir a trama dos filmes em cartaz “com repetições sonoras e simples, em linhas bem marcadas e linhas curtas”, para despertar o interesse do leitor (Sussekind, 2006: 44). Bastos Tigre, por exemplo, dedicou-se largamente à produção de sonetos, quadrinhas e slogans publicitários – não só de filmes, como dos mais variados produtos e estabelecimentos comerciais – encontrando neste novo mercado uma sólida fonte de renda (Sussekind, 2006: 63-66). 109 O título variava de acordo com a casa de cinema que o anunciava, mas trata-se do mesmo filme. 108

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uma produção francesa110, que documentou em película cinematográfica o próprio Voronoff praticando suas cirurgias em bodes, macacos e seres humanos, no seu laboratório na França, e apresenta o caso de alguns operados, onde o espectador poderia acompanhar fotografias destes sujeitos antes e depois dos enxertos glandulares. Os anúncios de jornal aconselhavam este filme aos estudantes e profissionais da área médica, mas também para o púbico em geral, excetuando-se “menores e senhoritas”, para quem a película foi considerada imprópria, por ordem da polícia (O Estado de S. Paulo, 1 set 1928, p. 19). Até agosto de 1928 o filme havia sido exibido diariamente em um bom número de cinematógrafos. Os leigos interessados podiam ainda adquirir os livros do próprio Serge Voronoff, Vivre (1920) e La Conquête de la Vie (1928) – escritos com o objetivo de popularizar o seu método e apresentar suas ideias de modo acessível ao público não-especializado –, ou mesmo acompanhar os folhetins d‟O segredo do dr. Voronoff111, traduzido para o português e publicado integralmente n‟O Paiz, durante os últimos meses de 1926. O conteúdo deste livro de Hector Ghilini é muito próximo ao do livro Life, acrescido de uma pequena e elogiosa biografia do franco-russo e uma extensa seção sobre os casos dos enxertados, no intuito de atestar o sucesso da enxertia glandular.

4.

A velhice em regabofe

Eduardo Marinho foi, a saber, o primeiro de muitos outros personagens fictícios que embarcaram nas aventuradas cirurgias de “voronoffização” e sofreram na pele os tragicômicos efeitos de tal intervenção. Este é o enredo de base de boa parte das narrativas tratadas neste capítulo. A começar por uma marchinha de carnaval, em 1926 o cantor João Frazão interpretou “Voronoff”, canção com letra de Ary Kerner e música de Eduardo Souto. Os versos bemhumorados narram que já não havia mais velhos no mundo “depois da tal descoberta” do Dr. Voronoff: [...] Se acaso um velho casava Ha poucos annos atraz O povo logo gritava Não pode! Não é capaz... Há velhos que andam correndo O dia todo no mato 110

Muito provavelmente dirigida pelo irmão de Serge, Alexandre Voronoff, responsável por operar a técnica da cinematografia para o registro de algumas operações, eventualmente exibidas nas conferências de Serge Voronoff. 111 Homônimo do filme acima mencionado.

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Os bichos andam com medo Macaco é que paga o pato Mulher é bicho sabido As cousas sabe julgar Escola de velho é outra Ninguém os pode ganhar Ai! Ai! Ai! Ai! Que farra! Que regabofe! Ai! Ai! Ai! Ai! Que fez o seu Voronoff! (“Voronoff”, Ary Kerner/Eduardo Souto. 1926).

No ano seguinte a canção “Voronoff” foi regravada por Frederico Rocha 112 e incluída como “um sambinha carnavalesco” no carnaval carioca de 1927. A “farra” e o “regabofe” proporcionados aos clientes do Dr. Voronoff foi também tema de ao menos três peças de teatro, cujos originais puderam ser acessados nesta pesquisa: em ordem não cronológica “Doutor Voronoff”, “O Processo Voronoff” e “Effeitos de Voronoff”. A primeira, encenada em 1928, é uma comédia cujo enredo gira em torno da personagem de Geronimo, um senhor de oitenta e cinco anos que está à beira da morte, mas que ainda quer se casar, para a aflição de três jovens interessados em sua herança, que aguardam com ansiedade a morte do octogenário. Estes personagens tentam encontrar um meio de fazê-lo desistir da ideia, e um deles se disfarça de médico para tentar convencê-lo de que o casamento seria inviável e prejudicial à sua saúde. Mas o plano começa a falhar quando aparece na casa de Geronimo um segundo médico, dessa vez, legítimo. O desenrolar da narrativa faz da medicina um assunto extremamente cômico, sobretudo no diálogo entre o médico fajuto (Chic) e o médico verdadeiro (Orlando). Em dado momento, exige-se de Chic uma explicação para a moléstia de Geronimo, e ele se vê obrigado a improvisar: CHIC: – Pois bem. A sua physilomania diz os sintomas da carburação, sofridos pelas matérias internas decompostas, hipertropia do aparelho digestivo, pela falta de mascamento que afetam as paredes cimentadas do estomago. ORLANDO (desconfiado): – Como? GERONIMO: – Não julgava que eu tivesse cimento na barriga. CHIC: – É necessario um tratamento enérgico...brutal...pois, em resumo, o senhor sofre de uma enteryte aguda, febril, cerebrobórica, espinhal, sádica, inter-estadoal. ORLANDO – Que doenças são essas que para mim são desconhecidas? CHIC: – São doenças ultra-modernas, futuristas (“Doutor Voronoff”. Mario Lucio, 1928, pp. 6-7).

112

Áudio disponível em https://www.youtube.com/watch?v=q_7L_hIsUZw Acesso em 10 de janeiro de 2017.

114

Depois de quatro páginas nesse diálogo maluco, Orlando compreende – note-se como demora a fazê-lo – que Chic não é médico coisa alguma e, para o desespero daqueles que aguardavam a herança, aconselha o Sr. Geronimo a se consultar com Voronoff – colega por quem ele tinha grande consideração – para que o octogenário pudesse se casar, segundo seu desejo. E o velho é então “voronoffizado”. Ao fim da peça Geronimo desiste do casamento, pois resolveu doar toda a sua fortuna a Voronoff, que o deixou com a aparência e o vigor dos trinta anos, com sua cirurgia milagrosa; e, ademais, depois de “voronoffizado”, ele quer diversão, ir à farra, como diz na fala que encerra a peça: “á farra...„a Voronoff‟”113. Interessa sublinhar o modo como a cena que põe em diálogo os dois médicos, “o fajuto” e o “verdadeiro”, tematiza, humoristicamente, a questão do charlatanismo dentro da medicina. Outro ponto a se frisar é a mudança na personalidade de Geronimo, o velho à beira da morte, que, através da “voronoffização”, passa de “quase-defunto” avarento a moço forte, mais interessado em farras e diversão do que em casamento e dinheiro. Dois anos antes, a peça “O Processo Voronoff”, de Cândido Castro, era apresentada na capital paulista. A história se passa no seio de uma família tradicional moralista paulistana, a casa de Carlos e Amélia. Este é apresentado como um advogado que naquele momento trabalhava em um processo da Liga de Bons Costumes contra “uma bailarina de um caféconcerto que se exhibe em bailados pouco vestidos”. Os familiares do protagonista consideram-no o “marido ideal”, “a flor dos genros”, homem de “serevos principios”. Seu sogro é Balthazar, um velho que há anos não ia à capital, e vivia resignado a uma pacata rotina que o alternava entre a mesa e a cama – e esta “só para dormir”. Sua esposa, Dorothea, é uma “assanhada” senhora de cinquenta anos de idade, de aparência e espírito jovial, que anseia por ver seu marido “voronoffizado”, como meio de reverter seu pacato desânimo senil. A trama começa a se desenvolver quando a tal bailarina do café-concerto, Dodó, resolve ir à casa do advogado averiguar o processo, e surpreende-se com a ironia da situação ao deparar-se com Carlos, que fora seu amante, há alguns anos. Às escondidas, o casal decide retomar o romance. Para o nervosismo de Carlos, Dodó, por diversão, resolve fazer uma visita à sua casa – onde ele estava recebendo toda sua família – fingindo ser uma cliente americana do advogado. Balthazar, que ainda não se mostrava muito animado com a ideia da esposa em submetê-lo ao tratamento de Voronoff, deixa-se convencer imediata e completamente assim

113

Além da narrativa em si, interessa notar uma observação do autor feita na primeira página da peça, supostamente, referente à cena de abertura/apresentação: “Quando entra o dr. Voronoff póde entrar um homem fantasiado de macaco”.

115

que deita os olhos em Dodó. Extasiado pela sua beleza, promete à dançarina uma visita noturna, logo que tomasse a injeção rejuvenescedora. Voronoff, “o professor”, é também uma personagem, que passa o dia no mercado, escolhendo porquinhos-da-índia e coelhos para seus estudos experimentais, enquanto uma pequena multidão de “pacientes impacientes” faz um alvoroço à sua porta. Naquele dia, Voronoff recebe a encomenda de um cabrito, cuja glândula servirá ao soro que rejuvenescerá Balthazar. Basta uma injeção de soro da glândula de cabrito, e o efeito não tarda mais que vinte e quatro horas, ao fim das quais o velho acorda ouvindo a voz de Dodó, e sentindo a sua mão sobre a fronte, tem uns estremeções violentos, e desperta, abrindo os olhos, onde ha uma grande vivacidade de olhar. Fita Dodó, sorri, tenta falar, mas dos labios apenas lhe saem uns balidos de cabrito: --Beeeeeh! DOROTHEA: Que é isto, professor? Meu marido virou um cabrito? PROFESSOR: É a glandula que começa a produzir seus effeitos... (“O Processo Voronoff”. Castro, 1926. Primeiro Ato, p. 26).

Uma vez rejuvenescido, Balthazar não tem dúvida: parte imediatamente para a casa de Dodó. Além dos balidos de cabrito que entrecortam suas falas, a personagem passa a flertar com todas as mulheres que encontra, e passa noites numa “bruta farra” em “pensões chics” e cabarés, com “muitas mulheres, jazz-band, fox-trot, black-bottom, cock-tails, clearing-cup”. Don Antonio, o noivo de Dodó, é a próxima personagem a se consultar com Voronoff. Este é um argentino bruto, verdadeiro “gaucho de los pampas”, “antigo laçador de bois, e que quer agora, á viva força”, casar-se com Dodó. Sua personagem, completamente passional, faz um verdadeiro rebuliço toda vez que aparece no palco, em sua fúria polvorosa, “farejando” rastros dos amantes de Dodó e “rosnando enraivecido”. Don Antonio é adjetivado como um “selvagem”, um “canibal”. Sua personagem é guiada por uma terrível sede de sangue, e jura a morte de quase todas as demais personagens masculinas da peça, por ciúmes. A dançarina acaba convencendo-o a se submeter a Voronoff, para que este lhe aplicasse “uma injecção moderadora”, cujo intuito não seria o despertar a virilidade, mas sim, moderar aquele comportamento tempestuoso. Afinal, Voronoff era capaz de fazer “da mais velha matrona uma florida rapariga; e de qualquer velho, babão e decrepito, um bello e robusto rapagão. E vice-versa...” (“O Processo Voronoff”. Castro, 1926, Primeiro Ato, p. 14). Don Antonio, depois de “voronoffizado” transforma-se num cordeirinho manso, tímido e infantil, irreconhecível. Dorothea, chantageada por Dodó, que guarda um segredo seu, relativo a um episódio de traição de seu passado, é obrigada a conceder a Balthazar dez dias “de licença”, para que ele possa desfrutar com Dodó e outras mulheres o rejuvenescimento que

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Voronoff lhe trouxera. O diálogo final se passa entre o “amansado” argentino e o velho rejuvenescido que bale como cabrito. O primeiro pede timidamente ao segundo que o este lhe leve ao cinema, e tem como resposta: “-- Eu? Esperas por isso... Eu vou para a farra. Para isso arranjei a glandula e dez dias de licença!” (“O Processo Voronoff”. Castro, 1926, Terceiro Ato, p. 16). Note-se, além da semelhança com o desfecho da peça anterior, o fato de a “voronoffização” ser feita não via enxerto, mas mediante injeção, tanto para o caso de Balthazar como para o de Don Antonio. Já, na peça “Elixir de Voronoff ou Elixir Paz e Amor”, o tratamento que restaura os ânimos amorosos de todas as personagens, mais velhas e mais moças, é a ingestão de um “elixir”, anunciado por um panfleto farmacêutico do seguinte modo: Invento de reacção do chimico pharmaceutico Atilo Procapib Mandanha! [...] Cura instantanea do mau humor...da raiva e dos chiliques. As pessoas que já fizeram 69 anos restitue o vigor e a agilidade. Puro Voronoff sem glandulas de macaco. Tres gottas do nosso preparado são de um effeito fulminante [...] Faz ficar calma as mulheres de genio furibundo (“Elixir de Voronoff ou Elixir Paz e Amor”. Eduardo Rocha, 192?, p. 7).

Por fim, temos a peça “Effeitos de Voronoff”, escrita por Romano Coutinho em 1929. A história se passa entre o Rio de Janeiro e São Paulo e narra as trapalhadas de um homem casado, chamado Raul, e de seu sogro, o maior moralista que ele conhece, o Sr. Santos. O nome é uma ironia com a forma pela qual os personagens são vistos por suas esposas: criaturas incorruptíveis, Raul, o marido ideal, Santos, moralista intransigente – verdadeiros pilares da fidelidade matrimonial. O público, no entanto, é logo informado que Raul é, na verdade, um cafajeste que mente descontroladamente – sobretudo ao sogro e à esposa – para justificar suas frequentes viagens a São Paulo, onde ele mantém relações com uma amante. Mas Raul não é o melhor dos mentirosos, e acaba tendo que se confessar para o sogro. Para sua surpresa, descobre que o “velho” Santos – o personagem assim é descrito, apesar de ter apenas cinquenta anos de idade –, com o dobro de sua idade, é bastante dado a bebedeiras, igualmente frequentador das casas de prostituição em São Paulo e, inclusive, tem com Raul uma amante em comum: Lalá. Genro e sogro, que não precisam mais forjar um comportamento exemplar um ao outro, finalmente se entendem, e Santos tenta ajudar o genro a sair da grande confusão em que este se encontrava, mas as complicações aumentam à medida que as mentiras crescem. É sugerido por algumas personagens, no tom de acusação, que Santos havia sido enxertado por Voronoff e, desde então, farreava vigorosamente, em grandes noitadas de

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bebedeira e “imoralidades”. No último ato, esta sugestão se comprova. A farsa de Raul e Santos se torna um fracasso completo quando descoberta pela parcela feminina da família. A esposa de Santos, ao tomar ciência das aventuras do marido, compreende a verdadeira razão de ele ter ido se consultar com o Dr. Voronoff e diz que este o transformara num “velho com coração de macaco novo”. A última fala da peça é de Santos, arrependido, dizendo que vai voltar a Voronoff para desfazer o seu contrato. “Desfazer o seu contrato”: talvez essa seja uma alusão ao arrependimento de Fausto, na clássica obra de Goethe (2003), quanto ao contrato feito com Mefistófeles, para o seu “remoçamento”. Sublinhe-se o fato da “voronoffização” de Santos, como a de Eduardo Marinho, ter lhe tirado seu senso senil, para devolver o homem às imprudências da juventude e atender aos impulsos de seu “coração de macaco novo”, apresentados na chave da imoralidade. A semelhança entre essas histórias nos faz refletir acerca de uma atmosfera de competitividade acerca do tema, entre as companhias de teatro de revista. Cada qual com a sua versão, ofereciam ao público espetáculos que parecem seguir um mesmo script, qual seja, uma comédia mais ou menos pornográfica que se passa no seio de uma família tradicional, com seus falsos moralistas, que se complicam em seus desventurados encontros extraconjugais e em outras confusões trazidas pelo Dr. Voronoff. Ao trazer como protagonistas senhores rejuvenescidos pela “voronoffização”, que adquirem uma sensualidade “animalesca” e cômica, e que não hesitam em se dirigir aos bordéis e às noitadas, estas narrativas tematizam uma espécie de moralidade hipócrita que habita “as melhores famílias”, escancarada pelas intervenções de Voronoff. O tema dos excessos sexuais, vinculados aos enxertos glandulares de Voronoff, é também abordado por Monteiro Lobato, no jornal A Manhã, em fevereiro de 1926, em duas ocasiões: na crítica literária que o autor fez ao romance de Mendes Fradique e no artigo “Idéas Russas”. Escreve o autor: A mocidade com os seus conscectarios, que Deus dá, potencialisa, afrouxa e tira, Voronoff, novo Prometheu, pretende restaurar com o seu maravilhoso systema de enxertias macacaes. Toma dos simios... as unhas e enxerta-as de garfo na carne atonica do homem senil. E o velho cavallo macacaliza-se, arregala os olhos, arreganha as ventas, engrifa as unhas e sae a correr pelas ruas como um fauno escapo á jaula grega [grifo meu] (“Doutor Voronoff”. Monteiro Lobato. A Manhã, 13 fev 1926, p. 3).

Em “Idéas Russas” – mais tarde incorporado ao livro Na Antevéspera –, Monteiro Lobato versa sobre as uniões livres praticadas na Rússia, nova modalidade de relacionamentos amorosos, que se pautava em uma maior consideração pelos direitos femininos e, para o

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desgosto dos homens, que se contrapunha ao casamento monogâmico burguês, questionando seus pilares: a servidão conjugal das mulheres e os prostíbulos. O autor conclui que essas novas formas de relacionar-se114 – baseadas em vínculos mais verdadeiros que os do casamento monogâmico, muito frequentemente sustentado pela infidelidade dos maridos – eram amplamente temidas no Brasil, pois se um dia aqui chegassem, “viriam perturbar a deliciosa lambança sexual, leda e céga, em que vivemos, com um olho nos bismuthos 115 e outro nos macacos de Voronoff...” (A Manhã, 25 fev 1926, p. 3). Como apontado por Marie-Ève Théranty, em sua análise da relação entre literatura e imprensa na França do século XIX, não raro, literatos de renome envolveram-se amplamente com a imprensa, assinando artigos, críticas literárias, crônicas, contos, folhetins e até mesmo fundando seus próprios jornais (Théranty, 2007). O Brasil não fugiria da regra: além de contar com grandes literatos redigindo artigos, os jornais nacionais inundavam-se de literatura. Há outros pontos elencados pela autora, para a imprensa francesa do século XIX, que reverberaram na imprensa brasileira: Théranty destaca “uma profunda circularidade entre as formas literárias e as formas jornalísticas” nos jornais franceses que, ao longo do século XIX, se abriam cada vez mais para a inclusão de anedotas, contos e pequenas ficções em suas páginas (Théranty, 2007: 21). Se, a princípio, a literatura tinha um papel secundário, por volta de 1880 fatores como a popularização da imprensa e certas tensões políticas fazem com que a literatura comece a ser inserida nas primeiras páginas dos jornais, que optavam por dar destaque para artigos literários mais sedutores ao leitor (Théranty, 2007: 232). A fratura que isolaria a literatura do jornalismo só começaria a se operar na década de 1930, com o surgimento das escolas de jornalismo (Théranty, 2007:11-12). Em 1928, temática similar àquela proposta por M. Lobato aparece em crônica de Epiphanio Cravo, publicado na seção “Folhetim d‟O Paiz”. O narrador é um escrivão do próprio do jornal, que inicia o texto dizendo ao leitor que vai relatar um curioso caso que lhe contara um caixeiro-viajante chamado J. Pinto. Este tinha vindo até a redação do jornal com uma carta do juiz da cidade vizinha à sua, atestando a idoneidade de sua pessoa e de sua história. Uma vez que o redator se dispõe a ouví-lo, J. Pinto inicia sua narrativa, dizendo ser natural da cidadezinha de São João de Pirituba e que, depois de passar alguns anos fora, encontrou-a de pernas para o ar ao retornar. Procurando informar-se, tomou ciência de uma 114

O amor-livre, aliás, esteve entre as bandeiras do naturismo libertário, referido em nota no Capítulo 1. Dentre uma série de possíveis usos medicinais, o bismuto era, na época, utilizado no tratamento da sífilis (O Jornal, 21 abr 1922, p. 2); (O Dia, 19 set 1924, p. 4); (A Folha Medica, 5, p. 8 e 25 abr 1928, p. xvi); (A Folha Medica, 25 mai 1928, p. xxiv).

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tragédia que se alastrava na cidade de S. João de Pirituba, que pôs em guerra velhos e moços, ou melhor, moços e moços. Explica Victorino – o único velho que restava na cidade – ao Sr. Pinto, que nada entendia daquilo: – Aqui appareceu um doutor estrangeiro, um cirurjão, de nome que ainda não aprendi a dizer...Doutor Boroff...Borocoff... – Borocoff? Boroff? Ou Voronoff? – Isso.

A informação surpreende o Sr. Pinto, por mais que ele estivesse ciente de uma visita de Voronoff ao Brasil, pois, pelo que anunciavam os jornais, o franco-russo deveria tardar ainda alguns meses para chegar116. Mas Victorino continua, dizendo que o tal Voronoff, logo que chegou, tratou de anunciar e vender sua operação rejuvenescedora a quase todos os velhos da cidade, fato que o personagem atrela à má sorte dos macacos: – Pobres macacos! – Que macacos? – Pois a coisa toda se faz com o caroço do macaco, seu Pinto! Tiram do macaco o caroço e pregam no indibiduo. Por isso é que eu digo: pobres macacos! Não ha mais um para remedio nessas mattas e serras.

Enquanto Victorino fala sobre os primeiros senhores que se submeteram ao bisturi de Voronoff, mostra-se especialmente indignado com o caso de Miquilino: – Você sabe, seu Pinto, a idade dessa capivara? Oitenta e oito janeiros! Oitenta e oito! O tal doutor o encaroçou tão bem, que o Miquilino, que era um homem serio, já desencaminhou cinco donzelas! Que raio de tratamento!

Evidencia-se aí a gravidade das consequências dos enxertos: os velhos remoçados – quase todos, viúvos – trataram de disputar as namoradas e mulheres dos moços. O povo da cidade “bufava de raiva” por conta da confusão que Voronoff trouxera a S. João de Pirituba. Intrigado, o Sr. Pinto permanece por lá e é testemunha, alguns meses depois, do que aconteceu: [...] correu a noticia de ter voltado o “magico”, isto é, o Voronoff. Assisti, meu caro senhor, a uma verdadeira revolução! O desgraçado foi retirado de casa a pulso e mais de duzentos homens, de mistura com mulheres, verdadeiras furias, moeram-no a páo de angico! (Epiphanio Cravo. Voronoff em S. João de Pirituba. O Paiz. 12 fev 1928, p. 2).

A multidão enfurecida, depois de matar a pauladas “o feiticeiro”, foi atrás das “vítimas do caroço”. Tal é o desfecho da história, que termina aí porque o narrador não teve dúvidas 116

Note-se que o autor cruza a ficção com notícias da realidade.

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em fugir da cidade. Ao concluir, J. Pinto acrescenta ao redator do jornal que lhe ouve – e narrador, se bem lembramos – que caberia informar, no caso da publicação de sua história, que este fora o pesadelo que aturdiu seu sono na noite anterior, enquanto ele descansava no seu quarto de pensão no Catete. Neste trecho final, a narrativa assume seu tom brincalhão, capaz de desorientar o leitor nas torções por ela operadas, entre um relato idôneo, um caso fantasioso e a genuinidade de um pesadelo. A fluidez das vozes narrativas é igualmente confusa. Este parece ser o tipo de recurso de que nos fala M. Théranty, utilizado em algumas narrativas literárias e fictícias que apareciam, eventualmente, nos jornais, onde uso do estilo indireto livre “permite engendrar certa confusão entre a voz de um personagem e aquela do narrador principal” (Théranty, 2007: 140).

5.

A animalização dos “voronoffizados” Nessas ficções humorísticas vistas acima, os clientes da “voronoffização” não só

renovaram suas energias sexuais, mas foram, também, animalizados. Em 1926, Benjamin Costallat escreveu uma notícia fictícia publicada no Jornal do Brasil, onde imaginou a operação de um cavalheiro carioca enxertado com a glândula de um bode117. O resultado da operação foi duplo: o bode tranquilizou seu humor e ganhou um ar sereno de bicho convalescente. O cavalheiro, pelo contrário, ficou irritadíssimo, nervoso, perguntando, a todo o momento, quando teria alta. Em suma, depois da cirurgia, humano e animal trocam de temperamento: [...] Dahi ter o cavalheiro que ficar em observação clínica durante bastante tempo. Os medicos assistentes temem que, solto, elle comece a praticar desatinos, principalmente na Avenida Rio Branco... Quanto ao bóde, coitado, este póde andar, á vontade em toda parte, sem susto para ninguém... (O cavalheiro e o bode. Benjamin Costallat. Jornal do Brasil, 30 abr 1926, p. 5).

Além da sugestão que a “voronoffização” implicaria numa transferência de espírito e personalidade entre bode e cavalheiro, interessa frisar a menção à Avenida Rio Branco. Na década de 1920, esta avenida central do Rio de Janeiro era, reconhecidamente, um território da elite carioca (Gomes, 2004: 157), com seus requintados teatros, clubes e cabarés. É 117

Voronoff, de fato, realizou, por vezes, sua operação de enxertia glandular em seres humanos, com glândulas genitais retiradas de espécies caprinas (A Noite, 20 ago 1924, p. 7). No entanto, sua preferência era pelo material dos símios, mais precisamente, cinocéfalos, pela proximidade sanguínea desta espécie com o ser humano.

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possível interpretar nesse trecho um chiste dirigido às classes de extrato econômico mais alto, afinal, até então, sabia-se que as cirurgias de enxertia glandular podiam custar uma pequena fortuna aos clientes de Voronoff. A animalização dos candidatos à “voronoffização” é tema de um conto de Berilo Neves, intitulado “O Enxerto”. Berilo Neves (1899-1974) foi o autor de interessante produção ficcional a respeito de Voronoff, que será privilegiada neste capítulo. O narrador do conto é um médico que inicia seu relato dizendo que nunca mais há de pôr em prática, por dinheiro algum, outra operação de enxertia glandular, como vinha fazendo, há algum tempo e “em larguíssima escala”, em seu consultório. Conta-nos o último caso que resolvera: o de um senhor que lamentava a “voronoffização” realizada em sua esposa. Alguns meses antes, este senhor ansiava pela operação da esposa, e recorreu aos serviços do personagem-narrador. O material escolhido para o enxerto foi a glândula de uma cabra, pois o marido diz ter horror à espécie simiesca. Apesar de a operação ter sido muito bem sucedida, alguns meses depois, o marido estava tremendamente arrependido, pois sua mulher já não era mais a mesma. Este personagem conta-nos que, depois da intervenção de “voronoffização”, ela tinha voltado às manias românticas da juventude e assumido um ar provocante de coquette. Já não parava mais em casa, senão para fazer desta um salão de dança junto dos rapazes e moças da vizinhança e para passar o dia ao piano, aprendendo a cantar canções populares, chegando a ameaçar fazer uma apresentação no “Theatro Lyrico”, para desespero do esposo. Mas, o que mais o entristecia, era que ela se parecia cada vez mais com uma cabra. Explica ele ao doutor: – A sua mania é trepar em cima das mesas, cadeiras, e outros moveis da casa, e a dar pulinhos, com a cabeça baixa e balançando, como se fosse dar marradas. Só falta berrar como cabra!

Depois de meditar a respeito, o narrador propõe uma solução: – Traga-me um bode. – Um bode? – Sim. O sr. vai ser enxertado... O homem comprehendeu e abraçando-me como um desgraçado que se vê livre de um supplicio, que o vai matando, exclamou, com os olhos humidos: – O sr. é um grande medico! (O Enxerto. Berilo Neves. Careta. 18 ago 1930, pp. 28 e 29).

Talvez essa última fala do seu paciente tenha provocado uma crise de consciência no personagem-narrador, motivo que explicaria o modo como ele abre o conto, declarando sua

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recusa implacável a continuar com as aplicações do método de Voronoff. Ao utilizar o artifício da narrativa em primeira pessoa, fazendo de seu narrador um médico, Berilo Neves, habilidoso opositor de Voronoff, articula um ataque à legitimidade científica tanto de Voronoff quanto dos médicos que praticavam seu método, ao explorar efeitos tragicômicos da operação de enxertia glandular. Aliás, o próprio Berilo Neves, tal qual Mendes Fradique (José Madeira de Freitas), era médico. A primeira composição de Noel Rosa, “Minha viola”, de 1929, traz crítica similar às do texto “O Enxerto”. Nesta embolada, a penúltima estrofe trata da enxertia de Voronoff: [...] Eu tive um sogro cansado dos regabofe Que procurou o Voronoff, doutô muito creditado E andam dizendo que o enxerto foi de gato Pois ele pula de quatro miando pelos teiado [...] (“Minha viola”, Noel Rosa, 1929)118.

A animalização de seu paciente serve à ridicularização de Voronoff, esse “doutô muito creditado”. Diga-se de passagem, em 1931, Noel Rosa chegou a matricular-se na Faculdade de Medicina e cursá-la por um ano. Alguns analistas afirmam que isto teria influenciado uma composição sua, a música “Coração”, que explica de modo impreciso a função fisiológica deste órgão119. Em 1931, a revista Careta publicou “O coração de minha noiva”, conto de Berilo Neves, mais tarde incluído em seu livro, Século XXI120. No caso desse conto, o autor brinca com especulações em torno dos enxertos de Voronoff, imaginando-os consagrados e generalizados pela ciência do futuro. A ficção descreve a ciência cirúrgica do ano 3004, cujo grande êxito é a mudança de órgãos vitais, que permite às pessoas que troquem de órgãos “como se muda de camisa”, a qualquer falha que estes apresentem. Neste mundo do ano de 3004 já não se morre mais, senão de acidente ou extrema velhice. O personagem-narrador tem cento e vinte anos de idade, já fora casado cinco vezes, e está noivo de uma menina de noventa e seis, pela qual se apaixonou em um pic-nic que os dois fizeram na Lua. Ele nos conta que a cirurgia de troca de órgãos é muito simples, e três ou quatro dias bastam para que as veias e artérias do órgão novo – proveniente de animal ou de humano – introduzam-se naquelas do corpo receptor, “como um fio de cobre num grande transformador eletrico”. Relata que os animais geralmente utilizados nesse tipo de cirurgia são o macaco, o bode, o carneiro e o boi, e dá alguns exemplos: 118

Áudio disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BQAxiK1XDE0 Acesso em 10 de janeiro de 2017. Informação extraída da Coleção Folha: Raízes da música popular brasileira (vol. 1). Disponível em http://raizesmpb.folha.com.br/vol-1.shtml Acesso em 3 de junho de 2016. 120 Uma obra de ficção científica publicada em 1934, composta de humor, ironia e crítica às modernidades científicas. 119

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O maior advogado da minha geração tinha a metade do cerebro de macaco – o que lhe deu, sem duvida, maior agilidade e acrobacia de pensamento; um dos medicos deste Hospital tem um figado de bode (o que talvez explique a sua ogerisa á água fria) e uma das mulheres mais bonitas do meu paiz (creio mesmo, que foi a victoriosa num concurso de belleza inter-planetario) tem um cerebro de vacca – o que lhe dá, sem duvida, um ar pacifico invejavel... (O coração de minha noiva. Berilo Neves. Careta, 4 abr 1931, pp. 36 e 37).

Ao fim do conto, o narrador fica perplexo ao descobrir que sua noiva tem nada menos que um rim de cabra, um pulmão de ovelha, um pâncreas de macaca e o coração de sua exmulher, que “era uma peste” e havia se suicidado no ano anterior. Decide, então, trocar de cérebro, pois acredita que lhe “meteram na cabeça miolos de papagaio”. Esta narrativa, cheia de humor, mostra estar em diálogo íntimo com certas passagens dos livros de Serge Voronoff (1920; 1928), vistas no primeiro capítulo. B. Neves debocha da utopia de Voronoff para um futuro em que a ciência pudesse afugentar a morte até seu limite máximo, trocando “peças gastas” dos organismos, por meio de enxertos glandulares ou mesmo transplantes de órgãos121, com o objetivo elevar a expectativa de vida humana para mais de cento e quarenta anos. Mas mais evidente é o chiste em relação às características de cada animal sendo adquiridas pelos humanos que recebiam seus órgãos. Podemos lembrar o conselho de Tiago Gomes para a leitura de certas peças do teatro de revista que se passam num tempo futuro. Talvez haja algo similar no modo como algumas narrativas futuristas abordadas na presente dissertação “não devem ser vistas como reais projeções do futuro, e sim como uma forma aceita de colocar poderosas lentes de aumento no presente, realçando imensamente o assunto do momento que se deseja tematizar” (Gomes, 2004: 237). Roberto Causo analisaria, a respeito do legado de B. Neves: Berilo Neves foi um dos primeiros best-sellers da ficção científica nacional [...] As dezenas de contos de FC produzidos por Berilo Neves e a forma com que foi associado ao gênero de Verne e de Wells sugerem ter sido ele o primeiro autor brasileiro a se dedicar de maneira mais sistemática à ficção científica. [...] A FC de Berilo Neves era centrada em invenções – em sintonia com a ficção científica norte-americana da época, por coincidência – que vinham desestabilizar as estruturas 121

Diga-se de passagem, a temática dos transplantes e suas perversas consequências era já naquela época um subgênero do cinema. O filme As Mãos de Orlac, de Robert Wiene, de 1924, por exemplo, narra a história de um grande pianista que, depois de sofrer um grave acidente de trem, perde as mãos e adquire, via transplante, um novo par. Para o seu horror, Orlac descobre que suas novas mãos – que lhe foram transplantadas, aliás, sem o seu conhecimento ou consentimento – eram provenientes de um preso recém-excecutado, que fora condenado como um assassino. No corpo de Orlac, essas mãos mostram-se imprestáveis para tocar piano e acariciar sua esposa; suas inclinações pareciam ser outras, mais soturnas e sinistras: “elas demandam sangue... crimes... assassinatos...”, diria o protagonista. O leitor pode se lembrar que no início de seus empreendimentos com os enxertos glandulares, Voronoff cogitou seriamente a utilização de glândulas de presos condenados à morte, e que esta idéia, além de ser proibida por lei, mostrou-se bastante impopular, por suscitar entre os pacientes, reservas e temores bastante correlatos àquele explorado pelo filme de R. Wiene.

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sociais brasileiras de então, permitindo a satirização de certos comportamentos (Causo, 2003, 163-164).

Ainda em torno da animalização dos clientes do Dr. Voronoff há, por fim, a brevíssima menção do Diário Nacional à paródia que teria se tornado “canção popular hoje em voga”, feita sobre a marchinha carnavalesca “Eu fui no mato, crioula”, que fez fama na voz de Francisco Alves. Os versos originais, de José Gomes Junior, são estes: Eu fui no mato – criola cortá cipó – criola eu vi um bicho – criola de um olho só. Não era bicho, criola não era nada ,criola era uma velha, criola muito assanhada [...] (“Eu fui no mato, crioula”, Gomes Junior, 1928122) .

O verso que o Diário Nacional menciona, humoristicamente, é outro: “Não era bicho crioula, era a macacada de Voronoff!” (Diário Nacional, 18 out 1928, p. 3). 5.1. “A macacada de Voronoff” Como visto no capítulo anterior, o engenheiro e avicultor Feliciano Ferreira de Moraes foi o brasileiro operado por Voronoff, em cirurgia demonstrativa de seu método, nas Jornadas Médicas do Rio de Janeiro. Seu caso despertou, é claro, o interesse popular. Abelardo Guimarães, em crônica publicada pelo O Fluminense, brinca: Seria bem interessante que esse rei das aves (o 1º cliente brasileiro operado no Rio pelo Dr. Voronoff, recebeu esse titulo em S. Paulo, por ser especialista em avicultura) apresentasse agora outras habilidades, saindo da Casa de Saude como macaco, e entrando pela vida como em loja de louças... O publico interessado, vae acompanhar todos os passos do engenheiro Feliciano (ainda bem que o nome ajuda) a ver até que ponto pode influir á sua nova constituição, a jovialidade macacacoana! (Aparteando... O rejuvenescimento “á la macaco” Abelardo Guimarães. O Fluminense, 22 jul 1928, p. 1).

E, de fato, inevitavelmente, o engenheiro tornou-se assunto de especulações e chistes. Em novembro de 1928 dois repórteres d‟O Malho foram designados à difícil tarefa de encontrar e entrevistar o operado de Voronoff, que andava completamente ausente dos veículos públicos, evitando, deliberadamente, a publicidade. Depois de empenhada insistência, os repórteres conseguiram fazer com que Feliciano os recebesse. Contam-nos que o acanhamento do engenheiro era uma cautela em relação à sua família, que andava

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Áudio disponível em https://www.youtube.com/watch?v=jFEBYVcu5ZA Acesso em janeiro de 2017.

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ofendidíssima com a sua decisão em se submeter à “voronoffização”, sobretudo com tamanha exposição pública. Apesar de não apresentar nenhuma diferença notável em sua aparência, Feliciano dizia sentir-se outro, muito mais disposto, com forças revitalizadas. Nas palavras do enxertado: “Meus músculos se tonificaram, meu cerebro soffreu uma sensível transformação e meu corpo adquiriu uma agilidade preciosa. Uma verdadeira ressureição!”. E conta que outra mudança era que, agora, não podia aparecer na esquina para tomar o bonde, sem atrair a curiosidade dos olhos de toda gente e ouvir ao menos um gracejo como este: “Olha, lá vae o macaco do Voronoff!...” (O Malho, 17 nov 1928, pp. 26, 27 e 48). Pode-se deduzir que João Morena tenha escrito um samba a seu respeito: Um velhote gaiatero Foi fazer a operação E foi o primeiro A cair na tentação Mal entrou na faca Quis cair na fuzarca E sabe deus que coisas Fez o maganão!... Dizem que o velhote Quis bancar o chimpanzé Fez o garnizé No galinheiro do quintal Mas o macaco tinha feito um candomblé Foi um fuzuê Que deu com ele no hospital Praga de macaco É pior que de madrinha (“Praga de Macaco”, João Morena, data desconhecida).

Nestes dezessete versos, podemos localizar nada menos que sete temas bastante amplos, em si: envelhecimento, rejuvenescimento, animalização, moralidade, sexualidade, raça e práticas religiosas. Tratemos dos temas que nos cabem aqui, ou melhor, da relação entre alguns deles. A data de gravação desta canção é desconhecida. No entanto, podemos inferir que tenha sido composta entre 1928 e 1929, pois se nota que o samba narra, à sua maneira, a operação feita pelo professor Voronoff em Feliciano, “o primeiro a cair na tentação”, ou seja, submeter-se à cirurgia de rejuvenescimento glandular. O avicultor mostrou-se, de fato, espirituoso e “gaiatero” perante a audiência que assistiu à sua operação. É muito provável que “praga de macaco” seja uma alusão aos rumores relativos ao retorno do operado ao Hospital Evangélico, e seu suposto mal-estar, duas semanas depois da cirurgia. Nota-se, ainda, o tom racista dessa estrofe, em que o macaco que resolveu se vingar é um praticante do candomblé, religião de matriz africana.

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Movimento similar é feito no Samba de Campinas, de 1930, que tematiza a “voronoffização” de uma mulher: [...] Seu Varonoff quando foi pra Paulicéia operou lá uma véia cá cabeça dendunsaco E essa véia encabelô e ficô preta fazia tanta careta mais pió de que macaco... (“Samba de Campinas”, João Frazão / Augusto Calheiros e Turunas da Mauricéia, 1930123).

Caso a “véia” de que falam esses versos não seja fruto da imaginação do compositor, é possível que o samba faça referência, senão à expectativa em torno da operação de Mme. Lima124 – a senhora que deveria ser operada por Voronoff no Rio de Janeiro, mas teve sua cirurgia cancelada – ao menos à operação que o franco-russo chegou a fazer em uma senhora paulistana, mas que ocorreu na França, caso por ele comentado no livro The Conquest of Life (1928), citado no primeiro capítulo. A “cabeça dendunsaco” é, provavelmente, uma alusão ao sigilo e ao anonimato que boa parte daqueles que eram operados por Voronoff preferiam manter, sobretudo as senhoras. Nota-se, o conteúdo racista dos três últimos versos do “Samba de Campinas125”, que sugere uma evidente aproximação entre negros e macacos, e a depreciação dos primeiros, através de sua desumanização. O fato da cirurgia de Voronoff pretender pôr em circulação, no corpo de um ser humano, uma substância sexual simiesca, encontra – entre outras, tratadas mais adiante – certas especificidades dentro do contexto brasileiro do início do século XX, particularmente aquelas de uma sociedade recém-saída do regime escravocrata e grandemente pautada pelo racismo. 5.2.

A “alma de macaco” Em meio ao assunto da animalização dos clientes de Voronoff aparece o tema do

perigo que os enxertos animais poderiam trazer à integridade da “alma” desses sujeitos.

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Áudio disponível em https://www.youtube.com/watch?v=VZFvjQ1ilgs Acesso em 10 de janeiro de 2017. Com imprecisão em relação à cidade. 125 Observe-se o fato de a cidade de Campinas – centro metropolitano erguido sobre uma economia escravocrata – ser, também no contexto pós-abolição, marcada por uma atmosfera extremamente racista, caracterizada pela discriminação racial de toda sorte, onde perseguições, prisões e detenções arbitrárias, espancamentos e assassinatos cometidos contra a população negra configuravam cenas corriqueiras (Maciel, 1985: 7-17). 124

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Ao final do ano de 1928, Francisco Alves e Lamartine Babo gravaram a “marchaenxerto „Seu‟ Voronoff”, que veio a se tornar um grande sucesso popular, e uma das marchinhas oficiais do carnaval de 1929 (Critica, 5 fev 1929, p. 6)126.

Figura 10. Capa da partitura “„Seu‟ Voronoff: marcha-enxerto”. Cortesia do Professor Luiz Fernando Dias Duarte (Museu Nacional/UFRJ).

Dentre as canções abordadas neste trabalho, esta marchinha provavelmente foi a que alcançou maior popularidade. É bastante provável que a partitura da “marcha-enxerto” – cuja capa encontra-se reproduzida acima – tenha circulado em um bom número de casas cariocas naquele período. Há nela um desenho curioso, de um macaco-cirurgião ou mesmo um 126

“„Seu‟ Voronoff” ganhou outros versos, elaborados por Seixas Duarte, que constam no jornal Critica como a marcha-enxerto “Oh! Woronoff!” (Critica, 9 fev de 1929, p. 6).

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macaco-farmacêutico, que leva consigo uma seringa e uma maleta. E ainda, montado em sua cauda, um cupido bem-disposto. Pode-se interpretar que, aqui, o macaco seria uma espécie de vilão para sua própria espécie, e que sua intervenção médica traria, junto da “mocidade”, um rejuvenescimento sobre os ânimos amorosos de seus clientes humanos. Apresentados no interior da partitura, os versos da marchinha bricam com o perigo da infusão de substância animal no corpo humano – promovida pelo enxerto glandular – trazer características animalescas aos “voronoffizados”. A letra parece fazer também, na última estrofe, referência à operação de Feliciano de Moraes: Toda gente agora pode ser bem forte, ser um "taco" ser bem ágil como um bode e ter alma de macaco A velhice na cidade Canta em coro a nova estrofe, E já sente a mocidade Que lhe trouxe o Voronoff "Seu" Voronoff... "Seu" Voronoff... Numa grande operação Faz da tripa o coração Um sujeito que operou-se logo após sentiu-se mal Voronoff desculpou-se que houve troca de animal (“„Seu‟ Voronoff”, João Rossi/Lamartine Babo, 1928127).

A menção à “troca de animal” é um enunciado bastante enigmático. Uma hipótese é que ela seja extensa à transposição de alma, implicada pela a transposição da glândula animal ao corpo do homem em questão. O enxerto, aliás, guardaria influência sobre o estado emocional do operando, por fazer “da tripa o coração”. O mal-estar do “sujeito que operouse”, logo, seria derivado do estado de espírito do macaco, no momento em que o animal teve sua glândula extraída. Dessas inferências, a que mais importa guardar aqui é a ideia de um “voronoffizado” ganhar uma “alma de macaco”. A expressão “alma de macaco” aparece, ainda, na crônica de Lyce Baguary, que chama atenção para o conhecimento popular e rural, resistente às modernidades e novidades, tecnológicas e científicas, da metrópole carioca. O personagem principal, Lucas Zungáia, montado em seu pangaré, explica ao narrador – que vem da cidade, no bonde que parou por falta de combustível e pôs os passageiros à cata de lenha – suas precauções a Voronoff: “O

127

Áudio disponível em https://www.youtube.com/watch?v=vZ8einY0PUs Acesso em 10 de janeiro de 2017. A versão cantada por Francisco Alves encontra-se disponível em https://www.youtube.com/watch?v=fLk5ikf1Euo Acesso em 10 de janeiro de 2017.

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Varanove tira a alma do macaco e bóta na gente. E a gente fica lógo mocetão! Eu é que não quero tê alma de macaco. Mais antes morre” (“O caminho de ferro” Lyce Baguary. A União, 2 mar 1924, p. 2). A crônica termina com Zungáia seguindo seu caminho, à frente do bonde, em seu pangaré, pois o caipira tem pressa. A cena em que se passa essa narrativa fictícia é trabalhada pelo autor, de modo a fazer do “Jéca”, em seus modos simplórios e pouco afeitos às modernidades, um poço de razão. Por fim, Mme. Chrysanthème, pseudônimo de Cecília Moncorvo Bandeira de Melo Rabelo, também aborda a questão da alma, em crônica: Tal qual um infernal duende, no seu vermelho gabinete, elle [Voronoff] muda o corpo do freguez e naturalmente muda-lhe tambem a alma. Assim, uma senhora velha e rabugenta, clamadora contra as modas, campeã dos bons costumes, que penetrar lá no seu longo vestido negro, rosto bem lavado e cabellos em casto chignon, sairá rejuvenescida com a glandula supra-renal, que a envelhecia, substituida pela do macaco e portanto anciosa pelos vestidos claros e curtos, pelo rouge Daniel e por uma frisada cabelleira da casa Schmidt. E‟ logico, não? (A Eterna Mocidade. Chrysanthème. O Paiz, 29 dez 1929).

Em suma, depois de “voronoffizada”, a senhora em questão tem sua alma substituída por outra mais inclinada às últimas tendências da moda, da juventude e da modernidade.

5.3.

Os “filhos de Voronoff” Há outro assunto – abordado em ilustrações humorísticas (Figuras 11 e 12) e crônicas

– que se vincula aos perigos de se enxertar uma gônada sexual animal em um ser humano: a possibilidade dos operados reproduzirem-se e os problemas que lhes seriam corolários. O Malho publica, em maio de 1934, um texto de Storni, cartunista e autor de ilustrações, artigos e crônicas, contrários a Voronoff, que costumava optar pela via do humor: Como serão os filhos de Voronoff?...Haveria filho do casamento dos rejuvenescidos? E a quem puxariam elles? Á natureza humana dos seus paes ou á natureza anthropoide dos seus antepassados...glandulares? O mundo quer ver, em carne e osso, um exemplar vivo, nascido de uma operação de enxertia. Quer vel-o na escola, na faculdade, nas letras, e sobretudo...deante de um cacho de bananas [...] A porcentagem de sangue de macaco influirá nos seus gestos, no seu temperamento, nos seus sentimentos? [...] é chegado o momento de conhecer o desdobramento da espantosa invenção scientifica do mago do bisturí (“O filho do dr. Voronoff”. Storni. O Malho, 31 mai 1934, p. 20).

O humor da charge publicada na Careta, dois anos mais tarde, traz uma resposta para a questão da descendência dos clientes de Voronoff:

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Figura 11. “Resultado do Enxerto Voronoff”. Careta. Rio de Janeiro, 29 ago 1936.

À primeira vista, esta cena já reúne conjunto inusitado: um homem de mãos dadas a um macaco, levando um macaquinho num carrinho de bebê. Pode-se interpretar que o que causa espanto à moça que a assiste, entretanto, seja o que ela sugere: um cliente de Voronoff, que parece dividir a paternidade de um filhote simiesco com um macaco, provavelmente aquele que lhe “concedeu” suas glândulas sexuais, e que seria, tecnicamente, pai do filho deste “voronoffizado”. Cinco anos atrás, o jornal Lusitania, já teria publicado a seguinte ilustração humorística:

Figura 12. Ilustração humorística sem título. Lusitania. Rio de Janeiro, 1 dez 1931.

131

A sequência de quadros narra o destino de um cliente de Voronoff, o Sr. Decrépito Serôdio, cujo nome e sobrenome não deixam dúvida quanto à sua idade avançada. Uma vez rejuvenescido pelas glândulas de macaco, robusto e disposto – com vestes e corpulência de um estereotípico burguês, diga-se de passagem –, apressa-se em cumprir seu dever como cristão, qual seja, multiplicar a espécie, casando-se com uma rapariga e iniciando uma família. Entretanto, tanto o sexo quanto a própria espécie da criança são um mistério, pois ela se comporta como um animal arredio e selvagem. Ponto correlato é proposto pela crônica de Abelardo Guimarães, publicada n‟O Fluminense128: – Isto sera o inicio de uma nova raça – o macaco descendente do homem. E, vamos retroceder ao homem primitivo, não ha que duvidar! Dentro em pouco teremos noticia do apparecimento de crianças que soltam guinchos, e saltam para as árvores, dos cólos das mamães, com o maior desembaraço... (Apparteando... Abelardo Guimarães. O Fluminense, 21 jul 1928, p. 1).

Se, por um lado, Voronoff buscou o desenvolvimento do que chamava de uma “raça superior”, por outro, na própria esteira da difusão do pensamento eugênico, ele foi acusado de promover uma degeneração generalizada da espécie. Faz este raciocínio o artigo de um médico inglês, publicado em revista londrina e republicado no Correio da Manhã: Hoje em dia o crime de ligações com macacos é por lei denominada “bestialidade”. Fusão permanente de glândulas de macaco, num ente humano, como na operação de Voronoff, é denominada “rejuvenescimento”. A primeira, avilta o homem; a segunda, degrada, não sómente o indivíduo, porém, toda a raça que vier a brotar de tão hedionda aliança. Rejuvenescimento é a bestialidade tornada respeitável e scientífica. Não póde caber duvida no espirito de qualquer pessoa conhecedora das leis da biologia e hereditariedade que as gerações sucessivas vindouras, propagadas por homens enxertados com glândulas de macaco, devem se approximar intimamente do chimpanzé e do mono. [...] O effeito sociológico do rejuvenescer de velhos [...] deve inevitavelmente resultar num grande incentivo á perversão doentia – resultados semelhantes áquelles que devem ter logar na outra extremidade da balança da precocidade sexual. Tanto num, como noutro caso é de esperar rebentos degenerados (Contra o processo Voronoff. Dr. Bedden Balley. Correio da Manhã. Rio de Janeiro,19 ago 1928, p. 8).

Ao que argumenta este texto, a degeneração parecia advir do perigo representado pelo encontro entre substâncias humanas e símias, e a da exaltação da energia sexual, consequência dos enxertos glandulares. O artigo supracitado ainda alerta a possibilidade de se produzir nos clientes de Voronoff um “erotismo morbido”, que os conduziria à “depravação moral”129. 128

Comentada anteriormente, no item 5.1 deste capítulo. Podemos lembrar ainda um fragmento de fonte que aparece no artigo de Ethel Cuperschmidt (2007). A historiadora transcreve um excerto do Diário de Minas de julho de 1928, que traz a opinião de outro médico

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132

Nota-se que o receio relativo a tal mistura entre espécies incompassa reservas relativas a outras misturas que eram temidas naquela época. Richard Cleminson (2000) lembraria, a respeito do argumento de Michel Foucault no primeiro volume da História da Sexualidade: “Doença, degeneração e perversões sexuais tornaram-se áreas importantes nesses discursos [das teorias científicas do corpo e da vigilância do sujeito moderno], sua gestão (se não sua produção) sendo gradualmente integrada à esfera administrativa do estado” (Cleminson, 2000: 17). Em meio às ansiedades quanto à dita degeneração, apareceria a questão racial. Formulações como as de Abelardo Guimarães e do Dr. Bedden Balley, citadas acima, poderiam remeter um leitor do início do século XX a referências do século XIX, como a novela O Mulato, que tematizou, dentre outros temas, os temores da sociedade escravocrata em relação à mistura das raças e à descendência miscigenada. N‟O Mulato, a ideia do casamento de Ana Rosa com Raimundo revolta grande parte das personagens. Podemos citar o exemplo da fala do cônego Diogo, a personagem mais cínica e perigosa da trama, quando este explica a Ana Rosa – senhorinha branca, filha de português – que a união por ela desejada com Raimundo – mulato, filho de escrava – “condenará seus futuros filhos a um destino ignóbil e acabrunhado de misérias!” “[...] Ana Rosa, esse Raimundo tem a alma tão negra como o sangue! [...] Desgraçada aquela que se unir a semelhante monstro!...” (Azevedo, s/d: 177) . Diria ainda Maria Bárbara, avó de Ana Rosa, sobre o mesmo assunto: “[...] peço a Deus que me leve, quanto antes, se tenho algum dia de ver, com estes [olhos] que a terra há de comer, descendente meu coçando a orelha com o pé!” (Azevedo, s/d: 146). Passagens como essas escancaram o racismo latente do pensamento dos familiares da protagonista, que veem sua descendência ameaçada não só em sua cor como em sua própria humanidade, ainda que metaforicamente. Mais adiante, desesperada com a confirmação da união entre sua neta e Raimundo, Maria Bárbara explicita o motivo de sua suprema indignação: “– Um cabra! Conclui a velha com um berro. É um filho da negra Domingas! Alforriado à pia! É um bode! É um mulato!” (Azevedo, s/d: 190). Termos como “cabra”, “bode” e “cabrito” – tão recorrentes nas fontes tratadas neste capítulo – faziam parte do vocabulário brasileiro do século XIX como designação pejorativa para homens livres de cor. Segundo Ivana Stolze Lima (2001) “cabra”, especificamente, estrangeiro a respeito os enxertos de Voronoff. O argumento deste médico, E. Back, igualmente ancorado na ideia de que a transplantação de glândulas viria acompanha dos “característicos” animais, alerta o leitor do jornal mineiro: “Ora, os característicos que os macacos anthropoides possuem em grao mais elevado são a crueldade e a sensualidade” (Diário de Minas, 11 jul. 1928 apud Cuperschmidt; Campos, 2007).

133

“alguém de pele mais escura que um mulato e mais clara que um negro”, adquiria um sentido de dissidência política, junto de uma possível animalidade evocada pela expressão (Lima, 2003: 63 e 205). Curiosamente, além de macacos, os bodes eram os animais mais utilizados pelo Dr. Voronoff, ainda que não fosse praxe empregar espécies caprinas para os enxertos humanos. Como visto há pouco, a ideia da “voronoffização” ser feita a partir de glândulas de macaco foi ponto de partida de abordagens racistas em variados tipos de fonte. Quanto ao caso da figura do “cabra”, ainda que o vocábulo pertença ao século XIX, é possível que, algumas décadas mais tarde, tenha mantido alguma influência sobre o riso em torno das personagens “voronoffizadas” que se transformavam em bodes, cabritos e cabras, fazendo com que este deboche não apareça desprovido de uma dimensão racial. Mas mais certeiro é outro aspecto do imaginário em torno das espécies caprinas, qual seja, aquela das figuras mitológicas greco-romanas dos faunos e sátiros, criaturas fruto da fusão entre homens e bodes130, seres animalescos e bestiais, dados aos excessos dionisíacos, donos de uma libido insaciável e uma lascividade permanente. Vale reter tal imagem para a leitura do item 7 deste capítulo.

6.

Além do chiste

Voltando às fontes brasileiras imediatamente referentes ao Dr. Voronoff, o leitor pode notar que o chiste – por vezes, marcadamente racista – foi a linha que conduziu boa parte das fontes citadas até então. Exceto pelo artigo do Dr. Bedden Ballen, cuja forma se destaca do restante das fontes deste capítulo, há algum elemento brincalhão em cada registro citado, até em elementos que escapam à leitura, como o arranjo musical das marchinhas e dos sambas. As fontes indicam que, em dado momento, ao ouvir o nome Voronoff, o público já pressupunha a comicidade. No carnaval de 1928, por exemplo, a famosa Sociedade Carnavalesca Clube dos Democráticos131 fez de Voronoff o tema do seu “carro de crítica”132,

130

O leitor pode se lembrar das fontes vistas previamente, em que Félicien Champsaur e Monteiro Lobato recorrem, respectivamente, às imagens de um “sátiro semi-deus” e de um cliente de Voronoff transformado em “fauno escapo à jaula grega”. 131 Desde a década de 1880, os Democráticos, junto dos Tenentes do Diabo e dos Fenianos, estavam entre as três maiores e mais importantes Sociedades Carnavalescas do Rio de Janeiro (Cunha, 2001: 90), e representavam nomes de peso na folia do começo de século XX. 132 Os carros de crítica ou carros “de ideias” apareciam no carnaval carioca desde o século XIX, e “transportavam crítica política e de costumes” (Cunha, 2001: 23), com a qual comentavam os acontecimentos recentes e marcantes do ano, com espirituosos chistes dirigidos a autoridades e personalidades públicas. “Alusivos a episódios e figuras da política”, os carros de idéias eram, “segundo a avaliação da imprensa

134

intitulado “O processo Voronoff”, título que por si só foi considerado pelo jornal O Paiz como suficiente para entender a “intenção da „pilheria scientifica‟” (O Paiz, 22 e 23 fev 1928, p. 7)133. Osvaldo Orico afirmaria, em 1940: “Até agora, o que toda gente apontava na obra de Voronoff era o seu lado caricatural, isto é, a satisfação da vaidade ou do goso humano, a possibilidade de volta ao instinto” (O Malho, nov 1940, p. 53). Onze anos antes, em artigo publicado no Diário Nacional, o Dr. Moura de Azevedo resume a popularidade de Voronoff – buscando desvalorizá-la – à falta de decoro da população: [...] as theorias do sabio russo não dispertaram interesse por si mesmas, mas pela ironia a que se prestavam. Eram fonte inesgotavel de anecdotas e de ditos espirituosos. Junto com ella andavam idéas ligeiramente pornographicas que o povo aproveitava para as suas conversas maliciosas (“Os processos de Voronoff darão resultado?” Dr. Moura de Azevedo. Diário Nacional, 26 fev 1929, p. 5).

No entanto, a presença do deboche, reativa ao que vinha sendo proposto pelo Dr. Voronoff, não é de uma maliciosidade vazia. Há um argumento oportuno de Henri Bergson, em obra dedicada ao riso, neste sentido: Lógico, a seu modo, até nos seus maiores desvios, metódico em sua insensatez, fantasiando, bem o sei, mas evocando em sonho visões logo aceitas e compreendidas por uma sociedade inteira, acaso a fantasia cômica não nos informará sobre os processos de trabalho da imaginação humana, e mais particularmente da imaginação social, coletiva, popular? [...] O riso deve corresponder a certas exigências da vida em comum. O riso deve ter uma significação social (Bergson, 1983: 6 e 9)134.

Um fato importante a ser apontado é o carnaval de rua ser conhecido pelo tom de chiste e zombaria dirigido às elites da cidade, por parte das classes populares. Maria Clementina da Cunha lembra-nos que, em meados do século XIX, a folia carioca voltava-se fundamentalmente para a alusão e a sátira. A historiadora localiza as origens deste “deboche dirigido às classes superiores” nas tradições rurais portuguesas do entrudo carnavalesco, e no modo como essa brincadeira se difundiu rapidamente no carnaval carioca, para o desgosto das extremamente apreciados pela platéia e davam a tônica principal da presença das Grandes Sociedades naqueles anos” (Cunha, 2001: 132). 133 É possível que isso se deva, majoritariamente, ao fato de o título do carro de crítica em questão ser homônimo da peça teatral de Cândido de Castro, exibida nos teatros cariocas em 1926. A ideia de que os desfiles carnavalescos mantinham um diálogo com referências teatrais do período é algo a se considerar. Segundo M. Clementina da Cunha, no início do século XX, os carros alegóricos e/ou de crítica levados às ruas pelas Grandes Sociedades eram “montados por escultores e cenógrafos de renome” (Cunha, 2001: 230). A autora informa-nos ainda que agrupamentos carnavalescos de menor porte e capacidade financeira, como os ranchos, eventualmente recorriam a “cenógrafos do teatro de revista e artistas plásticos conhecidos” para a montagem de seus carros (Cunha, 2001: 230). 134 Disponível em http://www.filoczar.com.br/filosoficos/Bergson/BERGSON,%20Henri.%20O%20Riso.pdf. Acesso em 9 de novembro de 2016.

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elites, que empenhavam esforços para modernizar e “civilizar” esta festa. Levando-se em conta estes apontamentos, e o fato da cirurgia de “voronoffização” ser um procedimento monetariamente dispendioso – excetuando-se as ocasiões de intuito demonstrativo – é muito provável que as marchinhas de carnaval que trataram dos enxertos de Voronoff trouxessem ainda, em seu humor, um deboche de classe. Outro aspecto a se observar é que, por vezes, a presença do humor nas fontes aparece acompanhada por reservas e temores relativos a experimentos científicos que promoviam mistura de substância entre espécies, como veremos mais adiante neste capítulo.

7.

Intemperança e animalidade Como visto até agora, parte – aliás, considerável – das críticas que Voronoff recebeu

toca no tema da intemperança135. O argumento de que a submissão aos impulsos da carne envolve os intemperantes em uma atmosfera bestial aparece como um dos chavões da literatura naturalista brasileira do final do século XIX, o chamado “romance de tese”. Fazemno, por exemplo, entre outros, os clássicos A Carne (1999) e o Bom-Criolo (1995). E mesmo a trilogia Vítimas Algozes (s/d136), que data de um período anterior à consolidação desse gênero. Ao explorar o assunto da sexualidade e suas chamadas perversões, estes romances apoiavam-se em teses científicas da época, dentre as quais figuravam, por exemplo, o darwinismo social e o racismo científico (Senra, 2006: 16). Segundo Flavio Senra: O escritor naturalista, orientado pelo determinismo, escreve obras que não passam de espelhos da sociedade sob a justificativa científica. Os homens que permeiam as páginas naturalistas não são nada além de organismos orientados por leis puramente bioquímicas, pela noção de hereditariedade e por seu meio social (Senra: 2006: 1617).

Recurso mais que recorrente nesse gênero literário é a animalização das personagens – em seus estereótipos da histérica, do homossexual, do branco corrompido e devasso e do 135

Veja-se o segundo volume da História da Sexualidade (1984), onde o Michel Foucault aborda doutrinas filosóficas da Grécia antiga, no que elas se referem à “moral dos prazeres ” e à virtude da temperança e do domínio de si, como valores que se somavam naquele que era capaz de comandar “suas feras interiores”, dominando “as forças selvagens do desejo” (Foucault, 1984: 72; 75). Na leitura de M. Foucault sobre o pensamento de Xenofonte, a experiência da carne assumiria um caráter inferior, não porque derivasse de um mal emanado pelo prazer sexual em si, mas por sua qualidade ontológica comum aos animais e aos homens. Os prazeres da carne associavam-se, assim, à entrega corpórea, àquilo que nos comunga com os animais, à incapacidade de governança e à própria ideia de feminilidade. Em grandes linhas, nestas equações, aquele que era intemperante aproximava-se, inevitavelmente, da animalidade bestial. 136 Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000124.pdf Acesso em 2 de junho de 2016.

136

afrodescendente hiperssexualizado – rendidas aos impulsos animais que comandam seus excessos sexuais. A personagem de Amaro, o Bom-Crioulo, por exemplo, é apresentada, no início do romance de Adolfo Caminha, da seguinte forma: “– Um pedaço de bruto, aquele Bom Crioulo! diziam os marinheiros: Um animal inteiro é o que ele era!” (Caminha, 1995: 17). Este personagem, ao longo da novela, vê-se tomado de irrefreáveis desejos afetuosos e carnais pelo jovem marinheiro Aleixo, que ele toma como amante. Ainda que, a princípio, o BomCrioulo tivesse reservas em admitir para si um comportamento sexual como este, logo se rende, chegando a pensar: “Se os brancos faziam, quanto mais os negros! a natureza pode mais que a vontade humana...” (Caminha, 1995: 34) No final da novela, sua personagem é sintetizada da seguinte forma: O Bom-Crioulo da corveta, sensual e uranista137, cheio de desejos inconfessáveis, perseguindo o aprendiz de marinheiro como quem fareja uma rapariga que estréia na libertinagem, o Bom-Crioulo erotômano138 da rua da Misericórdia, caindo em êxtase perante um efebo nu, como um selvagem do Zanzibar diante de um ídolo sagrado pelo fetichismo africano [...] (Caminha, 1995: 77).

Vale reter o modo como a sexualidade da personagem é transposta para o domínio da animalidade e do selvagem. Outra obra repleta de associações metafóricas entre sexualidade e animalidade é A Carne, de Júlio Ribeiro (1999). A protagonista não é uma negra escrava ou ex-escrava, mas uma cultivadíssima donzela da elite branca do Rio de Janeiro. No entanto, em dado momento de sua mocidade, seu cérebro, tão habituado a enredar-se nas complexas questões da ciência transcendental, sofre a humilhação de “cair-se de repente, como os arcanjos de Milton, do alto do céu no lodo da terra, sentir-se ferida pelo aguilhão da CARNE, espolinhar-se nas concupiscências do cio, como uma negra boçal, como uma cabra, como um animal qualquer...” [grifo meu] (Ribeiro, 1999: 11). Há neste romance uma passagem icônica: a descrição do encontro sexual de um casal de escravos, situado imediatamente após a cena do coito entre uma vaca e um touro. Ambas

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“uranista” in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: 1. Que ou quem é homossexual. = URANIANO. 2. Relativo à homossexualidade. Disponível em https://www.priberam.pt/dlpo/uranista Acesso em 11 de dezembro de 2016. 138 O mesmo que erotomaníaco; aquele que sofre de erotomania. “erotomania” in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: 1. Desordem mental caracterizada pela predominância de ideias amorosas ou sexuais. 2. Delírio erótico. Disponível em http://www.priberam.pt/dLpo/erotomania Acesso em 11 de dezembro de 2016.

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as cenas se passam no quintal da fazenda, ao alcance dos olhos de Lenita, que testemunha, pela primeira vez, o ato sexual (Ribeiro, 1999: 44-45). Apesar de compreender cientificamente todos os aspectos fisiológicos da reprodução, Lenita já não era indiferente às energias libidinosas como outrora. Agora, a protagonista “revolvia-se como uma besta-fera no ardor do cio” (Ribeiro, 1999: 13). Seu corpo de mulher recém-formado surpreendia-a, como se protestasse contra sua castidade, sobretudo ao conhecer Barbosa, por quem logo se apaixona. O narrador sugere: “O que ela sentia era o aguilhão genésico, era o mando imperioso da sexualidade, era a voz da CARNE a exigir dela o seu tributo de amor, a reclamar o seu contingente de fecundidade para a grande obra de perpetuação da espécie”. O espírito de Barbosa, igualmente culto e desenvolvido, tampouco resistiria: “Um tropel de idéias desordenadas agitou-se-lhe, confundiu-se-lhe no cérebro excitado; o raciocínio ausentou-se, venceu o desejo, triunfou a sugestão da CARNE”. E, “bestial como um sátiro”, rendeu-se aos encantos da jovem donzela (Ribeiro, 1999: 96). Na última parte da trilogia Vítimas Algozes (s/d), a personagem da mucama Lucinda é o estereótipo de uma escrava “imoral, viciosa e lasciva”, dominada “pelo império que sobre ela tinha o demônio da luxúria” (Macedo, s/d: 100). Lucinda corrompe a inocência e a pureza de sua senhorinha branca, com sua “esquálida ciência de escrava, cujo sensualismo rebaixa a humanidade até nivelá-la com a brutalidade irracional” (Macedo, s/d: 99). Nota-se, de maneira geral, nestes e em outros romances naturalistas, aliás, a constante presença de uma representação da mulher como natureza. Existe, enfim, nesse imaginário literário uma forte e deliberada continuidade estabelecida entre sexualidade, animalidade e raça. Se o modo como M. Foucault (1984) lê a filosofia da Grécia clássica mostra o elo que se produziu no Ocidente entre a imagem do animal – a feminilidade, de certa maneira – e a intemperança sexual, o discurso científico do século XIX, retomado nesses romances, acresceria o fator racial a essa equação.

8.

“Frankenstein by Voronoff”

Ainda sob a luz da literatura, podemos voltar às preocupações, mencionadas anteriormente, relativas ao impacto que a “voronoffização” traria sobre a alma e a prole daqueles que a ela se sujeitassem. Pois, de certa forma, tais interrogações remetem àquelas feitas por Mary Shelley, no clássico Frankenstein, ou o Prometeu Moderno (2003). Se a criatura construída num laborioso e monumental projeto cirúrgico – que envolveu “uma dissecação às avessas”, a costura de uma série de fragmentos orgânicos de cadáveres

138

humanos e animais e a função misteriosa de uma grande máquina capaz de animar este corpo – ganha vida no laboratório de Victor Frankenstein, esse procedimento lhe causaria “danos irreversíveis à alma ou ao espírito” (Holmes, 2008: 325). Como visto no primeiro capítulo, Voronoff, na esteira da endocrinologia e da opoterapia, encontra outra agência misteriosa capaz de animar os corpos e fornecer uma “centelha de vida” para a “máquina humana”: os hormônios sexuais (Voronoff, 1928). Talvez para o público, entretanto, o recentíssimo conceito científico de hormônio ainda se resumisse à “alma de macaco”, de bode, de cabra ou de “campeão de bicicleta”. Em Frankenstein, além da corrupção da alma, outra das grandes questões trazidas à tragédia da criatura é sua condição ímpar e absolutamente solitária, que implica na impossibilidade de sua faculdade reprodutiva139. Na icônica cena no Mer de Glace, o “monstro” implora a seu criador que lhe fizesse uma parceira, para que pudesse buscar, enfim, sua identidade e a felicidade. A criatura desejava, sobretudo, amar, sem temer o horror e a violência com que lhe receberam todas as criaturas humanas – que ele havia amado com o mais puro dos sentimentos – com as quais ele tentou estabelecer contato. A promessa que o Dr. Frankenstein lhe faz, aceitando seus suplícios, é quebrada quando o cientista decide destruir a nova criatura em que começara a trabalhar, temeroso em relação aos frutos que poderiam advir de uma união entre os dois monstros por ele criados. Voronoff, por outro lado, buscava justamente potencializar o poder reprodutivo de seus clientes. Mas seus objetivos eugênicos em torno da produção de uma “neo-geração” de “superanimais” e “super-homens” continuavam a atemorizar uma parcela de seu público. Diga-se de passagem, o inimigo do Dr. Frankenstein tinha qualidades sobre-humanas, pois assim o cientista o fizera. A criatura superava o homem não só em estatura e porte, como em velocidade, força, agilidade e resistência; suportava a fome, a fadiga e temperaturas extremas, atravessava o mar de gelo com a velocidade de uma águia. Ademais, sua retórica, inteligência e sensibilidade por vezes superavam as de seu criador. A ampla repercussão das adaptações cinematográficas que a novela de Mary Shelley ganhou ao longo das primeiras décadas do século XX, fariam com que Frankenstein estivesse entre as referências do imaginário popular dos brasileiros que acompanharam as notícias sobre os empreendimentos de Voronoff. Todavia, todas as vezes que adaptada ao cinema, a história de M. Shelley sofreu profundas distorções e alterações substanciais, como aquela em que Frankenstein passa a ser também o nome da criatura. Sob o intuito de reverenciar a fonte

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Agradeço à professora Nádia Farage por tal interpretação, que norteia todo este tópico.

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que é tema do próximo parágrafo, podemos comentar que em 1932, os jornais brasileiros trazem anúncios da nova película de Frankenstein, de James Whale, lançada nos Estados Unidos no ano anterior, com o chamariz da marcante atuação de Boris Karloff, exaltado como “um novo Lon Chaney” (Fon-Fon, 14 abr 1932, p. 25). Em verdade, as correlações que esta dissertação tentou elaborar, entre, de um lado, o enredo e contexto da obra Frankenstein e, de outro, a história de Voronoff e o imaginário ao seu redor, foram encorajadas por um dos versos do non-sense de Ary de Calazães Fragoso – a canção nomeada ora como “Fox-Mix”, ora como “Mimi (fox)” –, que deu título a este tópico. Esta canção nunca chegou a ser gravada em disco, mas consta no filme Alô alô, Carnaval, de 1936140, cantada por Luiz Barbosa: Tom Mix, Buck Jones and Richard Dix Ramon Novarro of Billie Dove Edmundo Lowe Al Jonhson, Greta Garbo by Fred Thonson William Haines of Marion Davies Bolo de coco, cuscus, [...]141 de Boris Karloff (Très Jolie) Leopoldina Railway [áudio incompreensível] Estabelecimentos, palco [áudio incompreensível] Kik-off Frankenstein by Voronoff [Áudio incompreensível] [...]142 (Mimi (fox), de Ary de Calazães Fragoso. Alô alô, Carnaval, 1936).

A canção é, basicamente, composta pela justaposição de uma série de nomes de grandes figuras da cinematografia produzida nos Estados Unidos, que conquistavam o público brasileiro desde a década de 1920 (Gomes, 2004)143, misturadas, no sexto verso, com referências a pratos típicos da culinária nacional. O nome de Voronoff figura como mais um entre as celebridades estrangeiras. No entanto, é sintomático que ele apareça no verso em que aparece, vinculado à referência a Frankenstein. Muito provavelmente essa associação foi produzida no encontro entre o imaginário popular em torno de Voronoff e as referências culturais, literárias ou cinematográficas da ficção científica.

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Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Y46w3NBiKGo (Veja-se o trecho que compreende o minuto entre 07:40 e 08:40) Acesso em 9 de novembro de 2016. 141 O áudio deste trecho, ainda que precário, junto da métrica dos demais versos, leva a crer que o que Luiz Barbosa cante aqui seja “Pão de Boris Karloff”, brincando com a expectativa do ouvinte em ouvir “pão de ló”, depois de “bolo de coco” e “cuscus”. 142 Dos últimos versos, não transcritos, em razão do áudio precário, podem-se compreender suas últimas palavras: basketball e volleyball. 143 Veja-se Capítulos 2 e 3 de seu livro, pp. 121-193.

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9.

Uma história de terror

Da extensa produção de filmes, canções e romances internacionais, surgidos nas décadas de 1920 e 1930, inspirados pela figura de Voronoff144, abordamos aqui uma produção estadunidense do cinema, acompanhada pelo público brasileiro e comentada nos jornais locais (O Paiz, 3 nov 1923, p. 4; A Noite, 5 nov 1923, p. 6; O Pharol, 7 nov 1923, p. 1). Em 1924, chegou aos cinemas cariocas e paulistanos o “assombroso” filme de Wallace Worsley: A Blind Bargain145, cujo título foi traduzido como O rival dos deuses ou Um compromisso de honra. Como nos conta P. Riley (1988), o filme era a nova versão de um roteiro cinematográfico anterior, por sua vez, inspirado no romance The Octave of Claudius146, de Barry Pain [1897]. O filme foi dirigido para tornar-se um clássico do terror, contando com a sensacional atuação de Lon Chaney – “o homem das mil faces”, grande referência do gênero do terror – em dois papéis: o vilão Dr. Anthony Lamb e uma de suas vítimas, o Corcunda147. A primeira cena introduz o espectador ao famoso Lon Chaney interpretando o Dr. Anthony Lamb, um cirurgião e cientista, debruçado sobre um caderno de anotações, em que registra seu crescente interesse em relação às pesquisas mais recentes do mundo científico, que afirmavam que o homem poderia viver cento e cinquenta anos. Entra em cena uma estranha criatura que vaga pela casa: Lon Chaney, novamente, irreconhecível, como o Corcunda. Ele é o mordomo da casa, mas sua figura é perturbadora: tem os traços e a corporeidade de um macaco, cabelos eriçados e muito espessos, sobrancelhas grossas e

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Salvo a exceção feita no início do capítulo, tais referências extrapolam o escopo desta pesquisa. Entretanto, cabe listar ao leitor as produções que pude acompanhar ao longo da pesquisa: o romance Black Oxen, de Gertrude Atherton, de 1923, e sua adaptação para o cinema, de título homônimo, lançada no mesmo ano; o romance Gland Stealers, de Bertram Gayton, de 1922; o conto de Conan Doyle “The creeping man” (“O homem que andava de quatro”), de 1923, e o filme “The Beast of Borneo”, de 1934, dirigido por Harry Garson. 145 O filme não pôde ser diretamente acessado pela pesquisa, por tratar-se de uma película considerada perdida, cujos originais foram completamente degradados. No entanto, foi possível acessar o segundo volume do Ackerman Archives Series, (1988), que é o resultado de uma apurada pesquisa de Philip J. Riley, que reuniu um material inédito, na intenção de reconstruir este filme. 146 No romance, o elemento que traz terror à história é a vivissecção. Entre as alterações feitas por Wallace Worlsey para a primeira adaptação cinematográfica, o tema da vivissecção é substituído por aquele de um experimento que pretende testar uma transfusão completa de sangue entre o protagonista e um macaco, para provar as teorias de Darwin. Mas, ao que nos consta, esta versão não chegou a ser filmada. Finalmente, no início da década de 1920, inspirado pelas notícias que lia na imprensa, sobre os experimentos do dr. Voronoff, Wallace Worsley atualizou seu projeto cinematográfico de adaptação do The Octave of Claudius, dirigindo o bem-sucedido A Blind Bargain, lançado em 1923. 147 A descrição que segue foi feita a partir do material apresentado por P. Riley: uma série de fotografias das cenas mais marcantes da película, junto dos letreiros explicativos que as acompanham, além de um resumo da obra literária em que a história foi inspirada, e a cópia do roteiro da adaptação cinematográfica anterior.

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unidas, dentes pontudos e um rosto deformado. Além disso, é mudo e anda com os quatro membros no chão. Mas o personagem logo se revela uma criatura muito doce. O letreiro o descreve como “uma vítima das primeiras experiências do Dr. Lamb”. O suspense em torno dos planos soturnos do Dr. Lamb é aos poucos desvelado: além de leitor de Charles Darwin, ele se mostra entusiasmado pelas recentes notícias, vindas da França, sobre o rejuvenescimento de seres humanos por meio de enxertos glandulares. Sua pretensão era a de “transferir à espécie humana a força e a virilidade do mais forte animal” e, assim, dobrar os anos dos homens, e conquistar o lugar de maior cientista daqueles tempos. O mocinho da história é o jovem escritor Robert Sandell, um sujeito em situação miserável, atormentado por sucessivos infortúnios emocionais e financeiros, e pelo gravíssimo estado de saúde de sua mãe, cuja única salvação seria uma complexa e dispendiosíssima cirurgia. Em uma medida desesperada, este jovem tenta assaltar um senhor transeunte, mas é por ele dominado. O senhor em questão é o Dr. Lamb, que seda o meliante com éter e o leva para sua casa. Surge na tela o letreiro: “sua grande casa na periferia da cidade tem sido o cenário de muitos experimentos secretos”. Robert, a princípio, fica perplexo e grato ao cientista, que lhe oferece os mais atenciosos cuidados, até que este lhe propõe uma barganha: na qualidade de habilidoso cirurgião que era, poderia salvar a vida de sua mãe sem lhe pedir qualquer tipo de recompensa monetária, desde que o jovem consentisse em submeter-se a um experimento científico. Apesar de alertado pela expressão de pavor que Corcunda lhe dirige, o jovem, que já não tinha amor algum à vida, não hesita perante a chance de salvar a mãe, e o acordo é selado. Ao longo do filme, a esposa de Anthony, Hilda Lamb, alia-se a Corcunda em uma espécie de conluio, para boicotar os planos do Dr. Lamb, pois, ligados por um “terror comum pelo cirurgião” (Riley, 1988: 150), ambos temem o destino daquele jovem, no qual reconheciam “outra vítima”. Mas, logo depois de ser por eles alertado, Sandell é surpreendido pelo cientista. O espectador é finalmente apresentado ao anexo secreto de seu laboratório: um corredor de jaulas com macacos e criaturas monstruosas. Uma delas era o “homem-besta”, que fora, outrora, “um maníaco bêbado” encontrado à beira da morte, a quem o cientista deu a “virilidade de um poderoso animal”, convertendo-o em uma criatura que se mantinha entre o estado humano e o estado animal. Anthony admite que falhara nesses experimentos, mas assegura o êxito que deveria ter nessa nova experiência, pois Robert era um homem muito superior; o cientista far-no-ia viver por cento e cinquenta anos e ter a força de vinte homens, sem que sua aparência mudasse tanto quanto a das outras cobaias.

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Depois de amarrar Sandell a uma mesa cirúrgica, o Dr. Lamb dirige-se ao corredor de jaulas, para buscar o macaco cuja glândula seria transferida para o corpo de Sandell, quando encontra Corcunda, e grita-lhe ordens, mas a criatura, pela primeira vez, enfrenta o doutor e deixa de obedecê-lo. Lamb saca seu revólver, mas Corcunda se pendura nas grades, abrindo a jaula do “homem-besta”, que avança sobre o Dr. Lamb. O doutor dispara quatro tiros contra ele, mas sua criatura, a um só tempo infra e sobre-humana, não morre sem antes estrangulá-lo com uma louca fúria animal. Sandell é salvo de seu sinistro destino. No desfecho do filme, ao receber a notícia da morte do marido, Hilda pensa nele como um grande homem, mesmo em sua loucura; mas que em sua busca pelo conhecimento esquecera-se de Deus.

Figura 13. Lon Chaney como Corcunda, em cena do filme A Blind Bargain (1922). Imagem extraída do livro de Phillip Riley, “A Blind Bargain” para o segundo volume da série Ackerman Archives, 1988, p. 172.

Figura 14. O Corcunda e o HomemBesta em cena do filme A Blind Bargain (1922). Imagem extraída do livro de Phillip Riley, “A Blind Bargain” para o segundo volume da série Ackerman Archives, 1988, p. 175.

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Note-se, nas figuras acima apresentadas, a semelhança física entre Corcunda e outra personagem, que apareceria no cinema quase dez anos mais tarde. Trata-se do Sr. Hyde do filme Dr. Jekyll and Mr. Hyde (“O Médico e o Monstro”) de 1931, dirigido por Rouben Mamoulian e estrelado por Fredric March. A trama pode ser resumida da seguinte forma: O filme narra o infortúnio do Dr. Jekyll, quando este descobre uma substância capaz de liberar a porção maléfica do ser humano. Enquanto cobaia de seu próprio experimento, o Dr. Jekyll dá vazão a seus impulsos mais violentos e moralmente condenáveis na figura do Sr. Hyde (Suppia, 2006: 142).

Nesta adaptação do clássico de Robert Stevenson, Hyde (o Monstro) é um homemmacaco, de aspecto primitivo, porventura inspirado pelo Corcunda do filme de Wallace Worsley. Segundo a análise de Alfredo L. Suppia: A caracterização do Sr. Hyde é aspecto fundamental da versão Mamoulian, que acentua a descrição animalesca do monstro. Hyde é mais baixo que Jekyll, uma figura de traços grosseiros, hirsuta e de compleição compacta. Sua dentição é prognata e desenvolvida, semelhante à de um gorila, com caninos pontiagudos. Seus movimentos e expressões faciais são simiescos. Ao invés do cabelo liso do médico, Hyde tem cabelo crespo e um par de costeletas que lhe atingem as bochechas. Os pêlos de seus antebraços estendem-se até o dorso das mãos. Em sua novela, Stevenson explora razoavelmente o contraste físico entre os personagens Jekyll e Hyde – o primeiro de traços nobres e bondosos, o segundo um homem de traços animalescos. No entanto, Mamoulian leva esse expediente às últimas conseqüências. O Hyde do filme de 1931 é extremamente “animalizado” [...] O Hyde de Mamoulian extrapola a deformidade evanescente do personagem original e penetra definitivamente na classe do não-humano (Suppia, 2006: 142; 143).

Este Sr. Hyde simiesco é asquerosamente cruel, obsceno, violento. O suprassumo do mal, como na novela de Stevenson, mas agora encarnado num animal lascivo. A cada transformação, o “Monstro” fica mais perigoso. Aliás, na cena da segunda metamorfose do médico em monstro, a tomada da câmera focaliza, duas vezes, a pele de Fredric March assumindo uma tonalidade mais escura. A composição da personagem, enfim, evoca também certo imaginário preconceituoso e estereotípico acerca do “tipo criminoso” e do negro. Mas voltemos ao A Blind Bargain, de 1922. Ao contrário do asqueroso Mr. Hyde, Corcunda é uma criatura muito doce e cheia de compaixão. Sua personalidade é a antítese do “Monstro” de Mamoulian. O heroísmo da história de W. Worlsey, aliás, parece residir na solidariedade entre as vítimas do Dr. Lamb, especialmente aquela mais profunda, que se desenvolve entre Corcunda e Hilda148. Diga-se de passagem, além de cientista de frieza implacável, tanto no romance quanto no filme, o cientista era um marido violento. 148

Para outros textos literários que tematizam a comiseração de uma personagem feminina perante animais submetidos à crueldade de um vilão vivissector, veja-se o artigo de Nádia Farage “Around the causes of a short-story: Machado de Assis and the British antivivisection movement”, disponível em https://www.academia.edu/5996574/Around_the_causes_of_a_shortstory_Machado_de_Assis_and_the_British_antivivisection_movement Acesso em 19 de novembro de 2016.

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Ainda que de forma mais branda e atenuada para o gosto popular, se comparado ao romance original149, o enredo do filme preserva parte das questões que Barry Pain levanta, ao manter-se centrado na questão da crueldade de certos experimentos científicos e no debate relativo à moralidade na ciência.

10.

A melancolia dos macacos e a crítica à ciência

O ponto de vista dos macacos foi inspiração de algumas fontes. Vimos, no segundo capítulo, que nas próprias Jornadas Médicas foi realizada uma exposição lúdica, que reunia a produção artística dos médicos que participavam do evento. Entre algumas caricaturas de Voronoff, encontrava-se exposto um trabalho cujo humor era diferente dos demais: uma charge de Mendes Fradique, intitulada “La Revanche”:

Figura 15. “La Revanche”, de Mendes Fradique. Imagem extraída do artigo de Ethel Cuperschmid na Revista de História da Biblioteca Nacional, n. 35, ago de 2008. 149

Nele, o Dr. Lamb é um homem cruel e violento que se dedica de forma obsessiva à ciência e, sobretudo, à prática da vivissecção, que ele ambiciona poder realizar em um ser humano, no caso, o protagonista, Claudius Sandell. A esposa do cientista, Hilda, que ainda era religiosa como o marido um dia fora, torna-se cada vez mais aterrorizada com os experimentos científicos do marido, e enlouquece ao longo do romance. O som metálico do afiador de facas e bisturis que escapa do laboratório do Dr. Lamb, e a consciência sobre o destino de Claudius a levam a um estado de histeria, que passa pelo fanatismo religioso e por surtos psicóticos. No desfecho do romance, Hilda é levada a um manicômio, depois de assassinar sanguinariamente o marido e incendiar seu laboratório.

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Nela, vemos invertidas as perspectivas de pesquisador e “objeto” de pesquisa, afinal, temos um chimpanzé observando Voronoff, o médico dentro de uma jaula e o macaco em sua mesa, dispondo de um microscópio e tubos de ensaio. A revista humorística O Malho traz uma interpretação curiosa da chegada de Voronoff ao Rio de Janeiro, através de ilustração anônima150 publicada em 14 de julho de 1928:

Figura 16. “A chegada de Voronoff”. O Malho. Rio de Janeiro, 14 de julho de 1928, p. 39.

Nela, registra-se ao fundo, o Pão de Açúcar, e o navio “Alcantara” se aproximando da Baía de Guanabara; em primeiro plano, uma porção de macacos fugindo para dentro da mata. Acompanha a legenda: “MACACOS – Salve-se quem puder!”. Podemos lembrar também a charge de Storni, publicada na revista Careta, em janeiro de 1928:

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A julgar pelo traço, pode-se inferir que se trate de uma charge de Guevara.

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Figura 17. “As glandulas da juventude”. Storni. Careta, 28 jan 1928, p. 18.

Aqui, o transatlântico já não deixa dúvida, anunciando o nome de Voronoff em uma grande bandeira. Os senhores o aguardam e o macaco tenta se esconder. Nota-se, em ambas as figuras, o receio dos macacos à aproximação de Voronoff. Dois dias depois da chegada de Voronoff ao Rio de Janeiro, aparece na Careta a “História triste de um macaco”, mais um conto de Berilo Neves, que trata da amargura que a moda das cirurgias de Voronoff trouxe a um jovem macaco. Tommy, como ele se chamava, era o macaco de estimação do narrador e, criado “como gente” há anos, vestia-se com elegância, fumava cigarros, lia jornais e filosofava. Foi lendo o noticiário que Tommy entrou num estado depressivo: o macaco indignarase profundamente com Dr. Voronoff e com a ganância humana, que se mostrava capaz de arrancar dos seus companheiros de espécie as glândulas vitais para enxertá-las em “velhos libidinosos”, que perderam sua mocidade em extravagâncias e “pecados contra a natureza”. – [...] Ora, que resultará dessa transposição biologica de fundo immensamente immoral? [...] Daqui a 100 annos não haverá nenhum macaco moço e sadío como eu. Em compensação, os senadores da Republica, os banqueiros, os jornalistas de fama, os literatos gastos por todas as orgias do pensamento e da carne, poderão continuar a ser pervertidos durante mais 25 ou 30 annos. O sr. não acha isso injusto e amoral?

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O personagem-narrador argumenta que Tommy se esquece de que os homens precisarão, mais do que nunca, manter viva e numerosa a população simiesca, e tratarão de criá-la sob muitos cuidados, com todos os mimos da civilização. O macaco replica: – Diabos levem a civilisação e o seu conforto! bradou Tommy, perdendo, por um momento, a linha impeccavel da sua compostura. De que vale tudo isso se perdemos o melhor que é o direito de ser moço e ser amado? Então, posso conformar-me com a idéia de que minha belleza passe para um plutocrata cheio de banhas e de syphilis, que compre a saude da mesma forma que compra uma partida de bacalhao? E os direitos da especie não serão sagrados para todos? Não acredito que os homens sejam nossos parentes: nunca vi gente tão sem vergonha... E Tommy levantou-se de golpe, com as narinas dilatadas pela emoção e pelo odio aos homens (Historia triste de um macaco. Berilo Neves. Careta. 14 set 1928, pp. 26 e 27).

Tommy fala como Narcisse, no romance de F. Champsaur, publicado no ano seguinte. Ao fim da crônica de B. Neves, o personagem-narrador relata que havia sido abordado por um sujeito interessado em comprar Tommy. Ele recusa veementemente a oferta, como se fosse uma ofensa, sem deixar de ficar, contudo, ligeiramente hesitante quando aquele homem diz que pagaria vinte contos pelo macaco. O narrador nos conta que fica estarrecido, na manhã seguinte, ao encontrar Tommy enforcado em seu quarto, junto a um bilhete que explicava seu suicídio: dizia ter ouvido a conversa do dia anterior e sentia por dar ao dono o prejuízo de vinte contos, mas preferia salvar o amigo do remorso de vendê-lo a outro judeu que oferecesse vinte e cinco contos. “Injusto e amoral”: este é o julgamento sugerido ao leitor quanto ao procedimento de Voronoff. “E os direitos da especie não serão sagrados para todos?” O veículo desses argumentos é o ponto de vista do macaco, cuja espécie andava ameaçada em sua integridade pelos “plutocratas”, cujo poder aquisitivo era suficiente para comprar uma segunda juventude, roubada dos animais. Além da própria questão moral em torno da utilização dos animais nesta prática científica, o recorte de classe e geração do público mais inclinado à “voronoffização” preocupava também outra autora: Maria Lacerda de Moura (1887-1945). Esta foi uma importante escritora libertária, nascida em Minas Gerais. Entre os primeiros capítulos de seu livro Civilização – Tronco de Escravos, de 1931, estão três artigos que haviam sido publicados no jornal O Combate, em julho de 1928, nos quais a autora expõe suas opiniões reativas a Voronoff. O primeiro deles, intitulado “Voronoff”, argumenta: E vamos buscar, nas florestas, um ser livre e feliz, vivendo em harmonia com as suas necessidades naturaes e o inutilizamos ou o matamos, roubamos a sua vitalidade ou reduzimo-la á metade – para resucitar a cadaveres ambulantes, para estimular a

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senilidades imprestaveis, cujo corpo envelhecido precocemente, talvez em orgias e libertinagens, póde dar vida a filhos predispóstos á mesma degradação moral, com tendencias á mesma senilidade precoce e cuja mentalidade rotineira e empirica ha de continuar a deitar regras de conduta de uma moralidade tambem senil – para tirar aos moços a liberdade e a alegria de viver de acordo com as necessidades do momento e de acordo com a evolução e as ideias e sonhos prenunciadores. Si vivessemos como os pássaros, que são livres logo após os primeiros vôos... Mas, conservar, remoçar artificialmente a avós e tataravós para constituirem novas familias talvez, e nos tirar mais a liberdade de pensar e agir e obrigar-nos a um beijamão que nunca mais terá fim, é simplesmente deshumano... é povoar a vida de fantasmas simiescos (Moura, 1931: 26).

A crônica “O mal de envelhecer”, de Berilo Neves, tece uma crítica sobre o ponto ao qual chegara a recusa dos homens em aceitar o destino dos animais humildes, depois das ideias de Voronoff, que andavam a pôr “o mundo às avessas”: [...] a humanidade do seculo XX tem mais horror á velhice que á morte... [...] Porque, por muito extranho que o pareça, não é á Vida que nos interessa: é a Mocidade. O homem deste seculo requintou-se a tal ponto que já não se contenta em viver simplesmente como vivem as couves e as borboletas: elle quer viver para gosar, existir para ter sensações, para sentir... O que importa não é a Vida em si mesma, mas as cousas boas e bellas que se pode conseguir, vivendo... (O Mal de Envelhecer. Berilo Neves. A. B. C. 19 abr 1920, p. 8).

O autor aponta que no século XX já não basta mais viver: é preciso ser eternamente jovem e adaptar-se a um novo tipo de vida, artificialmente alargada e potencializada. Este novo tipo de vida implicava na miséria dos animais. Paralelamente, no artigo “E Voronoff descobriu o macaco!...” Maria Lacerda de Moura critica o modo como Voronoff e, de modo mais amplo, a ciência da época, vinha mobilizando energias para alavancar a produção industrial de animais, tornando suas vidas ainda mais miseráveis: [...] que direito tem a ciencia dos homens de intervir na vida natural dos animaes para industrializar as suas funções organicas? [...] Voronoff está a serviço do dinheiro e da imbecilidade humana. Ao homem não basta somente domesticar os animaes para deles se utilizar: criou, degenerou tipos, aniquilou, perturbou evoluções, na cupidez de tirar partido da sua atividade, do seu valor nutritivo e do instinto de reprodução. [...] Agora, Voronoff vae enxertar os animaes para aumentar o rendimento industrial dos rebanhos. Voronoff representa bem uma epoca. Voronoff é um simbolo. E‟ a ciência charlatanizada pelo industrialismo moderno, a ciência a serviço do bezerro de ouro, a ciência do vampirismo humano exgotado de senilidade precoce a sugar as glandulas dos animaes (Moura, 1931: 45-46).

A presença do ideário naturista libertário no pensamento de Maria Lacerda é marcante. Justamente, afinal, a escritora mineira foi uma figura de destaque no movimento anarquista da

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época. Interlocutora de um vasto círculo anarquista e libertário, europeu e sul-americano, Maria Lacerda foi uma importante colaboradora da imprensa operária nacional, e entre 1920 e 1930 teve artigos publicados em revistas libertárias ibéricas e argentinas. Chegou ainda a apresentar conferências no Uruguai e a na Argentina, e em 1923 criou sua própria revista, Renascença, publicação de cinco números, de cunho libertário, voltada à emancipação feminina (Moreira Leite, 1984). Em suma, através de seus escritos e discursos, a autora contribuiu ativamente para o encurtamento de distâncias entre a Europa e a América, no que diz respeito à difusão das ideias libertárias e naturistas. Há, no livro de Maria Lacerda de Moura (1931), aliás, um apelo antivivisseccionista, em defesa dos animais. Lemos, no artigo “Ainda Voronoff”: Não obstante [a imperfectibilidade e grosseria dos instrumentos de vivissecção] a mania da vivissecção é o orgulho da ciência moderna, e as vacinas e sôros se multiplicam para gaudio da terapeutica industrializada e para o martirio dantesco das cobaias e dos simios (Moura, 1931: 39).

Neste artigo, a escritora cita o próprio Voronoff (1928), quando o franco-russo afirma a superioridade do método que desenvolvera sobre aquele, anterior e correlato, de BrownSéquard. Como lembra Moura, Voronoff pondera que a trituração da glândula, feita na opoterapia – promovida por Brown-Séquard – empobrece os elementos ativos do líquido dali tirado, pois ele se altera rapidamente, perdendo suas propriedades ou mesmo se tornando tóxico. A autora comenta: “Assim é que, em ciencia medica, a ultima teoria ou a ultima descoberta destróe todas as anteriores... E, por associação de ideias, lembro-me de quasi centena de crianças mortas pelas vacinas de Calmette, anti-tuberculosas” (Moura, 1931: 39). Alguns anos mais tarde, em crônica de 1937, Berilo Neves reage ao aprimoramento da tecnologia da ciência dos hormônios sobre a área da criação animal. O autor inicia-a dando os pêsames aos galinheiros. Pois o seu recinto, “um dos últimos reductos da vida ao natural”, havia sido invadido com a seringa de injeções de extratos hormonais, depois da descoberta de que tais substâncias dobravam, sem demora, a produção de ovos das galinhas. Dahi ao pinto synthetico o salto não será dos maiores...Ja tinhamos flores artificiaes, passaros mecanicos e outras bellezas da Civilização industrial: vamos ter, agora, omelettes com hormonios, gemmadas typo Pasteur e frangos asepticos... [...] A Natureza nunca imaginou que pudesse haver injecções, neste mundo. A injecção é uma violencia á intimidade das cellulas e ao pudor dos tecidos. [...] Este é, ao meu ver, o symptoma mais alarmante da loucura universal. O Homem não mais se contenta em suicidar-se com uma vida anti-natural e estupida: quer universalizar as suas mazelas. [...] (Ovos hormonizados. Berilo Neves. O Malho, 11 nov 1937, p. 11).

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Há um paralelo que há de ser observado, entre os trechos citados neste tópico, sobretudo este último de Berilo Neves, e aquele de Eugenio George, que em 1927, escreveu a respeito das condições abjetas a que os animais domésticos vinham sendo submetidos nos criatórios de modelo industrial. Nádia Farage (Farage, 2011: 296-297) destaca a denúncia feita pelo autor acerca do aspecto repugnante dos ovos postos pelas galinhas criadas em cativeiro, alimentadas com cereais apodrecidos, e o modo como este modelo de criação era um grande promotor de doenças. E. George – neste mesmo excerto recuperado por N. Farage – aponta que o ser humano, além de imputar condições insalubres e miseráveis ao trabalhador e criar enfermidades para a própria espécie, estendia tais desgraças aos animais domésticos, para os quais o capitalismo industrial impunha as mais pútridas e indignas condições de vida. Este autor foi, aliás, um radical opositor da soroterapia (Farage, 2011: 296-296; 301-302). Podemos concluir que as proposições de Maria Lacerda e Berilo Neves, seja no texto político ou na literatura ficcional, mostram-se alinhadas151 na defesa dos animais e no reconhecimento dos danosos desastres implicados no projeto da produção industrial e da própria civilização. Além disso, vale sublinhar que ambos expressam sua desconfiança em relação a vacinas, soros e injeções.

11.

Soros

Ao longo da década de 1920, no ensejo da popularidade de Voronoff, surgia nas farmácias uma variedade de elixires opoterápicos que prometiam, a partir de soros hormônicos injetáveis, os mesmo resultados de uma operação de Voronoff. Como visto no primeiro capítulo, a opoterapia, que começou a se popularizar no final do século XIX, consistia em uma terapêutica baseada em extratos de órgãos animais. Algumas décadas depois, a voga do método de Voronoff estimulou a comercialização desse tipo de produto. Aparece entre as fontes, com certa recorrência, a ideia de que a própria “voronoffização” era feita a partir de um soro glandular, a ser injetado nos clientes de Voronoff. A começar pelas letras das marchinhas do carnaval carioca de 1928, tanto a Sociedade carnavalesca Clube dos Democráticos quanto seu opositor, o famoso Cordão da Bola Preta, dedicaram versos ao método de rejuvenescimento do Doutor Voronoff:

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Ainda que a postura Berilo Neves em relação às mulheres fosse avessa à seriedade política de Maria Lacerda neste tema. B. Neves foi um autor que não poupou o leitor de seus pontos de vista repletos de misoginia, apoiando-se na ridicularização da mulher e do feminismo como uma das frentes de sua produção humorística.

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os “Democraticos” com o “carro de crítica” intitulado “O Processo Voronoff”152, e os “Bolas” com uma marchinha no baile do Edifício Capitolio. A letra da marchinha cantada pelos Democráticos enuncia: Esta vida, que é um buraco, quando passa dos cincoenta, a gente já não se aguenta sem injecção de macaco! A tripa, o figado, o bófe, toda a fressura enfraquéce e quem taes penas padece só tem um bem: Voronoff! Quem foi festiva gyrandola e hoje já não se alevanta seu fraco só desencanta tomando o sôro da glândula [...] (O Paiz, 20 e 21 de fev 1928, p. 7).

A marchinha do Cordão da Bola Preta traz conteúdo similar: [...] Mas nós, os BOLAS, cá temos seringa, E vamos injectar-te muito sôro Da usina de mestre Voronoff E has de pular, Dansar, Beber tua pinga. Beijar e amar, Com e sem decôro Ó velho salafrario, typo Roskoff!!! (O Paiz, 18 fev 1928, p. 8).

Sublinhem-se os termos “injecção de macaco”, “sôro da glandula”, “seringa” e “sôro”. Outro caso aparece na crônica de Herr Geld: “Faz ja algum tempo que um bode velho, o doutor Voronoff, annunciou a descoberta do rejuvenescimento humano mediante a injecção de um soro especial tirado das barbas de outro bode” (O sôro do bode. Herr Geld. Careta, 10 nov. 1923, p. 24). Dentre as fontes referidas anteriormente, na Figura 12, a “voronoffização” aparece como “injecção de glândulas de macaco”, e na peça de teatro “Processo Voronoff”, como uma injeção de soro glandular de cabrito. Inclua-se ainda, as referências visuais a frascos e seringas nas capas do romance de Mendes Fradique (Figura 9) e da partitura da marchinha de João Rossi e Lamartine Babo (Figura 10). Esse possível erro de referência talvez tenha sido mesmo fruto de um engano e da falta de informação relativa aos detalhes do método de Voronoff. Essa confusão, aliás, não era difícil de ser feita, afinal, o hormônio animal que passaria a circular no sangue dos humanos era uma substância fluida, como o soro. Mas podemos lançar uma segunda hipótese, na qual 152

Os Democráticos, de acordo com a descrição feita por O Paiz, traziam em meio ao bloco “dois macaquinhos authenticos [...] trepados em galhos secos”, e contavam ainda com a presença do famoso comediante Leopoldo Prata, “um dos mais valentes campeões do chiste no Brasil” (O Paiz, 22 e 23 fev 1928, p. 7).

152

esse “erro” revela uma associação feita entre o método de Voronoff e a vacina de Jenner. A fonte mais sugestiva nesse sentido é a charge publicada em maio de 1924, na Careta:

Figura 18. “Soros”. Careta. 17 mai 1924, p. 19.

Tal hipótese, de uma associação entre os dois contextos, leva-nos a pensar em 1904, quando, reativa ao decreto de obrigatoriedade da vacinação contra a varíola – o que explicaria a referência da charge ao Instituto Legislativo –, a capital carioca veio abaixo, sob revolta popular. Não pretendo revisitar aqui, com a devida justiça, os títulos da bibliografia nacional produzida em torno da Revolta da Vacina, acompanhados durante esta pesquisa (Sevcenko, 2013[1984]; Chalhoub, 1991; Farage, 2011). Mas vale mencionar o último capítulo de Cidade Febril, “Varíola, Vacina e „Vacinophobia‟”, em que S. Chalhoub discute o “leque bastante amplo de ressentimentos” por trás do preconceito e da evitação popular à inoculação da vacina (Chalhoub, 1991:101; 168). Neste capítulo, em meio a uma série de outras questões bastante pertinentes, há um detalhe que interessa recuperar. A ilustração de número 19 (Chalhoub, 1991: 158) é uma gravura inglesa, de James Gillray, de 1802, que traz uma caricatura de certos temores relativos à vacina:

153

Figura 19. “A Varíola – ou – os Maravilhosos Efeitos da Nova Inoculação!” Vide Publicações de uma sociedade Anti-Vacínica (Imagem extraída de Chalhoub, 1991: 158).

Na gravura de Gillray, excetuando-se a expressão serena do médico153 – que manipula a seringa e inocula a vacina no antebraço da mulher que o ocupa o centro da ilustração – e daquele que serve o caldo da tina onde se lê “Opening Mixture”, todos se mostram aflitos, desconfiados e assustados ao assistirem em seus próprios corpos “os maravilhosos efeitos da nova inoculação”: grandes pústulas, recém-adquiridas, que eclodem para expelir miniaturas de vacas e bois, ou mesmo, chifres. Mesmo o assistente que segura o vasilhame contendo “Vaccine Pock hot from ye Cow” e traz um livreto intitulado “Benefits of the Vaccine” no bolso, assemelha-se aos pustulentos. Do lado direito da figura, tanto a pessoa que ganha chifres, como aquela que está parindo e vomitando bovinos, têm uma fisionomia andrógina que leva Godfrey Pearlson a interpretá-las como “membros dos dois sexos” (Pearlson, 2015, s/p). No fundo e no alto da figura, há um quadro onde se vê um grupo de indivíduos adorando o monumento de uma vaca de ouro. A vacina de Jenner só chegaria ao Brasil em 1887 (Fernandes, 1999). E não deixaria de encontrar por aqui seus adversários, que também pintavam caricaturas do método de 153

Muito provavelmente, o próprio Edward Jenner ou ainda, seu colega George Pearson (Pearlson, 2015).

154

Jenner, sugerindo que com sua vacina elaborada a partir de pústulas de vaca, este médico pretendia: [...] “bestializar os seus semelhantes, introduzindo no corpo matérias pútridas tiradas das tetas das vacas doentes”. As crianças vacinadas apresentariam, à proporção que se desenvolvessem, “feições de boi”, tumores surgiriam em suas cabeças, “indicando o lugar dos chifres”, sendo que “toda a fisionomia” se transformaria “pouco a pouco em fisionomia de vaca” e a “voz em mugido de touro” [grifos no original] (Guimarães apud Chalhoub, 1991: 106).

Ou ainda, sugerindo que a inoculação da vacina iria “„avacalhar‟” a população, “transplantando-lhes características do animal, além de transmitir doenças próprias desses animais para os indivíduos inoculados” (Fernandes, 1999, s/p) A análise de Nádia Farage (2011) focaliza precisamente este tema, para o contexto brasileiro, ao avaliar a ameaça que a inoculação da vacina trazia à fronteira das categorias conceituais de humano e animal. A autora o faz ao lançar outro olhar sobre a Revolta da Vacina, que contempla, entre outros temas, a presença da suspeição à inoculação de substância animal em corpos humanos, constante nos panfletos do movimento anti-vacínico. Em dado momento, N. Farage menciona o “trânsito literal de substâncias propiciado pela vacina, a borrar fronteiras entre humano e animal, denunciado no debate quanto a sua obrigatoriedade” (Farage, 2011: 292). Depois de duas décadas, outro “caldo” animal, agora opoterápico, poderia ser injetado sob a pele humana, não mais à força e de modo compulsório, sobre a população pobre, mas procurado por consumidores dos extratos hormônicos injetáveis ou dos “elixires” farmacêuticos. Ou ainda – como sugerido pelas fontes “imprecisas” mencionadas no início deste tópico – por aqueles que procuravam as dispendiosas enxertias de Voronoff. Ainda que a equação se inverta, este “caldo” continuava a render debates acalorados entre médicos, escritores e populares. Podemos encontrar outras referências que relacionam Voronoff a Jenner, de forma mais direta, ainda que elas sejam originalmente inglesas. Em julho de 1928, o Diário Nacional publica – na mesma nota que informa que Voronoff estaria em São Paulo, dentro de poucos dias – comentários sobre a forma como ele fora recebido em Londres: A Sociedade Protectora dos Animaes e Antivivisseccionista não quiz saber de nada e organisou um grande comicio de protesto contra os actos notorios do doutor Serge Voronoff. Essa enorme e fremente multidão lá estava indignada, levantando punhos, vociferando, anathemizando [...] O famoso actor Mr. Georges Arliss, uma das figuras mais queridas e populares de Londres, gritou: “Deus nos dotou de corpos limpos; conservemol-os assim, e não os sujemos com as porcarias que se preparam nas asquerosas cozinhas do dr. Voronoff” (Diário Nacional, 18 jul 1928, p. 1).

155

No ano anterior o Diário Nacional havia mencionado uma fala contrária a Voronoff, enunciada nas conferências da British Association, de Leeds. Nela, a medicação opoterápica e os trabalhos de Voronoff são aproximados à vacina, todos igualmente condenados (Diário Nacional, 9 nov 1927, p. 5). O artigo acima citado, de 18 de julho de 1928, prevê que, diferentemente da reação dos ingleses a Voronoff, aqui no Brasil “não chegaremos a esses excessos civilizados. Voronoff fará sua conferencia; muitos o ouvirão com respeito, mas uma larga porcentagem do auditório rirá á socapa, dando cotoveladas inteligentes nos vizinhos” (Diário Nacional, 18 jul 1928, p. 1). De fato, não chegamos. Não foi feito aqui nenhum protesto público propriamente dito. Mas é preciso lembrar que esse tom humorístico, que se criou em torno da figura de Voronoff, não se reduz a ironias vazias, e que alguns autores brasileiros chegaram a redigir críticas agudas à ciência experimental promovida por Voronoff, como visto no item anterior.

12.

Entre o humor e o terror “Esse misturador de especies”: assim se refere a Voronoff um artigo do Diário da

Noite, que aborda a polêmica em torno de sua legitimidade científica (Diário da Noite,16 jul 1928, p. 2). O trânsito de substâncias proporcionado pelos procedimentos de Voronoff não terá escapado ainda ao Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, de 1922. O trecho é o seguinte: “De William James154 e Voronoff. Transfiguração de Tabu em totem. Antropofagia”. Logo que desembarcou no Rio de Janeiro, Voronoff teria recebido uma visita de Oswald de Andrade, rememorada pelo franco-russo em sua autobiografia. Conta-nos Voronoff o que o autor do Manifesto Antropofágico teria lhe dito na ocasião: “Estou orgulhoso de estar na frente daquele que melhor do que ninguém foi capaz de operar a transformação de tabu em totem, para usar os termos de Sigmund Freud”. Oswald explica: “Ele [Voronoff] destruiu a interdição que pesava sobre o xenotransplante155 e a transformou em prática salvífica”. E Oswald de Andrade palestra a respeito da apropriação cultural, defendendo que a América do Sul teria precisado de “transplantes de cultura europeia para ganhar força e desenvolver-se plenamente”, avançando na seguinte conclusão: 154

William James foi uma das grandes figuras da psicologia do início do século XX, crítico da metafísica materialista, autor de Sobre a imortalidade humana (1898), em que versa sobre a possibilidade metafísica da sobrevivência da consciência à morte física do corpo (Silva, 2011: 22). 155 Termo técnico da medicina para designar transplantes feitos entre indivíduos de espécies distintas.

156

Esta apropriação de energia externa não é talvez análoga àquela que fica com os xenotransplantes? Em essência, em ambos os casos se trata de canibalismo, da vitalidade (cultural ou biológica, que seja) subtraída de outrem, não acha? [tradução livre] (Barnabà, 2014: 138)156.

Se pudermos acreditar na precisão deste relato, a “voronoffização” foi pensada por Oswald de Andrade, no Manifesto, como uma extensão da lógica antropofágica, aclamada pelo modernista. Maria Lacerda de Moura elaboraria algo similar, no entanto, com interpretação inversa, enxergando essa apropriação como extorsão cruel e imoral da vitalidade dos animais, nas palavras da escritora, “vampirismo” humano (Moura, 1931: 46). De modo geral, há um constante senso de imoralidade que acompanha as personagens “voronoffizadas”, nas fontes aqui abordadas. Na maior parte dos casos, essa imoralidade é tratada de forma jocosa. Mas há também um tipo de temor, desvelado por alguns episódios, como o dos fictícios habitantes de São João de Pirituba, que “moeram a pau de angico” o “feiticeiro” franco-russo; o inglês que não estava disposto a “sujar” o corpo com as “porcarias” produzidas nas “asquerosas” cozinhas de Voronoff; e do sujeito que, porventura, tenha agredido o médico, em conferência no Rio de Janeiro. Este temor, bem como os demais temas vistos neste capítulo, pode ser pensado a partir daquilo que já foi analisado por M. Foucault, a respeito do aparecimento de uma cultura do perigo no século XIX, cuja manutenção é elementar para o desenvolvimento do liberalismo: “todas as campanhas relativas à doença e à higiene” e “tudo o que acontece também em torno da sexualidade e do medo da degeneração: degeneração do indivíduo, da família, da raça, da espécie humana” (Foucault, 2008: 90-91). Seja pela via do humor, seja pela via do terror – através de jogos conceituais em suas narrativas –, os autores das fontes aqui analisadas ficcionalizam, ironizam, criticam e fazem troça das novas descobertas da ciência. Ao narrar as desventuras de personagens que passaram pela “voronoffização”, a imaginação literária e popular expressa com muita sutileza um receio em relação às consequências da fusão de substância entre espécies.

156

"Quest‟appropriazione di energia esterna non è forse analoga a quella che lei ottiene con gli xenotrapianti? In buona sostanza, nei due casi si tratta di cannibalismo, di vitalità (culturale o biologica che sia) sottratta ad altri, non crede?" (Barnabà, 2014: 138).

157

CAPÍTULO IV Maus encontros Resta para este último capítulo, apresentar ao leitor um desfecho para a história do Dr. Voronoff. Para tanto – retomando o cenário internacional abordado no primeiro capítulo – atentaremos à forma como a endocrinologia absorveu suas contribuições, nas décadas de 1930 e 1940.

1.

A virada da década De volta à Paris, em 1929, depois de sua “volta ao mundo”, Voronoff admite ter

assistido seu trabalho ser superado pela pesquisa endocrinológica. Afinal, naquele ano, o bioquímico polonês Casimir Funk anunciou ter isolado em laboratório, pela primeira vez, o hormônio sexual masculino (Barnabà, 2014: 141). Eliminava-se, assim, toda a desvantagem que Voronoff via nas injeções de extratos hormonais, sobre as quais advogava a pertinência de seu método de enxertia. O médico-cirurgião registra em seu manuscrito autobiográfico: “Termina-se uma época. A cirurgia dá lugar à química” (Barnabà, 2014: 141). “Superando o methodo Voronoff” é o título de um elaborado anúncio – que mais parece um artigo científico – do produto opoterápico Drageas Ormonicas, um extrato hormonal elaborado pelo endocrinologista italiano, Prof. Francesco Figari (Correio da Manhã, 2 jul 1938, p. 3). De acordo com uma publicação da revista O Malho, de 1933, a “voronoffização” havia dado lugar a um procedimento muito mais simples, prático, sem anestesias, bisturis e enxertos: “uma seringa de Pravaz, uma agulha bem apontada, um centímetro cubico de extractos glandulares, uma injecção em fim, é tudo” (O Malho, 22 jun 1933, p. 28). Ao longo da década de 1930, multiplicavam-se nos jornais e revistas anúncios de tônicos, elixires e preparações farmacêuticas, como o opoterápico Iperbiotina Malesci, as Pilulas Maratú, o Testoviron, o Testogan, o Thelygan, o Elixir Dynamogensico, a Fluxosedatina, entre outros, todos baseados na ação terapêutica dos hormônios. No próprio ano de 1929, Voronoff cessou a prática de suas cirurgias de enxertia, passando a dedicar-se ao estudo do câncer. No entanto, outros médicos e endocrinologistas, muito deles colegas de Voronoff, continuavam a empregar operações de enxertia glandular sobre uma variedade de casos que o próprio Voronoff não previa.

158

O cirurgião húngaro Max Thorek (1880-1960), por exemplo, na década de 1930, indicava o enxerto testicular de Voronoff para nada menos que dezessete quadros diferentes, dentre eles: falta de testículos, traumática ou patológica; climatério viril157; neurastenia sexual; demência precoce; psicoses puberais; síndrome de Frölich158; impotência; homossexualidade; hermafroditismo; e certas formas de esterilidade masculina (Marañon, 1940: 253). A atenção dada à homossexualidade, por parte de alguns médicos interessados nas aplicações clínicas das terapias hormonais, abriu um nefasto campo de teoria e experimentação, abordado no próximo tópico.

2.

Desdobramentos imprevistos

Em ao menos dois de seus livros, Maria Lacerda de Moura (1931; 1932) leva-nos a Gregorio Marañon. Trata-se de um fisiologista espanhol, naquela época, figura conhecida e influente no Brasil, médico eugenista, estudioso da “diferenciação sexual” e responsável pela fundação da endocrinologia enquanto disciplina na Espanha. Foi também um entusiasta de Voronoff. Marañon fundou uma corrente teórica, dentro da endocrinologia sexual, que se contrapôs à teoria do antagonismo – aquela que assumia que hormônios sexuais masculinos e femininos não poderiam coexistir no mesmo corpo – para defender a sexualidade, bem como o sexo dos indivíduos, enquanto um valor único, de potência dupla. Sua tese, exposta em livro de 1930, sustentava que tanto os ovários quanto o testículo provinham de um mesmo tecido, indiferenciado durante a fase embrionária dos animais superiores. Existiria, então, a princípio, uma iminência urogenital, que fazia com que cada organismo preservasse, em potência, os dois sexos. Ao longo da evolução histológica, através da ação hormonal, um dos sexos – em “condições normais”, aquele correspondente à genitália de cada indivíduo – desenvolver-se-ia mais que o outro, e caberia ao primeiro dominar o segundo (Marañon, 1930: 11-12). Mas, para Marañon, a diferenciação sexual não se faz, quase nunca – “provavelmente, nunca” – de modo completo, o que explicaria a presença nada atípica de elementos hormonais 157

Andropausa. “Condição caracterizada por obesidade feminina e infantilismo sexual, atrofia ou hipoplasia das gônadas, e alteração das características sexuais secundárias. Dores de cabeça, crescimento e desenvolvimento sexual retardados; retardo mental, problemas visuais; poliúria; polidipsia. É geralmente associada com tumores do hipotálamo, causando aumento do apetite e secreção deprimida de gonadotrofina.” Informação extraída do verbete “Babinski-Fröhlich syndrome”, no sítio virtual “Whonamedit? A dictionary of medical eponyms”. Disponível em http://www.whonamedit.com/synd.cfm/1792.html. Acesso em 8 de maio de 2016.

158

159

masculinos no ovário, ou femininos no testículo (Marañon, 1930: 11-12). Tratava-se de um ataque direto à teoria do antagonismo sexual de E. Steinach. Segundo A. Fausto-Sterling, nessa época, embates como este, entre diferentes correntes da endocrinologia, culminaram em uma crise na definição médica dos sexos (Fausto-Sterling, 2000: 183). O fisiologista Allan Parkes, por exemplo, chegou a interpretar a produção simultânea de andrógeno e estrógeno das glândulas adrenais como um “golpe final a qualquer ideia clara sobre sexualidade” (Parkes apud Fausto-Sterling, 2000: 191). Como narra a autora, no início dos anos 1930, outros se perguntariam sobre o próprio conceito de sexo: Em uma análise da edição de 1932 de Sexo e Secreções Internas (que sumarizou os primeiros dez anos de avanços fundados pelo Comitê para Pesquisa em Problemas do Sexo), o endocrinologista britânico F.A.E. Crew foi até mais longe, perguntando „O sexo é imaginário?... O caso é‟ ele escreveu, „que a base filosófica da pesquisa moderna sobre o sexo sempre foi extraordinariamente pobre, e pode-se dizer que os pesquisadores americanos fizeram mais do que nós em destruir a fé na existência da própria coisa que nós tentamos analisar‟. No entanto, Crew acreditava que a ciência acabaria por definir o sexo, “o objeto de suas pesquisas,” ao invés do contrário. „Se em uma década tanto foi revelado,‟ ele escreveu, „o que não saberemos depois de um século de inteligente e industrioso trabalho?‟ A despeito da crescente comprovação científica para o contrário, o sexo deve existir” [tradução livre] [grifos no original] (Crew apud Fausto-Sterling, 2000: 191-192)159.

Nota-se que o desenvolvimento dos estudos sobre o impacto dos hormônios sexuais no organismo mostrava-se em descompasso em relação ao conservadorismo ideológico em torno da classificação dos sexos e da sexualidade. O trecho indicado por Fausto-Sterling mostra que, em 1932, Francis Crew fez uma escolha, ao defender, deliberadamente, que a pesquisa se adequasse ao ideário normativo em torno da diferenciação sexual em vigor na época. Por muitas décadas, a ciência da endocrinologia seguiria este rumo160. Segundo Richard Cleminson, a sexologia do século XIX faria um esforço similar: [...] para procurar e expor a “verdade” da sexualidade individual ou universal, baseando-se em um enquadramento naturalizante que via a cultura como um reflexo

“In a review of the 1932 edition of Sex and Internal Secretions (which summarized the first ten years of advances funded by the Committee for Research in Problems of Sex), the British endocrinologist F.A.E.Crew went even further, asking „Is sex imaginary?...It is the case,‟ he wrote, „that the philosophical basis of modern sex research has always been extraordinarily poor, and it can be said that the American workers have done more than the rest of us in destroying the faith in the existence of the very thing that we attempt to analyze.‟ Nevertheless, Crew believed that science would ultimately define sex, „the object of its searchings,‟ instead of vice versa. „If in a decade so much has been disclosed,‟ he wrote, „what shall we not know after a century of intelligent and industrious work? Despite growing scientific evidence to the contrary, sex must exist‟” (Crew apud Fausto-Sterling, 2000: 191-192). 160 Para uma discussão aprofundada do assunto, veja-se A. Fausto-Sterling, 2000. 159

160

da realidade “natural” em termos descomplicados, frequentemente patologizando a sexualidade “desviante” no processo161 [tradução livre] (Cleminson, 2000: 38).

Ainda em 1930, G. Marañon propôs que a cirurgia de Voronoff fosse empregada não para rejuvenescer, mas para tratar os casos do que chamava de “homossexualismo extremo”, sugerindo que tal intervenção cirúrgica poderia “corrigir” este comportamento sexual162. Afinal, sua tese previa que a diferenciação dos sexos, bem como a determinação da sexualidade, dependia da atividade hormonal, que seria responsável por estimular em cada indivíduo os caracteres do seu sexo, deprimindo o desenvolvimento dos caracteres do sexo oposto. A “voronoffização”, como outras terapias hormonais, seria, portanto, um meio de sufocar nesses corpos suas inclinações homossexuais, compreendidas como “resquícios do outro sexo”. Maria Lacerda de Moura, contemporânea do fisiologista espanhol, registrou suas objeções às declarações deste médico eugenista. A autora dedica todo o quarto capítulo de seu livro Amai... e não vos multipliqueis (1932), a uma contestação das teses médicas de G. Marañon. Em meio à sua argumentação, a escritora afirma não enxergar na homossexualidade “vergonha” ou “baixeza” alguma, quanto menos algo que precisasse ser “sufocado”, mas sim uma especificidade que se dava naturalmente para alguns, e que deveria ser respeitada enquanto tal, justamente por sua naturalidade (Moura, 1932: 209). E afirma ser “lamentável” a recomendação de “voronoffização”, feita por Marañon, aos homens afeminados e às mulheres masculinizadas, qual seja, a aplicação do enxerto de glândulas masculinas nos primeiros, para reforçar sua virilidade, e de glândulas femininas nas segundas, para prevalecer a feminilidade (Moura, 1932: 209). Entretanto, o endocrinologista espanhol era celebrado por muitos, sendo um de seus seguidores o criminologista brasileiro Leonídio Ribeiro. Em seu livro de 1938, “Endocrinologia e Homosexualismo” – prefaciado, aliás, por Gregorio Marañon –, a 161

[…] to seek and expose the 'truth' of individual or universal sexuality, drawing on a naturalising framework which viewed culture as a reflection of natural 'reality' in uncomplicated terms, often pathologising 'deviant' sexuality in the process (Cleminson, 2000: 38). 162 Ao longo de sua vida, Gregorio Marañon adotou posturas políticas e científicas que, aos olhos contemporâneos, podem parecer bastante controversas entre si: junto de suas apostas na eugenia e no tratamento da homossexualidade, o endocrinologista foi uma figura importante no movimento da emancipação feminina e reforma sexual da Espanha, reconhecido por promover a saúde da mulher, apoiar o divórcio e a contracepção. Em seu contexto, o próprio tratamento contra a homossexualidade, por considerá-la consequência de um desequilíbrio hormonal, reversível, era uma medida considerada progressista, em relação à concepção que vigorava até então no direito e na criminologia, que classificava o homossexual como um tipo criminoso, ou na psicologia e na psiquiatria, que pensava a homossexualidade como uma degeneração moral (Glick, s/d).

161

“voronoffização” é tratada no capítulo “Tratamento medico-pedagogico”, onde o autor afirma: 163

Há uma observação recente de Dartigues , de Paris, de um nevropata de 33 anos, cujas antigas tendências homosexuaes foram logo melhoradas [depois do enxerto testicular de Voronoff], aparecendo mesmo o desejo sexual e a vontade de casar, dois meses depois da operação de transplantação [...] (Ribeiro, 1938: 171).

Além de mostrar-se bastante interessado no emprego dos enxertos de Voronoff para a reversão dessas “tendências”, o autor defende que os casos de “homossexualismo” já não poderiam mais ser vistos como perfis criminosos, como se concebia até então, mas, antes, desordens endocrinológicas, passíveis de tratamento: O professor Mario Carrara, de Turin, que foi um dos primeiros a chamar a atenção para as origens organico-endrocrinas da criminalidade sexual, afirma que o homosexualismo está condicionado por graves disturbios hormonicos e desse modo deve-se acreditar numa terapeutica, por meio de intervenção cirurgica ou de recursos farmacologicos, especialmente opoterapicos (Ribeiro, 1938: 175).

Atentemos para o fato de L. Ribeiro ter sido um criminologista. É interessante situar aqui breves considerações acerca da tradição de tal disciplina, a partir da leitura feita por Stephan Jay Gould, em A Falsa Medida do Homem (2014). O autor lembra-nos que a ideia de evolução impactou profundamente o século XIX, sobretudo as ciências da vida, que seriam reformuladas à luz de tal conceito. Na segunda metade do século XIX, nascia a antropologia criminal, disciplina criada por Cesare Lombroso. L‟uomo delinquente é o título de sua obra de 1876, um dos grandes marcos da criminologia. Para o higienista italiano, o “criminoso nato” poderia ser identificado em sua fisionomia, capaz de denunciar, fenotipicamente, toda sua degeneração moral. Criminosos natos eram, aliás, para ele, homens de “traços atávicos”, movidos pelo seu “passado simiesco”, ou ainda, “símios que vivem entre nós” (Gould, 2014: 122). Como resumido por Gould, no ponto de vista de Lombroso: Os criminosos são tipos atávicos, do ponto de vista da evolução, que perduram entre nós. Em nossa hereditariedade jazem germes em estágio letárgico, provenientes de um passado ancestral. Em alguns indivíduos desafortunados, esse passado volta à vida. Essas pessoas se vêem levadas, devido à sua constituição inata, a se comportar como um macaco ou um selvagem normais, mas esse comportamento é considerado criminoso por nossa sociedade civilizada (Gould, 2014: 123).

163

Dr. Louis Dartigues e Voronoff trabalharam juntos durante toda a década de 1920. Pode-se dizer que esse ginecologista era uma espécie de mão-direita de Voronoff.

162

Apesar da lógica do criminologista italiano ter encontrado sérios problemas para sustentar-se cientificamente e para ser aceita pela comunidade médica, Lombroso não deixou de insistir nas “raízes biológicas” da criminalidade. Sua reação às críticas foi simplesmente ampliar as causas inatas da criminalidade, passando a incluir entre elas “várias categorias de enfermidade e degenerações congênitas” (Gould, 2014: 133). Gould recupera as palavras de Lombroso: “Vemos no criminoso [...] um selvagem e, ao mesmo tempo, um enfermo” (Lombroso apud Gould, 2014: 133). A partir da antropologia criminal de Lombroso apareceriam ainda muitas outras teorias e derivações correlatas. Uma delas foi a teoria da recapitulação, de Ernst Haeckel (1834-1919), o conhecido zoólogo alemão. Esta tese pode ser sintetizada no seguinte axioma: “a ontogenia recapitula a filogenia” (Gould, 2014: 112). Haeckel sugeria “que o desenvolvimento embriológico das formas superiores poderia servir como um guia para se deduzir de forma indireta a evolução da árvore da vida”, ou seja, ao longo da evolução orgânica de cada indivíduo, o corpo reproduzia em microescala a evolução da espécie humana, ao atravessar uma sequência de estágios que “correspondem sequencialmente às diferentes formas adultas de seus antepassados” filogenéticos (Gould, 2014: 112). Vale reter esse raciocínio. Em 1940, Gregorio Marañon continuava a desenvolver suas teses sobre a ação hormonal e a sexualidade humana, agora argumentando que a ação química hormonal sobre o aparelho genital, por si só, não era capaz de reverter um quadro de homossexualidade. Afinal, segundo ele, sua função era apenas a de ativar a libido, que, na sua qualidade de “instinto” primitivo, era incapaz de diferenciar seu objeto de desejo, e não mantinha relação específica com a orientação do desejo para o sexo oposto. O hormônio sexual, porém, por se propagar para o corpo como um todo, guardava influência sobre o cérebro, e era essa a relação que seria capaz de direcionar a libido de um indivíduo para o sexo oposto, modificando um quadro de sexualidade “desviante” (Marañon, 1940: 84). Explica o fisiologista: “O que diferencia este impulso borroso [da libido] é a eleição rigorosa do objeto de sua satisfação, e essa eleição é um fenômomeno especificamente mental e não endócrino” [tradução livre] [grifo meu] (Marañón, 1940: 85)164. O autor pondera sobre o fato de que muitos animais mal distinguem o sexo do parceiro para excitar-se e copular, pontuando que este quadro tendia a rarear à medida que se subia na

164

“Lo que diferencia este impulso borroso [da libido] es la elección estricta del objeto de su satisfacción, y esta elección es un fenómeno especificamente mental y no endócrino” (Marañón, 1940: 85) [grifo meu].

163

escala zoológica. Vincula, assim, a heterossexualidade ao destino da evolução das espécies, em contraposição à libido indiferenciada, característica dos animais inferiores: Às vezes esta diferenciação é quase borrosa, mas basta, porque o espírito, sobre um simples detalhe morfológico, é capaz de engrenar seu poder criador e constituir um ideal, quer dizer, um objetivo do instinto rigorosamente diferenciado, individualizado [...] Este caráter cerebral da especificação do instinto explica-nos também que a diferenciação sexual mais apurada é a que se observa na espécie humana. O animal, quanto mais baixo se observa na espécie a que pertente, mais perto estará da indiferenciação sexual, isto é, do homossexualismo. O homossexualismo é, por isso, menos frequente à medida que avançamos no progresso das espécies; e na humana, a mais avançada de todas, o homossexualismo é também, portanto, sempre, consequência de uma condição orgânica anormal e regressiva [tradução livre] (Marañón, 1940: 85)165.

Para este médico eugenista, a homossexualidade, condição “anormal e regressiva”, equacionava-se, portanto, à “baixeza” animalesca, por via do desregramento da libido. O argumento da evolução encontra, ainda, mais um desdobramento em sua tese. G. Marañon apostava numa hierarquia evolutiva dos sexos, manifesta nos aspectos do desenvolvimento endócrino-sexual dos seres humanos: os hormônios femininos eram vistos por ele como caracteres iniciais, juvenis, e, os masculinos, caracteres terminais, maduros (Marañon, 1940: 65). O espanhol defendia que, a rigor, não existiam dois sexos, mas duas fases evolutivas da humanidade: a forma masculina, que seria a instância teleológica da espécie, ou seja, o objetivo final da evolução humana, e a forma feminina, que seria uma forma mais baixa na escala evolutiva, estagnada em sua inferioridade, fisiologicamente equiparável à infância masculina. Para o autor, somente a maternidade poderia elevar a forma feminina a uma expressão completa. É possível inferir que Marañon estivesse aplicando o princípio da recapitulação para a diferenciação sexual humana ao transpor a ideia de uma dita hierarquia evolutiva dos sexos para a configuração da atividade hormonal ao longo de desenvolvimento orgânico de cada indivíduo. Suas teses, enfim, apesar de pouco ortodoxas e pretensamente revolucionárias, mostravam-se enredadas em postulados tão preconceituosos e conservadores quanto possível. Se a endocrinologia clínica, ao menos aquela perpetuada por G. Marañon e L. Ribeiro, associou-se às referências da eugenia do século XIX, ela ainda iria de encontro aos tenebrosos

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“As veces esta diferenciación es casi borrosa, pero basta, porque el epíritu, sobre um simple detalhe morfológico, es capaz de engranar su poder creador y constituir um ideal, es decir, um objetivo del instincto rigorosamente diferenciado, individualizado[...] Este carácter cerebral de la especificación del instinto nos explica también el que la diferenciación sexual más fina se a la que se observa em la espécie humana. El animal, cuanto más bajo que se observa en la espécie a que pertence, más cerca estará de la indiferenciación sexual, esto es, del homossexualismo. El homossexualismo es, por eso, menos normal a medida que avanzamos em el progresso de las espécies; y en la humana, la más avanzada de todas, el homossexualismo es también por ello, siempre, consecuencia de uma situación orgânica anormal y regressiva” (Marañón, 1940: 85).

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projetos científicos de pureza racial do século XX, interessados a um só tempo na pretensa “cura” da homossexualidade e no alargamento do potencial reprodutivo da população166. Vivre, e La Conquête de la Vie: estes são os títulos dos livros mais populares de Voronoff. A terapia dos enxertos glandulares, por ele propagada, foi estabelecida como modelo e praticada por muitos outros médicos – de forma mais ampla do que a prevista pelo próprio Voronoff – nos corpos dos animais inférteis e inaptos à reprodução, dos senhores e das senhoras, dos homossexuais, dos homens “afeminados”, das mulheres “masculinizadas”, dos então chamados hermafroditas, dos estéreis, dos impotentes, das “histéricas”, dos acometidos pelo “cretinismo”167, pela neurastenia168 e por toda sorte de “disfunção” que aproximava os organismos da morte ou de uma vida “improdutiva”. Segundo Foucault, com o excesso de biopoder, apareceria ainda a possibilidade técnica e política “[...] não só de organizar a vida, mas de fazer a vida proliferar, de fabricar algo vivo, de fabricar algo monstruoso [...]” (Foucault, 2005: 303). Algo correlato teve lugar na expansão fascista na década de 1930, através da política estatal italiana de incentivo à reprodução, segundo a proposição de Maria Lacerda de Moura (Ritcher, 1998: 90). Ao escrever sobre o aumento da taxa de natalidade, a escritora libertária sugere que a expansão do fascismo a ele se atrelava, quando se refere ao aumento da população como “a menina dos olhos de Mussolini” (Moura, 2012 [1934]: 103)169. 166

Veja-se o trabalho do historiador Carlos de Nápoli (2012), que analisa uma documentação inédita da ciência nazista, que aponta o modo como médicos, químicos e agrônomos que estiveram envolvidos no projeto do Terceiro Reich preocuparam-se em manter-se atentamente atualizados em relação às novidades da endocrinologia na década de 1930, e, particularmente, aos trabalhos de S. Voronoff e E. Steinach. Segundo o autor, a possibilidade de “cura da homossexualidade” através da chamada terapia hormonal foi uma das frentes de tal interesse. Junto de outros dos mais importantes ideólogos do movimento nazista, Heinrich Himmler, por exemplo, agrônomo e comandante militar da SS, concebia os homossexuais como “uma mancha na pureza da raça ariana, membros estéreis na propagação da raça superior” (Nápoli, 2012: 49). A documentação trabalhada por di Nápoli aponta que a ciência nazista interessava-se ainda pelo potencial que a endocrinologia poderia representar para a extensão da expectativa de vida dos cidadãos do Terceiro Reich e, sobretudo, a potencialização da fertilidade nas mulheres alemãs, como meio de acelerar a proliferação da raça ariana (Nápoli, 2012: 34). Essas relações evocam uma reflexão de Michel Foucault, qual seja, aquela que avalia que no exemplo extremo do contexto nazista, o biopoder foi absolutamente generalizado e, junto com ele, o direito de soberania, de “fazer morrer”; ou seja, na sociedade nazista coincidiram, perfeitamente, os dois mecanismos (Foucault, 2005: 311). 167 Na época, também conhecido como mixoedema, quadro de atraso mental relacionado à deficiência de tiroxina. Em 1914, Voronoff anunciou ter encontrado a cura para o cretinismo, através da enxertia da glândula tireoide em crianças que apresentavam este quadro (O Paiz, 4 jul 1914, p. 8). 168 Diagnóstico bastante comum no final do século XIX, que designava o enfraquecimento do sistema nervoso, fraqueza e exaustão física e psicológica, associada a “um penoso estado de desanimo capaz de roubar toda satisfação de viver” (Correio Paulistano, 24 julho 1937, p. 4). 169 Este argumento encontra-se plenamente desenvolvido em seu livro neomalthusiano de 1932, Amai e... não vos multipliqueis, no qual Maria Lacerda expõe uma parte elementar do seu discurso antifascista: o direito das mulheres ao próprio corpo, à liberdade sexual e ao controle reprodutivo (Lacerda, 1932). Em sentido inverso, “Crescei e multiplicae-vos...” era o título de um livreto anunciado em 1936 e em 1937, pelos jornais Eu sei tudo e Correio Paulistano. Este livreto, “cuja leitura é da maior importancia para os individuos que soffrem de disturbios sexuaes”, era distribuído gratuitamente aos paulistanos pelo “Departamento de NeoTherapia

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Ao que nos conta o próprio Voronoff, em seu manuscrito autobiográfico, publicado pela primeira vez em 2014, ele foi questionado sobre sua opinião acerca de Mussolini, em entrevista à imprensa italiana, em fins da década de 1920. Naquela época – em que se falava na possibilidade de aplicar na Cirenaica170 seu método de enxertia, para o melhoramento dos rebanhos ovinos – Voronoff não poupa elogios à figura do general italiano: afirma ter grande admiração pelo estadista, e que ficou profundamente comovido com a menção que Mussolini lhe fizera em um discurso, descrevendo a si próprio como “o Voronoff da Itália”, uma metáfora do rejuvenescimento político que pretendia operar no país. Na mesma ocasião, o franco-russo diz ainda que se sentia muito lisonjeado com a comparação, mas considerava-se um homem minúsculo perto da grandeza de Mussolini. Mais tarde, Voronoff comenta estas declarações com pesar, em sua obra autobiográfica, dizendo não imaginar, na época, o quanto se arrependeria de tê-las feito (Barnabà, 2014: 112).

3.

A morte do mago da vida

Na virada da década de 1930, depois de abandonar a prática da enxertia glandular, Voronoff deixa de ser um estouro de publicidade. Seu nome começava a ser esquecido, desaparecendo gradualmente dos jornais. A fase final da vida de Voronoff seria marcada pelo clima político funesto que prenunciava a Segunda Guerra Mundial. Nos últimos anos da década de 1930, o franco-russo assistia – segundo o próprio, com grande desgosto – entre seus colegas, casos como o de Alexis Carrel, que vinha nutrindo ideias favoráveis à eliminação física dos “indivíduos inferiores”, que o levaram a aderir ao partido fascista francês e a tornar-se um simpatizante de Hitler, bem como um colaboracionista do regime nazista (Barnabà, 2014: 163-164). Segundo o verbete biográfico de Belmiro Valverde171 na BVS-Fiocruz, este médico ficou conhecido na década de 1930 por sua militância na Ação Integralista Brasileira (AIB), a conhecida organização de extrema-direita orientada pelo ideário fascista. Correlato é o

Scientifica Ltda”. O anúncio expunha seu intuito: informar os leitores de ambos os sexos a respeito dos recursos então dispostos pela ciência para a manutenção do equilíbrio das funções sexuais, dispensando o tratamento de Voronoff em favor outras terapias, consideradas mais apuradas (Correio Paulistano, 10 out 1937, p. 14). 170 Divisão administrativa da Líbia Italiana, entre 1927 e 1943. 171 Disponível em http://www.bvsalutz.coc.fiocruz.br/html/pt/20080502/static/trajetoria/novos_estudos/comissao_belmiro.htm. Acesso em 13 de abril de 2016.

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verbete biográfico de José Madeira de Freitas no CPDOC-FGV172, o qual informa que, também na década de 1930, este médico e escritor assumiu o cargo de diretor de propaganda da AIB, e foi redator-chefe do jornal A ofensiva, órgão oficial do partido integralista, além de colaborador da revista Hierarquia, promotora das ideias do fascismo europeu no Brasil, e da revista Anauê, publicação integralista. Em junho de 1940, quando a Itália entrou em guerra com a França, na Batalha dos Alpes, a propriedade do Château Grimaldi, que comportava o “macacário” de Voronoff, foi confiscada pelas autoridades italianas. Durante a ocupação de Menton, o Château foi parcialmente destruído. Conta-nos Voronoff que a tensão se intensificava e ele, na condição de judeu, decidiu deixar o país (Barnabà, 2014: 163-164). Tornou-se, assim, refugiado, partindo com sua esposa para os EUA em 1941. Em 1943 Voronoff tomou ciência de que seu nome constava em uma das listas nazistas, que arrolava um conjunto de autores judeus que haviam publicado livros na França (Barnabà, 2014: 170). Entre 1943 e 1944 dois de seus irmãos, que ainda viviam em Paris, foram detidos pela polícia nazista, e encaminhados aos campos de detenção e concentração de Drancy e Auschwitz (Barnabà, 2014: 170-171). Ao retornar à França, em 1945, Voronoff encontrou seu château em condições deploráveis, depois de ter sido bombardeado (Barnabà, 2014:173)173. Não é preciso dizer que esse foi um período particularmente sombrio para o médico-cirurgião. Voronoff ainda era milionário quando faleceu, em 1951, aos oitenta e cinco anos de idade. Excetuando-se uma matéria de capa do jornal A Noite, com manchete em letras garrafais, as notas da imprensa referentes ao seu falecimento são consideravelmente discretas e lacônicas. Ironicamente, o nome do homem que almejava viver cento e quarenta anos permaneceria praticamente apagado da história até os últimos anos do século XX, quando sua extraordinária trajetória médica foi recuperada pela historiografia. Este silêncio em relação a Serge Voronoff, nos registros oficias da história da medicina, talvez tenha sido um movimento intencional, feito no intuito de desassociá-lo, via esquecimento, da história da endocrinologia. É possível que a crítica a Voronoff tenha contribuído não só para o descrédito da endocrinologia no início do século XX, como também para a falência do projeto da andrologia, área até hoje preterida dentro da medicina. Segundo a análise de Nelly Oudshoorn 172

Disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jose-madeira-de-freitas Acesso em 3 de junho de 2016. 173 Mais tarde, em alguma data próxima ao início da década de 1980, a propriedade foi reconstruída, e veio a tornar-se o luxuoso hotel Château Grimaldi, que funciona até hoje.

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para o contexto estadunidense, as terapias baseadas nos transplantes de testículo de macaco teriam trazido a esta especialidade – já pouco popular por pretender tomar como objeto de estudo e intervenção terapêutica o “intocável” corpo masculino (Oudshoorn, 1998) – uma associação permanente entre andrologia e terapêuticas charlatãs (Oudshoorn, 1994). A endocrinologia, entretanto, logrou sua legitimação entre as ciências médicas oficiais, apesar do status controverso que carregou por mais de um século, quando esteve imersa em um confronto entre a política do fazer científico e a política das moralidades inconstantes (Clarke, 1998: 234).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo buscou oferecer uma leitura da passagem de Serge Voronoff pelo Brasil, nem tanto pela trajetória do médico, em si, mas antes pelo que permite apreender da relação entre a medicina experimental, que se consolidava nas primeiras décadas do século XX, e a reação popular que suscitou. E, como vimos, os debates acerca de tais práticas médicas, seja na imprensa, na literatura, no teatro de revista, na música ou no cinema, exibem interlocutores engajados: muito além do debate disciplinar sobre a validade, ou não, da teoria e do método voronoffianos, a reação popular contemplou causas e efeitos biopolíticos. Proposições tão audaciosas e polêmicas para o período, como um método de rejuvenescimento e “super-vitalização”, proposto com base na novidade, então recentíssima, dos hormônios sexuais, não foram ignoradas ou facilmente acolhidas pela população. O fato de que tais substâncias eram manipuladas, de modo a transitar artificialmente entre corpos distintos, bem como entre espécies diversas, vinha, ainda, articular-se às preocupações populares quanto ao método experimental, em seu todo, ecoando, embora de forma enfraquecida, a campanha anti-vacínica do início do século (Chalhoub, 1991; Farage, 2011). O caso é rico em possibilidades historiográficas. Focalizamos, entretanto, a história de S. Voronoff como entrecruzamento de temas que marcaram o pensamento social na primeira metade do século XX. Com efeito, a endocrinologia, área de intervenção do Dr Voronoff, teve por objeto a sexualidade, cuja representação, nesse debate, foi intensamente equacionada à figura do animal; ao buscar na animalidade um fio condutor para esta abordagem, o encontramos emaranhado a muitos outros. O predicado ambíguo da sexualidade animal, como esperamos haver demonstrado, vincula-se, diretamente, ao debate relativo ao gênero, no período, mas sob tal debate, e a ele necessariamente articuladas, estão disputas classificatórias quanto à raça e à classe. A leitura do gênero, tendo por contraponto a sexualidade animal, não passou despercebida a Maria Lacerda de Moura (1932: 90-91). Em 1932, a autora manifesta sua indignação em relação às “expressões deprimentes” utilizadas por vários críticos – sobretudo moralistas religiosos – da liberdade integral e sexual da mulher que, via de regra, recorriam à sexualidade animal para anatemizar tais reivindicações. Suas acusações falavam em “„materialismo grosseiro‟, „satisfação dos instintos inferiores‟, „certas ideias que só servem

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para arrastar as criaturas humanas á animalidade‟, e em „filhos da carne‟ (...)” (Moura, 1932: 90-91). A escritora reage: (...) protesto intimamente, em nome dos animais... Conduzir á animalidade? Em questão sexual, si obedecessemos ás vozes animais que pontificam em nós, certo estaríamos dentro das leis biologicas. Observando o instinto sexual dos animais, veremos a sua moral natural mais elevada qua a moral sexual dos cristãos civilizados e piedosos. A cada instante ofendemos aos animais, comparando os nossos vicios e as nossas baixezas á sobriedade e ao equilíbrio harmonioso dos chamados irracionais (Moura, 1932: 91).

Tal observação é reiterada por Keith Thomas para a Inglaterra moderna: no animal projetava-se a imagem do desregramento humano: “o homem atribuía aos animais os impulsos da natureza que mais temia em si mesmo – a ferocidade, a gula e a sexualidade” (Thomas, 2010: 54). Tal equação simbólica entre animalidade e sexualidade, em particular a sexualidade feminina, comparece, de forma forte, nos debates que percorremos. A emergência da endocrinologia sexual, em seu vínculo íntimo com a fundação da biologia reprodutiva, entre fins do século XIX e início do século XX, proporcionava à ciência – com a manipulação hormonal dos corpos animais e humanos – um instrumento de intervenção regulatória sobre o sexo, inédito até então. As preocupações e os interesses, governamentais e médico-científicos, sobre o corpo e sobre a população, entretanto, vinham de períodos bem anteriores, como bem demonstrou Michel Foucault (Foucault, 1988; 2005). Seguindo M. Foucault (1988), R. Cleminson sublinha o fato de que, do século XVIII em diante, “a sexualidade foi posta em discurso”, apreendida em narrativas e práticas científicas que fizeram do corpo um campo de regulações, e do sexo um “perigo constante” (Cleminson, 2000: 17 e 16). Neste período, “emergiu um novo tipo de medicina, que era científica e moral ao mesmo tempo, um tipo de aliança „médico-moral‟ para libertar a sociedade e os indivíduos da mácula” (Cleminson, 2000: 37-38). No final do século XIX, sumariza Cleminson, tratava-se de intervir, cientificamente, no que seria “o corpo social e orgânico decadente do fin du siècle – empesteado de mulheres histéricas, machos desvirilizados, e da desenfreada doença sexual veiculada pela água e pelo ar” [tradução livre] (Cleminson, 2000: 36)174. A maneira pela qual as cirurgias de Voronoff e as práticas opoterápicas foram empregadas endossa valores de gênero vigentes à época, que atribuíam positividade à

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“´[…] scientific intervention into what moral hygienists and sexual pathologists belivied was the decaying fin de siècle social and corporal body – plagued with strident women, unvirile males, and rampant sexual, air- and water-borne disease” (Cleminson, 2000: 36).

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virilidade e à hiperssexualidade nos homens e, em contrapartida, negatividade ao caso feminino. A sexualidade pronunciada nas mulheres seria tão negativa quanto a histeria (Engel, 2000: 347). A sexualidade feminina, compreendida como potencialmente perigosa na modernidade, quando tornada objeto da medicina, o foi no sentido da administração e controle da fertilidade (Engel, 1989: 84). Interessava fazê-la voltar-se à maternidade, espécie de salvaguarda moral do desejo feminino, capaz de demover sua potência ameaçadora, domesticando-a (Engel, 2000: 338 e 340-341). O próprio Voronoff comentava que, se comparada ao percentual masculino de seus clientes, eram poucas as mulheres que procuravam seus serviços, e geralmente o faziam de modo especialmente reservado e sigiloso. Em contrapartida, o imaginário produzido em torno das intervenções hormonais, na literatura ou no teatro, enfatizou os efeitos distópicos da medicina experimental, tendo por expressão maior a animalização, por excesso, da sexualidade feminina, como bem demonstra a personagem Nora. Fossem homens ou mulheres, a terapêutica de Voronoff voltava-se, enfim, a um público específico, e não exatamente à saúde da população – apesar do franco-russo defender seu método como uma contribuição magna à humanidade. Em grande parte, as intervenções cirúrgicas que colocaram em prática o “método Voronoff”, normalmente oferecidas a preços nada módicos, eram procuradas para retardar o envelhecimento de burgueses. Estes não demorariam a tornar-se motivo de chiste e alvo de escárnio nos carnavais de rua cariocas e paulistas. Nesse festejo, os setores populares e iletrados, junto das classes médias, fariam ainda sua crítica espirituosa sobre certas novidades da medicina. Sob o gênero e a classe, revela-se, ainda, a idade como objeto de preconceito, bem como o aspecto da medicina moderna voltada ao prolongamento da vitalidade daqueles que podiam pagar por ela. Por fim, mas não menos importante, o tema da raça se destaca nos debates que perseguimos, ao longo deste trabalho. É ainda na ficção que o tema se esclarece, por meio de uma equiparação metafórica, insistentemente repetida, entre negritude, animalidade e hiperssexualidade. Existe, enfim, uma simultaneidade nada fortuita entre a subjugação dos animais e a das categorias sociais minorizadas cujas vidas, em ambos os casos, foram sistematicamente desprezadas, e ao mesmo tempo, exploradas à exaustão. O caso do Dr. Voronoff, o imaginário popular erguido ao seu redor e o modo como a endocrinologia absorveu seu trabalho, compõem, enfim, um objeto de estudo que salienta o modo como, na década de 1920, o tema da animalidade perpassa todas essas discussões sobre

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o gênero, a classe e a raça. Em suma, o dilema da animalidade parece constituir o foco virtual onde se organizam esses outros dilemas. Aquém ou além da equivalência metafórica, encontra-se o animal. Importa notar, por fim, que o ponto de vista leigo e popular sobre os experimentos biomédicos de Voronoff convoca, de um lado, os temores quanto à confusão classificatória promovida pela mistura de substâncias animal e humana, co-extensivos à bacteriologia e à institucionalização da vacinação (Farage, 2011). De outro, resta alguma solidariedade, ainda que vaga, aos animais. Se no meio científico o animal resumia-se a um mero objeto – ou, como diria Voronoff, um repositório de peças para a “máquina humana” –, era bem outra sua imagem no imaginário popular, que o compreendia e defendia sua vida: “No fim das contas, que dirão a tudo isso os sympathicos chimpanzés, cuja collaboração é necessária? Consultaram-n‟os, para dispôr das suas glandulas?” (O Pharol, 5 nov 1923, p. 1). Ao defender os animais, esses humanos defendiam a si mesmos do biopoder, quiçá por compreender que tudo aquilo que acontecia a uns poderia vir a acontecer a outros. Vale, afinal, para todos a legenda da charge d‟O Malho que ilustra “A chegada de Voronoff” ao Brasil: “OS MACACOS: – Salve-se quem puder!”.

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BIBLIOGRAFIA

1.

Fontes primárias

Fontes impressas citadas: A.B.C. (Rio de Janeiro) “O Mal de Envelhecer”. Berilo Neves, 19 abr 1920, p. 8 “O Dr. Voronoff no Brasil”,7 jul 1928, p. 7 A Cigarra (São Paulo) “A masculinização da mulher, ano 1999”. 2ª quinzena - Fevereiro de 1929, p. 24 Careta (Rio de Janeiro) “O sôro do bode”. Herr Geld.10 nov 1923. p. 24 “Soros” [charge]. Storni. 17 mai 1924, p. 19. “As glandulas da juventude” [charge]. Storni. 28 jan 1928, p. 18 “Um sorriso para todas...”28 jul 1928, p. 30 “Historia triste de um macaco”. Berilo Neves. 14 set 1928, pp. 26 e 27 “No dia da chegada do dr. Voronoff...” [Fotografia]. 21 jul 1928, Careta, p. 12 “O Enxerto”. Berilo Neves. 18 ago 1930, pp. 28 e 29 “O coração de minha noiva”. Berilo Neves. 4 abr 1931, pp. 36 e 37 “Resultado do enxerto Voronoff”. 29 ago 1936, p. 8 Correio da Manhã (Rio de Janeiro) “Momentos a bordo do „Alcantara‟”. 13 jul 1928, p. 3 “Voronoff” Dr. Juvenal. 15 jul 1928, p. 6 “Realizam-se com excepcional brilho as Jornadas Medicas do Rio” 17 jul 1928, p. 3 “Sergio Voronoff pratica, entre nós, a primeira demonstração do seu processo de rejuvenescimento”.19 jul 1928, p. 1 “As operações de Voronoff”. 21 jul 1928, p. 3 “Voronoff em S. Paulo”. 25 jul 1928, p. 6 “O Professor Voronoff partiu para Montevidéo”. 26 jul 1928, p. 2 “Novas experiencias sobre os macacos” 22 jul 1928, p. 8 “Medicina Veterinaria Experimental”. Americo Braga. 29 jul 1928, p. 9 “Medicina Veterinaria Experimental”. Americo Braga. 5 ago 1928, p. 10 “Contra o processo Voronoff”. Dr. Bedden Balley. 19 ago 1928, p. 8 “A passagem de Voronoff pelo Rio”. 8 ago 1928, p. 3 “Supperando o methodo Voronoff”. 2 jul 1938, p. 3 Correio Paulistano (São Paulo) “Theatros”. 8 dez 1926, p. 4 “Os macacos redemptores”. 21 mar 1927, p. 7 “Creador da grande esperança de prolongar-se a vida humana”. 24 jul 1928, pp 7 e 8 “O Professor Sergio Voronoff”. 19 jul 1928, p. 9 “Professor Serge Voronoff”. 20 jul 1928, p. 10 “Professor Voronoff”. jul 1928, p. 2 “Professor Voronoff” 22 jul 1928, p. 7 “O professor Voronoff encerra sua visita ao Brasil”. 25 jul 1928, p. 4

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de

Castro,

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Cód.

Ref.:

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Centro de Documentação e Memória da UNESP Fundo Miriam Lifchitz Moreira Leite Livro: MOURA, Maria Lacerda de. 1931. Civilização – tronco de escravos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.



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O Malho (1920, 1926, 1927, 1928, 1929, 1930, 1931, 1932, 1933, 1934, 1935, 1936, 1938), A Manhã (1926, 1927, 1928, 1951, 1943, 1945), A Noite (1923, 1924, 1925, 1927, 1928), O Paiz (1919, 1923, 1924, 1925, 1927, 1928), O Pharol (1913, 1923, 1924, 1925, 1926), A Reforma (1924, 1933), A União (1924) Verde (1929), Voz do Chauffer (1922, 1925). Peça de teatro: “Effeitos do Voronoff”, de Romano Coutinho. 21 fev 1929, pp. 1-31. Localização: 013216, tipográfica: 0582, documento nº 002336.



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Instituto de Piano Brasileiro (http://www.institutopianobrasileiro.com.br/partituras) Partituras: “Mulher de cueca” – Ano: 1927.Versos de Ary Kerner V. Castro. Música de Eduardo Souto. “Mulher barbada”– Ano: 1925 ou anterior. Versos de Ary Kerner V. Castro. Música de Eduardo Souto. “Voronoff: Samba Carnavalesco” Versos de Ary Kerner V. Castro. Música de Eduardo Souto.



Real Gabinete Português de Leitura Livros: BARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. 1950. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Brasileira. MARAÑÓN, Gregorio. 1930. La evolución de la Sexualidad y Los Estados Intersexuales. Madrid: Ediciones Morata (Ciencias Biológicas). FRADIQUE, Mendes. 1926. Doutor Voronoff. Rio de Janeiro: Livraria Ed. Leite Ribeiro Freitas Bastos, Spicer & C. MARAÑÓN, Gregorio. 1940. Estudios de Endocrinologia. Buenos Aires: Cia Gral Fabril Financeira. THOREK, Max. 1924. The Human Testis and its Diseases. Philadelphia: J. B. Lippincott Company.



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