Superar a herança predatória (2000) (Jornal O Globo)

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Superar a herança predatória (publicado no Globo de 8 de maio de 2000)

JOSÉ AUGUSTO PÁDUA “Um fazendeiro, criador de gados em Pernambuco, me disse que, enquanto ele pudesse vender um boi nas grandes vilas e cidades pelo preço que nelas se vende uma galinha, queria antes criar bois naqueles sertões do que galinhas, por que estas precisam de milho e de quem as carregue para as feiras e praças públicas, e os bois vão por seus pés e têm pastos por toda parte”. As palavras acima, relatadas por Azeredo Coutinho em 1816, merecem ser objeto de reflexão nos dias de hoje, quando estamos rememorando os primeiros 500 anos do que Guerreiro Ramos chamou de “fenômeno brasileiro”. Elas sintetizam um aspecto fundamental do processo de formação do país: a atitude descuidada e parasitária que marcou a relação entre os colonizadores e o território, configurando uma herança ainda hoje muito presente, tanto na mentalidade quanto no comportamento. Os europeus encontraram no território brasileiro um conjunto riquíssimo e variado de formas naturais, que desde o início foi consumido de forma imediatista. Os conquistadores se distinguiram, nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda, “pelo muito que pediam à terra e o pouco que lhe davam em retribuição". Em vez de adubar o solo, para conservar sua fertilidade, optou-se por queimar progressivamente novas áreas de floresta tropical, já que a riqueza das suas cinzas garantia boas colheitas por dois ou três anos, após o que a terra ficava estragada e improdutiva. Em vez de promover o replantio dos pastos, pois os campos naturais se degradavam após um ou dois ciclos de pastoreio, optou-se por incendiá-los, na expectativa de que o fogo impedisse o crescimento das ervas não comestíveis e garantisse alguma sobrevida ao rebanho. Em vez de alimentar as caldeiras dos engenhos-de-açúcar com o próprio bagaço da cana, prática rotineira até mesmo em outras colônias de exploração, optouse por queimar a Mata Atlântica primária para servir de lenha. É preciso considerar, no entanto, para evitar julgamentos apressados, que tal atitude foi perfeitamente racional no contexto da colonização. Uma colônia de exploração é sempre um empreendimento brutal e imediatista. A lógica de longo prazo é, ou deve ser, própria da idéia de nação, do ideal de continuidade histórica de uma comunidade política. Seria ingênuo esperar este tipo de lógica da parte dos colonizadores. Eles foram pragmáticos, valendo-se das possibilidades mais evidentes

e menos trabalhosas que a realidade histórica apresentava em cada momento. E o elemento que mais se destacava, dentro daquela realidade, era o contraste entre um espaço ecológico gigantesco e uma sociedade colonial relativamente pequena e localizada, gerando a sensação de uma fronteira indefinidamente aberta ao avanço horizontal das atividades econômicas. Na medida em que os solos agrícolas e pastoris se tornavam estéreis, por exemplo, a fronteira avançava em direção às florestas e aos campos ainda intactos. Na medida em que espécies úteis de madeira se extinguiam na proximidade dos centros urbanos e produtivos, a fronteira buscava reservas onde elas ainda eram abundantes. A existência dessa margem de avanço garantiu uma certa continuidade na economia e na estrutura social do país, não obstante os muitos exemplos de vilas, fazendas e minas que foram abandonadas por haverem atingido o limite da sua capacidade de sustentação ecológica. O ponto a ser questionado, portanto, não é o da racionalidade específica da herança colonial predatória, mas sim o da sua permanência ao longo da história do país independente, inclusive nos nossos dias. O que pode ser considerado racional no contexto de uma colônia de exploração não deve sê-lo no processo de construção de uma verdadeira nação. Este último requer uma nova lógica, fundada no cuidado e na preservação das bases ecológicas, sociais e culturais da existência coletiva, mesmo que isso signifique mais esforço, mais trabalho e mais estudo. O estabelecimento desta nova relação com o território e seus ecossistemas precisa inserir-se em um amplo movimento político em defesa do espaço público e do bem-estar coletivo, que fortaleça o sentido de cidadania e de comunidade na sociedade brasileira (inclusive a comunidade com as gerações futuras). A permanência da lógica predatória, especialmente nas elites econômicas, apenas poderá ser transformada pela ampliação da democracia e da consciência de nação entre nós. Não é aceitável, para mencionar alguns exemplos, que um tesouro ecológico como a Floresta Amazônica seja consumido segundo a mesma lógica do “queimar e seguir adiante”, que destruiu 93% da Mata Atlântica original. Não é aceitável que espécies valiosas de madeira, como o mogno e a samaúma, sejam exploradas da mesma maneira inconseqüente que praticamente extinguiu o pau-brasil e o jacarandá. Não é aceitável que continuemos a admitir atividades de garimpo que reproduzem, no fim do século XX, os mesmos métodos rudimentares e destrutivos utilizados nas Minas Gerais do século XVIII. E, de volta ao exemplo que abriu este artigo, não é aceitável que a maior parte da pecuária brasileira continue a se dar de forma extensiva, baseando-se em uma postura semelhante à defendida pelo velho fazendeiro pernambucano. Não é aceitável que a criação de gado ocupe hoje, de forma quase sempre degradante do ponto de vista ecológico, uma área gigantesca de quase 200 milhões de hectares, com uma produtividade média baixíssima, muitas vezes de menos de uma cabeça por hectare, quando uma área muito menor, manejada de forma adequada, seria suficiente para produzir mais e reduzir substantivamente a pressão sobre o território.

Esta lista de atitudes ambientalmente inaceitáveis poderia estender-se longamente. A mensagem essencial, porém, precisa estar presente no debate coletivo sobre os 500 anos: não podemos mais conviver com a herança predatória. JOSÉ AUGUSTO PÁDUA é historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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