Surname Viet Given Name Nam - modos de narrar a História e a nação

July 15, 2017 | Autor: Gustavo Soranz | Categoria: Documentary Film, Trinh Minh-ha, Documentário Cinema Estética
Share Embed


Descrição do Produto

Surname viet given name nam – modos de narrar a história e a nação1 Surname Viet given name nam - ways of narrating the history and the nation 2

Gustavo Soranz (Doutorando – Unicamp)

Resumo: Análise do filme Sur Name Viet Given Name Nam, destacando como este questiona modos de representação típicos da tradição do documentário, usando a entrevista como um recurso passível de dissimulação e controle, ao passo que explora formas de narrar a história que subvertem as narrativas grandiloquentes ao explorar relatos íntimos e coletivos do ponto de vista de mulheres vietnamitas que viveram o pós-guerra, evidenciando a dimensão ficcionalizante presente nos relatos pessoais e históricos.

Palavras-chave: Trinh T.Minh-ha, entrevista, documentário.

Abstract: Analysis of the film Sur Name Viet Given Name Nam, highlighting how it questions typical modes of representation of documentary tradition, using the interview as a subject of concealment and control feature, while exploring ways to tell the history that subvert the grandiloquent narratives to explore intimate and collective reports from the point of view of Vietnamese women who lived after the war, showing the fictive dimension present in personal and historical accounts.

Keywords: Trinh T.Minh-ha, interview, documentary. 1

Trabalho apresentado no XVIII Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão: Cinema e história. 2 Bolsista da FAPEAM. Professor do Uninorte (AM). Membro do Núcleo de Antropologia Visual da Ufam (NAVI/UFAM) e do Centro de Pesquisas em Cinema Documentário da Unicamp (CEPECIDOC).

523

Dirigido, escrito e editado por Trinh T. Minh-ha, Surname Viet Given Name Nam (1989) apresenta depoimentos de mulheres vietnamitas sobre a condição feminina naquele país. São apresentados quatro depoimentos de mulheres, que estão vestidas em trajes típicos populares ou com trajes profissionais, desempenhando atividades corriqueiras, como preparar vegetais. Os cenários e a iluminação são cuidadosamente preparados. A câmera é bastante ativa e filma de maneira muito original para uma situação convencional de entrevista, com uso de ângulos variados – do plano ao plongée, utilizando diversas posições, variando dos detalhes e super-close para planos médios, além de diversos movimentos de câmera. A utilização desses elementos de composição visual confere um caráter estilizado às entrevistas. Na passagem para a segunda metade, o filme revela que as entrevistas que vínhamos acompanhando são todas encenadas. Pelo roteiro do filme, publicado no livro Framer framed (1992), sabemos que os depoimentos foram colhidos do livro Vietnâm, un peuple, des voix, de Mai Thu Van, publicado em francês em 1983, que reúne entrevistas com mulheres vietnamitas no período pósguerra dos anos 1970/1980. O filme traz alguns dos depoimentos colhidos pelo livro na forma de entrevistas em primeira pessoa, utilizando mulheres vietnamitas expatriadas que vivem nos Estados Unidos para a interpretação, nenhuma delas com experiência prévia em atuação. Todos os depoimentos filmados em estúdio, com cuidadosa iluminação. Após a evidenciação de que tratam-se de depoimentos encenados, temos novos depoimentos, das mesmas mulheres, que, agora sim, falam sobre suas vidas atuais. Esta segunda metade apresenta tomadas menos preparadas, mais “naturalistas”, com menos estetização, realizadas em locação com luz natural, com menor variação de câmera em relação aos ângulos e posições, o que acaba por ressaltar o caráter produzido das tomadas da primeira metade do filme. As mulheres respondem a questões sobre porque aceitaram participar do trabalho encenando as entrevistas e decidem como gostariam de ser representadas no filme. O filme marca a aproximação da cineasta a um universo com o qual ela tem ligação íntima, sua origem vietnamita, diferente dos seus filmes anteriores, que se dedicaram a objetos de interesse 3

distantes de sua história pessoal pregressa. A cineasta precisou encontrar um distanciamento ainda maior em relação ao seu tema do que aquele observado em seus dois primeiros filmes, para que assim pudesse mais abertamente questionar sua posição de autoridade relacionada a sua própria 3

Reassemblage – filmado no Senegal e Naked Spaces – filmado em países da África Ocidental

524

cultura. Cabe lembrar que a discussão acerca das formas de representação e sobre posições de autoridade nos discursos são linhas de força no trabalho da diretora, e aqui neste caso não é diferente. A opção em reencenar as entrevistas no filme acaba por se constituir como uma crítica a uma estratégia muito utilizada no âmbito do documentário moderno, o uso da entrevista como meio privilegiado de acesso ao real, ao Outro, à diferença cultural. As entrevistas com as mulheres vietnamitas nos Estados Unidos, quando são convidadas a escolher como querem ser filmadas soma-se a essa estratégia inicial e amplia o grau de criticidade relativa a tal recurso. Tal opção nos dois usos da entrevista enfatiza que o cinema opera meios de dissimulação que permitem que o próprio estatuto das imagens esteja em questão, (Minh-ha, 1992, P. 146) “em outras palavras, ao apresentar ambas juntas ao espectador, o que é visivelmente endereçado é a invisibilidade da política da entrevista e, mais geralmente, as relações de representação. ” Se observarmos Surname Viet Given Name Nam na sequência cronológica da filmografia da diretora, podemos dizer que a cada trabalho ela tem aprofundado sua abordagem experimental em relação às estratégias que o cinema de não-ficção consolidou em sua tradição e diversificado o uso de recursos expressivos típicos do cinema documentário, de modo a construir narrativas cinematográficas que são complexas e desafiadoras, ao mesmo tempo em que expandem as possibilidades criativas do cinema. Se em seus dois primeiros filmes podemos dizer que destaca-se o uso da voz over como recurso inovador, neste caso a novidade está no uso da entrevista (e sua encenação) e no uso de letreiros e intertítulos. Para Hamid Naficy, em Surname Viet given name Nam Essas técnicas comentam sobre o cinema e a realidade ao invés de apenas registrar, reportar ou representar a realidade. Elas desnaturalizam o estilo realista do cinema clássico e posicionam a subjetividade feminina e a atividade espectatorial como múltiplas e cambiantes. Os espectadores são forçados a se envolver em diversas atividades simultaneamente, assistindo, escutando, ouvindo, lendo, traduzindo e resolvendo problemas. (2001, p.124) A observação de Naficy ressalta o enfoque de crítica às representações do mundo histórico e mostra como a cineasta dispôs suas estratégias expressivas para exercê-la especialmente em relação ao dispositivo cinematográfico, marcando também o distanciamento necessário para enfatizar que os discursos sobre processos socioculturais são resultados de construções e elaborações.

525

Entrevistas A dissimulação da encenação nas entrevistas é usada deliberadamente desde o início do filme para conduzir o espectador por seu discurso crítico, modulando as evidências artificiais do dispositivo sem deixar claro se estamos a acompanhar uma situação dramatizada ou espontânea. Até a metade do filme, quando se revela claramente seu dispositivo, não sabemos dizer ao certo se as entrevistas são “verdadeiras” ou são simuladas. Algumas situações cenográficas, recursos de iluminação e o uso de intertítulos e letreiros, que sobrepõem às imagens das mulheres os textos que estão interpretando, vão revelando gradualmente os indícios da manipulação dos elementos no filme. Quando percebemos claramente que os textos estão sendo ensaiados pelas mulheres, as imagens evidenciam a dimensão de elaboração e dissimulação das entrevistas até aqui exibidas. O filme assume suas estratégias em sua dimensão ficcionalizante. Ao optar por esse recurso, a diretora nos alerta que uma entrevista, frequentemente valorizada por ser considerada como um meio de acesso direto a uma determinada realidade cultural, legitimada por depoimentos de sujeitos pertencentes a essa própria realidade, pode ser ensaiada, encenada, roteirizada, dirigida, dissimulada. Entretanto, essa dimensão ficcional não está presente apenas na encenação das entrevistas, passa a ser clara e evidente. Na segunda metade do filme, quando passamos para os outros depoimentos das mesmas mulheres, que agora se revelam como vietnamitas vivendo nos Estados Unidos, temos uma nova dimensão ficcionalizante. Uma vez que as entrevistadas são provocadas a dizer como gostariam de ser representadas no filme, passamos para a dimensão da autoficção por parte dessas mulheres vietnamitas em condição diaspórica. Desse modo, o filme questiona profundamente a estratégia da entrevista como um modo de acesso a uma realidade cultural, à identidade cultural, pois, ao embaralhar o estatuto das imagens, misturando encenação e espontaneidade nos depoimentos, acaba por minar a autenticidade e a autoridade da não-ficção como acesso privilegiado ao mundo histórico. A estratégia das entrevistas no filme aqui em questão faz um jogo interessante de posições entre as mulheres que falam ou que detém a autoridade sobre o discurso final, do livro ou do filme. Vejamos: no livro Vietnâm, un peuple, des voix, a autora, vietnamita de nascimento, vivendo em exílio na França, retorna ao Vietnã em busca de entender suas raízes, no que recolhe os depoimentos de mulheres que viviam no país que naquela altura já tinha passado por diferentes regimes de controle

526

colonial e de exploração. O filme, dirigido por uma vietnamita que também vive em exílio, porém nos Estados Unidos, encena essas mesmas entrevistas, simulando o que seriam situações típicas dessas mulheres no Vietnã, em filmagens conduzidas nos Estados Unidos, utilizando como atrizes mulheres vietnamitas que também estão expatriadas. Disso tudo resta a percepção do cinema como meio de dissimulação que embaralha os estatutos da representação e que neste caso faz isso utilizando a entrevista como recurso. Desse modo, o filme apresenta um gesto ensaístico em direção a uma percepção da dimensão ficcional de toda entrevista, ou, por extensão, de todo discurso de representação da diferença cultural, da alteridade. Timothy Corrigan (2001) enfatiza a inventividade da cineasta e o caráter ensaístico de seu filme, justamente reconhecendo que a situação das entrevistas busca construir um espaço original para repensar a identidade – das mulheres e da nação, problematizando os discursos historicamente anteriores, marcados pela exploração imperial e colonialista, propondo uma maneira elaborada de discussão acerca do indivíduo e do coletivo, que aparece pelo contato entre os depoimentos encenados e os depoimentos em primeira pessoa originais para o filme. O filme busca problematizar a história do Vietnã a partir de depoimentos apenas de mulheres, o que é particularmente significativo se levarmos em conta o passado patriarcal e a herança machista presentes no país. Para Trinh T. Minh-ha (1999, p.23) Ao invés de construir um ponto de vista interno homogêneo (mesmo quando baseado em diversos pontos de vista), ou um relato da cultural “não mediado” em primeira pessoa, o filme envolve a política da entrevista enquanto entra na história do Vietnã através de lacunas coletivas e individuais. Que acontece não de um modo facilmente reconhecível, como seria por meio de cronologia, acumulação linear e sucessão de fatos sobre o Vietnã (isso é o que alguém poderia encontrar em qualquer livro sobre a história do Vietnã); mas ao invés disso, através da memória popular, com suas “omissões ousadas e descrições breves”; através de estórias pessoais das mulheres; através de canções, provérbios e ditados particularmente reveladores através das gerações como para as situações com as quais lutam; em outras palavras, através de fontes de informação não-oficiais e subestimadas. Podemos notar assim que, ao optar em reencenar as entrevistas colhidas pelo livro, Trinh T. Minh-ha desenvolveu um filme que problematiza os discursos históricos tradicionais sobre o Vietnã, marcados por um legado patriarcal e colonial, para incluir como recurso legítimo ao registro da história fontes antes subjugadas e menosprezadas, os relatos de mulheres vietnamitas que viveram

527

as dificuldades do país em seu período pós-guerra, frequentemente marcadas por uma posição de inferioridade nos discursos tradicionais. Deixa de lado assim as fontes oficiais e grandiloquentes para considerar as histórias íntimas e também coletivas, marcadas pela vivência de mulheres anônimas. Em uma entrevista para Judith Mayne, publicada no livro Framer Framed, Trinh T.Minh-ha desenvolve sua reflexão sobre os elementos fictícios presentes em qualquer discurso. (1992, p. 145) Cada representação da verdade envolve elementos de ficção, e a diferença entre o assim chamado documentário e a ficção na sua representação da realidade é uma questão de graus de ficcionalidade. Quanto mais alguém tenta clarear a linha dividindo os dois, mais profundamente enredado fica esse alguém no artifício dos limites. Formalmente o filme adota a mesma postura de desafio às convenções e tradições já consolidadas e reconhecidas na tradição do documentário, provocando e tensionando técnicas e estratégias de modo a deslocar o sentido dessas práticas, criando assim um dispositivo desafiador, que resulta em uma crítica ao discurso do cinema sobre a diferença cultural, enfatizando a dimensão da dissimulação presente na orquestração dos seus elementos expressivos. O gesto ensaístico original do filme é o de trabalhar na exposição do seu espaço negativo, ou seja, o espaço existente ao redor ou entre as imagens, tal como na pintura ou nas artes gráficas, que geralmente não é percebido imediatamente pela maioria das pessoas. No filme a ênfase não está diretamente nas entrevistas encenadas, reencenadas ou autoencenadas – isso é evidenciado – mas nesse espaço que existe para além do plano orientado ao objeto – seja ele coisa ou sujeito, um espaço discursivo onde posições de autoridade são problematizadas e práticas de sentido são tensionadas a partir de um amplo repertório expressivo e reflexivo. A dissimulação essencial de Surname Viet Given Name Nam está em nos fazer ver a entrevista como estratégia problemática, ao passo em que nos coloca para pensar na complexidade presente na representação do mundo histórico, que se expande para esse espaço negativo, que não é neutro, mas um lugar de articulação discursiva crítica e reflexiva.

Referências CORRIGAN, T. The essay film: from Montaigne, after Marker. Oxford University Press, 2011. MINH-HA, T. T. Framer framed. Nova York: Routledge, 1992. _____________. Cinema interval. Nova York: Routledge, 1999.

528

NAFICY, H. An accented cinema: exilic and diasporic filmaking. Princeton University Press, 2001.

529

XVIII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine – Anais de Textos completos – São Paulo: Socine, 2015. Organizadores: Afrânio Mendes Catani, Antonio Carlos Amancio da Silva, Alessandra Soares Brandão, Mauricio Reinaldo Gonçalves, Ana Leopoldina Macêdo Quezado, Nílbio Thé.

854 p.

ISBN: 978-85-63552-16-7

1.Cinema. 2. Cinema brasileiro. 3. Cinema latino-americano. 4. Documentário. 5. Teoria (Cinema). 7. Produção (Cinema). 8. Audiovisual. I Título.

CDD: 302.2

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.