Sustentabilidade e letramento do professor em formação inicial: demandas para atividades de ensino e de pesquisa

May 28, 2017 | Autor: Wagner Silva | Categoria: Sustentabilidade, Critical Literacy, Formação De Professores, Letramento
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Pareceristas do livro Núbio Delanne Ferraz Mafra (UEL) Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva (UFMG) Júlio César Araújo (UFC) Terezinha da Conceição Costa-Hubes (UNIOESTE) Janete dos Santos (UFT) Maria Ignez de Lima Pedroso (USP) Eliana Merlin Deganutti de Barros (UENP) Wagner Rodrigues Silva (UFT)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Gonçalves, Adair Vieira. / Buin, Edilaine. / Conceição, Rute Izabel Simões. Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação de professores / Adair Vieira Gonçalves / Edilaine Buin / Rute Izabel Simões Conceição Campinas, SP : Pontes Editores, 2016.

Bibliografia. ISBN 978-85-7113-745-5 1. Ensino de língua portuguesa - escrita 2. Formação de professores 3. Meios auxiliares de ensino 4. Título

Índices para catálogo sistemático:

1. Ensino de língua portuguesa - escrita - 410 2. Formação de professores - 370.7 3. Meios auxiliares de ensino - 371.32

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Fundect e à Capes pelo financiamento deste volume temático, por meio do Edital PAPOS- Programa de Apoio à Pós-graduação do Estado de Mato Grosso do Sul, Chamada CAPES/FUNDECT nº 44/2014 - PAPOS-MS Processo 23/200.659/2014.

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2016 - Impresso no Brasil

SUMÁRIO Apresentação...........................................................................................9 PARTE 1: A ESCRITA COMO OBJETO DE PESQUISA E ENSINO A função da escrita e do ensino de escrita: a formação inicial de professores de língua portuguesa......................................................19 Émerson de Pietri Escrita como acontecimento: construção do humor e mudança de perspectiva como experiências..........................................................59 Edilaine Buin Milenne Biasotto Sustentabilidade e letramento do professor em formação inicial: demandas para atividades de ensino e de pesquisa................................85 Wagner Rodrigues Silva Janete Silva dos Santos Bárbara de Freitas Farah PARTE 2: METODOLOGIAS PARA O ENSINO DA ESCRITA Ensino da escrita: teoria e prática aplicadas à análise dialógica do discurso, à correção e à reescrita textual................................................113 Rute Izabel Simões Conceição O procedimento “sequência didática”: uma análise pelo viés das capacidades de linguagem e dos dispositivos didáticos...................181 Eliana Merlin Deganutti de Barros

PARTE 3: OS DESAFIOS TRAZIDOS PELA INTERNET PARA O ENSINO DE ESCRITA E DE LEITURA O processo de construção de um webjornal laboratório: a reescrita colaborativa em foco...............................................................................215 Fernanda Taís Brignol Guimarães Clara Dornelles Colaboração via escrita em fórum virtual: construção de conhecimentos em um curso de morfologia da língua......................253 Fabiana Poças Biondo Percursos de navegação em website de reportagem 360°........................287 Virgginia Laborão Inês Signorini Referências..............................................................................................315 Os autores e organizadores.....................................................................329

Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente

APRESENTAÇÃO

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este livro, Ensino de língua portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente, encontram-se resultados de pesquisas inseridas no campo aplicado dos estudos da linguagem, relacionadas ao ensino de língua portuguesa, com ênfase nos processos de escrita, no caso da maioria dos capítulos, e nos processos de leitura e da formação docente. Em comum, todos os trabalhos se preocupam em buscar modos de pensar e de agir que contribuam para criar soluções para as situações surgidas no ensino de língua, especialmente da língua portuguesa, à medida que a democratização do ensino passou a se efetivar na escola brasileira. Os docentes das diferentes instituições, autores deste volume, são integrantes de diversos grupos de Pesquisa/CNPq, quais sejam: Escrita, ensino, práticas, representações e concepções (USP); Letramentos hipermidiáticos na escola/Letramentos escolares na hipermídia (UNICAMP); Gêneros discursivos na formação de professores (UFGD) e Práticas de linguagem em estágios supervisionados (UFT). Esses grupos de pesquisa vêm mantendo um produtivo diálogo, seja nas trocas informais entre seus integrantes, seja nos encontros em reuniões científicas, seja nas discussões traçadas em torno de trabalhos de pós-graduandos em situações de defesa de dissertação de mestrado e/ou tese de doutorado. Os textos são resultados de projetos de pesquisa e de ensino, que envolvem a leitura e a escrita, em contextos de formação inicial e continuada de professores. Os estudos enquadram-se numa vertente teórico-metodológica de natureza sociointeracionista. Os pesquisadores assumem

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o paradigma qualitativo como modelo de pesquisa, desenvolvido por meio de pesquisa documental, etnográfica, pesquisa-ação, entre outras possibilidades metodológicas, que promovem o avanço por zonas fronteiriças de diferentes campos do saber, as quais têm permitido a realização de uma produtiva leitura crítica em torno de questões que envolvem o ensino de língua materna. SOBRE A COMPOSIÇÃO DO VOLUME Em termos organizacionais, o livro está dividido em três seções: Na primeira, intitulada A escrita como objeto de ensino e pesquisa, debatem-se representações que estudantes do curso de Letras têm a respeito da escrita e de seus efeitos para a formação de professores e para o ensino da escrita que será (re)contextualizado em contextos formais de ensino. Há ainda a problematização das noções de “adequação” e de “acontecimento” para o ensino da escrita e, por fim, a produção do gênero discursivo relatório de estágio supervisionado como catalisador das ações docentes de uma estudante de Letras em formação inicial e em sua prática profissional, já atuando como docente. No primeiro capítulo, A função da escrita e do ensino de escrita: a formação inicial de professores de língua portuguesa, Émerson de Pietri (USP) tece considerações a respeito de como professores em formação inicial, da Licenciatura em Letras de uma universidade pública paulista, representam o que seja a escrita e seus efeitos para a constituição como sujeitos responsáveis pela (re)produção e distribuição de valores associados a essa modalidade da linguagem, situando-os historicamente. Apresenta, primeiramente, uma análise diacrônica, baseada nas produções acadêmicas da área de linguística e nos referenciais curriculares oficiais, detectando o movimento da escrita em direção à função de alteridade. Elabora um histórico fundamentado da função da escrita no processo formativo, iniciando sua argumentação com dados dos séculos XV e XVI, quando se desenvolveu um processo de gramatização das línguas modernas, na Europa. Concentra-se, a partir disso, nas últimas três décadas do século XX, quando se disseminam a produção de conhecimentos linguísticos alternativos à tradição gramatical, época que se primava pela homogeneização da língua. O autor historia a entrada do texto 10

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como objeto de ensino na escola, em função dos estudos linguísticos nas décadas de 70 e de 80 e, posteriormente, os gêneros do discurso, na década de 90. A tomada de novos objetos de ensino, os gêneros do discurso, parece, no entanto, reproduzir a mesma lógica do processo de gramatização, de normatividade: padronização e apropriação de modelos de gêneros, desconsiderando o processo histórico que lhe são inerentes. Da mesma forma que antigamente, “a heterogeneidade linguística não se constitui em fundamento metodológico para o trabalho em sala de aula, mas recebe um tratamento prévio, de modo que seja antecipadamente atravessada e interditada pelo corte que estabelece um corpus legitimado para o trabalho de leitura e produção de texto” (p.41). Em seguida, sincronicamente, Piétri analisa os resultados de diferentes atividades de graduandos em Letras, quando estes se posicionam em relação à escrita e ao seu ensino. De um lado, observa que os estudantes encaram a escrita com a função racional de organização do pensamento, como forma de monitoração da própria produção linguística, com força normativa e ordenadora. Por outro lado, encaram como elemento que produz a alteridade pelo fato de se colocar fora do sujeito. Ambos os posicionamentos evidenciam uma concepção de escrita que se aproxima das funções normativas e pedagógicas associadas à gramática, o que define uma posição polêmica no interior dos mais recentes estudos da linguagem. O autor alerta, entretanto, que a coexistência de concepções conflitantes de língua e de ensino não pode ser em si um problema, pois esse conflito é um dos objetos para os quais se voltam os estudos da linguagem. Mais do que se constituir em objeto de ensino para o qual se propõem apropriações didáticas (adequações), a escrita deve se constituir como “instrumento para o trabalho de formação docente com vistas à transformação dos sujeitos e das realidades que produzem”, em vista de uma realidade heterogeneamente construída. No segundo capítulo, Escrita como acontecimento: construção do humor e mudança de perspectiva como experiências, Edilaine Buin e Milenne Biasotto (UFGD), baseadas nas noções de “adequação” e de “acontecimento”, propõem um tratamento da escrita como “acontecimento a ler”, a partir da análise de dois textos produzidos em situações de ensino.  No primeiro texto, pelas marcas físicas de reelaboração, identificam uma operação epilinguística que revela o trabalho do escrevente 11

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sobre a linguagem na construção do humor; no segundo, podese observar o trabalho efetuado para a mudança do ponto de vista narrativo, o que garante a constituição do texto como um acontecimento carregado de memória e de experiência. Nas duas análises, a experiência do acontecimento (o dever moral, a retomada de memória, as vivências ficcionais) ganha relevância em relação à novidade do acontecimento (a mecânica da escrita, o raciocínio em torno da língua, a escolha das expressões, a preocupação com a ortografia). Essas análises procuram seguir a direção oposta da força normativa e ordenadora que vigora nas instituições (cf. Pietri neste volume). Da mesma forma que Pietri, Buin e Biasotto fazem referência ao ensino pautado nos gêneros discursivos, que elege o modelo “adequado” e isolam o gênero de suas funções sócio-históricas. Nos dois eventos de escrita apresentados, as práticas escolares significativas, aliadas às práticas sociais extraescolares, garantem a qualidade da escrita, que resulta em experiências a serem compartilhadas e acontecimentos a serem lidos. No terceiro capítulo, Sustentabilidade e letramento do professor em formação inicial: demandas para atividades de ensino e de pesquisa, Wagner Rodrigues Silva (UFT), Janete Silva dos Santos (UFT) e Bárbara de Freitas Farah (UFT) focalizam a escrita do relatório de estágio de uma Licenciatura em Letras, gênero que consideram catalisador do processo de formação do professor, quando a escrita do texto possibilita a associação das experiências vivenciadas na escola com o conhecimento teórico trabalhado na licenciatura. Para comprovar tais pressupostos, comparam a atuação de uma professora em serviço com as reflexões registradas no relatório, quando ainda era acadêmica e cumpria o estágio supervisionado obrigatório. Para isso, além dos relatórios formulados pela professora, quando ainda estava em formação, investigam alguns recortes dos cadernos de campo referente às aulas posteriormente ministradas, quando egressa da universidade. Situando-se no campo transdisciplinar dos estudos aplicados da linguagem, o trabalho se baseia em princípios originais da sustentabilidade, que são apropriados para a orientação dos professores em formação inicial. Por meio da observação da prática da professora, autora dos relatórios analisados, é possível concluir que, muito longe desse gênero acadêmico compor-se em uma 12

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escrita subaproveitada, revela o estágio supervisionado como etapa reflexiva significativa e constitutiva da prática da então professora: a análise dos relatórios mais a prática posterior do magistério revelam marcas similares do seu perfil profissional. Assim, a escrita evidenciada não se reduz à “tarefa a cumprir” (ou a um “texto a adequar”, como diriam Buin e Biasotto), mas a um acontecimento discursivo a (re)construir (como diria Conceição). Na segunda seção do livro, intitulada Metodologias para o ensino da escrita, abordam-se duas questões metodológicas: o processo de escrita e reescrita com o objetivo de promover a (re)construção da discursividade na escrita de estudantes de Letras; e, em um outro contexto, o da Educação Básica, debatese a validade do procedimento teórico-metodológico sequência didática como catalisadora do desenvolvimento de capacidades de linguagem dos estudantes. No quarto capítulo, intitulado Ensino da escrita: teoria e prática aplicadas à análise dialógica do discurso, à correção e à reescrita textual, abrindo a seção, Rute Isabel Simões Conceição (UFGD) focaliza o processo de (re)construção da discursividade na escrita de professores em formação de um curso de Letras de uma universidade pública sul-mato-grossense. Conceição apresenta os resultados da investigação de uma proposta de ensino de produção textual centrada na escrita, correção e reescrita textual com o objetivo de desenvolver a capacidade discursivo-textual de professores de Língua Portuguesa em formação. Parte da hipótese de que, ao longo da escolarização, geralmente, as aulas de Língua Portuguesa na escola têm promovido a desconstrução da discursividade em vez de promover um ensino eficaz da escrita para a contemporaneidade. O capítulo está organizado em três seções: na primeira, apresenta os fundamentos do “processo escolar de desconstrução da discursividade na escrita”; na segunda, contextualiza a pesquisa e a metodologia de geração e análise dos dados. Na terceira, a mais densa, traz uma sugestão metodológica para o tratamento do gênero relato pessoal: destaca o tipo de correção textual utilizado durante o processo (correção misto-discursiva) e os critérios de análise e de correção discursivo-textuais praticados (com ênfase em quatro qualidades discursivas). A autora busca, na prática, mostrar um modo de

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condução e de aplicação da correção centrada nas relações de sentido e na reescrita textual. No capítulo 5, O procedimento “sequência didática”: uma análise pelo viés das capacidades de linguagem e dispositivos didáticos, Eliana Merlin Deganutti de Barros (UENP) apresenta um projeto para o ensino da escrita baseado no procedimento teórico-metodológico conhecido como sequência didática. Barros discute não só a validação didática desse instrumental, mas também aponta problemas e soluções decorrentes do processo de recontextualização docente. Tendo como objetivo a escrita do gênero carta de reclamação, analisa minuciosamente as capacidades de linguagem mobilizadas na sequência didática e os dispositivos didáticos construídos para o desenvolvimento das capacidades linguageiras dos estudantes. Na terceira seção, Os desafios trazidos pela internet para o ensino de escrita e de leitura, estão reunidas pesquisas empíricas versando sobre: a) o processo de (re)scrita de textos produzidos de forma colaborativa pelo uso do Google Docs; b) de formação docente utilizando a plataforma Moodle numa disciplina específica; e, c) finalmente, de percursos de busca de informações de graduandos em Letras e Jornalismo. São reflexões em torno da interação em plataformas digitais, como forma de construção de conhecimento, e a respeito do funcionamento de gêneros surgidos com as tecnologias da comunicação e da informação. No capítulo seis, O processo de construção de um webjornal laboratório: a (re)escrita colaborativa em foco, Fernanda Taís Brignol Guimarães (UNIPAMPA) e Clara Dornelles (UNIPAMPA) buscam investigar as estratégias utilizadas nos processos de reescrita de textos produzidos de forma colaborativa no Google Docs, por estudantes do curso de Letras, responsáveis por escrever artigos para um webjornal. Em um jornal de qualquer canal midiático, conforme explicam, a escrita colaborativa se institui sempre que decisões forem conjuntamente tomadas em relação ao conteúdo ou à estruturação de um texto. Com a internet, os modos de construção do texto se amplificam e se tornam mais fluidos. Assim, a importância do capítulo situa-se no fato de documentar a escrita organizada sob a ideia de colaboração. Além de as autoras destacarem o uso de novos recursos, como aqueles da multimodalidade (linguagem oral, escrita, imagética e digital), focalizam os modos 14

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como os escreventes envolvidos interagem com tais recursos e entre si. Pensar nisso, no âmbito do ensino de língua materna, é benéfico para alavancar novas perspectivas para o ensino da escrita diante dos desafios impostos pela contemporaneidade. No capítulo sete, Colaboração via escrita em fórum virtual: construção de conhecimentos em um curso de morfologia da língua, Fabiana Poças Biondo (UFMS), tem como tema principal a escrita colaborativa, e, de modo mais específico, a aprendizagem colaborativa. Biondo faz um minucioso mapeamento da interação entre 38 estudantes de Letras em um fórum online – plataforma Moodle de uma universidade pública – utilizado para a produção de debates e conhecimentos relacionados à disciplina Morfologia da Língua Portuguesa. Para compreender o “jogo” interacional mobilizado, o que entende como uma prática de escrita/letramento mediada pela Internet, quantifica os dados e estabelece “padrões de interação” que ocorrem em uma discussão: comentários, interação e síntese. Com base nisso, percebe que os modos de participação, as escolhas lexicais, o enquadramento de papéis apontam para a referência ao modelo acadêmico de escrita, em detrimento a modelos mais informais da Internet. O capítulo chama a atenção para a necessidade de reconfigurar tais práticas para uma participação mais interativa e colaborativa de estudantes em processos de construção de conhecimento. Por fim, no capítulo 8, Percursos de navegação em website de reportagem 360°, Virgginia Laborão (UNICAMP) e Inês Signorini (UNICAMP) focam um gênero discursivo do webjornalismo, a reportagem 360°. A pesquisa, de natureza empírica, investigou a construção de percursos de navegação por usuários/leitores/internautas do website jornalístico Transversus concebido e realizado por um grupo de graduandos em 2013. A atividade experimental, que teve a duração de trinta minutos, de busca livre de informações no website, foi totalmente gravada pelo software Camtasio Studio, que capta as imagens e os sons de todo o percurso de busca. A investigação possibilita identificar uma diferença acentuada de comportamento de busca de informação entre os dois grupos: enquanto os estudantes de Letras construíram seus percursos de navegação clicando principalmente em hiperlinks escritos, os participantes de Jornalismo fizeram o percurso, sobretudo, nos hiperlinks embutidos em imagens.

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Esperamos que o diálogo iniciado em cada grupo de pesquisa e, principalmente, os diálogos advindos do compartilhamento das questões discutidas entre os vários grupos possam expandir-se para os leitores e contribuir para construção de novas ações que levem a um ensino de Língua Portuguesa mais significativo para a contemporaneidade.

PARTE 1: A ESCRITA COMO OBJETO DE PESQUISA E ENSINO

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A FUNÇÃO DA ESCRITA E DO ENSINO DE ESCRITA: A FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA Émerson de Pietri

“Refletir sobre o ensino de língua portuguesa sem pensar em como adquirimos a competência linguística em língua portuguesa. Como se nossa formação e relação com a língua não influenciasse no modo como ensinaremos a língua. Na verdade é muito mais fácil refletir sobre o “outro”, o aluno. É difícil encontrar em nós mesmos os traços de um determinado momento histórico. Mas está bem, vamos lá...” (De um licenciando em Letras/Língua Portuguesa.)

INTRODUÇÃO A questão primeira que orienta as discussões a serem expostas neste texto se refere à função que tem a escrita num processo formativo, compreendido, a princípio, em sentido amplo, isto é: para o processo civilizatório e para a inscrição cultural. Uma e outra, civilização e cultura, encontram-se estreitamente relacionadas à ideia de educação, nas sociedades modernas e contemporâneas, e, em relação à linguagem, mais recentemente se associam a termos como alfabetização e letramento(s), nas considerações acerca (principalmente) dos agrupamentos sociais urbanos que têm a tecnologia da escrita como um de seus elementos produtivos.

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Mais especificamente, pretende-se observar como professores de língua portuguesa em formação inicial, num curso de Licenciatura em Letras de uma Universidade pública brasileira, representam o que seja a escrita e seus efeitos para suas constituições como sujeitos responsabilizados pela (re) produção e distribuição dos valores associados a essa modalidade da linguagem, e para os processos sócio-históricos de (re) produção e transformação social. Numa tentativa de elaborar uma questão geral para a função teórico-metodológica da escrita em processos formativos associados a princípios históricos de ordenação social (no caso, a constituição de unidades nacionais com base na normatização linguística, jurídica e financeira), pretende-se observar, em decorrência da discussão proposta, de que modo a escrita se constitui em fator de “produção de diferenças” (isto é: como sustenta o ideal de unificação linguística e a distinção dessa unidade em relação ao que lhe seja estrangeiro ou desigual) no ensino e na pesquisa em linguagem e educação. Segundo Auroux (2000), nos séculos XV e XVI, desenvolveuse um processo de gramatização das línguas modernas, na Europa. Esse processo se sustentou, segundo o autor, com base em duas tecnologias — a gramática e o dicionário —, e tinha como objetivo a normatização e unificação linguísticas, pois a constituição de uma língua única, legítima e valorizada, compunha a construção do ideal de unidade nacional para os Estados-Nação que então definiam mais fortemente seus limites. Esse ideal orientou o trabalho de normatização das línguas no interior de cada espaço territorial associado a um Estado-Nação, e, também, a produção da distinção entre um Estado-Nação e outro, com base na diferença linguística: a língua nacional X a língua do estrangeiro. A produção da diferença linguística marcaria a alteridade de dois modos: pela incompreensão entre uma língua e a língua do estrangeiro; e pela possibilidade da tradução de uma para outra dessas línguas, já que o processo de gramatização para a descrição e normatização linguística se fez de acordo com bases categoriais fundadas em um modelo comum, referenciado nas gramáticas latinas, o que permitia relacionar as classes gramaticais de uma língua à de outra e, com isso, traduzir. Ainda segundo 20

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Auroux (2000), o fato de as línguas europeias terem em suas bases categorias estabelecidas com referência a um modelo gramatical comum teria possibilitado a constituição de uma rede homogênea de comunicação entre países europeus, o que garantiria a centralidade do poder na Europa, e sua imposição aos demais povos do globo no processo de expansão e colonização ultramarina. Consolidada a ordem do Estado-Nação, num estágio avançado de construção do ideal de unificação linguística, a heterogeneidade pode ser marcada, no discurso oficial, como contraprova dos limites que definem a unidade dos falares de um povo: isto é, a presença de outros falares e a possibilidade de observá-los em suas circunscrições territoriais se estabelece, para a oficialidade, com relação à imagem de onipresença da língua nacional, em contraposição à qual se estabelecem os movimentos de legitimação das línguas consideradas minoritárias, ou, ainda que muito por força do discurso da ciência, os movimentos de legitimação de variedades linguísticas desprestigiadas. Nesse contexto de estabilidade linguística projetada pela representação oficial, a função da gramatização parece se deslocar no que se refere a sua função para a construção de uma unidade para a língua nacional. Em outras palavras: legitimada a ideia de uma língua oficial de amplitude nacional, e distribuídos suficientemente os instrumentos responsáveis por referenciar os modos de representação social para essa língua em sua unidade (de produtividade, correção e beleza, predicados que podem sofrer ataques pela ignorância do povo), além de a gramática ou o dicionário passarem a cumprir finalidades diferentes das relacionadas à formação dos Estados e das línguas nacionais1, outros instrumentos parecem se legitimar para a produção de um ideal de homogeneidade linguística. A hipótese com que se trabalha na presente pesquisa é a de que a escrita passou a ocupar, de modo decisivo, nas décadas finais do século XX, esse lugar aparentemente paradoxal de instrumento de produção da diferença em relação ao outro e de instrumento para superar a própria diferença produzida. A 1

Nas palavras de Nunes (2007, p. 175): “Se, no início, os primeiros dicionários brasileiros, no final do século XIX, foram elaborados em vista da formação e legitimação de uma língua nacional, em meados do século XX eles se voltaram mais para a circulação dessa língua na escola e junto a um público mais amplo”.

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escola, instituição responsável, nessa ordem, por distribuir a cultura escrita, mantém sua função histórica de agência do processo de unificação nacional, não mais pela imposição da norma gramatical, mas pelo ensino da norma padrão — é opinião praticamente unânime entre pesquisadores do campo da linguagem e propositores de referenciais para o ensino, que a aprendizagem da norma padrão escrita é o objetivo principal da disciplina de língua portuguesa na escola básica. No processo de modernização tardia e acelerada por que passou o Brasil ao longo do século XX, principalmente em sua segunda metade, observou-se a produção de conhecimentos linguísticos alternativos à tradição gramatical, mas também alternativos à configuração do campo da linguística moderna, com base nos quais se constituiu a escrita (escolar) em objeto válido para os estudos linguísticos. Quase simultaneamente, apresentou-se o texto como unidade de ensino para a disciplina escolar de língua portuguesa, revista segundo princípios de reordenação curricular fundamentados em saberes produzidos pelos estudos da linguagem. A constituição de um e de outro objetos de pesquisa e de ensino (a escrita e o texto) se fez possível com a instituição/reestruturação dos cursos de Letras no país e com a implementação da Linguística como disciplina curricular desses cursos, que, historicamente, têm a função de formar professores de língua portuguesa. No Brasil recente, portanto, o processo de gramatização parece ter se deslocado em proveito da escrita como instrumento de unificação linguística, num movimento que se realizou com base na conjunção institucional que promoveu: i) alterações no currículo da escolarização básica e da ampliação da oferta de acesso à escola; ii) a inserção da Linguística na estrutura curricular dos cursos de Letras; iii) a redefinição do campo dos estudos da linguagem de modo a constituir a escrita como um objeto de conhecimento legítimo para essa ciência. Antes de observar, em produções escritas de docentes de língua portuguesa em formação inicial, de que modo a escrita se representa para a projeção de diferenças em face da produção da alteridade, será observado o processo histórico de reordenação institucional que levou à constituição da escrita em objeto 22

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dos estudos linguísticos em contexto brasileiro, e, a seguir, o movimento de concepção do texto como unidade e objeto do ensino de língua portuguesa na escola e, mais recentemente, a proposição do gênero de discurso como esse objeto. Ao final, observa-se o papel dessa memória no discurso de futuros professores de língua portuguesa e discutem-se as consequências das concepções de escrita em circulação nos cursos de Licenciatura em Letras para o ensino de língua portuguesa na escola básica. 1. O LUGAR DA GRAMÁTICA E DA ESCRITA NAS PROPOSIÇÕES PARA O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA A constituição da escrita em objeto de ensino e de pesquisa para os estudos linguísticos, no Brasil, operou-se ao longo das três últimas décadas do século XX. Seu reposicionamento no campo dos estudos linguísticos se fez em função de dois movimentos: 1) a polêmica em face da gramática tradicional e dos métodos de ensino nela fundamentados, o que se realizou com base num movimento em que se redefiniu a unidade de ensino e de aprendizagem para a disciplina escolar de língua portuguesa: da frase ao texto, ao gênero textual/de discurso; 2) a observação da realidade linguística brasileira em relação às condições socioeconômicas injustas, que se sustentariam também nos processos de distribuição desigual dos valores linguísticos na sociedade, principalmente pela escola: a democratização do acesso à escolarização evidenciou a situação conflituosa entre a língua do ensino e a língua do aluno, conflito que se acentua quando se observa a função escolar de distribuição da cultura escrita, com que um padrão de linguagem é imposto de encontro à realidade da heterogeneidade linguística. A seguir serão observados esses dois movimentos. 1.1 OS ESTUDOS LINGUÍSTICOS MODERNOS E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL No processo tardio de instituição de Universidades no Brasil, a inserção da Linguística nos currículos dos cursos de Letras se

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fez, por força de lei, apenas no início da década de 60 (KATO, 1983), mas se realizou, efetivamente, ao longo da década de 70, quando profissionais formados na área começam a assumir as cadeiras dessa disciplina nas Universidades. Ainda que tardio, o processo de implementação e de legitimação dos modernos estudos da linguagem para o tratamento de questões de língua e de ensino de língua, em contexto brasileiro, fez-se de modo bastante acelerado, como se pode notar na leitura do trabalho de Altman (1998). A produtividade do discurso fundamentado nos modernos estudos da linguagem, no Brasil, constituiu-se e se sustentou com base na polêmica estabelecida em face da gramática tradicional, adversária responsabilizada pelos problemas encontrados historicamente no ensino de língua portuguesa, em razão de seu caráter discriminatório, porque referenciada numa concepção purista de língua, amparada numa variedade/modalidade única da linguagem: a escrita de certa tradição literária, eleita como modelo de correção para a avaliação dos usos linguísticos na sociedade, de modo geral, e na escola, de modo particular. Como defendido em trabalho anterior (PIETRI, 2003), a polêmica entre o discurso da renovação (denominado, no referido trabalho, discurso da mudança) e o discurso fundamentado na gramática tradicional se estabeleceu num momento em que o ensino da gramática na escola se encontrava em crise. Kato (1983) afirma haver naquele momento um hiato no ensino de gramática na escola, uma vez que a reestruturação curricular operada com a promulgação da Lei n. 5.692/71 reconfigurava a disciplina de língua portuguesa de modo a associá-la a elementos de comunicação e de expressão (SOARES, 2002). Ainda que com esses termos — Comunicação e Expressão — se denominasse a matéria que recobriria as disciplinas de Língua Portuguesa, de Educação Artística e de Educação Física, compreendeu-se, principalmente por parte dos produtores de materiais didáticos, que a mudança se referiria especificamente à disciplina de Português. Mesmo que resultante de interpretações distintas da Lei n. 5.692/71 (PIETRI, 2010), percebe-se, quando observados livros didáticos publicados no período (de meados da década de 70 a meados da década de 80 do século XX), que 24

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o ensino de gramática passou por um deslocamento, ocupando não mais um lugar de centralidade como teria ocupado no ensino considerado tradicional. Traço característico de momentos históricos de ausência ou de enfraquecimento dos processos democráticos (como observado no Brasil de 1964 a 1985, na vigência da ditadura militar, ou a partir de meados da década de 1990, com o fortalecimento do modelo neoliberal, ambos decorrentes da submissão do Estado brasileiro aos interesses do capital financeiro internacional), princípios políticos totalizantes pressupõem a existência inequívoca da unidade nacional, o que, em termos de política linguística, afirma-se na assunção da homogeneidade linguística da nação. As respostas e propostas acadêmicas e curriculares face às políticas de controle social respondem diversamente às injunções político-econômicas em um e outro dos momentos históricos acima referidos. Ao longo da década de 1980, em razão dos movimentos sociais de luta pela redemocratização do país, a escola é observada como o lugar para a transformação social (SOARES, 1984), e o ensino de língua, com base no respeito pela heterogeneidade linguística, o lugar da liberdade para os sujeitos (LUFT, 1985). Nesse momento, em que estudos em sociolinguística e no interior do sociointeracionismo se fortalecem no contexto acadêmico brasileiro, os estudos da linguagem e as propostas para o ensino de língua portuguesa na escola se pautam por ideais progressistas, assentados no respeito pela variedade linguística dos alunos provenientes de lugares sociais2 historicamente explorados ou excluídos, que passam a frequentar os bancos escolares com a ampliação do acesso à escola e ao aumento dos anos de escolarização básica obrigatória, operados pelo regime militar. 2

Trata-se aqui de lugares sociais e não de classes sociais, devido à necessidade de se questionar se realmente todos os habitantes do território em que se instalou o Estado brasileiro são considerados parte desse Estado (observem-se, por exemplo, afirmações encontradas em documentos de referência curricular, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), em que se oferece a escolarização como uma possibilidade de o indivíduo se tornar cidadão – ou seja: a cidadania não é um pressuposto para o Estado brasileiro em sua relação com os habitantes que ocupam o espaço territorial em que se encontra instalado, o que pressupõe a existência da marginalidade, em parte atendida mais recentemente por programas sociais de inserção no mercado de consumo, do que decorrem deslocamentos políticos e ideológicos (c.f.: SINGER, 2009; CHAUÍ, 2013).

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Estabelecida a democracia a partir de 1990, os governos que se sucedem a partir de então, ao longo dessa década, submetem o país ao projeto neoliberal gestado nos Estados Unidos e na Inglaterra. O encolhimento do Estado e a alteração de suas funções de modo a colocá-lo a serviço do mercado, que deveria se autorregulamentar nesse modelo econômico, conferem à Educação o papel de produção de sujeitos competentes e hábeis, capazes de se adaptar, de se adequar3 — termo recorrente nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997) — às condições de trabalho e competirem por posições sociais numa ordem que não mais se igualaria à estabilidade e permanência que se projetava para as sociedades pós-guerra em busca do bem-estar social. Nesse contexto, antes que progressistas, as proposições para o ensino de língua portuguesa se caracterizam pela subsunção da Educação aos interesses econômico-financeiros, de modo que perdem força as prerrogativas quanto à necessidade de se considerarem as diferenças linguísticas com base no respeito pela variedade trazida pelo aluno à escola: ainda que se mencione, em documentos de referência curricular produzidos no período, a questão da heterogeneidade linguística, não se propõe um ensino para a participação e a transformação social, mas a aprendizagem da norma padrão para a inclusão social (os indivíduos, como referido, não são cidadãos a priori), e para a adequação às situações de atuação social. Nas proposições curriculares para o ensino, a heterogeneidade linguística se oculta, a partir de então, sob o argumento da necessidade de se aprenderem os gêneros de discurso formais e públicos (ou seja, os que se produziriam referenciados no uso da norma culta escrita4), de modo que a imagem de totalização de uma língua nacional homogênea, sobreposta à língua oficial, se impõe sobre a realidade da diferença — que pode existir, mas nos lugares adequados, como se discutirá mais adiante, no presente texto. 3 4

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A respeito do discurso da adequação, cf. Buin e Biasotto no cap. 2 (nota dos organizadores). Costa Val (2003), em análise às propostas de produção escrita componentes de livros didáticos aprovados para o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), e elaboradas, portanto, com base nos PCNs, aponta para a ausência de proposições, nas atividades observadas, que considerassem a variação linguística como um dos elementos previstos para a produtividade dos gêneros do discurso. A variação linguística parece não ser um elemento valorizado para o tratamento de questões de ensino de língua portuguesa após a implementação das diretrizes curriculares nacionais vigentes a partir de 1997.

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2. A CONSTITUIÇÃO DA ESCRITA EM OBJETO DE ENSINO E DE PESQUISA NO BRASIL Nas três últimas décadas do século XX, enquanto se realizava o trabalho de implementação e legitimação dos estudos da linguagem nos cursos de Letras, operava-se, também, um processo de reconfiguração do campo, o que se produziu, em parte, com a reconsideração dos materiais de análise e dos objetos de estudo considerados válidos. Nesse processo de reconfiguração do campo, a escrita, antes extraditada no processo de definição da Linguística Moderna em ciência, constituiu-se em objeto legítimo dos estudos linguísticos. Convidados pela Fundação Carlos Chagas a analisar e avaliar o desempenho de alunos egressos do ensino básico na produção de redações de vestibular, linguistas publicam, nos anos de 1976 e 1977, em dois volumes dos Cadernos de Pesquisa, artigos com resultados das primeiras tomadas de escrita resultante de formação escolar como objeto de estudo. Como observado em Pietri (2007a), nesse momento da produção acadêmica sobre a escrita (escolar), não havia ainda produzidos subsídios teóricos apropriados para o tratamento desse objeto, uma vez que os estudos linguísticos modernos se desenvolveram para a observação da língua, constituída em relação à fala, a partir da qual se produziriam os dados para análise. Os artigos publicados no número 16 seguem ainda de perto conceitos da tradição gramatical para a análise das redações. Já os artigos publicados no número 23 dos Cadernos de Pesquisa se caracterizam por apontar, com base no agenciamento de subsídios de vertentes teóricas que naquele momento se encontravam em desenvolvimento em contexto brasileiro (dentre os autores referidos nos artigos se encontram: J. DUBOIS, E. BENVENISTE, R. JAKOBSON, O. DUCROT, M. A. K. HALLIDAY, J. LYONS, M. PÊCHEUX, W. LABOV). Com base em elementos desses referenciais teóricos, os pesquisadores observaram as posições enunciativas possíveis para os escreventes em situação de avaliação de suas produções escritas. Porém, para a produção de dados e sua análise, recorreram a fundamentos teórico-metodológicos próprios à tradição gramatical, uma vez que os fundamentos da linguística, como 27

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referido, não eram produtivos para o tratamento de material escrito. Essa aproximação de perspectivas, a princípio concorrentes, da Linguística e da Tradição Gramatical, possibilitou a constituição da escrita em objeto válido para os estudos linguísticos, e, com isso, a reconfiguração do campo dos estudos da linguagem. Esse processo se observou também, em outra escala, no desenvolvimento dos Programas de Pós-Graduação em ciências da linguagem no Brasil. Desde esse momento histórico em questão, a metade final da década de 70 do século XX, pesquisas se desenvolveram, em nível de mestrado e de doutorado, em que perspectivas teóricas de diferentes linhas das áreas dos estudos da linguagem fundamentaram a descrição e a análise da escrita produzida em contexto escolar. Em estudos anteriores (PIETRI 2007a; 2007b; 2010; 2012a; 2012b; 2013a; 2013b; 2014) procurou-se caracterizar esse período histórico, e obtiveram-se resultados que mostram um processo de aproximações e distanciamentos entre academia e escola para a constituição da escrita escolar em objeto de investigação e de proposições curriculares, processo que evidencia os modos como as bases político-econômicas, e, portanto, ideológicas, próprias a momentos históricos específicos, condicionaram as investigações e as proposições curriculares para o ensino de língua portuguesa no país. Podem ser apontados, no período compreendido entre 1976 e 1997, três diferentes momentos no que se refere a esses processos. O primeiro, de que se pode apontar o ano de 1975 como referência para seu início, é o momento de publicação dos Guias Curriculares (SÃO PAULO, 1975) e das primeiras dissertações e teses que constituem a escrita escolar em objeto de estudos. No que se refere às proposições curriculares de caráter oficial, trata-se de um momento em que os estudos linguísticos no país em muito se concentravam nas perspectivas gerativistas e funcionalistas de linguagem, as de mais circulação no meio acadêmico. Nesse sentido, a unidade de ensino prevista nos Guias Curriculares não excedia o limite da frase, mas também não se associava à teoria da informação, a que muitas vezes se 28

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atribui relevância no que se refere aos fundamentos e objetivos propostos para a educação no período em questão (c.f.: PIETRI, 2010; 2013a). Trata-se, já, de documento em que concepções de linguagem elaboradas nos estudos linguísticos são apropriadas com o objetivo de propor soluções teórico-metodológicas para o ensino de português na escola. As teses e dissertações produzidas no período, que constituíram como objeto de investigação a escrita escolar, caracterizam-se por um alto nível de interdisciplinaridade e por definir a delimitação entre o contexto intra e o extraescolar com base nas relações entre a escola e a sociedade da comunicação de massas e da indústria cultural (c.f.: PIETRI, 2012a). A presença de relações interdisciplinares as mais diversas — que podiam aproximar princípios epistemológicos conflitantes — se fez em razão de não haver concepções teóricas que tivessem o texto escrito como objeto de conhecimento: elementos de linguística textual apenas começavam a circular no meio acadêmico. O movimento do pesquisador de uma a outra das fundamentações teóricas que agenciava para a investigação possibilitou definir os limites do objeto de pesquisa. Esse movimento se fez de um viés sociológico para a caracterização do contexto extraescolar — associado à sociedade de comunicação de massas e à indústria cultural —, e de um viés psicológico, para a caracterização do sujeito cognoscente, que compõe o contexto intraescolar. Pode ser tomado como referencial para o término desse período, o ano de 1981, com a publicação de tese de Rocco (1981), que parece indiciar a constituição de outro momento, em que o texto passa a ser observado em novas bases teóricas (no caso, em referências da linguística textual, do sociointeracionismo e da sociolinguística). O segundo momento do processo de constituição da escrita (escolar) em objeto de pesquisa e de ensino se fundamenta na produção de conhecimentos no âmbito da sociolinguística, do sociointeracionismo e da linguística textual, ao longo da década de 80. Com a oferta da escolarização básica de oito anos a parcelas cada vez mais amplas da população, a oralidade e a variação linguística, bem como as diferenças socioculturais, tornam-se questões determinantes para a questão do sucesso ou fracasso 29

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escolar. O respeito pela variedade linguística do aluno e pela cultura que traz de seu grupo social primeiro são elementos que compõem as proposições acadêmicas e curriculares num momento histórico em que se lutava pela redemocratização do país e pela transformação social para uma ordem mais justa. Os documentos de referência curricular para o ensino de língua materna, produzidos por vários estados da federação nesse momento, fundamentam-se em quatro aportes dos estudos da linguagem, como evidenciado por Geraldi, Silva e Fiad (1996): a concepção sociointeracionista ou sócio-histórica de linguagem inspirando as atividades de ensino; a noção de texto, como um produto do trabalho interativo com vínculos às suas condições discursivas de produção; a noção de variedade linguística como própria de qualquer língua, deslocando a noção de certo/errado e definindo-se pelo ensino da chamada língua padrão; e a reorganização das práticas de sala de aula em torno da leitura, da produção de textos e da análise linguística (p. 325-326).

A noção de texto, como discutido mais adiante, é fundamental para as considerações em torno do ensino de língua portuguesa no momento histórico em questão. No que se refere às pesquisas desenvolvidas em nível de pós-graduação, entre 1980 e 1989, sua realização já se faz, em virtude do trabalho dos pesquisadores do momento histórico anterior, com a escrita escolar reconhecida como objeto de pesquisa para os estudos linguísticos. Com isso, a ordem observada para as relações interdisciplinares e para as relações entre contexto intra e extraescolar se alteram. Na década de 80, as pesquisas se caracterizam por definir como contexto extraescolar a comunidade de origem do aluno, e a cultura e a variedade linguística que ele traz de seu grupo cultural. A oralidade é a base da cultura desse aluno que começa a ter acesso à escolarização. O contexto intraescolar, por sua vez, caracteriza-se pela primazia da cultura escrita (c.f.: PIETRI, 2012b).

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O texto escrito produzido na escola é analisado com base em referenciais teóricos apropriados ao sociointeracionismo e/ou à sociolinguística, associados a outras perspectivas teóricas dos estudos da linguagem, principalmente da linguística textual. É comum nessas investigações o emprego de metodologia qualitativa voltada à pesquisa participativa: professor e pesquisador muitas vezes são o mesmo sujeito, inserido em contexto para intervir e observar as consequências da interação para as condições de produção do texto em sala de aula. Nota-se não mais a presença de um alto nível de intertextualidade, mas a prevalência de referenciais teóricos específicos para o tratamento analítico da produção textual escrita escolar. O momento histórico subsequente, que se inicia nos primeiros anos da década de 90, é o que se desenvolve a partir de estabelecida a democracia no país — ao menos no que se refere ao processo político-eleitoral. Nesse momento, intensifica-se o processo de implementação, no país, do modelo neoliberal, processo que ganhará ainda mais força a partir de meados dessa década, quando se produzem e publicam, em nível federal, os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997). As pesquisas sobre escrita escolar em nível de pós-graduação, desenvolvidas nos anos iniciais da década de 90, caracterizam-se por estabelecer limites bem definidos entre a cultura acadêmica e a cultura escolar. Diferentemente do que se observava nos anos 80, neste momento histórico, o pesquisador ocupa uma posição de distanciamento e distinção em relação ao professor da escola básica. Além disso, vertentes teóricas dos estudos da linguagem se encontram estabelecidas e estabilizadas na cultura acadêmica do país, o que possibilita um movimento de mais autonomia para a produção de conhecimentos na academia em face das questões que lhe são exteriores, como as apresentadas pelo ensino fundamental e médio. Nesse sentido, o nível de intertextualidade para o tratamento da escrita escolar se reduz ao mínimo: as pesquisas se caracterizam por agenciar uma perspectiva teórica específica, de vertente ou semântica, ou enunciativa, ou discursiva, dentre outras, com o que se analisam aspectos determinados dos textos que compõem 31

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o corpus e se oferecem, ao final, ao professor, subsídios para a alteração de sua prática de ensino. Distanciam-se pesquisador e professor, configurando-se o contexto extraescolar como a cultura acadêmica, e o contexto intraescolar como o espaço de destino para as proposições teórico-metodológicas para o ensino, produzidas na academia. A partir da segunda metade da década de 90 — num movimento que talvez permaneça em suas linhas gerais até a atualidade —, certa apropriação da noção de gênero de discurso, de que se retira a perspectiva histórica que lhe é inerente na formulação bakhtiniana (CORRÊA, 2013), e de letramento, de que se retira o que possui de etnográfico, fundamentam as diretrizes curriculares oficiais e os programas para o ensino referenciados nessas proposições. O texto, considerado a unidade do ensino de língua portuguesa nas propostas elaboradas na década de 80, é substituído pelo gênero de discurso como objeto de aprendizagem dessa disciplina, nos parâmetros curriculares então estabelecidos. Com o fortalecimento do programa neoliberal no Brasil, a decorrente diminuição do tamanho do Estado e o enfraquecimento da regulação econômica e social, o objetivo atribuído à escolarização passa a ser o de desenvolver a competência e o desempenho dos indivíduos para sua inserção no mercado de trabalho. Os conhecimentos linguísticos aprendidos deveriam possibilitar ao sujeito se adequar à diversidade de situações que se lhe apresentassem. O aprendizado da língua portuguesa, que se faria com a possibilidade de produzir gêneros formais e públicos, ofereceria o acesso à cidadania. Uma certa leitura da noção de gêneros de discurso passa a fundamentar boa parte das pesquisas e proposições para o ensino de língua portuguesa na escola. Os gêneros formais e públicos, que se produzem com o uso da norma escrita padrão por referência, são apontados em proposições curriculares como aqueles que devem ser aprendidos pelos alunos de modo a poderem se inserir socialmente e constituírem-se cidadãos. Houve, concomitantemente à constituição da escrita em objeto de pesquisa e de ensino, no país, a reconfiguração das

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unidades e objetos considerados legítimos para o ensino e a aprendizagem de língua portuguesa na escola. Esse processo de reconfiguração será observado a seguir. 2.1 - O LUGAR DO TEXTO NA DISCIPLINA ESCOLAR DE LÍNGUA PORTUGUESA A apropriação didática de textos é um dos trabalhos que historicamente compõe a disciplina de língua portuguesa. Essa apropriação se realizaria, no ensino considerado tradicional, com base na qualificação de obras literárias representativas do idioma nacional, de que resultava a edição de antologias, ou com base na escolha de construções sintáticas modelares, para a realização de exercícios gramaticais. Com a elaboração das propostas de ensino pautadas nos estudos modernos da linguagem, observa-se, a partir das três últimas décadas do século XX, uma ampliação da noção de texto, de modo a abarcar não apenas o cânone literário, mas usos de linguagem produzidos nas mais diferentes esferas sociais, movimento que possibilitou um processo de revalorização da relação oralidade/escrita, de modo a considerar texto o produto, falado ou escrito, de dimensões variáveis, resultantes de interações entre sujeitos social e historicamente situados. Nas propostas pedagógicas – acadêmicas e oficiais – elaboradas no Brasil a partir da década de 80, fundamentadas, nesse momento inicial, em perspectiva sociointeracionista, o texto é então apontado como a unidade do ensino de língua portuguesa, em torno de que as atividades de leitura, produção e análise linguística deveriam se desenvolver (c.f.: GERALDI, 1984; 1991; SÃO PAULO/CENP, 1988; GERALDI, SILVA e FIAD, 1996). A noção de texto como unidade de sentido, que deveria ocupar o centro das atividades de ensino de língua portuguesa, permanece ao longo das evoluções apresentadas pelas propostas pedagógicas para a disciplina, mas seu lugar se desloca em função do fortalecimento da associação entre a noção de gênero de discurso e ensino de língua portuguesa. Na década de 90, principalmente a partir da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), à consideração do texto como unidade

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de ensino, associa-se a concepção de que o gênero de discurso constitui o objeto de aprendizagem. O texto é considerado, assim, como materialização de um determinado gênero de discurso. Os modos de apropriação didática de textos e de gêneros de discurso serão discutidos aqui, colocando-se em pauta a constituição dos primeiros como “unidades”, e dos segundos como “objetos”. O objetivo é o de conhecer quais funções se atribuíram para a escrita no processo de ensino e de aprendizagem de língua portuguesa. 2.2 O LUGAR DO TEXTO NO PROCESSO DE DIDATIZAÇÃO A partir da década de 80 do século XX, a noção de texto passou a ocupar lugar de centralidade nas discussões a respeito do ensino de língua portuguesa e do que seria sua unidade principal de trabalho. Contrapunham-se novos objetivos para as atividades didáticas na disciplina em questão, em face dos que tradicionalmente teriam sido seus principais focos de interesse: a escola deveria proporcionar aos alunos a possibilidade de desenvolver suas capacidades de produção textual, o que implicaria alterar as formas de ensino de modo que as unidades didáticas se alterassem qualitativamente. A palavra e a frase seriam itens insuficientes para a formação do produtor de textos, dado que sua análise e classificação com base em metalinguagem não seriam atividades suficientes para propiciar o aprendizado de usos sociais de linguagem. Considera-se que o aprendizado de uma língua se faria com base não em atividades metalinguísticas, mas em atividades linguísticas; e que o texto, produto e processo de uma situação de interação, constituir-se-ia não numa simples somatória de frases, mas numa totalidade de sentido, contextualmente situada e estruturada como um complexo de relações em suas partes componentes. Segundo Geraldi (1991), os modos como o texto se inseria nas aulas de língua portuguesa consideradas tradicionais se caracterizava pela sua tomada enquanto objeto de leitura vozeada, objeto de imitação, e objeto de uma fixação de sentidos, o que impossibilitava que se fizesse do texto um espaço de interpretação. Propunha, numa outra direção, que se alterasse a percepção 34

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de que a unidade textual seria portadora de um sentido único conferido pela intenção de quem o produziu, para a percepção de que o texto seria produto sócio-histórico, e, portanto, heterogeneamente constituído, lugar de uma pluralidade de sentidos. Os novos modos de se conceber o texto, ao menos em nível de propostas, se tornaram possíveis, segundo o autor, em razão da divulgação de conhecimentos sobre a produção de sentidos na leitura, e dos efeitos desses conhecimentos para as práticas de ensino em sala de aula, considerada lugar de interação entre sujeitos: “Recompor a caminhada interpretativa do leitor (que, evidentemente, pode ser o professor enquanto leitor dos textos) exige atenção ao acontecimento dialógico que ocorre no interior da sala de aula” (GERALDI, 1991, p. 113). A produção de textos (orais e escritos) passa a ser considerada ponto de partida e de chegada de todo o processo de ensino-aprendizagem da língua, com o que se colocaria como fundamental o problema do sujeito e seu trabalho de produção de discursos, concretizados nos textos. As atividades de ensino compreenderiam três elementos principais: o trabalho epilinguístico, em que a reflexão a partir do texto faz retornar ao texto em atividades de reescrita; o aprendizado de diferentes configurações textuais, de modo a compreender a multiplicidade de formas; a análise linguística, como forma de produzir conhecimentos sobre a linguagem. Perspectiva semelhante pode ser encontrada em propostas curriculares oficiais produzidas no período considerado (década de 80), em que a noção de texto ocupa lugar central nas considerações sobre ensino de língua portuguesa. Nas considerações sobre a noção de texto considerada satisfatória, lê-se, na Proposta Curricular de Língua Portuguesa do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 1988): Assim, o texto falado ou escrito constitui-se pela interação dos interlocutores, falante ou ouvinte, autor e seus leitores, envolvendo quem o produz e quem o interpreta. Por um lado, como vimos, esse processo implica no recurso a aspectos sistemáticos e a regras (linguísticas, lógicas, conversacionais,...) que permitem aos participantes da comunicação

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identificar-se e identificar o quadro linguístico e cultural em que se situam (SÃO PAULO, 1988, p. 18).

Essa ampliação da noção de língua, do escolar para o social e o histórico, colocaria a necessidade de observá-la não mais apenas em seu caráter gramatical — ou mesmo enquanto um código que traria em si todos os elementos necessários para sua interpretação —, mas sua produção em contexto, com as especificidades de um espaço histórico cultural determinado, de um grupo cultural específico, de um dado grupo socioeconômico. Nesse sentido, as atividades de linguagem se caracterizariam por ser coletivas, organizando e mediando as interações entre sujeito e realidade e entre sujeito e outros sujeitos. A noção de texto considerada interessante para fundamentar o ensino de língua portuguesa é apresentada, portanto, em contraste com perspectivas pedagógicas que reduziriam a linguagem a uma atividade escolar, desconsiderando seu caráter de atividade humana, histórica e social: “Nessa dimensão [a textual], a atividade linguística não se faz nas palavras ou frases isoladas para análises e exercícios escolares. Ela se realiza nos processos reais de comunicação como discurso ou texto” (SÃO PAULO, 1988, p. 18). A compreensão do que fosse um texto não mais se definiria por sua associação ao escrito impresso, de caráter literário ou acadêmico, mas pelo “fato de que é uma unidade de sentido em relação a uma situação”. O texto falado e o texto escrito se encontrariam em situação de equivalência no que se refere à sua valoração para os processos de ensino e de aprendizagem, com o que a heterogeneidade linguística seria não apenas aceitável em sala de aula, mas a base mesma de um princípio metodológico segundo o qual produzir linguagem significa observar o valor social e político dos usos, e aprender linguagem significa produzir sentidos com o trabalho sobre as diferenças de formas e de significados da língua em contexto (FRANCHI, 1991; GERALDI, 1991; POSSENTI, 1996).

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2.2 O GÊNERO DE DISCURSO COMO OBJETO DE APRENDIZAGEM Na década de 90, ocorrem algumas mudanças nos modos como é considerado o ensino de língua portuguesa, principalmente em decorrência da adoção de noções como as de gênero de discurso ou de competência discursiva. O texto permanece sendo considerado como unidade de ensino, em sua contraposição a outras unidades linguísticas, como a palavra ou a frase: Nessa perspectiva, não é possível tomar como unidades básicas do processo de ensino as que decorrem de uma análise de estratos — letras/fonemas, sílabas, palavras, sintagmas, frases — que, descontextualizados, são normalmente tomados como exemplos de estudo gramatical e pouco têm a ver com a competência discursiva. Dentro desse marco, a unidade básica do ensino só pode ser o texto (BRASIL, 1997, p. 23).

Considerado unidade de ensino, o texto é associado, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), mais diretamente à noção de gênero de discurso, a partir do que sua [do texto] conceituação se altera em relação ao momento histórico anterior, principalmente no que se refere aos modos como compreendida a heterogeneidade linguística em sua relação com o ensino de língua portuguesa: Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes a este ou àquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino. Nessa perspectiva, é necessário contemplar, nas atividades de ensino, a diversidade de textos e gêneros, e não apenas em função de sua relevância social, mas também pelo fato de que textos pertencentes a diferentes gêneros são organizados de diferentes formas (BRASIL, 1997, p. 23-24).

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Os textos considerados interessantes para serem apropriados com objetivos didáticos seriam aqueles que se caracterizassem pelos usos públicos de linguagem, dentre os quais deveriam ser selecionados para o trabalho em sala de aula os que pudessem “favorecer a reflexão crítica, o exercício de formas de pensamento mais elaboradas e abstratas, bem como a fruição estética dos usos artísticos da linguagem, ou seja, os mais vitais para a plena participação numa sociedade letrada” (BRASIL, 1997, p. 24). Destaca-se, entretanto, mudança no modo como a percebida a relação do sujeito com o texto, quando comparado o modo de relação proposto nos PCNs com o que pautou a discussão sobre ensino na década anterior: se se mantém de um momento a outro a perspectiva de que o texto se relaciona com o contexto, a noção de trabalho, constitutiva das condições de produção (coletiva) do texto, é substituída pela noção de adequação a situações comunicativas: No ensino-aprendizagem de diferentes padrões de fala e escrita, o que se almeja não é levar os alunos a falar certo, mas permitir-lhes a escolha da forma de fala a utilizar, considerando as características e condições do contexto de produção, ou seja, é saber adequar os recursos expressivos, a variedade de língua e o estilo às diferentes situações comunicativas: saber coordenar satisfatoriamente o que fala ou escreve e como fazê-lo; saber que modo de expressão é pertinente em função de sua intenção enunciativa — dado o contexto e os interlocutores a quem o texto se dirige. A questão não é de erro, mas de adequação às circunstâncias de uso, de utilização adequada da linguagem (BRASIL, 1997, p. 31).

Nesse sentido, à proposta de que se recompusesse a “caminhada interpretativa do leitor”, no diálogo desenvolvido em sala de aula, uma concepção diversa de heterogeneidade vem se apresentar, apoiada não na noção de trabalho (e de produção), mas de oferta e de recepção, a que se associaria uma atividade de análise, como ilustra a passagem a seguir:

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Vale considerar que a inclusão da heterogeneidade textual não pode ficar refém de uma prática estrangulada na homogeneidade de tratamento didático, que submete a um mesmo roteiro cristalizado de abordagem uma notícia, um artigo de divulgação científica e um poema. A diversidade não deve contemplar apenas a seleção dos textos; deve contemplar, também, a diversidade que acompanha a recepção a que os diversos textos são submetidos nas práticas sociais de leitura (BRASIL, 1997, p. 26).

A consideração das diferenças existentes entre textos próprios a gêneros de discurso específicos coloca em questão a necessidade de tematizar a relação entre a aprendizagem, em seu caráter individual, e as práticas de linguagem em seu caráter social. Essa relação se altera, considerando-se as propostas de ensino da década de 80 e as da década de 90, em função dos modos como concebido o que seriam textos adequados para a realização de atividades didáticas. A necessidade de produzir textos legítimos, ou não artificiais – no sentido de que não seriam produções com o objetivo único da leitura escolar pelo professor, com finalidade de avaliação — é posição defendida em ambos os momentos históricos; porém, altera-se, de um momento a outro, o caráter conferido ao texto presente em contexto escolar. Na década de 80, o texto — a ser lido ou escrito ou falado — se produziria nas práticas dialógicas, a partir do trabalho dos sujeitos em sua interação naquele grupo social específico que constituía a sala de aula. Na década de 90, o texto considerado de interesse didático seria aquele pertencente a gêneros representantes de práticas sociais de referência — como visto acima, as de caráter público, que possibilitem a reflexão e o desenvolvimento crítico; os gêneros seriam então introduzidos na escola, e suas características balizariam as atividades de linguagem a serem desenvolvidas em sala de aula. A heterogeneidade textual, a que se faz referência nos PCNs, como lido na passagem anteriormente transcrita, é circunscrita ao conjunto dos gêneros escolhidos para compor os que sejam relevantes para o ensino que permita o acesso a uma sociedade letrada. As diferenças entre textos e gêneros não são consideradas na sua relação com a sociedade

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mais ampla, o que levaria mais claramente à consideração da heterogeneidade linguística e das culturas orais. Altera-se, em relação às discussões propostas na década de 80, o modo como é concebida a relação fala/escrita: não mais se considera o fato de que a sala de aula compõe um grupo social em que diferenças sociais e linguísticas podem se encontrar e, a partir delas, o aprendizado da língua portuguesa poderia se fazer observando-se o valor atribuído socialmente a uma e outra variedade linguística, a um e outro registro. Naquele momento, a escola era considerada como um espaço social legítimo; nesse espaço, os usos de linguagem deveriam ser significativos, de modo a permitir a transformação social pelo trabalho dos sujeitos organizados em grupos sociais. A partir da segunda metade dos anos 1990, nos referenciais curriculares oficiais, a escola passa a ser considerada um espaço social artificial, a que faltaria autenticidade, que, para levar efetivamente os alunos a se apropriarem dos usos formais e públicos da linguagem, deveria ser aproximado, se não reproduzir, as condições de produção de textos consideradas legítimas: aquelas constituídas nos espaços sociais diversos em que os gêneros de discurso estabelecidos como de referência para o ensino são produzidos: o jornalismo, a ciência, a literatura. Desse modo, seria possível produzir a escrita para um interlocutor autêntico de modo a estabelecer uma interlocução significativa. Bem estabelecidos os parâmetros para a produção autêntica de um determinado gênero de discurso formal e público, estariam garantidas a adequação, a competência, a habilidade, e a colaboração para a manutenção da boa convivência cidadã. A definição de um conjunto de gêneros de discurso formais e públicos para o ensino e a aprendizagem, que insiram o indivíduo na cultura letrada, se realiza com base na utilização da escrita para a produção da diferença: os que participam e os que não participam da cultura letrada; os que podem e os que não podem atuar em determinados contextos sociais porque são ou não competentes para produzir determinados gêneros cuja produção se baseia no uso da norma culta escrita; os que são hábeis e os que não são para se adequar às circunstâncias de usos linguísticos; 40

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os que estão aptos ou não para participarem da cidadania — e a cidadania é letrada, por princípio. A escrita é a referência, portanto, para a produção da alteridade no interior do Estado definido em função de uma ideia de unidade linguística. No mesmo movimento de produção da diferença, se constituem instrumentos que possibilitam o movimento de um espaço a outro: nesse caso, o domínio de objetos de discurso, os gêneros de discurso, o que possibilita mudanças de posição, que, se bem realizadas, garantiriam a adequação do indivíduo às situações sociais de que participasse. A atual ordem proposta para o ensino de português parece ser assim o resultado histórico de um percurso que desloca para a escrita as funções gramaticais de produção de diferenças e de tradução entre os diferentes produzidos, como possibilitado pelo processo de gramatização (AUROUX, 2000). O instrumento de produção de diferenças e de tradução entre um e outro diferente produzido é o gênero de discurso formal e público, baseado na norma escrita, e destituído da historicidade que lhe seria inerente segundo a perspectiva bakhtiniana (CORRÊA, 2013). A padronização é um princípio que se observa nas propostas didáticas que propõem a apropriação de modelos de gêneros de discurso para o processo de aprendizagem. Trata-se, assim, da formalização e categorização de elementos que sejam utilizados metodologicamente para o ensino, uma espécie de “gramática dos gêneros”. Desse modo, a heterogeneidade linguística não se constitui em fundamento metodológico para o trabalho em sala de aula, mas recebe tratamento prévio, de modo que seja antecipadamente atravessada e interditada pelo corte que estabelece um corpus legitimado para o trabalho de leitura e produção de textos. Trata-se da atuação de um princípio normativo. Com o percurso histórico acima construído, procurou-se observar de que modo a escrita se constituiu em objeto legítimo para os estudos linguísticos no Brasil, nas três últimas décadas do século XX, e como esse processo de constituição se relacionou com a proposição de unidades e objetos de pesquisa e de ensino de língua portuguesa. As reconfigurações por que passou o campo em questão mostram aproximações e distanciamentos

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de concepções de linguagem mais e menos sensíveis à realidade da variação e da mudança linguísticas, aos princípios de normatização, às bases sócio-histórico-político-econômicas que se encontram nas bases dos processos observados. A seguir se observarão, em textos produzidos por professores em formação inicial, como as resultantes históricas do processo de constituição dos estudos da linguagem no Brasil recente se materializam nos discursos sobre escrita e sobre ensino de língua portuguesa, (re)produzidos, na academia, por licenciandos em Letras. Evidenciam-se de que modo as consonâncias e polêmicas que se estabelecem entre concepções de língua e de ensino compõem um campo heterogêneo, no interior do qual se realizam trabalhos de formação docente. Discutem-se, por fim, os efeitos que conhecimentos sobre heterogeneidade linguística e sobre o valor normativo que se atribui à escrita produzem em concepções de linguagem constitutivas do processo de formação de professores de língua portuguesa. 3. A FUNÇÃO DA ESCRITA NO DISCURSO DE PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA EM FORMAÇÃO INICIAL No primeiro semestre de 2013, numa turma de disciplina de formação de professores de língua portuguesa, em um curso de Licenciatura em Letras de uma Universidade pública paulista, realizou-se um conjunto de atividades escritas com o objetivo de observar que concepções de língua portuguesa e de escrita se encontravam em circulação naquele grupo, e de que modo a escrita estaria funcionando para a ordenação e (re)produção de conhecimentos sobre linguagem e sobre docência. De um modo mais específico, procurava-se evidenciar, aos sujeitos participantes do processo, as concepções de língua(gem), escrita e docência que compunham as referências que se encontravam em um grupo de sujeitos inseridos num curso de Letras e, naquele momento, com em média 2/3 do curso concluído, em uma disciplina que outorgava a especialidade da docência em língua portuguesa. O processo se compôs de três atividades de produção escrita, realizadas em três aulas não imediatamente consecutivas.

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Cada produção escrita respondia a um conjunto de questões problematizadoras apresentadas, pelo professor formador, numa página impressa, seguidas, nas duas primeiras atividades, de um mesmo fragmento de artigo de Andrade (2003) sobre a função da escrita para a formação docente; na terceira, seguidas de enunciados recolhidos, pelo formador, das produções escritas anteriormente realizadas. As questões problematizadoras propostas nas segunda e terceira atividades se elaboraram a partir dos pontos considerados relevantes ou polêmicos encontrados nas produções escritas resultantes das atividades anteriormente realizadas5. Como afirmado anteriormente, a hipótese que orienta as considerações apresentadas neste trabalho é a de que a escrita ocupa a função de produção de diferenças e de possibilidade de transpor essas diferenças, constitutivas de uma língua representada em sua unidade nacional. Nesse sentido, a escrita ocuparia a posição primeiramente atribuída à gramática e ao dicionário no processo de gramatização, tal como compreendido por Auroux (2000). No percurso histórico acima apresentado, procurou-se observar diacronicamente, nas produções acadêmicas e nos referenciais curriculares oficiais, como a escrita se movimentou em direção a essa função de produção da alteridade. Neste momento, pretende-se operar sincronicamente de modo a compreender de que modo as representações sobre a função da escrita se contrapõem em diálogo e evidenciam um conjunto de conhecimentos em (re)produção e circulação, com as assonâncias, as contradições e as polêmicas que lhe são heterogeneamente constitutivas. Os enunciados trazidos para análise e discussão comporão dois grupos, separados nas duas seções apresentadas a seguir: o primeiro grupo reúne enunciados sobre a função da escrita para a racionalidade, isto é, para a ordenação da língua do sujeito como base para seu processo reflexivo; o segundo grupo reúne enunciados sobre a função da escrita para o trabalho com a alteridade, seja para sua produção, seja para a possibilidade de sua tradução. 5

Reprodução das propostas de produção escrita encontra-se em anexo ao presente texto.

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3.1 EM BUSCA DA ESCRITA PERFEITA É recorrente nos textos que compõem o corpus de análise do presente trabalho a referência dos sujeitos escreventes às suas experiências com a escrita como um princípio de ordenação de seus discursos e, principalmente, de suas possibilidades de reflexão. No primeiro caso, a escrita funcionaria com um princípio ordenador produtivo para a experiência com a própria linguagem, uma vez que possibilitaria a relação com uma alteridade que organiza a produção linguística enquanto oferece elementos novos para essa mesma produção, como se pode observar nas passagens abaixo, selecionadas para ilustrar essa recorrência encontrada nos textos analisados. No primeiro deles, nota-se a posição centralizadora e determinante dos dizeres atribuída à escrita, de modo que os sentidos são percebidos como possíveis apenas em função de sua existência no escrito, que assume o lugar de fonte, de referências dos dizeres, sempre mais amplos que as possibilidades limitadas do sujeito de linguagem: “Já na escola, o contato com a escrita certamente afeta a fala, já que não se consegue pensar em algo que fuja ao que foi estabelecido pela escrita, ou seja, as experiências com o mundo escrito mostram diversas possibilidades e causam, muitas vezes, a sensação de que aquilo que está sendo dito poderia ser transmitido de outra forma. Isso ocorre até hoje já que, ao falar, a quantidade de possibilidades oferecidas pela escrita interfere diretamente no discurso, fazendo com que ele não se realize totalmente. Assim, a própria escrita sofre modificações significativas devido ao contato com a escrita.” (A1, p. 14)6

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Todos os destaques nas passagens trazidas dos textos do corpus foram inseridos neste momento, com o objetivo de evidenciar enunciados relevantes para a discussão. Entre parênteses, ao final da passagem transcrita, encontra-se a localização do texto de onde essa passagem provém: a atividade (A) a que se refere — 1 ou 3 (não se observaram textos produzidos com a atividade 2, pois não respondiam à temática aqui considerada); o número da página em que se encontra o texto no arquivo em que foi registrado.

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O mesmo princípio se observa na passagem a seguir, associado ao fato de que a escrita possibilita a expressão de modo menos controlado pelo outro, que se encontra a distância numa interação de corpo ausente7: “A partir do momento em que entrei em contato com a escrita, houve uma mudança em minha possibilidade de falar. Ao ser capaz de ler e entrar em contato com obras literárias diversas, em especial infantis, nesse primeiro momento, senti uma expansão nas possibilidades de me expressar, de me colocar como sujeito, e a escrita me possibilitou essa expressão de maneira muito mais espontânea do que a fala propriamente dita, uma vez que me sentia muito menos exposta e mais à vontade para “dizer” o que eu pensava, no que acreditava. O contato constante com a escrita, com autores diversos, e mesmo com textos de caráter mais informacional/jornalístico, me auxiliaram na minha constituição de sujeito que escreve, tanto em relação às formas e construções estilísticas, quanto a temas e modos em que eram abordados.” (A1, p. 20)

As duas passagens anteriores são exemplares da representação da escrita como fonte de uma memória. A escrita possibilita a ampliação das possibilidades do dizer e do como dizer. Nesse sentido, associa-se a um princípio de alteridade. Note-se, ao final do último fragmento apresentado, a relação com a alteridade por meio do escrito representada como algo constitutivo do sujeito que escreve. O contato com o outro da cultura, no entanto, não é percebido como possibilidade de trabalho com a historicidade (POSSENTI, 2002), ainda que seja feita referência a estilo. A produtividade da escrita para a constituição de sujeitos de linguagem se associa, nos textos analisados, à função de organização dos pensamentos, a um princípio de racionalidade, como se pode observar nas passagens a seguir: 7

Trata-se de uma relação em que os interlocutores se encontram distantes no tempo e no espaço (c.f.: SIGNORINI, 1999).

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“Nas minhas possibilidades de dizer a influência exercida pela escrita é muito grande, pois a forma como meu raciocínio é construído para expressar seja o que for é muito similar à forma da minha escrita.” (A1, p. 16) “De igual modo, o contato com a escrita muito auxiliou minhas possibilidades de dizer, de me expressar e me comunicar, tanto verbalmente quanto por meio da escrita. Ela me auxiliou na organização de ideias, de um modo coerente, na construção de pensamentos para que pudessem ser expostos e compreendidos mais facilmente.” (A1, p. 20) “Além disso, a escrita mudou e muda constantemente meus modos de dizer algo; vejo que quando leio algo que me interessa e gera encanto há uma ânsia de “cópia”, mas não dura muito tempo e eu logo dou um jeito de associar o que eu gostei de ler/ouvir ao meu jeito de dizer e expressar. Acredito, ainda, que mesmo com muitos problemas, a escrita me ajudou a organizar as ideias e opiniões na minha cabeça, vejo que em uma discussão válida é necessário um começo, meio e fim do raciocínio, senão fico apenas divagando sem saber concretizar o que quero dizer.” (A1, p.5)

A escrita parece ser representada, portanto, como suporte para a organização do pensamento e para a elaboração das formas do dizer, associando-se, assim, de algum modo, à lógica e à retórica. Esse modo de representação das funções da escrita se aproxima, por sua vez, do monitoramento da própria produção linguística, com o que a escrita funciona para a adequação da expressão linguística em conformidade com uma norma, oferecida pela própria escrita: “Ao ler notícias, materiais didáticos, livros de literatura, blogs, sites de relacionamento etc, fui capaz de ampliar a maneira de produção da língua, seja de forma oral ou escrita, e, partindo de um pressuposto normativo, me fez melhorar sua efetivação, uma vez que compreendo e me faço compreender de maneira, por vezes, simples e efetiva.” (A1, p. 12)

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“O contato com a escrita padrão no ambiente escolar, e também fora dele, de fato influenciaram a minha língua. Porém, não consigo imaginar uma mudança em relação à minha variedade linguística, por mais que ela tenha ocorrido, talvez pela proximidade maior à norma-padrão desta variedade que adquiri. Esta dificuldade, acredito, está posta pela tardia tomada de consciência da língua como instrumento de identidade e da imposição de uma norma corretiva, modelar. (...) Atualmente, após entrar na Universidade, este impacto é mais visível, já que a monitoração parece ser algo sempre presente em minhas atividades linguísticas, sejam elas possibilidades de fala, de escrita e de expressão.” (A1, p. 17)

A escrita normatizadora, associada às outras funções a ela atribuídas, de fonte para a produtividade dos dizeres, e de base racional para a organização do pensamento e do discurso, compõem os modos como é representada a escrita, nos textos de licenciandos em Letras, em sua relação com a constituição dos processos de subjetivação. A representação que se faz da escrita é a de que sua força normativa e ordenadora, que resultaria em mais forte controle sobre sua forma, possibilitaria um processo de homogeneização, de unificação linguística, em bases lógicas, de modo que a escrita comporia a base para a ordenação do pensamento e da comunicação. Trata-se, portanto, de concepção de escrita com funções bastante próximas à que se atribuíram historicamente ao processo de gramatização. A seguir, se observarão os modos como representada a função da escrita em sua função de produção da diferença e diálogo com a alteridade. 3.2 A ESCRITA E A CONSTITUIÇÃO DA ALTERIDADE Os modos como considerada a escrita em suas funções de unificação linguística e instrumento de ordenação lógica do pensamento e do discurso produzem efeitos nas maneiras como é representada a escrita quando considerada a questão da alterida47

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de. Nos textos de licenciandos em Letras que compõe o conjunto de análise do presente trabalho, a escrita é observada como um elemento que produz a alteridade pelo fato de se colocar fora do sujeito. O caráter normativo da escrita desempenharia um papel definidor nessa exteriorização: “Ao ensinar a escrita ao sujeito, é garantida a possibilidade do controle da língua, uma vez que a escrita pode ser vista e revista; não tem o caráter imediato da fala. A escrita pode ser muito mais pensada, pois é observada “de fora”.” (A3, p. 18) “Acho que a norma escrita pode marcar um lugar de alteridade, quando o sujeito a usa de modo consciente, reflete sobre suas escolhas.” (A3, p. 27)

A materialidade da escrita, sua permanência num suporte que não a voz do próprio indivíduo, conferiria a ela uma objetividade tal que possibilitaria ao sujeito observar do lado “de fora” o que, sem a escrita, seria algo de seu mundo interior8. Nesse sentido, é possível operar com mais controle sobre o processo, porque seria possível ter mais consciência sobre o processo do dizer ao se tornar outro de si mesmo, e porque, assim, seria possível traduzir a língua do outro e para a língua do outro: “Acredito também que ensinar a escrever seja possibilitar um maior controle sobre a própria língua, pois, nos tornando outro de nós mesmos, aumentamos a possibilidade de conscientização. Por conscientização, entendo a consciência de quem somos, o que fazemos e porque fazemos certas coisas.” (A3, p. 23) “Ensinar a escrever é importante para o sujeito ter um conhecimento maior e melhor sobre sua 8

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Esse modo de perceber a escrita poderia ser associado às razões, apontadas por Corrêa (2004, p. XI-XII), pelas quais a escrita alfabética é vista como imperando sobre as demais formas de registro: “sua matéria gráfica, seu caráter simbólico próprio e seu caráter invariante no tempo”; é presente nos dados analisados essa sobrevalorização da escrita sobre outras modalidades da linguagem, o que parece contribuir para a hipótese de que a escrita estaria associada à produção de uma alteridade com caráter normativo.

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língua, e entender a língua do outro. Ele aprende a controlar sua língua de maneira positiva.” (A3, p. 36)

As funções de normatividade, de instrumento para o pensamento e para a comunicação, e de contato com a alteridade evidenciam uma concepção de escrita que a aproxima das funções normativas e pedagógicas historicamente associadas à gramática, e que, portanto, definem uma posição polêmica no interior dos estudos modernos da linguagem, considerando-se as bases descritivas e analíticas que ordenam o campo das ciências linguísticas. A consideração da variação e da mudança linguísticas como um princípio constitutivo das línguas contrapõe-se ao viés normativo, homogeneizante, que se observa nas concepções de escrita presentes no discurso de licenciandos em Letras. Contrapõe-se, também, aos modos como a escrita tem sido considerada nos estudos linguísticos, a partir do momento em que legitimada como objeto dessa ciência. A escrita é tratada no discurso dos futuros professores de língua portuguesa como uma variedade que, se aprendida, pode oferecer ao sujeito a possibilidade de trânsito social: “O professor de língua portuguesa tem a tarefa de respeitar todas as variedades linguísticas, valorizando a língua padrão mas, ao mesmo tempo, não menosprezando a língua do aluno — uma tarefa que exige bastante cuidado e policiamento. Ensinar a variedade padrão ao aluno, quase como se ensina uma segunda língua, a depender do nível de contato do aluno com o mundo letrado, confere ao aluno o poder de libertar-se e migrar da comunidade linguístico-social, se assim o desejar.” (A3, p. 3) “A escrita atualmente é um grande e forte instrumento político, haja vista que para quem a domina, ela permite livre trânsito entre os ambientes sociais; já para quem não a domina, ela acarreta entraves sociais.” (A3, p. 7)

A contraposição entre as bases descritivo-analíticas dos estudos da linguagem e as bases normativo-pedagógicas que 49

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fundamentariam o ensino da escrita são observadas como uma questão não resolvida nos cursos de Letras, como uma cisão epistemológica que se encontra na estrutura curricular desses cursos: “As discussões da sociolinguística sobre os usos da língua são necessárias, mas parecem se opor ao poder normatizador da escrita. Parecem duas forças contrárias, como se defendessem perspectivas diferentes. Pois a sociolinguística valoriza a oralidade e encara a língua como algo vivo e em constante mudança. A escrita, e a escola, pois é na escola que se aprende a escrever, encaram a língua como algo que pertence ao reino da gramática e sua plena e boa execução depende do estudo da norma.” (A3, p. 5) “Entretanto, pessoalmente, não vejo a escrita e a sociolinguística como rivais, mas apenas como conteúdos que, infelizmente, não costumam ser tratados de forma articulada, o que, a meu ver, contribui para empobrecer — e muito — o repertório linguístico e cultural do alunado, bem como impede que este entre em contato com a diferença e, por consequência, se conheça melhor, tenha uma imagem mais nítida de si mesmo.” (A3, p. 8)

A coexistência de concepções de língua e de ensino conflitantes não pode ser em si um problema, uma vez que esse conflito é um dos objetos para que se voltam os estudos da linguagem. Os problemas se produzem da não tematização ou do apagamento do que é uma discussão epistemológica constitutiva do campo. Com isso, corre-se o risco de se naturalizar a percepção de que dois campos opostos comporiam sem tensões um mesmo curso — as Letras seriam duas: as ciências e as normas. Esse estado de coisas coloca em questão a própria solução que tem sido regularmente proposta para o problema, tal como considerado por um licenciando em seu texto, questionamento com que se finaliza esta seção: “O distanciamento necessário para que se produza um texto escrito, a maior reflexão que pode ser

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feita quando se produz essa modalidade do discurso, creio que possibilitem ao indivíduo estruturar melhor as ideias que quer exprimir e também fazer com que ele se depare com o conflito entre sua expressão oral e sua expressão letrada. Como lidar com este conflito? Apesar de toda a pesquisa e discussão realizada pela sociolinguística, parece que no geral o que se tirou como “meta para o professor de português esclarecido” é que se deve “respeitar a variedade linguística do aluno”, mas ensinar que em determinados contextos e em determinadas modalidades do uso da linguagem — como a escrita — deve-se usar a norma culta padrão. Essa perspectiva trabalha com o conflito ou lhe dá uma solução mais simples?” (A3, p. 35)

CONSIDERAÇÕES FINAIS Resultante da observação de textos produzidos por licenciandos em Letras em uma Universidade pública paulista, a hipótese que orientou a argumentação no presente trabalho é a de que a escrita ocupa o lugar da gramática como instrumento de racionalização da linguagem, como lugar da produção de diferenças. Com o objetivo de fortalecer essa hipótese, construiu-se um percurso histórico em que se observou o processo de implementação da Linguística nos cursos de Letras; a constituição da escrita em objeto legítimo para os estudos linguísticos; os modos como se propuseram as unidades de ensino e os objetos de aprendizagem ao longo das últimas três décadas do século XX, no Brasil. Esse percurso parece se desenvolver desde princípios sociolinguísticos sensíveis à heterogeneidade linguística, e se resolver em parâmetros curriculares fundamentados em concepção homogeneizante de linguagem, sustentados em noção de escrita como base para o desenvolvimento do pensamento abstrato, da competência e habilidade para a comunicação adequada a contextos sociais formais e públicos, e para o acesso à cidadania.

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A leitura analítica dos textos que compuseram o corpus de trabalho, produções escritas por licenciandos em uma disciplina de formação específica para o ensino de português na escola básica, evidenciou que a escrita é representada ora como lugar da normatização, do controle, ora da possibilidade de organização dos dizeres (e dos pensares). Possui também a função de produzir uma situação de deslocamento, de diferença, de alteridade, e, concomitantemente, sustenta a possibilidade de transposição da diferença, da alteridade produzida. Evidenciam-se, assim, no discurso de base para a formação docente em língua portuguesa, tensões resultantes da aproximação não tematizada criticamente de bases epistemológicas conflituosas que compõem um curso de Letras. Sugere-se, por fim, que a escrita componha o processo de formação de professores de língua portuguesa como um dispositivo dialógico para a percepção e tematização das tensões que se encontram nos fundamentos da formação de professores e do ensino de língua portuguesa, tensões que se acentuam na realidade brasileira, caracterizada historicamente pela desigualdade socioeconômica. Ocupando lugar de centralidade nos processos dialógicos que compõem a sala de aula de formação de professores, a escrita deixa de ser um objeto de ensino para o qual se propõem apropriações didáticas, e se constitui em instrumento para o trabalho de formação docente com vistas à transformação dos sujeitos e das realidades que produzem, trabalho tanto mais transformador quanto mais sensível à realidade da heterogeneidade linguística.

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ANEXOS - Textos de base para a atividade de produção escrita dos licenciandos em Letras: - ATIVIDADE 1: Disciplina de formação inicial de professores de língua portuguesa A função constitutiva da escrita e sua função formativa

Tema do texto a ser produzido: “O sujeito, seu vínculo linguístico com seu grupo social de origem, e sua possibilidade de inserção na sociedade mais ampla.” Obs.: Caso não queira se identificar, registre em seu texto apenas o número de seu RA. O texto produzido será lido e comentado (por escrito) por um colega da sala. Orientações para a produção do texto:

Qual era a minha língua antes da escola e no que minha língua se constituiu ao longo do processo de escolarização? De que modo a escrita impactou e impacta minha possibilidade de falar? De que modo a escrita impactou e impacta minha possibilidade de escrever? De que modo a escrita impactou e impacta minha possibilidade de dizer? Em que a escrita e a leitura (principalmente a literária) me impactam no que se refere à representação que construo de minha própria identidade? 53

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Como a ampliação de minha potencialidade de letrado alterou e altera os modos de minha inserção no meu grupo social de origem e nos grupos secundários a que me filio? Adendo - sobre a voz do professor em formação: “Ao tomá-lo como objeto de estudo, nós, pesquisadores, aumentamos nossa proximidade com este ator fundamental da instituição escolar. Neste sentido, o mote passou a ser dar voz ao professor. Teorizamos então a natureza de seus saberes, assumindo uma distinção essencial entre esses saberes e os nossos (científicos, de pesquisa). Descrevemos e avaliamos os tipos de reflexão efetuados pelo professor e os meandros pelos quais sua prática se constitui. Erigimos este ator como um Outro que, diferentemente de nós, autorizados (e mesmo condenados) a publicar, divulgar, expressar os resultados de nosso trabalho, não tem à disposição os instrumentos para uma formalização e expressão de sua prática. Estranha constatação, a de que os professores não possuem uma voz para se dizerem e que, ao mesmo tempo, nosso trabalho passa a ser o de ouvir essa voz e de descrevê-la. Este aparente paradoxo indica que somente passamos a escutar essa voz depois de lhe dar lugar, de conceder a esta um direito de existência em nosso campo, dando espaço à sua descrição do nosso ponto de vista de pesquisadores. Só ouvimos a voz depois de praticamente a produzir, com nossos diversos aparatos de pesquisa. Dessa forma, somos conduzidos a interrogar: dar voz ao professor significa, assim, ouvir sua voz? Ou uma voz? Damo-lhes que voz? Afinal, o que ouvimos (ou lemos, compreendemos, assistimos) quando eles tomarem a palavra desta posição autorizada tende a ficar circunscrito por nossos interesses, não necessariamente ou diretamente vinculados ao campo escolar, já que o professor passa a ser situado em sua nova posição de sujeito de pesquisa.” (Ludmila Thomé de Andrade - Revista Educação e Sociedade., Campinas, vol. 24, n. 85, p. 1297-1315, dezembro 2003 Disponível em http://www.cedes.unicamp.br)

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- ATIVIDADE 2: Disciplina de formação inicial de professores de língua portuguesa A função constitutiva e formativa da escrita Tema do texto a ser produzido: O professor em formação e a formação do aluno no ensino básico: o professor pede para o aluno justamente aquilo que, enquanto estudante, nega-se a fazer. Obs.: Caso não queira se identificar, registre em seu texto apenas o número de seu RA. O texto produzido será lido e comentado (por escrito) por um colega da sala. Orientações para a produção do texto: O que me impede de escrever a respeito de minha própria experiência? O que se coloca entre mim e a língua? O que se coloca entre mim e minha fala? O que se coloca entre mim e minha escrita? É minha (e somente minha) a minha língua? Quem pode mexer com minha língua? Ser professor de língua portuguesa como língua materna: que direito tenho eu frente à língua do aluno? Que direito tem um aluno de defender sua língua? Esse aluno tem uma língua? Se tem, é de fato desse aluno essa língua? Adendo - sobre a voz do professor em formação: “Ao tomá-lo como objeto de estudo, nós, pesquisadores, aumentamos nossa proximidade com este ator fundamental da instituição escolar. Neste sentido, o mote passou a ser dar voz ao professor.

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Teorizamos então a natureza de seus saberes, assumindo uma distinção essencial entre esses saberes e os nossos (científicos, de pesquisa). Descrevemos e avaliamos os tipos de reflexão efetuados pelo professor e os meandros pelos quais sua prática se constitui. Erigimos este ator como um Outro que, diferentemente de nós, autorizados (e mesmo condenados) a publicar, divulgar, expressar os resultados de nosso trabalho, não tem à disposição os instrumentos para uma formalização e expressão de sua prática. Estranha constatação, a de que os professores não possuem uma voz para se dizerem e que, ao mesmo tempo, nosso trabalho passa a ser o de ouvir essa voz e de descrevê-la. Este aparente paradoxo indica que somente passamos a escutar essa voz depois de lhe dar lugar, de conceder a esta um direito de existência em nosso campo, dando espaço à sua descrição do nosso ponto de vista de pesquisadores. Só ouvimos a voz depois de praticamente a produzir, com nossos diversos aparatos de pesquisa. Dessa forma, somos conduzidos a interrogar: dar voz ao professor significa, assim, ouvir sua voz? Ou uma voz? Damo-lhes que voz? Afinal, o que ouvimos (ou lemos, compreendemos, assistimos) quando eles tomarem a palavra desta posição autorizada tende a ficar circunscrito por nossos interesses, não necessariamente ou diretamente vinculados ao campo escolar, já que o professor passa a ser situado em sua nova posição de sujeito de pesquisa.” (Ludmila Thomé de Andrade - Revista Educação e Sociedade., Campinas, vol. 24, n. 85, p. 1297-1315, dezembro 2003 Disponível em http://www.cedes.unicamp.br)

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- ATIVIDADE 3: Disciplina de formação inicial de professores de língua portuguesa A função constitutiva e formativa da escrita Tema do texto a ser produzido (em resposta aos textos produzidos na semana anterior): o licenciado em Letras como sujeito autorizado a questionar a legitimação das formas de prescrição dos usos de linguagem e, enquanto professor, sujeito autorizado a promover a heterogeneidade linguística em sala de aula. Obs.: Caso não queira se identificar, registre em seu texto apenas o número de seu RA. O texto produzido será lido e comentado (por escrito) por um colega da sala. Questões orientadoras para a produção do texto: - a escrita, lugar do registro e da manutenção da linguagem, é o espaço para o fechamento dos sentidos? - ensinar a escrever é possibilitar ao sujeito um maior controle sobre (su)a língua? - a escrita é a escrita do literário, do estilo refletido: fora desse lugar, é instrumento para a comunicação e para o aprimoramento dos recursos comunicativos? - a escrita é o que escapa ao controle do sujeito; é o que permite ao sujeito que se observe de um lugar outro, distante daquele em que a escrita se produziu? - a norma escrita circunscreve, controla os sentidos e o sujeito, apenas enquanto instrumento de poder político; em relação ao indivíduo que escreve, é mobilizadora, possibilita o contato com a diferença linguística, marca um lugar de alteridade?

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- que forças têm as discussões sobre sociolinguística e ensino face ao poder normatizador da escrita? - o lugar da escrita é a escola? Adendo - a voz do professor em formação: “É curioso observar que a minha escrita influencia no meu falar, porém evito que a fala influencie na minha escrita. Ou seja, com tanto “policiamento”, é capaz que eu nunca consiga dizer tudo o que gostaria. Contudo, esse é um ponto sobre o qual ainda não tenho total domínio, uma vez que eu nunca havia questionado a influencia da escrita no meu dizer.” - O que apareceu com alguma recorrência nos textos produzidos em aula anterior: 1. A escrita é o lugar do constrangimento da expressão, pois mantém a palavra, e, por isso, expõe o sujeito a si mesmo e ao outro (ou faz do sujeito o Outro de si mesmo). 2. A escrita é o lugar da norma, e a escrita literária é o exemplo maior da boa expressão; os grandes autores da literatura não teriam problemas para escrever, e, por isso, não se sentem inseguros em sua expressão. 3. Os saberes da sociolinguística fundamentam o modo como se concebe o trabalho com a variação linguística em contexto normativo: compreende-se a variação, respeita-se a variedade do outro, mas se lhe oferecem outras variedades que possa usar nos contextos adequados; a sociolinguística aparece como um delimitador de variedades, o que parece trazer uma representação de língua como um conjunto bem ordenado e distribuído de variedades linguísticas. 4. A língua constitui a identidade do sujeito, ao mesmo tempo em que é um fato coletivo; o sujeito oscila assim entre a individualidade e a coletividade; o que “resolve” a questão de se impor ou não uma outra variedade ao aluno é a menção à sociolinguística: apreendemse variedades distintas a serem usadas em função da necessidade de adequação ao contexto.

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ESCRITA COMO ACONTECIMENTO: CONSTRUÇÃO DO HUMOR E MUDANÇA DE PERSPECTIVA COMO EXPERIÊNCIAS1 Edilaine Buin Milenne Biasotto

PALAVRAS INICIAIS

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izer que o aluno, em qualquer nível escolar, precisa adequar o seu texto ao gênero textual, à norma padrão da língua, à situação de comunicação, não é novidade. Ao contrário, faz parte dos “saberes” escolares e acadêmicos – por vezes, inquestionáveis. Com o respaldo dos pressupostos teóricos para o ensino da escrita desenvolvidos por Corrêa (2013), convidamos o leitor a mudar o foco dessa noção de adequação para a de acontecimento – esta baseada na heterogeneidade das relações entre práticas de oralidade e de letramento. Os pressupostos de Corrêa (2004), agora imbuídos pela questão da diferenciação entre as noções de linguagem e de escrita como “acontecimento” e como “adequação” (CORRÊA, 2006; 2007), inspiram-nos a revisitar análises textuais que já se voltavam ao processo que a escrita representa (em detrimento da ideia de produto), para mostrar como ela pode ser vista no espaço escolar como acontecimento e, consequentemente, de que 1

Agradecemos à mestranda Tailane Flores Antunes pela leitura da 1ª versão deste texto. Agradecemos ao colega Adair Vieira Gonçalves pelo diálogo contínuo em torno das questões aqui postas. Em especial, agradecemos ao professor Manoel Luiz Gonçalves Corrêa, cujos conceitos de “adequação” e “acontecimento” foram fonte inspiradora deste capítulo e, também, por ter lido e contribuído com uma versão anterior. O conteúdo do texto, entretanto, é de nossa inteira responsabilidade.

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forma a noção de adequação, que prevalece nas instituições e nas famílias, tem ofuscado isso. Dois textos, produzidos em situação de ensino, foram trazidos para a análise: o primeiro, escrito por estudante do 5º ano do Ensino Fundamental I (antiga 4ª série) de uma escola estadual da cidade de Campinas-SP, no decorrer de atividade realizada em casa; o segundo, elaborado por estudante do 8º ano do Ensino Fundamental II (antiga 7ª série), em sala de aula de uma escola particular bilíngue, também em Campinas-SP. O primeiro foi escrito em ato isolado – criança, lápis e papel. Deste, temos a filmagem do momento da produção: a progressão do texto no papel, as pausas entre a colocação de uma expressão e outra, o olhar e os movimentos da criança. O segundo surgiu de uma proposta escolar elaborada pela professora e desenvolvida por seus alunos do 8o ano2. Deste, temos o registro de episódios de sala de aula registrados pela professora-pesquisadora que antecederam e sucederam o desenvolvimento da produção. São de épocas e de situações distintas (final dos anos de 1990, o primeiro, e de 2000, o segundo). Em comum, têm o fato de terem sido objetos de investigações anteriores no campo da Aquisição da Escrita e da Linguística Textual (BUIN, 2002 e 2013), possibilitando o resgate do registro das situações contextuais em que foram produzidos. Agora, com foco no campo aplicado dos estudos da linguagem, os mesmos dados possibilitam capturar dois eventos de escrita como acontecimento, nos termos de Corrêa (2007). Em relação aos aspectos linguísticos, os textos focalizados possibilitam a reflexão sobre a construção da referência como algo muito mais complexo que a simples relação entre termo linguístico e o mundo extralinguístico, espécie de etiquetagem entre o termo e o objeto no mundo, como postulado tradicionalmente (LYONS, 1968). Nossa opção, seguindo autores como Mondada & Dubois (1995); Koch & Marcuschi (1998), Cardoso (2003), é a de usar o termo referenciação, cuja acepção coloca o fenômeno no âmbito de uma atividade discursiva, que envolve 2

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Por opção das professoras de Língua Portuguesa, a escola não adotava livro didático. Os materiais de leitura e produção de texto eram produzidos e/ou disponibilizados pelos próprias professoras. Os alunos apenas adquiriam os livros de leitura (paradidáticos) e uma gramática para consulta.

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experiências, escolhas e intenções. A ideia é discorrer acerca da cadeia anafórica, do planejamento que antecedeu a escrita em si, sobre personagens, e desmontar o que parecia estável, como “produto”, e, no remontar, tentar tornar o mais transparente possível as intenções, as implicitudes que fazem do texto um acontecimento a ler (PÊCHEUX, 1990). Para mostrar essa possibilidade, apresentamos, em primeiro lugar, algumas considerações a respeito das noções de adequação e acontecimento, para, em seguida, apresentar um texto produzido pelo aluno do Ensino Fundamental I, da escola pública e, posteriormente, o da aluna do Fundamental II, da escola particular. A atenção volta-se para a construção da cadeia anafórica das expressões referenciais e para as marcas de reelaboração, elementos que nos fornecem hipóteses dos passos do sujeito na elaboração do seu texto como acontecimento. Após essa etapa, passamos às considerações finais. 1. AS NOÇÕES DE ADEQUAÇÃO E ACONTECIMENTO Ao refletir sobre o que é considerado novo em um texto, Corrêa (2006; 2007) apresenta duas concepções que podem nortear o ensino da escrita: a noção de adequação, há muito tempo em pauta no ensino [termo recorrente nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997)], e a noção de acontecimento discursivo, emprestada a Pêcheux (1990) e da qual é tributário. A primeira noção, tradicionalmente, remete à necessidade de adequar a linguagem à situação de produção. Em Barzotto (2004), conforme retoma Corrêa (2006), o autor critica as posições enunciativas de pedagogos e linguistas que, em relação às variedades linguísticas, utilizam as formas verbais “respeitar”, “valorizar” e “adequar”. Estas posições ressaltam a desvalorização, o desrespeito e a inadequação de certas variedades em relação àquela de maior prestígio. Isso nos traz à lembrança Rezende (2006), a qual, ao discutir a diversidade experiencial e linguística em sala de aula, problematiza a adequação em torno das variantes linguísticas:

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[...] a questão é saber se as pessoas ficam incólumes aos contatos, ou se elas se transformam e na busca do equilíbrio, de identidade, de unidade, o indivíduo, no lugar de apertar os botões das variáveis e colocá-las alternadamente em uso segundo as situações, não constrói para si próprio uma unidade que seria a sua trajetória de experiência e que consistiria no seu estilo, na sua subjetividade, resultado de suas interações com o outro e com o meio-ambiente (REZENDE, 2006, p.14-15).

A autora enfatiza, no processo de adequação, a experiência, a dinamicidade, a transformação. Em relação às variedades, não se trata de uma passagem automática entre uma e outra. Em relação à oralidade e à escrita, Marcuschi (1998), também retomado por Corrêa, considera que dizer as coisas adequadamente leva a crer que os sentidos já estariam prontos em algum lugar, ficando a cargo dos falantes apenas identificá-los. Tal posicionamento desconsidera que “o uso da língua é também uma atividade em que organizamos o mundo construindo representações sociais e cognitivas” (MARCUSCHI, 1998). Com base nas críticas de Barzotto e de Marcuschi, Corrêa (2006) propõe-se a refletir a respeito da noção de adequação no ensino da escrita. Para ele, fundamentar-se nessa perspectiva seria repor integralmente a dicotomia já superada entre o falado e o escrito: escrever adequadamente seria aprofundar o abismo entre forma escrita e forma falada. O autor defende, em oposição a essa dicotomia, a heterogeneidade constitutiva da escrita, isto é, o fato de na escrita ocorrer uma hibridização constitutiva de práticas orais e letradas. Diante de seu posicionamento, Corrêa propõe uma nova visão na noção de adequação: A adequação não se dirige a um ponto já previsto, estático, situado no final do processo de ensinoaprendizagem e alheio ao processo de produção do sentido. Pelo contrário, ela é a sua própria construção, o seu fazer na novidade das situações e de seus atores, tão nova, portanto, quanto qualquer produção de sentido.

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Pensar a escrita segundo essa nova ideia de adequação desmantela, de imediato, a prática que se baseia em enfatizar os produtos, isto é, em última instância, a velha prática do decalque de modelos de textos, às vezes mascarada com novas noções, como, por exemplo, as atividades dirigidas ao adestramento do aluno em uma série de gêneros textuais (CORRÊA, 2006, p. 280-281).

Da afirmação de Corrêa (2006), podemos depreender que a adequação, tal qual utilizada no ensino, desconsidera o caráter processual e dinâmico inerente à linguagem e à construção de sentidos como se a passagem de um ponto “não adequado” a um ponto “adequado” acontecesse instantaneamente e, inclusive, igualmente para todos os indivíduos. Corrêa questiona esse sentido tradicional de adequação e, ao propor uma nova visão, aproxima-a à noção de acontecimento discursivo, defendendo que “há, sempre, uma novidade na reapresentação do ‘adequado’” (CORRÊA, 2007, p.203). Entende o acontecimento como uma dupla questão de experiência: no sentido da novidade que toda reapresentação da experiência traz e no sentido de retomada do já experimentado, compreendido como a memória discursiva (o entrecruzamento entre memória mítica, memória social e memória do historiador), aquilo que permite reestabelecer os implícitos necessários à legibilidade de um texto como acontecimento a ler. Passemos a observar, nos textos escolhidos para análise, como essas duas noções podem influenciar no processo de ensino da escrita. 2. A CONSTRUÇÃO DO HUMOR O texto em foco foi redigido por Cauã3, em sua casa, quando estava na 4ª série do 1º grau (atual 5º ano do Ensino Fundamental I). Foi selecionado, qualitativamente, entre vários outros que produziu ao longo de um ano e meio, porque, em sua singularidade4, revelou aspectos importantes do processo de aquisição da escrita, em especial, da construção da referência e do planejamento do texto. A proposta que motivou a escrita foi a seguinte: 3 4

Nome fictício, como todos os outros neste artigo. O dado de Cauã, especificamente, foi selecionado com base no Paradigma Indiciário (BUIN, 2002).

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Imagine que você entrou em uma lanchonete, fez um lanche e descobriu que não tinha dinheiro suficiente para pagar. Você teve que se entender com o gerente. Elabore um texto em que você e o gerente sejam os personagens.

O momento de produção da narrativa está inteiramente filmado5, com registros de todos os movimentos do lápis no papel, possibilitando as considerações que faremos. Cauã ficou quase todo o tempo sozinho no ambiente, enquanto escrevia, concentrado. Segue o texto em sua primeira versão:

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O aluno participou das aulas de produção de textos semanais, durante pouco mais de um ano. As aulas, que tinham por objetivo, além de aperfeiçoar a escrita dos envolvidos, fornecer material para uma pesquisa em Aquisição da Escrita, eram filmadas. Uma semana acontecia na casa de Cauã e, na seguinte, na casa de Laura, colega que participava com ele dos encontros. No dia em que Cauã redigiu o texto analisado neste artigo, estava sozinho, possibilitando que a câmera ficasse focada apenas nele. Como todos os encontros eram filmados, tanto ele quanto sua colega estavam muito acostumados com a câmera e agiam naturalmente.

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Rafael foi até a lanchonete tomar um lanch lanchinho. Ele pediu pediu uma sanduba, serto que tudo iria dar + ou – uns 10,00R$ (coma com a cerveja e). Mas ele Rafael acabou comendo 3 sandubas, E tomando 8 cervejas! Ele pediu a conta meio bêbado: − Pooorrr faaf favor, mee dá aaa commmmtttáá! − A Aqui está senhor. – disse o garçom. Na hora que Rafael vê a conta ele se assusta, a conta tinha dado R$28,00 (vinte e oito reais). E o garçom vem novamente para pegar o dinheiro e diz: − Euuu nãão posssssso pagar! – diz ele bêbado (disse ele). − Ou paga ou terá que

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Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente se ver com o gerente! – falou o garçom − Pois saiba que nãaaaaoooo vou pagar! − Então vou levalo ao gerente!!! E foi o que fez. Eles conversaram e discutiram durante horas. Eles diziam (uns um ao outro) − Você vai pagar! − Não vou não! − Então eu cham chamo a polícia! − Pode chamar! não tenho medo! − Pois ou você paga ou vai para a cadeia!! − Mas eu só estou com dez reais. − Não me emporta!! − O que eu posso fazer como pagamento? − Bom para começar, você pode lavar a cozinha, depois o banheiro, depois os pratos, depois blá blá, blá blá, ...!!! No final ele acabou fazendo, não tinha outra alternativa mesmo. E ele aprendeu que nunca mais se deve gastar mais mais do que ganha. E de lá daquele d aquele dia em diante ele nunca mais arrumou encrenca em um restaurante, pois ele pensava: “Ai, ai, Ai, ai, melhor me comportar do que ter que esfregar o restaurante.

Cauã conta a história da personagem que consome vários itens em uma lanchonete e não tem dinheiro para pagar a conta. Provavelmente, pensando em um possível interlocutor (ou mesmo um interlocutor específico - é certo que a professora leria o texto), preocupa-se em deixar claro a que se refere “tudo”, na segunda linha. Não só a lanchinho ou sanduba, que é o elemento que antecede, mas também à cerveja, que escreveu posteriormente entre parênteses. O escrevente sabe a referência de tudo, mas e o leitor, saberia? ... Quando escreveu o elemento anafórico “tudo”, deve ter pensado no lanchinho, que denota um conjunto de alimentos: bebida, lanche (sinônimo de sanduíche), bolacha, suco etc. Observa-se que ele diz tomar um lanchinho e não comer um lanchinho. O próprio enunciado da proposta de produção de textos pode ser considerado ambíguo: “fez um lanche” - “tomou um 66

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lanche” ou “comeu um lanche”? Temos dois referentes para uma única palavra. Lanchinho pode significar um pão com alguns ingredientes ou o conjunto de alimentos e o ato de ingeri-los em uma refeição. Podemos formular a hipótese de que tudo é uma anáfora que se refere a este último significado. Entretanto, não é lanchinho que antecede a anáfora, elemento mais próximo, mas sanduba, termo utilizado na gíria, sinônimo de sanduíche, “lanche” ou “lanchinho” (pão com recheios diversos ou com um único recheio). Consciente de que tudo não poderia referir-se a sanduba, Cauã escreve, entre parênteses, com a cerveja, a fim de garantir a referência. É possível observar, ainda, que Cauã escreveu e, no interior dos parênteses, parou e ficou pensando (fato recuperado pela gravação em vídeo), muito provavelmente refletindo a respeito do que havia acabado de escrever, a conjunção aditiva. Ao retomar o texto, Cauã continua sua reflexão e elimina o e. A relevância desse episódio é que, provavelmente, a criança pensou em construir uma referência catafórica para tudo: cerveja e sanduba e concluiu que não precisava repetir o que já havia especificado, − sanduba, pois ficaria redundante. Além disso, esse fato pode confirmar a hipótese de que tudo é uma anáfora que se refere a lanchinho com o significado de fazer uma refeição – comer um sanduba, tomar uma cerveja. Há outro elemento a destacar: o fato de Cauã ter apagado lanch e logo em seguida ter escrito lanchinho. Atitude que os professores e as pessoas em geral considerariam “banal”, mas que registra, na verdade, um trabalho epilinguístico, ou seja, a reflexão e o raciocínio do sujeito com e sobre a linguagem – desde o início do texto, há trabalho do sujeito com a referência. Essa alteração é diferente daquelas que realiza no parágrafo seguinte: altera a palavra pediu, cujo u aparece com uma perna a mais e com a que altera para com. A perna a mais de pediu poderia indicar que estava para escrever junto pediuum; coma deveria ser “com a”. Nesses dois casos, as mudanças, que não foram seguidas de pausa (como ocorre na escrita lanch/lanchinho), visaram apenas à segmentação correta das palavras. No outro caso, a alteração parece relacionar-se com a elaboração do sentido.

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Além da pausa captada pela câmera poder estar relacionada à ativação cognitiva da expressão, como tempo necessário para o planejamento do texto, arriscamos outra suposição: não estaria também dedicando tempo ao exame da memória discursiva, que faz parte da memória coletiva? Uma pausa, por mais longa que possa ser, é muito curta em relação à ancestralidade da memória (mesmo a de uma criança), a qual excede o tempo de vida de uma pessoa, já que é sempre parte da memória coletiva. Neste caso, é possível retomar a oposição entre a fruição dos prazeres da vida (comer e beber à vontade) e o trabalho como castigo (esfregar o restaurante). É interessante como o trabalho, ao mesmo tempo em que é posto como “moeda” de troca, é também uma lição de moral. Muito além das dificuldades com a língua portuguesa propriamente dita está a dificuldade de escolher o que pode e o que deve ser dito. E, no caso do texto em análise, escolher o que pode ou não ser satirizado. Consideramos que a preocupação com a referência de lanche possivelmente está atrelada à tentativa do sujeito de construir “humor”. Propositadamente, usou o diminutivo para criar um clima cômico quando revelasse, depois, quanto a personagem consumiu: nada modesto, mas um “lanchão”. Temos a impressão de que Cauã planejou o seu texto exatamente nesse episódio – momento em que o vídeo mostra uma longa pausa. A reformulação da palavra parece concentrar toda a decisão do encaminhamento que dará ao texto. No caso, a construção do efeito de humor. Essa hipótese pode ser confirmada pelo que observamos no vídeo. Cauã primeiro lê a proposta e fica parado por alguns segundos. A professora (P.) comenta: P. Use a imaginação. Ele ainda prolonga a pausa, faz uma tentativa de iniciar o primeiro parágrafo - parece escrever algumas letras no mesmo lugar, sem se encostar ao papel, e, em seguida, pergunta: C. Mas onde é que eu começo? ... Como é que eu começo?

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O diálogo continua: P. Onde você começa? C. Eu começo da onde? É::: com/quando ele já está com o gerente? Quando ele ... (confuso, não deu para entender) P. Quando ele foi para a lanchonete. C. Ãh::: Eu posso dar nome? P. (responde afirmativamente, mas não é possível decifrar quais palavras usa exatamente) (Ocorre aqui uma pausa) P. Você está optando por não falar de você, por falar de outra pessoa.

A primeira palavra que escreve é o nome Rafael. Depois de pensar de maneira geral o que vai escrever e como iniciar o texto, a preocupação é com a referenciação, que parece ser a peça chave para o próprio planejamento. Depois que escreve a palavra lanchinho, faz uma pausa mais longa, interrompida ao colocar um sinal de ponto final, bem destacado. Enquanto fricciona o lápis para formar o ponto final, parece refletir em torno do que vai escrever, do que deve ou não dizer. É nesse intervalo que a professora sai de cena e ele fica sozinho no ambiente. No início do terceiro parágrafo, Cauã opta por substituir “ele” por “Rafael”. Pelo vídeo, observamos que tomou essa resolução logo que terminou de escrever comendo, na mesma linha. Poderíamos dizer que realizou essa substituição apenas para evitar repetir ele, presente no parágrafo anterior. Porém, o fato de repetir várias vezes o pronome de terceira pessoa no final do texto pode invalidar esta hipótese. Podemos pensar que o escrevente decidiu nomear a personagem por se tratar de um “ponto forte” de seu texto, o clímax, que desencadeia todo o desenvolvimento da narrativa. Ele (substituído por “Rafael”) acabou comendo 3 sandubas e tomando 8 cervejas” − explicita os acontecimentos que vão dar origem à trama narrativa – a falta de moderação e a gula do personagem levam ao problema pedido pelo tema – não ter dinheiro suficiente para pagar a conta. Ocorre, neste momento da construção do texto, uma mudança de categoria narrativa; inicia-se o que pode ser chamado de complicação.

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A mudança de categoria narrativa é o que Marslen-Wilson & Levy & Tyler (1982) dizem que ocorre em uma mudança de episódio narrativo − quando se muda de episódio e aparece novo quadro, neste caso, o escritor geralmente opta pelo uso de uma expressão definida e não de um pronome, mesmo que o uso deste último não cause nenhum problema de coerência. Descartamos, em nossa análise, o “acaso”. O indivíduo tem a seu dispor uma série de alternativas para designar os mesmos referentes. A opção pelo uso de Rafael e não ele, em determinado momento da narrativa, partiu de uma escolha (que pode até ter sido inconsciente). Não consideramos a substituição um ato mecânico, mas uma operação epilinguística que revela um processo cognitivo de trabalho com a linguagem. A proposta solicitava que, em algum episódio da narrativa, a personagem estivesse sem recursos para pagar seu consumo. Ao ler, imediatamente Cauã comentou que não gostaria de fazer parte da história. Perguntou se poderia colocar outro no lugar: Rafael (nome de um menino da sua classe). Cauã opta por não utilizar a primeira pessoa porque, provavelmente, a criação de uma história em que a personagem apresenta características prédeterminadas pela proposta (que consome e não tem dinheiro para pagar) provoca um distanciamento entre ele e sua personagem. Para uma criança pode, às vezes, ser complicado imaginar uma personagem, em um texto narrado em primeira pessoa, com a qual não quer se identificar. A escolha do nome Rafael não foi feita ao acaso: trata-se de um colega da classe de Cauã, com quem não “se dava muito bem”, descrevendo-o como aquele que não fazia nada direito e que era bagunceiro. Uma colega comum com quem Cauã convivia6, tanto dentro quanto fora do ambiente escolar, entretanto, gostava muito de Rafael, a ponto de “sugerir” estar apaixonada por ele. Foi mais conveniente para Cauã “aproximar” sua personagem de alguém com características que não apreciava, já que passaria por uma situação sarcástica e constrangedora. 6

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Trata-se da colega com quem Cauã participava semanalmente das aulas de Produção de Texto. No dia em que foi redigida a produção de texto aqui apresentada, esta colega não estava presente. Durante um ano, as aulas de produções de texto com as duas crianças foram videogravadas (cf.. BUIN, 2012), como parte dos procedimentos de geração de dados para pesquisa de mestrado.

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Por outro lado, apesar de Cauã desprestigiar o colega, parece haver nas ações de Rafael algo que merece a admiração dele. É o próprio Rafael quem busca resolver o problema da narrativa ao perguntar como poderia pagar a despesa. Desse modo, a personagem, ao final, aproxima-se do modelo defendido pelo narrador, de que é “melhor se comportar do que ter que esfregar o restaurante”. Nessa construção, a ordem da família e da escola é posta à prova e vence a desordem (ordem meio desviante) de Rafael. Se, por um lado, Cauã se distancia da personagem ao decidir narrar a história em 3ª pessoa, paradoxalmente, também busca a aproximação, ao fazer esta escolha. De um lado, a “negação” em nome dos valores morais, escolares e familiares e, de outro, o “encantamento” pelo rompimento desses valores (ainda que vençam aqueles). Por fim, podemos dizer que o eixo condutor da escrita de Cauã configura-se como a construção da situação de humor pela qual passa sua personagem. O trabalho linguístico na construção do sentido do texto é movido por questões sociais e ideológicas: a falta de dinheiro, o “lanchinho” com cerveja que traz uma prática social corriqueira, a falta de dinheiro para pagar a conta interpretada como falta de responsabilidade e, por isso, sujeita à punição: lavar todos os pratos sujos do restaurante. O sujeito mobiliza-se a escrever, em todas as etapas do processo, para colocar em evidência o acontecimento a ser partilhado com o leitor. Os elementos linguísticos que ele manipula vêm em função disso. Em outras palavras, na manipulação dos elementos linguísticos (a mecânica da escrita, as ativações da expressão, as escolhas lexicais), encontra-se a novidade do acontecimento, aquilo que capturamos de “diferente” no ato de escrever. Na escolha a respeito do que pode e/ou deve ser dito, o que é lícito ou não, o dever moral de apenas gastar na proporção permitida pelo capital, encontra-se a experiência do acontecimento, ou seja, a retomada do já experimentado. Para Corrêa (2007, p.227), o “já experimentado” não é simplesmente a memória do vivido empírico. O autor alerta que “muitas vivências simbólicas escapam à remissão a uma ocorrência linguística particular, mas podem ser pensadas como feixes de enunciados que, de idades e de espaços díspares, cruzam-se e atuam, por recorrência ou apagamento, sobre a dis-

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persão das lembranças para compor a memória” (2007, p.204). As vivências simbólicas, segundo Corrêa, não atuam apenas nas lembranças, mas também na redefinição, na transformação, no esquecimento, na ruptura, na denegação do já-dito. 2.1 A MUDANÇA DE PONTO DE VISTA A proposta que gerou o texto de Marina, materializado em um gênero de tipologia narrativa, era a de que os alunos do 7º ano mudassem o foco narrativo de um conto. Diferentemente do texto anterior, o desenvolvimento da proposta não foi filmado; por isso, os elementos contextuais referentes à produção foram resgatados por registros de diário de campo da professorapesquisadora. O desafio era fazer, além da troca do foco narrativo, as alterações no cotexto, necessárias (concordância verbal e nominal, mudanças de adjetivos, alteração de discursos direto/indireto etc.), que permitissem a construção coerente do narrador em primeira pessoa. O aluno deveria colocar-se no lugar do outro, imaginando como, diante de suas características específicas, comportaria-se em determinadas situações. Longe de ser mecânica, trata-se de atividade complexa que requer competência linguística e discursiva para ser realizada. Marina apresentava sérios problemas de grafia e fazia acompanhamento com fonoaudióloga. Alguns professores diziam que não estava alfabetizada, e que, por isso, só o trabalho daquela profissional não trazia resultados positivos. Tanto a professora de Língua Portuguesa (da frente7 de gramática), que será tratada por Jacira, quanto a professora de História, tratada por Rose, mediante listas e mais listas de problemas gráficos e trechos escritos, considerados por elas confusos, defendiam que Marina precisaria ser “realfabetizada”. Curiosamente, a estudante “não alfabetizada” tinha uma participação ativa nas aulas de Produção de Texto. Animava-se com as propostas e adorava ler suas “histórias” para a classe. O 7

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Na escola particular bilíngue em que foi coletada a produção textual de Marina, o ensino de língua portuguesa era dividido em duas frentes separadas, cada qual com um professor específico: Leitura e Produção de texto e Gramática.

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envolvimento nessas aulas vinha melhorando gradualmente; na série anterior, tinha dificuldade de ler qualquer texto em voz alta e escrevia pouco. A narrativa a ser analisada foi uma das que a professora da frente de Leitura e Produção de Texto, Elise, usou, em reunião com o diretor, com outros professores e com a fonoaudióloga, para defender que Marina não era um caso de “realfabetização” (como nenhum outro seria!) ou de “dislexia”, como insistiam alguns. Foi escrita com base na leitura de um pequeno conto de Fernando Sabino, Minha casta Dulcineia. Este conto foi objeto de leitura porque, na época, estava sendo apresentada, pela Rede Globo, uma novela (que a maioria dos alunos de 12/13 anos acompanhava!) em que uma das personagens principais se chamava Capitu, uma prostituta romântica. O nome Capitu passou a significar, entre os alunos, uma espécie de “modelo de sedução” – a aparência física da personagem, representada pela atriz Giovana Antonelli, era modelo de beleza para as meninas e de objeto de “desejo” para os meninos. Além disso, há relato da professora de situações em que os alunos usavam o nome “Capitu” para maliciar uma situação qualquer entre eles. Diante desse contexto, a professora Elise resolveu contar a eles a história da personagem Capitu, de Machado de Assis, em Dom Casmurro, lugar de onde se origina o “famoso” nome. No livro, tal personagem não é prostituta – falaram do percurso de sua vida, cenas de sua infância, o namoro e casamento com Bentinho e o fim desse casamento pela desconfiança de Bentinho da possível traição da esposa com Escobar, seu melhor amigo. Discutiram a respeito da dúvida de Capitu ter traído ou não o marido e sobre o impasse entre uma possível personalidade dissimulada de Capitu e o ciúme doentio de Bentinho. Leram vários trechos juntos (o livro estava na lista do Ensino Médio, fase em que o leriam na íntegra). A ideia era a de que os alunos se apoderassem da referência literária do nome e não gravassem apenas aquela personagem criada pela telenovela. A professora conduziu conversa a respeito de outra perspectiva de prostituta, nada romântica, como a personagem da novela – falaram das doenças sexualmente transmissíveis, da degradação do corpo a que elas estão sujeitas, dos lugares onde 73

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ficam na cidade (tanto as consideradas “de luxo” quanto as mais pobres), dos perigos em que se envolvem, etc. Posteriormente, os alunos leram o conto de Fernando Sabino, para identificarem a visão literária, romântica de prostituta, não tão romântica como a da novela; no conto, ela é mulher, feia, preta e perseguida pela polícia. O objetivo, como foi dito, era que os alunos construíssem um “objeto de discurso” diferente daquele idealizado pela telenovela. Em Minha casta Dulcineia8, o narrador é o rapaz que observa os acontecimentos e salva uma prostituta de ser capturada pela polícia, posicionando-se como um cavaleiro andante, o próprio Dom Quixote, alçando a jovem ao lugar de Dulcineia, daí a razão do título. O conto é narrado em primeira pessoa pelo personagem, que se encontra em uma esquina de Copacabana. Duas amigas “desavisadas e tranquilas”, ambas “pobres e feias”, aparecem nas proximidades às duas horas da madrugada: uma delas descrita como “mulata e alta” e a outra, “baixa e tão preta que só o vestido se destaca dentro da noite”. Quando a polícia chega ao local, a primeira das amigas é capturada e vai para o camburão. A segunda, referida por “pretinha”, encolhe-se ao lado de um moço, o narrador, tentando ocultar-se e, desesperada, pede ajuda. Este lhe toma o braço e finge estar acompanhado, despistando a polícia, que já está ao lado deles num carro preto. Quando a polícia vai embora, a pretinha faz um trejeito agradecendo seu salvador, que pronuncia, na condição de fidalgo: “Eu é que agradeço, minha senhora”. O narrador finaliza o conto, dizendo: “Tomo alegremente o meu ônibus e vou para a casa com a alma leve, pensando na existência daquelas pequenas coisas, como diria o poeta, pelas quais os homens morrem”. Em sala de aula, os alunos e a professora conversaram longamente a respeito da visão do personagem “romântico” que prevalece, totalmente inspirado em Dom Quixote. O dia-a-dia das mulheres que fazem “a chamada vida fácil” (conforme palavras de Sabino), no cenário retratado pelo conto, tem, não necessariamente, algo a ver com essa visão particular do fidalgo. Os 8

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Sabino, Fernando. Minha Casta Dulcineia. Em: A mulher do vizinho, 8ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1962.

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alunos, então, recontaram por escrito o “mesmo” conto, sob outro ponto-de-vista. Muitos construíram uma história bastante triste, baseada em possibilidades reais. Outros somente alteraram o nome do narrador e algumas marcas formais, mantendo, no entanto, a perspectiva do narrador antigo. O texto de Marina, exposto a seguir, é uma segunda versão, em que parte dos problemas gráficos havia sido resolvida. Ela manteve um tom romântico e fiel ao novo narrador, que é a moça salva por aquele rapaz.

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Diferentemente de Cauã, as marcas de reelaboração da segunda versão do texto de Marina visam à convenção da grafia. No quinto parágrafo, por exemplo, não sabemos se a palavra consegui está grafada com s ou com c – possivelmente a aluna deixou sua própria dúvida registrada graficamente. No 6º parágrafo (2ª linha da 2ª página), é possível perceber que ela ficou em dúvida entre colocar s ou z em talvez – deve ter alternado várias vezes entre um e outro, até que resolve riscar tudo e escrever novamente com a escolha acertada do z. Interessante ressaltar que a preocupação com a ortografia parece vir em função do acontecimento que a aluna tem a narrar (e não pela ortografia em si), conforme veremos. O título da narrativa “Ponto de vista da ‘preta’” tem relação com o texto original, que usa a expressão pretinha para se referir

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à moça que é perseguida pela polícia. A aluna pode ter usado aspas para chamar a atenção, por considerar, por exemplo, que esse não é um nome de gente. Por outro lado, pode-se imaginar que, ao usar as aspas, Marina marca a voz do outro, tirando da sua responsabilidade essa maneira deselegante (conforme demonstrou considerar em sala de aula) de se referir àquela que narrará seu texto. Saber utilizar as aspas como um recurso para trazer aquilo que vem de outro sem se comprometer. Alguns elementos são transpostos do texto original (e vêm sem as aspas, pois não há julgamentos), como a rua quieta e a sequência dos acontecimentos, mas, diferentemente da maioria dos textos dos alunos da mesma série, de acordo com o ponto de vista do novo narrador. À rua quieta, Marina acrescentou sem nenhum piu - uma maneira particular de enfatizar a quietude da rua. E, à sequência dos acontecimentos, foi acrescentado o estado da amiga relatado pela personagem: nervosismo – minha amiga apertou minha mão e dava para ver o quanto ela estava nervosa. Mudado o foco narrativo, essa parece ser uma informação relevante para a construção do texto, possível de ser visualizada pela narradora. As moças seguem andando e Preta assume seu posicionamento quando diz: “fomos falando um monte de bobagens tipo qual era nosso sonho para o futuro”. Pela expressão, a personagem banaliza algo importante – os próprios sonhos – o que ajuda a construir a narrativa de forma coerente, dado o fim colocado para a amiga e ao qual ela própria está sujeita. A frase mostra que o texto realmente ganhou outro ponto de vista, marcando, coerentemente, a tomada de posição do personagem. Aparentemente, essa troca pode parecer simples, mas já não é tão simples quando se sabe da dificuldade da maioria dos alunos de se colocarem no lugar discursivo do outro. A prostituta capturada na narrativa original ganha um nome, “Elena”, e isso não ocorre por culpa de seus atos e sim por causa do “azar” de estar usando um salto enorme. A expressão referencial “o azar de Elena” não é qualquer expressão – contém toda uma avaliação da personagem sobre uma “causa” da captura da amiga. Cabe enfatizar que, do ponto de vista da aluna, é o salto alto o foco do problema e não o fato de estar fazendo algo ilí77

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cito. A personagem-narradora ouve os gritos da amiga pedindo que ela fuja e é salva pelo moço bom, que finge estar com ela. Apesar de salva, seu coração está quebrado, pois ficaria sete anos sem ver a amiga. No universo de Marina, esta seria a pena para as garotas que faziam “a chamada vida fácil”, como dito pelo narrador de Sabino. A interpretação de que Elena é uma prostituta vem do contexto da produção textual e das discussões que antecederam a leitura do conto Minha casta Dulcinéia. O texto de Marina não fala explicitamente de prostitutas. Em verdade, o texto da aluna não deixa claro que a narradora apresenta a si própria e à amiga como prostitutas ou mesmo se, para ela, prostituta e garota de programa têm significados parecidos ou diferentes. Conhecendo a origem dessa escrita e que, na abordagem dos alunos (que era a mesma da telenovela), essas expressões tinham o mesmo significado, tal interpretação parece viável. A expressão usada por Marina no primeiro parágrafo – programa da noite – pode confirmar isso. Entre outros textos de vários alunos, o de Marina foi um dos usados para uma discussão em sala de aula, a respeito da construção de narrador em primeira pessoa, visando mostrar que mecanismos linguísticos permitem a manutenção da coerência, pela alternância do foco narrativo. Em virtude disso, a aluna leu o texto, de forma dramatizada, para a classe. A forma como Marina articula o enredo faz com que, embora baseado no texto original, seja uma novidade, uma vez que lhe confere autoria, conforme a análise de Possenti (2001). Ela contou a mesma história do texto original, assim como outros alunos o fizeram (também mudando o foco narrativo); a diferença é a forma como Marina desenvolveu a tarefa. Ao invés de reproduzir trechos, alterando a concordância, a aluna acrescenta novos elementos, como alguns verbos, adjetivos e sintagmas nominais, como apertou, nervosa, coração quebrado, que caracterizam o estado emocional da personagem narradora. Tais elementos linguísticos trazem a novidade do acontecimento. Por outro lado, a perspectiva da aluna faz parte de algo que ela, ficcionalmente, vivenciou – uma retomada de memória, portanto, que é a experiência do acontecimento.

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Nesse sentido, parece haver uma aproximação entre Marina e sua personagem, possibilitada por uma conquista pessoal. “Preta” passa da condição de fraca diante da polícia à condição de amparada por um fato inédito para ela: ser salva por um príncipe encantado, ainda que por uma necessidade premente e de aparência. Marina passa a escrever como não fazia antes na escola e a ser reconhecida por seus colegas por sua habilidade de expressão. O que pode ter levado Marina a se envolver tanto com seu texto? A reordenação do comportamento de Preta para o comportamento socialmente esperado para uma moça (andar ao lado do príncipe) pode representar a força de uma reordenação da expressão de Marina por meio da escrita. O fato de a estudante não desenvolver antes sua expressão escrita poderia estar relacionado ao sentimento de desproteção quanto às novas inseguranças. Ela reverte a situação na medida em que se sente protegida pelo grupo, pela professora. E mais: ainda dá uma chance para a moça capturada no conto. A prostituta punida pela polícia ganha nome na história de Marina e se aproxima das potencialidades da amiga que foi salva. Elena também seria capaz de reordenar seu comportamento ao esperado socialmente no caso de um encontro amoroso. Como foi dito no início desta seção, o texto foi lido pela professora Elise em uma reunião pedagógica, na tentativa de evidenciar que a aluna apresentava qualidades importantes na expressão escrita. Todos ficaram calados ao ouvir a narrativa de Marina. Felizmente, a fonoaudióloga a apoiou, e nunca mais se ouviu falar em “realfabetização” para a aluna. Isso marcou um momento significativo do encaminhamento ao tratamento institucional dado a essa aluna: de uma aluna a ser “realfabetizada”, passa a ser a aluna-autora, capaz de criar e construir, pela escrita, situações e episódios interessantes, acontecimentos a serem lidos. Como explicitado, Marina chegou ao 6º ano praticamente sem escrever (ou apresentando uma escrita “truncada”). Provavelmente, os problemas de grafia que apresentava causavam uma imagem negativa para os professores das séries anteriores e o tipo de interlocução (incluindo a imagem que um interlocutor constrói do outro) que com eles foi estabelecido não contribuiu 79

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para seu desenvolvimento (o tipo de interlocução estabelecido com as professoras Rose e Jacira, a princípio, continuou no mesmo sentido). No caso exemplificado por esses professores, o sujeito Marina estava sendo construído de uma forma demasiadamente negativa. Do momento em que, com a professora Elise (e, consequentemente com a classe), foi estabelecido outro tipo de interlocução, a escrita da aluna começou a fluir. O sujeito passou a ser construído, pela linguagem, na interlocução, de uma forma positiva. Esse “outro tipo de interlocução” remete a diálogos firmados pelo que a aluna sabe, pelo estímulo proveniente de muitas situações de oralidade (que integrava a maioria das aulas). Estabelecer o diálogo a partir do que o interlocutor sabe tem como consequência a construção de uma imagem positiva desse outro. Para os alunos da turma de Marina, as aulas de produção de texto tinham um espaço para a exposição de ideias, de socialização oral do que havia sido construído via escrita ou do que ainda seria construído. Nessas situações, os alunos não só cumpriam tarefas escolares (escrever redações). Seus textos fizeram com que se expusessem para o grupo, que respondessem a uma situação anterior (nem sempre do conhecimento do professor), ou ainda, que brigassem com outro diante daquilo que não consideravam justo, etc. Desse modo, o avanço de Marina, em relação à aquisição da grafia padrão, vai ocorrendo em função da dinâmica do grupo, ou seja, em função de ela tomar o texto como algo significativo a ser compartilhado, em um primeiro momento, com os colegas da classe. Quando, institucionalmente, e com o apoio de outros profissionais, houve a construção de uma imagem positiva de Marina, sua escrita, em outras disciplinas, passou a melhorar, concomitantemente à sua desenvoltura oral. O mesmo ocorreu com a sua dinamicidade nos trabalhos promovidos pela escola. Nas aulas de gramática, entretanto, continuou a não se desempenhar bem. A Marina da professora Jacira era muito diferente da Marina, aluna da professora Elise.

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No dia da formatura do Middle School, que corresponde ao final do 9º ano no programa brasileiro9, dia do lançamento do livro de narrativas da classe, Marina foi triplamente parabenizada: além da formatura e do livro, a professora Rose a premiou como a aluna com melhor desempenho nos serviços comunitários10. Rose chorou demasiadamente. É muito provável que quase ninguém tenha entendido o motivo real de tanto choro: Marina havia transformado em areia uma das pedras que, um dia, esteve no seu caminho. A professora de Língua Portuguesa da frente de literatura e gramática, Jacira, continuou “desconfiada” a respeito de Marina; usando de diplomacia e “espírito político”, conteve-se em não compartilhar seu referente (negativo) Marina, uma vez que não contava mais com o apoio de ninguém. Ela continuou construindo outros sujeitos da forma como construiu essa aluna, com base na abordagem da sua disciplina. Embora a professora Elise tenha dado atenção aos erros gráficos do texto aqui analisado, esse não foi seu foco na passagem da primeira para a segunda versão. A mudança de várias palavras para a grafia padrão, bem como a escolha das expressões referenciais, ou seja, a novidade do acontecimento, deu-se em função do objetivo: compartilhar um episódio ocorrido no ambiente urbano com leitores; e não em função de adequar à escrita padrão. Ao invés de o texto ser tomado como algo a ser “adequado”, foi tomado, intuitivamente, como um “acontecimento” a ser compartilhado. Foi a noção de escrita filiada à noção de acontecimento, de modo intuitivo tanto da parte da professora quanto dos alunos, ou seja, a experiência do acontecimento, que contribuiu significativamente para a mudança do percurso que Marina estava tomando na escola e, consequentemente, para o seu sucesso em Língua Portuguesa (entendida em seu sentido amplo, não só de uma frente ou outra) e em outras disciplinas.

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A escola americana é composta pelo currículo brasileiro e pelo currículo americano. Os alunos têm opção de frequentar e se diplomar nos dois programas de ensino - brasileiro e americano - ou apenas no americano. Como parte das atividades do programa americano, os alunos precisavam cumprir um número de horas extraclasse em atividades para a comunidade, por isso visitavam creches públicas, asilos e contribuíam, inclusive, arrecadando recursos materiais.

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PALAVRAS FINAIS A escrita, como exemplifica cada um dos dados, é uma atividade individual e coletiva ao mesmo tempo. No caso do texto de Cauã, o foco é dado para a escrita como algo solitário – atividade silenciosa entre sujeito e seus dizeres, mas feito em função do coletivo – a criação do humor para o outro fundamentalmente. No caso de Marina, algo originário das discussões no grupo e em função do retorno ao coletivo, dada a dinâmica da sala de aula da qual a autora fazia parte, mas individual no momento da escrita e das decisões que toma entre uma grafia e outra, entre o leque de possibilidades de expressões que a língua oferece. Tratar as escritas escolares sobre o prisma da noção de adequação (adequação à ortografia, ao gênero proposto), modo infelizmente predominante ainda atualmente, é correr o forte risco de não contribuir com (ou atrapalhar) o desenvolvimento da expressão escrita do aluno. No caso de Cauã, o humor criado poderia passar despercebido e as recomendações, voltadas para eliminar rasuras, acertar a concordância, eliminar repetições excessivas. As situações por ele trazidas (que refletem discursos carregados de valores, crenças e ideologias) poderiam ser tomadas como desprezíveis, sem importância. No caso de Marina, a concepção de linguagem sob o prisma de certo conceito de adequação poderia resultar, na prática, no encaminhamento da aluna para um profissional que a (re)alfabetizasse, expondo-a a textos de cartilhas com ba, be, bi, bo, bu, desprovidos de significados, desestimulando-a e “travando-a” ainda mais. Nos dois casos, tal noção poderia levar à perda de oportunidades preciosas de interação e conhecimento dos alunos, contribuindo a médio ou longo prazo para a produção de escritas escolares vazias, pobres de significados e de estrutura, por estarem reduzidas, na escola, a tarefas. A construção do humor, por Cauã, e a mudança de perspectiva, por Marina – e embora esta última tenha sido dada como proposta de produção – constituem-se como representações de experiências. Para Corrêa (2007, p.204), o acontecimento discursivo é uma questão de experiência, segundo ele “tanto no sentido da

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novidade que toda a representação da experiência traz, quanto no sentido de retomada do já experimentado, o que significa entender a experiência também como memória”. Como falar em memória em se tratando de textos infantis? Corrêa explica que o “já experimentado” a que se refere (inspirando-se em Pêcheux) não é a memória do vivido empírico, mas a “experiência simbólica”, a experiência discursiva. Cauã transforma em sequências narrativas a experiência da falta de dinheiro; Marina, o já-dito em novos dizeres dados pela mudança de perspectiva. A “experiência”, como nos mostra Corrêa, “é, ao mesmo tempo, a novidade da reatualização e a retomada do já experimentado, a memória do já-dito/escrito e do já ouvido/lido” (CORRÊA, 2007, p.206). Nesse sentido, interessam ao ensino da escrita as práticas de letramento, porque nelas é que se situam as experiências. Atualmente, a noção teórica dos gêneros discursivos como objetos de ensino de Língua Portuguesa, conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1987), tem sido mal interpretada. A fixação na ideia de adequação ao gênero tem também levado à atenção para o produto escrito (avaliado nos parâmetros certo e errado, formal e informal, escrito e oral, adequado ou inadequado ao gênero), desvinculando a escrita das práticas de letramento. O ensino por meio de gêneros do discurso, como bem nos lembra Corrêa (2013), “parece ter redescoberto a normatividade, desta vez a partir de modelos de gêneros” (p. 497). Diferentemente, o trabalho com gêneros deveria garantir, sobretudo, que os gêneros não se descolassem das práticas sociais das quais emergiram. Nos dois casos apresentados, nenhuma das professoras envolvidas diretamente com as produções apresentadas estava preocupada com a questão dos gêneros em si, mas, em ambos os casos, a escrita foi aliada às práticas sociais escolares significativas. Como experiência a ser compartilhada, acontecimento a ser lido.

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SUSTENTABILIDADE E LETRAMENTO DO PROFESSOR EM FORMAÇÃO INICIAL: DEMANDAS PARA ATIVIDADES DE ENSINO E DE PESQUISA Wagner Rodrigues Silva Janete Silva dos Santos Bárbara de Freitas Farah

INTRODUÇÃO

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m sintonia com os estudos científicos sobre o letramento do professor, desenvolvidos no contexto brasileiro da Linguística Aplicada, a formação inicial de professores de língua vem sendo focalizada em pesquisas realizadas na Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus Universitário de Araguaína, envolvendo docentes e alunos de pós-graduação e de graduação, todos vinculados à Licenciatura em Letras e ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura (Mestrado e Doutorado). Os estágios supervisionados, em especial, vêm ganhando grande visibilidade nas investigações realizadas, por contribuir incisivamente para a construção de novos objetos de ensino na educação básica, para as reflexões sobre a apropriação dos discursos acadêmicos e para a construção identitária dos futuros professores, aqui denominados de alunos-mestre. Problematizando tais questões, esta investigação foi desenvolvida no âmbito dos grupos de pesquisa “Linguagem, Educação e Sustentabilidade” – LES (UFT/CNPq) e “Práticas de Linguagens” – PLES (UFT/CNPq). 85

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Neste capítulo, investigamos algumas implicações dos usos do gênero relatório de estágio supervisionado, trabalho escrito final na referida disciplina, na Licenciatura em Letras focalizada, para a mobilização de saberes a respeito de práticas escolares de linguagem. Essas últimas compreendem atividades didáticas de leitura, escrita e análise linguística, as quais, numa perspectiva mais ampla do letramento, quando comparado ao letramento escolar mais restrito, precisam ser realizadas articuladamente (SILVA; 2009a; 2009b, 2012a)1. O corpus desta investigação é constituído por dois tipos de registros: (i) recortes extraídos de diário de campo, produzido durante pesquisa de campo de viés etnográfico; (ii) três relatórios escritos de estágio supervisionado, produzidos entre os anos de 2008 e 2009, e atualmente arquivados no Centro Interdisciplinar de Memórias dos Estágios Supervisionados das Licenciaturas (CIMES)2. Nesse centro de documentação, são arquivados relatórios de estágio supervisionado das Licenciaturas em Geografia, Letras e Matemática e, só mais recentemente, os relatórios produzidos nas Licenciaturas em Física e Química, cursos criados no campus por meio do programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), financiado pelo Ministério da Educação, no Brasil. No referido Centro, há aproximadamente 3 mil relatórios disponíveis para consulta. Os relatórios são espaços linguístico-discursivos desencadeadores da familiarização dos professores em formação inicial com saberes docentes, a partir das primeiras experiências da escola de educação básica registradas. São documentos de imensa importância para a pesquisa científica. Catalisam diversos saberes orientadores das ações do professor na prática do magistério, além de instaurar relevante atividade linguística de trabalho com e sobre a escrita acadêmica. A escrita do relatório pode contribuir 1

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Parte desta investigação recebeu Menção Honrosa na grande área de Ciências Humanas, Sociais Aplicadas e Letras, no VIII Seminário de Iniciação Científica da Universidade Federal do Tocantins (UFT), realizado em dezembro de 2012, em Palmas – TO. O trabalho foi apresentado por Bárbara de Freitas Farah (PIBIC/CNPq/UFT), sob a orientação do Prof. Dr. Wagner Rodrigues Silva. Esta pesquisa contou com a colaboração do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, a partir dos seguintes projetos: “Formação Inicial de professores mediada pela escrita” (CNPq/CAPES 400458/2010-1) e “Implicações dos relatórios de estágio supervisionado para a formação inicial de professores” (CNPq 501123/2009-1). Criado no segundo semestre de 2009 e localizado no campus universitário aqui mencionado.

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de forma significativa para a profissionalização dos professores em formação inicial, nas licenciaturas, visto que, emprestando a observação de Medrado (2011, p. 91) quanto aos benefícios das narrativas orais de professores, concordamos que “ao ter a chance de descrever e interpretar a própria prática – de se olhar no espelho –, o professor pode, através do seu discurso, não apenas desconstruir seu habitus didático [...], mas também influenciar as representações que um grupo todo tem do processo de ensino e aprendizagem”. Se narrativas orais de professores, foco do estudo de Medrado (2011), favorecem a reflexão sobre si por parte de quem narra, o mesmo podemos dizer das produções textuais escritas, objetos de investigação neste capítulo, as quais são moldadas no gênero relatório de estágio supervisionado, fortemente marcadas pelas sequências narrativas e descritivas. Além disso, o relatório de estágio supervisionado é utilizado como um instrumento de avaliação nos cursos de licenciatura. Por meio desse gênero, os alunos-mestre são provocados a relatarem reflexiva e objetivamente suas práticas escolares dentro da sala de aula com os alunos da educação básica, além de trabalharem diretamente com o processo de escrita, o que favorece uma prática fundamental para o letramento do professor (cf. SILVA e MENDES, 2012). Ressalte-se ainda que, conforme apontam Fiad e Silva (2009, p. 2): ao criarmos para esses estudantes a exigência do relato escrito, ao final do semestre e como forma de avaliação, apostamos em uma nova relação com a linguagem, em que possam tomar, de modo consciente ou não, um conjunto de decisões quanto ao quê e ao como vão escrever. Nesse processo, entendemos que, conduzidos pelo próprio trabalho que a escrita e a memória realizam sobre eles, possam construir suas escolhas e a si mesmos como sujeitos dessa escrita, numa tensão com as formas de dizer previstas e valorizadas no ambiente acadêmico.

Os relatórios de estágio supervisionado podem trazer uma descrição de fatos observados e das atividades desenvolvidas dentro da sala de aula da educação básica, com uma análise crí87

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tica, indicando, igualmente, prováveis soluções, além de relatar o conhecimento adquirido durante a licenciatura. Assumimos os relatórios de estágio supervisionado como gêneros catalisadores, isto é, “gêneros discursivos que favoreceram o desencadeamento e a potencialização de ações e atitudes consideradas mais produtivas para o processo de formação, tanto do professor quanto de seus aprendizes” (SIGNORINI, 2006. p. 8)3. Por outro lado, de acordo com Silva (2013, p. 176), a subutilização da escrita reflexiva, nos relatórios de estágio, ocorreria no momento em que “o aluno-mestre, minimamente, não associa a experiência vivenciada, nas escolas de educação básica, ao conhecimento teórico trabalhado na própria licenciatura, configurando o referido gênero num texto predominantemente narrativo e descritivo, informado, quando muito, por impressões diversas”. O resultado da subutilização dessa atividade acadêmica é denominado pelo autor como “escrita impressionista”, a qual “revela a tensão no uso do gênero relatório como trabalho final, escrito para as disciplinas de estágio supervisionado” (SILVA, 2013, p.176). Esse tipo de produção pouco significativa acusa, de certo modo, uma medida de dissociação entre teoria e prática na formação inicial. Isso decorre da falta de um planejamento que dê consistência à reflexão do trabalho pedagógico mediante a produção dos relatórios. Rattner (1999, p. 240) aponta o planejamento, a coordenação e o fornecimento de diretrizes nos sistemas de atuação política dos governos como ações básicas para a qualidade de vida sustentável dos seres humanos, seja no aspecto ambiental, seja no aspecto sociocultural. Nesse sentido, focando esse viés da sustentabilidade na formação docente, podemos pensar a produção dos relatórios de estágio, que é parte integrante do processo de estágio, enquanto uma ação sustentável a impulsionar a práxis pedagógica, a partir da formação inicial. Conforme mostramos adiante, o movimento de 3

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Ainda segundo a autora, o gênero catalisador é “um espaço regulado de natureza linguísticodiscursiva e também sociocognitiva, feitos de trilhos e andaimes indispensáveis à construção do novo; novos gêneros feitos da mistura ou entrelaçamento de outros já conhecidos; novos textos visando novos interlocutores e novas indagações, mas ancoradas na experiência com gêneros e práticas bem conhecidas inclusive escolares; novos objetos de ensino orientados por novas concepções e novos objetivos, mas articulados em sequências de atividades que se integram a práticas de ensino já existentes” (SIGNORINI, 2006, p. 8).

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investigação da e sobre a mesma pessoa (agente) na universidade (aluna-mestra) e no local de trabalho (professora efetiva), pode pontuar-nos questões relevantes da formação inicial do professor de maneira sustentável, ou seja, pode esclarecer para muitos que efetivamente o estágio não é ficção, mas contribui de fato para uma situação futura de permanente monitoramento da prática docente, quando o professor já está “formado”, favorecendo, na medida do possível, a autonomia e a independência deste profissional, mesmo que no seu raio restrito de atuação, com vistas a um ambiente de aprendizagem mais saudável e, por isso, mais promissor. Entendemos, pois, que os relatórios são instrumentos que, se bem utilizados, resultam ganhos para a futura prática no local de trabalho, que, como em qualquer outra profissão, deve ser orientada pela reflexão crítica sobre a ação. Investigamos as implicações dos usos do gênero relatório de estágio supervisionado, numa Licenciatura em Letras, para a mobilização de saberes sobre práticas escolares de linguagem, compreendendo atividades de leitura, escrita e análise linguística. Procuramos responder a dois objetivos de pesquisa a seguir: (i) descrever algumas formas de reflexão crítica a respeito de práticas escolares de linguagem, realizadas por uma aluna-mestra, nos relatórios escritos, produzidos em disciplinas de estágio supervisionado de ensino de Língua Portuguesa; (ii) confrontar os resultados de pesquisa gerados a partir do objetivo (i), com a prática profissional efetiva realizada pela aluna-mestra focalizada, numa situação diferenciada, quando professora efetiva da disciplina de Língua Portuguesa, em serviço na rede pública tocantinense de ensino4. 1. ENCAMINHAMENTOS METODOLÓGICOS A investigação apresentada está orientada pela abordagem transdisciplinar da Linguística Aplicada (LA), em especial pelos estudos do letramento do professor (KLEIMAN, 2006; 2007; SILVA, 2012b). Tal abordagem leva em conta a necessidade de 4 ��������������������������������������������������������������������������������������� Agradecemos imensamente a disponibilidade dessa professora em colaborar com as investigações científicas realizadas nos grupos de pesquisa aqui focalizados. Esperamos o retorno da profissional às atividades dos referidos grupos.

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se enfrentarem barreiras disciplinares, a fim de que a questão de linguagem privilegiada, dentro de contexto específico, seja problematizada por aportes teóricos que considerem aspectos sociais, políticos e históricos dos sujeitos envolvidos na e com a pesquisa (PENNYCOOK, 1998). Desse modo, conforme resumido em Santos (2010, p. 9), investigar em LA: implica envolver-se com problemas sociais mediados pela linguagem. Dizemos envolver-se porque, em LA, é consenso que o pesquisador não trabalha a partir de uma suposta neutralidade, própria do positivismo, na escolha do objeto a ser analisado. Escolha já implica poder, poder de decisão, ação de fazer opção por isso ou aquilo, de assumir e/ ou recusar questões, implicando, por conseguinte, valoração sobre elas. (itálico do original)

Desenvolvemos uma abordagem qualitativa de investigação científica. Inicialmente, realizamos uma pesquisa documental. Buscamos identificar as práticas escolares de linguagem registradas por uma professora em formação inicial, em relatórios escritos de estágio supervisionado. Esta investigação também tem um caráter etnográfico. Comparamos a análise desses documentos com a atual prática profissional da referida aluna-mestra, hoje, na condição de professora efetiva de uma rede pública estadual de ensino. O corpus desta investigação é composto por recortes de diários de campo e pelos relatórios das disciplinas Investigação da Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa: Língua e Literatura II, III e IV, produzidos pela aluna-mestra, participante desta pesquisa. Não analisamos o relatório da primeira disciplina de estágio por não haver registro nos arquivos do CIMES. No primeiro estágio obrigatório, diferentemente dos três últimos, quando são observadas aulas de professores titulares e ministradas aulas da disciplina Língua Portuguesa, o estagiário apenas observa aulas na educação básica. Ou seja, nos relatórios investigados, a aluna-mestra foi levada a refletir criticamente não só sobre aulas observadas, mas sobre as próprias aulas ministradas na educação básica. 90

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A seleção desses relatórios foi motivada pela escolha da professora colaboradora. Escolhemos tal professora por ter sido bastante comprometida com os estudos durante a licenciatura. Na condição de aluna, chegou a participar de pesquisas acadêmicas como bolsista de iniciação científica. Na de titulada, atua como professora efetiva da rede pública estadual de ensino do Tocantins. Foi aprovada em concurso público para o magistério com ótima colocação. Toda essa qualificação contribuiu para termos mais acesso à professora colaboradora, que não se opôs a participar da pesquisa desenvolvida. No segundo momento da pesquisa, analisamos as anotações de campo, realizadas numa escola estadual de ensino médio, situada no centro de uma grande cidade tocantinense, considerada uma das melhores escolas estaduais da região. As observações foram realizadas durante os dois últimos bimestres de um ano letivo5. Caracterizamos a investigação realizada como um estudo caso, pois as ações de pesquisa foram centralizadas nas atividades realizadas por uma única professora. Procuramos desenvolver uma análise minuciosa do caso estudado, de maneira que nossos leitores tenham liberdade para relacionar os resultados gerados a outras situações experienciadas, conforme percebam alguma relevância para tal propósito. 2. PRÁTICAS DE LINGUAGEM E FORMAÇÃO SUSTENTÁVEL DO PROFESSOR As práticas escolares de linguagem são atividades didáticas desenvolvidas em sala de aula pela exploração do uso da escrita, leitura e análise linguística, permitindo o trabalho com diversos gêneros textuais. Precisam funcionar como referências para as inúmeras atividades de linguagem características da vida diária, além dos muros escolares, na direção de uma aprendizagem 5 �������������������������������������������������������������������������������������� Importa frisar que esta investigação também está diretamente ligada à pesquisa de mestrado realizada por Guerra (2012, p. 15), cujo objetivo geral fora investigar as práticas de letramento do professor, comuns ao trabalho de duas professoras em formação inicial, nos estágios supervisionados obrigatórios das licenciaturas, e em serviço, nos primeiros anos do exercício do magistério como professoras de línguas, efetivas no Ensino Básico, no trabalho com disciplinas de Língua Portuguesa e de Língua Inglesa, no contexto da escola pública tocantinense. A professora de Língua Portuguesa é a colaboradora da investigação apresentada neste capítulo.

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revolucionária, conforme proposta por Freire (2002, p. 132)6. Ou seja, na escola, os alunos precisam ser familiarizados com diversos letramentos, não apenas com as práticas necessárias para o sucesso na própria escola. Gêneros textuais realizam textos específicos, na modalidade linguística oral e na escrita, compreendendo ainda o uso de diferentes linguagens. Possuem características específicas perceptíveis na materialidade textual, envolvendo aspectos da micro e macrotextualidade, motivadas pelos contextos situacionais e culturais em que são produzidos. Utilizados como objetos de ensino, em contextos de instrução, favorecem a reflexão crítica e imaginativa a respeito de práticas sociais de uso da linguagem, a exemplo da produção coletiva de um jornal escolar, dentro de um projeto pedagógico interdisciplinar, envolvendo a comunidade escolar (SILVA, 2012c). Os gêneros permitem ao aluno mais contato com textos de diferentes esferas sociais dentro da escola. Inúmeros são os gêneros textuais que circulam nas diversas esferas sociais: o artigo científico, o relatório técnico, o resumo, a resenha e o seminário, na esfera acadêmica; o conto, a crônica, o poema e o romance, na esfera literária; o artigo de opinião, a entrevista, a locução esportiva e a reportagem, na esfera jornalística. Os textos se organizam sempre dentro de um gênero. Essa noção de gênero refere-se a “famílias” de textos que possuem características comuns. Os gêneros são reconhecidos por suas características distintivas, com usos sociais próprios (BAZERMAN, 2009). A título de exemplificação, mencionamos os outdoors, produzidos na esfera publicitária. Esse gênero, normalmente, faz propaganda de produtos diversos, em lugares de grande visibilidade e circulação de pessoas. O gênero como objeto de ensino articulado à noção de prática de letramento “implica adotar uma concepção social da escrita, em contraste com uma concepção de cunho tradicional que considera a aprendizagem de leitura e produção textual como a aprendizagem de competências e habilidades individuais” (KLEIMAN, 2007, p. 4). Efetivam-se produtivas práticas de letramento na esfera escolar 6

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Para Freire (2002, p. 132), “ser revolucionário significa estar contra a opressão, contra a exploração, em favor da libertação das classes oprimidas, em termos concretos e não em termos idealistas”.

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quando os alunos são parceiros na construção do conhecimento em situações significativas de uso da língua materna. No tocante à prática de análise linguística, “mais importante que saber, em primeira instância, como a língua está estruturada, é entender como a gramática funciona na língua em uso” (FURLANETTO; VICENZI, 2002, p. 88), ou seja, como a gramática do texto é adequada aos gêneros textuais, orientadores das ilimitadas situações de interação pela linguagem. Enquanto objetos de ensino, os recursos linguísticos utilizados nos gêneros são contextualizados para o ensino e, até mesmo, para as situações presentes além da esfera escolar. Porém, consideramos que “a sobreposição de categorias gramaticais normativas no intuito de enfocar o texto como unidade de análise linguística resulta no que estamos denominando de mobilização do texto como pretexto para o ensino de categorias gramaticais” (SILVA, 2011a, p. 33). Pesquisas em LA revelam evidências da importância do uso dos gêneros textuais dentro da escola (SILVA, 2012c; 2009b; GONÇALVES, 2011). Há uma necessidade de os alunos lerem textos variados, configurados em diferentes gêneros textuais. O uso dos gêneros textuais propõe um contato direto com a linguagem e suas variadas formas de interação e permite ao aluno a compreensão do sistema linguístico de sua língua. Pela mediação da linguagem falada ou escrita, os sujeitos constroem suas identidades. Um ensino de língua a partir da noção de gêneros, considerando-se a heterogeneidade da oralidade e da escrita, está atrelado mais efetivamente à função social da linguagem, vista como motor a dinamizar as relações entre as pessoas e o mundo, incluindo as relações de poder, sempre conflitantes nas sociedades. É pelos gêneros textuais que os sujeitos interagem ao longo de suas vivências, seja pelos gêneros orais, seja pelos escritos, afetando e sendo afetados pelos espaços sociais, nas esferas do cotidiano das quais participam direta ou indiretamente. Essa realidade põe em destaque divergência entre concepções de letramentos que podem favorecer ou dificultar a inserção dos sujeitos em maior ou menor participação social, no sentido de beneficiá-los mais ou menos no usufruto de seus direitos como

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cidadão7. É o caso dos letramentos autônomo e ideológico (STREET, 1984). No primeiro tipo, o uso da escrita está voltado a práticas homogeneizantes, desconsiderando-se aspectos socioculturais que as orientariam. No segundo tipo, o mais desejável, há o reconhecimento do jogo de força instaurado pelas práticas que envolvem a escrita, o que permite a visibilidade de valores que excluem (da) ou incluem os sujeitos na apropriação dos discursos de poder. A análise dos dados, nesta investigação, dispensa um olhar relevante quanto à inserção do aluno-mestre em práticas de linguagem que acabam por orientar sua identidade profissional. Nesse sentido, a reflexão de Kleiman (2006, p.79) pontua eficazmente a questão: Em grande medida, as representações sociais do professor podem ser traçadas nas práticas discursivas das áreas acadêmicas voltadas para a formação do professor, nos modelos teóricos enfatizados, nas estruturas curriculares (embora não exclusivamente, já que os discursos oficiais, os da mídia e da imprensa jornalística também têm papel importante no processo). De fato, pode-se conceber a representação social, no singular, como processo, não resultado, realizado nas instituições de prestígio. As representações sociais nascidas desse processo de formação identitária na academia podem, então, em princípio, orientar a prática do professor.

Trazemos as teses de Hargreaves e Fink (2007, p. 225-230) que, baseando-se nos princípios da sustentabilidade ambiental em relação à exploração dos recursos naturais pelas empresas, aplicam alguns princípios de ação para o gerenciamento sustentável dos gestores da aprendizagem, a saber: (i) ativismo, (ii) vigilância, (iii) paciência, (iv) transparência e (v) projeto. Deslocaremos esses princípios para a orientação dos professores em formação inicial. Na universidade, os estágios supervisionados, quando bem orien7 ������������������������������������������������������������������������������������� Concebemos cidadania de acordo com Paulo Freire, para quem “é compreendida como apropriação da realidade para nela atuar, participando conscientemente em favor da emancipação. [...] Todo ser humano pode e necessita ser consciente de sua cidadania. É necessário que seja consciente de sua situação e de seus direitos e deveres como pessoa humana” (HERBERT, 2008, p. 74).

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tados, podem (i) favorecer o engajamento afirmativo do alunomestre com seu ambiente de trabalho; (ii) ensinar o aluno-mestre “a monitorar o ambiente para verificar se ele se mantém saudável e não está entrando em declínio”; (iii) incentivar nos estagiários a consciência da necessidade do permanente aprimoramento sem pressa por resultados imediatos, pois a reflexão requer paciência e crítica permanente; (iv) encorajar o aluno-mestre a admitir os dados negativos, sem mascaramentos, a fim de refletir em função de soluções; e, finalmente, (v) os estágios e os relatórios podem orientar a planejar as ações atuais e futuras do aluno-mestre, ajudando-o a se dispor a adaptações revolucionárias para que suas ações no ambiente escolar, quer como estagiário, quer como professor efetivo, sejam sustentáveis, considerando as mudanças que naturalmente ocorrem em todo sistema dentro de qualquer cultura. Não obstante, em relação a este último princípio, Hargreaves e Fink (2007, p. 232) observam que: Se os professores precisam acreditar em seus líderes como pessoas, eles também precisam poder acreditar nos sistemas projetados que definem muito do seu trabalho. [Assim, a] liderança sustentável é, portanto, liderança projetada – não padronizada nem mecânica, mas personalizada, acessível e flexível.

Ora, a formação do futuro professor com base no letramento crítico está, a nosso ver, intimamente ligada ao caráter sustentável da prática docente e do esforço mobilizado para o êxito educacional, ligada ao desenvolvimento da capacidade docente de compreender o processo educacional como efetivamente dinâmico e desafiador para se fazer e se manter eficaz. Isso requer uma construção identitária pautada na flexibilidade e na permanente disposição para lidar com problemas contingenciais, para responder ou adaptar-se a novas demandas em busca dos (re)ajustes necessários. Entendemos que a identificação com esse perfil profissional, que a atuação docente requer, pode ser positivamente possibilitada nas ações prático-discursivas do estágio supervisionado, impactadas mediante a produção dos relatórios, visto que propiciam oportunidades singulares de autorreflexão e reflexão crítica sobre sua formação e atuação profissional in loco.

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3. PRÁTICAS ESCOLARES DE LINGUAGEM: FORMAÇÃO INICIAL Prosseguindo nossa discussão, nas seções seguintes, apresentamos inicialmente a análise de passagens textuais destacadas dos relatórios de estágio supervisionado. Posteriormente, apresentamos a análise de recortes dos diários de campo, elaborados pela terceira autora deste capítulo, a partir da observação da prática efetiva da professora colaboradora, em aulas de Língua Portuguesa, no Ensino Médio. Pontuaremos algumas práticas escolares de linguagem, focalizadas pela professora colaboradora nos relatórios escritos, quando ainda era aluna das disciplinas de estágio supervisionado. Identificamos a maneira de focalização dos gêneros textuais nesses relatórios de estágio. Ademais, conforme as atuais diretrizes curriculares nacionais para o ensino de língua materna (BRASIL, 1998), os gêneros são objetos de ensino e os textos unidades de análise, nas aulas da referida disciplina na educação básica. Apresentamos no Quadro 01 uma relação da variedade de gêneros que aparecem nos relatórios de estágio da aluna-mestra e na sua prática docente, desenvolvida no local de trabalho, enquanto professora efetiva de Língua Portuguesa. Um número variado de gêneros textuais é trabalhado nos dois momentos focalizados da trajetória profissional. Alguns gêneros são trabalhados nas duas situações (notícias, propaganda e poema). Quadro 01- Variedade de gêneros no relatório e na prática docente GÊNEROS TEXTUAIS NOS RELATÓRIOS Notícia Propaganda Carta Poema Tira Entrevista Música Conto Artigo de jornal

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NA PRÁTICA DOCENTE Notícia Poema Música Propaganda Verbete (Dicionário virtual) Imagem virtual Debate

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As passagens textuais reproduzidas no Quadro 02, Exemplo 1 (Estágio II), revelam tentativas de articulação das práticas escolares de linguagem por meio do trabalho com diferentes gêneros textuais, no segundo estágio obrigatório. Por um lado, a aluna-mestra desenvolve atividades didáticas de leitura atreladas à produção textual, percurso metodológico que pode contribuir significativamente para o aprendizado dos alunos acerca dos usos da linguagem no cotidiano. Por outro lado, os saberes acadêmicos parecem assimilados de forma bastante incipiente: os gêneros selecionados, por exemplo, são denominados de forma genérica, como texto informativo, texto jornalístico, texto apelativo e texto instrucional. Quadro 2- Exemplo 01: Estágio II – Ensino Fundamental II – 6º Ano8 LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO ESCRITO E ORAL Elaboramos atividades voltadas para a leitura e análises de texto informativo e trabalhamos com as noções de sinônimos e antônimos (Desenvolvimento, 2008.2, p. 4). Como estávamos no período da propaganda político-partidária que divulgava as eleições municipais, utilizamos um texto jornalístico bem descontraído que discutia sobre nomes “pouco convencionais” que são adotados por certos candidatos em nosso estado. Então, além de levar um texto que tratava de um assunto próximo da realidade dos alunos, aproveitamos para apresentá-los um texto informativo, destacando suas principais características. A partir da leitura e discussão do texto introduzimos atividades de produção escrita e oral, através da solicitação de um texto apelativo que deveria ser apresentado aos colegas (Desenvolvimento, 2008.2, p.5). [...] também utilizamos outro texto que abordava a preservação do meio ambiente. Então, associamos esse texto à idéia da responsabilidade dos políticos com a questão da preservação ambiental. Após a leitura colaborativa deste texto solicitamos uma produção de texto instrucional sobre a preservação do meio ambiente. (Desenvolvimento, 2008.2, p.5). As produções foram feitas em sala de aula, o que nos proporcionou um maior contato com o processo de escrita dos alunos, fazendo-nos notar suas habilidades e deficiências para escrever. O que foi chato nesse processo, leitor, foi perceber os problemas de escrita daqueles alunos e saber que não poderíamos fazer muita coisa para ajudá-los, já que o tempo era limitado para isso (Desenvolvimento, 2008.2, p.5).

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Todos os excertos foram reproduzidos conforme o original, sem revisão linguística dos exemplos.

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Nos excertos reproduzidos no Exemplo 01, são utilizados dois textos originários de jornais produzidos no Estado do Tocantins, como instrumentos contextualizadores das atividades escolares de leitura, produção e análise linguística (1, 2 e 3). Os textos são identificados genericamente como informativos, ignorando-se o fato de que todos são informativos. Num dos textos, são comentados nomes não convencionais de candidatos a cargos políticos no Estado. O tema lido foi contextualizado por acontecimentos da época, os quais serviram de justificativa para a seleção textual (2). O esforço em selecionar textos em função do trabalho linguístico com as noções de sinônimos e antônimos revela uma tentativa de articulação das práticas escolares de linguagem na aula de Língua Portuguesa (1). Em outro momento do Exemplo 01, são descritas atividades que resultaram na proposição de produções textuais compreendendo trabalho com as modalidades oral e escrita da língua (2). A proposição da produção do texto apelativo e do instrucional revela um procedimento a ser evitado nas aulas de língua: os gêneros solicitados para produção são diferentes do gênero trabalhado previamente na atividade de leitura. Ou seja, os alunos não podem ser familiarizados com um dado gênero, em atividade de leitura, e desafiados pela produção de um gênero não ensinado ou, até mesmo, desconhecido. Outro texto utilizado apresentava a ideia de preservação do meio ambiente (3). A aluna-mestra liga o segundo ao primeiro texto por meio do “processo material” manifestado pela forma verbal associamos, remetendo a responsabilidade dos políticos a questões ambientais, podendo aguçar a consciência dos alunos para o assunto tematizado. Essa escolha fora bastante significativa, pois as aulas revelam características de interdisciplinaridade. Questões de preservação do meio ambiente não estão diretamente ligadas à disciplina de Língua Portuguesa. De acordo com Silva (2009a, p.31), Na prática interdisciplinar, a distância entre as disciplinas escolares e o cotidiano dos alunos pode ser estreitada pelos temas transversais, que são

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assuntos da vida diária facilitadores do encontro de soluções para necessidades da atualidade, como a busca pela paz, igualdade de direitos e oportunidades, preservação do meio ambiente, desenvolvimento da afetividade e da sexualidade, dentre outros.

No Exemplo 01, as três primeiras passagens reproduzidas do relatório são marcadamente narrativas, o que é perceptível pelas formas verbais semiotizadoras de “processo material” utilizado no tempo pretérito, terminologia proposta na Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) para designar os verbos que expressam ação ou acontecimento. Os processos materiais manifestam alguma entrada ou materialização de energia no processo, modificando o estado dos participantes envolvidos (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p. 179). Na última passagem textual (4), identificamos marcas linguísticas argumentativas, evidenciando o comprometimento da aluna-mestra com os fatos relatados, conforme perceptível pelos usos das formas verbais notar, perceber e saber, semiotizadoras do “processo mental”, designador de eventos que ocorrem em nossa própria consciência (sentimentos, sensações ou maneiras de perceber o mundo) (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p. 197). Em (4), o tempo reduzido das atividades do estágio obrigatório é mencionado como justificativas para a limitação das ações demandadas para que houvesse superação das dificuldades observadas quanto à habilidade de escrita dos alunos da educação básica. Nesse sentido, vemos nessa declaração, excerto (4), uma questão que vai de encontro a um dos pilares da noção de sustentabilidade (HARGREAVES e FINK, 2007, p.24) que trazemos para o debate: o princípio moral da solidariedade, ao se pensarem ações que beneficiem os sujeitos no presente e no porvir, do mesmo modo que os sujeitos de agora e os de amanhã, mobilizando-se com equidade os recursos disponíveis e suas possibilidades. No caso da educação (formação docente), tal princípio diz respeito ao compromisso com a profundidade do aprendizado (de todos os implicados no processo educacional), promovendo-se as condições necessárias para sua efetivação solidária. Entendemos que, diferentemente de outras 99

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profissões, nas licenciaturas o tempo dedicado ao estágio, à vivência inicial do futuro professor com as vicissitudes da sala de aula, ainda é pensado de forma imediatista: cumpre-se uma etapa (estágio), gera-se um produto (o relatório) que satisfazem as exigências daquele momento para um dos envolvidos (aluno-mestre), sem se questionar a fundo se, nesse processo, o aprendizado, tanto do aluno-mestre, quanto do aluno do Ensino Básico, quanto do professor colaborador, foi solidário. Até que ponto o tempo cedido pelo professor colaborador ao estagiário (aluno-mestre) contribuiu para o aprendizado do aluno do Ensino Básico? Como a intervenção do estagiário contribuiu para a reflexão do professor colaborador sobre sua própria prática de sala de aula? Se só um dos envolvidos obteve ganhos relevantes e se a superficialidade das ações, para os demais, estiver acentuada, o princípio da solidariedade e da profundidade nos parece rompido ou ameaçado. Prosseguindo a análise, no Quadro 03, Exemplo 02 (Estágio III), adiante, identificamos quatro gêneros textuais diferentes: carta, poema, música e notícia. Essa diversidade de gêneros é compatível com as orientações de parâmetros mais inovadores para a formação cidadã: não devemos privar o estudante de se reconhecer, ou pelo menos de se situar, na diversidade discursiva, na relação de força instaurada pelos discursos convergentes ou contraditórios, manifestos por diferentes gêneros.

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Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente Quadro 03 - Exemplo 02: Estágio III – Ensino Fundamental II – 7º Ano LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS 1. A princípio, utilizamos o texto A, a carta de Abelardo à Heloísa. Dentro da carta de Abelardo havia um poema que este enviava a Heloísa. Dessa forma, os gêneros trabalhados neste primeiro momento foram carta e poema. Iniciamos a aula com leitura colaborativa e discussão do texto... (Desenvolvimento, 2009.1, p. 3). 2. Em seguida, após a utilização da primeira atividade, introduzimos o texto B, a música de João e Maria, de Chico Buarque, e através da audição da mesma, os alunos puderam acompanhar a letra. Logo de início, estranharam a letra, menosprezaram o estilo musical, mas depois de ouvir pela segunda vez, parece-nos que se familiarizaram mais com a melodia (Desenvolvimento, 2009.1, p. 6). 3. Depois de tanto pensarmos no perfil daqueles alunos e no que seria interessante para eles, cogitamos a produção de um jornal, pois era notável o gosto deles pelo gênero, mas não seria possível porque demandaria tempo, e já estávamos por encerrar as aulas. 4. A partir disso, tivemos a ideia de elaborar uma atividade sucinta, partindo de uma seção da Revista Veja, intitulada Panorama, nesta seção há referências a fatos, pessoas, atitudes positivas, enumeradas numa coluna intitulada Sobe e negativas, que são expostas em outra que possui como título o vocábulo Desce [...] Então solicitamos aos alunos que produzissem em grupos uma coluna com três acontecimentos positivos e outra com três negativos, deixamos claro que poderiam dar notícias sobre a escola, a cidade, o país, o mundo (Desenvolvimento, 2009, p. 7). 5. A significância desta atividade deveu-se ao fato de valorizarmos a produção escrita dos alunos a partir de um assunto que era do interesse deles, havia por parte deles um interesse em expressar o que estava ocorrendo de positivo ou não dentro da escola, na comunidade em que viviam e etc. (Desenvolvimento, 2009.1, p. 8).

No Exemplo 02, observamos ainda mais variedade de gêneros ao compararmos os registros escritos dos Estágios II e III. Não podemos deixar de mencionar, por outro lado, que tal avanço pode ter sido provocado pelo aumento do número de aulas ministradas no estágio supervisionado9. Em relação à seleção e circulação de textos na escola, Bazerman (2006, p. 24) ressalta que: não deveríamos ser displicentes na escolha dos gêneros escritos que nossos alunos vão produzir. Nem deveríamos manter essas escolhas invisíveis aos alunos, como se toda produção escrita exigisse 9

Na matriz curricular da licenciatura focalizada, no 2º Estágio Supervisionado, são 5 aulas para a observação e 15 para regência; nos 3º e 4º Estágios Supervisionados, são 5 aulas para observação e 21 para regência.

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as mesmas posições, comprometimentos e metas; como se todos os textos compartilhassem das mesmas características; como se todo letramento fosse igual. Nem deveríamos ignorar as percepções dos alunos sobre a direção para onde estão indo e sobre seus sentimentos a respeito dos lugares que lhe indicamos.

A opção pertinente da aluna-mestra, considerando as observações de Bazerman (2006), corrobora a necessidade de os educadores cultivarem uma prática reflexiva quanto à escolha dos gêneros que os alunos irão ler e produzir, de apresentarem textos que dialoguem de alguma forma com o mundo extraescolar dos alunos, o qual, na maioria das vezes, parece distante da realidade da sala de aula, onde impera o trabalho exclusivo do letramento escolar. Um ensino sustentável, que se beneficia das possibilidades favorecidas por conexões entre os recursos disponíveis para o bem comum, requer incluir, no projeto escolar, o estudante como um sujeito social, cuja vivência fora da escola não pode ser ignorada ou subestimada em favor de uma realidade autônoma, sem conexão com sua vida real. A língua e os textos com os quais os alunos estão familiarizados ou em contato fora da escola, nos diferentes gêneros, deveriam também ser assumidos como experiências válidas de linguagem na reflexão escolar, numa perspectiva crítica da sustentabilidade em educação linguística. Isso porque a sustentabilidade diz respeito à retroalimentação necessária das ações em cadeia, afetando o sistema na sua integralidade. No Quadro 04, Exemplo 03 (Estágio II), destacamos o relato da aluna-mestra em relação à insegurança dos acadêmicos do curso de Letras concernente ao trabalho com o conteúdo gramatical, mais recentemente, reconfigurado como prática de análise linguística. Vale destacar que, com as práticas escolares de análise linguística, espera-se que o aluno assimile um conjunto de conhecimentos do sistema linguístico e do funcionamento da linguagem, que sejam relevantes para as práticas de leitura e produção de textos.

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Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente Quadro 04 - Exemplo 03: Estágio II – Ensino Fundamental II – 6º Ano PRÁTICAS ESCOLARES DE ANÁLISE LINGUÍSTICA 1. Utilizando o texto como unidade de ensino, querido leitor, colocamos em prática uma das orientações dos PCN de Língua Portuguesa, que afirma o seguinte: “quando se toma o texto como unidade de ensino os aspectos a serem tematizados não se referem somente à dimensão gramatical” (p.76), ou seja, o texto abre espaços para análises dos sentidos que nele se estabelecem, e foi com o objetivo de despertar a reflexão dos alunos sobre o texto que utilizamo-nos dele como ferramenta de trabalho naquelas aulas (Desenvolvimento, 2008.2, p. 4). 2. Vale destacar, leitor, que, dentre os alunos da nossa sala na faculdade, só eu e Catarina trabalhamos assuntos voltados para o ensino gramatical. Nossos colegas todos focalizaram apenas leitura e produção textual em suas aulas. Este fato não é irrelevante, pelo contrário, demonstra a insegurança que os acadêmicos do curso de Letras têm em relação ao ensino gramatical, que tem sido tão debatido entre teóricos que se ocupam deste assunto (Desenvolvimento, 2008.2, p. 6). 3. [...] também tivemos receio de trabalhar gramática e correr o risco de reincidir no tão criticado ensino tradicional, mas optamos pelo desafio e levamos adiante nossos estudos a fim de proporcionar àqueles alunos aulas interativas e “inovadoras”. Ainda antes da produção do plano de aula, pensávamos em meios de fazer uma abordagem gramatical interessante e nesse momento, leitor, fiquei um tanto decepcionada ao perceber que na academia já havia lido tanto sobre este assunto, já tinha tanta teoria, mas na prática, não conseguia implementar as leituras que eu tinha (Desenvolvimento, 2008.2, p. 6).

Nesse exemplo, é notável a reflexão da aluna-mestra a respeito das questões de gramática ao afirmar que apenas ela e sua colega de estágio ministraram aulas com conteúdos voltados para o ensino de gramática (2). Em seguida, coloca-se parcialmente junto aos outros alunos-mestre que não trabalharam a gramática no estágio. Todavia, desconstrói em seguida essa ideia ao utilizar a conjunção adversativa mas acompanhada do processo mental optamos, que tem efeito de sentido de escolha, além do processo material levamos, desconstrução caracterizada em (3). A alunamestra deixa vários indícios de reflexão a respeito das práticas escolares de análise linguística desenvolvidas. Isso é perceptível a partir do uso de formas adverbiais (Ainda antes; tanta; na prática) e dos processos mentais (optamos; pensávamos; fiquei; perceber) destacados no trecho em que ela praticamente desabafa a respeito da vontade de ministrar boas aulas, ainda antes do planejamento, mas se depara com a dificuldade da prática, percebendo que a

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teoria que conhecia não a estava auxiliando suficientemente. Vemos, nesse desabafo (3), o enfrentamento de um desafio por parte da aluna-mestre: a assunção de suas limitações como professora em formação, o que, numa prática reflexiva sustentável, corrobora o princípio da transparência, ou seja, o compromisso com a verdade acerca da sua própria competência ou limitação no momento presente, o que pode apontar, no processo de retroalimentação sustentável, uma atitude ética fundamental para sua disposição contínua e equilibrada por superação. 3.1 PRÁTICAS ESCOLARES DE LINGUAGEM: EM SERVIÇO As práticas escolares de linguagem desenvolvidas pela professora colaboradora desta pesquisa, durante o efetivo exercício do magistério em serviço, alinham-se às práticas propostas ainda durante os estágios obrigatórios da Licenciatura em Letras. As atividades didáticas, propostas nos dois momentos da trajetória da professora, configuram-se como respostas alternativas às práticas pedagógicas características da tradição do ensino de Língua Portuguesa, no Ensino Básico. Apresentamos adiante algumas passagens dos diários de campo a respeito das práticas escolares de linguagem, desenvolvidas pela professora colaboradora, em serviço, durante dois bimestres consecutivos ao final do ano letivo. As notas de campo foram redigidas a partir das observações realizadas pela terceira autora deste capítulo, portanto, trazem o ponto de vista dessa pessoa.

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Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente Quadro 05 – Exemplo 04: 1º Ano – Ensino Médio LEITURA, PRODUÇÃO DE TEXTOS E ANÁLISE LINGUÍSTICA A professora começou o assunto com o conceito de antropocentrismo. Ela pedia aos alunos que lessem os slides no quadro. A professora também passou um pequeno vídeo com a biografia de Camões. Em seguida, colocou uma música da Rita Lee para exemplificar o amor profano e o amor sagrado. A letra da música continha uma palavra que os alunos não sabiam o significado, então, no mesmo momento, a professora entrou na internet, procurou no Google e todos leram juntos o significado da palavra. Em seguida, entregou uma atividade sobre a tela “Amor Sagrado e Amor Profano” do pintor Tiziano. Ela mostrou a pintura através de slide no datashow. Na mesma atividade, tinha questões de interpretação de um soneto de Camões (Diário de Campo – 2011.2, 2º Bimestre).

No Exemplo 04, foram utilizados diferentes gêneros textuais na mesma aula, o que podemos observar nas passagens textuais sublinhadas, além de recursos tecnológicos da propriedade da professora. Essa diversidade pareceu dinamizar a aula, possibilitando a mobilização de diferentes estratégias de leitura pelos alunos durante a comparação dos textos selecionados. Podemos afirmar que, ao longo do período de observação, a aula descrita no Exemplo 04 foi uma das mais ricas ministradas pela professora colaboradora, não somente pela quantidade de gêneros selecionados, mas pela maneira de trabalho com os gêneros textuais, desencadeando a interação entre alunos e professora durante toda a aula ministrada. As aulas observadas parecem orientadas por uma abordagem menos escolarizada de letramento. Os alunos estavam mais participativos na construção do conhecimento. Nesse tipo de abordagem, as atividades didáticas podem familiarizar os alunos com significativas práticas de linguagem, as quais servem de referência para a vida do discente dentro e fora da escola. No Exemplo 05, o texto Eu, etiqueta, de Carlos Drummond de Andrade, é utilizado pela professora em serviço para gerar debate a respeito da moda, roupas de marca e consumismo. Talvez, tal atividade seja uma resposta à demanda do trabalho escolar com temas transversais ou uma recontextualização do que fora realizado durante o estágio obrigatório da Licenciatura em Letras. O mesmo texto é utilizado na aula registrada no relatório de estágio 105

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supervisionado. O referido poema parece utilizado em função do trabalho com a temática do consumismo, sendo a atividade de comparação com textos publicitários um diferencial do trabalho didático desenvolvido no estágio supervisionado obrigatório. Quadro 06 – Exemplo 05 NOTA DE CAMPO (1º Ano – Ensino Médio)

RELATÓRIO 3 (Estágio IV – Ensino Médio – 1º Ano)

A professora pediu aos alunos para que fizessem um círculo. Depois do círculo formado ela disse que queria ouvi-los. Que geralmente ela falava e eles escutavam, então, que dessa vez eles que iriam falar. Assim, perguntou para a classe o que eles achavam sobre moda, roupas de marca etc... todos responderam. Depois disso ela entregou aos alunos um texto de Drummond “Eu, etiqueta”. Terminada a leitura, a professora começou a perguntar para os alunos o que eles tinham entendido do texto. Discutiram o texto, comentaram as palavras desconhecidas. Logo tocou o sinal interrompendo a aula. (Diário de Campo – 2011.2, 2º Bimestre)

Ao dar prosseguimento às atividades, passei a relacionar a propaganda ao consumismo exagerado e neste momento levei o texto Eu, etiqueta, de Carlos Drummond de Andrade e pedi que um dos alunos lesse (...) (Desenvolvimento 2009.2, p. 4)

A preocupação com a inovação das aulas de Língua Portuguesa, envolvendo o trabalho com conteúdos disciplinares significativos para o letramento crítico ou, em outras palavras, para a “cidadania” do aluno, pode ser relacionada ao que denominamos previamente de educação sustentável. Porém, conforme observado no Exemplo 05, todo esse esforço pela inovação instaura o risco de a aula de língua materna ser reduzida ao debate sobre temáticas da atualidade, reduzindo drasticamente o espaço do trabalho com o conteúdo linguístico propriamente dito na disciplina escolar. O tempo reduzido para ministrar aulas durante os estágios supervisionados é frequentemente tematizado nos relatórios, o mesmo acontece nas notas de campo (Exemplos 5 e 6). A admi106

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nistração do tempo parece se configurar como um desafio para o planejamento das aulas ministradas. Em alguns momentos, o tempo se mistura com a interrupção da aula para distribuição da merenda na própria sala de aula, em horário diferente do intervalo escolar propriamente dito (Exemplo 6). O sucesso da aula de língua e de qualquer outra disciplina escolar não está condicionado ao conteúdo disciplinar propriamente dito. Durante o planejamento de aula, precisam ser considerados atores de diferente natureza, atuantes no espaço complexo da sala de aula, a exemplo do tempo (cf. SILVA, 2011b). Quadro 07 – Exemplo 06 NOTA DE CAMPO (1º Ano – Ensino Médio)

RELATÓRIO 3 (Estágio IV – Ensino Médio – 1º Ano)

A professora saiu da sala e logo retornou com várias revistas. Ela distribuiu algumas revistas, pediu para que escolhessem uma propaganda e fizessem uma análise de acordo com algumas perguntas de interpretação que colocou no quadro. Mas a atividade não deu muito certo. Os alunos ficaram dispersos, encararam-na mais como uma brincadeira. Quando a aula começou a ficar mais tranquila, entrou a merenda e junto com ela o retorno do alvoroço e ali a professora deu a aula como encerrada. (Diário de Campo – 2011.2, 2º Bimestre)

Na apresentação do conteúdo a ser trabalhado, expus algumas propagandas na lousa e comecei a falar sobre o gênero, identificando suas principais características, para analisar juntamente com os alunos as propagandas expostas, enfatizando os recursos persuasivos utilizados no texto publicitário [...] de modo geral, não tive dificuldades para ministrar as aulas e fiquei satisfeita com o resultado. Ao perceber desempenho dos alunos diante minhas explanações senti-me capaz e empolgada [...] (Relato reflexivo, 2009.2, p. 3)

Nos dois momentos da trajetória da professora no Exemplo 06, o anúncio publicitário é selecionado como instrumento contextualizador de práticas escolares de linguagem. Na formação inicial, há um trabalho sistematizado de análise linguística sobre o gênero, sendo destacados aspectos formais da propaganda. O êxito do trabalho realizado, expresso pela aluna-mestra pelas formas verbais perceber e senti, semiotizadoras do processo mental, pode ser justificado pela abordagem metalinguística familiar aos alunos.

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Na prática em serviço, há um esforço do trabalho mais contextualizado dos anúncios publicitários em revistas, ou seja, o gênero pôde ser focalizado no próprio suporte. Essa atividade foi realizada pela prática escolar de leitura. A não familiarização dos alunos com a abordagem, provavelmente, motivou a percepção da atividade como uma brincadeira, conforme expressão nominal utilizada pela autora da nota de campo. Possivelmente, um melhor preparo dos alunos para a situação planejada de ensino poderia evitar a resistência apresentada inicialmente pelos discentes. De acordo com Bazerman (2006, p. 33), o funcionamento dos gêneros “em uma dada sala de aula vai depender de uma negociação entre as instituições, o professor e os alunos. Essa negociação determina aonde a jornada da aula pode ir com mais sucesso, de forma a atingir os objetivos e suprir as necessidades de cada parte”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nossa análise identificou atividades escolares de leitura, escrita e análise linguística, em relatórios de estágio supervisionado obrigatórios para o ensino de Língua Portuguesa, e as mesmas práticas escolares de linguagem desenvolvidas durante a atuação docente efetiva, ambas realizadas por uma mesma agente. Os primeiros registros foram retirados de relatórios de estágio de uma aluna-mestra. Os últimos, de diários de campo, isto é, de registros feitos por outro observador sobre a prática da ex-aluna-mestra, agora como professora efetiva de rede pública de ensino e colaboradora desta pesquisa e dos estágios supervisionados obrigatórios, pois, atualmente, também recebe alunos-mestre para estágios na própria sala de aula. Procuramos apresentar como essas práticas escolares foram trabalhadas nesses dois momentos da profissionalização da referida professora colaboradora. É relevante identificar a maneira que a professora colaboradora, em algumas aulas ministradas, utiliza métodos, gêneros e até textos similares aos selecionados durante seu estágio supervisionado. De modo geral, essas práticas pareceram muito significativas quando comparamo-las ao paradigma vigente para 108

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o ensino de Língua Portuguesa. Outro ponto em comum entre o que foi identificado nos relatórios de estágio e na prática efetiva da professora colaboradora, tido como empecilho pela agente, foi a exiguidade do tempo, além de outras interferências desestabilizadoras, como a distribuição da merenda escolar durante a aula. Como reclamado nos relatórios de estágio, a aluna-mestra nem sempre dispunha do tempo suficiente para concluir suas aulas conforme planejado, o que pôde ser identificado durante nossa observação sobre sua prática efetiva no magistério. Quanto à reflexão crítica da professora, na condição de aluna-mestra, podemos afirmar que está presente ao longo de todo o estágio supervisionado. Em todos os relatórios, aparecem passagens em que a agente reflete a respeito da escolha de gêneros que se aproximassem da realidade de seus alunos. Destaca sempre a importância de conhecer seus alunos para então tentar fazer a escolha certa de suas atividades e das estratégias para trabalhar as práticas escolares de linguagem dentro de sua sala de aula. Notamos, assim, que, enquanto ela faz suas reflexões, traz sempre a teoria para sustentar o que diz. Consideramos, portanto, que o estágio supervisionado e a produção dos relatórios, como parte do processo de reflexão sobre a prática, contribuem significativamente e de modo sustentável para o letramento e a atuação docente. Essas atividades manifestaram-se operantes, e de forma positiva, na formação da aluna-mestra. Ao longo dessa disciplina obrigatória, a alunamestra pôde fazer reflexões significativas. No estágio supervisionado, teve a oportunidade de construir parte da identidade profissional. Analisando seus relatórios de estágio, juntamente com sua prática efetiva no magistério, não temos como negar que aparecem, como característico nessas experiências, marcas similares de perfil profissional em ambas as vivências da professora colaboradora.

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PARTE 2: METODOLOGIAS PARA O ENSINO DA ESCRITA

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ENSINO DA ESCRITA: TEORIA E PRÁTICA APLICADAS À ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO, À CORREÇÃO E À REESCRITA TEXTUAL Rute Izabel Simões Conceição

INTRODUÇÃO1

F

requentemente indaga-se por que, com o passar dos anos de escolarização, parte considerável dos estudantes brasileiros e de profissionais graduados em curso superior, em vez de se sentirem competentes na escrita, desenvolvem uma espécie de resistência a ela e sentem-se incapacitados de produzir um texto de boa qualidade. E por que a escola brasileira tem tido tanta dificuldade em desenvolver a competência verbal escrita2? Por que os alunos têm tanto medo de escrever e se sentem inseguros diante dessa tarefa? A questão não é de fácil resposta, mas, com base nos trabalhos de Conceição (2000, 2002, 2004, 2011, 2012; 2015) e de Guedes (2009), temos a seguinte hipótese: na maior parte das aulas de Língua Portuguesa tem-se promovido, ao longo da escolarização, a desconstrução da discursividade na escrita. Esse problema é decorrente de um processo histórico e contínuo de falsificação das condições de produção da escrita ocorrida na escola, quando esta desconsidera sua função dialógica e prioriza a escrita com finalidade de cumprir uma tarefa designada pelo professor; treinar para o vestibular; ganhar uma nota na redação; 1 2

Agradeço ao CNPq pelo financiamento desta pesquisa, por meio da chamada Universal – MCTI/CNPq - 14/2013 Processo: 472809/2013-0. O trabalho com a oralidade também é problemático, contudo não será objeto de enfoque neste trabalho.

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exercitar a metalinguagem (e fixarem-se regras gramaticais). É falsificador, sobretudo, desconsiderar as possibilidades de encontro do texto com um leitor, desconsiderar que a interlocução a distância e o processo dialógico (BAKHTIN, 2003 [1992]), suscitados pela escrita, são dela constitutivos. Inversamente, construir a discursividade na escrita, na perspectiva dialógica que norteia esta discussão, corresponde ao trabalho de construção de sentidos no texto em função da interlocução desejada na interação verbal. Sem a percepção de que se escreve para algum(ns) leitor(es) e em busca da réplica, o foco do processo se desvia da construção da discursividade, a qual, na verdade, deve ser trabalhada desde os primeiros anos escolares, quando o escrevente põe, pela primeira vez, o lápis na mão para criar as primeiras linhas escritas em sua história escolar. O problema do ensino da escrita é tão sério e suas raízes tão profundas que o processo começa nas séries iniciais e, à medida que a escolarização vai se elevando (Ensino Básico, Ensino Fundamental, Ensino Médio ...), as raízes do problema vão se aprofundando até se cristalizarem e, assim, chegam à graduação e vão para o mercado de trabalho. Estudos a respeito do desempenho discursivo-textual na escrita (CONCEIÇÃO, 2011, 2012) evidenciam que, após longos anos de escolarização, ao chegarem ao terceiro grau, os poucos3 que chegam geralmente estão, literalmente, com o discurso desconstruído, esvaziado ou, na melhor das hipóteses, escondido por trás de colagens de “frases feitas e mal ajambradas”, conforme denunciou Pécora (1983), há mais de 30 anos. Em verdade, o problema não está mais só nas salas da graduação, já invadiu também as de pós-graduação. Conceição e Valente (2012), em pesquisa cujos sujeitos foram pesquisadores/ orientadores4 de trabalhos acadêmicos escritos (de graduação e de pós-graduação), constataram que, entre os principais problemas observados na escrita dos orientandos, sobressaem-se: a “Ausência de posicionamento diante do texto consultado”; as 3 4

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Segundo o IBGE, no censo de 2000, somente 4,4% da população tinha pelo menos um curso superior. Em 2010, apesar do sensível aumento, são apenas 7,9%. Pesquisadores das Áreas de Letras, Linguística e Artes (80000002/CNPq) e de Ciências Agrárias (50000004/CNPq) experientes na orientação de teses, dissertação e trabalhos de conclusão de curso.

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“Cópias literais de trechos dos textos da bibliografia consultada” e a “Falta de continuidade entre as ideias nos parágrafos” (p. 26). O resultado prático do processo de esvaziamento de sentido da escrita é o que denominamos de desconstrução da discursividade na escrita. Vale esclarecer que na pesquisa “Ensino-aprendizagem da escrita: estudo da didática da escrita e de seu impacto na qualidade textual”, a qual gerou os dados deste trabalho, um dos principais objetivos foi programar e testar procedimentos didáticos de ensino de produção textual favorecedores do ensino da escrita de qualidade e, para isso, implementou-se e testou-se uma didática, com a expectativa de que o percurso levasse os sujeitos, professores em formação, a estabelecerem nova relação com a própria escrita, a qual se distanciasse de modelos préfixados. A tese que defendemos é que tais modelos cristalizam o processo de esvaziamento de sentido da escrita, tornando natural escrever sem ter a percepção de que se escreve para um leitor. Tais questões foram investigadas em uma pesquisa aplicada, cujos resultados apresentamos e discutimos neste capítulo. Participaram 31 sujeitos (identificados pelos códigos G1, G2, G3 e assim por diante), docentes em formação, matriculados na disciplina Escrita e Ensino, no 4º ano de um curso de Graduação em Letras de uma Universidade Federal. O corpus compõe-se de 450 textos escritos e (re)escritos, para o gênero relato pessoal5. Dois temas geradores foram propostos durante o processo que teve 16 encontros de 3h30, durante o 1º semestre de 2012. Compõem também o corpus as anotações de correção nos textos dos sujeitos, 31 avaliações da disciplina feitas pelos sujeitos, após o término das aulas e a publicação das notas, o diário de campo da professora-pesquisadora e o Plano de Curso da disciplina. Para atingir os objetivos propostos, convém destacar que investigamos6 a eficácia de estratégias de reconstrução da capa5 6

O gênero relato pessoal foi escolhido devido ao fato de permitir o trabalho com temas que envolvem conteúdo temático geralmente de domínio dos sujeitos. O “o que dizer”, em tese, seria uma dificuldade a menos no trabalho. Neste capítulo, apresentamos os resultados de um recorte da pesquisa aplicada “Ensinoaprendizagem da escrita: estudo da didática da reescrita e de seu impacto na qualidade textual” (Os dados aqui apresentados foram gerados em 2012). O trabalho também foi aplicado em outras turmas nos anos de 2013 e 2014. Tais dados encontram-se em fase de análise desenvolvida sob nossa coordenação, na Faculdade de Comunicação, Artes e Letras/ UFGD, durante o oferecimento da disciplina Escrita e Ensino a alunos de graduação em Letras da UFGD.

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cidade discursivo-textual utilizadas durante o processo. Do ponto de vista pedagógico, essa proposta de reconstrução significa desenvolver estratégias de ensino favorecedoras da manifestação da palavra e do discurso do escrevente numa perspectiva dialógica e, dessa forma, promover uma nova relação do sujeito com a sua escrita para auxiliá-lo a desenvolver a reflexão acerca dos usos da linguagem na sua própria escrita. Ao mesmo tempo, significa efetivar uma prática que se distancie da reprodução de modelos, da perpetuação do medo ou da sensação de impotência diante do desafio de escrever textos. Este capítulo foi organizado em três seções: na primeira, discutimos o processo escolar de desconstrução da discursividade na escrita. Na segunda, explicitamos o contexto da pesquisa e a metodologia de geração e análise de dados. Na terceira, concomitantemente à explicitação do aporte teórico, apresentamos a análise dos dados e a discussão dos resultados. Esta terceira seção foi subdividida em três itens: 3.1 - A ação responsiva na correção – a correção misto-discursiva. Nesse item, descrevemos o método de correção utilizado na proposta de produção textual aplicada, bem como os resultados de sua utilização; 3.2 - Critérios de análise e de correção discursivo-textual na proposta didática aplicada é o item no qual descrevemos e demonstramos os resultados da utilização de quatro qualidades discursivas utilizadas como critério de análise e correção qualitativa dos textos e de orientação das reescritas. Fechamos o capítulo com o item 3.3 - O conceito e a prática da reescrita textual. 1. O PROCESSO ESCOLAR DE DESCONSTRUÇÃO DA DISCURSIVIDADE NA ESCRITA O leitor e a perspectiva de ser lido dão vida ao texto, ao discurso e ao exercício da escrita. Se não há leitor, não há “vida”, não há processo criativo. Não havendo criação, basta reproduzir modelos para preencher o esvaziamento de sentido estabelecido para a produção textual (e para a escrita) na escola. É assim que a desconstrução da discursividade apontada pode ser entendida, na prática. A desconstrução aqui referida, remete, portanto, ao “processo histórico de falsificação das condições de produção da 116

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escrita e o conseguinte esvaziamento de seu sentido, seguido da oferta de modelos para ocupar o vazio estabelecido” (PÉCORA, 1983, p. 111). Desacostumado a escrever para leitores (geralmente os textos são recolhidos e engavetados) e ocupado com a tarefa de reproduzir os modelos de redação aprendidos ao longo da escolarização, o escrevente suspende o processo criativo e, com ele, o seu discurso. Esse mecanismo de funcionamento do processo de desconstrução da discursividade pode ser resumido na definição de redação escolar formulada por Guedes, o qual discutiremos a seguir. Para o autor, a redação escolar aprendida na escola, em vez da produção textual, geralmente, acaba reduzida a um Conjunto de palavras organizadas em frases dispostas em forma de texto com o desígnio de: 1) reproduzir um padrão de linguagem, um modelo consagrado de disposição das partes em que se deve dividir a exposição e um conjunto de ideias, considerados – esse padrão, esse modelo e esse conjunto – por quem produziu tal redação, como os únicos aceitáveis pela escola ou de 2) expressar, de forma vaga, genérica e monológica, sentimentos, sensações, opiniões sem intenção de propor um diálogo a qualquer leitor e sem a atenção a alguma eventual leitura (GUEDES, citado por CONCEIÇÃO, 1999, p. 24, grifos nossos) 7

Ao afirmar que a redação escolar é um conjunto de “frases dispostas em forma de texto [...]”, entendemos que Guedes remete ao fato de que, na escola8, muitas vezes, o texto resulta na junção de frases e períodos com aparência de texto, sem, no entanto, constituir-se unidade de sentido produzida para dialogar com os leitores esperados. Com esse direcionamento, a escrita perde o fundamento dialógico que a constitui. No ensino, em verdade, deve-se levar o escrevente (especialmente nos cursos de 7

8

Definição discutida em aula de orientação (Mestrado/1997) com o prof. Dr. Paulo C. Guedes - PPG Letras/UFGRS, 1997. Essa definição foi publicada, com a permissão do referido professor, a quem agradecemos a contribuição, pela primeira vez, em 1999, em nossa dissertação de mestrado (Fonte citada). Posteriormente, foi publicada pelo autor (em Guedes, 2009). Ressalvamos que já existem vários trabalhos de ensino da escrita que fogem a esse padrão escolar de ensino de redação; no entanto, ainda são a exceção.

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Letras que formam professores para ensinar a escrever9) a refletir sobre o próprio processo e aprender, se for o caso, a questionarse a respeito de suas concepções acerca do que é texto, discurso, gênero, entre outros, e do processo envolvido na escrita e na reescrita, entre outras questões fundamentais para o processo de aprendizagem. Quando Guedes afirma que na redação escolar há a reprodução de um “padrão de linguagem”, inferimos haver remissão ao fato de que a escola, muitas vezes, tem levado os escreventes a criarem uma falsa ideia a respeito da norma-padrão e dos usos da linguagem na escrita. Essa falsificação se revela na prática de redações escolares, quando os escreventes aprendem a associar escrita de qualidade a “escrever difícil”. Isso ocorre quando passam, por exemplo, a garimpar um vocabulário julgado erudito, raro e difícil nas redações, conforme exemplificamos no recorte do texto de E610. Os textos dos três extratos seguintes foram gerados durante um trabalho anterior a este (em 2009), em que foram aplicados os mesmos princípios da didática de ensino de produção textual apresentados neste capítulo. Vejamos um exemplo da preocupação com o padrão de linguagem, no texto redigido pelo professor E6, a que Guedes alude: Extrato 1- produzido por E6 (ver nota 8) [...].Durante quatro anos eu fiquei esperando por minha Amada, em meu solitário aposento, em meio às lágrimas soturnas. Aquelas noites eram insólitas, eu não dormia e no dia seguinte, ficava sem esperanças de continuar vivendo.[...] Ela então desembarcou naquele recinto, maravilhosa como sempre. Um alvo sorriso grafado estava em sua face. Lady Dai olhou para mim com alegria e sedução. O meu semblante abatido ganhou rapidamente uma outra textura, mais corada. Minha Deusa possuía um olhar sortilégio que me fez desvairar de desejos por ela. (E6) 9 10

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Ver a esse respeito Pietri, neste volume. (Nota dos organizadores). Os três extratos de textos identificados com E6, E7 e E12 foram produzidos em 2009, em um curso de especialização oferecido a professores da Rede Pública de Ensino. São apresentados aqui como exemplos que retomamos de pesquisas anteriores, por se tratarem de produções de professores já formados que vivenciaram a mesma didática adotada nesta pesquisa.

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Bastam dois parágrafos para encontrarmos uma dezena de vocábulos que denunciam a preocupação com certo padrão de linguagem, evidenciada na presença de um léxico rebuscado, considerado raro e precioso, muito comum na chamada redação escolar. É uma evidência da presença de um modelo de uso linguístico relevante para o escrevente professor, porque faz parte de sua história social (escolar, principalmente), mas não reconhecido para o gênero produzido. Falsificam-se também as condições de produção da escrita quando, nas aulas de Língua Portuguesa, ao se ensinar produção textual11, é enfatizado que a redação certa para “passar” (no vestibular especialmente)12 precisa partir do seguinte modelo: ter introdução, desenvolvimento e conclusão. O problema instala-se quando, ao se privilegiar o caráter estático da estrutura composicional do texto, deixa-se de lado o caráter processual e histórico (e relativamente estável) que está na base de constituição de cada uma das ocorrências textuais em todo e qualquer gênero do discurso (BAKHTIN, 2003 [1992]). Esse procedimento centrado no modelo formal é mais um que remete ao trecho previsto na definição de redação escolar proposta por Guedes: repetição de “modelo consagrado de disposição das partes” do texto. No geral, seguindo a clássica divisão, generaliza-se a suposta “fórmula infalível” para a elaboração do texto perfeito, conforme declara G7: [...] em meu conceito anterior à disciplina, eu achava que um texto se baseava em introdução, desenvolvimento e conclusão como se fosse apenas uma redação escolar na qual estava acostumada a ouvir por aí. (G7, avaliação da disciplina) Ao seguir a fórmula à risca, o texto pode até “ficar certinho”, contudo, isso não garante a coerência dos sentidos nem mesmo a construção do texto como um espaço de intersubjetividade efetivo. Conceição demonstrou, ao analisar redações escolares, que os resultados da atenção exagerada à estrutura formal do gênero geralmente provocam uma junção de parágrafos desconexos em que cada um deles trata de uma questão, sem que se perceba a construção de uma unidade textual (CONCEIÇÃO, 2002, 11 12

O termo pode variar: “produção textual, gênero textual, redação, redação técnica, texto”. Na maior parte dos casos, o que se pratica é o ensino de um modelo de redação escolar. No Brasil, o foco das aulas (no Ensino Básico) deixou de ser o ensino da escrita, para ser “o vestibular”.

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p. 57, grifo nosso). Tal fato também foi no início da década de 90, denunciado por Costa Val: “É curioso como o produtor do texto tenta esconder a efetiva desarticulação entre os argumentos que utiliza sob a máscara de uma estrutura formal canônica, superficialmente perfeita [...]” (1993, p. 83. Grifo nosso). O exemplo seguinte, escrito por um professor (E12) participante do já referido Curso de Especialização, demonstra o uso do “modelo consagrado de disposição das partes” mascarando a desarticulação dos argumentos: Extrato 2 – produzido por E12 (ver nota 8) §1 Meu nome é (E12), tenho 25 anos de idade, sou professor de Língua Portuguesa e Literatura. Considero-me uma pessoa calma, séria e gosto bastante de aprender, de adquirir conhecimento. Sempre gostei muito da Língua Portuguesa e acho bastante interessante a complexidade da nossa língua materna. §2 Em minha vida pessoal sou sempre bem tranquilo, aproveito as horas vagas para conversar com os amigos, namorar, [...]. § 3 Já em minha vida profissional procuro ser bastante rigoroso e exigente com os alunos e comigo mesmo, mantendo sempre uma postura de firmeza nas decisões. [...] §4 Acredito ter uma personalidade parecida nos âmbitos pessoal e profissional, pois consigo ser sério e de fácil diálogo em todos os aspectos de minha vida.

Analisada a superfície textual, parece impecável. Não apresenta os perseguidos problemas de ortografia, de sintaxe nem de pontuação. Foi estruturado em quatro parágrafos que, provavelmente, seriam assim entendidos: um para a introdução, dois para o desenvolvimento e um para a conclusão. Mas indagamos: qual a questão central desse texto? Há articulação entre os parágrafos? Há pelo menos três questões independentes em torno das quais o texto poderia ser desenvolvido: no 1º § (introdução?), propõe-se a questão: o gosto pela língua portuguesa. Nos dois parágrafos seguintes (desenvolvimento?), a questão não é desenvolvida. Outras duas são propostas sem que seja feita a articulação com a introdução (no 2º §: “Em minha vida pessoal [...]” e no 3º §: “Já em minha vida profissional [...]”). A desarticulação se mantém 120

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em toda a redação encerrada no 4º § (conclusão?). Garante-se o esquema perfeito do modelo formal, mas a articulação das ideias e dos argumentos na construção de um sentido global para o texto é desconsiderada. É um indício de que a arquitetura textual e a ancoragem enunciativa sustentam-se no modelo consagrado de disposição das partes do texto. Ainda na definição de redação escolar, Guedes afirma que o escrevente expressa “... de forma vaga, genérica e monológica, sentimentos, sensações, opiniões sem a intenção de propor um diálogo a qualquer leitor”. A afirmação denuncia que os escreventes vão perdendo, ao longo da escolarização, a autonomia e a autoria do próprio discurso, o que afeta diretamente o desenvolvimento da discursividade, e, consequentemente, da capacidade de réplica que toda interlocução deve pressupor. Vão substituindo-o por expressões generalizantes, lugares-comuns, segmentos congelados de linguagem, numa espécie de réplica inconsciente do sujeito à instituição escolar13. O lugar-comum passa a ser o alicerce da suposta argumentação, as “vigas mestras” na arquitetura das redações escolares, o que corresponde à desconsideração das possíveis réplicas que sustentam o caráter dialógico do gênero em que se dá a interlocução. Pelo contrário, se levado em consideração o caráter dialógico do gênero: [...] a base de sustentação do gênero, suas vigas mestras se constituem, por um lado, pelo tempo/espaço em que é produzido e, por outro, pelas réplicas que produz. Estas últimas cobrem, mas também sempre deixam em alguma medida descobertas certas regiões do dizer, sejam elas atinentes à memória pretérita, ao acontecimento presente ou à memória de futuro (cf. sobre esta última: Bakhtin, 1992 [1992]; Geraldi, 1996, temporalidades axiais da relação com a alteridade) (CORRÊA, 2013, p. 6) [grifo nosso].

O trecho escrito pelo professor E7 é exemplar do que se ensina/escreve para a escola, lugar onde a réplica esperada, na maior parte das vezes, é apenas a nota para passar de ano. 13

Cabe destacar que, numa perspectiva dialógica, o sujeito e sua consciência se constituem a partir de sua relação com o outro (BAKHTIN, 2003 [1992], p. 316).

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Extrato 3 – produzido por E7 (ver nota 8) Sonho de criança (E7) A maioria das crianças tem sonhos e muitos não conseguem realizar aquilo que ele sonha [...]Criança cheia de energia sonha de tudo até o impossível, quando somos criança temos muitas imaginação e ideia [...]. O mundo infantil é movido pelo sonho e fantasia, todos sonham e desejam que eles se tornem realidade [...]. Conforme fomos crescendo os sonhos mudam e realiza-los torna uma corrida contra o tempo. [...].

Em E7, verificamos a circularidade do discurso que dá voltas e voltas e não consegue se desvencilhar do lugar-comum, da repetição de frases “pré-fabricadas”, evidenciadas, sobretudo, pela repetição (em 4 linhas 6 vezes) da expressão “sonho” em sua forma verbal ou substantivada. A respeito do lugar-comum, Pécora afirma que “são segmentos congelados de linguagem; usos que já não guardam nenhuma relação com os componentes particulares de uma situação única de produção da escrita [...]” (PÉCORA, 1983, p. 105-106, grifos nossos). O trabalho com a discursividade, numa perspectiva dialógica, pressupõe que toda enunciação é dirigida para o outro (BAKHTIN, 2003 [1992]). Tudo o que se diz ou se escreve é uma resposta (uma réplica ou confirmação) a outras enunciações, do mesmo modo que a resposta despertará novas apreciações, novas respostas. Defendemos a necessidade de a escola promover a “reconstrução da discursividade na escrita”, isto é, o aprendizado da escrita responsiva, consciente de que irá provocar o diálogo, suscitar respostas. Nesse sentido, reconstruir a discursividade designa a qualidade do dizer que se torna discurso, diálogo, depois de ter sido redação escolar (GUEDES, 2009). Para atingir um dos principais objetivos propostos na pesquisa e expostos neste capítulo – o de levar professores de Língua Portuguesa em formação a desviarem o olhar dos modelos fixos e descarnados de redação escolar, aprendida ao longo da escolarização, sem cair no outro extremo, o do ensino aleatório dos gêneros com fórmulas também pré-fixadas, nem deixar os escreventes à deriva –, esta proposta procurou levar os sujeitos

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a olharem para o texto e para o seu próprio discurso do ponto de vista da existência de quatro qualidades discursivas (unidade temática, questionamento, objetividade e concretude, explicitadas mais adiante), as quais são transversais e perpassam os diferentes gêneros, conforme propõe Guedes (2009). As qualidades discursivas nortearam as orientações para a escrita e a reescrita, a reflexão sobre os usos da linguagem, bem como o tratamento qualitativo-interpretativo dado à análise do material. 2. GERAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS Um dos desafios durante a geração de dados foi levar professores de língua portuguesa em formação, desacreditados da própria escrita, a compreenderem que ensinar a escrever textos não é apenas ensinar a reprodução de modelos, muito menos cumprir tarefa escolar, tampouco é um conteúdo ensinável somente para “os escolhidos”. Tomando por base tal desafio, estabelecemos como objetivo geral do trabalho: implementar procedimentos didáticos de ensino-aprendizagem da escrita para promover a reconstrução da discursividade de professores de Língua Portuguesa em formação, para capacitálos a conduzir com eficácia o processo de ensino da escrita na escola, visto que • ao longo da escolarização, contrariamente ao esperado, temse promovido, em grande parte dos casos, a desconstrução da discursividade na escrita; • é papel do professor de Língua Portuguesa contribuir para o desenvolvimento da competência escrita de seus alunos em sala de aula. • o professor de Língua Portuguesa precisa dominar a escrita, e constituir-se autor do seu próprio texto, para poder ensiná-la com segurança; • é possível, havendo o domínio de conceitos linguísticodiscursivos a respeito da escrita e um tratamento didático direcionado para o desenvolvimento da competência discursiva do escrevente, ensinar a escrever textos de boa qualidade na escola.

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A perspectiva processual, que conjugou teoria e prática, também pretendeu favorecer a transformação do medo da escrita, e da sensação de fracasso por ela imposta, em algo útil e valorizado para a formação docente buscada na universidade. Durante a geração de dados, havia um encontro semanal de quatro horas aula (foram 16 encontros no semestre/201214), na disciplina Escrita e Ensino, ministrados no laboratório de informática da Faculdade. Os encontros eram divididos em aulas teórico-práticas, nas quais havia produção escrita, análise/reflexão sobre a produção, correção textual coletiva, em pequenos grupos e individual, e reescritas constantes. A professora-pesquisadora, juntamente com os 31 alunos de graduação (identificados pelo código G1, G2, G3 e assim por diante), foram sujeitos desta pesquisa. Além dos textos escritos e (re)escritos durante o processo (450 versões), bem como a avaliação da disciplina pelos alunos, documentos tais como o Plano de Curso da disciplina Escrita e Ensino (2012), o diário de campo da professora-pesquisadora foram fontes de dados para a análise interpretativa de indícios (GINZBURG, 2003) que permitiram recuperar evidências do processo desenvolvido, das hipóteses de escrita construídas, dos resultados obtidos e da reação dos sujeitos à didática vivenciada. No ensino, o professor, tal qual um médico que examina e diagnostica seu paciente, precisa examinar o texto do aluno para compreender e interpretar (diagnosticar) qualitativamente as hipóteses de escrita15 do aprendiz, para indicar caminhos que promovam o avanço qualitativo e a criação de novas hipóteses a serem testadas e validadas, ou não, pelo próprio escrevente e/ ou pelo leitor-colaborador16. 14 15

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Na verdade, deveriam ser 18 encontros, contudo, em virtude dos eventos promovidos pela Faculdade, em dois deles os alunos foram dispensados. Os chamados “erros” discursivos na escrita foram vistos como “hipóteses de escrita” que o escrevente formula na tentativa de produzir a interlocução desejada. A expressão “hipótese de escrita” está sendo utilizada como sinônimo de trabalho reflexivo sobre os usos da linguagem que o escrevente faz em diferentes planos da língua ao escrever: seja no plano dos arranjos sintáticos no âmbito dos sintagmas, dos arranjos semânticos, ou mesmo do plano fonéticofonológico da língua/linguagem. O uso da expressão hipóteses de escrita neste trabalho opõe-se à ideia de “erro” e “acerto”, conforme as concepções de escrita como produto final a 1ª versão. Do ponto de vista didático, o uso dessa expressão indica a figura encarnada pelo professor ao ler/corrigir o texto em produção, pelos colegas ou por outros leitores que interagem com o texto em fase de elaboração.

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O tratamento qualitativo-interpretativo (e o didático) dado ao conjunto do material fundamenta-se, sobretudo, em pressupostos teóricos advindos do dialogismo (BAKHTIN, 1995 [1929] e 2003 [1992]) e da abordagem sócio histórica da linguagem, os quais permitem conceber: (a) a escrita como trabalho do sujeito com e sobre a linguagem, o que inclui a reescrita como constitutiva do processo de produção; (b) o discurso como modo de apreensão da linguagem na relação entre língua e história, considerando determinadas condições de produção; (c) o texto como unidade concreta da comunicação por meio do qual a réplica ao diálogo se estabelece na enunciação. Fundamentados nessas concepções, foram previstos no plano de curso os seguintes tópicos, explicitados a seguir na parte 3 deste capítulo: 3.1 – A ação responsiva na correção – a correção misto-discursiva; 3.2 – Critérios de análise e de correção discursivo-textual na proposta didática aplicada; 3.3 – Conceito e prática da reescrita. 3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: O PLANO DE CURSO E OS CONTEÚDOS TRABALHADOS DURANTE O PROCESSO DE GERAÇÃO DE DADOS 3.1 A AÇÃO RESPONSIVA NA CORREÇÃO – A CORREÇÃO MISTO-DISCURSIVA A correção é um dos procedimentos didáticos mais importantes no processo de ensino de produção textual. É, ao mesmo tempo, um dos aspectos mais problemáticos para os professores (que precisam ter um método eficaz de correção) e para os escreventes em formação (que precisam se sentir orientados eficazmente durante o processo de aprendizagem da escrita). Faltam, no entanto, critérios de referência para a correção textual, o que leva professores em formação (e os experientes também) a se tornarem autodidatas criando metodologias próprias para resolver a questão como podem. Na didática utilizada, os métodos de correção descritos na literatura [correção indicativa, classificatória, resolutiva (SERAFI125

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NI, 1994 [1985]) e correção textual-interativa (RUIZ, 2001)] usados isoladamente, não deram conta de permitir uma correção eficiente, nos moldes que pretendíamos corrigir os textos dos sujeitos da pesquisa para cumprir o propósito de orientar e motivar uma reescrita que resultasse em ganhos qualitativos ao texto. Precisávamos de um método de correção que atendesse, pelo menos, aos quatro componentes básicos destacados por Fuza e Menegassi (2012), nas recomendações que fazem para os comentários na correção, “[...] se tornarem claros e eficazes”: “a) Apresentação do problema a ser revisado; b) Identificação da localização do problema [...]; c) Apresentação do contexto em que se encontra o problema; d) Oferecimento de diretrizes para a reformulação do problema levantado”. No tratamento didático, fez-se a previsão de uso de um método de correção que envolveu um conjunto de procedimentos didáticos que denominamos de correção misto-discursiva17, explicitado mais adiante. Os três tipos (correção indicativa, correção resolutiva e correção classificatória) descritos por Serafini (1994 [1985]), os quais a autora constatou normalmente serem utilizadas pelos professores, revelaram-se pouco favorecedores dos objetivos de correção propostos para o trabalho que estávamos desenvolvendo, por se mostrarem limitadores da ação responsiva que o professor deve assumir no momento da correção. A correção indicativa corresponde a assinalar o problema, apenas indicando-o. Nesse caso, os escreventes sentem-se desorientados no que diz respeito a quais problemas as marcas se referem; a correção resolutiva corresponde a detectar e resolver pelo escrevente os problemas encontrados no texto. O trabalho de reflexão sobre o texto torna-se apenas do professor que ignora o processo dialógico esperado da correção. Como resultado, o escrevente, quando muito, passa a limpo o texto copiando as soluções propostas pelo professor; a correção classificatória consiste na identificação não ambígua dos erros através de uma classificação, segundo Serafini. Nesta estratégia, o problema principal está nos critérios de correção, geralmente selecionados segundo uma perspectiva estritamente gramatical. Na maior parte das vezes, a produção textual é usada como pre17

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Um embrião desse tipo de correção já havia sido utilizado e descrito por Conceição (2004, p. 331) no artigo “Correção de texto: um desafio para o professor de português”.

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texto para ensinar a metalinguagem e a classificação gramatical, conforme revela G11, ao avaliar a disciplina: [...] principalmente nas correções, eu me preocupava muito com a pontuação e acabava não saindo nada. Ruiz (1998) testou e descreveu a correção textual-interativa, que se caracteriza por comentários escritos após o texto do aluno em forma de bilhetes pós-texto, incentivando a reescrita, elogiando, ou cobrando o que não foi feito. Essa correção, embora pressuponha a ação responsiva na correção, dificulta a tarefa do professor que precisa retomar no bilhete, ao final do texto, o problema localizado em diferentes trechos da produção textual, para orientar a localização pelo escrevente. Além disso, embora destaque a importância da correção centrada nos sentidos e critique as correções superficiais, Ruiz não propõe uma ordem de prioridade na correção, como entendemos necessária. Isto é, primeiro deve-se centrar a correção nos sentidos, até que estes estejam suficientemente bem estabelecidos, para, então, corrigir as questões formais no texto. Para solucionar as limitações apontadas, testamos o método proposto na correção misto-discursiva que reúne um conjunto de intervenções concomitantes no texto em processo de elaboração, com o objetivo de levar o escrevente a tornar sua (re)escrita mais eficaz e compreensível (para si próprio e para os interlocutores desejados) do ponto de vista comunicativo e dos efeitos de sentido que pretende produzir. Essa estratégia de correção pressupõe que o problema detectado seja indicado com clareza (sublinhado, circulado, ou manchado com cor diferente do revisor Word). Após a indicação do problema, é necessário que seja oferecida uma sugestão, uma orientação ou um esclarecimento, em forma de diálogo, a respeito dos motivos que levaram o leitor/corretor a destacar aquele fato linguístico, próximo ao local onde o problema foi detectado, de maneira a facilitar sua localização para que a correção oriente a reescrita que se espera como reação à correção. Na execução deste método de correção, espera-se que os comentários sejam sempre guiados por critérios de correção que priorizem, num primeiro momento, as questões discursivotextuais relacionadas à coerência global e local dos efeitos 127

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de sentido pretendidos (neste trabalho, as quatro qualidades discursivas – unidade temática, questionamento, objetividade e concretude – a serem explicitadas no item 3.2, nortearam as correções e os comentários). Nos comentários, podem/devem ser dadas sugestões de alteração que requeiram supressões, acréscimos, deslocamentos ou paráfrases de diferentes partes do texto. Estas operações linguísticas podem promover alterações em um item lexical, ou em um período, ou até mesmo em vários parágrafos. O que irá determinar a extensão da operação linguística a ser efetivada será o problema de sentido detectado, a orientação dada no comentário e a motivação resultante para a reescrita. As questões formais, ainda que mais aparentes na superfície textual, devem ser objeto de preocupação nos comentários do professor somente quando as relações de sentido estiverem bem estabelecidas no diálogo proposto. Destacamos, a seguir, a 1ª versão do texto do sujeito G17, exemplar do gênero relato pessoal, para demonstração do método de correção na prática: Correção misto-discursiva à 1ª versão – G17 – Tema: Apresentação Pessoal Diagnóstico: Conceito “D” – ausência das quatro qualidades discursivas previstas e forte presenças de características da redação escolar.

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Como se pode verificar, a correção misto-discursiva conjuga vários procedimentos de correção (um mix) em um só tipo, sempre levando em consideração que os efeitos de sentido são construídos na relação dialógica do enunciador com os seus enunciatários: no local onde se detecta uma hipótese de escrita que mereça reflexão, faz-se uma marca (sublinha para indicá-la, por exemplo). Na margem, em local próximo à marca, escrevese o comentário em forma de diálogo (para isso, é necessário solicitar que os alunos deixem um espaço maior nas duas margens do texto, quando este for manuscrito). O comentário deve ser direcionado aos fatos discursivos, primeiramente. Vejamos que, no 1º parágrafo, o termo “varias” está sem acento, mas nenhuma menção foi feita a isso. (Os comentários C1, C2, C4, C6 C8 denunciam falta de unidade temática18 no texto de G17, um problema de sentido que afeta a coerência global do texto e a sua compreensão por parte do leitor; os comentários C3, C7, C9 denunciam falta de questionamento, de problematização da questão e C5, C6, C7, C8 denunciam a falta de objetividade e de concretude, problemas de sentido que afetam a completude e a compreensão local e global das informações, enfraquecendo a força responsiva prevista para a interlocução). Essa correção pressupõe uma hierarquia cronológica na correção dos problemas, em que os aspectos formais, mais visíveis na superfície textual, só devem ser corrigidos, apontados, destacados nos comentários/ correção do professor posteriormente à realização das reescritas direcionadas para a solução das questões referentes à temática geral, ao conteúdo e ao seu arranjo, em função dos efeitos de sentido desejados para o gênero e para a temática delimitada. Em outros termos, o “polimento” da superfície textual deve ser objeto de correção após as reescritas centradas nos arranjos de sentido. Isto é, recomenda-se que sejam corrigidos e comentados, por exemplo, problemas de concordância, de pontuação, de acentuação ou ortográficos (entre outros) na fase final de edição textual. Recomenda-se também que sejam preparadas concomitantemente aulas específicas para oferecer o conhecimento gramatical que os escreventes não 18

Unidade temática, questionamento, objetividade e concretude foram as quatro qualidades discursivas (discutidas adiante no item 3.2) que nortearam a análise qualitativa dos textos, os comentários e as reescritas.

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dominem, evitando-se, nas primeiras correções, deter a atenção nos aspectos mais aparentes na superfície textual (por mais salientes que sejam). Sugere-se que o professor anote os “problemas gramaticais”, em separado (não no texto do aluno), e prepare uma ou mais aulas nas quais trabalhe tais conteúdos analisando-os coletivamente nos textos escritos pelos próprios alunos. Esse procedimento didático pretende evitar que a correção seja direcionada para a mera higienização do texto, sem que os aspectos mais profundos e atinentes à unidade temática e à coerência global sejam trabalhados. De que adianta corrigir toda a pontuação numa primeira versão se, na reescrita, poderá haver a supressão ou o deslocamento de períodos e/ou de parágrafos inteiros, provocando alteração na pontuação anterior? Ao utilizar a correção misto-discursiva, portanto, caberá ao professor interpretar as hipóteses de escrita do escrevente em função dos efeitos de sentido que o escrevente pretende propor, para que possa dar sugestões de correção e reescrita. Apenas destacar “os problemas”, sem dar a orientação necessária que desafie o escrevente a repensar e a reescrever, é transformar uma hipótese transitória de escrita sobre a qual o escrevente deve ser desafiado a pensar, em um “erro” que precisa ser corrigido, consertado e pronto19. Feita deste ponto de vista, a correção irá resultar provavelmente na ação de passar a limpo o texto, o que não corresponde aos princípios dialógicos de correção e de reescrita desejados para o ensino-aprendizagem processual da escrita. Do ponto de vista didático, a correção deve ser entendida como um espaço dialógico (responsivo) entre professor-leitor, texto e escrevente em que aquele tem o firme propósito de orientar a descoberta dos pontos frágeis e dos fortes da interlocução proposta para que o aluno se sinta motivado e orientado a realizar a consequente reescrita. Partimos do princípio que a vivência do processo de escrita x correção misto-discursiva x reescrita levaria o escrevente a construir, a cada momento, novas hipóteses de escrita que lhe dariam, pouco a pouco, diversas possibilidades de réplica a outros sujeitos que não só a instituição escolar. É esse trabalho ativo e reflexivo 19

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Verificar, em Buin e Biasotto, aqui mesmo neste volume, a análise do caso de Marina.

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do escrevente sobre a linguagem que favorece a construção e a reconstrução de deliberados efeitos de sentidos sobre os interlocutores pretendidos. Para além do estudo teórico a respeito dos diferentes tipos de correção, os professores em formação foram submetidos à vivência teórico-prática do conceito de correção textual e ao exercício de um processo de correção aplicado aos textos dos colegas e aos seus próprios. Apesar disso, acreditamos que o processo havia apenas começado, precisariam de mais tempo e da aplicação do método de correção a diferentes gêneros, para haver mais sedimentação dos conhecimentos. O importante a frisar é que a correção deve ser desafiadora: ao mesmo tempo em que apontar os problemas e colocar o escrevente em conflito, deve sugerir saídas, levando o escrevente a assumir-se como sujeito de sua enunciação, a mover-se (de forma orientada) em busca de novas soluções, novas estratégias discursivas para (re)escrever aquilo que pretende dizer ao leitor/interlocutor desejado. 3.2 – CRITÉRIOS DE ANÁLISE E DE CORREÇÃO DISCURSIVOTEXTUAL NA PROPOSTA DIDÁTICA APLICADA: 3.2.1 – Qualidade discursiva 1 - unidade temática 3.2.2 – Qualidade discursiva 2 - questionamento 3.2.3 – Qualidade discursiva 3 - objetividade 3.2.4 – Qualidade discursiva 4 - concretude

Dentre os vários procedimentos investigados para a geração de dados, quatro qualidades discursivas postuladas por Guedes (199420-2009) e estudadas por Conceição (199921; 2000; 2002; 2004; 2011; 2012; 2015) foram o ponto central do procedimento teórico-metodológico utilizado para dar diretrizes ao professor em formação no processo de reconstrução da discursividade da sua própria escrita, bem como para a compreensão do seu papel de professor no ensino da escrita. 20 21

Tese de doutorado, publicada em Guedes (2009). Esse estudo começou em 1997 por ocasião da realização de nossa dissertação de metrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, concluída em 1999.

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As qualidades discursivas unidade temática, questionamento, objetividade e concretude devem ser entendidas como um conjunto de características que determinam a relação que o “texto vai estabelecer com seus leitores por meio do diálogo que trava, não só diretamente com eles, mas também com os demais textos que o antecederam na história dessa relação” (GUEDES, 1994, p. 227). Em outros termos, chamam a atenção do escrevente para o processo de escrita e direcionam a atenção para as relações de sentido estabelecidas na escrita entre o dizer que se enuncia com o já-dito e com a réplica a ser suscitada, tirando o foco do ensino da escrita centrado no código e na estrutura composicional, nos modelos pré-estabelecidos. 3.2.1 – QUALIDADE DISCURSIVA 1 – A UNIDADE TEMÁTICA A compreensão do conceito de unidade temática no enunciado concreto22 foi fundamental para a reconstrução da discursividade na escrita, conforme proposto na didática estabelecida para a disciplina Escrita e Ensino. A unidade temática é condição sine qua non para que o texto se constitua em uma unidade de sentido, independente da extensão ou do gênero. A compreensão desse conceito foi o primeiro aspecto trabalhado com os alunos de forma teórico-prática a partir da análise dos seus próprios textos. Discutiremos, a seguir, a importância da constituição da unidade temática nos gêneros com tipologia predominantemente narrativa, em específico no gênero relato pessoal, foco da disciplina Escrita e Ensino23. Assim, salientamos, logo de início, a necessidade de, ao produzir narrativas, o escrevente atentar-se para o fato de que: A unidade temática de uma narrativa começa a se constituir na disposição de contar uma história e esta envolve um enredo, um conflito, fatos, personagens e o narrador. Para que a narração tenha unidade, é necessário lembrar-se sempre de que, de tudo o que 22 23

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Compreenda-se “enunciado concreto” como toda situação concreta da comunicação verbal (BAKHTIN, 1995 [1929]; 2003 [1992]). Em 4 meses, não há tempo disponível na disciplina para aplicar esse conceito a diferentes gêneros e tipologias.

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aconteceu, só interessa contar aquilo que converge na direção do esclarecimento da questão que vai ser equacionada no texto (CONCEIÇÃO, 1999, p. 57).

A observação remete ao fato de que nem sempre tudo deve ser mencionado ao se narrarem certos acontecimentos ou fatos, ainda que ocorridos na situação real em que a narrativa se baseia. Em outros termos, à composição de um relato pessoal, não interessa se um fato aconteceu na realidade ou se foi significativo para o sujeito empírico que o vivenciou; interessa se ele é importante para a situação enunciativa e para os efeitos de sentidos a serem criados. É da incompreensão do conceito de “situação enunciativa” que se proliferam as redações escolares. Bakhtin defende que o tema, seja ele qual for, não será abordado pela primeira vez por aquele locutor; ao se tornar objeto de sentido de um enunciado, novos elos são estabelecidos, elos que ainda não existiam e que, a partir de então, fazem-se reais e singulares, prontos para suscitar outras respostas (BAKHTIN, 2003 [1992]). Não sendo possível a pretensa originalidade adâmica, não seremos os primeiros a abordar um determinado tema; possível é, no entanto, postular para o tema proposto uma questão central e atribuir a ela um valor (um olhar particular e inusitado) que, mantido em todo o texto, resultará na unidade temática. Em uma produção escrita, a unidade temática será estabelecida por meio do olhar particular que o escrevente/autor dará ao tema proposto. Sem construir a unidade temática, portanto, o escrevente, irremediavelmente, irá reproduzir uma redação escolar que não passará de mera junção de parágrafos24, ou fará “cópia” de muitas outras que já abordaram o tema daquele modo, “Porque nossa própria ideia [...] nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos dos outros [...]” (BAKHTIN, 2003 [1992], p. 298). Afinal, é da inter-relação entre o discurso do “um” e o discurso do “outro” que nasce o princípio expressivo e a criação singular. Todas as versões produzidas durante a pesquisa foram analisadas e avaliadas considerando-se a presença/ausência da 24

Não se trata aqui de uma junção de parágrafos ou de fragmentos que são redigidos de forma intencional para criar determinados efeitos de sentido pretendidos. Trata-se da escrita de modelos “aprendidos”, segundo uma tradição escolar de ensino de redação que não pressupõe a dialogia da/na escrita.

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unidade temática (a primeira qualidade analisada ao corrigirmos/ analisarmos os textos. Adiante demonstraremos as demais), visto que ela é fundante, é constitutiva do conceito de texto trabalhado. Em outros termos, sem unidade de sentido, não se constitui um texto, mas um amontoado de frases “com aparência de texto”. Apresentaremos a 1ª, a 2ª e a última (7ª) versão de G12, uma na sequência da outra, para facilitar a comparação entre elas. Nas margens do texto, próximo à localização da hipótese de escrita em discussão, estão os comentários resultantes da correção misto-discursiva utilizada durante o processo. Na 1ª versão de G12, escrita no primeiro dia de aula para o tema 1 (apresentação pessoal - gênero relato pessoal), exemplificaremos a ausência de unidade temática. Na 2ª versão, demonstramos as primeiras mudanças operadas e os indícios de um “embrião” de unidade temática. Na 7ª versão reescrita para o mesmo tema por G12, já se verifica a presença dessa qualidade discursiva estabelecida. A 1ª25 versão serviu a dois objetivos: para retomar o clima de produção textual que geralmente se instaura na escola e para o diagnóstico inicial.

25 ������������������������������������������������������������������������������������������������� A 1ª versão foi escrita antes de qualquer explicitação a respeito dos critérios de análise qualitativa dos textos (as qualidades discursivas) para a reescrita. Foi dado o tema e solicitada a produção sem mais explicações.

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Entre a 1ª versão e a 7ª de G12, houve intenso processo de reescritas vivenciado pela escrevente em busca de proporcionar as quatro qualidades discursivas. Do ponto de vista da didática, isso pode ser uma evidência da clareza dos critérios de análise e de correção, bem como dos objetivos da escrita (aonde se quer chegar). Os comentários decorrentes da correção do professor/ leitor-colaborador à 1ª versão apontam, sobretudo, que foi diagnosticada a ausência da unidade temática (sem unidade, as demais qualidades ficam comprometidas). Não há unidade na 1ª versão, mas vejamos que a estrutura canônica do modelo de redação escolar foi respeitada nos três parágrafos: introdução, desenvolvimento e conclusão. Os parágrafos, no entanto, não convergem para uma unidade de sentido, apenas marcam a estrutura formal (o modelo). A 1ª versão não ultrapassa sete linhas, mas está repleta de expressões generalizantes e imprecisas (escondem a história que deixou de ser contada) revelando a presença do lugar-comum ca-

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racterístico das redações escolares: apesar de tudo o que aconteceu [“tudo” o quê?], sou uma pessoa muito feliz [feliz? Como assim?] [...] pessoas maravilhosas [Quem são as pessoas? Por que são maravilhosas?]. A 1ª versão é um clássico modelo de redação escolar. No 2º§ da 1ª versão, a correção (cf. Comentário C3) destaca um aspecto que pode esconder uma intrigante história por trás dele: Meus pais se separaram já tem três anos, ele se envolveu com outra mulher [...]. Em casos como esse, geralmente, quando o professor tenta interagir, dialogar de modo produtivo com o texto do aluno, ao sugerir que conte essa história inusitada, o escrevente justifica que é uma história particular e ele não a quer contar. Do ponto de vista didático, deve-se orientá-lo a nem citar o fato no texto. O escrevente deve arranjar outro que queira partilhar com o leitor e lhe possibilite enfrentar a difícil tarefa de constituição do sujeito da linguagem em sua complexa relação com o mundo, com as coisas e com o próprio sujeito empírico. Em outros termos, é preciso levar o escrevente, enquanto sujeito da linguagem, a compreender, na prática, a relação de alteridade que existe quando se enuncia. Corrêa adverte que: O sujeito passa, pois, a ser redefinido pela relação de alteridade constitutiva de toda enunciação. Se, isoladamente, o sujeito empírico é um “fato em si”, um dado de realidade, não é como tal que ele articula a palavra e enuncia, já que está irremediavelmente marcado pela alteridade junto com a qual se constitui. (2013, p. 499)

Cabe, portanto, ao professor/leitor-colaborador, quando realiza a correção misto-discursiva proposta com objetivo formativo (objetivo de levar o escrevente a aprender a escrever e a (re)construir a sua discursividade na escrita, não só cumprir o conteúdo programado), a tarefa de apontar possíveis caminhos que possam ajudar o escrevente a encontrar soluções para a difícil tarefa de constituição do sujeito da linguagem, sem desconsiderar as relações de alteridade que perpassam a enunciação. No caso da 1ª versão do texto de G12, um dos primeiros problemas a ser enfrentado pelo escrevente foi dissociar sujeito

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empírico de sujeito enunciador para postular uma questão central em torno da qual iria organizar o relato para lhe dar unidade temática. A 2ª versão apresenta sensível melhora qualitativa, mas o estabelecimento do fio condutor do texto oscila entre duas questões (o problema de saúde de Carmem e a decisão de Leonildo), afetando a unidade temática. Tal fato linguístico-discursivo, no entanto, indicia que a escrevente está colocando em prática na reescrita o conceito de unidade estudado, o que revela uma tímida tomada de posição diante da escrita indiciadora de que o conceito de redação escolar ainda está fortemente impregnado na concepção de texto que a escrevente possui. É, provavelmente, em razão disso que apresenta várias expressões reveladoras da presença do lugar-comum e da consequente falta das qualidades discursivas questionamento, objetividade e concretude: Ele [...], ficou apavorado; o médico chega e solta uma bomba em suas mãos; o parto seria complicado; decisão mais difícil da vida; entrego tudo nas mãos de Deus e ele saberá o que fazer; extremamente complicado. Vale dizer que as afirmações generalizantes cabem em qualquer texto e podem esconder dados importantes, histórias que deixam de ser contadas, porque suprimem a descrição miúda, deixando lacunas que desfavorecem a inferência dos sentidos específicos que o escrevente quer atribuir26. Indiciam que, na concepção do escrevente, os textos são escritos para cumprir a tarefa escolar de juntar linhas no papel, as quais podem parecer texto, mas geralmente não passam da junção de frases e parágrafos desarticulados sem a intenção de serem lidos. Na 7ª versão, no âmbito da delimitação temática proposta (apresentar a si mesmo), é postulado um sujeito enunciativo é estabelecida uma questão central orientadora de toda a narrativa: a escolha de um pai entre a vida da mãe e a da filha. Observa-se que a questão organizadora foi estabelecida, problematizada e mantida como fio condutor em todo o texto. A pista a respeito dela está no título: “A escolha”. O leitor já é “fisgado” desde o início. Postular uma unidade ao texto é o primeiro passo para 26

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Infelizmente não há espaço para aprofundar a discussão a respeito da complexidade da construção dos sentidos pelo leitor e a respeito das concepções de sujeito enunciador e fonte (ilusória) dos sentidos.

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desarticular o modelo de redação escolar e aventurar-se pelos caminhos da dialogia. Não basta, entretanto, apenas postular a questão, ela precisa ser trabalhada de forma inusitada para fugir ao lugar-comum, ser problematizada para levar o leitor a envolver-se com a trama. São duas estratégias (ineditismo e problematização da questão) que remetem à qualidade discursiva intitulada questionamento. Essa qualidade tem a função de levar o escrevente a atentar-se para o fato de que o tema é de todos, mas o enfoque deve ser pessoal, desafiador e surpreendente ao leitor. 3.2.2 QUALIDADE DISCURSIVA 2 – O QUESTIONAMENTO Na produção escrita de narrativas, em especial do gênero relato pessoal, os fatos a serem selecionados devem sempre convergir para que a questão proposta seja problematizada de modo inusitado. Não interessa a nenhum leitor o lugar-comum, o enredo que qualquer um contaria “daquele jeito”. O questionamento tem a função de levar o escrevente a descobrir e a selecionar a questão mais inusitada e profunda dentre várias que a temática favorece. Nos textos demonstrados, se na 1ª versão para o tema 1 de G12, não há problematização nem ineditismo no modo de apresentar a questão, na 7ª versão, um fato inusitado surpreende o leitor no final: a escolha feita pelo pai. No decorrer do texto, o leitor é levado a criar a expectativa de desfecho infeliz (a perda do bebê), que não se efetiva. Nos gêneros com tipologia predominantemente narrativa, não se deve esquecer de que o conflito é a sua essência. Segundo Guedes (2002), se não for para contar um problema de forma inusitada, nem vale a pena juntar palavras no papel. O autor propõe que relatar fracassos é geralmente mais instrutivo do que relatar vitórias, tanto para quem lê, quanto especialmente para quem tenta entender, ao organizar seu relato, as causas do fracasso. As novelas televisivas, por exemplo, têm suas narrativas fundadas em um ou vários conflitos (núcleos) e quando estes se resolvem, a novela termina e “sai do ar”. Se assim não fosse, perderia os expectadores. No caso da 1ª versão do texto de G12, verificamos que sequer há uma questão, daí a impossibilidade de haver 139

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problematização. A falta de unidade, certamente implicará na ausência do questionamento e das demais qualidades discursivas. Na 2ª versão, há pelo menos duas questões que brigam para se estabilizar como fio condutor; entretanto, nenhuma se estabelece, pois não é problematizada. Fazem-se apenas afirmações vagas e generalizantes que denunciam a forte presença do lugar-comum. Na 7ª versão, observa-se que a questão organizadora foi problematizada dirigindo o olhar do leitor à coerência global do texto. Os trechos destacados da 7ª versão de G12 são exemplos de estratégias de problematização da questão favorecedora do questionamento na narrativa: Decidiu cortar o frango e temperá-lo. Ao cortar o terceiro pedaço, passou a faca ligeiramente em seus dedos e fez um profundo corte. Só sentiu o sangue rolando entre seus dedos, suas pernas foram estremecendo e tudo foi ficando escuro. Ela não podia ver sangue. [...]a enfermeira chega [...], com uma pasta em mãos. Na pasta havia um documento que deveria ser assinado por Leonildo optando pela vida de Carmem ou do bebê. [...]O médico estava com os olhos vermelhos, cheios de lágrimas. [...] As duas corriam risco de vida e só havia a possibilidade de uma delas sair com vida, fizemos o possível. [...] Leonildo quase desfaleceu. Há, no entanto, na 7ª versão, um trecho em que o discurso se organiza em torno do lugar-comum, evidenciando fragilidade na qualidade discursiva questionamento. No § 2º, ao colocar na fala do médico a informação a respeito da eclampsia, afirma: O caso da sua esposa pode evoluir para a eclampsia, uma situação grave que põe em risco a vida da mãe e do feto [...]. E continua narrando a sequência dos fatos sem criar nenhuma cena que descreva o comportamento da personagem com eclampsia (poderia, por exemplo, descrever os sintomas apresentados pela personagem), como se o leitor fosse especialista no assunto. Afirmar apenas que é uma “situação grave” ou que põe a “vida em risco”, não dá a especificidade necessária à questão (o que denuncia também a falta da qualidade concretude). A repetição do que já se sabe corresponde à não responsabilização pela novidade do seu dizer, à desconsideração do leitor. O conhecimento novo que o texto poderia proporcionar ao leitor pressuposto, a respeito da doença mencionada, não se concretiza. Além de fragilizar a problematização, denuncia que a qualidade discursiva objetividade 140

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não se estabeleceu, já que a busca de informações a respeito do assunto de que o texto trata fica a cargo do leitor (ou será que são esperados leitores especialistas no assunto?). Em outros termos, o questionamento diz respeito ao fato de que o texto deve apresentar a questão a ser tratada como um problema (e/ou uma novidade) para o leitor. O problema, a questão, precisa afetá-lo, incomodar ou agradar, provocandolhe uma reação. Assim, para proporcionar essa qualidade ao texto, é importante atentar-se para os seguintes aspectos: a) a problematização da questão e a proposição de uma solução ao problema, ou seu equacionamento, mostrando o caminho pelo qual poderia ser resolvido, ou apenas denunciado; b) a capacidade do texto convocar o leitor a agir, a pensar, a mover-se junto com ele, para concordar ou discordar das soluções propostas c) ao posicionamento responsável diante da questão discutida (evitar lugares-comuns e discursos prontos e consagrados). 3.2.3 – QUALIDADE DISCURSIVA 3 – A OBJETIVIDADE Dar objetividade ao texto significa fornecer as informações necessárias para que o leitor distante faça inferências e tire suas próprias conclusões. A construção do conceito de interlocução a distância, no sentido que propomos, terá sido bem-sucedida quando o escrevente obtiver sucesso na pressuposição dos seus virtuais leitores. Tal sucesso pode ser observado quando há ativação da capacidade de antecipação de dúvidas e/ou objeções do leitor pretendido, fato que ocorre quando se elabora um texto com suficiência de informações, sem falta ou excessos, isto é, na “justa medida”. A objetividade tem a função de levar o escrevente a compreender a importância da peculiar relação que deve manter com seus leitores e consigo mesmo para constituir-se enunciador. É a qualidade que o deve levar a se ver de fora (como um leitor do próprio texto) e a postular um leitor exigente que deve receber todas as informações necessárias para compreender/inferir satisfatoriamente a questão proposta, sem ver desconsiderada sua capacidade de inferência e sem ter de adivinhar o que deveria ser informado. 141

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Três aspectos são importantes para preocupar-se com a objetividade que o texto deve transmitir ao leitor (todas elas têm relação com o processo de alteridade que ocorre na enunciação): as dúvidas que sua escrita possa provocar, as objeções que suas afirmações possam suscitar e as inferências que o leitor será capaz de realizar. A objetividade, portanto, tem a função de possibilitar o aprendizado da antecipação às dúvidas, às objeções e à capacidade de inferência do leitor. Por meio dela, o escrevente aprende a avaliar a suficiência de dados que uma interlocução à distância requer. Ao constituir-se enunciador de uma narrativa, o escrevente precisa decidir por que motivo contar aquela história pode ser útil para si e para quem vai ler. É dessa percepção que nasce a clareza do diálogo desejável para a interlocução pretendida. Não basta, no entanto, ter clareza do diálogo pretendido, nem mesmo das informações que pretende partilhar com o leitor. Para que o texto seja interessante, é necessário que, além disso, as informações, os fatos selecionados para contar a história desejada sejam apresentados de modo inusitado, específico, peculiar e concreto. Para atender a essas exigências, é preciso ater-se à quarta qualidade discursiva utilizada no trabalho desenvolvido, a concretude. Em outros termos, além de aprender a “justa medida” das informações que o texto deve apresentar, é preciso aprender a organizar e a apresentar as informações utilizando estratégias discursivas que prendam a atenção do leitor. 3.2.4 QUALIDADE DISCURSIVA 4 – A CONCRETUDE Para dar concretude a um relato pessoal, é necessário muito mais que “informar”, relatar fatos. É preciso “mostrar a cena” daquilo que se quer partilhar com o leitor, para que avalie a palavra do narrador e tire suas próprias conclusões. Para “mostrar mais do que apenas dizer”, deve-se colocar ao lado do nome que se dá às coisas, aos sentimentos, aos eventos, aos valores explorados no texto, o exemplo concreto, a descrição miúda, a narração que mostre o peculiar sentido que se quer atribuir às situações que a palavra designa. Guedes (2002) exemplifica essa qualidade por 142

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meio da resposta que o poeta João Cabral de Melo Neto deu em uma entrevista à Revista “Isto é Senhor”, quando lhe foi feita a seguinte pergunta: “O que o Sr. diria a um jovem poeta que deseja construir seu objeto?” Respondeu o poeta: Essas coisas são muito difíceis. Primeiro, que evite sempre a palavra abstrata e prefira a palavra concreta. Eu acho que a palavra maracujá é muito mais poética do que melancolia, porque maracujá você sabe o que é. Se eu ponho num poema maracujá, estou pondo um objeto diante de sua vista; se ponho melancolia não, porque tenho um conceito de melancolia, você tem outro. Cada pessoa chama tristeza, melancolia, depressão e essa coisa de um estado diferente. Porque usando essas palavras abstratas você não pode ser preciso. Você dilui a poesia porque usa uma palavra que tem dez sentidos, cada pessoa dá o seu sentido a essa palavra, ao passo que maracujá ninguém confunde com manga (Isto é Senhor, n.º 1059, 03/01/90. Citado por GUEDES, 2002). [Grifo nosso].

Em uma produção escrita é necessário, sobretudo, atentarse para os seguintes procedimentos que favorecem a concretude: a) evitar as generalidades e imprecisões (lugar-comum e expressões generalizantes, cujo significado o leitor pode preencher com o sentido que quiser atribuir a elas – se eu ponho num poema maracujá, eu estou pondo um objeto diante de sua vista [...] se ponho melancolia não, porque tenho um conceito de melancolia, você tem outro); b) dar um sentido particular e concreto às afirmações, para que o leitor confronte o que o texto diz com o particular sentido que já tem construído para si (maracujá ninguém confunde com manga); c) construir com precisão o significado que se quer transmitir no texto de modo a permitir que o leitor experimente, ao “ver a cena”, sentimentos, emoções, questionamentos produzidos e, dessa relação interlocutiva, construa novos conhecimentos, dialogue com o texto (evite sempre a palavra abstrata e prefira a palavra concreta).

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Do ponto de vista didático, para dar concretude à narrativa, é muito instrutivo que o escrevente aprenda a fazer projeções. As projeções permitem a “transferência de valores, características, sensações provindas do domínio de origem para o domínio alvo” (ABREU, 2008, p. 80). Na literatura, dentre os recursos de projeção mais utilizados pelos escritores, Abreu destaca as projeções metonímicas (projeção da parte no todo) e as metafóricas (projeção por comparação). Abreu argumenta que a maior parte da nossa experiência e do nosso conhecimento se organiza por meio de histórias. Afirma que nas nossas pequenas histórias “somos capazes de distinguir objetos de pessoas, um objeto de outro objeto, uma pessoa de outra pessoa. Somos também capazes de distinguir objetos de eventos” (ABREU, 1998, p. 57). Destaca que grandes mestres como Jesus, Buda, Platão utilizaram projeções por parábolas para ensinar conceitos abstratos de forma concreta. Esse processo cognitivo de projeção que permite reunir fatos e acontecimentos do dia a dia em pequenas histórias é uma característica do desenvolvimento cognitivo e cultural do ser humano que o ajuda a entender o mundo e deve ser aproveitada no ensino da escrita. Uma das principais dificuldades no ensino da escrita é que, diante de tantos problemas postos em pauta no processo de escrita, e frente à ausência de critérios discursivos que orientem o olhar do escrevente e do professor, ambos gastam energia intelectual tentando salvar o que está aparente na superfície textual, deixando de lado as questões mais profundas e responsáveis pela qualidade textual, conforme aponta G16: [...] vale a pena saber escrever bem antes de corrigir o texto do outro. Eu antes observava primeiro a gramática em um texto, hoje, deixo por último. (G16, avaliação da disciplina). Um dos cernes do problema do ensino da escrita parece estar na ausência ou na falta de clareza de critérios discursivotextuais que proporcionem uma orientação clara a respeito da qualidade esperada na produção. No trabalho desenvolvido, a utilização das quatro qualidades discursivas deu um norte ao processo, na medida em que dirigiram o olhar da professora e dos escreventes para o aspecto qualitativo, desviando-o da superfície textual.

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A 1ª versão para o Tema 2 (Relato de uma emoção forte) de G4 é um exemplar de redação escolar em que se veem problematizadas as qualidades discursivas objetividade e concretude. A 9ª versão evidencia os resultados do trabalho linguístico da escrevente. Para favorecer a comparação entre os dois exemplares, apresentaremos a 1ª versão, classificada pelos escreventes como chata (e cansativa) de ser lida, e a 9ª versão, a qual disseram prender-lhes a atenção27.

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Em sala de aula, após a leitura oral do texto, eram solicitadas apreciações desse tipo, as quais, mesmo parecendo do senso comum, suscitaram questões de ensino discutidas com os professores em formação.

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A 1ª versão para o tema 2 foi elaborada por volta do nono encontro (final do segundo mês de aulas), quando os escreventes já tinham mantido intenso contato com os critérios de análise/correção dos textos. Antes de nos atermos à análise da objetividade e da concretude, buscamos indícios da atenção que a escrevente 147

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deu à unidade temática e à problematização da questão na 1ª versão para o tema 2. Verificamos, na 1ª versão (Tema 2), que há um embrião de unidade temática (o acidente com Pierre), indiciando que G4 está colocando em prática o conceito de unidade em seu texto; entretanto, ainda se mostra afetada pelo ineditismo do saber elaborado pela escrevente. Vejamos que, no 2º§ da 1ª versão, aparece a seguinte informação: Naquele ano de 2006, o Brasil foi para Copa do Mundo... Pode parecer boba essa informação nesse contexto, mas é ela necessária aqui [...]. A expressão Pode parecer boba é um dado singular, revelador de que a escrevente esperava a réplica do leitor-colaborador pressuposto (professora) a respeito da unidade temática. É um indício de que a escrevente tinha consciência de que a informação sobre a copa do mundo naquele parágrafo poderia provocar, um (segundo sua compreensão) “aparente” problema de unidade. O uso do articulador adversativo “mas” no 2º§, em [...] mas é ela necessária aqui (onde foi colocada parte da informação a respeito da copa do mundo) e o aviso ao leitor que ela precisava ser mantida ali é, sobretudo, um indício da preocupação da escrevente com o estabelecimento da unidade no texto, problematizando-a ao associá-la à ideia de desastre, exposta no último parágrafo, onde retoma dois desastres (o de Pierre e o da perda da copa) – Cara, quase que você não vê o Brasil ganhar a Copa do Mundo este ano. [...] Vai ver a Seleção Brasileira também estava deslocada nos jogos daquele ano e quase se afogou também. Esses fatos linguísticos indiciam que a escrevente estava experimentando hipóteses de estabelecimento da unidade temática, mesmo afetada pelo ineditismo dos saberes que tenta articular, o que resulta numa organização das informações desfavorável ao estabelecimento da unidade temática naquele gênero. Tal fato não deve ser entendido simplesmente como “erro”, mas parte de um processo dialógico em construção por G4. Do ponto de vista da reconstrução da discursividade na escrita, revela singularidade na apreensão do gênero, indício de que está ocorrendo a desestabilização do “modelo” preestabelecido de redação escolar. 148

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Outro indício de que G4 está processando o conceito de unidade temática atrelado ao questionamento em seu texto revela-se quando “plasma”28 das práticas orais (relatos orais, por exemplo) para o relato escrito, a expressão: Voltando à tragédia [...], para “avisar” o leitor que o fio condutor foi retomado. No gênero trabalhado, no entanto, tal percepção é realizada por inferência pelo leitor. Comparando a 1ª e a 9ª versão reescrita, verificamos o processo de investimento da escrevente, na 9ª versão, nas qualidades unidade e objetividade, evidenciado, sobretudo, pela exclusão de informações desnecessárias à coerência global. A problematização da questão central, fragmentada na 1ª versão, em decorrência das informações antecipadas fora de hora ao leitor, dá indícios de que está se apropriando do caráter dialógico fundante da linguagem, o que resulta na abertura de espaços para alguma singularidade na história que pretende contar (problematizando-a), mas isso favorece o aparecimento de apropriações inéditas que a fazem circular entre o diálogo buscado (e a réplica que o constitui) e o modelo repetível de redação que faz parte de suas experiências escolares. Quanto à correção, analisemos os direcionamentos na 1ª e na última versão (a 9ª). Dentre os comentários feitos à 1ª versão, verificamos que o leitor-colaborador questionou a respeito da pertinência da informação “solta” no 2º§ (réplica, de certo modo, esperada pela escrevente, conforme indício destacado – cf. comentário C5 – 1ªV): Se a autora acha a informação boba, será que a informação procede? Não é justificando que irá convencer ao leitor. Se for procedente, o leitor perceberá. Verifique se não está causando problema à unidade no texto. Tal comentário, do ponto de vista didático, instiga a escrevente a refletir a respeito da hipótese de escrita utilizada em relação à questão central postulada (acréscimo de informação nova) e a experimentar outras possibilidades de estabelecimento da unidade temática, deixando-lhe evidente que a hipótese discursiva utilizada não havia funcionado. Em outros termos, os comentários à 1ª versão evidenciam a percepção pelo professor/leitor-colaborador da circulação da 28

Tomo emprestado esse termo de Corrêa (2004; 2013) que o utiliza em seus textos para explicitar a noção de heterogeneidade da escrita, mas o faço sem responsabilizá-lo pelo uso que assumo.

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escrevente pelos diversos saberes que a constituem, assim como pelos novos, com os quais estava se defrontando. Na 9ª versão, os comentários decorrentes da correção evidenciam a presença forte de uma questão organizadora do todo textual, (cf. C7- Agora está um texto interessante de ser lido. Tirou o excesso e acrescentou o que faltava sem prejudicar a unidade). As informações quanto à questão central apresentam-se na justa medida e descritas em cenas concretas que permitem ao leitor tirar suas próprias conclusões. É uma evidência de que as reescritas favoreceram as apropriações buscadas pela escrevente para o gênero proposto. Além da unidade, a concretude é um aspecto revelador da circulação de G4 entre o diálogo que busca e o modelo repetível de redação na 1º versão. Isso é indiciado pelas expressões “paisagem linda” e “belo”, em: Paisagem linda, um belo pôr-do-sol. Na correção, há o seguinte comentário (C1) denunciando a necessidade de concretude e de objetividade: Como é esse pôrdo-sol? O leitor quer julgar. Na 9ª versão, a solução apresentou-se na seguinte cena (concreta e objetiva) de pôr-do-sol: Enquanto conversávamos e jogávamos água um no outro, olhávamos hipnotizados o pôr-do-sol. O sol era engolido pelo mar e seu reflexo coloria todo o céu de laranja. Eis outro trecho da 1ª versão em que a concretude é foco de atenção na correção que problematiza ao escrevente a sua apropriação do modelo de redação escolar indiciado no texto pelas expressões generalizantes: “angústia, desespero, todos, sentia”: Toda a angústia e desespero que todos sentíamos era totalmente o contrário ao que ele sentia. São expressões que, no dizer do poeta João C. de Melo Neto, possuem dez sentidos. Precisam, portanto, de concretude, para que seja dada a especificidade de seu sentido no texto. O comentário (C6), além de problematizar a concretude, destaca a importância de não perder de vista o leitor: Descreva, coloque uma cena com as personagens vivendo essa angústia e esse desespero para o leitor avaliar! A solução apresentada na última (9ª) versão foi a seguinte cena, concreta e objetiva: Nós três corríamos de um lado pro outro. Implorávamos por socorro. Meu pai e meus primos dispararam do outro lado da praia na busca por salva-vidas. As pessoas em volta se

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solidarizavam: umas procuravam os salva-vidas e outras diziam que ia ficar tudo bem pra mim. Eu chorava muito, agarrada na minha tia. Me ajoelhava rezando e pensando em um resgate de dias até que a minha esperança e a da minha família por sua procura se esgotasse. Era tarde demais. A capacidade de inferência do leitor é respeitada, já que não se faz mais necessário afirmar explicitamente que as personagens estavam desesperadas e angustiadas. Cabe destacar, a respeito do uso das qualidades discursivas como critério básico de análise qualitativa dos textos, o testemunho de G22, por revelar que uma orientação clara do processo de escrita/reescrita pode levar, inclusive, à superação do medo de escrever: Durante toda minha trajetória escolar, nunca tive a oportunidade de ter uma disciplina com esse nível de aprendizagem. Confesso que fiquei com muito medo de não conseguir produzir um texto com as qualidades discursivas necessárias para a compreensão do leitor. Estou muito feliz por ter superado esse medo e atingido todas as expectativas. (G22, avaliação da disciplina).

4. CONCEITO E PRÁTICA DA REESCRITA TEXTUAL Em uma visão processual de ensino da escrita, a compreensão de que a reescrita é constitutiva da produção textual é fundamental, por isso mesmo, não deve ser deixada à deriva (reescrever o quê? para quem? com que objetivo?). Deixar à deriva significa esperar que a reescrita seja realizada, por exemplo, segundo procedimentos equivocados na correção, tais como: a) comentários superficiais nas primeiras versões (geralmente centrados nos aspectos gramaticais vistos como inadequados do ponto de vista morfossintático, ortográfico, lexical...) e b) comentários díspares e genéricos (do tipo “está confuso”, “melhore sua ideia”, “seja mais claro”, “incoerente!”). Tal correção/comentário significa desorientar o escrevente que fica sem saber para onde olhar em seu texto. Dificilmente atingirá as expectativas esperadas ao final do percurso didático. O trabalho com a reescrita textual em sala de aula deve partir da prática. Neste trabalho os escreventes foram levados a 151

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vivenciar o processo em seus próprios textos, reescrevendo-os após análise e comentários, segundo critérios previamente estabelecidos e estudados pelos alunos (as qualidades discursivas explicitadas). Não se falou sobre, vivenciou-se o processo de reescrita na prática: Tema 1: 7 reescritas; Tema 2: 6 reescritas. Para o tema apresentação pessoal, na 1ª versão, escrevi algo muito evasivo, sem fio condutor. A partir da 2ª versão, consegui escrever um texto que tinha unidade e isso me animou a reescrever e a melhorar. Já no tema emoção forte foi mais fácil. Eu tinha os pontos essenciais que um texto precisa ter mais definidos em minha cabeça. (G20 – avaliação da disciplina)

Para trabalhar a reescrita do ponto de vista teórico-prático, solicitamos produções textuais para dois temas (gênero relato pessoal) no semestre: tema 1: “Apresentação pessoal” e tema 2: “Relato de uma emoção forte”. Ambas as produções para o gênero relato pessoal, com tipologia predominantemente narrativa29. A escolha dos dois temas e do gênero foi definida em razão de que poderíamos contar com o domínio da temática pelos escreventes, já que eram temas relacionados ao cotidiano. Os dois temas foram divulgados no início das aulas juntamente com a notícia de que não haveria prova, os textos produzidos e as leituras realizadas seriam avaliados para efeito de obtenção dos créditos na disciplina. Os 31 alunos se entreolharam e G18 arriscou: São só dois temas para o semestre inteiro, professora? A senhora tem certeza? A quantidade de temas a ser solicitada durante o período letivo é um sério problema enfrentado por professores de Língua Portuguesa porque não se pode estabelecer uma regra quantitativa a priori. O terreno é movediço: depende do gênero trabalhado, do tema escolhido, da proficiência na escrita, do aprendizado, entre outros. Então o que fazer? A experiência já nos mostrou o que não fazer: não é possível ensinar a escrever e a reescrever 29

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A definição da quantidade de temas para as produções escritas (2 temas) e a diversidade de gêneros trabalhados (1 gênero) estão relacionadas, sobretudo, à pouca carga horária da disciplina (72h em 1 semestre) e à falta de proficiência na escrita apresentada pelos estudantes que ingressam no curso de Letras/UFGD.

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(tendo por objetivo a formação do escrevente) se a cada aula for apresentado um tema ou gênero novo. Para o texto ganhar qualidade, é preciso ser reescrito. Isso demanda tempo, reflexão, clareza de critérios de correção/análise e muito trabalho. No primeiro dia de aula, sem muita explicação, solicitamos que escrevessem um texto para se apresentarem. O tema sugerido foi “Apresentação pessoal” (recriou-se a situação normalmente vivenciada na escola onde, geralmente, dá-se um tema e solicitase a redação aos alunos sem muita explicação). Após terminarem rapidamente a produção (o último aluno a entregar o texto naquela primeira aula o fez após 20 minutos), recolhemos e informamos que traríamos corrigido na aula seguinte. Em seguida, foi projetado em Power Point um texto escrito para o mesmo tema numa situação semelhante à vivenciada e demos início à análise, segundo as quatro qualidades discursivas. Informamos que elas serviriam de critério de avaliação e de análise qualitativa na correção dos textos por eles produzidos, bem como serviriam para orientá-los nas reescritas. Não demorou muito para, preocupados, pedirem seus textos de volta, alegando não esperarem a leitura, nem a análise, muito menos a correção naqueles moldes. Isso evidenciou o primeiro diagnóstico a respeito do modo como concebiam a produção textual: uma tarefa a ser entregue ao professor, não uma proposta de interlocução com leitores. O resultado observado durante e após a produção escrita, no primeiro momento da aula, foi o mesmo que geralmente se verifica no ensino Básico: descaso, desânimo e descrédito com a própria escrita: Como eu escrevia mal. Meus textos eram todos fragmentados, sem graça, ou seja, não chamavam a atenção do leitor. Antes eu não conseguia enxergar as falhas dos meus textos. (G29, avaliação da disciplina). Terminada a análise daquele texto, perguntamos quem gostaria de ler para a sala o que havia acabado de escrever e tê-lo analisado pela professora naquele momento. Silêncio total. Uma aluna (G30) arriscou: Mostrar texto ruim para quê? Percebemos, na pergunta, implícita a lembrança das aulas de Português em que só o melhor texto é/era lido para a sala e 153

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é/era exaltado o dom da escrita de poucos. A maioria fica/va com o gosto amargo da sensação de fracasso diante da escrita. Em outros termos, a verdadeira pergunta era: quem quer ler o texto para ser ridicularizado? No ensino da escrita, deve o professor atentar para as representações do sujeito, o que significa levar em conta as experiências sociais do escrevente sobre a sua própria escrita. Diante daquele desafio, acrescentamos que o professor de Português não pode apenas achar bom ou ruim um texto, precisa saber demonstrar o que faz com que o texto seja assim classificado pelo leitor (por ele próprio) para que os alunos possam aprender a escrever em vez de ficar com medo da escrita. Aproveitamos para esclarecer um dos principais objetivos práticos do trabalho: descobrirem critérios que podem levar o leitor a gostar de um texto e detestar outros, por meio da análise comparativa entre o texto por eles considerado “bom” e o considerado “ruim”. Informamos que, no final do semestre, os textos considerados bons por eles próprios seriam expostos em banner, publicados e apresentados em um sarau na Faculdade para os demais acadêmicos. Teriam, para isso, o direito de reescrever seus textos quantas vezes julgassem necessário, ao longo do semestre. Teriam como critério norteador as qualidades discursivas que passaram a ser apresentadas naquele momento a eles. O silêncio dos alunos denunciou indisposição para vivenciar o processo. O semblante e os olhares cruzados demonstraram enfado e rejeição à ideia de escrever/reescrever. Uma aluna (G13) arriscou outra pergunta: Reescrever o mesmo texto várias vezes? Não será um tema novo? Professora, ficar passando o mesmo texto a limpo não vai ser mole, não. Aproveitamos a deixa para desafiá-los a conhecerem um método diferente de “passar a limpo”. Ao final do processo, a mesma escrevente fez a seguinte avaliação a respeito da reescrita textual vivenciada: Até então eu nunca havia reescrito meus textos, nem sabia dos requisitos necessários para a construção de um bom texto (G13, avaliação da disciplina). Na escola, geralmente, reescrever é tomado como sinônimo de passar a limpo o texto. De nada adiantaria a proposta de ensinar a escrever ou de reconstruir a discursividade na escrita se os alunos não aprendessem, na prática, uma nova concepção

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de reescrita. Essa era uma das metas do trabalho que G15 testemunha ter aprendido: É uma mudança real de modelo de ensino. Por isso, é preciso entender que a escrita é como a feitura de um jardim. Aos poucos vamos burilando, colocamos, tiramos e, às vezes, refazemos tudo. E o resultado é o fruto do nosso trabalho. Tema 1, fiz 8 reescritas; Tema 2, fiz 4 reescritas. (G15, avaliação da disciplina).

Na perspectiva dialógico-discursiva, reescrever é um processo constitutivo da escrita e corresponde aos diversos retornos que o escrevente faz ao texto em processo de elaboração, mediado pela interação de três instâncias: 1) a do escrevente; 2) a dos critérios de análise/correção textual e 3) a do leitor-colaborador. O escrevente foi instigado a constituir-se autor do seu dizer durante a criação textual em vez de escrever para cumprir tarefa que consistisse meramente em repetir modelos. Os critérios de análise, as qualidades discursivas explicitadas, funcionaram como parâmetros utilizados para levar o professor-leitor e o escrevente a refletirem a respeito da qualidade da sua própria escrita. O leitor-colaborador teve a função de ler e interagir com o texto e seu escrevente (intervenções orais ou escritas) com o objetivo de contribuir para a melhoria qualitativa do texto em fase de produção. Constitui-se numa “personificação” do leitor distante e das possíveis réplicas que sempre devem ser dele esperadas (um recurso metodológico, portanto), já que a escrita é uma modalidade que favorece a interlocução a distância30. O leitor-colaborador, no ensino-aprendizagem de produção textual, favorece a compreensão do conceito de mediação (VIGOTSKY, 1996 [1954])31 e dos seus desdobramen30

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Na pesquisa desenvolvida, a instância leitor-colaborador foi ocupada tanto pela professorapesquisadora como pelos colegas (eram também incentivados a convidar outras pessoas a lerem seus textos), cuja função era auxiliar o escrevente a “enxergar” e a pressupor o leitor distante incluindo-o no processo de escrita/reescrita. Subjacente a esse procedimento está a concepção de desenvolvimento proximal, conforme propõe Vygotsky (1996). Ele explicita a importância de se mediar a distância entre o nível de desenvolvimento real dos sujeitos – determinado pela capacidade de resolver problemas independentemente – e o nível de desenvolvimento proximal – determinado pela capacidade de solucionar problemas com ajuda de um parceiro mais experiente.

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tos na aprendizagem, por parte do professor em formação e é fundamental para se praticar uma didática de escrita/reescrita que resulte em avanços. Um dos procedimentos mais eficazes de mediação e que motivou a reescrita foi a instauração da leitura pública do texto em fase de elaboração, para a análise coletiva. A leitura pública, seguida da análise discursivo-textual coletiva, funcionou da seguinte maneira: a cada encontro era dada a oportunidade para qualquer escrevente disponibilizar seu texto para ser lido publicamente em sala e analisado coletivamente, segundo as quatro qualidades discursivas estabelecidas como critérios de análise. Poderia ser disponibilizado um texto modelo pela professorapesquisadora para ser analisado coletivamente em sala de aula (o texto modelo podia ser de diferentes autores, inclusive de ex-alunos da disciplina, desde que apresentassem as quatro qualidades discursivas, ou de autores consagrados). O texto lido e analisado era disponibilizado em pendrive e projetado em datashow. Vez ou outra, o texto foi lido e analisado por todos sem ser projetado. A leitura pública (de textos modelo e de textos em processo de produção) e a correção coletiva (segundo critérios discursivos objetivamente estabelecidos) teve a intenção de promover a interação e a mediação coletiva a fim de contribuir para o escrevente: a) compreender o conceito de interlocução a distância; b) responsabilizar-se pelo seu dizer diante dos leitores, desde a fase de produção de seu texto; c) discutir simultaneamente as hipóteses de escrita comuns a vários escreventes, visando à superação do medo de escrever, de “errar” (eram discutidas coletivamente as hipóteses de escrita à luz das qualidades discursivas), com isso, os escreventes “enxergavam” problemas similares em seu próprio texto (as questões discutidas poderiam ser comuns a vários); d) incentivar e agilizar a reescrita, visto que, antes mesmo de o professor corrigir individualmente, com a clareza das reflexões e a identificação da própria hipótese de escrita, os escreventes encorajam-se a realizar novas reescritas independentemente da solicitação do professor. Isso equaciona um sério problema vivenciado pelos professores que trabalham com o ensino de produção textual – a falta de tempo para corrigir as inúmeras versões (reescritas) semanalmente. 156

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A leitura pública e a análise coletiva, portanto, cumpriram o objetivo de promover a interação, facilitar a mediação (em aulas de ensino da escrita, nem sempre o professor consegue tempo para atender individualmente cada aluno. Além disso, a dúvida de um, pode ser a de muitos. Ao ser discutida coletivamente, ganha-se tempo e qualidade na mediação) e levar os escreventes a criarem autonomia para “enxergar” e validar ou corrigir as hipóteses de construção de sentido no seu texto, diminuindo a dependência do professor: Hoje, ao escrever meus textos, já olho de modo diferente. Percebo falhas que não enxergava antes. Adquiri um conhecimento que me ajudará quando, em sala de aula, confrontar os textos dos alunos. (G20) A estratégia didática da leitura pública, aos poucos, foi levando-os a perceberem que nem os seus, nem os textos dos colegas estavam “perfeitos” na 1ª versão e poderiam necessitar da 2ª, da 3ª, da 10ª versão ... e, nem por isso, alguém pode ser desqualificado; pelo contrário, todos empenharam-se em assumir a posição de leitor-colaborador em uma espécie de coautoria, conforme revela G31: O principal aprendizado foi a ação do professor como participante no processo de reescrita dos textos de seus alunos. Quando se trata de correção textual visando à reescrita, é preciso que o professor tenha clareza dos seus objetivos com a correção a ser feita. Se é para promover a formação e o aprendizado da escrita pelo aluno, a correção deverá inicialmente ser direcionada para o diagnóstico das hipóteses de escrita atinentes às relações de sentido, para, a seguir, orientar os alunos na descoberta das suas próprias limitações na escrita. Para tal, necessita dar orientações claras e objetivas que orientem as reescritas (isto é, segundo critérios bem estabelecidos e conhecidos pelos alunos). De nada valerá corrigir e simplesmente atribuir uma nota (correção avaliativa), sem diagnosticar os problemas e sem dar condições ao escrevente de superá-los32. Na pesquisa, o diagnóstico foi realizado não só por meio da produção inicial (1ª versão), foi retomado a cada reescrita em que o professor fazia correção. Cabe destacar que, por meio do diagnóstico, coletam-se informações globais e pormenorizadas a respeito da proficiência e das principais defasagens dos escreventes na produção textual. 32

Para abordagens mais detalhadas a respeito de objetivos da correção textual conferir Alal, L.; Cardinet, J. e Perrenoud, P. (1986); Luckesi, L.(1998), Perrenoud, P. (1999).

157

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O professor precisa ter clareza dos critérios que orientarão a coleta de informações. Para diagnosticar os problemas de escrita e auxiliar e orientar a reflexão dos escreventes a respeito dos avanços ou retrocessos qualitativos em suas produções, propusemos uma Ficha33 das qualidades discursivas para que pudessem tomar, com certa independência e por si próprios, a decisão acerca de novas reescritas. Por exemplo, aplicada a ficha à 1ª e à última versão do texto de G4 (textos analisados nas páginas 19 a 22), obtemos um resumo comparativo do diagnóstico das versões34. A ficha permite visualizar a presença e a ausência das qualidades discursivas, em cada versão, o que orienta, do ponto de vista qualitativo, a necessidade ou não de novas reescritas. Ficha das qualidades discursivas – Tema: Relato de uma emoção forte Escrevente: G4 Diagnóstico qualitativo: (X) presença (–) ausência ASPECTOS RELEVANTES A DIAGNOSTICAR Qualidade discursiva unidade temática

VERSÕES 1ª V

9ª V

Há uma questão central que funciona como um fio condutor em todo o texto?

-

X

Os fatos e informações estão todos correlacionados com a questão central?

-

X

Há questões concorrentes no texto com o mesmo destaque da questão central?

X

-

Há informações secundárias que, eliminadas, não prejudicam a compreensão?

X

-

X

X

Qualidade discursiva questionamento A questão central é problematizada adequadamente? Há algum conflito?

33 34

158

A “Ficha das qualidades discursivas” foi utilizada como instrumento didático orientador da análise das qualidades discursivas e para evitar que a análise fosse direcionada para as questões superficiais, inicialmente. A ficha deve ter espaço para diversas versões. Isso permitirá (ao professor e ao escrevente) visualizar a variação qualitativa das diferentes versões escritas/reescritas para um mesmo tema. Por uma questão de espaço, suprimimos o diagnóstico das versões intermediárias (V2 a V8) do escrevente G4.

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A questão central é trabalhada de forma inusitada no texto, marca um “olhar particular” do autor sobre a questão proposta?

-

X

A proposta de solução ou o equacionamento da questão está bem trabalhado?

-

X

O autor assume o seu dizer e evita o lugar-comum, as frases de efeito?

-

X

Há suficiência de informações a respeito da questão central para que o leitor consiga apreendê-la satisfatoriamente?

-

X

Há informações em excesso – é desconsiderada a capacidade de inferências?

X

-

Há a presença de fatos ou informações sem correlação com a questão central?

X

-

A previsão de contra-argumentos ou dúvidas do leitor está adequada?

-

X

As informações estão numa sequência lógica, sem antecipação ilógica?

-

X

Há cenas e dados convincentes, que prendem a atenção do leitor no texto?

-

X

Evita “termos abstratos” que diluem a especificidade dos sentidos no texto?

-

X

Há trechos em que a descrição dos fatos não é convincente ou os dados são incompletos para que o leitor formule hipóteses e tire conclusões próprias?

X

-

Qualidade discursiva objetividade

Qualidade discursiva concretude

Embora as expressões texto chato x texto interessante pareçam ingênuas e simplórias, são efetivamente utilizadas pelo senso comum no dia a dia para qualificar os textos e, portanto, carregam subjacente concepções que precisavam ser explicadas. Do ponto de vista da didática de ensino da escrita implementada, saber explicar a diferença entre “texto considerado chato” e “texto considerado interessante” seria um indício da compreensão do conceito das qualidades discursivas. À medida que os textos foram sendo reescritos, cada escrevente, em seu ritmo, foi vendo revelada e explicada a melhoria qualitativa nos textos. Na 1ª versão para o tema 1, “Apresentação pessoal”, a 159

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totalidade dos textos não apresentou sequer unidade temática. Para o tema 2, “Relato de uma emoção forte”, 90% dos textos apresentaram, desde a 1ª versão, pelo menos um embrião de unidade temática (cf. 1ª versão de G4 – tema 2 “Relato de uma emoção forte”). Durante o processo de correção, os textos foram analisados/ corrigidos tanto pelo professor, como pelos colegas. É corrigindo os textos dos colegas que criam mais autonomia na análise/correção do próprio texto. Além dos leitores-colaboradores em sala de aula (colegas e professora-pesquisadora), foram incentivados a convidarem outros leitores, fora de sala de aula, a lerem seus textos. Para efetivar os objetivos de uma correção que orientasse para a reescrita e se ativesse ao processo sem perder de vista o produto final a ser atingido, foram atribuídos, a cada correção misto-discursiva, os conceitos D, C, B, A para denunciar a presença ou a ausência das qualidades discursivas nos textos e para dar um parâmetro que levasse os escreventes a decidirem a respeito da necessidade de reescrever ou não mais uma versão (Conferir nas p. 146 a 147: a 1ª versão para o Tema 2 de G4 recebeu “D” e a 9ª versão recebeu “B”). O conceito “D” significava ausência das quatro qualidades discursivas e forte presença das características da redação escolar; o “C” significava presença parcial das quatro qualidades e das características da redação escolar; o “B” indicava presença satisfatória das quatro qualidades e ausência de características de redação escolar e o “A” indicava presença satisfatória das quatro qualidades e correção formal, segundo a norma-padrão. Quanto ao conceito atribuído após cada correção, ele deve ser entendido como avaliação provisória, caso em que servirá de parâmetro qualitativo para o escrevente decidir se há necessidade de novas reescritas (para atingir a qualidade desejada para o texto e a nota que o processo escolar requer e da qual não se pode fugir no sistema atual). Assim, o conceito (D, C, B, A) recebido a cada correção, poderia mudar até o final do semestre, momento em que a correção avaliativa (classificatória final) atribuiria a nota final para a obtenção do crédito na disciplina. Esta investigação evidenciou (cf. Tabela 1) que uma correção com objetivos formativos centrados em aspectos qualitativos resulta bem mais produtiva para o aprendizado (porque motiva 160

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e orienta a reescrita) que o uso direto da correção avaliativa, conforme geralmente se pratica no ensino de produção textual (corrige-se o texto para dar nota).

Tabela 1: Resumo quantitativo das produções escritas/reescritas Nº de Sujeitos 31

Tema 1

Total 1ª versão e reescritas

Tema 2

1ª versão

Reescritas

1ª versão

Reescritas

31

221

31

167

450

Os dados gerais da Tabela 1 indiciam que a reescrita levou os escreventes a se envolverem com o processo vivenciado (450 textos escritos e reescritos por 31 sujeitos para dois temas), já que, na maior parte das vezes, consegue-se uma ou duas versões, quando se consegue que os alunos retomem o texto corrigido. Inversamente a isso, G3 afirma: Foi o processo de reescrita que me ajudou a enxergar o que faltava. A reescrita foi se tornando uma capacitação. Do�������������������������������������������������������� ponto de vista qualitativo, os textos apresentaram significativas mudanças (cf. 1ª e 7ª versões de G12 e 1ª e 9ª versões de G4 demonstradas35). Essas mudanças indiciam também o aprendizado, na prática, da diferença entre passar a limpo e reescrever um texto: Perdi as contas de quantas reescritas... Isso acredito ser bom, pois nos põe a pensar que o texto precisa melhorar e vamos a ele. (G22, avaliação da disciplina). Nesta investigação, a correção avaliativa provisória (em que era atribuído um conceito não definitivo) foi realizada concomitantemente à correção que tinha o objetivo de sinalizar ao escrevente a necessidade da nova reescrita. Atribuíamos aos textos os conceitos A, B, C ou D provisórios para que cada escrevente pudesse monitorar seu processo, e o resultado qualitativo de sua reescrita. Se a correção da primeira versão resultar uma nota avaliativa final, os escreventes passam a conceber a 1ª versão como produto final e não se motivam a reescrever os textos, preocupando-se mais com 35

No final deste capítulo apresentamos mais exemplares de textos produzidos pelos sujeitos.

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a nota do que com o aprendizado: Aprendi a me apegar aos textos sem me preocupar meramente em ganhar nota. (G22, avaliação da disciplina). Enfim, a nota não deve ser o foco principal, deve ser utilizada como instrumento para viabilizar o processo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao analisarmos conjuntamente as primeiras “redações escolares” que os sujeitos fizeram, e nas aulas seguintes em que foram desconstruindo o modelo de redação aprendido a reproduzir para passar de ano na escola, os escreventes sentiram-se, inicialmente, impotentes para reencontrarem, dentro de si mesmos, a capacidade de enunciação do próprio discurso, para dar conta de reconstruírem a discursividade na escrita. Ao começarem a se apropriar de uma nova postura diante da própria escrita, animaram-se com a descoberta de que, para escrever bem, não depende de ter ou não “dom divino”. É possível aprender e ensinar a escrever um texto interessante, mesmo sem ter nascido para ser escritor. A mudança de postura envolvia dois pontos de vista com os quais os escreventes precisaram lidar concomitantemente: o lado do sujeito-aluno e o do sujeito-professor em formação. A mudança de postura incluiu aprender, na prática, que, quem escreve precisa protagonizar e responsabilizar-se pelo seu dizer e, para isso, não basta reproduzir modelos prontos. A produção de um texto é trabalhosa e, para ensinar a escrever é preciso, primeiro, aprender a escrever. Para isso, não basta somente ler a respeito de como se escreve é preciso praticar a escrita tendo por base uma sólida orientação teórica. Olhar o texto a partir das qualidades discursivas e poder reescrevê-lo consciente da qualidade do produto final a ser oferecido ao leitor revelou-se uma estratégia favorecedora para conciliar a escrita do aluno e a sua relação particular com a linguagem (o componente expressivo da produção) e a estabilidade relativa do gênero, sem ficar refém desta última. O uso das quatro qualidades discursivas orientou o olhar em duas direções: a) na direção do arranjo da totalidade de sentidos estabelecida no texto, para a postulação da sua coerência 162

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global, operadas principalmente pela a unidade temática e pelo questionamento; b) na direção do arranjo dos sentidos em cada parágrafo do texto, sem desconsiderar a totalidade discursiva (e o leitor), operadas principalmente pela objetividade e pela concretude. Estas tratam dos aspectos selecionados da temática central, da questão organizadora do todo para serem “mostrados” (descritos, explicitados, citados, avaliados, ressaltados, qualificados ou desqualificados...), de forma a convencer o leitor a não abandonar a leitura antes de terminá-la. Quando o olhar se dirige para os arranjos de sentido, desvia-se da superfície textual. O uso das qualidades discursivas para nortear as (re)escritas favoreceu a compreensão, por parte dos escreventes, que um texto precisa ser (re)escrito quantas vezes for necessário e, para isso, é necessário um norte, uma orientação que pressuponha a alteridade e a réplica como constitutivas do processo dialógico de escrita, o que requer um olhar que vá muito além da superfície textual, um olhar para a as relações de sentido. Por isso, escrever e reescrever, embora trabalhoso e, por vezes, enfadonho, é necessário. Outra constatação que o processo evidenciou foi o fato de que uma didática de ensino de produção textual deve considerar que o escrevente em processo de aprendizagem, ao se deparar com um texto em processo de construção, pode não saber exatamente para onde precisa olhar e, na falta de opções, olha sempre para os aspectos mais salientes na superfície textual, por isso corrige principalmente a ortografia, alguma pontuação, o capricho da letra e não vai muito além. Foi preciso aprender que uma correção com objetivo de ensinar a escrita (não só avaliar o produto) não deve se limitar à correção de aspectos da superfície textual. Constatamos que a prática da correção misto-discursiva, nas diversas versões reescritas, revelou-se motivadora da reescrita, talvez por ativar a percepção de que, para ter um texto considerado de boa qualidade, seria preciso “mexer” profundamente no texto (para ver incorporadas as quatro qualidades discursivas utilizadas como parâmetro de análise e correção). E, para isso, não bastava apenas caprichar a letra ou corrigir a ortografia e a pontuação, não bastava apenas passar a limpo. Os aspectos formais são importantes e foram valorizados na fase de edição final. O avanço qualitativo, do ponto

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de vista discursivo-textual da produção escrita, no entanto, foi priorizado e precedeu o chamado “polimento textual”, feito nas últimas versões, quando já não mais se tinha uma redação escolar. Do ponto de vista das concepções de ensino de produção escrita e do conceito de reescrita, as mudanças de postura foram ocorrendo aos poucos e indiciadas pelo procedimento de disponibilização do texto em processo de elaboração pelos escreventes. Antes escassos para serem lidos e analisados coletivamente, os textos passaram a ser oferecidos por vários escreventes ao mesmo tempo. A vergonha de expor o texto em processo de escrita para análise (quando concebiam a 1ª versão como o produto final) foi cedendo lugar à percepção de que não seriam ridicularizados ou cobrados de saber aquilo que estavam ali para aprender (nossos alunos têm medo de errar porque o conceito de erro que a escola lhes passa não é o de diagnóstico do que precisa ser aprendido, de hipótese de escrita, mas de atestado do seu fracasso). Ao perceber a diferença entre “passar a limpo” e reescrever o texto, instaurou-se um processo colaborativo em que a professora não era a única a analisar os textos. Com a clareza dos critérios com os quais seria analisada e avaliada a qualidade textual, os escreventes começaram a se sentir seguros e proficientes quanto à análise do próprio texto e do texto do colega, cumprindo-se um dos objetivos da correção textual. Um ensino de produção textual, independentemente do nível de escolarização dos escreventes deve, sobretudo, levá-los a entender que o texto escrito é um convite à leitura, por isso precisa atrair o leitor (e sua réplica), prendendo-o até o final da leitura, independentemente do gênero em que for escrito. Diante de um texto em processo de escrita, saber para onde olhar e qual a postura a ser assumida por um professor de Língua Portuguesa é fundamental para a didática do ensino da escrita. Didática que já passou da hora de os cursos de Letras disponibilizarem durante a formação dos professores, sem preconceito e sem a falsa ideia de que o “como ensinar”, tendo uma boa fundamentação teórica, é algo que se aprende com a prática, quando se vai para a sala de aula. Mais que ensinar, a aula de Língua Portuguesa deve inspirar a escrever na escola e fora dela e isso só se consegue com uma aliança forte e segura entre teoria e prática. 164

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ANEXO – EXEMPLARES DE TEXTOS PRODUZIDOS PELOS ALUNOS DURANTE A PESQUISA – GÊNERO RELATO PESSOAL 36 PRIMEIRA VEZ37 Simone Ferreira Cidade

Alguém me disse que deveria escrever sobre “Uma emoção forte”, então resolvi contar sobre a minha “primeira vez”. Não foi há muito tempo atrás. Confesso que a lembrança é muito viva na minha memória. O que posso dizer é que já sabia muito bem o que queria. Quando me lembro desse dia, as palavras que me vêm à cabeça são as da minha mãe: “Acho que você já passou da idade de vencer seus medos”. Pra mim, aquilo não tinha idade certa, nem momento ou lugar certo... era apenas uma coisa que tinha que acontecer, quando eu me sentisse preparada. Na escola, eu me sentia meio excluída. Minhas amigas contavam sobre suas experiências e parecia que toda semana mais uma menina tinha feito o que eu não tinha coragem. Minhas colegas se gabavam de todo o “divertimento”. Algumas contavam que não usavam proteção... E eu?... Eu apenas sorria. Fora da escola, eu preferia não ter contato com as meninas e recorria sempre à amizade do meu vizinho. O Charles era perfeito! Até minha mãe apoiava nossa amizade. Ela tinha confiança no guri, tanto que, toda tarde, me liberava para sair com ele. Certa vez, em um dia chuvoso, perguntei a ele se poderia lhe contar um segredo. Ele apenas sorriu e aproximou seu ouvido dos meus lábios. Foi o dia que mais senti vergonha. Contei a ele 37

37

Por falta de espaço, sorteamos as últimas versões de textos de 5 sujeitos, dentre as 450 versões (Tabela 1) produzidas pelos 31 participantes. Os textos foram produzidos a propósito de dois temas: “Apresentação pessoal” e “Relato de uma emoção forte”. Agradeço imensamente a todos os meus alunos que, ao longo de vários anos, têm aceitado o desafio de aprender a escrever e a ensinar a escrever belas histórias. 6ª Versão para o tema “Relato de uma emoção forte”.

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que jamais havia feito algumas coisas que as meninas da escola faziam. Ele gargalhou. Alguns dias depois, o Charles foi me procurar. Ele tinha uma ideia. – Acho que posso te ajudar e... Ele não precisou falar mais nada. Balancei a cabeça freneticamente confirmando um “sim”. Não marquei hora, nem data, nem local. Quando eu sentisse a mínima coragem, seria a hora certa. A tarde estava linda naquele dia, então, o Charles e eu fomos ao parque. Conversa vai, conversa vem e foi aí que senti que estava na hora. Não havia ninguém por perto, era o momento perfeito. – Charles, podemos tentar agora? – Perguntei, animada. Ele, mais que depressa, saltou em pé e me pegou pelos braços. Me senti segura. Eu estava pronta e ele também. Olhei para todos os lados me certificando de que estávamos sozinhos. Meu coração estava disparado, parecia mil tambores batendo. – Por favor, vá devagar, tenho medo de me machucar – pedi, com muito medo. Ele sorriu. Eu estava certa do que queria, não tinha mais como adiar aquele momento. Ele começou devagar. Eu estava na posição certa, movimentava as pernas, os quadris... a velocidade foi aumentando até que... ele me largou e eu saí andando meio sem jeito pelo parque, pedalando e pedalando... Foi nesse dia que pilotei, pela primeira vez, uma bicicleta!

COMO ME TORNEI UMA RODRIGUES38 Regiane Ferreira Araújo Rodrigues

Eu me chamo Regiane Ferreira Araújo Rodrigues. O último nome herdei do casamento. Gosto de ser chamada de Regiane Rodrigues. Como me tornei uma Rodrigues? 38

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8ª Versão escrita para o tema “Apresentação pessoal”.

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Não foi tão fácil, não! Pelo contrário, tive que dispor de coragem, audácia e muita criatividade. Conheci o amor da minha vida quando cursei Teologia, em regime interno, numa cidade do Paraná. No início, nos tornamos bons amigos, aliás, grandes amigos! Comigo ele aprendeu a saborear um gostoso chimarrão, enquanto conversávamos no pátio do Seminário. Claro que nunca ficávamos a sós. Outros amigos também compartilhavam do bate-papo e do chimarrão. Dodô era noivo havia um ano e oito meses. Sempre conversávamos sobre seu relacionamento com ela, a fofinha, como ele a chamava. Eu era sua confidente. Imagina! Fofinha, a noiva, era completamente o oposto de mim! Eu: magricela, cabelos negros e cacheados; ela: gordinha, cabelos lisos e loiros. Não havia nada em mim que remetesse a ela ou vice-versa. Até no temperamento éramos diferentes. Sempre fui muito extrovertida: rio a toa, sou agitada, irritada, e nunca fez parte da minha vida o ciúme. Já a Fofinha era quieta, calma e extremamente ciumenta. Ele fazia planos para o casamento. Tinha pressa que se realizasse. Ainda não haviam se casado porque ela desejava muita coisa que não estava ao alcance financeiro do noivo. Certa manhã, o Dodô ficou aborrecido com um amigo. Cristiano insinuou que havia sinais de sentimentos que iam além de simples amizade entre nós. Pra provar o contrário, Dodô não me atendeu quando o chamei para tomar chimarrão. Me ignorou como se não tivesse escutado. Fala sério! Me ignorar?! Fiquei tão irritada que, quando o Dodô veio falar comigo, eu disse que não seríamos mais amigos. Eu não precisava desse tipo de amizade. Não queria mais falar com ele. Ficamos sem nos falar durante todo aquele dia. Quem disse que eu conseguia dormir à noite? Sentimentos de medo, tristeza e aflição tomaram conta de mim... Eu dividia o quarto com mais cinco moças, mas me sentia tomada por uma solidão que me sufocava! Meu Deus! O que

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estaria acontecendo comigo? Por que esse idiota não saía da minha cabeça? O desespero começou a me perturbar. Meus sentimentos começavam a se tornar claros. Será que eu estava apaixonada pelo ex-amigo? Era o fim! Não podia ser verdade. Ele não fazia meu “tipo”, era o oposto do que sempre sonhei: era baixinho, caipira, com tendência a engordar e a ficar calvo. Ah! Era mesmo o fim! Além do mais, ele estava prestes a marcar a data do casamento com outra. O fato é que não consegui mesmo dormir. Quando fui pra aula, pela manhã, eu parecia um zumbi. No horário do almoço, no refeitório, meu ex-amigo veio falar comigo e, para minha surpresa, ele também não conseguira dormir pensando na nossa “briga”. Voltamos a ser amigos. Pra ele, não dormir por esse fato era natural, afinal, éramos grandes amigos. Já, da minha parte, eu sabia que o motivo era outro. Passei vários dias em conflito, sem dizer nada sobre o assunto a ele. Analisei prós e contras: será valeria a pena lutar ou, até onde eu deveria chegar, e como fazê-lo?... Decidi lutar por esse amor. Seria uma corrida contra o tempo. E se não desse certo? Se, além de perder o amigo, eu ficasse exposta diante de todos? Era um risco que eu teria de correr. Minha primeira atitude foi conversar franca e abertamente com o Edinaldo. Dodô era um apelido dado pelos amigos por causa do futebol. Naquele dia, eu tremi, suei, gaguejei, afinal nunca havia me declarado pra ninguém antes. Sempre que gostava de alguém, mesmo que eu namorasse com esse alguém, jamais dizia que estava apaixonada. O máximo que eu falava era: “Sim, eu gosto de você”, quando o tal me perguntava. Eu sempre tive medo de me expor, de sair ferida, essas coisas... Mas aquele dia, teria que ser diferente. Era preciso revelar meus sentimentos. Era tudo ou nada! Abri meu coração. Falei do que estava sentindo. Disse a ele como me sentia feliz ao vê-lo, como era bom estar perto dele, e que, quando ele não estava por perto, tudo perdia a graça. Falei que estava apaixonada. Olhando em seus olhos, aguardando que

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ele me abraçasse e respondesse: “Eu também te amo!!!” Ele ficou atônito, olhando pra mim, até que... Caiu na gargalhada! Disse que eu só poderia estar louca. Jamais namoraria alguém como eu, era ciumento demais e não admitia que sua namorada tivesse amizade com outros homens como eu tinha. Disse ainda que não gostava do meu jeito extrovertido. Eu servia apenas pra ser amiga e só, mesmo por quê: “Não acredito que você esteja apaixonada por mim” - foi o que me disse. O que eu poderia dizer naquele momento? Pense, pense, pense... Regiane! “Vou provar que gosto mesmo de você” – Respondi. Me levantei e fui para o quarto pensar. No meu quarto, moravam duas amigas que estudavam com ele. Elena e Vanderléia se tornaram minhas amigas também, mas eu ainda não havia compartilhado com elas minha angústia. Nesse dia, contei a elas tudo o que estava se passando dentro de mim. Ganhei duas aliadas! Então, partiria para o plano “B”! Que plano? Não, eu não tinha um plano B, Só sabia que teria que agir rápido. Eu ainda não estava acreditando que faria loucuras que, em sã consciência, não poderia ser minha pessoa!! Não mesmo!! Olha só: comprei bombons e dentro de cada um deles coloquei frases que davam dicas, como um caça ao tesouro. Ao chegar no último bombom estava escrito: “Acho que estou te amando”. Eram frases instigantes: “Preciso te dizer algo... vá para o bombom ‘tal’”; “Ah, não sei se vou dizer... vá para o bombom ‘tal’”, e assim por diante. Eu estava mesmo fora de mim! Mais tarde, eu soube que, conforme ele abria os bombons pra ler o que estava escrito, quem os comia eram seus amigos de quarto. Fiquei furiosa quando soube disso. Além de se adoçarem com os bombons alheios, agora estavam sabendo das minhas intenções! Não desisti! Sempre que possível, eu também escrevia bilhetinhos apaixonados que eram entregues por nossas amigas na aula. Ele estava adorando tudo isso, “se achando”! Deixei as amizades masculinas num nível apenas de “Oi, tudo bem?”, e me afastei dos papos e brincadeiras com esses colegas. Passara-se um semestre daquele ano. As férias se aproxima169

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vam. Eu já estava arrumando as malas pra ir para casa. Seriam trinta dias longe do Seminário, dos amigos, dos estudos e... do Dodô... E ele, Nada! No último dia de aula, Edinaldo se aproximou e disse que precisava conversar comigo antes que partíssemos em férias. O que ele me falou quase me fez saltar de tanta alegria! As palavras pareciam navegar suavemente no meu coração, como se fossem barquinhos de papel levados pelo vento do amor. O amor da minha vida falou que achava, vejam bem! ACHAVA que estava gostando de mim. Achava? Tudo bem, já era uma esperança. Eu passaria as férias todas orando. Fui pra casa feliz! Voltei das férias radiante! Edinaldo me ligou todos os dias durante as férias. Todos os dias!!! Me contou, quando voltei, que viu a noiva duas vezes em todo esse tempo. Concluí: Ele só podia estar apaixonado por mim. Finalmente era real! Ele se declarou no primeiro dia em que nos reencontramos. Mal pude acreditar! Parecia estar sonhando... Meu amor estava sendo correspondido! “Peraí!!!” – E a Fofinha? Ainda existia uma noiva que estava alheia a toda aquela situação. Claro que ela já devia desconfiar das mudanças que via no amado. Fofinha preferia fingir que não estava acontecendo nada. Meu sofrimento maior ainda estava por começar. Meu querido não tinha coragem de terminar seu noivado e, agora, pra piorar tudo, a moça começava a pressão pra casar. Os dias foram passando... Não podíamos ficar juntos e estávamos apaixonados. A dúvida fazia com que Edinaldo, apesar dos sentimentos, se sentisse pressionado de ambos os lados. Ele estava indeciso, pensativo, LERDO PRA TOMAR A DECISÃO!!!! Fala sério! Não podia ser tão difícil assim! Certa noite, eu não fui ao refeitório jantar. Fiquei no quarto remoendo minha tristeza. Tomei a decisão de desistir de tudo. De repente, minha melhor amiga, a Miriam, entrou e disse: “Amiga, o Dodô está lá fora e parece que aconteceu alguma coisa séria. Acho bom você ir ver”.

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Saí. Quando cheguei ao refeitório, lá estava ele. Não havia sorriso em seus lábios, mas estava me esperando pra conversar. Quando olhei em uma de suas mãos, vi que havia duas alianças reluzindo sob a luz do refeitório. Comecei a suar frio, a tremer... Ele me disse: “Deixei a Fofinha chorando, mas eu não poderia continuar levando essa história adiante. Agora preciso de um tempo pra mim”. O quê?? Como assim?? Eu esperei todo esse tempo pra que ele falasse que teria que esperar mais? Tudo bem, “o pior já passou”, pensei. A verdade é que não tive que esperar muito. Em uma semana, começamos a namorar. Em cinco meses, noivamos e casamos. Sou Rodrigues há onze anos e afirmo, com certeza, não foi nada fácil, mas foi a melhor escolha que fiz.

AS UNHAS VERMELHAS DE VOVÓ39 Rafaela Queiroz Moraes Valente

Já se passavam das 4 horas da manhã, quando um barulho vindo do quarto ao lado despertou meu sono. Era uma madrugada gelada e os ventos sopravam de tal forma que as venezianas do meu quarto tremiam. Continuei ouvindo barulhos, seguidos de passos e muitos “zum zum zum” pela casa. Resolvi me levantar e ver o que estava acontecendo. Lentamente me levantei e, com os pés descalços, fui até a porta sem fazer qualquer ruído. Por entre uma pequena abertura, observei minha mãe vindo em direção a meu quarto. Rapidamente voltei para minha cama e esperei que ela entrasse. Ao entrar, ela sentou-se e levantou-se da cama umas 3 vezes mais ou menos. Fiquei aflita, em alguns minutos percebi que seus olhos estavam bem vermelhos, com lágrimas e pequenos soluços se alternavam entra as tentativas, em vão, de explicar o que estava 39

8ª Versão para o tema “Relato de uma emoção forte”.

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acontecendo. Passaram-se poucos minutos que mais pareciam infindáveis horas de aflição me aumentando gradativamente. Sentei-me na cama com a respiração forte e os olhos arregalados. Estava amedrontada, mãos molhadas, coração apertado esperando uma explicação pra tudo aquilo. Ela tentava me falar, começava uma frase, mas a interrompia com seus gemidos e soluços de sofrimento. Tentava começar a falar de novo, mas falhava. Por um instante, engoliu o choro e em uma única e rápida frase sussurrou: “Filha, sua avó morreu”. Meu corpo inteiro estremeceu. Não podia ser! Meus olhos encheram de lágrimas. Meu corpo não reagia aos meus comandos. Fiquei como uma estátua, paralisada. Desabei. O meu mundo fora destruído. O chão se movia fazendo uma enorme cratera em que eu caía, em uma queda sem fim. Gritos de desespero e dor saíram de minha garganta. Um abraço! Um simples abraço me trouxe daquela queda sem fim para a minha cama novamente. Meu pai estava arrasado, mas se mantinha forte, com o emocional superficialmente estável, nosso alicerce. Eu era uma das netas mais apegadas com ela, a “vó Kikinha”. Quando eu tinha apenas 4 anos, já sabia a maioria das orações: “Ave Maria, Salve Rainha, Pai Nosso, Credo”. Ela me ensinava todas. Eu era sua companheira fiel de ir à missa todas as quartas e domingos. Até me aventurei a bordar com ela. Com 68 anos de idade, minha avó, D. Francisca, descobriu que tinha uma doença chamada mal de Alzheimer, uma doença degenerativa popularmente conhecida como esclerose ou caduquice. É uma doença sem cura. O tratamento e os remédios eram caríssimos e, como poucos da família se propuseram a ajudar, eu me vi, em 2008, estudando em uma escola pública e ajudando minha mãe com serviços domésticos. Com o passar dos anos, mesmo fazendo o tratamento, a doença foi passando por várias fases, até chegar num momento em que ela ficou semelhante a um bebê, dependendo de alguém da família ou um responsável para tudo.

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Eu demorei pra assimilar o que tinha acontecido. Parecia que era tão recente (poucos anos) que minha avó era uma senhora ativa, que bordava, costurava, cuidava da casa, fazia um almoço espetacular, e uma tapioca incomparável daquelas de “lamber os beiços”. Ela pintava as enormes unhas de vermelho, o cabelo de preto e todo sábado colocava seu melhor vestido, passava um perfume forte (que impregnava a casa inteira) e ia ao baile da terceira idade dançar com as amigas. Vaidosa ao extremo, separava boa parte de sua aposentadoria para comprar suas maquiagens, esmalte vermelho e viajar com a turma da terceira idade. Todos os domingos íamos à sua casa almoçar. Certo dia, começamos a perceber que a comida já não era tão gostosa. Geralmente estava salgada demais, sem sal, ou queimada. Às vezes, ela se esquecia de que já tinha temperado a carne e temperava de novo, ou fazia ao contrário, e esquecia completamente de salgar a comida. Muitas vezes, se esquecia de desligar o forno e, geralmente, comíamos arroz e feijão queimado. Desconfiamos que ela estava doente, e os exames comprovaram nossas suspeitas: Alzheimer! Em 2010, minha avó já estava num estágio avançado da doença e não podia mais ficar sozinha. Começou a se perder no caminho da igreja, não sabia trancar a casa, não conseguia diferenciar dinheiro, chegou inclusive a me dar uma nota de 100 reais para comprar três pães. Progressivamente, foi perdendo sua capacidade de ler e escrever. A doença a consumiu de tal forma que ela não sabia mais usar o banheiro e muito menos tomar banho sozinha. Manter uma enfermeira em período integral era muito caro. Resolvemos que segunda, terça e quarta a enfermeira dormiria com minha avó e, nos outros dias, revezaríamos entre meus pais, eu e meu irmão. Quinta feira era meu dia. Dormia junto com ela e, toda quinta, ouvia a mesma história de seu casamento no ano de 1945, dos cinco dias de festa e dos 100 homens montados a cavalo para recebê-la vestida de noiva. Era triste quando ela não me reconhecia, ou perguntava quem era minha mãe, se eu tinha algum irmão... Eu sofria imensamente quando isso acontecia. Alzheimer é uma doença tão cruel que, conseguiu me apagar da memória da minha avó.

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Eu não me importava de sair 22h30 da faculdade todas as quintas e ir direto pra casa dela. Foi assim durante quase dois anos, até o dia em que pude assistir todas às aulas de quinta feira, sem me preocupar se chegaria tarde na casa dela... Ela havia partido. Vê-la no caixão foi a coisa mais triste que me aconteceu. Só depois desse dia, eu descobri o significado da palavra saudade e o verdadeiro sentimento de perda e dor.

ÁGUA DE COCO E TERERÉ40 Iva Carla Aveline dos Santos

Nascer na Bahia fez com que eu tivesse a melhor infância que uma criança pode imaginar... Minha mãe me acordava às cinco e meia da manhã para tomar banho para ir à escola. Eu levantava, ia para de baixo do chuveiro: água fria e deliciosa para refrescar as costas suada. Saía de Gavião, cidade onde eu morava, e caminhava cerca de quarenta minutos até chegar na pequena escola de Baixão do Poço, cidade vizinha. Essa caminhada matinal, entre árvores e pedras, me dava muita energia. Chegava lá, muito alegre. A aula acabava 11h. Pegava minha mochila e saía correndo estrada a fora, não via a hora de estar em casa novamente. O almoço me esperava na mesa. Comia, fazia o dever de casa e aproveitava o restante do dia na praia. Eu esperava as meninas da minha rua passar e pedalávamos até o litoral: meia hora de bicicleta da minha casa. Esse era meu ritual para qualquer estação do ano. O sol brilhava o ano inteiro. A praia sempre estava cheia de gente. Era muito divertido: ganhava picolé de algum conhecido, fazia castelos de areia, dava um mergulho, tomava água de coco e a tarde passava rapidinho. Chegava em casa na hora do jantar. Depois, era só ir dormir. Ah! Como eu adorava... A minha vida foi assim até eu completar 15 anos. 40

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7ª Versão escrita para o tema “Apresentação pessoal”-

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Em fevereiro de 2005, mudamos para o Mato Grosso do Sul. Chegamos em uma segunda-feira de manhã, depois de três dias e duas noites viajando. Na placa de “Bem-vindo à Dourados”, que eu observava pela janela do caminhão, caía uma chuva forte. Era de manhã e o céu estava escuro. Pensei: “Que recepção!”. Há tempos não via uma gota d’água cair do céu. Se for a primeira impressão a que fica, eu já não gostava de Dourados! Organizamos quase toda a mudança antes do anoitecer. No dia seguinte, seria meu primeiro dia de aula na nova cidade. Deitei na cama e tentei dormir. A chuva persistente caía com força no telhado. Parecia um filme de terror. Fechei os olhos com força e rezei para amanhecer logo. Ainda estava escuro quando olhei para o despertador ao lado da minha cabeceira: 05h38min. Já estava atrasada! Sentei na cama e percebi que tinha dormido enrolada em uma coberta grossa demais. “Coisa de minha mãe” – imaginei. Ao sair debaixo dela, eu bati o queixo e meu corpo estremeceu. Era muito frio. Relutante, fui para o banheiro. Fechei a porta e, devagarinho, sem fazer vento, tirei o pijama. Liguei o chuveiro e esperei a água congelada cair na minha cabeça. Tive a impressão de ainda estar dormindo e sonhando. Senti a água morna tocar minha pele. Eu nunca imaginei que isso pudesse existir. Gostei da novidade, e fiquei ali por muito tempo. O espelho já estava embaçado, quando minha mãe bateu na porta e gritou: – Já são 6h15min! Desesperada, desliguei o chuveiro e fui trocar de roupa. Estava no meio do café, meu pai diz: – Não tenha pressa! A escola fica a trezentos metros de casa. Engasguei. Não seria possível. O caminho até a escola era a parte mais divertida de estudar e descobri que agora só duraria cinco minutos. E pior: cinco minutos de frio. Sentei no sofá esperando dar a hora de ir. Quase peguei no sono. Minha mãe me chamou e me entregou um agasalho. Na saída, me desejou boa sorte. Sussurrei baixinho: “vou precisar é de muita sorte”. A chuva tinha passado, mas deixou a terra uma verdadeira “meleca”. Fui devagarzinho pelas ruas lembrando da estrada

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que antes me levava até a outra escola: seca, quente e longa. Desejei estar lá. E, antes de terminar minha lembrança, cheguei à nova escola. Todos me receberam bem, mas quando eu disse meu nome, riram do meu sotaque de nordestina. Depois disso, demorei mais uma semana pra abrir a boca novamente. Não fiz amigos no início. Fui para casa ansiosa para saber o que me ocuparia durante todo o dia. Almocei, fiz o dever de casa e saí para ver o que faria. As filhas da vizinha estavam sentadas em forma de roda e tomando uma coisa esquisita. Aproximei-me, tímida e disse “oi”. – Oi, vizinha! – Disse uma delas sorridente. – Quer tomar tereré? Não contive o riso. –Téré... O quê? O que é isso? Deram-me para experimentar. Cuspi tudo no chão. Aquilo era amargo. “Será que elas não conheciam água de coco?” – Pensei... Devolvi o tal tereré e agradeci. Fiquei apenas observando. A cuia passava de uma para outra que tomava achando gostoso. Observei tudo de cenho franzido. Muito estranho! Conforme os dias se passavam, percebi que, após a aula, as pessoas sempre formavam uma roda e, enquanto conversavam, tomavam litros de água gelada com erva verde no copo, o tereré. Eu não queria fazer aquilo. Já que não tinha praia pra ir, perguntei a meu pai se não tinha um rio para tomar banho. – Muito longe! E perigoso!... Ninguém frequenta o rio todo dia aqui! – Respondeu friamente. Prometeu me levar lá num fim de semana. Mas, sempre que combinávamos, chovia. O único jeito foi eu aprender a tomar tereré! Comprei meus “apetrechos” e passei a tomar sozinha perto da janela. Tomava um gole e cuspia. Foi assim por dias, até que eu conseguisse engolir algumas “cuiadas”. Depois, adaptei-me. Agora, meu roteiro era chegar da escola, almoçar e ir tomar tereré. Mas, detalhe: eu levava o meu. Achava mais higiênico. Demorou até eu aceitar tomar em conjunto. Mas, um dia tomei. E percebi que era diferente. O gostoso era a partilha. 176

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Mesmo sentindo falta da minha terra ensolarada e quente, fui me acostumando com a nova cidade. Não trocava o chuveiro quente por nada e dormia sempre enrolada em grossos cobertores. Às vezes, enrolada nesses cobertores, eu sonhava com aquela prainha, a água de coco e com aquela gente alegre. Pra matar a saudade, eu tirava o chinelo e fingia que o chão do quarto era areia. Fazia um tereré de madrugada e fingia tomar água de coco, bem fresquinha. Assim, eu matava um pouquinho da saudade da infância e da Bahia!

“TUDO VALE A PENA SE A ALMA NÃO É PEQUENA41” Ricardo Mendonça Nogueira

Estava fazendo dois meses que eu havia imigrado para a Inglaterra. No ano de dois mil e três, o desemprego e os baixos salários no Brasil não me deixaram outra escolha. Para mim, a única saída para essa situação, era a sala de embarque do aeroporto. Eu, acostumado com os dias quentes, em companhia dos amigos nas rodas de tereré nos fins de tarde em frente de casa, passava horas conversando sobre tudo, inclusive sobre colegas que haviam se mudado para outros países. Resoluto, fiz alguns contatos, arrumei as malas e embarquei nessa aventura, rumo ao sonho do eldorado. No avião, a caminho de Londres, não preguei o olho. Todo tempo fazia contas de como aplicaria as minhas libras que iria ganhar trabalhando duro. Sem falar inglês, dia dez de outubro de 2003, desembarquei no Heathrow, o maior aeroporto de tráfego internacional do mundo. Me perdi, já de cara. Passei duas horas caminhando em meio a uma multidão tentando, inutilmente, pedir informações que me levassem ao o portão de saída número oito. Eu não entendia as instruções dos painéis eletrônicos. As mímicas tampouco ajudaram. Com sorte, cansado de tanto andar, mais tarde, fui encontrado, com calos nos pés, pelos meus amigos que, 41

5ª Versão escrita para o tema “Apresentação pessoal”.

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cansados de me esperar, resolveram ir à minha procura. Rimos muito e nos abraçamos. Eu estava em Londres! Consegui dois trabalhos. Um de dia, como cortador de bacalhau em uma mercearia portuguesa; outro de “cleaner”, ofício de quem trabalha de madrugada na limpeza. De segunda a segunda eu limpava o banheiro, enorme, de um restaurante Italiano. De dia, eu cheirava a peixe; à noite, a detergente. Depois de dois meses da minha chegada, a neve anunciou a dela. Por todos os lados eu via casas e lojas decoradas com luzes e enfeites de natal. As ruas estavam cheias de pessoas com sacolas de compras. O clima de festas e comemoração começou a contagiar a todos. Menos a mim. Eu morava só em um flat, trabalhava dia e noite, noite e dia. Para fazer compras, só com dicionário. Duas semanas antes do Natal, no ponto de ônibus que eu tomava todos os dias, uma mulher me chamou a atenção. Ela procurava, na bolsa cheia de bagunças, pelo telefone que tocava. A pressa em atender a ligação a fez derrubar no chão seu molho de chaves. Eu, solícito, me apressei em apanhá-lo. Ela me agradeceu sorrindo e falou coisas que eu não entendi. Fomos interrompidos pela chegada do ônibus. Na semana seguinte, por coincidência, nos vimos novamente no ponto. A inglesa veio em minha direção. Sorrindo, ela disse: “Hi, good morning!” – Em seguida, sorridente, apresentou-se: “Varsha!” Eu, improvisei: “My name is Ricardo!” No ônibus, ela, expansiva e descolada, continuou a falar e, eu, longe de eu entender, balançava a cabeça concordando com tudo. Há duas paradas da sua descida, criei coragem e, gaguejando, pedi-lhe que me dissesse o seu número de telefone. Em seguida, tirou da bolsa uma caneta. Na palma da minha mão anotou seu número. Eufórico, cheguei ao trabalho. Pedi a meus colegas que me ajudassem a escrever uma mensagem convidando-a para sair. A cada vinte minutos eu olhava o telefone. Esperei a tarde toda e nada! Sem resposta, já havia me conformado, quando, às dezenove horas, recebi a resposta: “Let’s do it!”. 178

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À noite, fui ao encontro de Varsha num Pub que ela havia escolhido. Nos acomodamos em uma das mesas que ficava num canto, afastado. Para me prevenir de qualquer mal-entendido, eu concordava com tudo o que ela me dizia. Enquanto bebíamos, ela falava sem parar sobre tudo. Eu conseguia entender alguns nomes: família, trabalho, ex-marido, gato, cachorro...” De repente, ela disse: “Ricardo”, você está me entendendo?” Eu sorri. Devagarinho me aproximei. Toquei seu rosto, olhei nos olhos e nos beijamos. No outro dia, por mensagem de telefone, ela me convidou para irmos a um café. Quando cheguei, em uma mesa nos fundos, ela me acenava. A Varsha me esperava com um embrulho de presente sobre a mesa. “Merry Christmas”! – Disse ela. Ganhei um livro para estudar inglês. Passamos a nos ver regularmente. Morávamos sozinhos e nossas horas juntos eram muito boas. Ela, com toda a paciência do mundo, me ensinava a ler jornais e revistas e a pronunciar as palavras. Aos poucos, a barreira linguística foi ultrapassada. A Varsha era hindu-anglicana. Ela era uma pessoa mística e atribuía à comida um valor alegórico. Passava horas afirmando que sua vitalidade, serenidade e alegria de viver resultavam da capacidade de harmonizar o mundo físico e espiritual através de experiências místicas que não me explicava quais eram. Mais tarde, fui apresentado às suas amigas e colegas de trabalho. Conheci pessoas de diferentes países e nacionalidades. Saíamos quase todos os dias. Aprendi a ler, a falar, a ir ao teatro, ao cinema, a ler o cardápio, e a pedir a conta. Comecei a levar bronca do “boss” por chegar atrasado ao trabalho. Pedi as contas do restaurante italiano e deixei de economizar. Minha vida passou a ser uma festa diária. Todos os meses, para meu desânimo, minha conta ficava no vermelho. Decidi voltar a trabalhar à noite. No sábado seguinte, já estava contratado como garçom em um pub. Entrava às vinte horas e saía às três da manhã.

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No domingo seguinte, como de costume, almoçamos juntos. Enquanto eu bocejava, quase deitado sobre a mesa, ela me contou como foi animada a balada com as amigas. “Como assim, balada, amigas”?! – Perguntei. Ela respondeu: “Ora, Ricardo, normal. Quem está trabalhando à noite é você. Não eu. Quem precisa economizar dinheiro e voltar para o Brasil é você também. Querido, a minha vida continua”. Não concordei, discutimos, paguei a conta e fui embora. A Varsha saiu da minha vida. Não, sem antes, mudá-la completamente. Aprendi inglês, conheci pessoas novas, fiz amizades, mudei de trabalho e quase fali. Tudo em Londres custa caro. Não ganhei nem um terço do dinheiro com que sonhei. Da Inglaterra, hoje, só restam coisas que o dinheiro não compra: a língua que aprendi, as experiências que vivi, e momentos especiais. “Tudo vale a pena se a alma não é pequena!”.

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O PROCEDIMENTO “SEQUÊNCIA DIDÁTICA”: UMA ANÁLISE PELO VIÉS DAS CAPACIDADES DE LINGUAGEM E DOS DISPOSITIVOS DIDÁTICOS Eliana Merlin Deganutti de Barros

INTRODUÇÃO Desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN – BRASIL, 1998), o ensino da língua vem sendo tomado, pelo menos prescritivamente, a partir de quatro eixos –, oralidade, análise linguística, leitura e escrita. No que se refere à oralidade, temos percebido, por meio de pesquisas e observações nas escolas, que mesmo os documentos oficiais da educação colocando a oralidade como modalidade de ensino, pouquíssimos trabalhos didáticos são direcionados sistematicamente a esse propósito. Como o aluno já chega “falando” à escola e como não há instrumentos oficiais que avaliem resultados do ensino-aprendizagem dessa capacidade linguageira, ela acaba quase esquecida no âmbito das pesquisas educacionais. Quanto à análise linguística, por mais que esse eixo seja um ponto problemático no quadro geral do ensino da língua, não aparece nos instrumentos de avaliação oficial da educação. Isso porque, “a prática de análise linguística constitui um trabalho de reflexão sobre a organização do texto escrito e/ou falado” (PARANÁ, 2008, p. 61), ou seja, está condicionada ao trabalho com a leitura e a produção textual – é um instrumento de que o professor dispõe para desenvolver a competência comunicativa (BRASIL, 1998) dos seus alunos1. Dessa forma, o que 1

Quando os documentos oficiais propõem a análise linguística como eixo de ensino, não estão se referindo ao trabalho descontextualizado e fragmentado – a partir de palavras e frases soltas, foco da gramática tradicional, de cunho metalinguístico e normativo –, mas à atividade de análise e reflexão linguística que promove a construção de sentidos do texto.

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está em foco é sempre a leitura e a escrita – capacidades sempre requisitadas em avaliações formais que mensuram a competência comunicativa do aluno. Sob o ponto de vista da leitura, de modo geral, percebemos, como formadora de professores, tanto em nível inicial como continuado, que ainda é um desafio para os docentes a concretização pedagógica do conceito de que os sentidos do texto não estão somente na materialidade linguística, mas no imbricamento de elementos cognitivos, sociais e semióticos; e que a compreensão textual depende de fatores situacionais, tanto do contexto de produção como de recepção discursiva. Entretanto, mesmo com essas dificuldades didáticas e alguns entraves enfrentados pela educação pública na contemporaneidade, temos visto várias inciativas relevantes com foco em projetos de leitura (cf. KLEIMAN, 2009). Já no que se refere à escrita, observamos que o seu ensino vem passando por uma crise bastante acentuada. Com a mudança de perspectiva em relação ao ensino da língua portuguesa, instigada pelas vastas pesquisas da área, desde os anos 80, e pelas diretrizes oficiais da educação (cf. BRASIL, 1998, 2006; PARANÁ, 2008) e seus instrumentos de avaliação (Prova Brasil, ENEM, entre outros), passou-se a tomar o texto como unidade de ensino. Ou seja, é o texto, visto em toda a sua dimensão contextual e discursiva, e sob a perspectiva dos gêneros textuais, que deveria direcionar o ensino da língua. Entretanto, quando o foco é o ensino da produção escrita, e não mais das “redações” que tradicionalmente vem sendo trabalhadas pela escola, parece que há um consenso entre os professores de que esse é um trabalho “difícil”, “quase impossível”, levando em conta o nosso atual contexto educacional, principalmente quando o foco são as escolas públicas. Temos observado que o ensino da escrita vem sendo, de certa forma, negligenciado pela grande maioria dos educadores. Essa negligência se reflete em dois panoramas: ou a produção escrita é quase excluída das atividades de ensino2 ou é trabalhada de forma precária – são so2

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Em um curso de formação continuada (PDE-PR/UENP/2013), um professor do Ensino Fundamental afirmou que até aquele momento, terceiro bimestre do ano letivo, ainda não tinha solicitado nenhuma produção textual para seus alunos.

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licitadas várias produções (na maioria das vezes, meras redações, textos somente para mensurar a capacidade de escrita formal do aluno), mas sem um trabalho sistematizado, que leve em conta o processo da escrita, um trabalho que foque as dificuldades de cada gênero, em cada contexto específico de produção3. Uma das grandes dificuldades apontadas pelos professores para o trabalho com a produção escrita é a fragilidade da formação no que diz respeito às novas concepções teórico-metodológicas que fundamentam essa modalidade de ensino. Observamos, a partir da nossa experiência como formadora de professores, que os docentes estão carentes de ferramentas didáticas consistentes que deem conta dos novos objetos/objetivos do ensino da língua, sobretudo, no que diz respeito à produção de textos. Os documentos oficiais, de forma geral, apenas tangenciam a problemática da metodologia de ensino da produção textual (cf. GONÇALVES; BARROS, 2010). Evidentemente, esses documentos não têm esse objetivo, uma vez que sua finalidade é apenas apontar diretrizes para o ensino e não sistematizar as ferramentas para que as concepções teórico-metodológicas possam ser colocadas em prática. Nesse sentido, são as pesquisas no campo da Linguística Aplicada que acabam sendo as condutoras desse processo de sistematização de métodos, procedimentos e metodologias de ensino da língua (cf. SCHNEUWLY; DOLZ, 20044; KLEIMAN, 2009). No que diz respeito ao ensino da produção de gêneros textuais, foco das principais diretrizes de ensino da atualidade, uma das grandes contribuições teórico-metodológicas advêm das pesquisas do Grupo de Genebra filiadas ao Interacionismo Sociodiscursivo (doravante ISD). Os estudiosos dessa corrente teórica desenvolveram uma engenharia didática, centrada na apropriação de gêneros textuais, que oferece instrumentos/ferramentas para mediar a ação docente, tendo, como ponto focal, um procedimento denominado pelos pesquisadores genebrinos de sequência didática (doravante SD). 3

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Essas evidências são ratificadas pelos relatórios de observações de aulas elaborados pelos estagiários que oriento na Universidade; em depoimentos de professores, nas formações continuadas (formações para o PDE-PR e Programa Olimpíada de Língua Portuguesa); pelos professores-supervisores do projeto PIBID que coordeno. No contexto suíço, fala-se em Didática das línguas.

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No caso da metodologia de ensino pautada nas SD, as pesquisas nesse campo começam a se delinear, no Brasil, principalmente depois que os pressupostos teórico-metodológicos advindos de Genebra passaram a ser tomados por documentos oficiais da educação, a orientar autores de livros didáticos (mesmo que seja para dar respaldo às orientações teórico-metodológicas para os professores – cf. BARROS; NASCIMENTO, 2007), assim como dar suporte a programas educacionais do Governo Federal, como é o caso do Programa Escrevendo o Futuro: Olimpíadas de Língua Portuguesa. Uma das consequências dessa disseminação pode ser notada no uso indiscriminado da expressão sequência didática, usada pelo Grupo para designar o instrumental mediador do processo da transposição didática de gêneros de textos5. Em vários contextos, esse termo passou a ser usado de forma equivocada para nomear um simples plano de aula, tornando-se, assim, uma espécie de “modismo”. No Brasil, mesmo com várias pesquisas na área, e Diretrizes Oficiais voltadas para o ensino da língua pautado na noção de letramento(s), a realidade da sala de aula ainda está centrada, em grande parte, em métodos tradicionais de ensino da língua, e direcionada ao uso, quase exclusivo, do livro didático. Dessa forma, no contexto brasileiro, precisamos da mobilização de docentes/pesquisadores acadêmicos na implementação de projetos de ensino, de pesquisa e de extensão universitária que promovam, juntamente com os órgãos públicos responsáveis pela Educação, uma atualização dos programas e métodos de ensino, assim como de pesquisas que enfoquem a realidade da sala de aula na implementação de metodologias que promovam a concretização dos objetivos traçados pelas Diretrizes atuais. Nesse sentido, pensando no contexto brasileiro e na necessidade de investigar o funcionamento da SD na realidade escolar é que este texto traz um recorte da pesquisa de doutoramento da autora, a qual investiga a validação didática desse procedimento didático, centrado no ensino da produção textual6. O objetivo 5 6

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A esse respeito, ver a análise de Anjos-Santos, Lanferdini e Cristovão (2011) em relação a duas SD publicadas na revista Nova Escola. Embora a SD, da forma como foi esquematizada pelos pesquisadores genebrinos, tenha como eixo o ensino da produção de um gênero de texto, ela não exclui as outras modalidades de ensino da língua – leitura, oralidade e análise linguística. Acreditamos, assim como Geraldi (2003), que o ensino da língua começa e termina na produção textual, já que os outros eixos estão articulados a ela. Para produzir um texto é preciso fazer leituras de apoio, analisar linguisticamente os modelos textuais de referência.

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aqui é apresentar a metodologia de base da SD, trazendo, como ponto focal, uma análise das capacidades de linguagem e do funcionamento dos dispositivos didáticos da SD da carta de reclamação elaborada colaborativamente (professor de sala de aula e pesquisador) para a intervenção didática – objeto da investigação. Para cumprir esse objetivo, o texto é estruturado da seguinte forma: contextualização da pesquisa etnográfica que dá suporte às análises; apresentação do procedimento “sequência didática”; exposição dos conceitos de “esquemas de utilização do gênero” e “capacidades de linguagem”, utilizados como categorias analíticas; a análise da SD da carta de reclamação pelos viés das capacidades de linguagem e dispositivos didáticos elaborados na sua planificação; considerações finais. 1. CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA ETNOGRÁFICA – SUPORTE DAS ANÁLISES A pesquisa etnográfica da qual se originou a sequência didática da carta de reclamação, objeto de análise deste capítulo, foi realizada em um contexto escolar público durante o ano de 2009. Não se trata, nesse caso, da pesquisa de tradição etnográfica da Antropologia, na qual o pesquisador insere-se por um longo período na vida da comunidade que está investigando, mas de uma etnografia de sala de aula. Essa, segundo Bortoni-Ricardo (2008), deve orientar-se por uma perspectiva qualitativa, e fazer uso de métodos da tradição etnográfica (gravações audiovisuais, diários da pesquisadora, entrevistas, etc.) sem, necessariamente, precisar de uma permanência extensiva em campo. No nosso caso, o processo etnográfico durou um semestre. A pesquisa teve como colaborador (e professor regente), uma professora em início de carreira e, como locus de intervenção, um sexto ano de uma escola da periferia de Londrina/PR. O objetivo da intervenção foi desenvolver um trabalho de apropriação de uma prática de linguagem configurada no gênero “carta de reclamação”, tendo como suporte teórico-metodológico o instrumental didático proposto pelo Grupo de Genebra, a fim de que ele fosse alvo 185

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de validação em contexto específico da escola pública brasileira. A validação didática a que essa pesquisa se propôs teve por objetivo não apenas “legitimar” o instrumental, mas também apontar problemas, dificuldades, sugestões de mudanças ou adaptações, bem como evidenciar a necessidade de reestruturação de conceitos, teorias e métodos, além de explicitar novas teorias, métodos que pudessem aflorar no percurso. Este artigo propõe-se, justamente, contribuir para esse processo de validação, lançando um olhar sobre a perspectiva das capacidades de linguagem mobilizadas na SD e o funcionamneto dos dispositivos didáticos elaborados para seu desenvolvimento em sala de aula. A pesquisa de campo assumiu um viés colaborativointervencionista, uma vez que a professora-colaboradora (professora da Educação Básica Pública) teve participação ativa no desenvolvimento da investigação. Todo o processo de intervenção didática – incluindo a escolha do gênero “carta de reclamação” e a elaboração da SD – foi pensado de forma colaborativa, numa interação permanente entre professora de sala de aula/professora em formação e pesquisadora/formadora (autora deste capítulo). Nesse tipo de pesquisa, “o pesquisador não é um observador passivo que procura entender o outro, que também, por sua vez, não tem um papel passivo. Ambos são coparticipantes ativos no ato da construção e de transformação do conhecimento” (BORTONI-RICARDO; PEREIRA, 2006). Na pesquisa, optamos por uma dinâmica diferenciada. A SD não foi feita antes da intervenção, mas durante o desenvolvimento do projeto didático, o que nos proporcionou ajustes na sua elaboração, quase em tempo real. Todo o processo de construção das ferramentas didáticas utilizadas na intervenção foi desenvolvido em colaboração com a professora, em uma dupla articulação de objetivos: a formação docente e o processo de ensino-aprendizagem.

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Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente

2. SEQUÊNCIA DIDÁTICA DE GÊNEROS: UM PROCEDIMENTO METODOLÓGICO PARA O ENSINO DA LÍNGUA Assim como Dolz (2009), acreditamos que escrever se aprende escrevendo em situações “reais” – ou aproximadas desse “real” –, e isso exige tempo e projetos que tenham certo fôlego. O ISD, na sua vertente didática, tem como postulado a articulação de práticas linguageiras a um projeto de comunicação coletivo, concretizado no desenvolvimento do procedimento sequência didática (SD), a partir do qual uma turma de aprendizes deve trabalhar sistematicamente para a resolução de um problema de comunicação (de preferência real, ou ficcionalizado pela ação didática). Problema esse que é materializado pela produção/leitura de um gênero de texto. A SD é “uma seqüência de módulos de ensino, organizados conjuntamente para melhorar uma determinada prática de linguagem”, e tem como objetivo buscar “confrontar os alunos com práticas de linguagem historicamente construídas, os gêneros textuais, para lhes dar a possibilidade de reconstruí-las e delas se apropriarem” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 51). As SD são “os dispositivos de organização dos conteúdos a serem ‘didatizados’ sobre uma prática de referência” (NASCIMENTO, 2009, p.69). Acreditamos que no trabalho com atividades isoladas o aluno tem mais dificuldade para conseguir integrar novas aprendizagens em relação à escrita de um gênero textual. Portanto, o trabalho com as SD visa evitar a dispersão e sugere um trabalho intensivo, concentrado em um período limitado – que será determinado pelas condições pedagógicas de cada contexto de ensino particular, tendo como perspectiva sempre a apropriação de uma prática linguageira, o que torna inviável um trabalho aligeirado, como sugere a maioria dos livros didáticos. A SD, da forma como foi esquematizada pelo pesquisadores genebrinos, tem as seguintes etapas: 1) apresentação da situação (momento de apresentar um problema comunicativo para a produção textual e presentificar o objeto de ensino); 2) primeira produção (etapa do diagnóstico do nível de desenvolvimento real do aluno); 3) módulos/oficinas (intervenção didática propriamente

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dita – foco nos problemas de produção do gênero); 4) produção final (etapa da revisão/reescrita; fechamento da interação, com o envio do texto a seus destinatários). Na metodologia das SD, não basta apenas apresentar ao aluno um exemplar do gênero juntamente com algumas questões de interpretação como pretexto para a produção textual7. É necessário um trabalho sistematizado para que o aluno possa realmente apropriar-se de uma determinada prática de linguagem e não apenas tornar-se um “ledor” de textos ou um “preenchedor de linhas textuais”. Na SD, todo o trabalho com o gênero passa a ser fruto de uma necessidade de interação, preferencialmente real – propaganda de uma festa da escola, anúncio da venda de um cãozinho de um aluno, livro de receitas para dar de presente às mães no Dia das Mães – ou ficcionalizada pelo professor. Partindo dessa perspectiva, defendemos que a atividade de produção textual deve sempre ser encarada, no âmbito da escola, como um processo, nunca como um produto acabado, uma vez que “a complexidade da atividade de escrita justifica o caráter longo e árduo de sua aprendizagem” (DOLZ; GAGNON; DECÂNDIO, 2010, p.31). O ideal nessa abordagem de ensino é que o professor não só desenvolva o projeto de uma SD, mas também planeje todas as suas etapas. Mesmo que o professor encontre sequências prontas8, elas devem ser sempre adaptadas ao contexto específico de intervenção. Ou seja, a SD não é um manual didático, mas um roteiro de estudo, um planejamento de atividades sistematizadas com foco na apropriação de um gênero. Nessa perspectiva, o professor tem sempre que pesquisar sobre o gênero alvo do ensino, a prática social a que ele está vinculado, a sua esfera social de comunicação; identificar o nível das capacidades de linguagem dos alunos em relação a esse gênero; decidir as melhores estratégias pedagógicas a serem desenvolvidas; elaborar atividades, 7 8

188

Procedimento muito usado por alguns livros didáticos (cf. BARROS; NASCIMENTO, 2007). Hoje é comum a publicação de artigos, livros, cadernos pedagógicos com SD desenvolvidas previamente por professores-pesquisadores (cf. BARBOSA, 2005). É importante frisar que alguns desses trabalhos, mesmo se apropriando da nomenclatura “sequência didática”, caracterizam-se em “planos de aula” ou “projetos didáticos”, descaracterizando a metodologia de apropriação de uma prática de linguagem proposta pelos pesquisadores de Genebra, a partir do procedimento SD.

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tarefas e dispositivos didáticos apropriados para cada contexto específico; etc. Isso não quer dizer, por exemplo, que o professor deva ser um jornalista ou um publicitário para elaborar uma SD do gênero “reportagem” ou “propaganda”; porém, é preciso que seja um observador atento das práticas discursivas dos jornalistas e publicitários, assim como dos gêneros que emergem dessas esferas de comunicação. 2.1 ESQUEMAS DE UTILIZAÇÃO DO GÊNERO E DAS CAPACIDADES DE LINGUAGEM Segundo Schneuwly (2004), os esquemas de utilização de um gênero – instrumento semiótico que possibilita a comunicação verbal – podem ser relacionados: 1º) à representação do contexto de produção – primeiro esquema de utilização; 2º) ao nível organizacional e enunciativo do texto – segundo esquema de utilização. Na concepção epistemológica e metodológica do agir linguageiro defendida pelo ISD, os gêneros de texto agem como instrumentos (recursos semióticos, externos ao sujeito) que possibilitam a mediação do homem com a situação/objeto de intervenção. Para sua ação linguageira, o agente-produtor precisa mobilizar capacidades de linguagem (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004) nos dois níveis dos esquemas de utilização do instrumento/gênero com o qual vai intervir no mundo. As capacidades de linguagem estão, assim, relacionadas às aptidões requeridas do indivíduo para a sua ação linguageira, o que pressupõe sempre a mediação instrumental de um gênero de texto. Segundo Dolz e Schneuwly (2004), as capacidades de linguagem podem ser subdivididas em três níveis:

189

Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente Quadro 2 – Capacidades de linguagem

Capacidades de ação

Capacidades discursivas

Capacidades linguístico-discursivas

Essa capacidade possibilita ao agente-produtor fazer representações do contexto da sua ação de linguagem, adaptando sua produção aos parâmetros do ambiente físico, social e subjetivo. Enfim, esse nível de capacidade é aquele que articula o gênero à base de orientação da ação discursiva.

Essa capacidade possibilita ao agente-produtor fazer escolhas no nível discursivo. No modelo de análise do ISD, são aquelas relacionadas à infraestrutura geral de um texto – plano geral, tipos de discurso e sequências.

Essa capacidade possibilita ao agente-produtor realizar as operações linguístico-discursivas implicadas na produção textual. No modelo de análise do ISD, elas são representadas pelos: mecanismos de textualização (conexão, coesão nominal e coesão verbal); e mecanismos enunciativos (gerenciamento de vozes e modalizações). Também entram nesse nível a construção de palavras e enunciados e as escolhas lexicais.

Embora classificadas em três níveis distintos, as capacidades de linguagem não operam de forma compartimentada ou linear. Uma capacidade não age sozinha, pois ela é dependente das demais. Essa proposta de subdivisão funciona apenas no plano metodológico da pesquisa. Em uma visão interacionista sociodiscursiva, uma SD deve focar as três capacidades e manter certo equilíbrio entre elas. Caso não haja esse equilíbrio, corre-se o risco de gramaticalizar o gênero (cf. BONINI, 2007), apenas trocando o foco da gramática para o gênero, tomando-o como um objeto puramente estrutural, desvinculado da sua prática discursiva de referência. Por outro lado, pode-se também tratá-lo como um objeto não linguístico, explorando apenas o seu contexto de produção/recepção, seu conteúdo temático ou seus elementos semióticos não verbais. Por exemplo, é muito comum tangenciarmos as características linguísticas do gênero quando o foco são textos multimodais. Isso é fácil verificar quando se solicita a construção de uma SD de 190

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histórias em quadrinhos (HQ) em cursos de formação. É comum, nesse caso, a primeira versão do material didático explorar apenas os aspectos visuais (forma dos balões, enquadramento, metáforas visuais, etc.), deixando de lado o trabalho com os aspectos verbais do gênero9. Isso não quer dizer que a variedade de semioses envolvida na produção do gênero não precise ser trabalhada na SD, pelo contrário, esses elementos não verbais são peças essenciais para a compreensão do texto/gênero (cf. SAITO, 2009), porém, a SD continua vinculada à disciplina de Língua Portuguesa, cujo principal objeto é a linguagem verbal – vista sob o ponto de vista discursivo, em articulação com as práticas sociais. Ou seja, tomar o gênero como objeto de uma SD requer uma visão de conjunto do artefato semiótico. Porém, não significa que a SD deva explorar todos os objetos de ensino que emergem dos dois grandes esquemas de utilização do gênero: o contexto de produção e a arquitetura interna do texto. O professor (ou o material didático, o currículo da escola, etc.) precisa fazer “escolhas”, a fim de atender as especificidades daquele contexto. Para concluir este tópico, é preciso ressaltar que a SD sempre terá que tomar o gênero nas suas duas faces: como objeto social de referência e como objeto didático, mantendo uma solidarização entre os propósitos comunicativos das duas vertentes (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004). 2.2 A SD DA CARTA DE RECLAMAÇÃO: ANÁLISE DAS CAPACIDADES DE LINGUAGEM É a partir dessa perspectiva que analisamos a SD da carta de reclamação, elaborada colaborativamente durante a pesquisa etnográfica, tomando as capacidades de linguagem como categoria de observação. O Quadro 03 apresenta uma sinopse da SD, cujo objetivo é demonstrar as capacidades de linguagem arroladas em cada módulo – capacidades de ação (A), Capacidades discursivas (D) e Capacidades linguístico-discursivas (L-D). Lembramos que esse é apenas um procedimento didático de análise, cujos resultados não são, e nem precisam ser, totalmente objetivos, uma vez que 9

Vivenciamos essa experiência com uma professora PDE. A primeira versão da sua SD de HQ não trazia nenhum módulo focado na capacidade linguístico-discursiva.

191

Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente

estamos no âmbito da linguagem e do ensino, e não temos como objeto um artefato lógico, racional e absoluto. Quadro 3 – Capacidades de linguagem mobilizadas na SD

Módulos

Objetos de ensino

Nº de aula

Capacidades de linguagem A

D

LD

X

01

Reclamação: um ato de cidadania

A ação discursiva de reclamar Os vários contextos de produção discursiva da ação de reclamar O contexto de produção discursiva do gênero “carta de reclamação”

02

X

02

Um olhar sobre os problemas da comunidade

Conteúdo temático das cartas de reclamação

01

X

03

A primeira produção: um ensaio

A textualidade do gênero carta de reclamação

01

X

X

05

Aprendendo a diferenciar modalidades diferentes de cartas

Elementos do contexto de produção e do plano textual global das cartas de reclamação, comercial, do leitor, pessoal e aberta

04

X

X

06

Reconhecendo a estrutura da carta de reclamação

Estrutura das cartas de reclamação (as “partes” da carta) Frases nominais (construção do “assunto” da carta) Conceitos de substantivo e verbo Maneiras formais de textualizar a saudação inicial e final e o vocativo

04

192

X

X

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07

Relatar ou descrever o problema da reclamação?

Relato e descrição Tempos verbais: presente do indicativo, pretérito perfeito e imperfeito

03

08

Começando a re e s c re v e r a carta

A textualidade da carta de reclamação

03

09

Aprendendo a argumentar para deixar a carta de reclamação mais eficaz: opiniões e argumentos

Fases da sequência argumentativa: explicitação da opinião defendida e apresentação dos argumentos Sustentação dos argumentos

07

10

Discutindo sobre os temas das cartas

Conteúdo temático das cartas de reclamação

02

11

Aprendendo a usar os elementos articuladores do texto

Elementos articuladores do texto, sobretudo, os implicados na discursividade argumentativa

06

12

Reescrevendo o restante da carta

A textualidade da carta de reclamação

02

X

X

X

13

Vamos aprimorar a escrita da carta?

A textualidade da carta de reclamação

03

X

X

X

14

Finalizando o projeto de escrita da carta de reclamação

Escrita de envelopes e contexto de produção das cartas

03

X

X

X

X

X

X

X

X

X

X

Como vemos, dos treze módulos10, nove mobilizam a capa-

cidade de ação, nove, a capacidade discursiva e, sete, a capacidade linguístico-discursiva. Tal resultado demonstra um equilíbrio na distribuição das capacidades na SD, com uma pequena desvanta10

Para a análise, retiramos o módulo destinado ao trabalho com as regras de sala de aula (módulo 4), pelo fato de ele não estar diretamente ligado à apropriação do gênero – módulo que se trabalhou as regras de sala de aula.

193

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gem para a capacidade linguístico-discursiva. Isso se deve ao fato de os mecanismos de textualização relativos à coesão verbal e à nominal, por questões de tempo, não terem sido contemplados em módulos específicos, como proposto no projeto inicial da SD11. Esse fato proporcionou certa defasagem em relação ao número de módulos que focam a capacidade linguístico-discursiva. Mesmo com a impossibilidade de trabalhar objetos linguístico-discursivos em módulos específicos, conseguimos trabalhar parcialmente a coesão verbal na oficina sobre a descrição/relato do problema. Por outro lado, tanto a coesão verbal como a nominal foram, evidentemente, alvos de ensino no processo de reescrita textual, embora de forma não sistematizada. Embora Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) defendam que não é preciso “realizar um trabalho sistemático no interior da sequência” com as questões de ordem gramatical e ortográfica, na proposta inicial, pensávamos em elaborar módulos específicos para explorar os problemas relativos às dimensões transversais da escrita (DOLZ; GAGNON; DECÂNDIO, 2010) – problemas ortográficos, gramaticais, de pontuação, etc. – diagnosticados na primeira produção dos alunos. Pretendíamos trabalhar com as próprias produções dos alunos, assim como sugerem os pesquisadores genebrinos, a partir da constituição de um “corpora de ‘frases a serem melhoradas’”. Infelizmente, o tempo não foi suficiente para realizar esse trabalho. Por outro lado, conseguimos, em vários momentos, fazer uma articulação entre os esquemas de utilização do gênero e algumas dimensões transversais da escrita. Vários pontos gramaticais foram integrados às atividades dos módulos, como, por exemplo, a diferenciação entre verbo e substantivo, feita na intervenção didática sobre as frases nominais. Nesse sentido, é possível afirmar que as SD sempre permitem contextualizar objetos de ensino relativos às dimensões transversais, ressaltando, com isso, a sua funcionalidade na produção textual. Para tanto, é preciso que o professor saiba fazer essa articulação sem perder o foco da SD. Ou seja, os alunos não podem perder de vista que estão inseridos em um projeto de 11

194

Para visualizar o projeto inicial da SD, ver Barros (2014).

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apropriação de uma prática linguageira12. Isso faz toda a diferença para o sucesso dessa metodologia de ensino da língua. Para complementar a visão analítica, destacamos que, do número total dos módulos, quatro trabalham com a escrita/ reescrita textual e, por isso, mobilizam as três capacidades de linguagem. Já o último módulo é destinado à digitação dos textos, ao trabalho com o endereçamento postal e ao envio das cartas, sendo assim, ele mobiliza tanto a capacidade de ação como a discursiva, mas também outro tipo de capacidade: a capacidade de “digitação de textos” no computador. Esse foi um fato inovador no projeto, uma vez que a intervenção didática extrapolou os domínios conteudísticos da Língua Portuguesa, proporcionando aos alunos uma inclusão digital (cf. BONILLA; PRETTO, 2011), o desenvolvimento de uma capacidade muito requisitada no mundo atual e ainda pouco explorada no ensino público. Para fazer uma análise da distribuição das três capacidades sob o ponto de vista das horas/aula, vamos desconsiderar cinco módulos – os módulos 3, 8, 12, 13 e 14 – pois eles trabalham com a produção textual como um todo, desenvolvendo as três capacidades, e o objetivo, nesse momento, é nos cencentrar nos módulos que têm por finalidade sistematizar o ensino dos objetos do gênero. A tabela a seguir mostra a distribuição sob o ponto de vista quantitativo, ressaltando que nos módulos que mobilizam mais de uma capacidade, o número total de horas foi dividido igualmente. Tabela 1 – Distribuição das capacidades de linguagem por hora-aula Nº de horas-aula

Percentual

Capacidades de ação

07

24,14%

Capacidades discursivas

12,5

43,10%

Capacidades linguístico-discursivas

09,5

32,75%

Total da SD (sem os módulos da produção textual)

29

100%

12

Sobre como fazer essa integração de objetos de ensino numa SD ver Barros (2013).

195

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A Tabela 1, diferentemente da análise das capacidades pelo número de módulos, mostra que a capacidade de linguagem mais trabalhada sistematicamente na SD foi a discursiva e, a menos sistematizada, a capacidade de ação, já que essa foi bastante trabalhada por gestos didáticos relacionados à memória das aprendizagens (cf. BARROS, 2013). Para analisarmos esses resultados, vamos, a seguir, articulá-los à análise das atividades, tarefas e dispositivos didáticos elaborados para a SD. 2.3 ANÁLISE DOS DISPOSITIVOS DIDÁTICOS: CAPACIDADES DE AÇÃO No que diz respeito ao primeiro grande esquema de utilização do gênero, o “contexto de produção” (cf. SCHNEUWLY, 2004), relacionado à capacidade de ação, o resultado mostrado pela Tabela 1 já era esperado. Isso porque a intenção foi não tratá-lo de forma mecânica, a partir de dispositivos didáticos com questões como “Quem é o emissor?”, “Quem é o destinatário?” (muito comuns em SD), pois o contexto de intervenção requeria atividades mais dinâmicas e que fizessem com que os alunos realmente internalizassem a situacionalidade de produção do gênero e pudessem associá-la aos esquemas de utilização relacionados à arquitetura interna do texto. A intenção foi colocar os elementos contextuais em evidência no primeiro módulo, de uma forma lúdica, sem muita sistematização, e depois ir retomando-os ao longo das outros módulos, por meio de gestos didáticos relacionado à memória das aprendizagens. Sendo assim, para introduzirmos o tema “reclamação”, levamos para a sala de aula recursos audiovisuais com o quadro “Púlpito”, veiculado, na época, pelo programa Altas Horas, da Rede Globo, a partir do qual o apresentador Serginho Groisman convida participantes a fazerem reclamações/denúncias. Ao reproduzirmos o quadro com os alunos, tentamos mostrar que a reclamação é uma ação linguageira que pode se concretizar por meio de várias formas textuais, e que, cada uma delas, emerge de um contexto diferente: para cada objetivo, tipo de reclamação, temos um gênero de texto diferente, com pessoas que assumem posicionamentos discursivos diferentes. Dos exemplos apresentados pelos alunos é que emergiu o objeto “carta de reclamação”. 196

Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente

Foi desse ponto que começamos a levantar a necessidade de assumirmos o nosso papel de cidadão para reclamarmos dos problemas da comunidade (conteúdo temático das cartas). Foi, assim, após eles terem se motivado para a atividade de reclamar dos problemas locais, que apresentamos o projeto de escrita da carta de reclamação. Ou seja, nós não chegamos à sala de aula e colocamos como tarefa a escrita da carta. A escrita foi proposta como uma atividade discursiva autêntica, já que reclamariam de problemas reais da comunidade, por meio de um instrumento semiótico não criado “nos muros da escola”, mas que existe e circula na sociedade: a carta de reclamação. Tal carta não seria alvo apenas de um trabalho didático, ela teria enunciadores e destinatários legítimos, ou seja, os objetivos dessa escrita ultrapassariam a mera atividade didática. Essa primeira etapa da SD possibilitou simularmos um esquema real da atividade de escrita da carta de reclamação, a partir do tripé motivação, intencionalidade e capacidades (sobre esquema da atividade de linguagem, cf. Barros, 2012). Instigamos os alunos para a necessidade13 de reclamarem dos problemas da comunidade (por exemplo, ruas esburacadas), problemas que, por si só, não desencadeariam uma ação linguageira. Para tanto, a necessidade precisou se transformar em motivação, ou seja, eles precisaram ser motivados a solucionar o problema. A professora necessitou instigar os alunos a assumirem o papel discursivo de cidadão (não mais de aluno) com a intenção de reclamarem e solicitarem uma resolução para um problema local, por meio de um instrumento semiótico específico, a carta de reclamação. Para isso, deveriam ser dotados de capacidades de linguagem específicas que lhe possibilitassem agir na interação linguageira de forma eficaz. É nesse ponto que o professor precisou mostrar a importância do trabalho desenvolvido no projeto de escrita da carta de reclamação, pois ele seria todo voltado para “solucionar” os problemas operacionais de escrita desse gênero. A experiência com a ferramenta SD nos faz acreditar que se esse primeiro momento do procedimento didático for bem elaborado e se o professor souber retomar os elementos contextuais em todos os módulos, não é preciso, necessariamente, criar uma 13

Para Leontiev (2006), a atividade, linguageira ou não, sempre parte de uma necessidade.

197

Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente

oficina específica para trabalhá-los de forma sistemática. Tudo vai depender, evidentemente, das características do gênero, do contexto e dos objetivos da intervenção. No nosso caso, optamos também por explorar sistematicamente alguns elementos contextuais, que endentemos ser importantes para a escrita do gênero, em um dispositivo didático (Figura 1) focado no confronto contextual e discursivo entre alguns gêneros epistolares: carta de reclamação, aberta, do leitor, pessoal e comercial. Dessa forma, o aluno pôde perceber que a carta de reclamação mantém tanto semelhanças como diferenças com outras modalidades de carta, não somente no plano estrutural, mas também no situacional e discursivo, ao mesmo tempo em que internalizava o contexto de produção da carta de reclamação, objeto de ensino da SD. Figura 1 – Dispositivo didático: leitura e identificação de tipos diferentes de cartas14

1. Pense no objetivo de cada carta. Você consegue identificar o objetivo de cada carta pela relação abaixo? ( ) Fazer uma reclamação para uma empresa ( ) Comunicar-se com uma pessoa íntima (amigos, parentes...) ( ) Tornar pública uma opinião a respeito de algo que foi publicado na imprensa ( ) Tornar pública as ideias de um jornal ( ) Fazer uma comunicação empresarial/comercial ( ) Tornar pública uma opinião/denúncia ( ) Solicitar algo 2. Identifique em cada carta o emissor (quem escreveu) e o destinatário (para quem foi escrita) – não é o nome da pessoa, mas quem ela representa: um cidadão, um gerente de banco, uma empresa, um espectador... 3. Leia as 4 cartas. Agora identifique o tipo de cada carta, fazendo a correspondência correta:

14

198

Por questões de espaço, não anexamos as cartas que foram utilizadas na atividade.

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CARTA 1 CARTA 2 CARTA 3 CARTA 4 de desculpas CARTA 5

( ) carta comercial ( ) carta pessoal ( ) carta do editor ( ) carta de reclamação ( ) carta do leitor ( ) carta aberta ( ) carta de pedido de conselho ( ) carta de pedido (

) carta de amor

(

) carta de reivindicação

4. Qual o assunto de cada carta? 5. Qual das cartas traz explicitado o assunto? Em vez de “assunto” qual o termo usado pela carta? Está abreviado? 6. Observe a estrutura de cada carta, o que todas elas têm em comum? 7. Como você interpreta isso? Qual seria o motivo dessas semelhanças? 8. Agora, observe as semelhanças entre as cartas de reclamação, comercial e pessoal e descreva essas semelhanças. 9. Qual a principal semelhança entre a carta do leitor e a carta aberta? 10. Dentre todas as cartas, qual a mais informal? Qual seria o motivo dessa informalidade? Copie trechos que demonstram essa informalidade. 11. Quais cartas estão defendendo uma ideia/opinião? Identifique as cartas e a opinião defendida. 12. Essas cartas que defendem ideias podem ser chamadas de argumentativas? Por quê?

No dispositivo didático apresentado, exploramos quatro elementos contextuais que, a nosso ver, são os mais importantes no trabalho com os gêneros epistolares: o enunciador e destinatário (nível social), o objetivo do gênero e o conteúdo temático. No que diz respeito ao sujeito-produtor do texto, optamos por usar um termo mais conhecido dos alunos: emissor. Assim, mesmo sabendo que, teoricamente, o ISD trata como “emissor” a pessoa física que produz o texto, para identificar o papel discursivo do produtor nós preferimos manter esse termo, em vez de “enunciador”, já que estávamos em um processo de transposição didática. No comando do exercício 2, é possível perceber que o foco estava 199

Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente

no papel discursivo do produtor, mas tivemos que didatizar esse conceito, dando exemplos e usando termos do universo discursivo dos alunos, pois o contexto de intervenção assim o exigia: alunos do 6º ano de uma escola pública. Outro objeto de ensino vinculado à mobilização de capacidades de ação é o conteúdo temático do gênero. Da maneira como delineamos o nosso projeto de intervenção, cada aluno teria a autonomia para escolher o problema a partir do qual faria a sua carta de reclamação. Dessa forma, cada um deveria se aprofundar na temática correspondente ao problema selecionado. No caso da escrita do gênero trabalhado, esse aprofundamento é de suma importância, uma vez que o conhecimento de mundo/enciclopédico em relação ao problema-alvo é o que dá sustentação à discursividade argumentativa do texto. O primeiro dilema do projeto de intervenção foi fazer com que os alunos visualizassem um problema local, pois, pela faixa etária da turma, a tendência era que não fossem muito engajados, ainda mais se levarmos em consideração uma cultura de resignação da sociedade atual quando se trata de questões relacionadas ao poder público. O segundo dilema estava justamente na forma de trabalhar coletivamente temáticas distintas, já que cada aluno teve a liberdade de selecionar um problema da comunidade para fazer a sua carta de reclamação. Para dar conta do primeiro impasse, pedimos como tarefa de casa, já no término do módulo 1, que os alunos entrevistassem pessoas da comunidade – familiares, amigos, vizinhos – sobre os problemas locais, e registrassem a entrevista no caderno. A intenção foi que começassem a se engajar nos problemas e a assumir o papel de um cidadão da comunidade. Embora não tivéssemos trabalhado o gênero “entrevista”, imaginávamos que seria o melhor instrumento para resolver o nosso impasse didático, uma vez que, da forma como mobilizamos a atividade, ela articulava uma tarefa ao mesmo tempo funcional, com foco no conteúdo, e metacognitiva (cf. ALTET, 1994), proporcionando a reflexão do aluno em relação aos problemas da comunidade. As entrevistas seriam usadas, no módulo seguinte, para a discussão e sistematização, na lousa, dos problemas locais, foco da carta de reclamação.

200

Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente

Já para resolver o do segundo dilema, solicitamos, no segundo módulo, após os alunos terem escolhido o alvo da reclamação, uma pesquisa em jornais, revistas, internet, sobre o assunto da carta – poderia ser uma notícia, reportagem, artigo de opinião, etc., desde que abordasse o mesmo referente da reclamação. A intenção era agrupar a turma pelos temas escolhidos e elaborar um módulo para discutirmos cada temática. Essa atividade, infelizmente, não se concretizou, pois foram poucos os alunos que fizeram a pesquisa. Alguns tentaram, mas não conseguiram alcançar os objetivos propostos, uma vez que pesquisaram textos que não acrescentavam nada à discussão do problema-alvo da reclamação. A solução encontrada foi a pesquisadora e a professora selecionarem textos relevantes em relação a cada problema da carta para servirem de instrumento didático do módulo 10. Nesse módulo, o conteúdo temático foi articulado a outro objeto de ensino: os argumentos para a textualização argumentativa da carta. Os textos selecionados serviram, então, para que os alunos se aprofundassem na temática da carta, além de possíveis suportes argumentativos para a reclamação. Segundo Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004),“O aluno deve conhecer as técnicas para buscar, elaborar ou criar conteúdos” (p. 104). No caso da carta de reclamação, por ser um gênero argumentativo, e os alunos não terem muitas leituras prévias, eles precisam “buscar” os conteúdos para sustentar a sua argumentação durante o processo da intervenção didática. E é justamente isso que intencionamos ao articular dois objetos de ensino: o conteúdo temático e o discurso argumentativo. É preciso ressaltar que esse módulo foi elaborado durante o processo interventivo, a partir dos obstáculos que foram surgindo no desenvolvimento da SD. 3. ANÁLISE DOS DISPOSITIVOS DIDÁTICOS: CAPACIDADES DISCURSIVAS Quanto à mobilização da capacidade discursiva, vemos, por meio da Tabela 1, que houve uma significativa representatividade na planificação geral da SD: 43,10%. Esse é um resultado expressivo e que pode ser explicado pelas características do gênero e do contexto de intervenção. Pelo fato de a carta de

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Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente

reclamação poder ser subdividida em “partes” bem delineadas e com diferenças discursivas relevantes, foi essencial um trabalho sistemático para explorar o seu plano textual global. Por essa razão, o módulo correspondente a tal objeto discursivo durou quatro horas/aula. Desse trabalho, surgiu a necessidade de montar outro módulo não projetado: o módulo 7, com três horas/aula, cujo objetivo foi explorar a etapa da carta destinada ao relato/ descrição do problema. Porém, o módulo que mais contribuiu para esse resultado expressivo em relação à capacidade discursiva foi o destinado às fases da sequência argumentativa, com sete horas/aula de duração. Quando delineamos o projeto da SD, não pensávamos que esse módulo poderia se estender tanto, mas a realidade de sala de aula nos mostrou que os alunos têm muitas dificuldades para compreender a funcionalidade do discurso argumentativo. Em razão de a tradição escolar privilegiar no Fundamental I, quase que exclusivamente, o ensino de textos narrativos, faz com que, por exemplo, alunos do 6º ano nunca tenham passado por um trabalho sistemático com textos argumentativos. Acreditamos que o caráter discursivo do texto não deve impedir que ele seja objeto de ensino nos primeiros anos da escolarização. Um texto argumentativo pode ser trabalhado já nas séries iniciais, desde que a SD seja adaptada ao nível dos alunos (cf. trabalho de SOUZA, 2003). É o que os estudiosos chamam de progressão em espiral (DOLZ, 2009), ou seja, o mesmo gênero pode ser retomado mais adiante, aumentando-se o seu nível de complexidade. Quanto aos dispositivos didáticos15 feitos para trabalhar o plano textual global da carta de reclamação, elaboramos um para explorar sistematicamente o conteúdo e outro para servir de memória didática do aprendizado. O primeiro (Figura 2), apoia-se em elementos supratextuais de relevo (BRONCKART, 2003, p. 81) – sublinhados, negritos, fontes das letras, etc. – para destacar visualmente as partes da carta, a fim de tornar a tarefa mais acessível aos alunos e, o conteúdo, de fácil internalização. 15

202

Cinco dispositivos didáticos foram elaborados para trabalhar a capacidade discursiva: “Leitura e identificação de tipos diferentes de cartas” (Figura 1), “Estrutura da carta de reclamação” (Figura 2), “Estrutura geral da carta de reclamação”, “Argumentação” e “Opinião e argumentos”. Por motivo de espaço, não foi possível analisar todos neste capítulo.

Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente Figura 2 – Dispositivo didático: estrutura da carta de reclamação Recorte e cole essas cartas de reclamação no canto esquerdo do caderno. Observe as diferentes partes da carta que estão destacadas de formas diferentes (negrito, CAIXA ALTA, etc.). Junto com a professora, vá puxando flechas para a direita e colocando o nome/função de cada parte (veja o exemplo) para montar a estrutura geral da carta de reclamação.

Pela textualização do comando, é possível inferir que a tarefa referente a esse dispositivo deve ser realizada simultaneamente pela professora, na lousa: “Junto com a professora, vá puxando flechas [...]”. Ou seja, é uma atividade para ser feita coletivamente. Já a opção por trabalhar com recorte e colagem foi para dar um tom lúdico à atividade, promover a cooperação entre alunos e a aproximação da figura do professor. Já o segundo dispositivo didático sobre estrutura da carta não mobiliza nenhuma tarefa para o aluno ou professor, pois seu objetivo é sintetizar o conteúdo trabalhado no dispositivo anterior e deixá-lo disponível para consultas – no caderno dos alunos e na parede da sala –, uma vez que o “plano textual global” (estrutura da carta de reclamação) seria objeto de retomada nos módulos seguintes. Assim como pontuam Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 111), “certas atividades apresentam uma 203

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base para a realização de outras”, é o que acontece com o plano global do texto, que necessita ser trabalhado logo no início da SD, por dar uma visão de conjunto ao gênero e possibilitar, depois, uma articulação com os seus outros esquemas de utilização. Acreditamos que a apropriação de um gênero textual mobiliza redes cognitivas de saber, articulando, de forma não linear, “recortes de aprendizagens” relativos a seus esquemas de utilização. Isto é, pode ser que uma dimensão ensinável do gênero não seja internalizada em sua totalidade no momento específico da intervenção didática. Porém, quando o professor explora outro objeto desse gênero, relacionado ao anterior, o aluno pode fazer articulações com o que já foi ensinado, ativar conhecimentos de mundo antes “adormecidos” e construir uma rede cognitiva de saber que proporciona a internalização plena do objeto anteriormente visto. Para explorar a textualidade argumentativa da carta de reclamação, foram elaborados dois dispositivos didáticos. O primeiro é baseado em Barbosa (2005). Diferentemente da autora, procuramos esquematizar um dispositivo didático em forma de tabela para tornar a atividade mais didática, levando em consideração o nosso contexto específico de intervenção. Nele, os alunos tinham três tarefas distintas em relação a alguns enunciados: a) distinguir trechos que trazem um fato indiscutível, uma opinião sem argumentos ou uma opinião sustentada por argumentos; b) identificar as ideias defendidas; c) identificar os argumentos. O propósito com essa atividade foi, primeiramente, mostrar que, para argumentar, precisamos ter algo discutível, problemático, pois fatos incontestáveis não são passíveis de opiniões. Em segundo lugar, queríamos mostrar que uma opinião sem argumentos16 torna-se um “achismo”, pois são eles que “fortalecem”, que dão credibilidade às opiniões. No segundo dispositivo didático focado na argumentação (Figura 3), o propósito foi privilegiar formas de letramento local (cf. ROJO, 2009), trabalhando com um gênero argumentativo veiculado por um jornal da cidade. O gênero é o “Debate”, o qual é esquematizado por uma pergunta polêmica lançada aos leitores da versão online do jornal, cuja resposta seja SIM ou NÃO; na versão impressa, publica-se uma resposta afirmativa e 16

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Usamos a metáfora das “armas”, para didatizar os conceitos de “argumentos”.

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outra negativa. Também buscamos temas atuais e que pudessem despertar o interesse e a reflexão dos alunos, como a suspensão das aulas pela gripe A e a escolha da sede dos Jogos Olímpicos (temas que estavam sendo bastante discutidos na época da intervenção). Propomos, dessa forma, um tipo de letramento crítico (cf. OLIVEIRA, 2009), ultrapassando os objetivos relacionados à apropriação da carta de reclamação e possibilitando que o aluno interiorize não apenas os esquemas de utilização desse gênero, mas também se engaje nas discussões atuais da sua sociedade e saiba se posicionar frente a elas. A tarefa dos alunos, nesse dispositivo (Figura 3), era levantar a opinião defendida e os argumentos usados em cada texto. Figura 3 – Dispositivo didático: opinião e argumentos

Segundo Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), o princípio essencial de elaboração de uma SD é variar os modos de trabalho nos módulos. Uma das três categorias de atividades citadas pelos autores para essa diversificação diz respeito à tarefa simplificada de produção textual, a qual utilizamos para sistematizar o objeto discursivo “relato e descrição”. Propusemos uma atividade na qual o aluno tinha que escrever uma descrição, no tempo presente, do quadro “Leitura”, de Almeida Junior, reproduzido no livro didático da turma; depois, simular um relato para a mãe que contasse sua viagem a um museu e descrevesse (no passado, já que a des205

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crição está encaixada no discurso narrativo) o quadro “Leitura” apreciado na viagem. O objetivo era que o aluno se concentrasse mais particularmente em um aspecto mobilizado pelo gênero, a descrição ou o relato, colocando-o em evidência. Para Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 105), esse tipo de atividade impõe ao aluno limites bem rígidos, permitindo-lhe “descartar certos problemas de linguagem que ele deve, habitualmente, gerenciar simultaneamente” (no caso da produção textual do gênero, na íntegra). Ou seja, ao delimitar um problema de linguagem, o aluno pode dedicar todos os seus esforços cognitivos na internalização desse objeto. Entretanto, para que não se torne uma atividade fragmentada, o professor precisa, a todo momento, gerenciar gestos didáticos (cf. BARROS, 2012) que incorporem esse objeto de ensino que foi isolado ao projeto de escrita geral da SD. 3.1 ANÁLISE DOS DISPOSITIVOS DIDÁTICOS: CAPACIDADES LINGUÍSTICO-DISCURSIVAS Por fim, analisamos o resultado de 32,75% na mobilização da capacidade linguístico-discursiva (cf. Tabela 1). Tal número é bastante expressivo, se levarmos em consideração que se refere a uma capacidade de linguagem, de modo geral, bastante problemática no que diz respeito à elaboração de SD centradas em gêneros textuais (cf. HILA, 2010). Esse resultado somente foi possível, pois conseguimos inserir atividades focadas em características linguísticas do gênero em módulos centrados na capacidade discursiva: módulos 6 e 7 – “Reconhecendo a estrutura da carta de reclamação” e “Relatar ou descrever o problema da reclamação?”. No módulo 6, mesmo sem um dispositivo didático para explorar elementos linguísticos, foram alçados à categoria de objeto de ensino: a frase nominal, os conceitos e a diferenciação de substantivo e verbo, a textualização da saudação inicial e final e do vocativo. No caso da frase nominal, ela foi teorizada pelo professor, que formalizou tarefas para os alunos fazerem em sala de aula, cujo objetivo foi transformar frases verbais em nominais. Para que essa atividade se consolidasse, foi preciso também retomar dois outros objetos de ensino: o substantivo e o verbo. Como partilhamos uma visão interacionista sociodiscursiva 206

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do ensino, essa atividade foi articulada a uma prática discursiva específica: a elaboração de títulos. A atividade foi incrementada com a presentificação de manchetes de jornais, títulos de reportagens, artigos, livros, etc., os quais, em sua elaboração, utilizam-se bastante da construção de frases nominais. A intenção foi criar uma atividade de descoberta (DOLZ; GAGNON; DECÂNDIO, 2010) para o aluno, articulando um objeto linguístico mobilizado pela carta de reclamação para formular o seu “assunto” a outra prática discursiva: os títulos. Isso porque “modelizamos” o assunto da carta como se fosse o seu título. Já no módulo sobre o relato e a descrição, originalmente pensado para trabalhar a capacidade discursiva, a articulação com a capacidade linguístico-discursiva foi feita por meio da exploração dos tempos verbais: presente do indicativo, pretérito perfeito e imperfeito. Não foi construído um dispositivo didático específico para trabalhá-los – eles foram retomados teoricamente por meio de explicações e exemplos dados pela professora, na lousa, e explorados de forma articulada à tarefa de elaboração de relatos e descrições. Entendemos que, ao articular objetos linguísticos à produção textual, mesmo que essa seja feita de forma simplificada, como é o caso da produção desse módulo, o aluno tem mais chance de internalizar o conhecimento, uma vez que ele é abordado de forma contextualizada, dando mais sentido ao aprendizado (cf. GONÇALVES; SAITO; NASCIMENTO, 2010). Os dois únicos dispositivos didáticos elaborados especificamente para abordar a capacidade linguístico-discursiva foram feitos para o módulo 11, “Aprendendo a usar os elementos articuladores do texto”. Primeiramente, gostaríamos de destacar que houve uma preocupação na escolha da expressão que usaríamos para didatizar o objeto de ensino “organizadores textuais” (expressão usada por BRONCKART, 2003, p. 267), uma vez que cada teoria nomeia esse objeto diferentemente, o que acaba dificultando o trabalho didático. Segundo Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), no trabalho com a SD, é preciso elaborar uma linguagem comum para falar dos textos e de seus objetos. Essa foi a nossa intenção, ao adotarmos a expressão “elementos articuladores do texto” (usada por GAGLIARDI; AMARAL, 2008), já que ela traz uma palavra

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que ajuda na compreensão do conceito linguístico trabalhado: “articuladores”. O primeiro dispositivo, um quebra-cabeça de enunciados, com foco nos elementos articuladores do texto, foi adaptado de Gagliardi e Amaral (2008). A tarefa do aluno, proposta para ser feita em grupos, consistia em, com base no material fornecido pela professora, montar o quebra-cabeça, articulando duas proposições e um articulador textual e, em seguida, escrever o enunciado no caderno, destacando os elementos articuladores usados e a sua função na frase. O exemplo abaixo mostra um dos enunciados trabalhados – divididos em três partes, recortadas e embaralhadas, em forma de um quebra-cabeça. As propagandas mostram produtos atraentes para nossas vidas, // MAS // cabe ao consumidor analisar aquilo de que realmente necessita e selecionar o que é bom.

A proposta consistia em trabalhar o conteúdo de forma lúdica, mas, sobretudo, de uma maneira que o aluno percebesse a funcionalidade de cada elemento articulador na construção dos segmentos de textos. Por isso, a atividade foi proposta para ser feita em grupos, para que, dessa forma, os alunos pudessem discutir a resolução da tarefa entre eles e, com isso, refletir sobre o conteúdo. Além disso, com os alunos agrupados, a professora poderia fazer um acompanhamento mais próximo do desenvolvimento da atividade, mediando a sua execução. Entendemos que, da maneira como a gramática tradicional trabalha a maioria desses elementos, sempre vinculados ao ensino do período composto por coordenação ou subordinação, e atrelados a uma metalinguagem que os “engessa” em categorias fechadas, faz com que o aluno, muitas vezes, represente-os simplesmente como “elementos gramaticais”. Ou seja, listas de termos e expressões que eles têm de associar a certas categorias gramaticais pré-estabelecidas e “decorar” para a prova, sem necessitar, com isso, entender a sua funcionalidade discursiva. E o que é pior, na hora da produção textual, o aluno não consegue incorporar o aprendizado focado nesses exercícios gramaticais.

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O dispositivo didático do quebra-cabeça, embora trabalhado a partir de “segmentos textuais”, permite que o aluno se concentre na funcionalidade da frase, uma vez que não exige uma tarefa puramente metalinguística. É o aluno, com a mediação do professor, depois de ter construído a frase e compreendido o seu funcionamento, que vai determinar a função de cada elemento articulador. A intenção é que o aluno reflita sobre o conteúdo e não o decore, dando, assim, um teor funcional e metacognitivo (ALTET, 1994) à tarefa e possibilitando que ele transfira esse conhecimento à produção do texto. O segundo dispositivo didático elaborado para o módulo sobre elementos articuladores (Figura 4) teve como tarefa a construção de frases relacionadas ao tema da carta de reclamação de cada aluno, usando os elementos articuladores apresentados. Nesse dispositivo, cada grupo de elementos articuladores foi associado a uma função específica. Entretanto, diferentemente de muitas atividades focadas pelos livros didáticos, a tarefa do aluno não era tentar “encaixar” um elemento a uma determinada função ou categoria. Ele teria que construir enunciados “reais”, uma vez essas frases já deveriam ser pensadas em função da produção da sua carta. O interessante desse dispositivo é que ele traz exemplos de frases para várias funções discursivas, a partir de um único tema: a saúde pública (principalmente a da cidade de Londrina). Essa “facilitação” foi necessária, pois, na execução do dispositivo anterior, percebemos uma grande dificuldade dos alunos em compreender o funcionamento desse objeto de ensino. Talvez em razão do que já foi comentado: a tendência de verem tais objetos como “itens gramaticais” e não como “ferramentas” para a produção de sentidos do texto.

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Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente Figura 4 – Dispositivo didático: elementos articuladores Elabore frases sobre o assunto da sua carta de reclamação, usando os elementos articuladores propostos, conforme os exemplos abaixo: USO ELEMENTOS EXEMPLOS ARTICULADORES To m a d a d e Do meu ponto de vis- Na minha opinião, o Governo de Londrina não está posição ta / na minha opinião comprometido com a saúde pública. / pensamos que/ Indicação de certeza

Sem dúvida / está claro que / com certeza / é indiscutível

A saúde pública deve ser, sem dúvida, uma prioridade dos governantes comprometidos com o bem-estar dos cidadãos.

Indicação de probabilidade

Provavelmente / parece-me que / ao que tudo indica / é possível que

Ao que tudo indica, nenhuma providência vem sendo tomada há anos no que diz respeito à saúde pública londrinense.

Explicação

Quer dizer / ou seja / em outras palavras

O Governo de Londrina não está comprometido com a saúde pública, ou seja, ele está violando um dos direitos fundamentais do cidadão: o direito à saúde.

Justificativa ou relação de causa e consequência

Porque / pois / já que / uma vez que / devido a / pelo fato de

A saúde pública deve ser uma prioridade dos governantes, uma vez que a saúde é um direito fundamental de todo cidadão.

Acréscimo de argumentos

E / além disso / além de /também / não só... mas também

A saúde pública deveria ser uma prioridade dos governantes não só em época de eleições, mas também nos anos não eleitorais.

Oposição de ideias

Mas / porém / todavia / contudo /entretanto/ apesar de

Apesar de Londrina ter ótimos hospitais, o atendimento no setor público é muito deficiente.

Organização geral do texto

Inicialmente / primeiramente /em primeiro lugar / em segundo lugar / por fim

Inicialmente, é importante destacar a precariedade do atendimento dos hospitais da rede pública de saúde londrinense.

Conclusão

Portanto /enfim/ então / assim / finalmente/ para finalizar / concluindo

Portanto, é preciso que os governantes tomem uma posição urgente em relação à saúde pública de Londrina.

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Elaboramos, também, um dispositivo didático focado na revisão e na reescrita textual – uma ficha de avaliação em pares e autoavaliação da escrita – centrada no desenvolvimento de todas as capacidades de linguagem. Esse dispositivo foi feito para ser trabalhado no final da SD, quando a segunda produção da carta de reclamação já tivesse sido concluída. Entendemos que na atividade de autoavaliação ou avaliação em pares é essencial o apoio de um dispositivo que oriente o olhar do aluno para o texto. Como é comum o aluno receber o seu texto corrigido somente a partir de “erros” gramaticais e ortográficos (cf. RUIZ, 2001), o mais provável, quando ele recebe a tarefa de revisar o texto sem um dispositivo de apoio, é imitar (cf. VIGOTSKI, 2008) a ação do professor. Dessa forma, o seu olhar acaba recaindo exclusivamente sobre a ortografia e a gramática. Além disso, como, na maioria das vezes, o aluno é carente de saberes linguístico-discursivos, ele não consegue apontar “erros” na revisão. Da forma como esquematizamos o trabalho de revisão/ reescrita textual, baseado no que Gonçalves (2010) denomina de correção interativa, via lista de constatações, proporcionamos ao aluno uma avaliação formativa, não focada na busca do “erro” como elemento classificador do “bom” e do “ruim”, mas como “obstáculo” a ser superado no processo formativo. Outro diferencial desse tipo de atividade de correção textual é que ele privilegia exatamente aquilo que foi tomado como objeto de ensino durante a SD. Nesse momento, o aluno consegue visualizar o percurso pelo qual passou durante o processo formativo da SD, ao ativar, gradualmente, por meio das perguntas do dispositivo didático da revisão textual, a memória das suas aprendizagens (cf. BARROS, 2013). CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao focarmos na análise de uma SD, a partir das capacidades de linguagem mobilizadas nos seus dispositivos didáticos, intencionamos mostrar um pouco do funcionamento metodológico que subjaz esse procedimento didático, muito “popularizado” no âmbito do ensino da língua, embora pouco compreendido em sua essência epistemológica de base. 211

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A SD de gêneros, criada pelo Grupo de Genebra, não pode ser entendida como um simples planejamento de atividades para o ensino da língua, uma vez que está fundamentada em alicerces teórico-metodológicos que dão coerência aos seus “passos”, “etapas”. Dessa forma, se faz necessário que os professores que se utilizam dessa ferramenta apropriem-se, não somente de sua estrutura de base, mas, sobretudo, da sua dinâmica de funcionamento. Para tanto, é de suma importância a socialização de pesquisas que apresentem, de forma acessível, resultados empíricos sobre a sistematização e o desenvolvimento de SD no contexto da Educação Básica.

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PARTE 3: OS DESAFIOS TRAZIDOS PELA INTERNET PARA O ENSINO DE ESCRITA E DE LEITURA

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O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE UM WEBJORNAL LABORATÓRIO: A REESCRITA COLABORATIVA EM FOCO1 Fernanda Taís Brignol Guimarães Clara Dornelles

INTRODUÇÃO

C

om o surgimento das novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs) e da internet, convivemos com diversas práticas de escritas digitais, que em muito se distanciam da escrita grafocêntrica convencional. Essa nova forma de escrita requer que nos apropriemos dos letramentos próprios dos ambientes multi e hipermidiáticos (SIGNORINI, 2012). Com a passagem da Web 1.0 para a Web 2.0 e, posteriormente, para a Web 3.0, surgiram novos canais e espaços na forma de multimídias e hipermídias, que possibilitam o surgimento de novas habilidades de leitura e de escrita, em que o usuário deve habituar-se não só à estrutura bidimensional e estática de uma página escrita, mas, também, à tridimensionalidade criada através da possibilidade de acesso a múltiplos espaços sobrepostos por pontos de linkagem, que constituem o portal para o chamado ciberespaço (SIGNORINI, 2012). 1

Os dados analisados neste artigo resultam de ações de extensão do Laboratório de Leitura e Produção Textual (LAB/Proext-Mec) da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) e integram pesquisas do “Grupo de Estudos Linguagem e Currículo” (GELC/CNPq) e “Práticas de Escrita e de Reflexão sobre a Escrita em Diferentes Mídias (CNPq), por meio dos Projetos “Letramentos na (form)ação docente” (PIBIC; FAPERGS – ano de 2013), “O escolar grafocêntrico e o hipermidiático em práticas letradas contemporâneas” (CNPq no. 475305/2010 -8), “Letramentos hipermidiáticos na escola/letramentos escolares na hipermídia” (FAPESP no. 10/51597-9). São resultados também do trabalho de conclusão de curso da Especialização em Leitura e Escrita da Unipampa, desenvolvido pela acadêmica Fernanda Taís Brignol Guimarães, sob orientação da Profa Dra Clara Dornelles.

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Essa nova perspectiva de letramento, advinda da era da informática e do surgimento da internet, torna praticamente impossível que, ao pensarmos em práticas de leitura e escrita, desconsideremos o grande avanço tecnológico contemporâneo, em que estamos diariamente conectados, recebendo e fornecendo informações de forma simultânea com um simples “click” de nossos mouses. A grande adesão ao uso das novas tecnologias, que atinge, principalmente, os jovens, faz com que a maneira de se pensar sobre a escrita e sobre seu processo de ensino-aprendizagem deva ser ampliada nos ambientes escolares (BRITO; SAMPAIO, 2013). Os alunos estão vivendo em uma era digital, acessando a internet em seus celulares, participando de redes sociais, operando diversos aparelhos digitais diariamente. Para esse tipo de aluno, o ensino baseado somente nas práticas mais tradicionais, desconsiderando as novas tecnologias, já não é mais suficiente2. A fim de suprir a necessidade da entrada dos letramentos multi-hipermidiáticos em sala de aula, o governo tem investido em programas como o Programa Nacional de Tecnologia Educacional do Ministério da Educação (PROINFO), Um Computador por Aluno (UCA), entre outros. Por meio desses programas, as escolas vêm sendo equipadas com laboratórios de informática, computadores para os alunos e acesso à internet. Porém, apesar de todo esse investimento material, a reorganização escolar, voltada para o uso das novas tecnologias e dos letramentos multihipermidiáticos, ainda não se apresenta de forma concreta em sala de aula, já que, na maioria das vezes, o professor ainda não sabe como poderá tornar, de fato, produtiva para o processo de ensino-aprendizagem toda essa tecnologia que chega às escolas (PINHEIRO, 2011). 2

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Por outro lado, não devemos nos iludir achando que apenas a inclusão de novas ferramentas tecnológicas na sala de aula promoverá o tipo de ensino demandado pela cultura digital, que requer, sobretudo, do nosso ponto de vista, estratégias que acionem a participação dos estudantes em diferentes tipos de interação. Entendemos que o ensino adequado, portanto, não é o que propõe utilizar inovações tecnológicas, mas o que fomenta o envolvimento do aluno com práticas sociais diversas, em articulação à cultura digital. Em sua análise de blogs de ensino de língua portuguesa, Acosta e Dornelles (2015) demonstram que práticas de ensino inovadoras/relevantes podem ser realizadas com o uso de recursos tecnológicos bastante modestos, sem a necessidade da parafernália cibernética que habita o imaginário sobre o uso das novas tecnologias na escola.

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Pensando na formação do professor e no papel das universidades e das escolas – instituições essas que se mostram como as principais responsáveis por produzir saberes legitimados socialmente e pela constituição de uma sociedade letrada –, faz -se extremamente necessário o desenvolvimento de estudos que se debrucem sobre o uso das TICs e os letramentos, já que as novas tecnologias vêm reorganizando e redefinindo, de forma cada vez mais dinâmica, novos papéis institucionais. Na tentativa de entender como se constitui a relação entre o uso das novas tecnologias digitais e o processo de construção das práticas colaborativas de escrita, buscamos, neste artigo, investigar as estratégias utilizadas no processo de (re)escrita de textos produzidos de forma colaborativa no Google Docs3, por uma comunidade organizada sob a ideia de colaboração. Para tanto, adotamos uma compreensão situada das práticas de linguagem, apoiando-nos na Linguística Aplicada (LA) transdisciplinar (SIGNORINI, 1998) e, lançando mão, mais precisamente, da pesquisa qualitativa interpretativista e de uma metodologia de cunho netnográfico (KOZINETS, 2006; AMARAL; NATAL; VIANA, 2008). Dessa forma, propomo-nos a entender a cultura de (re) escrita da comunidade observada - um grupo que, estruturado em práticas colaborativas de produção textual, produz um webjornal4 como ação de multiletramentos e extensão em uma universidade pública no interior do Brasil (cf. DORNELLES; SOUZA, 2013). 1. OS LETRAMENTOS MULTI-HIPERMIDIÁTICOS E AS NOVAS CULTURAS DE ESCRITA É praticamente impossível pensarmos em nossas atividades diárias sem pensar no uso da internet. Seja no trabalho, na escola ou como forma de lazer, a internet já é parte indispensável do dia a dia da maioria de nós, tanto de forma síncrona – que permite ao usuário entrar em contato com seus interlocutores em tempo real – quanto assíncrona – que permite a ocorrência da interação sem que os interlocutores estejam conectados à internet ao mesmo tempo (BRITTES, 2007). 3 4

Desde 2012, o Google Docs passou a integrar o Google Drive, um sistema de armazenamento de dados na web que segue os moldes do Google Docs, porém pretende ampliar os recursos disponibilizados. Usamos os termos “webjornal” e “jornal digital” intercambiavelmente.

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Segundo Pinheiro (2011), a inserção das TICs no contexto sócio-histórico atual possibilitou significativas mudanças, que se caracterizam pela velocidade dos meios de comunicação e de produção, pela volatilidade do capital e pelo acesso aos estoques mundiais de informação. O acesso à rede mundial de computadores trouxe consigo grandes transformações nas mais variadas esferas da vida social. Podemos dizer que vivemos em um mundo conectado, uma vez que a internet faz parte das atividades diárias de milhões e milhões de pessoas, em especial dos adolescentes (BRITO; SAMPAIO, 2013), e a tendência é o aumento do número de usuários ao longo dos tempos. Ao pensarmos sobre a linguagem e as TICs, precisamos considerar o surgimento dos letramentos multi-hipermidiáticos associados à linguagem multimodal (verbal, visual, sonora). Isso não significa que as formas mais convencionais de uso da linguagem tenham sido extintas a partir do surgimento dos letramentos multi-hipermidáticos, mas sim que as várias modalidades de linguagem convivem no mesmo plano, dividindo espaço em meio à utilização que fazemos delas. Nos multiletramentos, sabemos que há a existência de sobreposições e complementaridades entre eventos e práticas de letramentos de diferentes tipos, mas que, do mesmo modo, existem as subversões e descontinuidades que devemos considerar por se mostrarem bastante significativas (SIGNORINI, 2012). Para melhor compreendermos o impacto das novas tecnologias nos modos como concebemos a escrita, é necessário pensarmos um pouco sobre a sua história e sobre o processo de transição que a levou da folha impressa até as telas do computador. Conforme considera Lemke (2010), já na era da imprensa, ou mesmo antes dela, raramente tem-se o letramento atrelado de forma estrita ao texto escrito. A combinação do texto impresso a uma imagem visual, quando a relação entre eles faz emergir significados essenciais para a construção de sentido do todo, já constitui o texto multimodal. Na concepção do autor, nenhuma tecnologia é uma ilha; de acordo com seu grau de complexidade, as tecnologias vão se situando em redes mais amplas de outras/ novas tecnologias e de outras práticas culturais que, no caso da escrita, envolvem a autoria multimidiática. Para Lemke (2010):

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Houve um tempo, talvez, em que podíamos acreditar que construir significados com a língua de algum modo era fundamentalmente diferente ou poderia ser tratado separadamente da produção de significados com recursos visuais ou padrões de ação corporal e interação social. Hoje, no entanto, nossas tecnologias estão nos movendo da era da ‘escrita’ para a era da ‘autoria multimidiática’ (ver Purves, 1998 e Bolter, 1998), em que documentos e imagens de notações verbais e textos escritos propriamente ditos são meros componentes de objetos mais amplos de construção de significados. Os significados das palavras e imagens, lidas ou ouvidas, vistas de forma estática ou em mudança, são diferentes em função dos contextos em que elas aparecem - contextos que consistem significativamente de componentes de outras mídias. Os significados em outras mídias não são fixos e aditivos (o significado da palavra mais o significado da imagem), mas sim, multiplicativos (o significado da palavra se modifica através do contexto imagético e o significado da imagem se modifica pelo contexto textual) fazendo do todo algo muito maior do que a simples soma das partes (ver LEMKE 1994a, 1998). (LEMKE, 2010, p. 456)

Desse modo, a autoria multimidiática se configura como um processo em que um ou mais autores precisam considerar diferentes mídias ou semioses na constituição de seu dizer. Este tipo de autoria não é, necessariamente, colaborativa. Sua característica central é a composição multimodal/multissemiótica, em que a escrita se apresenta apenas como um dos elementos e não deve ser tomada de modo isolado. Embora possamos considerar que a autoria multimidiática precede as novas tecnologias, por exemplo ao consideramos textos impressos ou audiovisuais multimodais, podemos também dizer que foi potencializada pela absorção dos textos escritos pelas telas dos computadores. Conforme Santaella (2008), com os processos de digitalização, a soberania do texto verbal escrito e a hegemonia do livro impresso como meio de transmissão da cultura e do saber passaram a dividir espaço com os textos hipermidiáticos ligados a esse novo suporte que, ao se constituir hipertextualmente, amplia formas não lineares e multidimensionais de interação. Por analogia, a atividade de leitura de um hipertexto compara-se ao funcionamento da mente 219

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humana, com suas várias conexões interligadas que produzem a atividade do cérebro em funcionamento, de forma interconectada por vários pontos ou links, que podem redirecionar o leitor a qualquer ponto que mais lhe interessar (SANTAELLA, 2008). Assim, novos modos de conceber e desenvolver a produção escrita emergiram, de um lado, possibilitando autoria multimidiática e, de outro, o que chamamos de multiautoria: processos de construção textual estruturados sobre práticas colaborativas de produção de textos e em que há negociação de pontos de vista sobre efeitos de sentido do texto e permeabilidade entre conteúdos e estilos de escrita/produção oral dos autores. Quando falamos em multiautoria, portanto, estamos nos referindo ao processo de escrita conjunta, em que há a colaboração de dois ou mais sujeitos envolvidos diretamente na escrita do texto. Se formos pensar no conceito de autoria de acordo com o que nos diz Bakhtin (2003[1992]), em todo texto já há, de certa forma, um processo de negociação na construção do discurso, uma vez que o autor do enunciado leva sempre em consideração seu interlocutor, bem como a situação de enunciação. Para o filósofo russo, o conceito de autoria está atrelado ao de arquitetônica, o qual consiste na relação existente entre autor, ouvinte e tópico. Conforme Sobral (2009), (...) dada uma modalidade de discurso ou gênero (...), o enunciador é levado a esta ou aquela posição com relação ao outro. Assim, na variedade de relações com o outro está a própria chave da constituição do “tom” e do “fio” dos discursos, o que leva igualmente em conta as esferas de atividade em que são possíveis e aceitáveis um dado “tom” e um dado “fio”. Assim, ser autor é assumir, de modo permanentemente negociado, posições que implicam diferentes modalidades de organização dos textos, a partir da relação do autor com o “herói”, ou tópico, e com o ouvinte (SOBRAL, 2009, p. 63).

No que concerne à autoria multimidiática e à multiautoria, consideramos que o uso das ferramentas fornecidas pela internet possibilita que haja a construção de um processo multimidiático e coletivo de escrita, já que, com efeito, a comunicação na internet 220

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é processada em diferentes modalidades e mídias que podem ser mobilizadas por e para coletivos mais abrangentes. Assim, a internet possibilita amplificar e torna mais fluidos modos de construção colaborativos da escrita, que antes eram menos presentes na vida cotidiana e nos espaços institucionais. Na internet, os textos podem ser elaborados por vários colaboradores conectados à rede, que podem atuar juntos na produção de um mesmo texto, sem necessariamente estarem em um mesmo lugar físico ou ao mesmo tempo. Em rigor, nosso discurso possui sempre um tom valorativo, estamos sempre dando uma resposta antecipada ao nosso interlocutor, que está sempre presente na construção do discurso, embora não necessariamente de forma física (interlocutor presumido) e nos adequamos à esfera de atividade (o que pode ou não ser dito e de que forma). No caso da multiautoria, que estamos tratando aqui, essa participação do outro acontece de forma mais explícita, visto que há, de fato, duas ou mais pessoas trabalhando na construção do texto e fazendo escolhas que constituirão o produto final da escrita. Quanto ao conceito de colaboração, Damiani (2008) alerta para a importância de não confundir a existência de colaboração eventual com a existência de uma cultura de colaboração. Segundo a autora, podem existir formas alternativas de colaboração que, apesar de envolverem trabalho conjunto, por apresentarem subgrupos em disputa e ações conjuntas apenas ocasionais, não constituem culturas colaborativas (DAMIANI, 2008). A existência de uma comunidade colaborativa constitui-se da imersão de seus participantes na cultura dessa comunidade, em que haja apropriação das práticas colaborativas partilhadas por todos, envolvendo o planejamento conjunto e a tomada de decisão do grupo, ainda que, não necessariamente, envolva consenso. Essa cultura de colaboração é bastante incentivada no universo do jornalismo e pode ser visualizada no processo de construção de uma simples matéria: na produção do texto, seja para o jornal impresso ou audiovisual, além dos produtores do conteúdo, há, previamente, uma definição de pauta, que de certo modo já indica o foco da notícia/reportagem; existe um fotógrafo ou cinegrafista que participa da composição do texto produzindo conteúdos imagéticos; redatores ou editores de vídeo, que se-

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lecionam conteúdos e fazem as escolhas do que será definitivo; além disso, costumam ser feitas entrevistas em que o cidadão não profissional se posiciona e colabora com conteúdo. Com as novas tecnologias, este tipo de colaboração não profissional tem sido cada vez mais reforçado na esfera jornalística, tanto que um tema em pauta frequente nas discussões acadêmicas contemporâneas da área tem sido o jornalismo colaborativo, também chamado de jornalismo cidadão ou participativo, em que o cidadão comum investiga, observa, produz e socializa conteúdo jornalístico (cf. RODRIGUES, 2009). Com a internet, desenvolveu-se ainda o webjornalismo (CANAVILHAS, 2001; 2006; MIELNICZUK, 2001), que amplifica a participação do cidadão no próprio jornalismo compreendido como oficial, uma vez que a fluidez tecnológica é explorada por meio de estratégias de design para tornar a interatividade com o leitor mais intensa e, consequentemente, possibilitar maior colaboração. Nesse universo, escrita colaborativa se institui, na produção de um jornal em qualquer canal midiático, sempre que decisões forem conjuntamente tomadas em relação ao conteúdo ou estruturação de um texto. Nos estudos de escrita colaborativa que mobilizamos neste artigo para estudar processos de produção de textos, nossa noção de colaboração será mais estreita5 e focalizará situações em que mais de uma pessoa negociam e produzem o mesmo texto, em multiautoria. Para Vygotsky (2003[1930]), existem enormes vantagens nas atividades realizadas em grupo, de forma conjunta, que não estão disponíveis em ambientes de aprendizagem individualizada. Conforme o autor, é pela relação com outras pessoas que o sujeito se constitui e constitui seu aprendizado, seus processos de pensamento ocorrem pela mediação com o outro. Tomamos os modelos referenciais produzidos por outras pessoas como base para nossos comportamentos e raciocínios e para os significados que damos para as coisas ou pessoas (VYGOTSKY, 2003[1930]). Nosso foco de análise, portanto, recai no entendimento a respeito das vantagens do trabalho com a escrita colaborativa - que envolve negociação, avaliação e tomada 5

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O webjornal que produzimos se constitui como uma ação de jornalismo colaborativo ou cidadão, e nos anos subsequentes à produção deste artigo, especialmente em 2015, se consolidou na tensão entre diferentes concepções de colaboração, intensificada pela presença, na equipe, de jornalistas e professores da área de Letras. Contudo, esta discussão não será foco no presente artigo.

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de decisões conjuntas, no processo de formação de um sujeito crítico, autônomo e participativo. 2. A (RE)ESCRITA DO TEXTO NA WEB Conforme Bakhtin (2003[1992]), um gênero6 é concebido pela necessidade das situações de comunicação social, sendo que ele vai se moldando e se estabilizando nas atividades de comunicação humana. A internet e a linguagem mediada pelas TICs possibilitaram o surgimento de novos gêneros, que se constituem de transmutações dos já existentes, os chamados “gêneros digitais” ou “emergentes” (MARCUSCHI, 2010; BRITO; SAMPAIO, 2013). Os novos gêneros propiciam novas concepções de leitura e escrita, marcadas por formas híbridas de texto7, que misturam sons, imagens, palavras, ou seja, recursos verbais e não verbais em um mesmo enunciado. Essa nova ideia de texto nos faz refletir sobre a “teoria da multimodalidade” ou “semiótica” (DIONISIO, 2005). À luz dessa teoria, percebemos que o texto escrito está sendo, cada vez mais, associado à imagem, e, consequentemente, estão sendo exploradas construções de sentido que integram as diferentes modalidades. Embora saibamos que qualquer texto pode se apresentar de forma multimodal, o recurso da multimodalidade é usado com mais intensidade nos gêneros digitas, já que o texto eletrônico torna mais viável a mescla de diferentes tipos de linguagem: oral, escrita, imagética e digital. Não precisamos observar a internet com muito aprofundamento para perceber que há o surgimento de uma nova escrita (DIONISIO, 2005).

6

7

Bakhtin traz o conceito de gênero do discurso não como uma forma da língua, mas como uma forma típica do enunciado e que, por essa razão inclui certa expressão típica a ele inerente. Nas palavras do autor: “Os gêneros correspondem a situações típicas da comunicação discursiva, a temas típicos, por conseguinte, a alguns contatos típicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstâncias típicas” (BAKHTIN, 2003 [1992], p. 293). Dessa forma, os gêneros organizam a comunicação discursiva que se estabelece entre o eu e o outro. Não é de agora que percebemos a multimodalidade presente no texto. A questão é que as formas híbridas de texto ocorrem na vida fora da escola, sendo que no letramento escolar o que predominou foi o grafocentrismo. Talvez, por isso, exista grande dificuldade de lidar com o texto multimodal, antes mesmo da dificuldade de lidar com o texto hipermidiático.

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Além de possibilitar maior presença de recursos multimodais, a escrita na internet permite, ainda, o surgimento de uma cultura de (re)escrita. Considerando o estudo de Ribeiro (2013) sobre os processos de reescrita da webnotícia, percebemos que existe uma diferença entre a notícia impressa e a notícia escrita na web. A autora, inclusive, observa que a escrita da notícia na web faz esse gênero assumir características próprias, já que o texto vai sendo reescrito enquanto é apurado. Nesse estudo, Ribeiro (2013) analisa a construção de uma notícia que acontece por mais de uma hora diante dos olhos do leitor de um webjornal, que acompanha os processos de reescrita e apuração jornalística. À medida que vai sendo construído, o texto passa por um constante processo de revisão e de reescrita8. Diante disso, é importante termos bem definida a distinção que existe entre esses dois processos de escrita. Tradicionalmente vemos a revisão como um processo final da escrita, em que já não há muito que alterar no texto, e então se procede a um fechamento no processo de produção textual. Esse fechamento envolve alterações linguísticas/gramaticais como, por exemplo, mudanças de ortografia, correções para adequação à norma culta, e mínimas alterações de conteúdo, como corrigir uma informação errada que possa afetar a credibilidade do texto. O processo de reescrita constitui-se de mudanças de escopo mais interno ao texto (RIBEIRO; GONZAGAPONTES, 2013), envolvendo mudanças mais significativas, que remetem geralmente à clareza e organização do texto ou a uma maior adequação ao gênero em questão (FIAD; MAYRINKSABINSON, 1996). Por meio de operações de reescrita, agimos de forma a tornar o texto mais significativo para o leitor, ou seja, as alterações realizadas visam à construção de sentido do texto (GUIMARÃES; DORNELLES, 2013). Os processos de revisão e reescrita na web podem envolver, inclusive, diferentes semioses: imagem, palavra, som, entre outras (RIBEIRO; GONZAGAPONTES, 2013). Por exemplo, a revisão poderia ocorrer no ato de arrumar a diagramação de uma foto, ou então, poderia 8

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Ou até mesmo, em alguns casos, de retextualização. Entendemos a retextualização como uma operação mais radical, envolvendo a transformação de um texto em outro, inclusive com mudança de propósito comunicativo, de gênero ou, até mesmo, de modalidade (oral/ escrito).

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ocorrer reescrita na alteração de uma imagem ou na inclusão de um link. Percebemos, assim, que a revisão e a reescrita são profundamente afetadas pelos suportes dos textos (papel impresso, tela do computador, displays de celulares, tablets, entre outros). Nessa perspectiva, consideremos as palavras de Chartier (2001): “é fundamental lembrar que nenhum texto existe fora do suporte que lhe confere legibilidade; qualquer compreensão de um texto, não importa de que tipo, depende das formas com as quais ele chega até seu leitor” (CHARTIER, 2001, p. 214). Pinheiro (2011), em seu estudo da escrita colaborativa em ambientes digitais, analisou, por meio de um projeto de ensino de um jornal digital escolar, a construção de práticas colaborativas de escrita (PCE) entre um grupo de alunos(as) do Ensino Médio, mediada pelo uso de algumas ferramentas da internet. O projeto de ensino consistia, basicamente, no trabalho colaborativo dos(as) alunos(as) no processo de produção das matérias a serem publicadas no jornal, a partir do uso de duas ferramentas digitais: a conversa instantânea e o correio eletrônico. Para fins de análise dos dados, o autor abordou teorias acerca do processo de escrita colaborativa, que se baseia em: atividades de escrita, estratégias de escrita, papéis dos participantes e modos de escrita colaborativa. O autor mostra que as práticas colaborativas de escrita se constituem como processos de aprendizagem que são sempre mediados por artefatos sociais, históricos e culturais diversos. Ressalta que a internet, como principal artefato tecnológico atual, propicia, por meio de suas muitas ferramentas digitais que podem funcionar como instrumento de mediação, uma contribuição para atividades colaborativas de produção textual. Seu estudo evidencia a evolução dos alunos-participantes da pesquisa, durante os três meses de trabalho com escrita colaborativa, em que os estudantes se apropriam das estratégias de escrita, tornando-se cada vez mais autônomos em relação ao planejamento, desenvolvimento e tomada de decisão quanto à construção colaborativa das matérias do jornal. Pensando no processo de escrita colaborativa, para fins desta pesquisa, levaremos em consideração a distinção de Pinheiro (2011) em relação aos termos “Práticas de Escrita Colaborativa” e 225

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“Práticas Colaborativas de Escrita – PCE”, tendo sido este último utilizado por ele em sua investigação. Segundo Pinheiro, o termo “Práticas de Escrita Colaborativa” não abrange todo o processo de escrita em conjunto, mas focaliza apenas o resultado final9. No caso das Práticas Colaborativas de Escrita – PCE, o trabalho coletivo acontece antes mesmo do início do processo de escrita, quando, por exemplo, os autores decidem sobre o que vão escrever. As PCE acontecem quando as escritas dos diferentes sujeitos impactam e definem o produto final, em processos de multiautoria, em que esses sujeitos formam uma comunidade colaborativa. O autor aponta algumas atividades-chave10 que ocorrem durante o processo de produção de um documento em grupo, atividades essas que envolvem múltiplas partes e se apoiam em, pelo menos, três etapas: planejamento, elaboração do texto e revisão. O planejamento envolve coleta, organização e seleção de informações que se mostrem relevantes de acordo com os objetivos da escrita. Na atividade de elaboração do texto, as discussões feitas durante a fase de planejamento (observações, anotações, pesquisas etc.) são transformadas em um texto que esteja de acordo com objetivo geral do grupo. E, por fim, a atividade de revisão envolve a avaliação e a revisão do texto elaborado. Pinheiro (2011) indica que, embora as PCE sigam certa sequência, nem sempre essas etapas ocorrem na mesma ordem. As atividades-chave das PCE envolvem subdivisões que descrevem e compõem cada fase do processo colaborativo de escrita. Essas subdivisões incluem: 1) brainstorming; 2) esboço; 3) rascunho; 4) revisão inicial; 5) revisão e 6) edição. Se pensarmos nos processos de revisão e reescrita anteriormente abordados, a nosso ver, os itens 2, 3 e 4 se apresentam como processos de reescrita, por partirem de uma ideia inicial (item 1 - brainstorming) para os processos mais globais envolvendo 9 10

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O autor cita como exemplo a Wikipedia. Para fazer uso das PCE como dispositivos teórico-analíticos, Pinheiro (2011), em seu estudo, toma como referência o trabalho de Lowry et al. (2004) que, na tentativa de usar uma terminologia aplicável ao campo interdisciplinar, propõem uma nomenclatura, baseada no trabalho de Horton et al. (1991), cuja finalidade é a de descrever o processo das PCE através de múltiplas atividades colaborativas de escrita (collaborative writing activities), estratégias colaborativas de escrita (collaborative writing strategies), modos de controle de documentos (document control modes), papéis colaborativos de escrita (collaborative writing roles) e modos colaborativos de escrita (collaborative writing modes).

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a construção de sentido do texto. Já os itens 5 e 6 se apresentam como revisão, por se constituírem de alterações que dizem respeito a aspectos superficiais da escrita e geralmente compreendidos como ações de fechamento do texto. Considerando a construção das PCE, que acontece na comunidade colaborativa observada, percebemos que não há uma diferenciação tão estanque, na prática, entre os processos de reescrita e de revisão, já que, embora tenha um processo final de revisão, feito por uma pessoa específica (que desempenha o papel de revisor), os participantes da comunidade observada se engajam nesses processos de revisão enquanto constroem a escrita conjunta do texto, ou seja, a revisão ocorre concomitantemente à reescrita. Pela concepção de Pinheiro (2011) e de Lowry, Curtis e Lowry (2004), têm-se, também, as estratégias colaborativas de escrita, que se constituem no plano da equipe quanto à produção de um documento colaborativo. As estratégias mais comuns são: escrita de autor único do grupo, escrita em sequência, escrita em paralelo e escrita reativa. Ocorre a escrita de autor único, quando uma pessoa é responsável por escrever por toda a equipe. Nesse caso, a interação entre os participantes ocorre somente para se chegar a um consenso a respeito do que um dos participantes escreverá. A escrita em sequência se dá quando um dos participantes começa a escrever um texto e cada um dos demais complementa a tarefa, fazendo articulações ao texto inicial até se chegar ao produto almejado. A escrita em paralelo acontece quando a equipe divide a tarefa de escrita em determinadas unidades para que cada membro trabalhe concomitantemente em partes diferentes do texto. E, por fim, a estratégia de escrita reativa, em que os participantes criam um documento em tempo real, sem que haja necessariamente um planejamento prévio. Neste caso, o único fio condutor é a reação dos envolvidos no processo de escrita, os quais se ajustam às contribuições e mudanças feitas no texto pelos demais. Em consonância com o trabalho de Bezerra, Lima e Queiroz (2012) a respeito do processo de escrita colaborativa e do uso do Google Docs na construção do conhecimento, sabemos que o Google Docs traz uma enorme contribuição para o desenvolvimento das estratégias utilizadas na construção das PCE, por se tratar de

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um pacote de edição de texto que funciona totalmente on-line. Um dos principais diferenciais do Google Docs se constitui na possibilidade de criação e edição de um mesmo documento por mais de um usuário, inclusive, havendo colaboração em tempo real com outros usuários. Além desse diferencial, o Google Docs apresenta várias outras vantagens, por exemplo: possibilita que os arquivos sejam acessados a qualquer momento e em qualquer lugar e possuem backup on-line; permite ao proprietário compartilhar e gerenciar o acesso do documento com outros usuários, além da possibilidade de transferir sua propriedade para outro usuário; conta com o histórico de revisões através do qual é possível controlar as modificações efetuadas pelos editores até a conclusão do texto; possibilita que os documentos produzidos sejam baixados (download) para o computador dos usuários (BEZERRA; LIMA; QUEIROZ, 2012). 3. METODOLOGIA E CONTEXTO DA PESQUISA A pesquisa aqui reportada situa-se no campo de investigação da Linguística Aplicada (LA). Utilizamo-nos da pesquisa qualitativa interpretativista, com o objetivo de investigar o processo de construção das PCE mediado pelas ferramentas digitais. Para tanto, adotamos a metodologia de cunho netnográfico, em que o pesquisador se insere em práticas sociais na internet com a preocupação de compreendê-las no contexto de uma comunidade virtual, termo este que designa “as comunidades mediadas por computador que se formam em torno de plataformas online de interação social” (KOZINETS, 2006; AMARAL; NATAL; VIANA, 2008, p. 4). Propomo-nos, assim, a entender a cultura de (re)escrita da comunidade observada, investigando as estratégias e práticas utilizadas no processo de (re)escrita de textos produzidos de forma colaborativa no Google Docs. A comunidade em foco, que designaremos como comunidade colaborativa de aprendizagem11, é constituída por um grupo de acadêmicos da Universidade Fede11

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Preferimos não nomeá-la como comunidade “virtual”, porque suas ações não estão restritas a eventos on-line; chamamos de comunidade colaborativa de aprendizagem, porque as ações dos participantes estão voltadas, sobretudo, para o esforço de atuar em equipe e compartilhar o que sabem fazer.

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ral do Pampa - UNIPAMPA, campus Bagé/RS, predominantemente do curso de Licenciatura em Letras, e por colaboradores externos à Universidade, que se articulam para produzir o Junipampa12 – jornal digital do Laboratório de Leitura e Produção Textual (LAB) dessa Universidade, criado em 2012. Os dados centrais se constituem por 85 matérias escritas no Google Docs de forma colaborativa para publicação no Junipampa, durante o primeiro ano de existência do jornal, em 2012. Além do uso do Google Docs, os participantes da escrita colaborativa contam com outros espaços de interação: um grupo fechado vinculado ao Facebook, em que planejam e tomam decisões com relação à construção das matérias do jornal e das atividades do LAB, e o chat dessa mesma rede social, que auxilia no registro e no planejamento do processo de construção das PCE. O Facebook serviu como fonte de dados para triangular as conclusões a respeito da análise no Google Docs. Foram também gerados dados por meio de registros e considerações importantes sobre o andamento da pesquisa em um diário de pesquisa (ZABALZA, 2004), mantido durante todo o processo da investigação aqui reportado. O processo de escrita colaborativa foi acessado por duas vias: estratégias de escrita colaborativa (pelo Facebook e por entrevista); e as PCE (pelos dados coletados no Google Docs). Para fins de análise dos textos escritos colaborativamente no Google Docs, consideraremos, ainda, os comentários da reescrita. Um dos critérios de seleção das matérias a serem analisadas foi voltar nosso olhar, preferencialmente, para os textos que contavam com a colaboração de participantes que mais escreviam, à época, para o Junipampa: Flávia e Marilaine. As duas eram bolsistas e as principais envolvidas na produção de textos para o jornal, naquele momento. O quadro a seguir é um fragmento do registro de controle de fluxo das matérias e apresenta informações relevantes para a análise, entre elas o tempo de produção dos textos e os participantes do processo:

12

Para melhor compreensão sobre o Junipampa, sugerimos a leitura de Dornelles e Souza (no prelo), que tem por objetivo analisar os papéis assumidos pelos editores, ao interagirem para coconstruírem o jornal.

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Título da Matéria

Estudantes visitam o curso de jornalismo da Unipampa campus São Borja Pavimentação do Bairro Malafaia1

Data de criação do documento

Data da última revisão

Participantes

19/04/2013

23/04/2013

Flávia, Marilaine, Nilda e Giovani

13/03/2013

29/04/2013

Luís, Marilaine, Flávia, Nilda, Clara, Giovani e Thiago

Justificamos a escolha do primeiro texto porque, além de envolver a colaboração de participantes que mais escrevem para o Junipampa, apresenta uma diversidade de recursos utilizados para a sua composição, como: o uso de links e fotos. Outro fator que nos levou a essa escolha foi o relato da coordenadora do LAB, em que ela informa que essa matéria trata de um momento importante de formação do grupo, em que o grupo teve, pela primeira vez, oportunidade de dialogar teórica e metodologicamente com jornalistas (formados e em formação) sobre o fazer do webjornalismo. A escolha do segundo texto se deu em decorrência de uma entrevista realizada com Flávia e Marilaine, em que elas relatam as dificuldades do autor principal da matéria para participar da escrita colaborativa. Essa era a primeira produção do autor para o webjornal e sua forma de interagir conflitou com as PCE já estabelecidas na comunidade, se mostrando como atípica à cultura de escrita do grupo. Vejamos a apresentação de um quadro contendo o nome de cada participante com seus respectivos papéis institucionais e papéis pré-estabelecidos. A ordem decrescente de apresentação dos participantes na tabela está de acordo com as hierarquias pré-estabelecidas entre eles.

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Nome13

Papel institucional

Papel pré-estabelecido

Observações

Clara

Professora da Unipampa – Área de Letras

Coordenadora do LAB

Participou anteriormente como redatora e revisora

Giovani

Técnico em Assuntos Educacionais da Unipampa – Formação em Psicologia Social

Editor audiovisual do Junipampa

Participou anteriormente como co-coordenador do LAB, redator e revisor

Nilda

Estudante do curso de Letras

Editora-chefe e webdesigner

Colaboradora voluntária

Marilaine

Estudante do curso de Letras

Editora-chefe, repórter e redatora

Bolsista

Flávia

Estudante do curso de Letras

Repórter e redatora

Bolsista

Thiago

Estudante do curso de Engenharia de Computação

Webdesigner

Bolsista

Natália

Estudante do curso de Letras

Repórter e redatora

Colaboradora voluntária

Luís

Estudante do curso de Letras

Repórter e redator

Colaborador voluntário

4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DE DADOS13 Ao iniciar nossa análise, primeiramente, constatamos que o processo de construção das PCE não constitui tarefa fácil. Para escrever colaborativamente, os participantes precisam se apropriar da cultura e das estratégias de escrita do grupo14, em que cada um consiga 13 14

Utilizaremos pseudônimos para preservar a identidade dos colaboradores voluntários que chamamos de Natália e Luís. No caso específico de nossa pesquisa, nos debruçamos sobre dados produzidos pela comunidade um ano após sua formação. Durante o primeiro ano, não havia uma cultura constituída e, nas primeiras produções textuais, a orientação das estratégias de escrita e mesmo a autoria dos textos era, em grande medida, da professora coordenadora do projeto. Conforme o grupo foi se apropriando do uso da ferramenta digital e expressando autonomia na escrita, a participação da coordenadora foi sendo minimizada e a equipe de estudantes foi definindo, com a avaliação dos resultados dos processos, as PCE mais adequadas aos objetivos da comunidade.

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desempenhar seu papel, colaborando para o processo de construção da escrita, sem o fazer de forma individualizada. Para que haja efetivamente colaboração na atividade de escrita, é necessário um planejamento conjunto e negociado durante todo o desenvolvimento da atividade. Isso resulta em uma minimização da hierarquização entre os envolvidos, não havendo a definição estanque de papéis e pressupondo que todos devem agir, se não igualitariamente, em esforço coordenado em prol de um resultado em comum. Posteriormente, ao entrevistar integrantes da Equipe do LAB, tivemos a confirmação de nossa constatação inicial a respeito das dificuldades enfrentadas no processo de construção da escrita colaborativa. Nessa entrevista15, em que conversamos com Flávia e Marilaine, duas das principais envolvidas na construção das matérias do Junipampa, tivemos o relato sobre os problemas enfrentados entre alguns participantes quanto à apropriação das práticas e estratégias do trabalho colaborativo com a escrita. Esse tipo de dificuldade ocorre, principalmente, com os integrantes novos do grupo e/ou com aqueles que não fazem parte da comunidade colaborativa, ou seja, pessoas que escrevem matérias para o webjornal participando de escritas colaborativas, mas que não são integrantes do LAB e que, portanto, não estão habituadas à cultura de escrita do grupo16. Ou então, com aqueles membros que atuam a distância e que, em função disso, não frequentam as atividades presenciais desenvolvidas pelo LAB e nem as reuniões de pesquisa, que ocorrem quinzenalmente, quando temos a oportunidade de discutir sobre as PCE implementadas no grupo. Na entrevista, Flávia e Marilaine comentam que para elas o processo de escrita colaborativa ocorre de forma natural. Elas já se apropriaram das práticas rotineiras da comunidade/grupo17. As entrevistadas relatam, inclusive, que escrevem as matérias de forma 15 16

17

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Durante a entrevista, que ocorreu em 01/08/13, foram feitas anotações de campo, com as falas de Flávia e Marilaine (participantes entrevistadas). Isto ocorria eventualmente nos primeiros anos de existência do Junipampa, quando leitores do webjornal propunham pautas e eram convidados para produzir o texto no Google Docs com a equipe de redatores do jornal. Em função do resultado da pesquisa relatada neste artigo, restringimos esse tipo de participação àqueles que de fato pretendem integrar a comunidade colaborativa tanto presencialmente quanto a distância. Em nossa experiência, os encontros presenciais para discussão sobre as PCE, em paralelo com o uso de grupo/chat no Facebook, têm sido fundamentais para a (auto)formação da comunidade. As duas alunas ingressaram na equipe produtora do webjornal cerca de 6 meses após sua constituição.

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simultânea no Google Docs e que observam a posição do cursor no documento; se o cursor para de ser movimentado, significa que a outra participante está com dificuldade de completar a frase, então é hora de participar colaborando para a construção dessa frase. A exemplo disso, segue o trecho da entrevista, em que Marilaine fala sobre essa estratégia de escrita: “a gente escreve junto lá no Docs, se o cursor para é porque a outra tá pensando, tentando encontrar a palavra certa. Se eu emperro, tu vai lá e complementa...” (fala de Marilaine, se referindo a sua escrita conjunta com Flávia, no Google Docs). Quando perguntado à Flávia e Marilaine de que forma acontece esse processo de escrita colaborativa no Google Docs, Marilaine responde: “A escrita se dá mais na construção de sentido: que palavra eu poderia usar aqui pra dizer o que eu quero? As questões linguísticas/gramaticais ficam para o final do processo, para a revisão18”. A fim de exemplificar as dificuldades enfrentadas por alguns dos participantes da escrita colaborativa, Flávia e Marilaine relataram acerca de dois casos específicos de participantes, os quais chamaremos de Natália e Luís, que não conseguiram escrever colaborativamente. Natália era novata na equipe e Luís era um colaborador externo, isto é, ele não fazia parte da equipe do LAB. Portanto, os dois não compartilhavam da cultura de (re)escrita do grupo. Flávia relata que não conseguiu escrever de forma colaborativa com Natália, pois a nova participante demonstrou muita resistência com relação à escrita colaborativa, não conseguindo se adaptar ao processo. Segue o trecho da fala de Flávia, em que ela relata sua tentativa frustrada de escrever de forma colaborativamente com Natália: “(...) eu chamei ela pra escrever e não deu (...) ficou que nem trabalho de colégio, cada um faz sua parte e junta”. Em relação à participação de Luís, na tentativa de construção da matéria “Pavimentação do Bairro Malafaia”, Flávia e Marilaine relataram que não houve construção das PCE, já que ele não se mostrou disposto a aceitar as considerações dos outros participantes na construção do texto. As entrevistadas comentaram que, em vez disso, Luís argumentava rebatendo a opinião dos demais 18

Nossa análise mostra que o processo de revisão já ocorre durante a construção das matérias, o que evidencia que nem sempre a percepção dos envolvidos no processo de escrita se confirma.

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e tentando convencê-los de que a sua opinião era a correta, o que em nada contribuiu para a construção conjunta da matéria. Partiremos para a análise dos textos, em que apresentaremos um exemplo de produção de uma matéria em que as PCE foram construídas e outro, em que as PCE não foram construídas. a. Quando há construção das Práticas colaborativas de escrita:

A matéria sobre a visita do LAB a São Borja, intitulada “Equipe do LAB visita o curso de jornalismo da Unipampa Campus São Borja”, foi escolhida para fins de análise por constituir-se um texto que, além de contar com a colaboração de participantes que mais escrevem para o Junipampa, apresenta uma diversidade de recursos utilizados para a composição textual, e reporta, ao mesmo tempo em que busca colocar em prática, um momento importante de diálogo a respeito do webjornalismo. Tanto por questões temáticas quanto metodológicas, o texto escolhido resulta de um importante processo de formação da comunidade em foco sobre e para a produção textual na web19.

Figura 1: Imagem da matéria sobre a visita do LAB a São Borja, publicada no Junipampa, em 24 de abril de 2013. 19

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Este momento de formação foi propiciado pela parceria estabelecida, naquele momento, entre o LAB e o curso de Comunicação Social/Jornalismo da Unipampa/Campus São Borja. Agradecemos ao Prof. Dr. Marcos Bonito, por gentilmente atender nossa solicitação de conhecer os bastidores da formação para o jornalismo e debater sobre webjornalismo.

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A escrita da matéria a respeito da visita do LAB ao curso de jornalismo da Unipampa, Campus São Borja, é iniciada por Flávia; em seguida, Marilaine começa a participar do processo de escrita e faz algumas alterações no corpo do texto, com o intuito de colaborar para a construção de sentido. Primeiramente, substitui a sigla “LAB” por “Laboratório de Leitura e Produção Textual - LAB”, já que a expressão estava aparecendo pela primeira vez no texto, então precisava de contextualização para que o leitor entendesse seu significado. Marilaine continua fazendo alterações, em que contextualiza algumas informações presentes no texto, como por exemplo, que o LAB pertence à Unipampa Campus Bagé, entre outras coisas. Flávia inclui um link em que aparece o nome do professor do curso de jornalismo da Unipampa de São Borja, que redireciona o leitor para o currículo lattes desse professor. A inclusão do link, feita por Flávia, reflete seu entendimento do texto como espaço hipermidiático. A seguir, trazemos algumas evidências da construção das PCE, quando as autoras discutem a respeito da inclusão de informações contextuais: EXCERTO 0120 No dia 12 de abril, a equipe do Laboratório de Leitura e Produção Textual - LAB, projeto de extensão [sic], ao Observatório de Aprendizagem, da Unipampa campus Bagé, fez uma visita à São Borja para participar de uma oficina sobre web jornalismo com o ministrante Marco Bonito, professor do curso de comunicação social (jornalismo) da Unipampa campus São Borja, e seus bolsistas.

Os comentários21 abaixo se referem à palavra em negrito no excerto 01: Marilaine 13:56 19 de abr acho q não precisa colocar, pq já disse q é comunicação social Flávia 13:56 19 de abr mas tb podia ser publicidade 20 21

Grifo em negrito nosso, neste excerto. A maioria dos comentários com relação ao texto é feita às margens, havendo sempre uma conexão entre os comentários e alguma passagem do texto.

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Marilaine 13:58 19 de abr ok, vou só mudar o formato ali então Flávia 13:58 19 de abr vou colocar com habilitação em jornalismo

Após, Flávia e Marilaine refletem a respeito da necessidade de reescrita de um trecho do texto para melhor compreensão do leitor. Pensando na construção de sentido, decidem articular duas partes da matéria que tratam do mesmo assunto em um único parágrafo, evitando, assim, a presença de informações desconectadas e duplicadas em frases soltas no texto: Marilaine 15:16 19 de abr 2 linhas só de parágrafo? Flávia 15:32 19 de abr acho que pode juntar aquele outro parágrafo, já que não é outro assunto, fala da visita.

Os comentários abaixo sinalizam processos de autoria multimidiática (LEMKE, 2010) e revelam a presença de questões ligadas à multimodalidade do texto, já que Flávia e Marilaine decidem incluir fotos na matéria. Porém, os dados não explicitam os critérios de seleção das imagens, embora haja indícios de reflexão sobre o sentido do texto, quando Flávia faz menção ao conteúdo das fotos: Flávia 14:13 19 de abr aqui tem umas fotos legais, vamos colocar? Marilaine 14:47 19 de abr vamos \o

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Flávia 14:48 19 de abr tem fotos dos museus por fora, pena não poder tirar lá dentro né e da praça Tb

Nos comentários que se referem ao excerto 02, Flávia e Marilaine falam da substituição do termo “Já no dia 13 de abril” por “no segundo dia”, com o intuito de eliminar repetições, já que no início da matéria aparece a expressão “No dia 12 de abril”, conforme podemos perceber no excerto 01. EXCERTO 02 Já no dia 13 de abril foi conhecido o campus São Borja da Unipampa, onde foi realizada a oficina.

Seguem os comentários referentes ao excerto 02, acima: Flávia 14:09 19 de abr será que não fica melhor no segundo dia, pra não ficar tão repetitivo? Marilaine 15:16 19 de abr tbm pensei nisso, Fica melhor sim!

No excerto 03, percebemos que Flávia e Marilaine decidem sobre quais links devem acrescentar na matéria, indiciando, mais uma vez, processos de autoria multimidiática: EXCERTO 0322 Ao final houve uma explanação dos bolsistas. Foram tratadas questões como a transmídia e a pirâmide invertida apresentados pelos alunos Fábio Giacomelli e Bruno Porto e os tipos de links e seus direcionamentos, abordado pelos alunos Helen Dornelles e Jeferson Balbueno. 22

Grifos nossos.

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Os comentários seguintes referem-se à palavra “transmídia”, no excerto 03: Flávia 14:46 19 de abr linkar vídeo usado pelo Fábio . o que acham? Marilaine 14:47 19 de abr acho q seria legal

Abaixo, comentário de Flávia sobre “pirâmide invertida”, no excerto 03: Flávia 14:54 19 de abr link explicando a pirâmide

Nos comentários que se referem ao excerto 04, adiante, percebemos que há uma mudança no foco das PCE, em que Flávia e Marilaine entram em desacordo com relação à construção de uma frase que envolve uma reflexão conceitual relativa ao que seriam gêneros da esfera jornalística. Flávia argumenta tentando convencer Marilaine de que o texto está confuso, mas Marilaine não concorda e a colega acaba desistindo de tentar mudar o posicionamento da outra participante quanto à construção textual: EXCERTO 04 A oficina proporcionou uma troca de saberes entre os discentes e os orientadores, pois apesar de serem de graduações diferentes, o trabalho da equipe do LAB volta-se para o olhar dos gêneros textuais sobre a esfera jornalística.

Os comentários abaixo se referem à parte em negrito no excerto 04:

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Flávia 15:11 19 de abr achei confusa essa parte Flávia 15:13 19 de abr volta seu olhar para os gêneros da esfera jornalística, não fica melhor? Marilaine 15:14 19 de abr acho q não pode colocar só assim, pq não é só os gêneros da esfera jornalística, mas sim os gêneros textuais (incluindo poesia, conto, etc ...) voltando-se para esse contexto ao qual será divulgado, entende? Flávia 15:17 19 de abr mas eu colocaria gêneros textuais, mas msm assim parece só os jornalísticos, isso que tu explicou, acho que não ficou claro ali. Marilaine 15:19 19 de abr não entendi Flávia 15:26 19 de abr eu entendo gêneros textuais da esfera jornalística de forma mais ampla, incluindo contos, poesia, pois têm um espaço no jornal, só achei a construção confusa, mas se tu acha que fica melhor assim, tudo bem :)

A interação entre Flávia e Marilaine, observada no excerto 4, mostra que, embora haja planejamento conjunto e negociação no que tange à construção das PCE, isso nem sempre garante que os participantes entrem em consenso a respeito do conteúdo do texto. Nesse caso, percebemos que, apesar do esforço por parte de Flávia para que Marilaine aceite seu ponto de vista, a tentativa de negociação não teve sucesso, o que acabou implicando a predominância da opinião de apenas um dos sujeitos envolvidos na escrita (Marilaine) em detrimento da opinião da outra participante (Flávia). 239

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Ainda sobre os comentários ao excerto 4, notamos que, para minimizar/evitar o conflito, além da linguagem verbal, Flávia faz uso de recursos de escrita da internet constituídos pelo que chamamos de emoticons23. Os emoticons “são ícones ou símbolos formados por sinais diacríticos e de pontuação que representam emoções, (...) características físicas, letras, palavras ou frases, (...) sinais, atitudes e ações, dando mais expressividade ao texto virtual” (STORTO, 2011, p. 118). Esses símbolos têm diferentes funções, comparáveis à gestualidade e entonação que utilizamos na oralidade (cf. MARCUSCHI, 2006). Considerando o estudo de Skovholt, Grønning e Kankaanranta (2014), podemos dizer que, no excerto 4, o emoticon serve como recurso para dar efeito ao mesmo tempo de “suavizador” do conteúdo diretivo (“só achei a construção confusa, mas se tu acha que fica melhor assim,”) e de “ênfase” à avaliação da situação (“tudo bem :)”). O emoticon é, neste caso, acionado por uma das participantes (Flávia) para suspender o malentendido indicado por sua interlocutora (Marilaine), que afirmara: “não entendi”. Assim, o uso desse recurso funciona, nos termos de Goffman (2011[1967]), como uma estratégia para preservar o ritual da interação, neste caso, estruturada por um objetivo comum: o de construir colaborativamente um texto para o webjornal. Como vemos, a colaboração envolve a negociação constante para a resolução de conflitos emergentes nas tomadas de decisão. Não queremos com isso dizer que os conflitos não devam existir, mas que as PCE observadas demonstram processos de aprendizagem de escrita muito importantes, entre eles, o de multiautoria24, isto é, de elaboração conjunta de texto, em que os autores negociam pontos de vista sobre conteúdo e estilo, e assumem, enquanto coautores, uma determinada posição que não necessariamente é unâmime, como ocorre no excerto 4, em que a visão de uma das autoras acaba predominando na versão final do texto. No excerto 05, podemos perceber que Flávia e Marilaine não utilizam apenas os comentários às margens do documento do Google Docs para interagirem acerca do processo de escrita, mas 23 24

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Não é nosso objetivo fazer uma análise aprofundada do uso dos emoticons nas PCE, porém, no excerto em análise, a consideração desse tema se mostrou relevante. Indicamos Storto (2011) e Skovholt, Grønning e Kankaanranta (2014) para aprofundamento. Entendemos que os excertos anteriores também são resultado de processos multiautorais, contudo, é no excerto 04 que percebemos divergências na elaboração do conteúdo e, justamente por isso, tais processos se evidenciam.

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também o espaço do corpo principal do documento. Flávia, após escrever, deixa entre parênteses uma pergunta para Marilaine. Em seguida, Marilaine responde (trecho sublinhado) o questionamento de Flávia25: EXCERTO 05 Para tentar entendermos melhor as experiências que foram compartilhadas durante aquela tarde na oficina, o JUNIPAMPA conversou com dois alunos,  Greice Kelly Jorge, acadêmica do campus Bagé e Jeferson Balbueno, acadêmico do campus São Borja. Abaixo trazemos   depoimentos dos dois acadêmicos com relação a essa troca de experiências: (ACHA Q TA MELHOR ASSIM?) simmm era o q tava faltandoo

Além da interação que acontece entre os participantes com os comentários da reescrita, que incluem discussões relativas ao texto às margens do documento, percebemos a utilização de outra estratégia de escrita, a escrita reativa, quando a interação ocorre junto ao espaço de construção do texto principal e a reação é o fio condutor da textualização. Vejamos mais alguns exemplos desse tipo de interação nos excertos 06 a 09 26: EXCERTO 06 No segundo dia de estadia na cidade, a equipe do LAB foi conhecer o campus da Unipampa São Borja, onde foi realizada a oficina que teve a duração de ACHO Q NÂO POE AI POE DEPOIS ONDE FALA DA OFICINA  ok estou lendo por etapas não vi ali embaixo hehe. Ao conhecer o campus, foram visitados os estúdios de rádio, televisão e fotografia.

Percebemos a interação que acontece entre Flávia e Marilaine nos trechos destacados, quando Flávia (em negrito e caixa alta) sugere à Marilaine (sublinhado) que a fala a respeito da oficina seja deslocada para outro trecho, em que já existe referência ao assunto. 25 26

Grifos no original. Grifos no original.

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No excerto 07, Flávia e Marilaine discutem como deve aparecer no texto a fala sobre o uso dos links e sobre multimodalidade, multimídia e transmídia: EXCERTO 07 Além disso foram debatidas questões sobre cibercultura, a prática do web jornalismo, conceitos e linguagem jornalística, o papel social e a função ética que é atribuída ao profissional da comunicação social, o uso dos links ACHO Q NAO POE AQUI< TO BOTANDO DEPOIS e seus direcionamentos, multimodalidade, multimídia, transmídiaNEM ISSO TB, etc.a

Abaixo, no excerto 08, mais uma discussão, em que Flávia e Marilaine decidem sobre a construção e organização do texto: EXCERTO 08 Ao final houve uma explanação dos bolsistas. Foram tratadas questões como a transmídia apresentada pelo  aluno Fábio Giacomelli, o. Os tipos de links e seus direcionamentos, abordado pelos alunos por Helen Dornelles e Jeferson Balbueno e a pirâmide invertida  ISSO DA PIRÂMIDE TEM DE SEGUIR ALI QNDO FALA DO FÁBIO PQ FOI NA MESMA APRESENTAÇÃO OK? OK

O histórico de revisões do Google Docs revela a ocasião em que Marilaine chama a atenção de Flávia para o chat, que intuímos ser o chat do Facebook, o qual é utilizado pelos participantes para conversas e combinações sobre o processo de escrita. Vejamos o excerto 09: EXCERTO 09 Para tentar entendermos melhor um pouquinho das experiências que foram compartilhadas durante aquela tarde na oficina, o JUNIPAMPA conversou com um bolsista do campus Bagé e outro do campus São Borja olha o chat

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Inferimos, na análise do excerto 09, que a conversa no chat acontecia em paralelo à construção da matéria, revelando que os participantes das PCE se utilizam de diversas estratégias de escrita ao mesmo tempo, enquanto constroem os textos. De acordo com entrevista pessoal com as alunas, elas mantém constantemente conversas em paralelo à escrita das matérias, via Facebook ou presencialmente, para combinarem como será desenvolvido o conteúdo do texto. Além da participação de Flávia e Marilaine, percebemos a colaboração de Giovani e Nilda na construção dessa matéria. Eles acrescentam fotos, links e fazem alterações no corpo do texto. As alterações feitas no texto incluem substituição, exclusão, adição e deslocamento de palavras, frases e parágrafos. b. Quando não há apropriação das estratégias e da cultura de escrita do grupo:

Nossa próxima análise focaliza o texto “Pavimentação do Bairro Malafaia”. Esse texto apresenta uma situação atípica, em que as estratégias e cultura de escrita do grupo conflitam com aquelas acionadas por um colaborador externo, Luís, que se engajou pela primeira vez na produção colaborativa de texto para o Junipampa.

Figura 2: imagem do documento criado no Google Docs para a construção da matéria

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Luís iniciou a construção dessa matéria como autor único, mas, conforme a orientação da comunidade colaborativa, seu texto deveria ser aberto aos demais colegas, que contribuiriam para a reescrita e produção final, utilizando estratégias de escrita em sequência e escrita reativa. Após várias tentativas dos outros participantes em incluí-lo no processo de construção de PCE típicas da comunidade, Luís não conseguiu participar da escrita colaborativamente. Passados 15 dias de tentativas de incluí-lo no processo de escrita colaborativa, a versão iniciada por Luís foi abandonada e os outros participantes tiveram de escrever uma versão completamente nova para ser publicada no webjornal. Quando Luís inicia a escrita da primeira versão do texto, desenvolve parte considerável da matéria individualmente. Os outros participantes tentam colaborar com sua escrita, na forma de comentários para a reescrita e de alterações no corpo do texto. Essas alterações apresentam-se tanto na forma de revisão, quanto na forma de reescrita do texto, visando à construção de sentido. Uma das bolsistas do LAB deixa uma marca no texto questionando a ausência de título. Luís dá um título para o texto, mas seu título fica ambíguo, dando margem a mais de uma interpretação do assunto do qual irá tratar na matéria. Ao ser questionado, Luís decide manter o título, ignorando a observação dos outros participantes. Nos comentários para a reescrita, os participantes deixam questionamentos quanto à falta de contextualização das informações, informações contraditórias, falta de conexão das ideias, entre outros aspectos. Luís não atende às solicitações. Ao invés disso, contesta os comentários dos demais participantes, a fim de convencê-los sobre a sua opinião. Segue abaixo recorte dos comentários, em que Luís, ou se omite, não respondendo aos comentários feitos, ou, tal como ocorre na resposta para Clara, se mostra resistente quanto à tentativa de colaboração dos demais participantes da escrita da matéria:

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Marilaine 23:50 8 de abr seria esse o título? Thiago 17:22 17 de abr O texto esta muito quebrado, não a (sic) sequencia das ideias, apenas frases soltas. (...) Flávia 16:50 17 de abr o Thiago me fez repensar no título, pois ao ler pensou que o bairro seria pavimentado. Clara 11:32 3 de abr esse “que” está retomando o quê? Luís 13:35 3 de abr o problema da pavimentação! Clara 20:06 3 de abr Mas é um novo parágrafo, precisa retomar...

Nos comentários referentes ao excerto 10, percebemos a tentativa de Clara de fazer com que Luís perceba a confusão de informações apresentadas em sua escrita. Clara questiona uma informação que não foi explicitada no texto, mas Luís tenta convencê-la de que existe clareza nas informações dadas. Sua resposta sintética acompanhada de pontuação exclamativa, indica que ele não parece disposto a pensar a respeito do questionamento de Clara. Outro ponto importante a ser destacado a respeito da resistência de Luís frente à tentativa de negociação do grupo quanto à construção da escrita, pode ser observado na demora para responder aos comentários da reescrita. Se considerarmos as datas presentes nos comentários, vemos que o questionamento de Clara foi realizado em 3 de abril, “quando Luís também deixou um comentário, ao qual a coordenadora mais uma vez respondeu. Contudo, a retomada dos comentários novos por Luís só acontece em 17 de abril, ou seja, somente 15 dias depois, como veremos no exemplo a seguir. 245

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EXCERTO 10 Com esse breve relato, fica claro que é uma preocupação daquela comunidade, tanto no quesito segurança, quanto na melhoria da qualidade de vida, pois é sabido que a poeira em demasia prejudica o sistema respiratório.

Os comentários de Clara, abaixo, referem-se à parte em negrito no excerto 10: Clara 11:32 3 de abr isto justifica a preocupação com a qualidade de vida, mas não com a segurança Luís 17:26 17 de abr Poeira = ruas de terra/esburacadas, sendo os buracos tbm causadores de acidentes! Clara 21:02 18 de abr Mas isso não foi dito ali, Luís... Foi criada expectativa de um exemplo que envolvesse a segurança, mas o argumento veio em relação ao sistema respiratório.

Os comentários referentes ao excerto 11 demonstram mais uma vez a tentativa frustrada de uma das participantes da escrita em incluir Luís na construção das PCE. Dessa vez, a contestação é de Flávia a respeito de uma contradição presente no texto, destacada em negrito: EXCERTO 11 Damasceno enfatiza que falta somente a liberação da verba para tal, porém o financeiro já não é mais problemas, pois o valor para a obra foi liberado a cerca de um ano, falta somente “vontade” pública para que tal obra seja iniciada.

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Flávia 17:17 17 de abr na mesma frase fala que não foi liberada e depois que foi, está confuso Luís 17:24 17 de abr sim, o presidente relatava que no entendimento dele, só faltava isso, porém este n é mais o problema! Flávia 17:34 17 de abr tinha sido liberado e ele não sabia, é isso? se for tem de explicitar isso

Nos comentários abaixo, Luís é questionado quanto à falta de contextualização de informações presentes no texto. Porém, mais uma vez, contesta os demais participantes e não considera a colaboração na construção da escrita: Flávia 17:22 17 de abr que sites? apontar os sites para dar credibilidade Nilda 23:05 3 de abr Poderíamos iniciar o parágrafo assim.. colocando a fonte. Luís 17:23 17 de abr no link segue a informaçao da verba Clara 11:34 3 de abr Qual a fonte desta informação? Luís 13:36 3 de abr Link em anexo. Giovani 19:57 20 de abr O link teria de estar ligado ao trecho ao qual se refere... não tem como o leitor adivinhar.

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Nossa análise a respeito da participação de Luís evidencia que o fato de não fazer parte da comunidade colaborativa (já que ele era um colaborador externo) e, portanto, não estar habituado às estratégias de escrita do grupo, implica o insucesso da escrita conjunta. Luís não consegue integrar-se à cultura de colaboração já estabelecida dentro da comunidade, o que acaba gerando resistência por parte do autor em aceitar as sugestões dos demais participantes. Diante da resistência de Luís em construir o texto colaborativamente seguindo as estratégias preferidas da comunidade (a escrita em sequência e reativa), Giovani, que havia se comprometido a apoiar Luís na escrita inicial da matéria, toma a decisão de não publicá-la e sugere a construção de um novo texto. Os demais participantes começam uma nova produção, em que a escrita se desenvolve de forma colaborativa e multiautoral, com negociação de pontos de vista sobre os efeitos de sentido do texto e permeabilidade entre conteúdo e estilo sugeridos pelos diferentes autores. Assim, o novo texto foi publicado sem a participação de Luís. Nossos dados trazem evidências do que Lowry, Curtis e Lowry (2004) apontam como uma das desvantagens da escrita em sequência, isto é, da escrita em que há necessariamente alguém que faz o papel do iniciador do texto: a possibilidade da falta de consenso em relação às ideias do grupo. Como na escrita em sequência não necessariamente há negociação em relação ao projeto inicial de escrita, os participantes podem ter dificuldade em produzir um fio condutor se suas visões do tema forem diferentes. Em nossos dados, Luís, que inicia a versão não publicada da matéria, acaba utilizando-se da estratégia de autor único, porém não na forma descrita por Pinheiro (2011), em que há um planejamento conjunto e uma pessoa fica responsável pela escrita do texto. No nosso caso, o participante produziu a matéria como se fosse um produto fechado, impermeável a novas informações, e não demonstrou interesse em refletir sobre os efeitos de sentido provocados por suas escolhas linguísticas. Como sugere Pinheiro (2011, p. 153), as PCE são “um empreendimento ativo e social”, em que o grupo funciona como apoio individual e o participante

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colabora com base no interesse e motivação em participar das tarefas com o grupo. Seguindo por esse viés, podemos dizer que os problemas vivenciados por Luís no processo de produção textual são em parte de apropriação das estratégias de escrita colaborativa, mas são também, em grande medida, resultado de desencontros a respeito do significado de fazer parte de uma comunidade colaborativa, o que se explica pelo fato de Luís ser um colaborador externo que estava escrevendo pela primeira vez, juntamente com membros de uma comunidade em que a cultura de escrita colaborativa já estava solidificada. CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise do processo de construção das PCE mediado pelas ferramentas digitais evidenciou que a apropriação dessas práticas não constitui tarefa fácil. As PCE compreendem uma complexa gama de estratégias que, por sua vez, exigem dos envolvidos o engajamento no planejamento conjunto e a imersão em uma cultura de escrita que envolve a autoria multimidiática (LEMKE, 2010) e a multiautoria. Pelas análises, foi possível perceber que as tecnologias digitais contribuem para a construção das PCE, já que proporcionam dinamicidade no processo de interação. Percebemos, ainda, que os comentários da reescrita agem na reconstrução do texto dos participantes que participam há mais tempo da comunidade colaborativa, mas não daqueles que não se apropriam das estratégias de escrita predominantes no grupo, ou então, daqueles que não fazem parte da comunidade colaborativa e que, portanto, não compartilham da cultura de escrita colaborativa. As estratégias de escrita preferidas na comunidade observada são a escrita em sequência e a escrita reativa. Estas são estratégias que nos parecem mais compatíveis com as características e peculiaridades presentes no processo de construção dos textos para a web, facilitado pela criação de um documento que pode ser alterado de forma síncrona. Outro aspecto interessante é o fato de que as participantes mais experientes nas PCE não diferenciam, na prática, reescrita de 249

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revisão, pois embora haja um processo final de revisão, feito por outra pessoa, elas já participam desse processo enquanto escrevem as matérias. Vimos que, na escrita do primeiro texto analisado (Figura 1), em que os envolvidos já faziam parte da comunidade colaborativa há algum tempo, o processo ocorreu de forma permanentemente negociada, embora em um dos exemplos tenhamos observado a falta de consenso entre as participantes. Na construção desse texto, houve a realização da escrita multimidiática e multiautoral, por meio do planejamento conjunto e da presença de escrita multimodal (inclusão de fotos, links). Percebemos, ainda, nessa escrita, a presença de um fio condutor, proporcionado pela escrita reativa, estratégia utilizada pelas duas participantes mais experientes da comunidade colaborativa observada. Já na segunda situação de escrita, em torno do texto na Figura 2, pelo fato de o autor iniciador do texto não ser membro da comunidade colaborativa observada e, portanto, não ter participado do processo formativo com relação à escrita colaborativa, percebemos que não há o engajamento necessário para a construção colaborativa do texto, o que resulta no insucesso da escrita, bem como da utilização das estratégias preferidas do grupo. Isso nos leva a pensar na importância de se desenvolver projetos que atentem para esse aspecto do grupo, do “fazer junto”, de forma a contribuir para a formação de um sujeito crítico e autônomo, capaz de transitar nas diferentes esferas de uso da linguagem de forma adequada e, assim, participar ativamente da sociedade em que se inclui. Acreditamos que projetos de multiletramentos desenvolvidos de forma colaborativa e interdisciplinar por professores de línguas na universidade, como o projeto do webjornal aqui discutido, incentivam os (futuros) docentes a lançar um novo olhar para o processo de textualização e, ainda que indiretamente, para o ensino-aprendizagem de línguas na escola. De um lado, porque a construção das PCE com o auxílio de ferramentas digitais envolve a imersão dos participantes na complexidade da linguagem e nas mais diversas formas de construção de sentido. De outro, porque essas formas não se restringem ao

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letramento de base grafocêntrica e demandam reflexão sobre usos da escrita e de outras modalidades de linguagem27 para tratar de/circular em diferentes esferas sociais, contribuindo para desfazer a polarização (de fato ilusória) entre escola e sociedade.

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As diretrizes nacionais para o ensino de línguas estabelecem a relevância de se considerar diversas formas de construção de sentido advindas da linguagem, apontando para sua complexidade, o que se evidencia a partir do uso, por exemplo, do termo “linguagens” no plural para denominação da área da linguagem, a qual se constitui de quatro componentes: Língua Portuguesa, Língua Estrangeira Moderna, Arte e Educação Física. Isso aponta para o entendimento a respeito da abrangência do aprendizado na área a partir das diversas modalidades de linguagem e não apenas da linguagem verbal (cf. BRASIL, 2015). A Base Nacional Comum Curricular (BNC) para o ensino de Língua Portuguesa na Educação Básica apresenta, inclusive, como um de seus objetivos gerais “refletir sobre os usos das linguagens e os efeitos de sentido de diferentes recursos expressivos, levando em conta as condições de recepção e produção;”. Documento disponível em: Acesso: 25/02/2016.

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COLABORAÇÃO VIA ESCRITA EM FÓRUM VIRTUAL: CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTOS EM UM CURSO DE MORFOLOGIA DA LÍNGUA Fabiana Poças Biondo

INTRODUÇÃO

N

a atual era da conexão global de informações e adoção em escala crescente da Internet, tem se tornado comum a associação entre a arquitetura da web 2.0 e a reorganização de formas de participação de estudantes em práticas de uso da linguagem, que ampliam as possibilidades de engajamento interativo e colaborativo. Essa nova configuração dos modos de participação em práticas de linguagem tem feito emergir o que alguns autores denominam “novos” letramentos, caracterizados por mudanças nos modelos de escrita/leitura, de texto e de interação via linguagem, especialmente em função do uso de dispositivos e tecnologias computacionais digitais. Signorini (2013, p. 197) lembra que as práticas de letramento mediadas por essas tecnologias estão em “efervescência”, “em processo acelerado de transformação”, mas só podem ser apreendidas em sua relação com os fatores contextuais por meio dos quais se realizam. Analisadas localmente, mais do que novas práticas determinadas pela mediação tecnológica, observamos “um trânsito intenso e cada vez mais bidirecional” entre “modelos e concepções de escrita, de texto e de leitura”, entre “práticas antigas e novas” de letramento (SIGNORINI, 2013, p. 197). Neste texto, buscamos compreender os modos de organização da participação em uma prática de letramento digital 253

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específica, focalizando processos de colaboração na construção de conhecimentos em um dos fóruns virtuais de uma disciplina de Morfologia da Língua Portuguesa. A disciplina foi ministrada na modalidade semipresencial1, no segundo semestre de 2011, e integra a grade curricular da licenciatura em Letras de uma universidade pública brasileira, do centro-oeste. Os fóruns são parte das atividades online da disciplina, realizadas na plataforma de aprendizagem Moodle. As investigações sustentam-se na análise da “participação”, da “interação” e do processo de “síntese”, pelo método de análise da colaboração em discussões online proposto por Ingram e Hathorn (2004), e na identificação das “práticas discursivas interativas” (YOUNG, 2013) construídas conjuntamente pelos participantes nas discussões. Discutimos, ainda, um movimento bidirecional entre contribuições pouco significativas do ponto de vista sociointeracional em contexto de ensino-aprendizagem (cumprir tarefas individualmente) e contribuições mais significativas desse mesmo ponto de vista, indicadas pela maior interação e maior colaboração entre os sujeitos. A identificação desse movimento trouxe nova perspectiva à nossa expectativa inicial de participação/interação/ colaboração de todos os alunos participantes da disciplina nas atividades do fórum, uma vez que essas ações foram organizadas, por eles, de modo a formar pequenos grupos de interação e de colaboração, em torno de determinados temas-tópicos. Trazemos para análise, neste texto, as práticas e os processos sociointeracionais de construção de conhecimento de um desses grupos, em uma discussão sobre classes de palavras. No grupo, a interação e a colaboração se dão por um design hipertextual de escrita, revelado por links entre mensagens de um mesmo tópico, entre mensagens de diferentes tópicos abertos no fórum e as aulas presenciais da disciplina, para citar apenas alguns. Esses links, mesmo quando não explicitados pelos participantes, são identificados nos fluxos da discussão em torno do tema e permitem localizar a colaboração como um processo de “competência interacional” (YOUNG, 2013) coconstruída, localmente, pelos participantes. 1

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Alguns autores preferem os termos “mista” ou “combinada” à semipresencial; em geral, por considerarem que a configuração espaço-temporal atual não permite mais uma distinção tão evidente entre “presencial” e “a distância”. (cf. ROBERTS, 2004; CASSANY, 2011 etc.).

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O aparato teórico-metodológico mobilizado compreende estudos a respeito dos novos letramentos (LANKSHEAR e KNOBEL, 2011), aprendizagem colaborativa online (HARASIM, 2012; ROBERTS, 2004) e práticas discursivas interativas (YOUNG, 2013, HALL 1993 e 1995). A relação entre os estudos dos novos letramentos e a teoria da aprendizagem colaborativa sustenta-se na ideia de que os primeiros têm como suas principais características a participação, a colaboração e o conhecimento distribuído e coconstruído (LANKSHEAR e KNOBEL, 2011), características que estão também na base das noções mais atuais de aprendizagem online e que são objeto de nossas investigações. 1. “NOVOS” LETRAMENTOS E APRENDIZAGEM COLABORATIVA Conforme Lankshear e Knobel (2011), a disseminação das tecnologias eletrônicas digitais faz surgir novas práticas de letramentos relacionadas às formas de textos e de produção de textos que eles denominam “pós-tipográficas” e estão diretamente ligadas à arquitetura atual da Internet. Essas formas de produção revelam uma nova natureza técnica dos letramentos e, segundo os autores, são fruto das mudanças que têm impactado grandemente as práticas sociais nas mais diversas esferas da vida cotidiana, como o trabalho, o lazer, os lares, as comunidades, a educação e as esferas públicas: “práticas sociais estabelecidas se transformaram, e outras formas de prática social surgiram e continuam a surgir num ritmo acelerado” (LANKSHEAR e KNOBEL, 2011, p. 28). As técnicas associadas aos novos letramentos distinguem-se das referentes aos letramentos grafocêntricos convencionais e têm contribuído a cada dia para a convergência entre texto, som e imagem nas práticas de uso da linguagem. Os autores destacam que as telas e os pixels, por exemplo, têm substituído o papel, em muitos casos, assim como o código digital tem substituído o material impresso. Mais do que técnicas, os novos letramentos têm feito emergir o que Lankshear e Knobel (2011, p.29) chamam de novo “ethos”, observado em práticas de letramento mais “participativas”, mais “colaborativas”, mais “distribuídas”, menos “individualizadas” e menos “centradas no autor” do que nos letramentos convencio255

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nais. Para Moita Lopes (2012, p. 212), tal ethos se caracteriza pela importância de que uma informação se torne acessível, pois nessas práticas de letramento as informações precisam ser passadas adiante, e não escondidas ou retidas. Distribuir, disponibilizar informações para os outros é considerado como “um modo de agir em conjunto nas relações estabelecidas” em práticas sociais, “co-construindo conhecimento, gerando ideias diferenciadas, fazendo pensar de outro modo, revendo o passado sob outra lente, provocando um riso crítico ou uma cumplicidade etc.”. Ainda conforme o autor, a característica talvez mais importante do ethos dos novos letramentos é ser colaborativo, constituindo-se via ação de pessoas que participam, inter(agindo) nas práticas de letramento conjuntamente, “na construção de textos e de significados, que são, portanto, menos individualizados e autorais, uma vez que a autoria é colaborativa, não sendo dominada por ninguém”. É a imersão nessas práticas e sua apropriação crítica o principal desafio à educação nos tempos atuais, (cf. LANKSHEAR e KNOBEL, 2011). Nesse contexto, a aprendizagem colaborativa surge como uma das alternativas teórico-conceituais para (re)pensar práticas de letramento em contexto de ensino-aprendizagem. As bases da ideia de aprender colaborativamente pode ser resgatada em Vygotsky (2003[1930]), sobretudo em seu conhecido conceito de “zona de desenvolvimento proximal”, referente a dois níveis de desenvolvimento cognitivos por ele identificados – o potencial e o real. O desenvolvimento real é o já consolidado pelo sujeito, que o torna capaz de realizar atividades por si mesmo, sem necessidade da ajuda de outras pessoas. Quanto ao desenvolvimento potencial, refere-se às potencialidades dos sujeitos que só podem ser desenvolvidas com a colaboração de terceiros, sejam eles o professor e/ou o(s) colega(s) – o “par mais competente” (VYGOTSKY, 2003[1930]). No desdobramento da ideia de aprendizagem colaborativa para Aprendizagem Colaborativa Online (doravante OCL2), é possível encontrar várias abordagens teóricas e aplicadas que buscam respostas às diferentes problemáticas relacionadas à demanda pela compreensão das novas formas de ensino-aprendizagem 2

256

Online Collaborative Learning.

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mobilizadas pela Internet. Com foco no ensino superior, Roberts (2004), afirma a urgência de reestruturação de paradigmas na universidade, no sentido de se enfatizar menos as abordagens individuais de aprendizagem e de se ampliar abordagens colaborativas. Lembra que os próprios alunos desde sempre buscam alternativas para aprender em grupos e, mais recentemente, o acesso a recursos online vem alterando a natureza da educação formal na direção do conhecimento coconstruído e da colaboração. Assim, é imprescindível a investigação do(a) ensino/aprendizagem e das técnicas que são eficazes no ambiente online. Teles (2012), por sua vez, chama a atenção para as oportunidades de colaboração que vêm sendo exploradas desde a invenção da Internet e desde o surgimento de softwares apropriados para o trabalho em grupo (como o Googlegroups) e das plataformas colaborativas de aprendizagem (como o Moodle, a Monqi e o Teleduc, por exemplo). Conforme o autor, a criação desses recursos/ espaços de aprendizagem amplifica a urgência da competência interacional para a realização de atividades de aprendizagem, trazendo à tona a ideia de OCL como uma forma de aprender que coloca em destaque o grupo e as atividades realizadas conjuntamente, entre professor/alunos e aluno(s)/aluno(s). Para Harasim (2012), a OCL configura-se como a teoria de aprendizagem do século 21, amplificando abordagens anteriores em perspectiva ligada à invenção dos computadores e da Internet, no cerne das mudanças socioeconômicas deste século. Segundo a autora, o ethos da Era Industrial, “enfatizou a capacidade do aluno de adquirir e de reter informações e habilidades”, e tem como meta educacional implícita que o estudante aprenda “a seguir as instruções com precisão para conseguir o resultado desejado” (HARASIM, 2012, p. 13). Nesse modelo de aprendizagem, identificado em perspectivas behavioristas, por exemplo, o conhecimento é dominado pelo professor, que deve levar os estudantes a apreendê-lo de igual maneira, replicando as informações transmitidas. Tal abordagem continua a ser reproduzida inclusive em situações de aprendizagem mediadas por computador e Internet e difere da mentalidade social introduzida no século 21, chamada de “Era do conhecimento” por considerar a ênfase na potencialização das nossas capacidades mentais, em

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detrimento das capacidades físicas para manipular objetos que ganharam destaque na Era Industrial. A OCL é proposta como alternativa para se pensar a aprendizagem neste século, porque “incide sobre os processos de construção de conhecimento”, diferenciando-se mesmo da teoria construtivista por localizar a “aprendizagem ativa dentro de um processo de desenvolvimento social e conceitual baseado no discurso do conhecimento” (HARASIM, 2012, p. 13. Destaques nossos). A OCL se destaca, assim, na configuração da aprendizagem como um processo coautoral de construção de conhecimentos, e em seu potencial para fazer (re)pensar a prática educacional como um todo, seja em situação formal ou informal, com foco no online. No caso da situação de aprendizagem formal situada neste texto, interessa-nos localizar e compreender as práticas sociais que estão em processo no fórum virtual tomado em seu potencial (affordances) para a construção de novas práticas de letramento e, mais especificamente, da construção colaborativa de conhecimentos. No entanto, embora os fóruns online apresentem arquitetura dialógica e hipertextual3 típica da web 2.0, seu potencial para a construção de práticas interativas/colaborativas pode ou não ser explorado, de formas diferentes e em função de fatores situacionais também diversos. A esse respeito, Nassif Mantovani et al (2010, p. 189) lembram que a interação não é intrínseca aos fóruns e, no caso de fóruns virtuais voltados para atividades educacionais, essa interação dependerá do design cuidadoso das atividades, das mensagens e da compreensão do processo de interação pelos envolvidos na comunicação. Em perspectiva semelhante, Young (2013) destaca que toda situação de comunicação só pode ser caracterizada localmente, em “práticas interativas” que instanciam, no discurso, referências trazidas de outras práticas semelhantes. Essa abordagem 3

258

O termo hipertexto, segundo Lévy (2010[1993]), teria sido inventado por Theodore Nelson para exprimir uma concepção de leitura/escrita não linear, a propósito das formulações lançadas inicialmente por Vannevar Bush de que a mente humana não funciona hierarquicamente, e sim por associações. Essas associações, segundo o fundador da ideia, fazem a mente humana “pular” de uma a outra representação, por meio de uma rede intrincada. Desde a sua criação, portanto, o conceito de hipertexto tem sido bastante usado para se referir, em geral, a essa ideia inicial de múltiplas associações (múltiplas direções) em detrimento da leitura/escrita linear.

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traz conotação particular à ideia de “competência interacional”, localizando-a como uma competência não individual e não préexistente a uma prática, mas coconstruída em seu interior por meio do “jogo” interacional estabelecido pelos seus participantes. A partir da seção seguinte, dedicamo-nos à compreensão do “jogo” interacional mobilizado no fórum virtual investigado e o qual estamos compreendendo como uma prática de escrita/ letramento mediada pela Internet. 2. O FÓRUM VIRTUAL: PARTICIPAÇÃO, INTERAÇÃO E COLABORAÇÃO Não obstante as diferentes definições encontradas na literatura a respeito do fórum de discussões virtual e educacional, nós o tomamos, neste texto, como “uma comunicação grupal, dialógica, temática, assíncrona e argumentativa, dirigida a produzir um processo de construção de conhecimento” (SÁNCHEZ-UPEGUI, 2009). No caso do fórum em evidência, trata-se a priori de uma ferramenta alocada na plataforma Moodle de uma universidade pública, em que a comunicação se desenvolve via mensagens escritas, por um grupo de graduandos e a professora de uma disciplina de Morfologia da Língua Portuguesa direcionada à formação inicial de professores de língua, conforme mencionamos acima. Por se tratar de um fórum dirigido a produzir debates e conhecimentos a respeito de conteúdos relacionados à ementa da disciplina, as postagens escritas pelos alunos e pela professora tratam de temáticas pouco diversificadas. Embora essas temáticas apresentem-se intercruzadas nas mensagens e nos tópicos do fórum, podem-se identificar seis mais representativas: 1) Pontos específicos de Morfologia da Língua Portuguesa, como vogal temática, classes de palavras, alomorfia, etc.; 2) Análise linguística; 3) Formação de professores; 4) Eventos e congressos; 5) Ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa e 6) Outras – séries televisivas sobre educação, o próprio fórum/Moodle, a vídeo-aula da disciplina, etc. O fórum foi aberto, na plataforma, no início do segundo semestre de 2011, pela professora4, e a participação foi deixada “livre”, não contando como parte avaliativa da disciplina. Em4

As aulas iniciaram no dia 01 de agosto de 2011 e encerraram no dia 09 de dezembro de 2011.

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bora a professora o tenha iniciado, via comando que orientava a discutir conteúdos sobre Morfologia, todos os participantes podiam abrir novos tópicos de discussão, originando novos links temáticos. Conforme os tópicos eram abertos e disponibilizados como links, era possível escolher entre participar dos debates já em andamento ou iniciar outros links, definindo a participação de modo independente de uma ordem hierárquica de assuntos. Essa configuração hipertextual é comum aos fóruns online, como destaca Oliveira (2007), ao apresentar uma caracterização de fórum virtual em geral e, nela, as mensagens “provocadoras” da discussão aparecem como “uma lista de hipertextos que são os títulos das respectivas mensagens”. Os participantes podem clicar no link que mais lhes interessar, podendo responder com uma nova mensagem, que “poderá ensejar novas repostas, e assim por diante, em um ciclo potencialmente ilimitado” (OLIVEIRA, 2007, p. 04). A participação em um dos links temáticos abertos e a inserção de novos poderia ser realizada a qualquer momento, justificando a classificação do fórum como um tipo de comunicação assíncrona, ou seja, que não se dá em “tempo real”. Para Nassif Mantovani et al (2010, p. 187), essa característica faz do fórum uma ferramenta de comunicação “mais flexível” que as orientadas por comunicação síncrona, uma vez que não exige a participação simultânea das partes envolvidas no diálogo, permitindo aos alunos “definir seu ritmo de trabalho” e ter “tempo para refletir e pesquisar sobre as ideias que apresentarão”, o que pode favorecer uma discussão mais aprofundada de conteúdos. Em contrapartida, a ausência da obrigatoriedade da resposta imediata e a possibilidade de que qualquer participante responda a uma mensagem podem diminuir o comprometimento dos envolvidos, dependendo do modo como as atividades são desenvolvidas e de como a competência interacional é construída. Entre as postagens apresentadas pelos participantes em novos tópicos de abertura e as integradas a tópicos já iniciados, somaram-se 257 mensagens escritas no fórum, no período de 08 de agosto de 2011 a 30 de novembro de 20115. A fim de identifi5

260

Números atualizados em 14 de fevereiro de 2014, às 09h28. Nessa data, registramos também 4.321 acessos ao fórum, sugerindo um modo de participação como “observador (a)” que não pode ser quantificada.

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car os processos colaborativos evidenciados nessas mensagens, a colaboração não é tomada por nós como uma categoria autoevidente e passível de ser medida em termos absolutos. Ao contrário, compreendemos a colaboração como um continuum, de modo que é possível pensar em grupos de discussão mais ou menos colaborativos, porém não em grupos definitivamente colaborativos ou não colaborativos, já que não há uma única regra capaz de definir um grupo dessa forma (INGRAM e HATHORN, 2004). A identificação desses processos sustenta-se principalmente na observação de três características destacadas por Ingram e Hathorn (2004) como essenciais ao processo colaborativo – a “independência”, a “interdependência” e a “síntese”. Elas estão diretamente ligadas ao modo como se desenvolvem a participação, a interação e o processo de síntese na construção de conhecimentos (colaboração), que figuram, aqui, como etapas6 a guiar nossas análises do fórum, a partir do método de análise da colaboração, proposto pelos autores. 2.1 PARTICIPAÇÃO O primeiro passo na identificação dos processos de colaboração em discussões via Internet, segundo Ingram e Hathorn (2004), é analisar a participação, pois, embora dimensionada em termos quantitativos, ela forma o “esqueleto” que suporta a interação e, finalmente, a colaboração. A quantificação da participação pode ser feita pela contagem do número de mensagens feitas por indivíduos de um grupo no decorrer do tempo e pela sistematização de mensagens direcionadas para os colegas e para o professor. Essa é uma etapa importante da análise de discussões online, pois oferece a oportunidade de perceber como se estabelecem a “interdependência” e a “independência” nessas discussões, duas das características fundamentais da colaboração, conforme já mencionamos. A quantificação da participação no fórum permitiu verificar que 37 dos 68 graduandos matriculados na disciplina7 escreve6 7

A divisão entre participação/interação/síntese tem fins puramente metodológicos, pois se apresentam interligadas em uma prática. Muitos alunos declinaram da disciplina e/ou da graduação no decorrer do semestre, fato recorrente no primeiro ano do Curso.

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ram mensagens no decorrer das discussões, além da professora, totalizando 38 partícipes e indicando uma média de 7 postagens cada. Dos 38 participantes, 21 iniciaram tópicos para debate, apresentando links temáticos, e os demais postaram apenas em tópicos já iniciados. O desenvolvimento das mensagens iniciouse timidamente em agosto, cresceu significativamente no mês de setembro, declinou em outubro e atingiu o seu ápice em novembro, especialmente nos últimos dias desse mês. Assim, das 257 postagens, 16 foram feitas em agosto, 67 em setembro, 25 em outubro e 149 em novembro. A participação de 54% [37] dos alunos nas atividades do fórum e o crescimento irregular dessa participação no decorrer do tempo sinalizam, de imediato, a reconfiguração da hipótese inicial de que todos os alunos (ou pelo menos a grande maioria) aderissem às discussões. Ao considerar a estrutura inerentemente dialógica de um fórum, em que há possibilidade de enviar mensagens a múltiplos destinatários simultaneamente e tomar a palavra a qualquer momento (YUS, 2001), foi gerada uma expectativa de que os discentes o utilizassem como um espaço regularmente ativo de troca de informações e conhecimentos. A quantidade de envolvidos no processo, no entanto, e a oscilação da participação no sentido de maior ou menor envolvimento em determinados momentos, permitem entrever a influência de fatores locais na participação nessa prática de letramento digital. Nesse caso, o fato de muitos alunos terem desistido da disciplina e/ou da graduação em Letras no decorrer do semestre, aliado à não obrigatoriedade da tarefa e a outros fatores que figuram como hipóteses e carecem de novas investigações (como o modo como as questões foram postas para discussão e a mediação da professora, por exemplo), podem explicar o envolvimento de apenas pouco mais da metade dos alunos matriculados na disciplina no fórum. Além disso, a maior incidência de postagens nos meses de setembro e de novembro pode ser explicada, ao menos parcialmente, pela realização da Semana de Letras do Curso, no mês de setembro, evento que fomentou sobremaneira as discussões no fórum a partir desse mês. O crescimento exponencial da participação no último mês letivo, por sua vez, pode ser justificado tanto pela proximidade com os exames finais quanto por uma

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maior compreensão do fórum como um espaço para a troca e a construção de conhecimentos, conforme observado na análise do conteúdo das mensagens escritas. Das 257 mensagens que compõem o fórum, apenas 12 foram postadas pela professora, sendo que 8 delas foram direcionadas para indivíduos específicos, enquanto 4 foram direcionadas para o grupo todo. As 245 postagens restantes foram feitas pelos acadêmicos, sendo a maior parte delas (159) direcionadas para o grupo todo (muitas vezes de forma não explicitada na escrita), 83 direcionadas para colegas específicos do grupo e as 3 demais para a professora, conforme quadro abaixo. Quadro 1 – Quantidade e direcionamento das mensagens do fórum Número de mensagens Direcionadas para a professora

Direcionadas para indivíduos do grupo

Direcionadas para o grupo todo

Total

Alunos

3

83

159

245

Professor

0

8

4

12

Total com o Professor

3

91

163

257

 

Chamamos a atenção, no Quadro 1, para o fato de a professora direcionar a maior parte de suas mensagens para um aluno em particular, enquanto os alunos direcionam a maior parte para o grupo todo, não alocando o turno para um sujeito específico. Isso aponta para uma prática interacional de gerenciamento de turno comum em situação escolar, em que o professor normalmente detém o direito de alocar turnos para determinados alunos, especialmente por meio de perguntas e solicitação de esclarecimentos, indicando o enquadramento de papéis específicos a professor/aluno em situação de ensino-aprendizagem (YOUNG, 2013). Retornaremos a esse ponto mais adiante. Os dados do quadro 1 sinalizam, ainda, dois aspectos importantes para a análise do processo de colaboração. O primeiro 263

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é o que Ingram e Hathorn (2004) chamam de “independência”, que se refere à capacidade dos estudantes de trabalharem sem o instrutor/professor. A esse respeito, os dados quantitativos sobre a participação no fórum permitem verificar um favorecimento para a independência, já que a maioria das discussões ocorre por iniciativa dos alunos e está direcionada para eles, em detrimento de uma pequena quantidade de mensagens realizadas pela professora e/ou a ela direcionadas. Se, por um lado, a independência é essencial ao processo de colaboração, por outro, a mediação do professor ou de “par mais competente” (VYGOTSKY, 2003[1930]) também é fundamental para o direcionamento e o aprofundamento da colaboração e da construção de conhecimentos em um fórum digital. Nassif Mantovani et al (2010, p.189) enfatizam a necessidade do moderador nas discussões online, já que “haverá momentos em que será necessária a síntese da discussão ou a inserção de pontos não comentados pelos alunos e que são relevantes à discussão”. A moderação do professor é, portanto, fator essencial para a colaboração na construção de conhecimentos, ao lado da importância de que os alunos desenvolvam a capacidade de trabalhar com os colegas mesmo sem a interferência do professor, de forma que a própria atividade de moderação possa ser exercida também entre eles. O segundo aspecto da análise da colaboração passível de ser mensurado já pela participação, ainda que em termos superficiais, é a “interdependência”. Para Ingram e Hathorn (2004), a colaboração depende da interdependência entre os indivíduos, ou seja, do compartilhamento de ideias para que cheguem a determinadas conclusões ou produtos finais. Tal aspecto constitui-se, então, pela contribuição ativa de cada membro do grupo para a discussão e, em um primeiro nível, pode ser medida pela participação simples de cada membro, observando-se o número de mensagens que cada um apresenta. Para o favorecimento da colaboração, segundo os autores, é necessário que haja uma participação razoavelmente igualitária entre os membros, embora essa não seja uma condição suficiente e a colaboração precise ser investigada mais a fundo pela análise da interação e do processo de síntese.

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A quantidade geral de mensagens que cada um dos seus 38 membros do fórum apresenta individualmente varia de 1 a 28, demonstrando irregularidade nos níveis de participação e apontando para um desfavorecimento da colaboração em termos da interdependência. Conforme pretendemos mostrar pela análise da interação e síntese nesse fórum, no entanto, a interdependência entre os membros na construção de conhecimentos foi estabelecida em subgrupos menores do que o formado pelos 38 participantes, compostos por participantes específicos que interagem de modo mais igualitário em torno de determinados temas de discussão. 2.2 INTERAÇÃO E SÍNTESE A interação é o segundo passo na análise de discussões mediadas pela Internet e a base de todas as características da colaboração, pois, sem a interação genuína entre os participantes de uma situação de comunicação, não há sustentação para que a colaboração aconteça, (cf. INGRAM e HATHORN, 2004). Para analisar a interação, é preciso, antes de tudo, classificar as mensagens de uma discussão em duas grandes categorias: off task e on task. Quanto à primeira, refere-se a apresentações, referência a estado pessoal ou experiências, entre outras mensagens não diretamente relacionadas ao cenário da discussão ou totalmente sem relação com esse cenário, tal qual comentários acerca do clima, por exemplo. Esse tipo de mensagem costuma funcionar, em um grupo, como uma espécie de “quebra-gelo”, ou “distração”, auxiliando na criação de um ambiente para dar suporte à colaboração. Além disso, algumas declarações off task podem sinalizar a abertura ou o fechamento de uma discussão. Já as mensagens on task são as mais diretamente ligadas ao cenário da discussão e podem ser subdividas, ainda, em: 1) Gestão social e de grupo – mensagens que não contribuem diretamente para a resolução de um problema ou para a discussão de conteúdos temáticos em um grupo, mas que podem ajudar a definir o ambiente para a colaboração, por meio de atribuições ou reclamações sobre a tarefa, declarações de apoio como felicitações pela realização de um trabalho ou exposição de uma ideia, etc.; 265

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2) Discussão direta do cenário – declarações que contribuem diretamente para o tópico temático em discussão. Para Ingram e Hathorn (2004), em um grupo colaborativo, é esperado que o maior número de mensagens seja desse último tipo. Feitas essas primeiras classificações, é possível estabelecer determinados “padrões de interação” que ocorrem em uma discussão. Os padrões de interação podem ser identificados através da classificação das mensagens em que há discussão direta do cenário em três grupos funcionais: 1) Comentários autônomos: declarações independentes, que não geram respostas, não respondem a nenhum outro comentário e não levam ao aprofundamento da discussão. Comentários desse tipo podem contribuir com a tarefa, apresentando novas informações e permitindo ao grupo aprender algo diferente a respeito do tema em discussão, mas não favorecem a interação, pois não se relacionam às demais mensagens e, logo, não fazem parte do esforço de colaboração de um grupo, (cf. INGRAM e HATHORN, 2004), 2) Interação: comentários que se relacionam a outros comentários, de modo explícito, ou seja, com links marcados na textualização (como “conforme explicado por”) ou de modo implícito, quando é possível notar o link com outras mensagens apenas pelo seu conteúdo. Para que ocorra a interação, é necessário ao menos um comentário e uma resposta para o comentário; sendo assim, a interação pode ser determinada, em parte, pela extensão de um diálogo. 3) Síntese: comentários em que se identifica a tentativa de sintetizar e concluir um processo de discussão temática em andamento, com seleção de pontos considerados relevantes e a exclusão de outros, apresentados na interação. Esse tipo de comentário determina o que estamos tomando por colaboração, que se estabelece quando há um comentário a respeito do conteúdo em discussão, uma resposta e uma resposta final, que é a síntese de todas as respostas (KAYE, 1992 apud INGRAM e HATHORN, 2004).8 As conexões entre mensagens, em uma discussão, podem ocorrer: a) na forma de uma “resposta direta”, isto é, um simples 8

266

Na seção seguinte, retomamos esse ponto ao buscar mostrar a ocorrência de colaboração em uma discussão temática do fórum.

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acordo/desacordo em relação às declarações anteriores, sem apresentação das razões ou apenas reformulando declarações anteriores – essas respostas costumam ser do tipo “concordo com”, “não concordo”, por vezes acrescidas de simples paráfrase; b) por meio de comentários que adicionam novas informações à discussão – comentários diretos (que adicionam informação explicitando a conexão com outros comentários) ou comentários indiretos (que adicionam informação sem mencionar, explicitamente, a conexão com outras mensagens, embora elas possam ser identificadas; c) por conexões mais complexas entre mensagens, em que é possível identificar uma síntese de informações precedentes, geralmente acrescentando novas informações – efetivação do processo de colaboração. Muitas vezes, as conexões entre mensagens em um fórum são feitas de forma aleatória pelos seus usuários, de modo que as relações aparentes não equivalem às reais, conforme Ingram e Hathorn (2004) identificaram em seus estudos e também observamos no fórum de Morfologia. Para identificar as conexões reais é preciso, portanto, estar atento aos conteúdos expressos e às relações implícitas ou explícitas, diretas ou indiretas, observando os fios temáticos de construção de conhecimento que estão em jogo e as postagens que revelam utilização aleatória dos recursos hipertextuais do fórum. A identificação dos fios discursivos da interação no fórum do curso de Morfologia permitiu-nos criar diagramas de discussão como o que apresentamos abaixo (Figura 1). Por questão de espaço e do que mais nos interessa chamar a atenção aqui (o processo colaborativo), o diagrama focaliza apenas 34 das 257 mensagens do fórum, apresentando uma interação entre 13 acadêmicos e a professora – que formam um dos vários subgrupos estruturados em torno de determinadas temáticas. A conversa se organiza em torno do tema classes de palavras, entre 13 de novembro de 2011, às 18h32min e 28 de novembro de 2011, às 23h45min. As relações entre as mensagens podem ser visualizadas, no diagrama, por meio de formas geométricas que representam cada uma das mensagens e de setas que as ligam às respostas que elas geram e às referências acionadas de outras mensagens.

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Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente Figura 1: Diagrama de discussão – classes de palavras

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Na Figura 1, o retângulo representa as mensagens postadas pelos alunos e o losango as postagens da professora. Nesse subgrupo, identificamos apenas uma postagem da professora, que se originou de mensagem anterior de uma aluna e gerou duas novas respostas, conforme é possível acompanhar pela direção das setas. Com relação à “independência”, pode-se dizer que há, nessa discussão, um ambiente favorável para a colaboração, já que os graduandos interagem mesmo em momentos em que não há interferência direta da professora. Apenas análise mais detalhada da síntese (seção abaixo), no entanto, nos permitirá identificar se a moderação é estabelecida, de fato, pelos próprios alunos, no sentido de sintetizar aspectos importantes da interação para a construção de conhecimentos. As formas de tonalidade cinza-claro (Figura 1) correspondem a postagens realizadas no tópico de discussões “Critérios de definição de classes de palavras”, iniciado no fórum por uma aluna em 13 de novembro de 2011, às 18h32min, e encerrado em 28 de novembro, às 23h45min, com 21 postagens. As formas em cinzaescuro, por sua vez, representam mensagens postadas no tópico “1º, 2º e 3º graus de dependência e hierarquia de critérios”, iniciado por aluna no dia 27 de novembro de 2011, às 20h55min, e que obteve 11 novas postagens até o dia 28 de novembro de 2011, às 17h03min. Como se pode observar, há um atravessamento de mais de um tópico temático do fórum em um mesmo subgrupo temático de interação, o qual identificamos pelo conteúdo das postagens. As conexões entre mensagens de tópicos diferentes apontam para uma configuração hipertextual da discussão, por linkagem. Além disso, o conteúdo de algumas mensagens da Figura 1 permitiu a identificação de links com conteúdos de pelo menos três outros tópicos: “Interjeição... Mas que diabos é isto?!!!!”, aberto em 29 novembro 2011, às 00h15min; “Interjeição como classe de palavras e novas interjeições”, iniciado em 29 novembro 2011, às 15h19min e “Interjeição como classe de palavra em livros didáticos”, aberto em 24 novembro 2011, às 22h03min. Essas linkagens se estabelecem bidirecionalmente, ou seja, as mensagens representadas dão origem a outras encontradas nos tópicos sobre Interjeição ou vice-versa. Por uma questão de espaço, omitimos essas relações na Figura 1.

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Além do atravessamento entre tópicos nas discussões sobre classes de palavras, identificamos, ainda, referências cruzadas com textos de autores da área de Morfologia (em geral por meio de paráfrases ou citações), com discussões realizadas em sala de aula e com outras práticas sociais cotidianas ou acadêmicas, como menções a experiências pessoais e a discussões realizadas na Semana de Letras, por exemplo.9 Para uma melhor visualização do conteúdo expresso no interior dos retângulos apresentamos um recorte ampliado do diagrama, na figura 2: Figura 2: Foco no diagrama de discussão – classes de palavras10

Com relação à interação, a observação das setas na Figura 1 permite identificar vários “fios” discursivos do tipo perguntaresposta, com no mínimo uma mensagem de origem e uma resposta, desdobrando-se, em muitos casos, em outras novas mensagens. Essa observação aponta para uma interação genuína entre os participantes, nesse subgrupo de discussões, e para o estabelecimento de um ambiente propício para a colaboração. A “interdependência”, capacidade do grupo de interagir uns com os outros por meio de suas mensagens, faz-se presente em diversos momentos da discussão a respeito de classes de palavras, mas 9 10

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Algumas dessas referências serão discutidas por meio de exemplos das mensagens escritas no fórum, na seção posterior. “M” significa mensagem e vem acompanhado de um código estabelecido em ordem numérica crescente a partir da classificação de todas as mensagens do fórum em ordem cronológica. “A” significa aluno e também vem acompanhado de um número de identificação. Na sequência, apresentamos a data e hora da postagem e, por fim, # indica referência a discussões feitas em sala de aula.

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não em todos eles, já que é possível identificar postagens que não dão origem a outras mensagens, como M111 (Figura 1). Esse fato já sinaliza o movimento, identificado no fórum, entre contribuições mais significativas para o processo interacional (e, logo, para a construção conjunta da competência interacional), como as mensagens que estão conectadas a outras na comunicação, e contribuições sociointeracionalmente menos significativas, indicadas pelas mensagens de caráter mais individualizado. Para discutir melhor esse movimento, colocando em destaque o processo de síntese e a colaboração em uma análise mais específica do conteúdo das mensagens do fórum, estabelecemos novo recorte na discussão, conforme seção a seguir. 3. PROCESSO DE COLABORAÇÃO NO FÓRUM DE MORFOLOGIA DA LÍNGUA: HIPERTEXTO E COMPETÊNCIA INTERACIONAL As mensagens para as quais chamamos a atenção nesta seção compreendem 13 das 34 postagens apresentadas no diagrama acima (Figura 1) e representam um dos vários movimentos, identificados no fórum, em que se observa o processo de síntese de um tópico de discussão, pela interação entre um determinado grupo de alunos e a moderação de um “par mais competente” (VYGOTSKY, 2003[1930]). Nesse caso, uma aluna (TATI, M133)11. Além disso, essas mensagens são representativas do fato de que esse processo de síntese, quando ocorre, apresenta-se com contribuições mais ou menos significativas, do ponto de vista sociointeracional, conforme destacamos antes, de modo a formar pequenos grupos de interação e de colaboração, compostos por determinados participantes ao redor de determinados temas. Trata-se de uma discussão sobre classes de palavras realizada por 9 alunas (Luana, Bia, Giulia, Carol, Mara, Rafa, Brena, Nice e Tati) e a professora. Apenas 5 alunas estão mais diretamente envolvidas no processo de síntese (Luana, Giulia, Mara, Nice e Tati), embora as demais também contribuam, de forma menos direta, para a construção de conhecimentos. 11

Os nomes de todos os participantes da pesquisa foram substituídos por pseudônimos, por questões éticas.

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Ensino de Língua Portuguesa para a contemporaneidade: escrita, leitura e formação docente Figura 3: Diagrama processo de síntese e colaboração – classes de palavras

Na primeira postagem (M109, transcrita abaixo), Luana inicia a conversa apresentando uma citação acerca dos critérios relacionados à identificação de classes gramaticais de palavras e, em seguida, direciona sua mensagem ao grupo perguntando se os colegas concordam com a afirmação, solicitando que justifiquem sua concordância/discordância: M109 por Luana - domingo, 13 de novembro de 2011, 18:3212 “A identificação das classes gramaticais é feita, sempre, pela conjunção de critérios semânticos, morfológicos e sintáticos (ou seja, distribucionais). É impossível abrir mão desses critérios para efetuar essa identificação, já que, as definições, puramente semânticas, não podem dar as condições necessárias e suficientes para definir os membros de classes gramaticais específicas.” Você concorda com essa afirmação? Enriqueça nosso conhecimento com sua justificativa.

Em M109 há apresentação direta de conteúdos propostos para as atividades no fórum (comentário on task). No caso, critérios para a definição de classes de palavras, com destaque para a importância da união entre os 3 critérios (semântico, sintáti12

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As mensagens são transcritas de forma fiel ao texto original.

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co e formal) na identificação dessas classes e para a crítica às definições “puramente semânticas”. Luana traz para discussão uma afirmação a respeito do tema que encontrou em um site da Internet, conforme se verifica em mensagem posterior, na qual disponibiliza o link (M128) a pedido da professora. Ao trazer essa informação para o fórum, após coletá-la entre as tantas possibilidades encontradas na Internet, a aluna direciona a discussão e disponibiliza essa informação sobre os critérios para a identificação de classes de palavras para os demais colegas que têm acesso às discussões do fórum, trazendo a visão de um autor que não havia sido apresentado como parte do programa da disciplina. Isso chama a atenção para o que Moita Lopes (2012) apresenta como “um modo de agir” conjuntamente em práticas sociais, disponibilizando informações e contribuindo para a construção e para a geração de ideias. A relação com esse outro documento encontrado na Internet e disponibilizado posteriormente como link aponta, ainda, para a perspectiva hipertextual de construção de conhecimentos identificada nessa prática de letramento, pois a conexão, por meio de link, com “redes de nós” que contenham informações tem sido nomeada, na literatura da área, de “hipertexto” (SHNEIDERMAN, 1998, p. 553 apud SIGNORINI, 2013). Trata-se, ainda, de uma mensagem que não se apresenta de forma autônoma, já que gera muitas outras respostas, levando ao aprofundamento da questão. Embora não seja possível identificar conexão explícita com comentários anteriores, há tentativa de manutenção da interação, manifesta ao final da mensagem por meio da pergunta “Você concorda com essa afirmação?” e pela solicitação da justificativa. Desse modo, a aluna assume uma atitude ativa no fórum, contribuindo para a construção de conhecimentos ao apresentar as suas considerações e ao lançar perguntas para fomentar o debate, chamando os colegas para participar, apresentando as suas opiniões. As sinalizações de finalização de turno e manutenção da interação, apresentados por pergunta ao final da mensagem, textualizam recursos trazidos de práticas de letramento escolar/ acadêmicas tradicionais, remetendo a um modelo de avaliação escolar em que se costuma apresentar uma afirmação seguida de solicitação de opinião a respeito. Nesse sentido, cabe chamar

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a atenção para a citação de autores “autorizados”, remetendo à escrita acadêmica, e à utilização de léxico específico da disciplina de Morfologia da língua, como “critérios distribucionais” e “classes gramaticais”, por exemplo. O modelo de pergunta acadêmica acionado pela aluna sugere, ainda, uma flexibilização dos papéis sociointeracionais definidos em contexto de ensino/ aprendizagem, uma vez que, tradicionalmente, cabe ao professor fazer perguntas e ao aluno respondê-las. Essa regra é parcialmente quebrada nessa situação, possivelmente em função da referenciação a outras práticas também instanciadas pela aluna, como a de participação em debates na Internet, por exemplo. Em um questionário aplicado aos alunos participantes do fórum, sobre seu perfil e relacionamento com a Internet, a grande maioria afirmou participar de redes sociais e de fóruns na Internet (97%). Bia apresenta a primeira resposta à postagem de Luana, em 15 de novembro: M111 por Bia - terça, 15 de novembro de 2011, 14:54 A denominação de classes de palavras são comumente feitas a conjuntos de palavras, determinados pelas funções ou propriedades semânticas ou gramaticais. Sua existência é de fundamental importância no quesito de descrição de uma língua, pois revelam as propriedades gerais das palavras.

Embora Bia contribua com a discussão ao acrescentar informações sobre a definição e a importância das classes de palavras, trata-se de um comentário que apresenta pouca contribuição à discussão do ponto de vista da interação, não gerando nenhum outro comentário (cf. Figura 3). Mesmo sua relação com o comentário anterior é pouco clara, e não marcada na escrita. Nesse ponto da discussão há, portanto, uma “quebra” da “interdependência”, ou seja, da interação genuína entre os participantes, condição destacada por Ingram e Hathorn (2004) como extremamente importante à construção do processo de colaboração em discussões online. Temos, assim, em M111, uma resposta autônoma que remete a práticas de escrita escolares/acadêmicas de autoria individual, 274

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a exemplo das avaliações escritas em que é necessário replicar e demonstrar conhecimentos adquiridos, em detrimento da sua construção conjunta e colaborativa. Isso pode ser identificado tanto pela falta de sinalizações de mudança de turno, comum em práticas interacionais face-a-face e mesmo online, quanto pela escolha do léxico formal e particular à disciplina (“propriedades semânticas”, “quesito de descrição de uma língua”). Pode-se notar, dessa forma, mais uma tentativa de cumprir a tarefa proposta no fórum do que a busca por debater, dialogar e construir conhecimentos juntamente com os demais participantes – o que aponta para o movimento em direção a uma menor contribuição, do ponto de vista sociointeracional, com a construção conjunta de conhecimentos e com o aprofundamento da discussão. O movimento se apresenta mais uma vez em direção inversa, porém, em M112. M112 por Giulia - segunda, 21 de novembro de 2011, 11:06 Basicamente, palavras que possuem mesma “função” e/ou “forma” são agrupadas e classificadas, formando assim as “classes de palavras”, podendo ser variáveis ou não. Lista de classes de palavras VARIÁVEIS: artigo: gênero e número. Adjetivo: gênero, número e grau. numeral: gênero e pronome. Pronome: gênero, número e pessoa. verbo: modo, tempo, número, pessoa e voz. Lista de classe de palavras INVARIÁVEIS: advérbio. preposição. Conjunção. Interjeição. A definição de cada uma dessas classes pode variar de acordo com o autor/teoria/material consultado (essa questão foi debatida em sala de aula). Inclusive, a questão da “Interjeição” divide opiniões na comunidade acadêmica... O que vocês acham pessoal?

Nessa postagem feita por Giulia em 21 de novembro, identificamos mais uma vez a relação direta com o conteúdo em discussão nesse tópico (comentário on task). Mais especificamente, trata-se de adição de novas informações, no caso a questão da classificação variada de vocábulos em função de teorias também variadas, e uma classificação entre palavras variáveis e invariáveis, com apresentação de alguns exemplos. Além disso, percebemos uma preocupação

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com a manutenção da interação, por meio da alocação de turno ao restante do grupo no final da mensagem “o que vocês acham pessoal”, contribuindo com a interdependência na interação no fórum. M112 instancia referências a textos de autores na área de Morfologia, embora de forma não citada, pois apresenta classificações e exemplos de classes de palavras encontrados nesse tipo de texto. Outro ponto que chama a atenção, na mensagem de Giulia, é a referência a uma discussão realizada em outra instância, na sala de aula, a respeito da questão de a interjeição ser considerada ou não como uma classe de palavras, a depender da teoria/autor mobilizado: “A definição de cada uma dessas classes pode variar de acordo com o autor/teoria/material consultado (essa questão foi debatida em sala de aula). Inclusive, a questão da “Interjeição” divide opiniões na comunidade acadêmica”. Essas referências, marcadas na escrita de Giulia, apontam para a linkagem estabelecida não apenas com outras mensagens e tópicos do fórum (como os de interjeição acima mencionados), mas também com o componente presencial da disciplina em que se aloca o fórum, situando a construção de conhecimentos acerca de classes de palavras, aqui empreendida, em sua estruturação hipertextual, identificada via texto/escrita. Na sequência cronológica, temos duas mensagens postadas por Carol que se relacionam, explicitamente, com a postagem de Luana (M109) e com a de Giulia (M112), respectivamente. M113 por Carol - terça, 22 de novembro 2011, 23:04 Luana, eu concordo, pois de acordo com o texto de BASÍLIO (1999), ele diz que as gramáticas normativas privilegiam o critério semântico na classificação das palavras, embora utilizem todos os critérios. De acordo com BASÍLIO (1999), é que a questão da definição de classes da palavras é bastante complexa, quer em relação aos critérios, quer em relação ao fato de que a adequação de definições de classes varia de língua para língua. Segundo o autor as classes de palavras são definidas pelo critério semântico quando estabelecemos tipos de significado como base para a atribuição de palavras a classes. Temos assim como base o modo de significação para o critério semântico. (pp.49-50)

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Na linha de comentários on task, Carol contribui inicialmente para a manutenção da interdependência na discussão e para o processo de construção conjunta de conhecimentos, no fórum, ao apresentar sua concordância com a afirmação postada pela colega Luana acrescida de novas informações a respeito do cenário da discussão, referenciando outro autor na textualização (Margarida Basílio). O “nó” estabelecido em sua escrita com o texto de Margarida Basílio aponta uma vez mais para a relação hipertextual na construção de conhecimentos no fórum. Carol reforça a fragilidade do critério semântico na identificação das classes de palavras, reafirmando a complexidade do fenômeno e adicionando a informação de que essa classificação pode variar, ainda, de uma língua para outra. Suas escolhas lexicais, por sua vez, apontam uma vez mais para a referência ao modelo acadêmico de escrita, em detrimento de diálogos mais informais encontrados em fóruns da Internet, com destaque para a utilização da citação, recurso que remete ao modelo prototípico de escrita escolar/acadêmica (“de acordo com o texto de Basílio”). Além disso, há uma quebra na relação de interdependência, em M113, pois a aluna não sinaliza alteração de turno ao final de sua mensagem e, de fato, não gera nenhuma outra resposta direta à sua postagem na continuidade da discussão (cf. figura 3). O mesmo ocorre com outra mensagem de Carol, na sequência, respondendo Giulia: M115 por Carol - quarta, 23 de novembro de 2011, 00:05 Giulia, segundo Mattoso, o critério semântico não deve ser observado isoladamente, como acontece comumente na Gramática Tradicional. Para ele, o critério semântico e o critério mórfico se associam de forma muito estreita, pois o vocábulo é uma unidade de forma e de sentido. “O sentido não é qualquer coisa de independente, ou, mais particularmente, não é apenas um conceito; conjuga-se a uma forma. O termo ´sentido´ só pode ser entendido com o auxílio do conceito de ´forma´.” (MATTOSO, 1970).

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De forma bem semelhante ao que faz em M113, Carol apresenta resposta explícita a uma postagem anterior, acrescentando à discussão a visão de outro autor (Mattoso Camara) a respeito dos critérios de classificação de palavras e contribuindo com a adição de informações para a construção de conhecimentos nesse tópico. O conteúdo de sua discussão, no entanto, parece se desenvolver mais por linkagem com a mensagem da Luana (M109) que propriamente com a de Giulia (M112), com quem ela afirma concordar, confirmando nossa observação de que os links apresentados pelos alunos, no fórum, mesmo quando marcados via escrita, podem não coincidir exatamente com as referências identificáveis via acompanhamento do processo de discussão como um todo. Há, portanto, em M115, tal como em M113, uma conexão direta com mensagens anteriores, seja a de Giulia ou a de Luana, mas, por outro lado, não há sinalização de mudança de turno ao final da postagem. Mais uma vez, não há novas mensagens se originando desta, nem a ela se ligando diretamente (Figura 3), fato que compromete a interação genuína entre os participantes e pode comprometer, consequentemente, os processos de colaboração para a construção de conhecimentos. O modelo de escrita apresentado remete novamente ao modelo prototípico de escrita escolar/acadêmica, como se pode verificar em “segundo Mattoso”, ou ainda em “vocábulo é uma unidade de forma e de sentido”, por exemplo. M116 por Nice - quarta, 23 de novembro 2011, 12:52 Concordo sim com a apresentação da Lu. Cabe ainda acrescentar que, de acordo com o texto de BIDERMAN, Síntese histórica e crítica da classificação tradicional, essas classificações são necessárias na identificação das “partes da oração ou partes do discurso ou classes de palavras ou classes de vocábulos”, mas o que ele discute, e que faz todo sentido no âmbito da ciência da língua, são as diversas nomenclaturas que os gramáticos tentam aderir à essas classes de vocábulos na busca de classificações que os diferenciem, sem perceber que enquanto houver a tentativa de classificação da língua por cada uma das ciências que a estudam não haverá consenso.

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“Contudo, não ajudará em quase nada mudar os nomes de todas as peças do jogo: tal atitude radical só acrescentaria novas dificuldades ao impasse analítico em que nos situamos hoje.” (BIDERMAN, p.172)

Em M116, Nice apresenta suas contribuições à interação em jogo afirmando concordar com Luana e apresentando novas considerações de forma marcada “cabe ainda acrescentar que”. O conteúdo adicionado à discussão refere-se tanto à afirmação da necessidade das classificações dos vocábulos quanto ao destaque dado à questão da nomenclatura, que a aluna retoma pela reafirmação das diferenças nas classificações, a depender de cada teoria/autor. Trata-se, portanto, de um comentário on task e direto, que adiciona informações e que se origina de mensagem anterior, a qual retoma respondendo M109: “Concordo sim com a apresentação da Lu”. Do ponto de vista interacional, o comentário contribui com a manutenção da interdependência, não apenas por sua ligação inicial com o comentário de Luana, mas principalmente pelo fato de gerar outros comentários, como o de Tati (M123, Figura 3), que sintetiza esse segmento da discussão, conforme discutimos mais adiante. Com relação às práticas instanciadas, a falta de sinalização de limites e de turnos, a escolha de léxico da Morfologia e o acionamento de recursos como a citação evidenciam referência ao protótipo de escrita acadêmica, do mesmo modo que nos comentários acima, a partir da citação de um texto utilizado como parte da programação da disciplina (Biderman). Na sequência cronológica, a professora da disciplina e a aluna Luana, responsável pela abertura do tópico, estabelecem um diálogo: M126 por professora - sexta, 25 de novembro de 2011, 21:38 Luana, sugiro que você apresente a fonte de onde retirou essa citação! Quem é o autor? E o livro/artigo?

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M128 por Luana - sábado, 26 de novembro 2011, 00:24 Agradeço pelo toque, professora. Uma caracterização semântica das classes gramaticais. Bruno Oliveira Maroneze. http://www.linguaeducacao.net/press/03.pdf

Na conversa acima, identificamos as seguintes conexões: M109 → M126 → M128 (ver Figura 3), em um segmento interativo que se dá por uma pergunta, uma nova pergunta, e uma resposta para a segunda pergunta. No entanto, há uma reconfiguração em relação aos segmentos interacionais discutidos até o momento, pois há interferência da docente e a expectativa de resposta ao comentário M126 é quebrada pela apresentação de uma nova pergunta, pela docente, em um enquadramento (GOFFMAN, 1979) dos papéis de professor/aluno, anteriormente flexibilizados por meio da pergunta M109. A prática estabelecida entre a professora e Luana nesse diálogo remete à interlocução em sala de aula e à situação de avaliação escolar/acadêmica, já que a professora, de certo modo, “corrige” Luana por ela ter feito uma citação sem referenciar o autor. A docente textualiza, assim, uma regra da academia, mais especificamente da escrita acadêmica, segundo a qual a utilização de texto de determinada autoria sem menção ao autor figura como “plágio”. Por outro lado, contribui com a construção de conhecimentos na discussão, ao estabelecer sua mediação com o objetivo de que Luana disponibilize, aos demais colegas, o texto a partir do qual apresentou as informações, e com a consequente disponibilização dessa informação, no fórum, pela aluna (em M128). Além disso, o enquadramento dos papéis educacionais pode ser identificado pela alocação do turno, pela docente, para a aluna – em detrimento da configuração aberta de tomada de turno típica do fórum – e por meio da resposta de Luana (M128), que toma o turno que lhe foi alocado imediatamente na sequência, coconstruindo, junto com a professora, esse enquadramento interacional. De todo modo, a interdependência é mantida, pois as declarações referentes a essas mensagens estão diretamente ligadas à discussão em foco e a conexão entre as mensagens se 280

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dá de forma direta, já que Luana adiciona informações sobre o autor da citação que origina as discussões e apresenta o link do site de onde ela teria sido retirada, colaborando para a construção de conhecimentos a respeito de classes de palavras nesse grupo. Em M128, porém, não há sinalização de mudança de turno nem novas respostas geradas e/ou diretamente ligadas a essa mensagem, situando esse diálogo de modo paralelo à principal linha de discussão em destaque, que culmina em M133 (cf. Figura 3). Sendo assim, pode-se verificar que a mensagem apresentada por Mara na sequência originou-se, na verdade, de M112, que, por sua vez, originou-se de M109 (Figura 3), conforme marcado pela própria aluna no início de sua mensagem “Em relação à fala da Giulia e da citação apresentada pela Luana o que eu entendi foi que (...)”: M129 por Mara - sábado, 26 de novembro 2011, 14:03 Em relação à fala da Giulia e da citação apresentada pela Luana o que eu entendi foi que é preciso analisar as palavras de acordo com os três critérios antes de classificá-las, tal como o contexto em que essa palavra se encontra. Como discutimos em sala (na aula a respeito de interjeições, a que ocorreu no bloco 6) uma mesma palavra pode ser apresentada de forma diferente dependendo do critério que utilizemos para classificá-la. Por exemplo “socorro!”, pode ser visto como interjeição, mas a palavra socorro, inserida em outro contexto também é substantivo. Também há o exemplo dos verbos que, antecedidos de preposição tornamse substantivos. Daí a importância de se haver um contexto e analisar as palavras de acordo com os TRÊS CRITÉRIOS antes de classificá-las. Vimos isso também nos exercícios em que tivemos que identificar de acordo com que critérios estavam às definições gramaticais apresentadas. Como muitas gramáticas analisam de maneira diferente as classes de palavras temos bastantes diferenças e divergências nos conceitos apresentados.

Na mensagem acima, Mara retoma as colegas e as parafraseia dizendo que “é preciso analisar as palavras de acordo com os três critérios antes de classificá-las”. Mas, em seguida, acrescenta nova 281

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informação ao mencionar o contexto como outro fator essencial à identificação de classes de palavras “tal como o contexto em que essa palavra se encontra”. Como o contexto é uma informação que não havia ainda sido apresentada em nenhum outro comentário, inferimos que a conexão entre a mensagem de Mara e as das colegas se dá por meio de um comentário direto, ou seja, que adiciona algo ao que está sendo comentado explicitando a conexão com os outros comentários, segundo Ingram e Hathorn (2004). Além disso, a aluna acrescenta exemplos para explicar esse fato novo, mencionando a questão da interjeição e acionando, por meio da escrita, o link com a sala de aula, com os exercícios escritos realizados em situação presencial da disciplina. As três mensagens apresentadas na sequência cronológica, por Giulia (M130), Rafa (M131) e Brena (M132), remetem a práticas e processos sociointeracionais bastante semelhantes aos já identificados em outras mensagens. Por esse motivo e por uma questão de prioridade, omitimos esses três comentários e passamos à discussão do comentário de Tati (M133), postado em 26 de novembro e que finaliza o ciclo de discussões para o qual nos interessa chamar a atenção neste texto. M133 por Tati - sábado, 26 de novembro 2011, 18:17 Por meio das discussões acima feitas, tendo maior suporte nas falas de Mara, Nice e Luana e, ainda, de acordo com Biderman no primeiro capítulo do seu livro intitulado “Teoria línguística: linguística quantitativa e computacional”, o modelo tradicional para a definição das classes de palavras (ou seria melhor dizer vocábulos?) é inadequado, se for levado em consideração a visão linguística. Há de se colocar em pauta, justamente essa visada, a da análise linguística, visto que é sobre ela que foi e que será dado maior enfoque na disciplina de Língua Portuguesa II. Dessa forma, assim como existem inúmeras classificações humanas em cima dos mais diversos tópicos, a lingua(gem) não foi descartada disso. Parece claro que, nós, seres humanos, precisamos classificar coisas a fim de entendê-las, de chegar a soluções absolutas e ideais e, como o modelo tradicional de classificação se torna um pouco incoerente e repleto de exceções aqui e ali, os linguistas buscam (ainda baseados naquele velho mo-

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delo) substituí-lo. Foi a partir do linguista Hermann Paul (em 1880) que se passou a evidenciar os três critérios relatados pela colega Luana: o semântico (significação), o sintático (função do vocábulo na estrutura da oração) e o morfológico (o comportamento do vocábulo no que se refere à flexão e à formação). Para Paul, algumas classes de palavras além de “carregarem” o critério semântico, são individualizadas pelo critério sintático (por exemplo, a classe dos pronomes e dos advérbios). Apesar disso tudo, e ainda segundo Paul, essa classificação de acordo com os três critérios possui falhas, assim como a terminologia tradicional. Mara comentou logo mais acima sobre a aula em que surgiram vários questionamentos em relação à esse modelo pautado na linguística: um deles foi referente ao vocábulo (Socorro!), que podia ser definido como interjeição ou como substantivo. Daí a importância de se levar o contexto em consideração e além do mais a ideia de que são classificações humanas, passíveis de falhas.

Tati inicia sua mensagem mencionando o relacionamento com as discussões até o momento realizadas no tópico e destacando as falas das colegas Mara, Nice e Luana, além do texto da autora Biderman, como as referências mais importantes de sua fala: “Por meio das discussões acima feitas, tendo maior suporte nas falas de Mara, Nice e Luana e, ainda, de acordo com Biderman no primeiro capítulo do seu livro”. Já nessas primeiras linhas do comentário de Tati, podemos identificar sua tentativa de organizar e de sintetizar a discussão, a partir da seleção do que considera mais relevante e da exclusão do que possivelmente julga como menos importante, revelando a utilização de uma estratégia destacada por Harasim (2012) como essencial ao processo de construção colaborativa de conhecimentos: seleção/ exclusão/síntese de determinados pontos de uma discussão por um mediador/moderador. Após situar sua seleção, Tati realmente retoma, na escrita, aspectos destacados por esses colegas, parafraseando-os e acrescentando novas informações e exemplos à discussão, como a questão da “análise linguística” (tema debatido antes e

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após a mensagem de Tati, em vários outros tópicos do fórum), mesclados à visão do linguista Hermann Paul sobre os critérios de identificação de classes de palavras e suas próprias opiniões e conhecimentos a respeito da temática, como se pode verificar em “Parece claro que, nós, seres humanos, precisamos classificar coisas a fim de entendê-las”. Do ponto de vista da qualidade das interações em discussões online, baseados em Ingram e Hathorn (2004) é possível dizer que M133 apresenta-se como uma mensagem do tipo síntese de informações, trazendo um terceiro passo ao processo de interação (1 comentário sobre o conteúdo + 1 resposta + 1 resposta final, que é a síntese de todas as respostas) permitindo identificar a estruturação do processo de colaboração nesse diálogo. Além disso, conforme destacado pelos autores, um comentário do tipo síntese vem acompanhado de novas informações, podendo fomentar um novo conjunto de discussões. É o que ocorre com M133, que gera novos comentários tanto no interior do tópico em que se aloca (“Critérios de definição de classes de palavras”) quanto em sua relação transversal com outros tópicos, tal qual “1º, 2º e 3º graus de dependência e hierarquia de critérios (em cinza escuro na Figura 1) e outros sobre “análise linguística”. Na postagem de Tati, podemos identificar as contribuições individuais de cada um dos participantes desse grupo de discussão, em menor ou maior medida, direta ou indiretamente, a depender das práticas criadas e/ou mobilizadas por esses participantes. A identificação dessa oscilação na participação no fórum nos possibilitou compreender a colaboração, neste estudo, como um elemento intrinsicamente ligado a fatores locais, em uma prática de letramento, bem como à construção conjunta da competência interacional por todos os participantes nela envolvidos. Nesse sentido, a construção de conhecimentos a respeito de classes de palavras revela, mais do que a colaboração, propriamente dita, ou a aprendizagem colaborativa, um processo colaborativo de construção de conhecimentos sobre o tema, a exemplo de vários outros processos semelhantes observados no fórum de Morfologia.

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Do ponto de vista da textualização, a identificação das diversas “redes de nós” (SHNEIDERMAN, 1998, p.553 apud SIGNORINI, 2013) na escrita dos participantes do fórum apontam para a apresentação de uma configuração hipertextual na construção (colaborativa) de conhecimentos em discussões em fóruns virtuais de aprendizagem. CONSIDERAÇÕES FINAIS A discussão apresentada neste texto relaciona-se à propagação de práticas de letramento mediadas por tecnologias computacionais digitais, especialmente em contexto educacional, e à importância da reconfiguração dessas práticas no sentido de uma participação mais interativa e mais colaborativa de estudantes em processos de construção de conhecimentos. Nesse caminho, buscamos analisar como se estruturaram a participação, a interação e a síntese de conhecimentos nas discussões de um fórum virtual educacional voltado à formação inicial de professores do Curso de Letras de uma universidade pública da região Centro-Oeste e ao debate sobre conteúdos de Morfologia da Língua Portuguesa. Mais especificamente, buscamos analisar as mensagens escritas de um grupo de partícipes desse fórum, em uma discussão acerca de classes de palavras, de forma a analisar o processo de construção colaborativa de conhecimentos, discutindo um movimento bidirecional, identificado, entre envolvimento mais ou menos colaborativo nesse processo. A análise das práticas sociointeracionais desse grupo permitiu identificar que a interação e a colaboração, em sua relação de interdependência, estão diretamente relacionadas à forma como os participantes do fórum coconstroem a competência interacional, entendida, aqui, como uma competência não individual, mas conjunta e específica a uma determinada prática de interação social (YOUNG, 2013). A esse respeito, as práticas que cada um dos participantes instancia na discussão permitiram identificar um processo colaborativo de construção de conhecimentos sobre classes de palavras que se apresenta, via escrita, por meio de links a outras mensagens de um mesmo tópico de discussão do fórum, a outros tópicos desse fórum, a textos de autores da área 285

que compuseram ou não o programa da disciplina e a situações de sala de aula. A apresentação da colaboração como um processo ligado à construção da competência interacional e materializado, via escrita, por configuração hipertextual, pretende contribuir para a compreensão da aprendizagem em fórum digital como uma questão de desenvolvimento da capacidade de trabalhar em grupo e de (inter)agir ativamente na apresentação e na construção de significados em práticas sociais de letramento.

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PERCURSOS DE NAVEGAÇÃO EM WEBSITE DE REPORTAGEM 360° Virgginia Laborão Inês Signorini

O

desafio da pesquisa sobre objetos de novas mídias não reside apenas na descrição das estruturas que compõem tais objetos, mas, sobretudo, em teorizar as experiências dos usuários/leitores/ internautas na interação com tais estruturas. Essa proposição é do pesquisador russo Lev Manovich (2001) e nos coloca a importância de investigarmos na contemporaneidade como as pessoas se relacionam com as novas mídias, que passaram a mediar nosso contato com o mundo. Elas tornaram-se cada vez mais presentes com a expansão do acesso a dispositivos, como computadores e smartphones, e a Internet, transformando a produção cultural, o que abarca, indubitavelmente, a produção jornalística. Se a entrada do jornalismo na Internet nos anos 2000 revelou-se um “afã publicador” (MARTINEZ, 2012) que primava tão somente pela instantaneidade da notícia, mais recentemente emergiram novos modelos de estrutura para as narrativas jornalísticas (NOGUEIRA, 2008) que buscam explorar as potencialidades das novas mídias, como as reportagens multimídia, os webdocumentários e as reportagens 360°. Essas novas formas jornalísticas criadas exclusivamente para a Internet nos comprovam a chegada de uma terceira fase na evolução do webjornalismo1, como propõe Nogueira (2008), ao citar as fases do webjornalismo descritas por Mielniczuk (2003), a partir de um estudo anterior desenvolvido por Palacios (2002): 1

A respeito, ver o artigo de Guimarães e Dornelles neste volume (Nota dos Organizadores).

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Nesse estágio, entre outras possibilidades, os produtos jornalísticos apresentam recursos em multimídia, como sons e animações, que enriquecem a narrativa jornalística; oferecem recursos de interatividade, como chats com a participação de personalidades públicas, enquetes, fóruns de discussões; disponibilizam opções para a configuração do produto de acordo com interesses pessoais de cada leitor/usuário; apresentam a utilização do hipertexto não apenas como um recurso de organização das informações da edição, mas também começam a empregá-lo na narrativa de fatos. (MIELNICZUK, 2003, p.36 apud NOGUEIRA, 2008, p.76)

Obviamente, cada novo modelo de narrativa jornalística que emerge nessa fase do webjornalismo apresenta variações dentre as possibilidades ressaltadas pela autora. De modo geral, observamos que emerge um novo panorama jornalístico que medeia os usuários/leitores/internautas com as informações que representam o mundo. Com isso, torna-se importante que os objetos de nova mídia que servem de suporte para a informação no século XXI sejam objeto de estudo, não só no ensino superior por meio da pesquisa empírica, como, sobretudo, no ensino básico. Isso porque a formação de competências, como a leitura crítica, passam a ter como meio não só suportes tradicionais e lineares, como o livro impresso, mas também as novas mídias que são hipermídia e multimídia, como os websites conectados na Internet. Sendo assim, é preciso que não só jornalistas entendam o comportamento dos usuários/leitores/internautas que navegam pelos conteúdos, mas também os professores que devem guiar os alunos por esses novos espaços de circulação do conhecimento. Para evidenciarmos a importância de aprimorarmos os estudos com base empírica sobre esses objetos, focamos nesse artigo um dos mais novos gêneros de webjornalismo, a reportagem 360°, dando continuidade à discussão iniciada em trabalho anterior (LABORÃO, 2015). A pesquisa investigou a construção de percursos de navegação por usuários/leitores/internautas do website jornalístico Transversus2- um projeto experimental de 2

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O website está disponível no endereço:

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conclusão do curso de Jornalismo da PUC-Campinas, concebido e realizado por um grupo de graduandos em 2013, e norteado pelo conceito de reportagem 360°. Nosso objetivo específico é o de apresentar resultados de uma investigação de base empírica sobre a seleção de hiperlinks e a utilização da rede hipermídia do Transversus por graduandos de dois cursos diferentes, conforme especificado mais adiante. A relevância desse estudo está no fato de que os modos de utilização dessa rede de hiperlinks compõem os percursos individuais de navegação e, em consequência, dão justamente indícios da experiência dos usuários/leitores/internautas com os objetos de nova mídia (MANOVICH, 2001). 1. O WEBSITE TRANSVERSUS Como mostra Ormaneze (2012), o conceito de reportagem 360°, que orientou a elaboração do website em estudo, foi cunhado pela edição colombiana do jornal El País, como uma maneira de se criar na Internet material jornalístico diferenciado do produzido diariamente para o portal online. Em entrevista a Thiago Domenici, do Observatório da Imprensa, o diretor de Novos Meios do jornal, Felipe Lloreda, explica que o jornalismo 360° é uma nova forma de informar, a partir de todos os ângulos. Surge da necessidade de provocar impacto e de nos ajustar aos usuários de hoje, àqueles que estão navegando em sites onde se obtém uma experiência virtual. É jornalismo interativo. É multimídia. É um pouco de tudo. É também uma aposta para conseguir mais visitas ao jornal diário tradicional online. A categoria: inovação jornalística, aproveitando todas as ferramentas que existem na web, por isso chama-se 360º. Porque graficamente podem-se visualizar as diferentes caras de um assunto. (apud DOMENICI, 2010, s/p)3.

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Disponível em < http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/as-diferentes-carasde-um-assunto> Acessado em: 02 jan.2015

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É preciso destacar também que, na reportagem 360°, o internauta tem a possibilidade de, a partir de uma tela introdutória sobre um determinado assunto, atualizar os percursos de navegação disponíveis clicando no hiperlink do subtema sobre o qual deseja obter informações. Com base no conceito desse gênero de webjornalismo, portanto, foi produzido um website sobre o tema da transgeneridade, sendo este um termo que abarca todas as identidades que transitam entre os gêneros convencionalmente designados por masculino e feminino. A preocupação central na escolha do tema para o website foi selecionar um tema amplo o bastante para possibilitar a abordagem jornalística na perspectiva da reportagem 360°, contemplando os vários ângulos e confrontando as opiniões. Após essa percepção, iniciou-se uma pesquisa pelos temas de interesse dos produtores do website, chegando às questões sociais de gênero e, depois, à transgeneridade e à patologização das identidades transgêneras. No processo de produção do website, foram realizadas entrevistas com sete pessoas transgêneras e nove especialistas de diversas áreas (sociologia, antropologia, psiquiatria, psicologia, direito) sobre a transgeneridade. Na etapa de edição jornalística, o conteúdo foi dividido em duas seções: perfis multimídia e reportagens multimídia. A seção de perfis mostra as histórias de vida das sete pessoas transgêneras por meio de produções audiovisual, escrita e fotográfica. Já as reportagens articulam informações e opiniões de todos os entrevistados sobre seis subtemas relacionados à vivência da transgeneridade em produções audiovisual e escrita. As reportagens intituladas “CID 10 F64”, “Sob o Véu”, “XX XY”, “Corpus”, “No papel” e “Estigma” revelam, respectivamente, os conflitos em torno da patologização das identidades transgêneras, a heteronormatividade na sociedade, o binarismo de gênero compreendido pela separação homem/mulher, as intervenções corporais realizadas no processo transexualizador, os entraves jurídicos para mudança de nome em documentos oficiais e o preconceito social vivido pelas pessoas transgêneras. Tais reportagens também foram compostas por textos escritos e produções audiovisuais, com o objetivo de constituírem um todo com partes que dialogassem entre si, sem informações repetidas

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nas diferentes mídias. As informações técnicas foram priorizadas nos textos escritos, enquanto os vídeos tinham como principal objetivo articular as opiniões mais pessoais. Mas é preciso salientar que construir uma interface gráfica que possibilite um objeto norteado pelo conceito de reportagem 360° só é de fato possível na medida em que a Internet possui a potencialidade da hipermídia. Manovich (2001) explica que a hipermídia deriva de um princípio importante para a nova mídia que é a variabilidade (2001, p. 56). De acordo com o autor, esse princípio denota que um objeto de nova mídia, como um website, por exemplo, não é algo fixado definitivamente, mas sim algo que detém a possibilidade de existir em outras versões a partir das diferentes interações que atualizam o objeto. Compreendemos, então, que tais objetos são variáveis e podem ser entendidos como “mutáveis”. Ainda segundo esse autor, como os elementos multimídia que compõem um objeto hipermidiático são conectados por hiperlinks, tais elementos e a estrutura que os organiza constituem esse objeto, embora sejam independentes entre si (2001, p. 57). Citando Dancosky (2015), a hipermídia pode ser entendida também como O conjunto de meios que permite acesso simultâneo a textos, imagens e sons de modo interativo e não linear, possibilitando fazer links entre elementos de mídia, controlar a própria navegação e, até, extrair textos, imagens e sons cuja sequência construirá uma versão pessoal desenvolvida pelo usuário (GOSCIOLA, 2003, p. 34 apud DANCOSKY, 2015, p.9).

Os websites na Internet são, portanto, configurações desse tipo de objeto próprio da hipermídia. Como define Manovich (2001, p. 195), um website é composto por uma lista sequencial de elementos separados, tais como blocos de texto, imagens, vídeos e links para outros websites. A partir desse conceito, compreendemos que

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criar trabalhos em novas mídias pode ser entendido como um continuum que vai desde a construção da interface certa para um database multimídia até a definição de métodos de navegação através de representações espacializadas (2001, p.192. Tradução nossa)4.

E como aponta Santaella (2003), as interfaces são cruciais porque consistem em fronteiras de negociação entre o humano e o maquínico. Segundo ela, Interfaces de boa qualidade permitem cruzamentos inconsúteis entre os dois mundos, facilitando assim o desaparecimento da diferença entre eles e, consequentemente, alterando o tipo de ligação entre os dois. (SANTAELLA, 2003, p. 92).

Manovich pontua que, em termos semióticos, a interface age como um código que carrega mensagens culturais (2001, p. 76). Nessa perspectiva, o código pode fornecer seu próprio modelo do mundo, seu próprio sistema lógico ou ideologia. Na perspectiva do autor, a interface das novas mídias produz uma organização das informações em “multiníveis”, projetando modelos distintos de mundo: Organizando dados em uma forma particular, a interface fornece modelos distintos do mundo. Por exemplo, um sistema de arquivos hierárquico pressupõe que o mundo pode ser organizado em uma lógica de hierarquia multi-níveis. Em contraste, um modelo hipertextual da World Wide Web modela o mundo como um sistema não hierárquico governado pela metonímia. Em suma, longe de ser uma janela transparente para os dados dentro de um computador, a interface traz consigo fortes mensagens de si própria. (MANOVICH, 2001, p. 76. Tradução nossa)5. 4 ������������������������������������������������������������������������������������� Creating works in new media can be understood as either constructing the right interface to a multimedia database or as defining navigation methods through spatialized representations.”(MANOVICH, 2001, p. 192) 5 “By organizing computer data in particular ways, the interface provides distinct models of the world. For instance, a hierarchical file system assumes that the world can be organized in a logical multi-level hierarchy. In contrast, a hypertext model of the World Wide Web models the world as a non-hierarchical system ruled by metonymy. In short, far from being a transparent window into the data inside a computer, the interface bring with it strong messages of its own.” (MANOVICH, 2001, p. 76.)

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No contexto das produções jornalísticas, a interface permite que o internauta se relacione com os conteúdos, sendo que a organização da maioria dos websites dos grandes veículos, os chamados portais, segue o esquema de colunas e a hierarquia linear das informações por meio da barra de rolagem: o que está no topo é supostamente mais importante; o que está embaixo, menos. Com isso, a navegação também se torna ideologicamente guiada de maneira linear e hierárquica, com pouca exploração do potencial rizomático da leitura/navegação própria dos objetos da hipermídia. Isso se explica, conforme Moherdaui (2008), porque os designers dos websites de notícias transportaram o conhecimento prático de diagramação dos jornais impressos para a Internet e o resultado acaba sendo a mera transposição do layout do papel para a tela. Ainda de acordo com essa autora, Partindo do pressuposto de que o computador é uma nova mídia e que o usuário não o opera, mas interage com ele, a lógica do design gráfico digital é a de que o projeto tem que ser elaborado para ser experimentado e não simplesmente utilizado. Pois a condição da informação na rede é a ação (BOLTER e GROMALA, 2003c, p.24, MANOVICH, 2001a, p.227), que exige que a interface seja dinâmica e não uma série de telas estáticas. (MOHERDAUI, 2008, p. 7).

E se retomarmos a noção de reportagem 360°, cujo objetivo é “informar a partir de todos os ângulos” oferecendo uma tela introdutória que possibilite a navegação do internauta para outras telas, não são apenas os elementos multimídia do objeto que vão ter papel decisivo na experiência do usuário/leitor/internauta. A configuração das interfaces com esse usuário/leitor/ navegador nos parece ser o outro elemento decisivo, na medida em que é em função dos modos de exploração dessas interfaces, com destaque para a exploração dos hiperlinks que as constituem que os internautas construirão seus percursos e farão sentido do objeto, no caso aqui focalizado, do Transversus. Como bem aponta Lévy (2006), a propósito dessas trajetórias dos internautas e do processo de construção do sentido na hipermídia, 293

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Se todo processo é interfaceamento, e portanto tradução, é porque quase nada fala a mesma língua nem segue a mesma norma, é porque nenhuma mensagem se transmite tal qual, em um meio condutor neutro, mas antes deve ultrapassar descontinuidades que a metamorfoseiam. A própria mensagem é uma movente descontinuidade sobre um canal e seu efeito será o de produzir outras diferenças. (LÉVY, 2006 [1997], p. 183)

1.1 AS INTERFACES No caso do website Transversus, a maioria dos elementos que o compõem são comuns aos websites jornalísticos atuais: textos, imagens, vídeos e links. Os gêneros jornalísticos presentes são comuns a esses portais, tais como reportagens escritas, perfis escritos de entrevistados, ensaios fotográficos e minidocumentários audiovisuais, cada gênero com seus elementos específicos. Mas para fugir da mera transposição do design do jornal impresso para a tela, foi abolida a barra de rolagem em suas páginas principais. O recurso da rolagem apenas se faz presente nas páginas de mídia escrita, ou seja, em blocos de texto mais longos. Dessa forma, procurou-se ampliar a possibilidade de não hierarquização dos conteúdos e de uma navegação mais “livre” dos internautas. Além disso, inverteu-se a hierarquia comumente utilizada na grande mídia da Internet, em que as produções audiovisuais funcionam como coadjuvantes do texto escrito, e não como protagonistas. Por isso, o vídeo aparece em primeiro plano no layout, enquanto o link de acesso ao texto deve ser procurado pelo internauta na interface. Se retomarmos a ideia de Manovich (2001, p.192), de que a criação de trabalhos em novas mídias pode ser compreendido como a construção da interface adequada para um database multimídia e também como a definição de métodos de navegação para representações especializadas, podemos dizer que as interfaces que constituem o website Transversus têm características que o situam entre os dois extremos descritos pelo autor. Como 294

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explica ele, na ponta de um continuum estão websites e programas em hipermídia cujo objetivo é a maximização da eficiência no acesso à informação pelo internauta. Na outra ponta, estão principalmente jogos em que se busca a imersão do internauta em determinado universo virtual. Para Manovich, entre esses dois casos há matizes, como, “por exemplo, uma imagem que incorpora em si uma série de hiperlinks, oferecendo tampouco uma verdadeira ‘imersão’ psicológica e nem também uma navegação fácil, visto que o usuário precisa procurar hyperlinks” (MANOVICH, 2001, p. 192. Tradução nossa6) para continuar a navegação no ambiente hipermídia em questão. As interfaces que constituem o website Transversus pretendem tanto possibilitar a busca imediata de informações num “clique”, quanto criar potencialidades de navegação a serem buscadas pelo usuário através de hiperlinks acionáveis em imagens e boxes. Conforme descrito a seguir, ao todo, o layout inicial do website propõe ao usuário/leitor/internauta 13 possibilidades de iniciar seu percurso pelo website. 1.2 A REDE DE HIPERLINKS Logo de início, o internauta tem a possibilidade de assistir a uma produção audiovisual introdutória, que resume a proposta do website. Pode também clicar em uma das seis opções do menu escrito lateral na página principal, como mostrado na Figura 1, a seguir. A partir dos hiperlinks acionados através dos títulos escritos (e que encaminharão o internauta para as reportagens), são propostas seis possibilidades de início de percurso. O internauta possui ainda outras sete possibilidades de entrada no website, acessando os hiperlinks acionáveis pelas fotografias dispostas no scroll horizontal, como é possível ver na Figura 2 abaixo. A função atribuída a tais hiperlinks embutidos em imagens e boxes é a de servir de porta ou passagem para maior “imersão” no universo da transgeneridade. Assim, clicando nas fotografias das pessoas transgêneras, o internauta terá acesso ao 6

“For instance, an image which embeds within itself a number of hyperlinks offers neither a true psychological “immersion” nor easy navigation since the user has to search for hyperlinks”(MANOVICH, 2001, p.192)

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perfil multimídia de cada pessoa que, como foi exposto anteriormente, é composto por um texto escrito, um minidocumentário e um ensaio de fotografias que revelam o universo particular de cada um deles e sua relação com a transgeneridade e seus desdobramentos sociais.

Figura 1 - Detalhe da página inicial: link do menu escrito que dá acesso às reportagens do website.

Figura 2 - Detalhe da página inicial: link do menu fotográfico que dá acesso aos perfis do website.

Como é possível observar nas figuras, ao passar o mouse sobre um hiperlink, surgem breves descrições da reportagem ou do perfil em questão. Essas descrições são importantes, pois são pistas que pretendem ajudar o internauta a escolher onde clicar, tendo em vista que nem o menu escrito, nem as fotografias 296

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apontam com clareza para o conteúdo para o qual o internauta será redirecionado após o clique. Por meio desses hiperlinks embutidos nas fotografias e no menu escrito, são acessadas páginas semelhantes às das figuras 3 e 4, a seguir. Figura 3 – Detalhe da página acessada através de link embutido no menu escrito: link para o texto da reportagem

Figura 4 - Detalhe da página acessada através de link embutido na fotografia: acima, link para o ensaio de fotos e abaixo, para o texto escrito.

Nas páginas de reportagem ou de perfil, uma das opções do internauta para continuar a navegação é clicar em algum dos hiperlinks no menu superior que levam para as reportagens. Já outra opção para prosseguir é clicar no link “Versos” para acessar os textos das reportagens e clicar nos hiperlinks dispostos ao longo 297

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do texto escrito, podendo ser levado para outras reportagens e para os perfis. Uma terceira opção seria o internauta retornar à página principal. A essa rede de hiperlinks, portanto, é atribuída a função de possibilitar ao internauta percursos de navegação que o levem a atribuir sentido ao tema da transgeneridade sob diversos ângulos. 2. UMA ATIVIDADE EXPERIMENTAL COM O TRANSVERSUS Com o objetivo mais geral de identificar e descrever pistas da experiência do internauta/leitor/navegador ao interagir com o website em estudo, foi proposta a quatro grupos de graduandos uma atividade experimental de exploração do website, em 2014. Tratou-se de uma atividade experimental porque foi controlado o tempo de navegação, foram gerados registros gravados da tela do computador, do som e da imagem do internauta participante durante esse tempo, e feitas entrevistas individuais semiestruturas após o término da atividade. (cf. LABORÃO, 2015, p 21-25). Participaram da atividade 20 voluntários, sendo 10 graduandos de Jornalismo da PUC-Campinas e 10 graduandos de Letras da Unicamp. Cinco, de cada um desses grupos de 10, estavam cursando o 2º ano, e os outros cinco, o 4º ano. Foram determinados esses anos para a pesquisa, tendo em vista que, assim, poderíamos levantar hipóteses sobre qual foi o impacto dos conhecimentos adquiridos durante a graduação. Em cada um dos quatro grupos de cinco havia três mulheres cisgêneras e dois homens cisgêneros, um critério estipulado em consequência da proporção de mulheres e homens cisgêneros nos cursos focalizados. Não foi observado através dos instrumentos de coleta de dados escolhidos para a pesquisa se houve alguma relação entre o percurso de navegação e o gênero do indivíduo. Por fim, selecionamos esses perfis de curso, porque consideramos que as graduações em Jornalismo e Letras oferecem subsídios teóricos e práticos em suas grades curriculares para a exploração de ambientes hipermidiáticos do tipo em estudo. A primeira parte da atividade experimental consistiu na navegação livre dos participantes da pesquisa pelo website, registrada através do software Camtasia Studio, que gravou a tela do compu298

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tador, o áudio e a imagem do rosto de cada participante por meio de webcam. Cada voluntário foi informado de início que teria 30 minutos para navegar pelo website e que, após o término desse prazo, passaria por uma entrevista semiestruturada individual com a pesquisadora para relatar as estratégias de navegação/ leitura que utilizou e responder as seguintes perguntas: • O que você achou do site? Você acha que ele foi feito com qual objetivo? Para que tipo de público? • O que lhe pareceu mais relevante em termos de informação? Por quê? • Lembra-se de onde e como obteve essas informações? • Quais foram suas estratégias de leitura e navegação pelo site? • Você acredita que explorou os hiperlinks? Quais lhe pareceram mais interessantes e por quê? • Do que você viu, você consegue estabelecer alguma relação entre os textos e vídeos? Quais? • Quais foram suas dificuldades de leitura/navegação? • Você já tinha visitado outro site desse tipo antes? Se sim, qual/ quais?

Para sistematização e análise dos registros de navegação dos participantes, foi utilizado o modelo de estudo de busca de informações em ambiente digital proposto por Ellis (1989) e revisto por Shankar et al (2005). Tendo em vista que esse modelo diz respeito a buscas mais amplas na Internet, foram necessárias adaptações para o contexto de descrição e análise dos percursos de navegação no website específico aqui focalizado. O modelo propõe um conjunto de seis estágios de operações para a busca de informações na Internet, conforme descritos a seguir: • Início (starting): identificação de fontes de interesse que podem servir como começo para a busca. No caso específico desta pesquisa, o início está relacionado com a página inicial do website, tendo em vista que é a partir dela que ocorre a navegação. • Encadeamento (chaining): ações que dão seguimento à busca de informações por meio de hiperlinks, sendo que o internauta pode

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empreender um encadeamento “para frente”, isto é, quando a clicagem ocorre em um hiperlink não acessado anteriormente, ou “para trás”, ou seja, quando o internauta retorna para algum ponto já visto. • Navegação (browsing): visualização das páginas, dizendo respeito à procura semidirecionada em áreas com potencial de informações. O modelo de análise proposto por Ellis (1989) e revisto por Shankar et al (2005) descreve dessa maneira a etapa de “navegação”, mas, por conta das especificidades que a navegação em um único website multimídia possui, adaptamos subcategorias que pudessem auxiliar na sistematização e análise dos percursos de navegação identificados nesta pesquisa e que serão descritos a seguir. Foram adaptados os subestágios de “movimentos de navegação” que correspondem a comportamentos como posicionamento de mouse em cima de hiperlinks, movimento da barra de rolagem, visualização da página sem movimentação de mouse e o “mouse perdido”, no qual o internauta “varre” a interface sem direcionar-se para um hiperlink específico. Além disso, foram delimitados subcategorias para os acessos às mídias, tendo em vista a multimodalidade do Transversus. A primeira subcategoria é a de navegação audiovisual, que ocorre quando o participante acessa um vídeo, isto é, aperta play em algum vídeo. A segunda é a de navegação textual, que diz respeito ao acesso do participante às páginas de texto escrito. Por fim, a subcategoria de navegação imagética constitui o acesso aos ensaios de fotografias presentes somente na seção de perfis. É importante pontuarmos que essas três últimas subcategorias descritas dizem respeito apenas ao acesso a essas produções, o que não garante que o usuário/internauta tenha assistido/lido/visto todas elas. • Diferenciação (differentiating): filtragem e seleção de informações por meio da avaliação da natureza e qualidade da informação que está sendo oferecida. Segundo o modelo de referência, essa categoria pode ser subdividida entre primária e secundária. A diferenciação primária refere-se à avaliação apenas do conteúdo, enquanto a secundária leva em consideração outras variáveis,

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como a relevância e a autoridade da fonte de informação. Em uma situação de pesquisa ampla na Internet, através de ferramentas de busca, essa etapa diz respeito à seleção que o internauta faz dos websites que aparecem como resultado a partir da busca por determinada palavra-chave. Como, no caso do Transversus, há apenas o próprio website como fonte, consideramos nessa etapa apenas a seleção feita através da escolha dos hiperlinks, ou seja, restrita às possibilidades dadas. Com isso, observamos apenas a diferenciação primária, aquela que diz respeito à avaliação da natureza da informação oferecida. Neste caso, o internauta seleciona em qual hiperlink clicar pela avaliação das temáticas das reportagens ou das características da pessoa que foi entrevistada para a seção de perfis. • Monitoramento (monitoring): acompanhamento regular de uma fonte de informação específica por meio de feeds, e-mails ou RSS. No caso desta pesquisa em específico, essa etapa não pôde ser observada, tendo em vista que o Transversus não tem mecanismo de assinatura nem atualizações. • Extração de informações (extracting): retirada de conteúdos dos objetos digitais, sendo multimídia ou não. Essa etapa também é subdividida em primária e secundária, sendo que a extração secundária refere-se à retirada de informações com elaboração feita pelo próprio usuário/leitor/internauta, enquanto a primária diz respeito a esse processo realizado sem síntese ou reflexão. • Dispersão: distração durante a navegação. Essa etapa foi criada para este estudo graças à gravação da imagem do rosto do participante por meio da webcam. Assim, se o voluntário da pesquisa teve algum comportamento que o distraiu durante a navegação, como mexer no celular ou olhar para os lados, isso também foi computado na sistematização dos dados.

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2.1 PERCURSOS PRODUZIDOS A identificação, nos registros coletados durante a atividade experimental, dos estágios de busca de informação descritos anteriormente, nos ajudaram a detectar como ocorreu a construção dos percursos de navegação no website Transversus feitos pelos graduandos que participaram da pesquisa. As análises comparativas dessas etapas, apresentadas a seguir, contemplam apenas os dados de 16 participantes do nosso estudo, pois foram excluídos os dados de quatro integrantes, um de cada grupo focalizado na pesquisa, pois apresentaram resultados muito discrepantes em relação às médias dos grupos. Os critérios utilizados para a exclusão desses dados foram o número muito acima da média de abas abertas no browser, bem como de movimentos de navegação e/ou soma das demais etapas de busca de informação que compuseram os percursos pelo website. Outro critério utilizado foi o da ocorrência de comportamentos incomuns no contexto geral dos registros coletados na pesquisa (mas que são comuns no cotidiano), como a leitura de um texto e a visualização de um vídeo simultaneamente, comportamento conhecido como multitask (multitarefa) e que deverá ser abordado em artigos futuros. Destacamos na sequência a análise das etapas de início, encadeamento, diferenciação e navegação. O estágio de extração de informações não foi passível de análise por meio dos registros coletados, apontando para a necessidade do aprimoramento de instrumentos de coleta de dados mais qualitativos para a realização dessa análise. Como já descrito anteriormente, o usuário/ leitor/internauta do Transversus inicia seu percurso pela página principal, realiza diferenciações para escolher onde clicar e faz, em seguida, um encadeamento que é, na realidade, o clique, chegando até alguma das produções (vídeo/texto/ensaio de fotos) presentes no website. A questão importante é, então, como cada grupo focalizado no estudo realiza essas etapas dentre as possibilidades ofertadas pelo objeto hipermidiático que é o website. A partir dos registros coletados, foi verificada uma correlação entre a quantidade de produções assistidas/lidas/vistas, isto é,

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vídeos assistidos/ textos lidos/ ensaios fotográficos vistos7, e o número de encadeamentos realizados: quanto maior o número de links acessados, maior o número de conteúdos acessados e, portanto, maior a oportunidade de exposição às informações contidas em cada nó da rede. Como mencionado anteriormente, a interface do Transversus apresenta características que estão entre os extremos do continuum acesso fácil à informação e imersão no universo da transgeneridade. Não dispondo de pistas claras sobre os conteúdos das telas linkadas, o internauta é levado a efetuar um maior número de clicagens, adotando um comportamento mais ativo em relação à interface. Com isso, os usuários que mais clicaram conseguiram chegar a um número maior de conteúdo, construindo percursos de navegação com acesso a uma quantidade maior de vídeos/textos/fotos. Tal hipótese é verificável na medida em que os participantes de 2º ano de Jornalismo obtiveram um número total maior de vídeos assistidos, textos lidos e ensaios de fotografias vistos: Tabela 1 - Comparação de encadeamentos e inícios com o total de produções assistidas/lidas/vistas - 2º ano de Jornalismo

Os participantes de 2º ano de Jornalismo tiveram o índice mais alto referente ao número de vídeos assistidos/ textos lidos/ fotos vistas, assim como ao total de encadeamentos, que variou de 19 a 26. A quantidade de inícios também foi elevada. Ao observarmos o percurso de navegação do conjunto de participantes, os do 2º ano de Jornalismo realizaram mais inícios durante os 30 7

Foram considerados assistidos os vídeos nos quais os internautas permaneceram mais de 40% do tempo de duração total do vídeo. Já para os textos escritos, os critérios para determinar se o texto foi lido foram o tempo de permanência na página, a movimentação da barra de rolagem e o movimento dos olhos do participante. Os ensaios de fotografias não sofreram essa diferenciação, na medida em que ao acessá-los, o participante já observa as imagens (LABORÃO, 2015, p. 42, 43, 51, 52, 58).

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minutos de atividade experimental, o que aumentou o número de encadeamentos durante o percurso, tendo em vista que é necessário realizar um encadeamento para trás para se chegar até a home e um encadeamento para frente para prosseguir até a página seguinte. Os percursos de navegação dos participantes desse grupo não apresentaram nenhum encadeamento para frente por meio de hiperlinks contidos nos textos escritos. No caso dos participantes que acessaram perfis e reportagens, o caminho feito por eles para transitar entre perfis e reportagens foi o de retornar à página inicial. Outra característica desse grupo foi a série de encadeamentos sem que houvesse, na sequência, navegação audiovisual/textual/imagética. Como será mostrado mais à frente, essa foi uma estratégia utilizada para a seleção de hiperlinks e fez com que o número de encadeamentos também fosse maior. Tabela 2 - Comparação de encadeamentos e inícios com o total de produções assistidas/lidas/vistas - 2º ano de Letras

Já no grupo de 2º ano de Letras, conforme a Tabela 2, o número de produções assistidas/lidas/vistas foi menor, se comparado ao grupo anterior. O total de encadeamentos também foi inferior, com a variação entre 6 e 15, além de apenas um participante do grupo ter feito mais de um início. Com exceção do participante B-2L, que não acessou nenhum texto escrito, todos realizaram pelo menos um encadeamento para frente por meio de hiperlinks contidos nos textos escritos, sendo que foi por esse caminho que eles chegaram até os perfis. Dessa forma, o índice de inícios foi menor em relação ao grupo do 2º ano de Jornalismo. Os participantes praticamente não retornaram para a página inicial, o que diminuiu o número de encadeamentos para trás. 304

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Outro fator preponderante neste grupo foi a baixa ocorrência de encadeamentos para frente não seguidos de alguma navegação audiovisual/textual/imagética. A partir dessas considerações, já é possível perceber que esses dois primeiros grupos, de 2º ano de Jornalismo e de Letras, apresentaram comportamentos bem distintos para a construção dos percursos de navegação por meio da clicagem. Enquanto os participantes de Letras construíram seus percursos de navegação clicando nos hiperlinks escritos, tanto no menu quanto nos textos escritos de reportagem ou de perfil, os participantes de Jornalismo optaram por efetuar mais cliques nos hiperlinks embutidos nas fotografias dispostas no scroll da página principal. Como veremos mais detidamente à frente, a análise da etapa de diferenciação/seleção dos hiperlinks poderá nos dar outros indícios sobre a construção do percurso. Tabela 3 - Comparação de encadeamentos e inícios com o total de produções assistidas/lidas/vistas - 4º ano de Jornalismo

Conforme mostra a Tabela 3, os grupos de 4º ano, tanto de Jornalismo quanto de Letras, tiveram percursos mais heterogêneos. No que diz respeito aos do 4º ano de Jornalismo, o número total de mídias assistidas/lidas/vistas foi 8 e 7. Esse total é ligeiramente mais alto em relação ao que foi verificado no 2º ano de Letras, assim como o número total de encadeamentos também foi maior em comparação com esse grupo. Os participantes do 4º ano de Jornalismo realizaram apenas encadeamentos seguidos de produções assistidas/lidas/vistas, salvo dois casos de apenas acesso pelos participantes A-4L e B-4L. Com isso, pudemos perceber que há um índice alto de aproveitamento de conteúdo em cada nó da rede de hiperlinks. Conforme se pôde verificar, apenas um participante desse grupo, D-4J, clicou em hiperlinks no texto, sendo que este foi o caminho utilizado por ele para acessar os perfis. Os participantes B-4J e C-4J retornaram para a página 305

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inicial para chegar à seção de perfis. Já A-4J permaneceu apenas nas reportagens, não acessando os perfis. Um traço comum nas explicações dadas pelos participantes desse grupo sobre as estratégias de navegação empreendidas foi a de seguir o que chamava mais atenção, principalmente os títulos das reportagens e o que tais palavras poderiam significar no contexto da transgeneridade. Tabela 4 - Comparação de encadeamentos e inícios com o total de mídias assistidas/ lidas/vistas - 4º ano de Letras

Como é possível observar na Tabela 4, os percursos dos participantes de 4º ano de Letras podem ser divididos em dois subgrupos: o primeiro (A-4L e B-4L) cujo número total de produções assistidas/lidas/vistas, o número de encadeamentos e número de inícios foram baixos, e o segundo (C-4L e E-4L) cujos índices foram mais elevados. Os participantes A-4L e B-4L realizaram percursos de navegação com menos ocorrências das etapas de navegação, sendo compostos por poucos encadeamentos. Este último participante chegou a realizar apenas 4 encadeamentos para frente. Já os participantes C-4L e E-4L construíram percursos mais extensos, com número maior de encadeamentos – com índices próximos aos dos participantes de 2º ano de Jornalismo. Dentre os participantes deste grupo, apenas E-4L clicou em hiperlinks presentes no texto. No entanto, esse não foi o caminho que o fez chegar até os perfis, mas sim um novo início. Outro participante que acessou os perfis neste grupo foi o C-4L, também por meio de retorno para a página inicial. Já os participantes A-4L e B-4L não acessaram os perfis, sendo que o primeiro realizou um reinício, mas continuou seu percurso clicando em outro hiperlink para reportagem. Em suma, foi possível observar que os percursos de navegação compostos por maior número de encadeamentos obtiveram,

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em sua maioria, também número total maior de mídias assistidas/lidas/vistas durante o percurso de navegação. Mas é preciso buscar compreender também como a escolha desses hiperlinks, através dos quais ocorreram os encadeamentos, pode nos indicar o processo de construção dos percursos de navegação. 2.2 SELEÇÃO DE HIPERLINKS A etapa de busca de informação compreendida como a de seleção de hiperlinks é aqui intitulada de diferenciação, como descrevemos ao apresentarmos o modelo de análise dos dados. Essa etapa precede o clique que dará continuidade ao percurso de navegação no website. A investigação sobre a motivação do clique do usuário/internauta em determinado hiperlink pode nos dar pistas sobre os modos de construção dos percursos de navegação individuais. Nos registros de navegação dos participantes desta pesquisa, foram encontrados quatro tipos de diferenciação, sendo elas através de: a) Posicionamento de mouse em hiperlinks escritos; b) Posicionamento de mouse em hiperlinks imagéticos; c) Posicionamento de mouse em hiperlinks escritos durante a navegação audiovisual; d) Posicionamento de mouse em hiperlinks escritos, seguido de encadeamentos para frente. O tipo (a) de diferenciação diz respeito ao posicionamento de mouse em hiperlinks escritos que podem levar o internauta até as reportagens. Como já descrito anteriormente, quando se coloca o mouse sobre esse hiperlinks, um box é aberto com informações sobre a reportagem. Dessa forma, o internauta pode selecionar qual reportagem deseja ver, tendo como critério de escolha os subtemas sobre a transgeneridade. 307

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Já a diferenciação de tipo (b) relaciona-se com a série de posicionamentos de mouse sobre as fotografias de pessoas transgêneras presentes no scroll da página inicial do website. Caso o internauta coloque o mouse em cima de alguma fotografia, o scroll para de girar, a fotografia fica colorida e surgem informações sobre o entrevistado, tais como nome, idade e profissão. Já a diferenciação de tipo (c) é aquela empreendida pelo internauta durante a navegação audiovisual, ou seja, enquanto assiste a algum vídeo. Tendo em vista que na página em que se vê o vídeo só há o menu superior com hiperlinks escritos, essa diferenciação permite que o internauta veja informações que se referem somente às reportagens. A última diferenciação encontrada também se relaciona com o menu superior presente nas páginas, sendo a que é realizada por meio de posicionamentos de mouse e encadeamentos para frente. Na diferenciação de tipo (d), o internauta realiza uma sequência de posicionamentos de mouse, seguidos de clicagem nos hiperlinks. São apresentados nas tabelas 5, 6,7 e 8 os dados referentes aos tipos de diferenciação verificados nos percursos dos quatro grupos estudados nesta pesquisa. A tabela 5 expõe os dados referentes ao grupo de 2º ano de Jornalismo. É possível perceber que a maioria das diferenciações feitas pelos participantes desse grupo ocorreu por meio de posicionamentos de mouse em hiperlinks fotográficos. Tabela 5 - Diferenciações nos percursos - 2º ano de Jornalismo 2º JORNALISMO Diferenciação A

Diferenciação B

Diferenciação C

Diferenciação D

A-2J

0

3

0

1

C-2J

1

2

0

0

D-2J

1

4

0

0

E-2J

0

0

1

2

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Tal grupo foi o que mais empreendeu diferenciações durante o percurso, com o mínimo de quatro ocorrências no período do experimento. Tal comportamento surge como uma evidência do que os participantes desse grupo afirmaram nas entrevistas. Quando questionados sobre quais hiperlinks mais lhes interessaram, os participantes A-2J, C-2J e D-2J afirmaram que foram as fotografias das pessoas transgêneras que encaminham para os perfis, revelando que o percurso foi construído por eles a partir do apreço imagético. Já o participante E-2J, que preferiu as reportagens, realizou mais diferenciação do tipo D, a qual se deu através de posicionamentos de mouse e encadeamentos para frente. Outro aspecto recorrente na diferenciação dos participantes desse grupo foi a ocorrência do “mouse perdido”, isto é, da movimentação do mouse sem direcionamento para nenhum hiperlink especificamente, em conjunção com a própria diferenciação. Já nos percursos do grupo de 2º ano de Letras, se pôde verificar uma predominância por diferenciações em hiperlinks escritos, sendo esses os que encaminham para as reportagens, conforme aponta a Tabela 6: Tabela 6 - Diferenciações nos percursos - 2º ano de Letras 2º LETRAS Diferenciação A

Diferenciação B

Diferenciação C

Diferenciação D

A-2L

1

0

0

0

B-2L

1

0

0

0

C-2L

1

1

0

1

D-2L

1

0

0

0

Um aspecto comum entre os graduandos deste grupo foi a realização da diferenciação apenas no começo do tempo da atividade experimental para coleta de dados. Esse aspecto confirma o relatado pelos participantes durante as entrevistas sobre a estratégia de navegação: ver, primeiro, os subtemas do

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website para depois seguir por aqueles que mais lhes interessavam. Percebemos, então, que os percursos dos participantes desse grupo foram construídos linearmente, na medida em que eles selecionaram os hiperlinks após lerem todos os disponíveis, pré-estabelecendo uma sequência linear. Assim, compreendemos que o percurso desse grupo foi sustentado pela linearidade da linguagem escrita. A ausência neste grupo de diferenciação do tipo B, que diz respeito ao posicionamento de mouse em cima das fotografias, evidencia que o caminho construído pelos participantes desse grupo para chegar até os perfis se deu por meio dos hiperlinks nos textos, e não através de diferenciação pela imagem. Até mesmo o participante C-2L, que realizou uma diferenciação desse tipo, acabou por realizar um encadeamento em seguida que o levou até uma reportagem sem que ele empreendesse sequer a navegação audiovisual na página de perfil, que está em primeiro plano. Já os participantes de 4º ano de Jornalismo apresentaram comportamentos heterogêneos em relação às diferenciações. Eles empreenderam diferenciações tanto por meio de posicionamentos em links escritos quanto em fotografias, conforme descrito na Tabela 7, abaixo, sendo que o participante B-4J fez mais uso da diferenciação através dos links embutidos nas fotografias no scroll. Tabela 7 - Diferenciações nos percursos - 4º ano de Jornalismo 4º JORNALISMO Diferenciação A

Diferenciação B Diferenciação C Diferenciação D

A-4J

1

1

0

0

B-4J

1

2

0

0

C-4J

1

1

0

1

D-4J

1

0

0

0

Outra característica que diz respeito a este grupo é o fato de os participantes realizarem mais de uma diferenciação ao longo do percurso de navegação, não apenas nos primeiros cin310

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co minutos da atividade experimental. Durante a entrevista, os participantes desse grupo relataram que clicaram primeiramente nos hiperlinks que mais chamaram atenção, sem ler as informações sobre a reportagem. Com isso, eles precisaram realizar outras diferenciações durante o percurso para saber por onde dar seguimento à navegação. O grupo de 4º ano de Letras também apresentou comportamento diversificado no que diz respeito à etapa de diferenciação, conforme descrito na Tabela 8, a seguir: Tabela 8 - Diferenciações nos percursos - 4º ano de Letras 4º LETRAS Diferenciação A

Diferenciação B

Diferenciação C

Diferenciação D

A-4L

2

0

0

0

B-4L

3

0

0

0

C-4L

0

1

1

0

E-4L

1

1

1

1

Como é possível ver na tabela 8, os participantes C-4L e E-4L realizaram variados tipos de diferenciação ao longo do percurso de navegação, utilizando as diferenciações por posicionamento de mouse em hiperlinks escritos, em hiperlinks fotográficos, além da realização da diferenciação durante a visualização de vídeo e da diferenciação que une encadeamentos e posicionamentos de mouse. Já os participantes A-4L e B-4L realizaram apenas a diferenciação do tipo A, composta por posicionamentos de mouse em hiperlinks escritos. Isso nos evidencia como se construíram os percursos de navegação desses participantes. Por conta do tipo de diferenciação realizada, estes dois últimos participantes acessaram apenas as reportagens. Já os participantes C-4L e E-4L acessaram, além das reportagens, também perfis.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo como ponto de partida o clique na interface, aqui analisada através das etapas de encadeamento e diferenciação na busca de informação, foi possível perceber comportamentos interessantes de como os participantes da pesquisa construíram seus percursos de navegação no website Transversus. Relembrando Manovich, tais trajetórias do internauta são próprias da hipermídia, na medida em que os databases parecem como coleções de itens em que o usuário pode executar várias operações: ver, navegar, pesquisar. A experiência do usuário em tais coleções computadorizadas é, portanto, bastante distinta da leitura de uma narrativa ou de assistir a um filme (MANOVICH, 2001, p.194. Tradução nossa8)

Frente a essa colocação, uma comprovação interessante da experiência do usuário no ambiente hipermídia do gênero de reportagem 360° Transversus foi a correlação entre a quantidade de encadeamentos realizados pelo participante na estrutura do objeto de nova mídia e o total de elementos acessados no database multimídia do website, ou seja, total de produções assistidas/lidas/ vistas por ele. Em linhas gerais, um comportamento mais ativo em relação à interface desencadeou maior aproveitamento dos conteúdos presentes em cada nó da rede, tornando o acesso a informações potencialmente mais rico. É interessante salientar que essa lógica faz sentido na reportagem 360°, sobretudo porque a barra de rolagem nesse gênero não serve como mecanismo para encontrar informações. Com isso, o clique é totalmente necessário para que o usuário seja exposto ao conteúdo e possa construir sua narrativa hipermidiática. Foi possível perceber que os participantes de 2º ano de Jornalismo basearam a etapa de diferenciação no apreço imagético, isto é, escolhendo onde clicar por meio das imagens dispostas no scroll da página inicial. O tipo de seleção de hiperlink feito por 8

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“They appear as collections of items on which the user can perform various operations: view, navigate, search. The user experience of such computerizes collections is therefore quite distinct from reading a narrative or watching a film” (MANOVICH, 2001, p. 194)

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esse grupo impactou, obviamente, nos próprios percursos de navegação, tendo em vista que os participantes construíram seus caminhos a partir dos perfis de pessoas transgêneras, acessandoos por meio dos hiperlinks fotográficos. Já os participantes de 2º ano de Letras realizaram mais diferenciação por meio dos hiperlinks escritos, que encaminham para as reportagens, no início da atividade experimental. Isso revela que eles buscaram estabelecer uma estratégia de navegação com base nas informações descritas sobre os subtemas em relação à transgeneridade. Não podemos afirmar que esses hiperlinks são de fato menos complexos do que as imagens, na medida em que as palavras ali dispostas não eram tão transparentes ao usuário/ internauta. Mas esse comportamento nos mostra que esses participantes tiveram maior apreço pelo texto escrito. Durante as entrevistas, inclusive, os participantes desse grupo revelam o incômodo de haver poucas informações escritas na página principal do website. Com isso, eles acabaram apoiando-se nos poucos textos escritos presentes nos hiperlinks. Nos resultados do grupo de 4º ano de Jornalismo, houve a ocorrência tanto de diferenciação por meio de hiperlinks escritos quanto fotográficos, o que revela uma habilidade de trânsito entre essas duas linguagens. Além disso, eles realizaram mais de uma diferenciação ao longo do percurso, na medida em que a primeira clicagem realizada por eles foi feita sem diferenciação, mas pelo critério do que chamava atenção na interface. Já os participantes de 4º ano de Letras tiveram comportamentos heterogêneos em relação à diferenciação. Dois participantes, A-4L e B-4L, realizaram apenas diferenciação por meio de hiperlinks escritos. Já os participantes C-4L e E-4L misturaram diferentes tipos de diferenciação ao longo do percurso de navegação. Esses resultados nos mostram que os diferentes grupos tiveram relações diferentes com a interface do website e criaram estratégias diferentes para construírem seus percursos: o grupo de 2º ano de Jornalismo apoiou-se majoritariamente nas imagens para tecer a trajetória pelo website, enquanto os participantes do 2º ano de Letras basearam-se na escassa linguagem escrita da interface. Já os grupos de 4º ano apresentaram comportamentos completamente heterogêneos. De modo geral, foi surpreendente 313

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o baixo índice de diferenciação por meio das fotografias do scroll horizontal da página inicial, tendo em vista que as imagens ocupam a maior parte do espaço da home e, teoricamente, deveriam chamar mais a atenção dos internautas – pelo menos no planejado pelos produtores do website. Contudo, a incerteza sobre para onde essas fotografias levariam fez com que os participantes, principalmente os de 2º ano de Letras, procurassem o terreno mais seguro para eles: o texto escrito. Essas discussões só foram possíveis através da análise das etapas de encadeamento e diferenciação, mostrando quão crucial é investigar os vestígios deixados pelos usuários/leitores/ internautas durante o processo de construção do percurso de navegação em websites – e que podem ser registrados através da coleta empírica. De modo mais amplo, as discussões empreendidas nesse artigo implicam desdobramentos importantes, sobretudo ao dar subsídios para estudos futuros sobre as narrativas hipermidiáticas (MANOVICH, 2001) e nas pesquisas em linguagem com base empírica que nos ajudem a compreender as novas necessidades para o ensino. A partir das reflexões teóricas, percebemos que os estudos nessa área tornam-se cada vez mais multifacetados, exigindo reflexão teórica sobre os parâmetros de coleta, sistematização e análise dos dados empíricos, na medida em que é a partir deles – e não apenas de hipóteses teóricas – que conseguimos investigar a experiência dos usuários/leitores/ internautas. Assim, será possível compreender de maneira mais aprofundada e frutífera sobre como nós, usuários/leitores/internautas da hipermídia, construímos nossas narrativas sobre o mundo hoje mediado pela nova mídia.

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OS AUTORES E ORGANIZADORES Adair Vieira Gonçalves – Doutor em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista/UNESP, campus de Araraquara, com estágio doutoral na Universidade de Genebra, na Faculdade de Educação e Psicologia da Linguagem. Desde 2008, atua na graduação e na pós-graduação da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Pesquisador do CNPq e líder do Grupo de Pesquisa Gêneros Textuais/ Discursivos na Formação de Professores. Tem experiência no campo aplicado dos estudos da língua(gem), atuando nos seguintes temas: letramentos(s); ensino-aprendizagem da língua materna e formação de professores. E-mail: [email protected] Bárbara de Freitas Farah – Graduada em Língua Portuguesa e Inglesa e respectivas literaturas pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Mestre em Ensino de Língua e Literatura pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: [email protected] Clara Dornelles –  Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas, onde desenvolveu pesquisa sobre a inovação na formação de professores de português como língua materna. Desde 2008, atua como docente no curso de Letras e no Mestrado Profissional em Ensino de Línguas, na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Suas áreas de interesse incluem: formação de professores, ensino de línguas, reforma curricular, política linguística e multiletramentos. E-mail: [email protected] Edilaine Buin  – Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas e pós-doutora em Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). É professora da Faculdade de Comunicação, Artes

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e Letras da Universidade Federal da Grande Dourados. Atualmente é coordenadora do subprojeto PIBID-Letras. Desenvolve pesquisas relacionadas à aquisição da escrita, aos letramentos e à formação de professores de língua portuguesa. E-mail: [email protected] Eliana Merlin Deganutti de Barros – Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professora adjunta da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP - campus de Cornélio Procópio), onde atua na graduação em Letras Português-Inglês e no Programa de Mestrado em Letras (PROFLETRAS). Coordenadora do PROFLETRAS/UENP e do Subprojeto PIBID “Letramentos na escola: práticas de leitura e produção textual”. Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq/UENP) DIALE - Diálogos Linguísticos e Ensino  e colaboradora dos GP GEMFOR (UEL) e GEDFOR (UFGD). Atua como pesquisadora na área da Linguística Aplicada, com foco em gêneros textuais, ensino/ aprendizagem de língua portuguesa e formação de professores. E-mail: [email protected] Émerson de Pietri – Doutor em Linguística Aplicada ao Ensino/Aprendizagem de Língua Materna, pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, responsável pela disciplina Metodologia do Ensino de Português. Desenvolve pesquisas relacionadas à formação de professores de língua portuguesa e à história do ensino de língua materna no Brasil. E-mail: [email protected] Fabiana Poças Biondo – Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (2015). Mestre (2007) e Licenciada (2004) em Letras pela Universidade Estadual de Maringá. É professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, onde atualmente também coordena o Curso de Letras Português/Espanhol e o PIBID Letras-EAD, na área de Linguagens. É participante do grupo de pesquisas Práticas de escrita e de reflexão sobre a escrita em diferentes mídias (UNICAMP) e desenvolve pesquisas no campo da Linguística Aplicada sobre letramentos, tecnologias e ensino de língua, linguagens e identidade e formação de professores. E-mail: [email protected].

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Fernanda Taís Brignol Guimarães – Graduada em Letras (2012) e Especialista em Leitura e Escrita (2013) pela Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA, mestre em Letras – Linguística Aplicada, pelo Programa de Pós-­Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas - UCPEL. Membro do Laboratório de Estudos Avançados de Linguagens ­ LEAL/ UCPEL e do Grupo de Pesquisa Linguagem e Currículo GELC/Unipampa. Email: [email protected]. Inês Signorini – Doutora em Letras Modernas – Universite de Montpellier III (Paul Valery) (1980), e pós-doutora pela Université de Montréal (1985) e pela Toronto University (2002). Professora titular do Departamento de Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP e pesquisadora do CNPq, com publicações no campo aplicado dos estudos da língua(gem), atuando nos seguintes temas: letramento, formação do professor, linguagem e identidade, linguagens e tecnologias, Linguística Aplicada e transdisciplinaridade. E-mail: [email protected] Milenne Biasotto – Doutora e Mestre em Linguística e Língua Portuguesa pela UNESP/Araraquara (2012 e 2008, respectivamente). Graduada em Letras pela mesma instituição. Finalizou, em 2014, pós-doutorado na Universidade Federal da Grande Dourados/UFGD. Atualmente, é professora adjunta na UFGD, na vaga de Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa/ Prática de Leitura e Produção de Texto. Atua, principalmente, nos seguintes temas: Linguística Aplicada, Ensino da Escrita, Enunciação e Português como Língua Estrangeira. E-mail: [email protected] Rute Izabel Simões Conceição – Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo - USP (2008), com estágio de doutorado no Laboratoire de Linguistique et Didactique des Langues Étrangères et Maternelles da Université Stendhal-Grenoble 3 - na França. Mestre em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS (1999). É professora Associada da Universidade Federal da Grande Dourados. Atua como Tutora (2011-2016) do Programa de Educação Tutorial-PET Letras (Bolsista/MEC/FNDE), é Editora responsável pela Revista Arredia, da Faculdade de Comunicação, Artes e Letras/UFGD. É  vice-líder do grupo de pesquisa  GEDFOR/UFGD/CNPq  e desenvolve pesquisas no campo da Linguística Aplicada, sobretudo na formação de professores

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para o ensino de Língua Portuguesa, ensino de produção textual escrita e letramentos. E-mail: [email protected] Wagner Rodrigues Silva – Doutor em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e pós-doutor em Linguística Aplicada pela The Hong Kong Polytechnic University (PolyU). Atualmente é professor Associado II da Universidade Federal do Tocantins (UFT), docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura (Mestrado e Doutorado Acadêmico e Mestrado Profissional em Letras – ProfLetras). Tem experiência na área de Linguística Aplicada, atuando principalmente nos seguintes temas: alfabetização, currículo, estágio supervisionado nas licenciaturas, formação de professores, gêneros textuais, gramática, letramento, material didático, prática de escrita e prática de leitura. E-mail: [email protected]   Virgginia Laborão – Graduada em Letras pela UNICAMP, com monografia na área de Linguística Aplicada (2014). Graduada em Jornalismo pela PUC-CAMPINAS (2013). Atua na área de tecnologia educacional, com experiência em conteúdo para novas mídias, multimeios e mobile. E-mail: [email protected]

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