SUSTENTABILIDADE E SOLIDARIEDADE NO FINANCIAMENTO DO BEM-ESTAR: O FIM DAS “BOLEIAS”?

July 3, 2017 | Autor: S. Tavares da Silva | Categoria: Transport Law
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SUSTENTABILIDADE E SOLIDARIEDADE NO FINANCIAMENTO DO BEM-ESTAR: O FIM DAS “BOLEIAS”? SUZANA TAVARES

DA

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Volvidas duas décadas desde o início da implementação do modelo de privatização e regulação económica dos Serviços de Interesse Económico Geral (SIEG), acreditamos que um dos tópicos fulcrais no tratamento actual que um jurista deve fazer do tema dos “preços” destes serviços não pode deixar de ser o da sua adequação à disponibilidade financeira dos respectivos utentes. Um ponto que deve preocupar todos — prestadores dos serviços económicos de interesse geral, reguladores, utentes, decisores políticos e juristas — é o de saber se o sistema concebido e delineado para este novo modus de prestação de SIEG (em ambiente de mercado) continua a cumprir os objectivos do service public, e da Daseinvorsorge. O mesmo é questionar se ainda subsistem efectivamente os princípios clássicos do serviço público (universalidade, acessibilidade, continuidade no fornecimento e qualidade) em determinadas áreas económicas, que segundo o modelo económico e social europeu devem ser prestadas em regime de mercado, mas que integram as preocupações públicas com a garantia do mínimo de bem-estar social, enquanto factor de coesão social (1). Neste contexto, a pergunta que hoje se faz de forma insistente é a seguinte: que obrigações tem ainda o Estado nesta matéria? O que significa e em que se traduz a expressão “Estado regulador de garantia”? Que papel cabe à Europa neste contexto? As premissas de partida são claras: as entidades supranacionais que constituem “o rosto” da economia globalizada pressionam os Estados a “libertar” sectores de actividade e a permitir a abertura dos mercados; os Estados estão a braços com uma “asfixia financeira” resultante em grande medida da quebra das receitas fiscais, a qual se deve, no essencial, às consequências da concorrência fiscal danosa, que nem os esquemas da OCDE conseguem combater de forma efectiva. Nesta circunstância, as Constituições sociais perdem força e

(1) Neste contexto, destacamos a reflexão aprofundada das mudanças em FRANZIUS, Gewährleistung im Recht, Mohr Siebeck, Tübingen, 2009.

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correm o risco de “na busca de paliativos sociais de proximidade” conduzir a injustiças e/ou ao insustentável endividamento das gerações futuras. O enfoque das reflexões que se seguem é, pois, fácil de apreender — o resultado económico a que se chega no novo modelo é sustentável? Conseguem os utentes pagar a conta? Conseguem as empresas ter previsão quanto à densidade da sua liberdade? Existem de facto alternativas? Que modelo de justiça social resta?

1. OS SIEG NO QUADRO DA ECONOMIA GLOBALIZADA Duas notas iniciais para sublinhar as constrições do novo modelo e a chave-conceptual em que o mesmo se move. Quando nos referimos aos SIEG queremos reportar-nos à terminologia europeia adoptada para designar os serviços que pela sua relevância no funcionamento normal da economia e na vida quotidiana dos utentes devem respeitar certas condições essenciais: continuidade, qualidade, segurança do abastecimento, igualdade de acesso, preço razoável, e aceitabilidade social, cultural e ambiental (2). Isto significa, e é importante sublinhá-lo, que os SIEG constituem uma categoria político-normativa europeia (3). Por um lado, distinguem-se do conceito geral de serviços adoptado pela Organização Mundial de Comércio (OMC) no art. I/3(b) do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (General Agreement on Trade Services — GATS) (4) ao caracterizarem-se pela admissibilidade de

(2) Sobre o tema v. KNAUFF, Der Gewährleistungsstaat: reform des Daseinvorsorge, Duncker & Humblot, Berlin, 2004; KRAJEWSKI / NEERGAARD / GRODEN, The changing legal framework for services of general interest in Europe, Assar Press, 2009, e, entre nós, Rodrigo GOUVEIA, Os serviços de interesse geral, Cedipre, Coimbra, 2001; João Nuno CALVÃO DA SILVA, Estado e Mercado: SIEG, Almedina, Coimbra, 2008; Dulce LOPES, «O nome das coisas: serviço público, serviços de interesse económico geral e serviço universal no direito comunitário», Temas de Integração 15-16/2003, pp. 150ss; GONÇALVES / MARTINS, Os serviços públicos e a concessão no Estado Regulador, CEDIPRE, 2004. (3) Para os autores este conceito consubstancia o cerne do modelo político económico europeu — CALLIESS / RUFFERT, EUV /EGV — Kommentar, 3.ª ed., Beck München, 2007, pp. 519-520; SCHWARTZE (Hrsg.), EU-Kommentar, 2.ª ed., Nomos, 2009, pp. 382-384. A dimensão europeia da questão liga-se a outro vector relacionado com a garantia da socialidade no novo contexto, que pressupõe não apenas uma intervenção dinâmica dos privados, e uma intervenção reguladora dos Estados, mas também, como sublinha a doutrina alemã, uma participação solidária dos Estados-membros da União Europeia — MAUNZ / DÜRIG, GG Kommentar, art. 23, Rn 79, beck-online (acesso em 16/12/2010). (4) Veja-se que a OMC não tem como objectivo primacial garantir a livre concorrência, ou seja, não “exerce uma função de autoridade reguladora global da concorrência”, mas ao analisarmos os litígios que aí vão sendo suscitados a propósito da aplicação das regras dos diversos tratados

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diversas excepções ao regime da liberdade de prestação, cujo fundamento não decorre de envolverem o uso típico dos “poderes governamentais”, mas antes de reclamarem uma “intervenção estadual” para garantir as condições necessárias ao cumprimento das respectivas missões (art. 14.º TFUE); e, por outro, não se identificam com o conceito político-social de serviço público assente no pressuposto da prestação pública de serviços (com recursos públicos) como instrumento de promoção da igualdade social, impondo antes que os objectivos sociais preconizados por aqueles serviços venham a ser promovidos por uma via diversa: o mercado enquadrado pela regulação (5), complementado por esquemas estaduais de auxílio financeiro (6). Vejamos um pouco melhor as diferenças. A OMC estabelece uma distinção entre categorias de serviços assente no facto de os mesmos serem ou não prestados sob o exercício de poderes governamentais (art. I/3 (b) do GATS), integrando naquela categoria os serviços que não são prestados segundo uma base comercial nem em regime de concorrência (7). Sem-

gerais em matéria de comércio internacional, percebemos que a concorrência acaba por ser quase sempre uma questão secundária e um problema latente perante as aparentes violações das regras do comércio internacional — RUFFERT «Völkerrechtliche Impulse and Rahmen des Europäischen Verfassungsrechts», Fehling/Ruffert (Hrsg.), Regulierungsrecht, Mohr Siebeck, Tübingen, 2010, pp. 104 ss. Um resultado que se compreende, na medida em que os Tratados OMC (GATT, GATS, TRIPS, etc.) se baseiam essencialmente na “construção” de um esquema eficiente para as trocas comerciais, assente no modelo de desenvolvimento económico preconizado pela OCDE — PETER TREPTE, Regulating Procurement. Understanding the Ends and Means of Public Procurement Regulation, Oxford University Press, 2004. Todavia, ao contrário do GATT que expressamente se apresenta como um instrumentos de desenvolvimento económico e de promoção do bem-estar da população, o GATS tem objectivos mais modestos perante o reconhecimento da preponderância dos poderes nacionais na regulação dos serviços — Markus KRAJEWSKI, National regulation and trade liberalization in services, Kluwer Law International, 2003, pp. 56-57. (5) É o que se perspectiva hoje no sector energético (electricidade e gás natural) após o fim das tarifas reguladas do fornecedor de último recurso, conforme previsto na Resolução do Conselho de Ministros n.os 34/2011, de 1 de Agosto. Até à respectiva extinção em definitivo mantêm-se em vigor os regimes das tarifas reguladas, ficando a regulação depois circunscrita aos custos de acesso e uso das redes, bem como à determinação dos Custos de Interesse Económico Geral de cada um dos Sistemas, reconhecidos pela ERSE nos respectivos regulamentos tarifários e/ou fixados directamente na lei. A transição para o mercado é acompanhada da instituição de uma tarifa social subsidiada em cada um dos sectores como veremos mais à frente. (6) Os esquemas de auxílio financeiro para o serviço universal deveriam ficar em princípio circunscritos às telecomunicações (art. 97.º da lei das comunicações) e aos transportes (Decreto-lei n.º 167/2008, de 26 de Agosto), mas estão hoje a começar a instalar-se no sector energético por razões que, em nosso entender, se podem ficar a dever não só a ineficiências próprias destes sectores, mas também, em certa medida, a alguma manifesta incapacidade regulatória do Estado no que respeita ao sector eléctrico. (7) A delimitação do conceito de serviços prestados sob uma base comercial ou em regime de concorrência é por isso fundamental para que se avalie se existe ou não violação da cláusula da nação mais favorecida (art. II do GATS). O exemplo dado pelos autores é fácil de perceber:

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pre que o serviço em causa se não inclua naquela categoria, devem os Estados signatários garantir a aplicação das regras do GATS. O GATS, em termos gerais, divide-se em duas partes: se o serviço não se incluir na categoria dos serviços excluídos, o Estado-parte fica subordinado, essencialmente, ao cumprimento das regras do art. II (cláusula da nação mais favorecida) e do art. III (transparência); se o Estado-parte assumir compromis-

se os serviços de saúde integrarem o conceito de serviço, um acordo entre o Estado A e o Estado B para prestação transfronteiriça destes serviços pode permitir que um terceiro invoque a violação do GATS; caso se entenda que este é um serviço prestado sob o exercício de poderes governamentais, então essa possibilidade já não se verifica. Pese embora a falta de bases sólidas nesta matéria, os documentos de trabalho (é importante lembrar que este direito é fruto de procedimentos dinâmicos, participados e reflexivos) revelam que, por exemplo, os notários são abrangidos pelo GATS quando o exercício da sua actividade num determinado país decorra sob o regime de profissão liberal, mas já não quando assenta sob o regime da função pública, considerando-se que só no primeiro caso actuam numa base comercial. Já as concessões, neste contexto, são, em princípio, qualificadas como “instrumentos que excluem os serviços de um regime comercial”, na medida que as prestações asseguradas sob este modelo ficam excluídas da concorrência por pressuporem serviços do perímetro de competência dos poderes públicos — sobre o tema v. MARKUS KRAJEWSKI, «Public services end the scope of GTAS», Working Paper CIEL (recurso on-line, acesso 21/09/2010). Uma definição que não anda muito longe da que é adoptada pelo Direito Europeu quando afirma que a concessão de serviços incide normalmente sobre “actividades que, pela sua natureza, pelo seu objecto e pelas regras a que estão sujeitas, são susceptíveis de decorrer da competência do Estado e para as quais poderão existir direitos exclusivos ou especiais” — cf. (2000/C 121/02). Para a Directiva transparência são direitos exclusivos “os direitos concedidos por um Estado-Membro a uma empresa, através de qualquer acto legislativo, regulamentar ou administrativo, que lhe reservam o direito de prestar um serviço ou de exercer uma actividade numa determinada área geográfica” e são direitos especiais “os direitos concedidos por um Estado-Membro a um número limitado de empresas, através de qualquer acto legislativo, regulamentar ou administrativo, que, numa determinada área geográfica: i) limitam a dois ou mais o número de tais empresas, autorizadas a prestar um serviço ou a exercer uma actividade, sem ser em função de critérios objectivos, proporcionais e não discriminatórios; ou; ii) designam, sem ser em função de tais critérios, várias empresas em concorrência, como estando autorizadas a prestar um serviço ou a exercer uma actividade; ou iii) conferem a uma ou mais empresas, sem ser em função de tais critérios, quaisquer vantagens de carácter legal ou regulamentar que afectam substancialmente a capacidade de qualquer outra empresa prestar o mesmo serviço ou exercer a mesma actividade na mesma área geográfica sob condições substancialmente equivalentes” — cf. art. 2.º/f) e g) da Directiva n.º 2006/111/CE, de 16 de Novembro. Todavia, o Regulamento relativo aos serviços públicos de transporte ferroviário e rodoviário de passageiros, que iremos analisar mais à frente no texto, apresenta um conceito especial de direito exclusivo, que define como “um direito que autoriza um operador de serviço público a explorar determinados serviços de transporte público de passageiros numa linha, rede ou zona específica, com exclusão de outros operadores de serviços públicos” — Cf. art. 2.º/f) do Regulamento n.º 1370/2007 e SITSEN, «Der Begriff des ausschliesslichen Rechts und seine Bedeutung für den ÖPNV», InfrastrukturRecht, 2011/4, pp. 76 ss. Entre nós, sobre o conceito de concessões de serviço público em fase anterior a estas modificações v. Pedro GONÇALVES, A concessão de serviços públicos, Almedina, Coimbra, 1999.

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sos especiais, podem ser aplicadas outras cláusulas, como a abertura de mercados (art. XVI) e o princípio do tratamento nacional (art. XVII) (8). Para o GATS, o livre fornecimento internacional de serviços divide-se em quatro modalidades: 1) prestação transfronteiriça (ex. transporte marítimo, telecomunicações internacionais); 2) consumo no estrangeiro (ex. turismo, educação ou saúde); 3) presença comercial de entidades estrangeiras (ex. estabelecimentos de entidades financeiras); 4) prestação através da livre circulação dos prestadores (ex. advogados, médicos). Quando os Estados entram em incumprimento das regras do Acordo são constituídos painéis de resolução dos conflitos (9) cuja finalidade essencial é encontrar uma solução consensual entre as partes para que o acordo seja respeitado. A estabilização e redução da lista das excepções ao Art. II (cláusula do tratamento da nação mais favorecida) não tem sido fácil e apenas em alguns sectores como as telecomunicações, o sector financeiro e o transporte marítimo tem sido possível avançar, contrariando a tendência especialmente negativa registada na “abertura ao mercado” de serviços como os da energia. Todavia, o relatório de 21 de Abril de 2011, integrado nos documentos de negociação da agenda de desenvolvimento de Doha, apontam para uma melhoria significativa, com redução do número de excepções à mencionada cláusula da nação mais favorecida. Já no plano europeu, a UE reconhece, dentro (ou talvez melhor, a par) da categoria dos serviços — onde inclui “as prestações realizadas normalmente

(8) A “estruturação do GATS” em moldes diferentes daqueles em que assenta o GATT, em especial no que respeita ao estabelecimento de um conjunto de compromissos diferentes a que os Estados-membros podem escolher submeter-se (os serviços em regime de mercado aberto e de tratamento nacional serão apenas aqueles que os Estados escolham inscrever nesses regimes, podendo ainda adicionar condições à aplicação daquelas cláusulas a estes serviços — por exemplo número máximo de operadores) revela bem as dificuldades em impor obrigações jurídicas nesta matéria. Muitas vezes as limitações objectivas impostas nos compromissos do GATS não correspondem à realidade (ex. sector bancário), visando apenas que a abertura do mercado fique dependente de variáveis políticas — Martin ROY, «Endowments, power, and democracy: political economy of multilateral commitments on trade in services», WTO, Staff Working paper ERSD-2009-07 (acesso em 20/12/2010). (9) O caso Telmex (WT/DS204) a propósito da regulação das telecomunicações entre o México e os Estados Unidos é considerado até hoje o mais importante na matéria, na medida em que foi o único em que um painel da OMC se debruçou directamente sobre um problema de regulação da concorrência. Em 2002, os EUA solicitaram a constituição de um painel na OMC, alegando que a empresa de telecomunicações do México (a Telmex) não estava cumprir o GATS, mais concretamente, o anexo dobre Telecomunicações e o respectivo Reference Paper adoptado em 1996, ao não garantir às operadoras norte-americanas interconexão de longa distância a custos orientados e razoáveis. Depois de analisar o caso, o Painel conclui que as tarifas exigidas pela Telmex não tinham correspondência com os custos, e que o México não tinha adoptado as medidas regulatórias adequadas para garantir que não havia práticas anti-concorrenciais no mercado das telecomunicações.

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mediante remuneração, na medida em que não sejam reguladas pelas disposições relativas à livre circulação de mercadorias, de capitais e de pessoas” (art. 57.º TFUE) (10), e para os quais se procura um regime de liberalização no plano regional do mercado interno através da aprovação de instrumentos normativos de harmonização da legislação dos Estados-membros em matéria de habilitações para o exercício das actividades, sem abranger o conteúdo do GATS (11) —, a (sub)categoria dos SIEG, associados à promoção da coesão social e territorial, e que, por essa razão, encerram um valor comum da União, permitindo que os mesmo “funcionem em condições e segundo princípios económicos e financeiros diferentes”, que lhes permitam cumprir as respectivas missões (art. 14.º TFUE). Estes princípios e normas resumem-se, essencialmente, à possibilidade de aplicação de regras especiais em matéria de concorrência (art. 106.º do TFUE) e de auxílios de Estado (arts. 93.º e 106.º do TFUE). Todavia, o direito europeu exige que a prestação destes serviços cumpra as exigências dos Tratados, independentemente de os Estados-membros os poderem prestar, mandar executar ou mesmo financiar parcialmente. Quer isto dizer que estes serviços transitam obrigatoriamente de esquemas de monopólios públicos de prestação de serviços públicos para um regime de prestação daqueles serviços no ambiente do mercado interno europeu. Veja-se que a própria Directiva Serviços (Directiva 2006/123/CE) teve dificuldade em recortar com precisão este universo, pois se no art. 1.º deixa claro que não pretende interferir com os respectivos modelos nacionais de serviços essenciais ao afirmar que a mesma “não tem por objecto a liberalização dos SIEG reservados a entidades públicas ou privadas, nem a privatização de entidades públicas prestadoras de serviços”, no art. 2.º exclui apenas do seu campo de aplicação os serviços de interesse geral sem carácter económico, acabando depois por juntar ao leque dos serviços excluídos os que se reconduzem ao domínio dos transportes (12). Em suma, conjugando as normas internacionais e europeias em matéria de serviços diremos que a liberalização dos serviços é uma realidade que anda a diversas velocidades, e que mesmo no plano europeu encontramos um discurso no que respeita à abertura a países terceiros e outro no que toca ao mercado interno, já para não nos atermos a problemas recorrentes que emergem da com-

(10) Os serviços segundo o art. 57.º TFUE caracterizam-se pela existência de uma prestação remunerada — Cf. SCHWARTZE (Hrsg.), EU-Kommentar 2.ª ed., Nomos, 2009, pp. 710-713. (11) Cf. Considerando 16, da Directiva 2006/123/CE (Directiva serviços), de 12 de Dezembro, transposta entre nós pelo Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26 de Julho. (12) Uma exclusão que encontra também fundamento no regime especial dos serviços de transporte consagrado no Tratado (art. 58.º/1 e arts. 90.º a 100.º do TFUE).

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patibilização das regras de integração económica europeia com o GATS, domínios que continuam a suscitar dúvidas e a colocar problemas novos (13). Independentemente das diferentes velocidades a que avança o mercado dos serviços (14) — avanço que hoje não é apenas impulsionado por uma corrente internacional promotora da desregulação dos tradicionais serviços de bem-estar, mas sim complementado por uma tentativa de internacionalização dos standards de parâmetros de protecção e promoção da socialidade (15) — verificamos que

(13) Veja-se o recente caso “cláusula GAZPROM”. Em termos breves, o que está aqui em causa é a conformidade do art. 11.º da Directiva 2009/73 (Directiva do Pacote energético III em matéria de gás natural), no qual se estabelecem algumas exigências para a certificação de um operador da rede de transporte de gás natural caso esse operador seja controlado por uma pessoa ou pessoas de país ou países terceiros. Em especial são exigidas condições de reciprocidade em matéria de unbundling. Assim, quando a norma foi aprovada alguns autores começaram a questionar a sua compatibilidade com o GATS, uma vez que a Europa importa grandes quantidades de gás de países membros da OMC (Nigéria, Qatar e o Egipto). No essencial, o problema relaciona-se com a interpretação do art. V do GATS e com o nível de barreiras que podem ser impostos por Estados-membros de espaços de integração reconhecidos pelo GATS (ex. União Europeia), relativamente a Estados terceiros a esses espaço, que sejam membros da OMC — sobre o tema v. MATTOO / STERN / ZANINI, A Handbook of International Trade in Services, Oxford University Press, 2008 e sobre idêntica problemática mas aplicada ao GATT v. LUÍS PEDRO CUNHA, O sistema comercial multilateral e os espaços de integração regional, Coimbra Editora, 2008. O caso em referência levou alguns autores a sugerir que a norma da Directiva visava prevenir a possibilidade de a Rússia (que é o principal fornecedor de gás natural à Europa) vir a ser titular de uma rede de transporte europeia ou a controlar um operador de uma rede de transporte europeia. Para os autores, caso a Rússia venha a integrar a OMC (o processo ainda está em curso), colocar-se-á o problema de saber se esta norma da Directiva pode ou não vir a ser considerada violadora do GATS — cf. COTTIER / MATTEOTTI-BERKUTOVA / NARTOVA, «Third Country Relations in EU Unbundling of Natural Gas Markets: The “Gazprom Clause” of Directive 2009/73 EC and WTO Law», Working Paper 2010/06, NCCR Trade Regulation (recurso on-line, acesso em 20/12/2010). (14) Esta matéria prende hoje a atenção sobretudo dos grupos económicos mais capacitados tecnicamente que pretendem alargar mercados e cada vez menos dos Estados, que aparentam ser os que “menos têm a ganhar” com a abertura dos mercados de serviços, pois se a liberalização destes permite por um lado optimizar a alocação de recursos humanos qualificados e ainda reduzir o efeito free riding em áreas sociais, também é verdade que acarreta o perigo de poder reduzir a base contributiva nestas áreas — Martin ROY, «Endowments, power, and democracy: political economy of multilateral commitments on trade in services», WTO, Staff Working paper ERSD-2009-07 (acesso em 20/12/2010). (15) Os autores referem uma internacionalização dos princípios do Estado garantidor baseada na tentativa de conciliação dos objectivos de liberalização do mercado de serviços e de protecção de direitos fundamentais, dando como exemplo a liberalização dos serviços de abastecimento de água. Para mostrar que é possível através da soft law alcançar objectivos sociais agitam-se os exemplos de sucesso no domínio dos serviços ambientais relacionados com os códigos de conduta adoptados por empresas como a NIKE, a Levi Strauss & Co., etc. — v. Sven SIMON, Liberalisierung von Dienstungen der Daseinvorsorge im WTO- und EU-Recht, Mohr Siebeck, Tübingen, 2009, pp. 169-176.

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neste caminho para o mercado têm vindo a ser utilizadas duas vias principais: uma de impulso europeu e base nacional, de “natureza governativa”, que repousa na mudança dos regimes legais de organização e funcionamento de cada um dos subsectores dos SIEG, visando torná-los mais eficientes; e outra de base europeia e de natureza económico-financeira, que assenta na harmonização das regras de financiamento destes serviços.

2. AS NOVAS BASES NORMATIVAS DE FUNCIONAMENTO PARA OS SIEG (CONSIDERAÇÕES BREVES) O primeiro impulso da mudança é, pois, de natureza governativa (16), e prende-se com a “construção de mercados” em áreas e sectores de actividade onde tradicionalmente o Estado operava de forma monopolista, prestando directamente os serviços através de entidades públicas de natureza empresarial ou concessionando-os a determinadas empresas em regime de exclusivo. Com efeito, a mera abertura destes sectores (17) à iniciativa económica privada não

(16) Preferimos a designação entre nós de governativa a legislativa na medida em que a reforma operada nestes sectores de actividade deve-se, fundamentalmente, à intervenção do Governo, no uso dos poderes legislativos próprios que a Constituição de República lhe confere, e no âmbito da função de condução das políticas públicas em articulação com as directrizes gizadas no nível europeu, o que significa que tem sido uma intervenção maioritariamente fundada na transposição de regimes legislativos europeus e na delegação de poderes de regulação em autoridades reguladoras nacionais. Neste contexto, registamos o facto de as modificações sectoriais revelarem hoje maior preocupação com a harmonização europeia e com as regras do mercado interno — para o que muito contribui também a actividade das autoridades reguladoras nos diálogos que estabelecem com as suas homólogas no âmbito das entidades coordenadoras de regulação de base europeia — do que com a expressão de opções políticas de base nacional firmadas pelo Parlamento, o que se compreende em razão da necessidade de respeitar as directrizes de base superior, cumprindo as obrigações impostas pelos Tratados. No sentido de que cada vez mais se deve autonomizar constitucionalmente o reconhecimento de uma função de governo na condução de políticas veja-se a declaração de voto da Conselheira Maria Lúcia Amaral no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 214/2011. (17) Por razões de economia discursiva limitamos a nossa análise aos SIEG, embora sem desconhecer que na mais recente comunicação da Comissão sobre a matéria — COM (2007) 724 — se estabeleçam pontes importantes entre o regime jurídico destes serviços — quer daqueles que assentam em grandes infra-estruturas de rede (como os energéticos), quer daqueles que tradicionalmente não gozam de um regime europeu próprio a não ser na medida em que se subordinam às regras da contratação — e os denominados Serviços de Interesse Geral (não económicos), nos quais a intervenção do direito europeu se tem centrado, exclusivamente, na garantia de não discriminação. Exemplo desta ponte é precisamente a Directiva sobre cuidados de saúde transfronteiriços (COM 2008/414), que assenta em grande medida nos desenvolvimentos do “MAC social” (COM-2008/418) ou “método aberto de coordenação” — v. Gerda FALKNER, «European

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garante, em si, a emergência de um regime de concorrência (18), sendo necessário instituir regras claras na organização destes sectores para “gerar mercados”, ou seja, para permitir, desde logo, a entrada de novos operadores em actividades onde deve haver concorrência: é por isso que o Estado é chamado a assumir uma função de regulador de direcção, em vez de se poder reservar um simples papel de regulador-árbitro (supervisor) de mercados na fase pós-liberalização (19). Ao regulador destes mercados construídos a partir dos ex-monopólios públicos exige-se que estabeleça regras para impedir posições de domínio, em especial por parte do operador histórico, seja no âmbito da partilha de informação (a regulação que combate assimetrias informativas), seja no âmbito da neutralização de vantagens económicas a favor do operador histórico (a regulação que desmantela empresas verticalmente integradas e contraria os efeitos dos clientes pegajosos), seja no âmbito da proibição de uma posição de controlo de infra-estruturas essenciais (a regulação que exige a alienação de activos ou a gestão independente dos mesmos, e a limitação de participações sociais), aceitando-se que todas estas formas de intervenção devem ser consideradas “conformes” com o modelo económico de regulação e, por isso, não violadoras das liberdades empresariais (20). E muitas vezes neste processo colocam-se problemas de harmonização jurídica com os catálogos nacionais de direitos fundamentais ou com as liberdades económicas dos Tratados Europeus, suscitando questões interessantes não só no plano da qualificação jurídico funcional da regulação (21), mas também no

Union», CASTLES / LEIBFRIED / LEWIS / OBINGER / PIERSON, The Welfare State, Oxford, University Press, 2010, pp. 295s. (18) Todas estas questões foram já estudadas entre nós — v. Vital MOREIRA, Auto-regulação profissional e administração pública, Almedina, Coimbra, 1997; Pedro Gonçalves, Entidades privadas com poderes públicos, Almedina, Coimbra, 2005; e o nosso, Estado incentivador, orientador e garantidor, dissertação de doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2008, (estudo geral). (19) Cf. Luís SILVA MORAIS, Direito da Concorrência, Almedina, Coimbra, 2009. (20) Cf. ALCORTA, La limitación de la libertad de empresa en la competencia, Atelier, Barcelona, 2008. (21) Hoje qualificada por muitos como uma nova função estadual — Cf. EIFERT, «Regulierungsstrategien», Hoffmann-Riem / Schmidt-Assmann / Vosskuhle (Hrsg.), Grundlagen des Verwaltungsrechts I, Beck, München, 2066, pp. 1237 ss. Trata-se, em nosso entender, de uma nova função do poder público no âmbito da implementação de políticas públicas, que emerge da hibridização da função executiva com a autonomização de uma função de governação no contexto de sistemas normativos em rede, e que se apresenta quer objectiva, quer subjectivamente como uma realidade polimórfica e dinâmica, difícil de “capturar num instante”, mas que vem causando “danos sérios” na dogmática tradicional do direito administrativo — «La regulación económica como materia del nuevo derecho administrativo», IX Congreso Hispano-Luso de Derecho Administrativo (recurso on-line).

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plano do controlo, quer no que respeita à articulação entre o papel do TC e do TJUE (22), quer no que respeita às dificuldades materiais no controlo judicial das medidas regulatórias (23). Estes conflitos revelam claramente as propriedades do direito em rede e as fragilidades que do mesmo resultam em matéria de protecção da confiança dos agentes económicos, aos quais são dadas diversas oportunidades no quadro da globalização económica (ex. internacionalização das estruturas empresariais que permitem aforro fiscal e melhoria das condições gerais de funcionamento da unidade produtiva), para “se assegurarem perante os novos riscos” (24), mas esquecendo que neste jogo o Estado não actua muitas vezes como player leal, “aproveitando-se” das “barreiras económicas” para insinuar os seus “property rights under governmental opportunism” (25) e “descurando” a eficiência da função judicial ao mesmo tempo que “agiliza” instrumentos de resolução arbitral dos conflitos (privatização da justiça eficiente). Mais interessante ainda neste plano é a problemática relacionada com as barreiras administrativas no acesso aos mercados, as quais constituem uma forma de regulação dos próprios mercados, que os Estados utilizam de forma lícita para garantir a robustez económica de alguns “prestadores de serviços de bandeira” ou objectivos nevrálgicos das respectivas políticas públicas. Referimo-nos à análise destas barreiras no plano vertical, isto é, das restrições que o poder normativo nacional pode erigir em função de aspectos de política nacional ou de outros fundamentos que devam ser considerados admissíveis no qua-

(22) A decisão do Bundesverfassungsgericht no acórdão sobre o Tratado de Lisboa (BVerfG 30.6.2009) apresenta-se como uma solução de prevalência do standard nacional sobre o europeu em áreas como a regulação dos media e as condições de vida dos cidadãos em matérias de política social, cultura e educação, acentuando as dificuldades de aprofundamento da harmonização em áreas-chave da caracterização das identidades nacionais económicas, sociais e culturais — v. os comentários à decisão publicados no número especial da Die Öffentliche Verwaltung, 2010/7. (23) Sobre o problema da discricionariedade regulatória e dos limites ao controlo material das decisões regulatórias pelo poder judicial v. OSTER, Normative Erächtigungen im Regulierungsrecht, Nomos, Baden-Baden, 2010. Sobre os meios alternativos de controlo da regulação v. SENN, Non-State Regulatory Regimes, Springer, Berlin, 2011. (24) O problema da repartição do risco económico-financeiro neste novo contexto é a base fundamental da racionalidade económica da decisão pública, uma vez que o “Estado que contrata” ou o “Estado parceiro” se apresenta nestas relações jurídicas em áreas económicas liberalizadas como um “ente publico enfraquecido” ou como um “poder enfraquecido”, exigindo-se, portanto, regimes jurídicos adequados a esta realidade — FRANZIUS, Gewährleistung im Recht, Mohr Siebeck, Tübingen, 2009, pp. 529 ss. (544); entre nós, numa perspectiva diversa, centrada essencialmente na protecção dos contraentes privados nas relações contratuais antes mencionadas v. Pedro GONÇALVES, «Gestão de contratos públicos em tempo de crise», Estudos de Contratação Pública III, Cedipre, Coimbra Editora, 2010, pp. 5 ss. (20-28). (25) Expressão de Spiller / Tommasi a propósito da governance na regulação das utilities — SPILLER / TOMMASI, «The institutions of Regulation: na application to public utilities», in MÉNARD / SHIRLEY, Handbook of New Institutional Economics, Springer, Berlin, 2008, pp. 520.

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dro do princípio da subsidiariedade e da proporcionalidade do direito europeu, e também no plano transnacional, enquanto possibilidade de aposição de restrições ao reconhecimento automático dos actos transnacionais (26), uma matéria que conta já com normas e jurisprudência sedimentada nos sectores dos transportes, telecomunicações e dos serviços bancários e de seguros (27). Aos Estados é hoje também confiada a tarefa de garantir a concorrência através da regulação de aspectos técnicos, e neste ponto a gestão de infra-estruturas de rede demonstra que são estes serviços — aqueles cuja prestação depende de infra-estruturas de capacidade limitada e não duplicáveis — os que exigem um esforço regulatório técnico mais intenso, o qual apenas consegue ser realmente eficaz se assentar em esquemas de cooperação administrativa transnacional ou em sistemas de harmonização técnica supranacional. O carácter heterogéneo da regulação, a ampla liberdade que a actividade desenvolvida pelos “agentes da regulação” conhece relativamente à lei enquanto expressão do poder democrático nacional (28), mas fundamentalmente o facto de esta actividade consubstanciar hoje o cerne da actividade do Estado garantidor de bem-estar social através da promoção da eficiência dos operadores de mercado (29) leva-nos a concluir que estamos perante um conjunto de actuações originadoras de profundas alterações metodológicas reconduzíveis ao domínio que a doutrina vem designando como manifestações da «nova ciência do direito administrativo (30)». 3. AS NOVAS BASES ECONÓMICO-FINANCEIRAS: A GARANTIA DO BEM-ESTAR ATRAVÉS DA REGULAÇÃO ECONÓMICA Traçado o enquadramento geral da questão, vamos ocupar-nos agora de alguns aspectos essenciais da regulação económico-financeira dos SIEG, e com Para uma sistematização dos diversos tipos de restrições ao “mercado dos serviços” em geral v. CALLIESS / RUFFERT, EUV.EGV — Kommentar…, pp. 838 ss. Para uma percepção das suas especificidades no contexto dos SIEG, veja-se o âmbito da discricionariedade das “autorizações ou licenças reguladoras” de que constitui exemplo a licença para instalação de novos centros electroprodutores, a qual pode ser recusada com o fundamento de que a nova unidade de produção não contribui para a concretização dos objectivos da política energética, designadamente, para a diversificação das fontes primárias de energia — art. 6.º/1/a) do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de Agosto. (27) Cf. SIEGEL, Entscheidungsfindung im Verwaltungsverbund, Mohr Siebeck, Tübingen, 2009. (28) Sobre este tema v. MARTA VICENTE, A quebra da legalidade material na actividade administrativa de regulação económica, Dissertação de Mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2011. (29) Cf. KNAUFF, Der Gewährleistungsstaat: reform des Daseinvorsorge…, pp. 91. (30) Por todos, VOSSKUHLE, «Neue Verwaltungsrechtswissenschaft», HOFFMANN-RIEM/ /SCHMIDT-ASSMANN / VOSSKUHLE (Hrsg.), Grundlagen des Verwaltungsrechts I, Beck, München, 2006, pp. 1 ss. (26)

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isto fazemos a aproximação ao punctum saliens da nossa reflexão — como é que neste novo sistema organizatório, complexo, com mais actores, e subordinado a regras de mercado se conseguem garantir “preços” acessíveis? O mesmo é perguntar como é que se garante o bem-estar neste novo modelo e como é que no plano nacional se conseguem traçar esquemas regulatórios estáveis, compagináveis com os princípios do direito europeu e promotores da missão social que alguns Estados integram no leque das respectivas tarefas fundamentais (31)? Não se trata de comparar “preços” pagos pelos utentes no modelo anterior e no modelo actual, mas sim de comparar o modo como se formavam “os preços” e o que muda com a introdução da regulação económica nestes sectores de actividade. No anterior modelo do serviço público assente em tarifas (32) imperava o princípio da socialidade na garantia da universalidade destes serviços através do respectivo financiamento, pelo menos parcial, a partir de transferências do orçamento do Estado, por se acreditar que se o Estado os deixasse à iniciativa privada ou fixasse o “preço óptimo” para os mesmos (uma tarifa que cobrisse a totalidade dos custos), estes deixariam de ser acessíveis a um largo círculo de consumidores (33). Por conseguinte, este modelo, baseado na subsidiação pública dos preços dos bens e serviços que asseguravam o bem-estar das populações (electricidade, gás, transportes), deixou os respectivos utentes em um estágio de letargia quanto à consciencialização dos respectivos custos, desresponsabilizando-os pela necessidade de incluir a sua efectiva sustentação no contexto do “cabaz de compras familiar” (34).

(31) É o caso da Constituição portuguesa, podendo ler-se no art. 9.º/d) que entre as tarefas fundamentais do Estado consta a “promoção do bem-estar e a qualidade de vida do povo”. (32) Neste modelo o conceito de tarifa era definido por oposição ao conceito de taxa, considerando-se que no primeiro caso era exigida uma equivalência económica na fixação da contraprestação, ao passo que na taxa bastaria uma equivalência jurídica — v. TEIXEIRA RIBEIRO, «Noção jurídica de taxa», Revista de Legislação e Jurisprudência, 117, 1985, pp. 289 e «Anotação ao Ac. do STA de 2 de Maio de 1996», Revista de Legislação e Jurisprudência, 1997, pp. 296 ss. CASALTA NABAIS acrescenta ainda a esta posição tradicional uma distinção entre tarifa-taxa e tarifa-preço, consoante o mecanismo de fixação da contraprestação assente, respectivamente, na Administração Pública ou no mercado — v. Direito Fiscal, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2010, pp. 30 ss. (33) Assim explicava TEIXEIRA RIBEIRO a necessidade de manter as explorações de utilidade pública assentes em monopólios fiscais, in Lições de Finanças Públicas, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1991, pp. 202-203. (34) Embora seja importante salientar com ATIENZA que a apatia não era uma característica exclusiva do modelo anterior, pois como nos explica o autor, a globalização económica é também responsável por ter gerado no plano social um conjunto de indivíduos — os “idiotas”, recuperando-se o conceito de idiótes (homem privado em oposição ao homem de Estado) da Grécia Clássica, designação dada àqueles que não se interessavam nem participavam nos assuntos da

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Ora, o Estado regulador corresponde a uma nova realidade baseada no pressuposto da imputação aos utentes dos custos de produção dos serviços, garantindo-se que esses custos são os menores possíveis, e sem prejuízo da complementação desta regra com mecanismos de subvenção quando a imputação da totalidade dos custos se revele desrazoável. Mas esta realidade gera de imediato o efeito psicológico de que a regulação trouxe aumento dos “preços”, pondo em causa a acessibilidade aos serviços e, com isso, o bem-estar da população (35). Deste modo, importa primeiramente explicar em que “ambiente” é que se formam os “preços destes serviços” no âmbito do novo modelo assente na regulação económica. Entre as “regras de ouro” contam-se, essencialmente, as seguintes: as tarifas devem reflectir a verdade dos custos; garante-se a neutralidade quanto à titularidade dos meios de produção; proíbem-se as ajudas de Estados e o financiamento cruzado para além da sustentação das obrigações de serviço público; garante-se a optimização do valor das tarifas em decorrência da garantia da eficiência do funcionamento do sector e do mercado através da regulação. Experimentemos a concretização deste modelo a partir da análise dos serviços públicos de transporte ferroviário e rodoviário de passageiros por ser aquele onde existem “áreas de custos incomportáveis pelos utentes” e que por isso, segundo o modelo de garantia do serviço universal, pressupõem a aplicação de um regime regulado de subvenções públicas. Em primeiro lugar, cumpre salientar que os serviços de transporte constituem hoje um dos domínios mais dinâmicos no âmbito da regulação, o que se deve em grande medida ao facto de estarem intimamente associados, por um lado, ao desenvolvimento das relações comerciais, e nessa medida, servirem de suporte ao próprio mercado de bens e serviços em geral, e, por outro, de estarem muito dependentes do problema energético, em especial dos derivados do petróleo, o que causa sérios problemas económicos em matéria de custos. Nos transportes a regulação assenta, em primeiro lugar, na necessidade de “compartimentar” as actividades que devem ser subordinadas a concorrência e aquelas que devem ser objecto de exploração em regime de monopólio.

polis — que foram economicamente beneficiados à custa do prejuízo de outros, sem que se tenham sequer apercebido dessa situação — «Constitucionalismo, globalización y derecho», El canon neoconstitucional, UNAM, Trotta Madrid, 2010, pp. 281. (35) Veja-se que os SIEG, como referimos no início, não se limitam aos serviços que integram o quotidiano do bem-estar da população, integrando também uma importante componente de sustentação do tecido económico-empresarial, na medida em que estes serviços são o esteio da actividade produtiva. Neste ponto, o problema dos “preços destes serviços” é também um problema de políticas de competitividade da economia e de apoio às empresas, mas não será possível abordar também este aspecto na economia da presente reflexão.

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A secessão das utilities, isolando os monopólios das áreas de concorrência, é especialmente visível nos transportes ferroviários, designadamente na separação entre a exploração da infra-estrutura (concessionada em regime de exclusivo e sustentada a partir de tarifas exigidas aos que a utilizam para prestar o serviço de transporte (36)) e os serviços de transporte sobre ela prestados (que devem ser sujeitos à concorrência, prevendo-se a entrada de diversos operadores), promovendo-se a concorrência entre os prestadores de serviços (sem prejuízo da possibilidade de celebração de “contratos de serviço público” (37)), bem como a regulação do acesso equitativo à rede e do direito de trânsito sobre a mesma. No transporte marítimo, fluvial e aéreo, onde também se coloca o problema da limitação da capacidade das infra-estruturas que suportam estes serviços de transporte — referimo-nos aos portos e aeroportos — o modelo de regulação não é exactamente idêntico, pois tratando-se de diversas infra-estruturas espalhadas pelo território nacional, é ainda necessário definir o regime para a respectiva exploração, tendo vindo a ganhar relevo o modelo de concorrência cooperativa, baseado na concorrência entre os serviços intra-infraestrutura e cooperação-complementação-especialização entre infra-estruturas nacionais (38). Já no caso do transporte rodoviário, onde a capacidade da infra-estrutura é ilimitada, deve fazer-se apenas a planificação do transporte, distinguindo entre o que deve ser explorado em regime de concorrência e o que deve ser objecto de “contratos de serviço público” a outorgar nos termos do disposto nos arts. 3.º a 5.º do Regulamento (CE) n.º 1370/2007 (39). Por vezes, estes “contratos de serviço público” assentam na outorga de exclusivos em certas zonas onde a

(36) Veja-se que a doutrina começa a propor um regime jurídico especial para estas empresas v. CABALLERO SÁNCHEZ «Las sociedades de infraestructuras estratégicas. El nacimiento de un modelo de compañia regulada al servicio del mercado», Revista de Administración Pública, 2010/181, pp. 135-178. (37) De acordo com o Regulamento (CE) n.º 1370/2003, entende-se por contratos de serviço público um ou vários actos juridicamente vinculativos que estabeleçam o acordo entre uma autoridade competente e um operador de serviço público — qualquer empresa pública ou privada ou agrupamento de empresas públicas ou privadas que prestem serviços públicos de transporte de passageiros ou qualquer organismo público que preste serviços públicos de transporte de passageiros — para confiar a este último a gestão e a exploração dos serviços públicos de transporte de passageiros sujeitos às obrigações de serviço público. (38) Sobre o modelo de organização e regulação dos portos v. Suzana T AVARES DA SILVA / Licínio LOPES MARTINS, Estudo de Metodologia de Apreciação dos Tarifários das Administrações Portuárias, parecer CEDIPRE (não editado). (39) Este Regulamento sucedeu ao Regulamento (CE) n.º 1893/1991, que para além do transporte rodoviário e ferroviário abrangia também o transporte marítimo e fluvial. Para compreender as mudanças é importante consultar quer o Parecer do Comité das Regiões (2006/C 192/01), quer o Parecer do Comité Económico e Social Europeu (2006/C 192/1). Sobre a regulação no sector dos transportes públicos v. FEHLING, «Öffentlicher Verkehr», Regulierungsrecht…,

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exploração em regime de concorrência não é rentável (art. 3.º/1 do Regulamento (CE) n.º 1370/2007). De acordo com o art. 1.º do Regulamento (CE) n.º 1370/2007, o objectivo deste regime jurídico é definir o modo como, no respeito das regras do direito comunitário, as autoridades competentes podem intervir no domínio do transporte público de passageiros para assegurar a prestação de serviços de interesse geral que sejam, designadamente, mais numeroso, mais seguros, de melhor qualidade e mais baratos do que aqueles que seria possível prestar apenas com base nas leis do mercado. Trata-se, pois, de um regime jurídico que define as regras da intervenção reguladora do Estado no mercado dos serviços de transporte de passageiros (40). Segundo o novo modo de organização do transporte público rodoviário e ferroviário, o Estado (e/ou as autoridades locais) não fica proibido de continuar a explorar estes serviços através da titularidade de empresas integradas do sector empresarial público (e ou local) — é o caso da CP, Comboios de Portugal E.P.E. e da Sociedade de Transportes Colectivos do Porto, S.A. O mesmo é dizer, na terminologia da legislação europeia, que não se exclui a possibilidade de recorrer a operadores internos (designação dada por este regulamento à contratação in house (41)) para garantir a prestação dos serviços de transporte público de passageiros, devendo para o efeito respeitar as exigências impostas no art. 5.º/2 do Regulamento (CE) n.º 1370/2007. Sempre que opte por esta solução, o Estado fica subordinado às regras da transparência (42) nas relações financeiras entre poderes públicos e empresas

pp. 501 ss. e o nosso «Direito Administrativo dos Transportes», Tratado de Direito Administrativo Especial V (em publicação). (40) Os contratos de serviço público destinados a compensar os custos com as obrigações de serviço público no domínio dos transportes distinguem-se, portanto, quer dos contratos de serviços de transporte ou contratos públicos de (fornecimento) de serviços de transporte — que se subordinam ao regime geral do Código dos Contratos Públicos e nos quais se incluem as aquisições de serviços de transporte por entidades públicas (ex. aquisição de serviços de transporte escolar pelos municípios) — quer dos contratos de concessão de serviços de transporte, que constituem a escolha por uma modalidade de gestão e organização de um serviço de transportes no qual o elemento caracterizador assenta, segundo a comunicação interpretativa da Comissão Europeia (2000/C 121/02), na “transferência da responsabilidade da exploração” para um terceiro, o mesmo é dizer que o terceiro assume o risco da gestão, sem prejuízo de lhe poderem ser atribuídos direitos especiais ou exclusivos. (41) Veja-se que o conceito de operador interno aqui consagrado não coincide inteiramente com o âmbito da “relação in house” fixada na jurisprudência Stadt Halle, o que resulta, em grande medida, das recomendações do Comité das Regiões (2006/C 192/01) no sentido de flexibilizar os critérios da normação sobre contratos públicos, para não prejudicar as empresas públicas e as sociedades de economia mista na adaptação à concorrência. (42) Dos quatro critérios fixados pela jurisprudência do TJCE no acórdão Altmark Trans — 1) a empresa beneficiária ser efectivamente encarregada da prestação se obrigações de serviço

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públicas (43) — designadamente no que respeita à compensação de encargos impostos (44) — e do mercado (45), de forma a impedir distorções no regime da concorrência em serviços liberalizados.

público; 2) os parâmetros da compensação serem previamente estipulados de forma objectiva e transparente; 3) a compensação não ultrapassar o que é necessário para cobrir total ou parcialmente os custos ocasionados pelo cumprimento das obrigações de serviço público, acrescido de uma margem de lucro razoável; 4) quando a empresa não for escolhida por concurso, determinar os critérios da compensação com base no private investor test — a doutrina considera que o último pode e deve ser adaptado quando estiver em causa a apreciação da existência ou não de subsídios cruzados nas transferências para os operadores internos (aplicação do modified public investor test), desde que, acrescentamos nós, a empresa pública se comporte como uma verdadeira interessada na promoção de objectivos de política social e não na maximização do lucro. Se é verdade que o homo oeconomicus pode orientar o seu comportamento para a obtenção de outros objectivos determinados que não o lucro, como de resto é típico dos mercados públicos em que a finalidade é o bem-estar geral, então podemos considerar que este quarto critério deve ser adaptado quando os objectivos pré-estabelecidos sejam de natureza pública — in FEHLING, «Problems of Cross-Subsidisation», in Krajewski / Neergaard / Groden, The changing legal framework for services of general interest in Europe, Assar Press, 2009, pp. 144. Cumpre acrescentar que esta modificação do quarto critério só deve ser tida em conta depois de devidamente comprovado que os objectivos determinados são diferentes da maximização do lucro, o que entre nós não parece ser uma realidade apreendida pelos gestores públicos, muitas vezes preocupados em maximizar o lucro das empresas no intuito de maximizar também os seus prémios de gestão. (43) O regime europeu em matéria de transparência encontra-se actualmente consagrado na Directiva 2006/111/CE, de 16 de Novembro, no qual os poderes públicos integram “todas as autoridades públicas incluindo o Estado, as autoridades regionais e locais e todas as outras pessoas colectivas de carácter territorial” e as empresas públicas correspondem a quaisquer “empresas em que os poderes públicos possam exercer, directa ou indirectamente, uma influência dominante em consequência da propriedade, da participação financeira ou das regras que a disciplinam”. (44) É neste contexto que se coloca o problema da “obrigação de elaboração de contas distintas”, em grande medida tributária da “doutrina Altmark Trans” (referimo-nos ao leading case C-280/00). De acordo com a Directiva 2006/111/CE, de 16 de Novembro (ainda não transposta entre nós, reportando-se o regime actualmente em vigor ainda à transposição das Directivas anteriores), uma “empresa obrigada a elaborar contas distintas” é toda a que beneficie de um direito especial ou de um direito exclusivo concedido por um Estado-membro ao abrigo do art. 106.º/1 TFUE, ou que tenha sido encarregada da gestão de um SIEG, ao abrigo do art. 106.º/2 TFUE, e que receba uma compensação em relação a esse serviço, qualquer que seja a forma que a mesma assuma, e que prossiga outras actividades, podendo a mesma ficar “isenta” das obrigações estipuladas no art. 1.º/2 da Directiva, sempre que as empresas encarregadas de SIEG, nos termos do art. 106.º/2 TFUE, independentemente da forma que assumam as compensações que recebam, tiverem sido fixadas por um período adequado na sequência de um procedimento aberto, transparente e não discriminatório. Recorde-se que foi o não cumprimento destes requisitos, ou seja, a inexistência de contas separadas, e o desrespeito pelas regras do Regulamento (CE) n.º 1191/69, que levaram o TJCE a considerar que no caso da Carris e da STCP as indemnizações compensatórias pagas pelo Estado àquelas empresas não cumpriam as regras europeias — Proc. C-504/07. (45) É o caso, por exemplo, da prestação de serviços de transporte ferroviário internacional de passageiros, recentemente liberalizado com a publicação do Decreto-Lei n.º 20/2010, de 24 de Março.

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Para além da modalidade de prestação do serviço através de operadores internos, o Regulamento (CE) n.º 1037/2007 consagra ainda a possibilidade de prestação dos serviços de transporte em regime de exclusivo ou mediante compensações se a prestação for efectuada por terceiros, os quais devem ser seleccionados por concurso, de acordo com as regras do art. 5.º/2 (procedimento concursal específico que prevalece sobre as regras gerais da contratação pública), tendo em vista a ulterior celebração do contrato de serviço público, que neste caso se orienta maioritariamente pelos critérios definidos pela jurisprudência do TJUE em matéria de financiamento de obrigações de serviço público (a denominada “doutrina Altmark Trans”). Em alternativa, o Regulamento prevê também a possibilidade de serem fixadas regras gerais que estabeleçam tarifas máximas para o conjunto dos passageiros ou para determinadas categorias de passageiros (art. 3.º/2 do Regulamento), sendo os operadores de serviços públicos posteriormente compensados financeiramente, de acordo com as regras dos arts. 4.º e 6.º do Regulamento e respectivo anexo (46). O regime de especial de financiamento dos serviços públicos de transporte rodoviário e ferroviário baseia-se na regra de que os operadores são compensados pelos custos em que incorrem com as obrigações de serviço público, mas essa compensação tem de ser regulamentada e regulada para que não existam sobrecompensações (arts. 4.º e 6.º do Regulamento). Quando se trate de compensações ligadas a contratos de serviço público celebrados por ajuste directo com terceiros ou com operadores internos, as exigências são agravadas, pois “a compensação não pode exceder um montante que corresponda ao efeito financeiro líquido decorrente da soma das incidências, positivas ou negativas, da execução da obrigação de serviço público sobre os custos e as receitas do operador de serviço público” (ponto 2 do anexo). Neste contexto, é importante estipular claramente as modalidades de repartição das receitas ligadas à venda de títulos de transporte — segundo o art. 4.º/2 do Regulamento as receitas podem ser conservadas pelos operadores de serviço público, transferidas para as autoridades competentes ou partilhadas entre ambos — bem como o prazo de duração dos contratos de serviço público — que são em regra de dez anos para os serviços rodoviários em autocarro e de quinze anos para os serviços ferroviário (art. 4.º/3 do Regulamento). O regime de especial de financiamento dos serviços públicos de transporte rodoviário e ferroviário impede, também, a manutenção de subvenções cruzadas

Veja-se que o art. 3.º/3 do Regulamento (CE) n.º 1307/2007 permite excluir do seu âmbito de aplicação as regras gerais em matéria de compensações financeiras por obrigações de serviço público que fixem tarifas máximas para estudantes, formandos e pessoas com mobilidade reduzida, o que significa que neste caso podem ser aplicadas regras mais flexíveis. (46)

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em qualquer das suas modalidades, como resulta expressamente do n.º 5 do anexo ao Regulamento (CE) n.º 1370/2007, ao impor que, através das “contas separadas” os custos de serviço público sejam equilibrados pelas receitas de exploração e pelos pagamentos das autoridades públicas, sem transferência de receitas para outro sector de actividade, não podendo ser imputados ao serviço público, designadamente, todos os custos variáveis, nem uma contribuição adequada para os custos fixos e nem um “lucro razoável” (47) ligados a qualquer outra actividade do operador de serviço. Isto obriga a que as empresas que exercem uma actividade sujeita a obrigações de serviços público conjuntamente com outras actividades não só tenham de separar as contas da primeira actividade, mas ainda que estabelecer uma afectação repartida dos respectivos activos e custos fixos, de acordo com as regras fiscais e contabilísticas em vigor. Para uma correcta aplicação destes regimes jurídicos, e uma efectiva garantia dos objectivos, aceites e reiterados pelo Governo português, no sentido de que “o pagamento de compensações de obrigações de serviço público deve ser estabelecido de forma objectiva e alicerçado em critérios e transparência, economia e eficiência do serviço prestado, de modo a evitar a sobrecompensação ou compensação cruzada” (48), não basta separar as contas, é também essencial lançar mão dos novos instrumentos que caracterizam a regulação económica e que permitem “controlar” os resultados e verificar se os mesmos são eficientes, mesmo sem existir mercado, ou se estamos perante um “excesso de compensação” (49). Referimo-nos, neste caso concreto, ao benchmarking económico para determinar se a alocação de custos imputada ao valor de obrigações de serviço público é adequada, ou seja, se corresponde a um resultado económico semelhante ao que seria obtido em regime de mercado (Anreizregulierung) (50). O Regulamento (47) De acordo com o ponto 6 do Anexo, entende-se por “lucro razoável” uma “taxa de remuneração do capital que seja habitual no sector num determinado Estado-membro, e que deve ter em conta o risco, ou a inexistência de risco, incorrido pelo operador de serviço público devido à intervenção da autoridade pública”. (48) Preâmbulo da Resolução do Conselho de Ministros n.os 23/2011, de 18 de Abril, que estabeleceu os montantes das verbas relativas aos serviços públicos de transporte ferroviário e rodoviário de passageiros, atribuídas ao Metropolitano de Lisboa, REFER e CP, para os anos de 2011-2013. (49) A expressão “excesso de compensação” é utilizada no documento que procede ao enquadramento comunitário dos auxílios estatais sob a forma de compensação de serviço público (2005/C 297/04), aplicável às compensações de serviço público concedidas a empresas, relativamente a actividades sujeitas às regras do Tratado, com excepção do sector dos transportes e do serviço de radiodifusão. (50) Sobre as diversas variantes das três principais modalidades de regulação orientada para a imitação dos resultados de mercado — a regulação dos preços (price-cap), a regulação das receitas (revenue-cap) e a regulação de grupos empresariais ou monopólios geográficos (yardstick

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(CE) n.º 1370/2007, ao adoptar o método “Fully-Distributed-Cost” (51) facilita não só esta operação, mas também a tarefa do controlo judicial ex-post (52). Até ao momento, a compensação dos custos pelas obrigações de serviço público entre nós tem assentado sobretudo no disposto nos arts. 3.º e 5.ºss do Decreto-Lei n.º 167/2008, de 26 de Agosto, onde se encontra estabelecido o regime jurídico das indemnizações compensatórias. Na verdade, a preocupação do legislador nacional parece centrar-se na obrigatoriedade de contratualização da prestação de serviços de interesse geral (art. 5.º) (53) — não tendo sido prevista a possibilidade de as mesmas serem estabelecidas por regras gerais que seriam depois complementadas com a outorga de compensações — e na determinação da forma de cálculo das indemnizações compensatórias (art. 6.º), onde são, no essencial, consideradas as regras gerais europeias quer no que respeita à obrigação de transparência, quer no que se refere à determinação das margens de lucro. Embora a publicidade que tem vindo a ser dada aos montantes atribuídos não inclua a informação suficiente para que se perceba se os princípios de regulação económica antes mencionados têm sido correctamente aplicados, nem disponhamos de jurisprudência adequada para perceber o tipo de controlo que tem sido efectuado.

competition) — em áreas onde não é possível instituir mercados — v. BERNDT, Die Anreizregulierung in den Netzwirtschaften, Nomos, 2011, pp. 75 ss. (51) Neste método todos os custos são sistematicamente imputados aos resultados individuais, incluindo os custos comuns — Cf. FEHLING, «Problems of Cross-Subsidisation», in KRAJEWSKI / NEERGAARD / GRODEN, The changing legal framework for services of general interest in Europe, Assar Press, 2009, pp. 132. (52) Cf. Acórdão Países Baixos/Comissão (Proc. T-231/06), § 140. Não devemos esquecer que o controlo judicial da actividade de regulação económica é hoje um dos grandes desafios do Estado de Direito — v. ARIÑO ORTIZ, «El control judicial de las entidades reguladoras. La necessária expansión del Estado de Derecho», Revista de Administración Pública, 2010/182, pp. 9 ss. (53) Pelo menos tem sido esta a interpretação que a jurisprudência do Tribunal de Contas e a doutrina (cf. Rui MEDEIROS, «Âmbito do novo regime da contratação pública à luz do princípio da concorrência», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 69, Maio/Junho 2008») parecem fazer da conjugação das regras europeias em matéria de contratação pública e de auxílios de Estado às empresas públicas, o que acabou por ter reflexos na legislação nacional. Na verdade, também a doutrina estrangeira destaca as virtudes da associação entre a contratação pública e o regime dos auxílios de Estado — v. BOVIS, «The conceptual links between state aid and public procurement in the financing of services of general economic interest», Krajewski / Neergaard / Groden, The changing legal framework for services…, pp. 149 ss. —, embora importe distinguir que em matéria de transportes as compensações e as ajudas financeiras das entidades públicas obedecem a critérios especiais, que justificam a multiplicação de “esquemas públicos de apoio à infra-estruturação destes serviços”, particularmente complexos no domínio marítimo (ex. programa de apoio às auto-estradas do mar) e aéreo (ex. regulamentos que aprovam os regimes especiais de auxílios públicos neste domínio) referidos no nosso «Direito Administrativo dos Transportes», Tratado de Direito Administrativo Especial V (em publicação).

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No caso das indemnizações compensatórias devidas a empresas locais encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral em matéria de transportes, devem aplicar-se as regras do Regime Jurídico do Sector Empresarial Local, nos termos das quais a subordinação das empresas que integram aquele sector às regras da concorrência não pode pôr em crise as respectivas missões (54). Segundo este regime jurídico, as transferências financeiras necessárias ao financiamento anual da actividade de interesse geral prosseguido pelas empresas locais terão de ser estabelecidas através de um contrato de gestão (55). Mais uma vez somos tentados a afirmar que a solução aqui vertida é demasiado estreita, pois impõe (56) um regime de “contratos regulatórios internos” (57) para a atribuição das compensações de serviço público, quando poderia ter optado por outras alternativas, designadamente, por não “publicizar” estes contratos e permitir que os mesmos se autonomizassem da concessão do serviço e seguissem o regime do direito privado, mais ajustado à natureza obrigacional da relação jurídica a que dão origem (58). Estas mudanças na organização e no financiamento dos serviços de bem-estar acarretam uma mudança de paradigma na concepção dos serviços públicos confrontando os utentes com um dado fundamental: há-que suportar os custos destes serviços e a nova realidade aponta para a maior responsabilização de cada um por uma parte significativa desses custos, congruente com um modelo mais ajustado a um “Estado fiscal asténico” em decorrência do encurtamento da base tributária e do consequente reforço da carga tributária, que torna inoperativo o sistema redistributivo tradicional. Nesta conformidade, a questão que agora enfrentamos é a de saber qual o sentido actual da distinção entre utente e de consumidor. Uma distinção que o nosso legislador vai mantendo apesar da pouca efectividade que alcança (59), e Cf. art. 10.º da Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro. Cf. art. 20.º da Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro. (56) Cf. Ac. do Tribunal de Contas n.º 16/2010, de 27 de Abril, respeitante à EMEL, no qual o tribunal afirma, obter dictum, a indispensabilidade da celebração de contratos de gestão, sempre que esteja em causa a remuneração de obrigações de serviço público “encarregadas” pelos municípios a empresas locais. (57) Expressão que colhemos em Pedro GONÇALVES, «Regulação administrativa e contrato», Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, 2010, pp. 1023-1024. (58) Em defesa desta solução v. A. MOZZATI, Contributo allo studio del contrato di Servizio, Giappichelli, Torino, 2010. (59) Entre nós existe um regime jurídico geral de protecção do consumidor, plasmado na Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (entretanto alterada, por último pela Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril), e um regime de protecção dos utentes de serviços essenciais, aprovado pela Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, alterada pelas Leis n.º 12/2008, de 26 de Fevereiro, n.º 24/2008, de 2 de Junho, e n.º 6/2011, de 10 de Março. Apesar de algumas especificidades resultantes do facto de o utente ser um consumidor de bens e serviços essenciais, o que significa que são bens de consumo inevitável, (54) (55)

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qual a protecção que os mais carenciados podem esperar do Estado no acesso a estes serviços (60). Se alguns questionarão a matriz política da mudança, e apontarão “o preço do serviço essencial” como uma prova da desigualdade social que o modelo de serviço universal gera, outros, porém, mesmo que não questionem os princípios em que o novo modelo repousa serão confrontados com uma alocação significativa do seu rendimento disponível para o custo destes serviços, podendo mesmo vir a defrontar-se com uma “realidade cruel” em que os “preços” exigidos pelas empresas prestadoras destes serviços não são compagináveis com o seu rendimento disponível, ficando limitado ou impedido o respectivo acesso a estes serviços. Que respostas o novo modelo apresenta para estas duas situações?

4. A GARANTIA DO MÍNIMO DE BEM-ESTAR PARA LÁ DA REGULAÇÃO ECONÓMICA E aqui começamos por uma pergunta essencial: a regulação pública destes sectores económicos deve incluir a questão da socialidade (entendida como acesso universal a preços compagináveis com o rendimento disponível dos utentes) ou apenas objectivos de eficiência económica (performance óptima das empresas) (61)? A resposta não é clara no texto dos Tratados, pois se por um lado admite “auxílios às empresas” para reembolso de certas prestações inerentes à noção de serviço público nos termos antes analisados, em que nos concentrámos essencialmente no domínio dos transportes (art. 93.º do TFUE), por outro refere-se à

a verdade é que o fundamento para o reconhecimento de deveres de protecção é comum em ambos casos, o que leva a doutrina a fazer um tratamento conjunto do problema — Cf. VIEIRA DE ANDRADE, «Os direitos dos consumidores como direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976», Estudos de Direito do Consumidor, 2003/5, pp. 139ss; e, no mesmo sentido, CASALTA NABAIS, «O estatuto constitucional dos consumidores», Estudos de Direito Fiscal III, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 7 ss. (60) Sublinhe-se, neste contexto, a maior efectividade que apresentam os regimes jurídicos europeus de protecção dos clientes vulneráveis nos sectores das utilities como é o caso dos consumidores de energia eléctrica. (61) A questão que formulamos prende-se exclusivamente com a estrutura global da organização sectorial no plano europeu e respectivos instrumentos de financiamento e não propriamente com o debate clássico sobre as vias de conciliação da regulação económica com a regulação, embora seja importante destacar a este propósito a recente evolução na orientação da política de regulação norte-americana que vem aprofundado o vector social no âmbito da smart regulation. Referimo-nos à Executive Order 13563, de 18/01/2011 — “Improving Regulation and Regulatory Review” — e ao Memorandum de 02/02/2011 do Executive Office of the Presidente, subscrito por Cass Sunstein.

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admissibilidade de “auxílios de natureza social atribuídos a consumidores individuais com a condição de serem concedidos sem qualquer discriminação relacionada com a origem dos produtos” (art. 107.º/2/a) do TFUE). É caso para perguntar se devemos apoiar empresas às quais impusemos obrigações de serviço público para tornar os preços mais acessíveis ou se devemos também apoiar os consumidores que não conseguem suportar mesmo os “preços” fixados no âmbito do funcionamento de um mercado eficiente. Sobressai neste contexto o problema dos clientes vulneráveis no sector eléctrico (62), para os quais o direito europeu preconiza medidas de protecção especial ligadas aos sistemas de protecção social — “os Estados-Membros deverão tomar as medidas necessárias para proteger os clientes vulneráveis no contexto do mercado interno da electricidade. Essas medidas podem diferir de acordo com as circunstâncias particulares de cada Estado-Membro e podem incluir medidas específicas a nível do pagamento das contas de electricidade ou medidas mais gerais tomadas no âmbito do sistema de segurança social” (63). A nossa resposta segue de perto o que tem sido aventado na doutrina alemã, onde, em nosso entender, se procura construir uma terceira via para integração da Daseinvorsorge na prestação em ambiente de mercado de alguns SIEG. Esta terceira via, cujos contornos não estão ainda bem definidos, radica fundamentalmente num pressuposto de base: não vamos remeter para o conceito de pobreza, e de apoio social à pobreza e à exclusão social, aqueles cujo rendimento disponível não é compaginável com os “preços” que o mercado regulado fixa para os SIEG (64). Do que se trata aqui, em nosso entender, é ainda de um dever

(62) Na verdade, em decorrência do modelo que até aqui tem vigorado no âmbito do financiamento público das tarifas eléctricas — através do denominado mecanismo do deficit tarifário — tem sido possível assegurar o acesso universal a este serviço a custos inferiores aos da respectiva produção, mas a reestruturação tarifária que se avizinha, com o fim deste mecanismo (considerado por muitos um “empecilho” relevante à dinamização do mercado — veja-se que em Espanha o Real Decreto-ley 6/2009, de 30 de Abril, consagra um mecanismo de titularização do deficit tarifário com o objectivo de recuperar estes créditos impedir que as empresas eléctricas fiquem em situação crítica) conjuntamente com a expurgação de outros custos de interesse económico geral da tarifa de uso global do sistema, pode significar, a breve prazo, um problema sério para uma parte significativa dos consumidores de energia eléctrica. (63) Cf. Preâmbulo da Directiva 2009/72/CE, de 13 de Julho de 2009, § 45. Ver também arts. 3.º/7 e 8 e 36.º/h) da referida Directiva. (64) Aparentemente essa parece ter sido a escolha do nosso legislador, quer pelo âmbito reduzido que delimitou para o universo dos clientes vulneráveis no art. 2.º do Decreto-Lei n.º 138-A/2010, de 28 de Dezembro (sector eléctrico) e no art. 2.º do Decreto-Lei n.º 101/2011, de 30 de Setembro (sector do gás natural), quer pelo esquema de financiamento que erigiu para a respectiva sustentação no caso do sector eléctrico — Portaria n.º 1334/2010, de 31 de Dezembro — através de um encargo sobre os produtores, contrariamente ao que se verifica no sector do gás natural, onde esse encargo é repartido por todos os consumidores daquele serviço (art. 4.º

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do Estado na garantia da prestação destes serviços (Estado garantidor), ou seja, da conformação jurídica de uma tarefa estadual e não de medidas que devam ser reconduzidas ao universo da solidariedade social — é este o conteúdo da função reguladora de garantia. Concordamos por isso com Franzius, quando o autor se opõe à concepção de Schuppert no que respeita ao significado e conteúdo da regulação de garantia, pois não se trata aqui de um “Estado que fica no banco como reserva” e que dispõe do poder de “reversão da privatização” em caso de “necessidade”, mas sim de um Estado que anda no campo, não apenas como árbitro dos players, mas também como dirigente desportivo, escolhendo os melhores para entrar em jogo, e, fundamentalmente, como organizador do próprio jogo, como aquele que tem o conhecimento e o poder de ditar os resultados que devem ser alcançados (65). A partir desta posição evitamos também trabalhar com ficções, afastando uma parte da doutrina que tenta encontrar a obrigação de prestação do Estado a partir do alargamento do conceito de dignidade da pessoa humana às prestações materiais mínimas para uma existência condigna (66). Assim, a resposta dada pela terceira via, em sectores onde o nível de concorrência já se encontra em fase de maturidade aceitável (67), assenta na instituição de esquemas de financiamento da solidariedade no contexto intra-sectorial, que permitem “subsidiar os preços” ao consumidor vulnerável (conceito que em nosso entender deverá abranger um universo mais vasto do que o actual

do Decreto-Lei n.º 101/2011). Embora o mecanismo espanhol do bono social eléctrico (instituído pelo Real Decreto-ley 6/2009, de 30 de Abril) seja semelhante ao modelo português para o sector eléctrico, sobretudo no respeita à respectiva forma de financiamento, abrange um número maior de “consumidores vulneráveis”. A equiparação dos mecanismos no sector eléctrico constitui, de resto, uma decorrência normal da regionalização do mercado na produção (o MIBEL). Entre nós este sistema é depois reforçado com o reconhecimento de um apoio adicional — o apoio social extraordinário ao consumidor de energia (ASECE) — instituído pelo Decreto-Lei n.º 102/2011, de 30 de Setembro, cuja finalidade é reduzir o impacto sobre os clientes vulneráveis (os mesmos antes identificados!) do aumento da taxa de IVA (de 6% para 23%), decorrente da alteração ao CIVA prevista na Lei n.º 51-A/2011, de 30 de Setembro. A ASECE consiste num desconto de uma percentagem sobre o valor das facturas de electricidade e gás natural dos clientes vulneráveis (Portaria n.º 275-A/2011, de 30 de Setembro), sendo financiada pelo Estado (art. 4.º do Decreto-Lei n.º 102/2011) e a sua efectivação garantida pelos comercializadores em colaboração com a DGEG e as instituições de segurança social (Portaria n.º 275-B/2011, de 30 de Setembro). (65) FRANZIUS, Gewährleistung im Recht…, pp. 628-629. (66) Sobre a questão de o mínimo de existência como condição da dignidade da pessoa humana v., por último, SEILER, «Das Grundrecht auf ein menschenwürdiges Existenzminimum», JZ, 10/2010, pp. 500 ss. (67) Até que esta fase seja alcançada a resposta é, como vimos, a do Estado regulador, que dispõe de instrumentos poderosos para obrigar as empresas a actuar em ambiente de mercado, mesmo quando esse mercado na prática ainda não existe e é apenas ficcionado através dos instrumentos regulatórios disponíveis.

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incluindo na tarifa social) a partir de ajudas atribuídas directamente ao consumidor (cheque-energia (68)) provenientes da tributação (contribuições especiais de natureza social (69)) de comportamentos e práticas ineficientes, o que exige um estudo detalhado de cada sector para identificar os mecanismos de compensação, ou seja, é a utilização sumptuária ou excessiva de um recurso escasso (energia) que há-de financiar o consumo básico carecido de apoio público. Esta forma de resposta é uma consequência directa da substituição do direito económico pela tributação económica — a “nossa” terceira via na resposta à garantia da coesão social em ambiente de mercado pós-social. Em jeito de conclusão, parece-nos importante destacar que este novo modus de garantia do bem-estar social não parte da premissa de um apport público de base como alavanca garantidora da coesão social, baseando-se antes num esquema dinâmico de realização do bem-estar, que apela à responsabilização social (pela prestação), pública (pela regulação) e individual/colectiva (pela sustentação financeira), mas que comporta institutos capazes de assegurar o valor da solidariedade e o mesmo nível de coesão — haja conhecimento para pôr em prática as políticas correctas e dimensão europeia na sua execução!

(68) O “cheque-energia”, instituído pelo ASECE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 102/2011, deixa-nos algumas dúvidas quanto aos resultados que irá ocasionar, pois na prática assistimos a um “duplo apoio” a um conjunto muito limitado de utentes, atendendo à delimitação legal do universo dos “clientes vulneráveis” nos sectores energéticos, que beneficiarão da tarifa social e do ASECE, criando um gap muito acentuado relativamente à total desprotecção de outros clientes. Facto que se torna especialmente claudicante quando o universo dos clientes vulneráveis é definido a partir de categorias de apoios sociais em vez de níveis de rendimento, o que significa que podemos ter uma “discriminação tripla” entre um falso beneficiário do Rendimento Social de Inserção e um pensionista com uma pensão social de baixo valor, mas que não preencha os requisitos legais para beneficiar do complemento social para idoso ou da pensão social por invalidez, ou mesmo se estiver em comparação com um trabalhador que receba o salário mínimo e não tenha filhos. A justiça e a equidade na atribuição de benefícios sociais são em regra difíceis de concretizar, mas neste caso o que importa sublinhar é a insuficiência da resposta relativamente ao problema patente na “big picture”: a garantia da acessibilidade geral a SIEG’s no sector energético. (69) No fundo, não estamos a propor um sistema muito diferente daquele que foi pensado originariamente para sustentar financeiramente o serviço universal de telecomunicações, quando foi instituída a possibilidade de compensação através de fundos públicos (art. 97.º da Lei das Comunicações) que seriam dotados a partir de contribuições suportadas pelos restantes operadores. Na Alemanha existe um sistema semelhante financiado pelas contribuições de serviço universal (Universaldienstleistungsabgaben — §83 TKG/2004 — v. FRANZIUS, Gewährleistung im Recht…, pp. 568). Neste caso o fundo não teria como finalidade a repartição de custos entre empresas pela garantia de um serviço universal, mas antes um esquema de solidariedade entre consumidores no acesso a um serviço essencial. Na verdade, esse parece ter sido o mecanismo encontrado pelo legislador no caso do gás natural, conforme o disposto no já mencionado Decreto-Lei n.º 101/2011, ainda por regulamentar.

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