SUSTENTANDO A TENSÃO: UM ESTUDO GENEALÓGICO SOBRE AS POSSIBILIDADES DE AÇÃO TRANSDISCIPLINAR EM EQUIPES DE SAÚDE

Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO - UFES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA DOUTORADO EM PSICOLOGIA DINTER UFES-Univasf

Barbara Eleonora Bezerra Cabral

SUSTENTANDO A TENSÃO: UM ESTUDO GENEALÓGICO SOBRE AS POSSIBILIDADES DE AÇÃO TRANSDISCIPLINAR EM EQUIPES DE SAÚDE

Vitória-ES / Petrolina-PE 2011

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO - UFES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA DOUTORADO EM PSICOLOGIA DINTER UFES-Univasf

Barbara Eleonora Bezerra Cabral

SUSTENTANDO A TENSÃO: UM ESTUDO GENEALÓGICO SOBRE AS POSSIBILIDADES DE AÇÃO TRANSDISCIPLINAR EM EQUIPES DE SAÚDE

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de doutora, pelo Programa de PósGraduação em Psicologia da UFES (DINTER UFES/UNIVASF). Orientadora: Profª. Drª. Angela Nobre de Andrade

Vitória-ES / Petrolina-PE 2011

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

C117s

Cabral, Barbara Eleonora Bezerra, 1975Sustentando a tensão : um estudo genealógico sobre as possibilidades de ação transdisciplinar em equipes de saúde / Barbara Eleonora Bezerra Cabral. – 2011. 185 f. Orientador: Angela Nobre de Andrade. Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais. 1. Saúde pública. 2. Saúde mental. 3. Cuidados primários de saúde. 4. Grupos de trabalho. 5. Abordagem interdisciplinar do conhecimento. 6. Observação participante. I. Andrade, Angela Nobre de. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências Humanas e Naturais. III. Título. CDU: 159.9

Barbara Eleonora Bezerra Cabral

SUSTENTANDO A TENSÃO: UM ESTUDO GENEALÓGICO SOBRE AS POSSIBILIDADES DE AÇÃO TRANSDISCIPLINAR EM EQUIPES DE SAÚDE

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de doutora, pelo Programa de PósGraduação em Psicologia da UFES (DINTER UFES/UNIVASF). Aprovada em: 19 /12 /2011. BANCA EXAMINADORA _________________________________________________________ Profª. Drª. Angela Nobre de Andrade (orientadora) Universidade Federal do Espírito Santo – UFES _________________________________________________________ Profª. Drª. Fátima Corrêa Oliver Universidade de São Paulo – USP _________________________________________________________ Profª. Drª. Henriette Tognetti Penha Morato Universidade de São Paulo – USP _________________________________________________________ Profª. Drª. Maristela Dalbello Araújo Universidade Federal do Espírito Santo -- UFES _________________________________________________________ Profª. Drª. Zeidi Araújo Trindade Universidade Federal do Espírito Santo -- UFES

Dedico esta tese aos que acreditam em milagre como fruto possível do agir humano...

AGRADECIMENTOS À vida, que sempre surpreende e dá passagem ao inesperado, sendo nela que vislumbro o divino... À minha mãe – Graça –, pelo amor e por estar sempre me ensinando a ampliar a visão da vida, tendo uma influência fundamental em quem venho me constituindo, e ao meu pai – Paulo –, pelo amor conquistado e consolidado... Aos meus irmãos – Paxito e Lula – pelo porto-seguro que são para mim, agora ampliado pelas Flavinha(s) e pelo precioso piccolo Henrique... Às minhas tias queridas – Teca, Dade, Zeza, Coca, Beta (in memoriam) e Fátima, por terem alargado enormemente a minha referência materna, e a todos os meus familiares, em especial minha tia-avó Margarida... A Mi, minha pada, com quem tenho aprofundado diariamente meu aprendizado de querer bem e lapidado a referência de “casa”... pelo amor e paciência... Aos meus avós Zé do Óleo, Maria Ferreira e à “vozinha” Creuza (in memoriam)... Aos novos familiares que fui descobrindo ao longo da estrada, em especial aos irmãos Raísa e Renato... A Angela, orientadora e amiga querida, que me acolheu e incentivou a saltar do trampolim, levando adiante esta tese... com ela aprendi a valorizar ainda mais a importância da leveza e dos bons encontros... A Henriette, querida amiga e sempre orientadora, principalmente pelas tatuagens suaves e gentis que imprimiu no meu modo de ser psicóloga... A todos os meus professores, desde o jardim da infância... Aos amigos, tão queridos, pelo apoio sempre à mão... Aos colegas de trabalho de todos os dispositivos por onde passei, em especial às equipes do CAPS Estação Cidadania (Cabo de Santo Agostinho-PE) e do CAPS Galdino Loreto (Recife-PE), com quem muito aprendi, construindo amizades fundamentais...

Aos colegas do MINTER-DINTER UFES-UNIVASF (especialmente Darlindo, por ter garimpado o curso), do Colegiado de Psicologia da Univasf e do Comitê Gestor da Residência Multiprofissional em Saúde da Família, pelo compartilhamento de tantas conquistas e do trabalho cotidiano... Aos componentes das equipes NASF de Juazeiro-BA e Petrolina-PE, meus interlocutores em campo, e aos gestores das respectivas Secretarias Municipais, que foram muito solícitos à minha proposta de estudo... Aos meus alunos, cheios de luz, especialmente aos que compuseram os grupos de Estágio Profissionalizante sob minha responsabilidade, pelas instigantes questões trazidas do campo, e aos orientandos de TCC da graduação e da Residência, com quem fui aprofundando e burilando a arte de pesquisar... A Diego Barrense, Érika Freire e Sâmella Vieira, pelo gentil apoio “técnico” em certos pontos do trajeto da pesquisa... A todos os participantes que viveram comigo o desafio de compor as ações do Grupo PET-Saúde Mental/Saúde da Família de Juazeiro-BA... A Fátima Corrêa Oliver, Henriette T. P. Morato, Maristela Dalbello de Araújo e Zeidi Araújo Trindade, pela disponibilidade de avaliar o trabalho e pelas contribuições inestimáveis advindas dessas leituras... Aos pesquisadores do LAPPIS/IMS/UERJ, pelas produções e possibilidades de encontro e interlocução epistemológica que foram se gestando ao longo da produção da tese... Ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES, que topou se aventurar em terras sertanejas... A José Bismark e à equipe da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PRPPG)/Univasf, pelo investimento no MINTER/DINTER UFES/Univasf... À FACEPE, pelo importante investimento ao meu processo de aprimoramento profissional.

Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. Riobaldo, personagem de “Grande Sertão: Veredas” (Guimarães Rosa)

RESUMO O objetivo principal da pesquisa foi compreender as possibilidades de ação transdisciplinar em equipes de saúde, elegendo-se as práticas de equipes multiprofissionais, com inserção de psicólogos, dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) das cidades de Juazeiro-BA e Petrolina-PE. Especificamente, buscou-se delinear aspectos que expandissem e os que restringissem a ação transdisciplinar em equipes, além de conhecer e analisar as frestas construídas para esta ação. De partida, compreende-se ação transdisciplinar como produção coletiva, ocorrendo no contexto dos encontros diversos nas redes de atenção à saúde. O cenário é o da Atenção Primária à Saúde, centrando-se na Estratégia Saúde da Família e, sobretudo, na atuação dos NASFs. Destaca-se que a entrada da pesquisadora nesse universo ocorreu via rede de cuidados em saúde mental. A proposta se justificou pela dificuldade apontada em diversos estudos de uma atuação em saúde integrada e sintonizada com as demandas dos usuários, em que o trabalho em equipe é continuamente sinalizado como uma ferramenta crucial. O marco teórico-filosófico recorre principalmente ao pensamento de Nietzsche, Espinosa e Arendt. O método se caracterizou como pesquisa-interventiva, a partir de uma perspectiva nietzscheana, respaldando-se na cartografia, como modo de entrada e permanência em campo, e na avaliação genealógica das práticas das equipes. A experiência é tomada como fonte primeira de produção compreensiva. Os principais interlocutores foram profissionais integrantes das nove equipes NASF existentes nos municípios, cuja composição abrangia: assistentes sociais, profissionais de educação física, farmacêuticos, nutricionistas e psicólogos. A inserção cartográfica ocorreu por cinco meses em cada uma das cidades, tendo sido priorizada a participação em reuniões formais das equipes, contatos/diálogos informais em grupos ou individuais com os profissionais e atividades nas unidades de saúde da família. Foram elaborados registros em diário de bordo, além da gravação em áudio de conversas individuais e grupais e, em vídeo, do encontro final com todo o grupo NASF de cada município. A matéria-prima colhida foi extensivamente analisada, dando margem à construção de contos. Embora os próprios contos já expressem viés interpretativo, guiado pela questão de pesquisa, tal caráter é aprofundado em posterior elaboração, com produção de compreensões acerca do experimentado, contemplando articulações com outros estudos e o marco teórico-filosófico. O sentido apontado foi o de que é imprescindível a valorização dos espaços coletivos, destacando-se que o fundamental para a ação transdisciplinar é a compreensão de que ela não cabe em prescrições, sendo fundamentalmente da ordem da poiésis. Seu acontecimento se apóia na sustentação de tensão: entre núcleo profissional e campo, prescrição e criação, técnica e techné, atuação por especialidades e ação transdisciplinar. Palavras-chave: Trabalho em Equipe. Transdisciplinaridade. Atenção Primária à Saúde. NASF. Pesquisa interventiva.

ABSTRACT The main objective of the research was to understand the possibilities of transdisciplinary action in health teams, electing the practices of multidisciplinary teams, with the inclusion of psychologists, of the Support Device for Family Health (NASF) of the cities of Juazeiro-BA and Petrolina-PE. Specifically, we sought to identify aspects that expanded and the ones that restricted the transdisciplinary action in teams, besides understanding and analyzing the ways constructed by them for this kind of action. From a starting point, transdisciplinary action is understood as a collective production, occurring in the context of the various encounters in the health care networks. The scenario is the Primary Health Care Level, focusing on Family Health Strategy, especially the performance of NASFs. It is important to highlight that the entry of the researcher in this universe occurred via mental health care network. The research proposal was justified by the difficulty pointed out in several studies of an integrated health action and in tune with the demands of users, in which teamwork is continually flagged as a crucial tool. The theoretical-philosophical reference appeals primarily to the thought of Nietzsche, Spinoza and Arendt. The method is characterized as an interventive research, from a nietzschean perspective, recurring to cartography, as a way of entering and remaining in the research field, and to the genealogical assessment of the teams’ practices. The experience is taken as the primary source of comprehensive production. The main collaborators were professionals of the nine NASF teams of the municipalities, including: social workers, physical education teachers, pharmacists, nutritionists and psychologists. The cartographic insertion of the researcher occurred for five months in each city, in a way that the participation in formal meetings of the teams, individual or group informal dialogues with professionals and activities in family health units have been prioritized. Records were done in a logbook, as well as audio recording of some individual and group conversations and video recording of the final meeting with the NASF group of each municipality. The harvested raw material was extensively analyzed, from which stories were built. Although the stories express an interpretative bias, guided by the research question, such a character is further developed, with the production of comprehensions about what was experienced, that are linked to other studies and to the theoretical-philosophical reference. The direction pointed out was that it is essential to valorize the collective spaces. The fundamental for the transdisciplinary action is the comprehensiong that it does not fit into prescriptions, being fundamentally poiesis. It depends basically on the support of tension: between disciplinary and common field acting, prescription and creation, technics and techné, specialties acting and transdisciplinary action. Key Words: Team work. Transdisciplinarity. Primary Health Care. NASF. Interventive Research.

SUMÁRIO Agradecimentos Resumo Abstract 11

Apresentação Capítulo 1.

Da origem da questão de pesquisa

14

Capítulo 2.

Da caracterização do cenário da pesquisa: os fios da trama

22

2.1

2.2.

Reforma Psiquiátrica e Reforma Sanitária no Brasil: breve delineamento da construção do campo contemporâneo das políticas de saúde

22

Rede de atenção à saúde: a feitura conjunta de ações no território

31

Capítulo 3.

Práticas em saúde e transdisciplinaridade: percussões e repercussões

42

Capitulo 4.

Referencial teórico-filosófico: dos bons encontros à expansão de vida – transitando entre Espinosa e Nietzsche para a compreensão das possibilidades de ação transdisciplinar em saúde

59

Do caminho trilhado para a compreensão do trabalho em equipes de saúde – em busca da produção coletiva

71

5.1

Caracterização geral

71

5.2

Participantes e cenários de pesquisa

73

5.3

Procedimentos

77

5.4

Processo interpretativo da matéria-prima

80

Capítulo 5.

Capítulo 6.

Das possibilidades de ação transdisciplinar em atos: contos da cartografia

83

Primeiro Ato – As Rodas de conversa: aprendendo a aprender coletivamente

85

Segundo Ato – Processo formativo: possibilidades de entrelaçamento de saber e sabor?

93

Terceiro Ato – O “terceiro olho”: as reverberações da chegada de estrangeiros 103 Quarto Ato – Os livros de ata: capturados pelo desejo de controle?

111

Quinto Ato – Um encontro quase marcado e seus efeitos miraculosos

118

Sexto Ato – Reuniões de equipe: o desafio da criação de espaços de produção coletiva 123

Sétimo Ato – Esquecimentos e desencontros: a delicadeza na construção das relações nas e entre equipes 132

Capítulo 7.

Oitavo Ato – Reuniões por categoria: o “lugar da contradição” ou um paradoxo?

142

Nono Ato – Trabalho em equipe: um “quebra-cabeça”

151

Décimo Ato – O “pulo do gato”: o desafio da afinação coletiva

161

Das considerações vitais: provocações para levar adiante

168

Referências Bibliográficas

176

11

Apresentação Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório.1

Assumir a questão de pesquisa debatida nas próximas páginas me custou um investimento intenso ao longo desses quase quatro anos de doutoramento. Ela inicialmente se apresentou multifacetada e esparsa, múltipla e fragmentada, constituindo-se aos poucos: Como ocorrem as práticas cotidianas de equipes de saúde? Como essas equipes podem conquistar um entrosamento mínimo na práxis diária? Em que medida seus profissionais exercem uma produção coletiva? O que podem as equipes? Assim, paulatinamente, fui me aproximando do que se tornou a questão-bússola do estudo, apresentada e escrutinada adiante, atentando aos fragmentos que se revelavam, revisitando minha trajetória profissional, buscando clarear o que me movia na direção de melhor compreender o trabalho em equipe, paquerando cada contorno que surgia e, por vezes, estranhando o que se configurava. Confesso que, não raras vezes, pus a questão em questão... Ela me fazia deslizar nas suas circunscrições e configurações quase infinitas, como num caleidoscópio, de modo que ora a achava super pertinente – afinal, embora se fale tanto do trabalho em equipe, o que se costuma mais comumente testemunhar nos serviços de saúde são práticas segmentadas e desarticuladas – ora me assustava com a sua obviedade – pois já se falava tanto do trabalho em equipe que seria difícil trazer novidades a esse respeito. Resolvi apostar – incentivada por Angela Andrade, minha orientadora, além de alguns interlocutores fundamentais, a exemplo de Henriette Morato e Zeidi Trindade, que compuseram a banca de qualificação do meu projeto, e dos estudantes do meu grupo de supervisão de estágio profissionalizante em Psicologia, que viviam as delícias e agruras da inserção em equipes de dispositivos do Sistema Único de Saúde (SUS). Parecia valer a pena seguir em frente, pois a proposta alvejava discutir o tema a partir de uma atenção e mergulho na experiência do trabalho de equipes de saúde, não se tratando meramente de teorizar a seu respeito, tampouco de buscar a elaboração de um manual. Não! O caráter de ineditismo – que costuma pesar como exigência para uma tese – estaria no que pudesse ser produzido a partir da imersão em campo, na minha aproximação com os profissionais, em sua lida cotidiana como membros de equipes de saúde. Tratava-se de uma questão-bússola que se enraizava em minha própria trajetória profissional – como psicóloga do SUS – e que demandava uma inserção experiencial no contexto das práticas dos meus interlocutores no campo. O produto-tese brotaria do intenso processo de afetações mútuas e diversas brotadas nessas experimentações e, quiçá, teria algum sabor inusitado. Os trechos que iniciam cada capítulo correspondem a fragmentos da narrativa de Riobaldo, personagem central de “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa.

1

12

Convencida da pertinência da questão, prossegui, estando, atualmente, mais tranqüila acerca do valor de navegar nas águas revoltas e instáveis das redes públicas de atenção à saúde, atracando em alguns dos seus portos – a Atenção Primária à Saúde e os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) – como via para tecer compreensões acerca da ação transdisciplinar como produção coletiva. Pesquisar ação transdisciplinar em equipes de saúde equivaleu a experimentar trânsito, passagem, movimento. De novo Hermes – em sua faceta de viajante e mensageiro – a inspirar o desafio assumido, como na experiência do mestrado: eu me tornando portadora do que ouvi e vivi, porém produzindo compreensões, como interpretações possíveis do real experimentado, na expectativa de que estimulem e/ou facilitem fluxos, transas, negociações, esmaecimento e reconstrução de fronteiras, contanto que se preserve – ou delineie – a permeabilidade ao novo como característica básica... Em meio à finalização da escrita da tese, deparei-me com a publicação de nova Portaria sobre Atenção Básica (GM/MS nº 2.488, de 21 de outubro de 2011). Tal evento me tomou de assalto, indicando de certa forma o dinamismo do campo. Tomei fôlego, atualizei o que parecia necessário na contextualização do cenário da pesquisa e, novamente, fui adiante... No documento, encontrei fragmentos que reforçavam a pertença da questão de pesquisa à contemporaneidade do campo da saúde coletiva, dentre os quais o destaque de que se continua privilegiando a presença de diferentes formações profissionais nas equipes de saúde, visando a um expressivo grau de articulação, “de forma que não só as ações sejam compartilhadas, mas também tenha lugar um processo interdisciplinar no qual progressivamente os núcleos de competência profissionais específicos vão enriquecendo o campo comum de competências ampliando assim a capacidade de cuidado de toda a equipe”. Apostando na fertilidade do que surgiu no contexto dos encontros no campo, acredito que dali pôde medrar o novo, o inédito e o inusitado, sob a forma de outras compreensões e novas sensibilidades. A importância do que foi produzido se pôs à disposição particularmente no processo de elaboração da análise, em que revivi muitos dos sentimentos/pensamentos/afetações/percepções tidos durante a imersão, ficando, paradoxalmente, maravilhada e espantada com a riqueza do que tinha sido vivido. Exponho, portanto, o que se forjou desse trabalho investigativo nas seções subseqüentes: no Capítulo 1: Da origem da questão de pesquisa, explicito o momento inicial de clareamento da questão de pesquisa; no Capítulo 2: Da caracterização do cenário de pesquisa: os fios da trama, passo à contextualização do campo e cenários escolhidos para que a questão fosse posta em ato; no Capítulo 3. Práticas em saúde e transdisciplinaridade: percussões e repercussões, pouso na apresentação de um panorama geral em torno das práticas em equipes de saúde; no Capítulo 4: Dos bons encontros à expansão de vida – transitando entre Espinosa e Nietzsche para a

13

compreensão das possibilidades de ação transdisciplinar em saúde, delineio o fio condutor do referencial teórico-filosófico a que recorri; no Capítulo 5: Do caminho trilhado para a compreensão do trabalho em equipes de saúde – em busca da produção coletiva, exponho o trajeto percorrido para investigação da questão, indicando os modos da produção interpretativa com base na matériaprima colhida; no Capítulo 6: Das possibilidades de ação transdisciplinar em atos: contos da cartografia, disponho o que brotou da discussão hermenêutica da matéria-prima e no Capítulo 7: Das considerações vitais: provocações para levar adiante, são alinhavados alguns aspectos cruciais frutos do processo interpretativo. Apenas a partir do que puder me chegar de retorno em relação ao que foi produzido com esta pesquisa é que poderei de fato ampliar a avaliação – por enquanto, em larga medida pessoal – de que foi de fato válida, ou seja, de que, em alguma perspectiva, goza de saúde, contribuindo para a reflexão e atualização da questão proposta nos diversos contextos da práxis.

14

Capítulo 1. Da origem da questão de pesquisa Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar em outra banda é num ponto muito mais baixo, bem diverso do em que primeiro se pensou.

Impossível situar a origem da questão que moveu a minha pesquisa de doutorado sem me remeter à minha trajetória profissional. Identifico claramente os fios que interligam o que decidi estudar de modo mais aprofundado nessa etapa formativa a todo o meu processo de aprendizagem nos anos de atuação profissional em serviços ou instâncias das redes públicas de saúde mental nas cidades do Cabo de Santo Agostinho e de Recife, ambas em Pernambuco. Assumindo, alternadamente, diversos lugares nessas redes, desde integrante de equipes de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – como técnica de saúde mental –, até gestora de dois desses serviços e da política de saúde mental de ambos os municípios, fui tecendo, na relação com os colegas de trabalho e com os usuários, modos de exercer a função de psicóloga. Paralelamente a essas experiências, tive ainda a oportunidade de compor, por dois anos, a equipe de psicólogos do Hospital da Restauração, em Recife-PE, o que me rendeu expressivas preocupações e reflexões em torno da viabilidade de um trabalho efetivamente em equipe na saúde, em seus variados cenários. Muito cedo compreendi que as melhores saídas para os inúmeros desafios encontrados no cotidiano das práticas estavam relacionadas com o alargamento contínuo das possibilidades de comunicação e articulação em equipe, com vistas a uma co-produção de estratégias para intervir2. Penso que tal compreensão foi marinando ao longo da minha atuação profissional, estimulada especialmente pela inserção em serviços públicos de saúde, geralmente contextos bastante adversos à promoção de saúde/expansão de vida, em função da defasagem de priorização política contínua para além dos discursos partidários em períodos de campanha eleitoral. Também não demorou muito a que eu percebesse a dificuldade de valorização prática desses momentos de construção coletiva, de modo que os desencontros e desacertos eram muitos mais freqüentes no âmbito mais amplo da rede de serviços, percebendo predominar uma atuação fragmentada e isolada, em que, não raras vezes, o usuário acaba se tornando um joguete. Anos se passaram até que eu me tornasse professora de uma universidade pública no interior do Nordeste, no sertão, voltando ao meu chão e às minhas próprias origens. Até chegar a este ponto, tinha tido a oportunidade de concluir uma pesquisa de mestrado em que o principal foco era o sentido

Foi particularmente pela oportunidade de trabalhar na equipe do Centro de Atenção Psicossocial Estação Cidadania, do Cabo de Santo Agostinho-PE, em que tive a minha primeira experimentação profissional como psicóloga no cenário da atenção à saúde, que aprendi a apostar na produção coletiva.

2

15

que profissionais vinculados de algum modo à Estratégia Saúde da Família (ESF) construíam às suas práticas. Ao ingressar na docência, no curso de Psicologia, segui tendo como principal interesse a atuação em saúde/saúde mental, com ênfase na formação profissional para promover ações em saúde, principalmente a partir de uma inserção no SUS. Assumi o exercício docente intensamente tatuada pelas diversas marcas adquiridas via experiência como trabalhadora de saúde/saúde mental, no contexto público, e, por isso, esse é o cenário escolhido para a discussão da problemática focalizada nessa tese. Ali aprendi a trabalhar em equipe, além de valorizar a intuição como importante ferramenta de trabalho. Antes de apresentar propriamente a questão de pesquisa em destaque, tendo já indicado sua brotação na experiência profissional como psicóloga no SUS – especificamente no campo da saúde mental –, disponho alguns elementos dessa área, que seguirão auxiliando no esclarecimento da origem da presente pesquisa, pois expressam resumidamente o meu modo de apropriação da atuação em saúde/saúde mental no contexto do SUS. Sendo assim, destaco que o processo de transformação da atenção à saúde mental no Brasil teve início no final da década de 1970, fortalecendo-se no panorama da abertura democrática ocorrida no país nos anos 80, concomitantemente com o movimento de reforma sanitária. Questionava-se o modelo de tratamento centrado no hospital psiquiátrico, cuja premissa básica para a recuperação da pessoa em crise psíquica era o isolamento social. Foram identificadas situações de cronificação das pessoas com transtornos psíquicos e de degradação humana em várias destas instituições, além de um perverso mecanismo de obtenção de lucro, que tornaram a necessidade de reorientação dos modos de atenção um imperativo ético. A transformação em curso do modelo assistencial implicava outras compreensões de loucura, desvinculando tal experiência da noção de periculosidade social e exigindo, portanto, uma mudança cultural nos modos de lidar com essas pessoas, geralmente alvos de preconceito e exclusão social. Atualmente, são inúmeros os avanços tanto no campo legislativo quanto na rede de cuidados, alcançados por meio do envolvimento de profissionais da área, de gestores e diversos setores da sociedade, atingindo-se o ponto em que há uma Política Nacional de Saúde Mental favorável ao processo de mudança dos modos de atenção. Nessa perspectiva, vem se consolidando no país a construção de um campo de atenção psicossocial, estando as diretrizes da referida política voltadas à criação de uma rede de atenção aberta, de caráter predominantemente comunitário e substitutiva ao modelo hospitalocêntrico, extrapolando-se as intervenções de cunho intra-individual e centradas na doença. Todavia, não é excessivo enfatizar que continua sendo um campo de tensão e de muitos embates, em função da coexistência de entendimentos e interesses contraditórios, merecendo uma atenção permanente e

16

processos contínuos de avaliação, com especial vigilância às forças reacionárias e normalizadoras da sociedade. Esta rede de cuidados se fundamenta na atenção integral em todos os níveis de complexidade, precisando contar com os mais diversos equipamentos e serviços de saúde, dentre estes: Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)3, serviços residenciais terapêuticos, centros de convivência e cultura, leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais e nos CAPS III), bolsas de auxílio-reabilitação para egressos de internações de longa permanência, projetos de geração de trabalho e renda, consultórios de rua para atenção a usuários de álcool e outras drogas, dentre outros4. Compreende-se como necessário e fundamental o vínculo entre saúde mental e atenção básica, que ocorre basicamente pela articulação com as equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) e os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Destaca-se que, a partir de uma compreensão trabalhada no seio do movimento sanitário brasileiro, reveste-se de vigor o conceito de intersetorialidade (articulação do Setor Saúde com outros setores das políticas públicas) e a proposta de articulação contínua dos recursos comunitários como vias de acesso a uma integralidade do cuidado. Particularmente a diretriz da integralidade me parece um diapasão importante no processo de tessitura dessas redes e do cuidado que pode/deve ser desvelado em seus diversos contextos. Ultrapassando seu aspecto normativo – que não garante a efetivação concreta – importa construir a integralidade no cotidiano das práticas, por meio de uma valorização e entrelaçamento dos diversos saberes, fazeres e dizeres. Assim, a perspectiva seria a de construção de caminhos possíveis para um alargamento da saúde – como capacidade de lidar com a vida – conforme os variados pontos de vista existentes, proporcionais aos seres – sempre singulares – envolvidos nos processos. Integralidade não se trata de algo meramente “aplicável”. Em relação a este ponto, sintonizo com o sentido apontado por Pinheiro & Guizardi (2008), ao qualificarem a integralidade como “um dispositivo político, de crítica de saberes e poderes instituídos, por práticas cotidianas que habilitam os sujeitos nos espaços públicos a engendrar novos arranjos sociais e institucionais em saúde” (p. 23). Retomando a discussão em torno da rede de atenção à saúde mental, compreende-se que as conquistas legislativas e a implantação dos novos equipamentos de saúde mental não garantem per se a transformação das práticas assistenciais. A consolidação de outro(s) modo(s) de cuidar requer investimentos de diversas ordens, destacando-se a definição política como fundamental, uma vez que o direcionamento de recursos para a concretização das ações necessárias decorre dessa priorização Os CAPS podem ser dos seguintes tipos: CAPS I, II e III (24 Horas), que se definem por ordem crescente de porte/complexidade e abrangência populacional, voltados a realizar prioritariamente o atendimento de pacientes com transtornos mentais severos e persistentes em sua área territorial; CAPSi, para crianças e adolescentes, e CAPSad, para usuários com transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias psicoativas (Portaria GM nº 336/2002 em BRASIL, 2004a). 4 Informações disponíveis no sítio da Área Técnica de Saúde Mental do Ministério da Saúde, em http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=925, acessado em 05.11.2011. 3

17

na agenda governamental. Dentre estes investimentos, a garantia de pessoal preparado a fazer essa rede acontecer se revela como um aspecto que merece atenção específica e destacada. Tratando-se de outro(s) modo(s) de conviver com a loucura, que demandam outras concepções e práticas, passa a haver, assim, uma relação direta com a formação profissional e a existência de mecanismos que garantam uma reflexão crítica continuada sobre o fazer. Na prática cotidiana em saúde mental, apresentam-se riscos de repetição do modo tradicional (incorporado como “modelo”) e as dificuldades de transformar em ação real o que foi proposto nas diretrizes da política para o funcionamento de cada um dos equipamentos previstos e da própria rede de cuidados. Os investimentos em avaliação do que foi posto em movimento vêm acontecendo timidamente, ainda que sejam reconhecidos como necessários. Recorro a Onocko-Campos & Furtado (2006) para reforçar a relevância de tal temática, quando destacam o caráter de novidade representado pelo processo de desinstitucionalização da assistência em saúde mental, fazendo emergir a necessidade de compreensão crítica da efetivação desta nova política de atenção. A demanda por mais estudos nessa área está também indicada no relatório da IV Conferência Nacional de Saúde Mental, ocorrida em 2010, no qual se aponta a necessidade de articulação das políticas Nacionais, Estaduais e Municipais de Saúde Mental com as Instituições de Ensino Superior (IES), ampliando os compromissos intersetoriais entre educação e saúde, garantindo ações de ensino, pesquisa e extensão, com ênfase nas ações interdisciplinares, envolvendo os serviços, gestores e controle social na formulação e execução das ações das IES, no âmbito da saúde mental, impactando o próprio processo formativo (BRASIL, 2010a). No entanto, assumir uma cultura de avaliação continuada das práticas que se instalam ainda é um desafio, mesmo se percebendo que isto poderia ampliar as possibilidades da intervenção, na direção que se deseja: efetivar modos de atenção que respondam à demanda apresentada pelas pessoas que passam pela experiência de loucura, que não precisariam ter suas histórias paralisadas em função disto. Na verdade, penso se tratar da construção de modos de atenção à saúde que se afinem com as reais necessidades dos usuários. Introduzo, nesta porção da trajetória, um posicionamento a ser assumido ao longo do texto: embora a via de acesso ao cenário da pesquisa tenha ocorrido pelo campo da saúde mental – o que espero ter sido suficientemente justificado –, pretendo estender a discussão ao grande campo da saúde, independentemente das classificações ou circunscrições que são criadas, que revelam muitas vezes um modo fragmentado de percebê-lo. Outra faceta desse argumento é que aprendi a considerar saúde mental – delimitada por Amarante (2008) como um dos campos mais vigorosamente complexos, plurais, intersetoriais e transversais de conhecimento e atuação na saúde – sobretudo na condição de algo que atravessa e constitui a experiência humana, em sua complexidade. Muitas vezes vi a perda de

18

sentido na utilização da expressão saúde mental, ao considerá-la um indicativo das dicotomias e polarizações que se instalam na compreensão do humano e, por conseqüência, na instituição das políticas. Desse modo, farei referência, no mais das vezes, à saúde, como campo. Considerando este panorama geral, apresento a proposta de pesquisa desenvolvida no doutorado: um estudo genealógico sobre as possibilidades de ação transdisciplinar tomando como cenário as práticas de equipes multiprofissionais, com inserção de psicólogos, dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) dos municípios de Juazeiro-BA e Petrolina-PE. Nesta análise, pretendia de certo modo destacar a prática de psicólogos, tanto por serem profissionais classicamente envolvidos na trajetória de reorientação do modelo de atenção à saúde mental no país quanto por este constituir meu núcleo de referência profissional. Entretanto, ao longo do estudo, fui invadida pela necessidade de expandir o foco das práticas de psicólogos para as práticas de profissionais de saúde – inclusive psicólogos –, com atenção à entredisciplinaridade (CECCIM, 2010), aspecto a ser melhor explicitado adiante. Esta temática está relacionada com a Linha de Pesquisa Psicologia Social e Saúde, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES, contemplando o aspecto da formação e prática profissional e os processos de intervenção na área de saúde. Em relação à atuação dos psicólogos, destaca-se que apesar de a inserção destes profissionais em equipes de saúde no contexto público vir ocorrendo desde a década de 1970, inúmeros estudos apontam as discrepâncias entre a formação profissional e os desafios da intervenção neste contexto, indicando a urgência e alguns caminhos para uma reinvenção dessas práticas (ANDRADE, 2007; SPINK, 2007; BENEVIDES, 2005; DIMENSTEIN, 1998 e 2001; LIMA, 2005; SILVA, 1992). Mais amplamente, no que se refere à atuação profissional em saúde, há um profícuo debate que sinaliza a necessidade de reorientação dos processos de formação de modo a aproximá-los da realidade do país e suas redes públicas de saúde, sendo exemplos: GOMES; GUIZARDI; PINHEIRO, 2010; CECCIM, 2010; HENRIQUES, 2010; MEHRY, 2010; CECCIM & FEUERWERKER, 2004; PINHEIRO; BARROS; MATTOS, 2007; CAMPOS, 2003. Na área da saúde, a diretriz do trabalho em equipes é datada desde o período inicial de reformulação das políticas de saúde, no bojo do movimento denominado Reforma Sanitária, que ganhou força na década de 1980. Paralelamente, o processo de reforma psiquiátrica convocava os diversos profissionais a participar de equipes multiprofissionais na perspectiva de intervir no cuidado às pessoas com transtornos psíquicos – tendo sido, inclusive, por esta via que ocorreu a entrada do psicólogo na saúde coletiva. Não custa lembrar que, como conquista do movimento sanitário, temos na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2010b), a garantia da saúde como direito de todos e dever do Estado (artigo 196); em seu artigo 200, definem-se, dentre as atribuições do SUS, “ordenar a formação

19

de recursos humanos na área de saúde” (inciso III) além de “incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico” (inciso IV). Estavam postos os desafios para um trabalho em saúde, dado que, ainda que amparado legalmente, precisaria se delinear como coisa concreta nas relações cotidianas entre os diversos atores envolvidos – minimamente entre os trabalhadores e usuários. Diante disso, Ceccim (2010) indica que é preciso substituir a expressão “recursos humanos” por “coletivos organizados de produção da saúde”. Sinaliza, assim, uma mudança paradigmática, em que haveria compromisso com os processos, com a invenção das práticas, com novas maneiras de experimentar o mundo, engendrando-se a partir das relações entre os diversos atores e escapando à racionalidade gerencial hegemônica, marcada pela serialização e mecanicismo do trabalho, além de preocupação exclusiva com o produto. Não haveria como desconsiderar a novidade que o “elemento humano” introduz continuamente no contexto dos encontros ao se considerar o trabalho em saúde. Embora o trabalho em equipe seja uma diretiva essencial na área de saúde coletiva, isto não garante, todavia, a produção de ações tecidas na e pela conjunção e articulação entre os diversos atores no cotidiano dos serviços. O aspecto da inter/transdisciplinaridade é tematizado abundantemente ao se discutir o trabalho na saúde, assumindo um lugar central quando se trata da atuação em dispositivos de saúde pública, como os NASFs, em que se espera que as propostas de intervenção sejam elaboradas conjuntamente pelos diversos membros da equipe multidisciplinar. Os NASFs surgem com a proposta de ampliar a abrangência das ações no âmbito da ESF, adotada na reestruturação da atenção primária à saúde no país, primeiro nível de complexidade do SUS. Os Núcleos consistem em equipes multidisciplinares, que devem apoiar e trabalhar de modo articulado com as equipes de Saúde da Família (EqSF), nos territórios para os quais são referência, destacandose a saúde mental como uma de suas várias linhas de ação. Por constituir cenário dessa pesquisa, o NASF será melhor apresentado na próxima seção. Com relação à atuação do psicólogo, o lugar de especialista nas questões relativas ao humano e seu mundo (intra)psíquico parece lhe conferir uma posição privilegiada nas equipes de que faz parte. Porém, as demandas dos usuários dos serviços, revestidas cada vez mais de aspectos relativos às condições de vida, exigem olhares complexos e intervenções inovadoras. É neste contexto que considero crucial compreender como tem ocorrido a prática do psicólogo, no aspecto específico de sua interrelação com os demais membros da equipe no desenvolvimento do trabalho. Como percebem sua prática e como esta é percebida pelos outros membros da equipe interdisciplinar dos NASFs? Como são compreendidas as especificidades da Psicologia nessas equipes? Considerando-se a tão propalada e reconhecidamente necessária troca e articulação de saberes/poderes/disciplinas no âmbito das intervenções em saúde, como tem se situado o exercício transdisciplinar do psicólogo? Penso que

20

avançar nessa discussão, a partir da incursão no cotidiano desse fazer em equipes NASF, pode trazer contribuições ao exercício do psicólogo no campo das políticas públicas e à área de conhecimentos psicológicos. Destaca-se que esses questionamentos são atravessados por uma preocupação com a formação profissional desta categoria, aspecto que venho discutindo a partir da minha própria experiência como psicóloga e, atualmente, como professora de Psicologia, também na função de orientar estágios profissionalizantes em serviços do SUS e lecionar em Curso de Residência Multiprofissional5 em Saúde da Família, para turmas compostas por psicólogos. Optei por manter esses questionamentos vivos e registrados nesse trabalho, pois, até certo ponto, a questão de pesquisa assumida é originária deles. Entretanto, como já assumi, o meu interesse migrou – ou, talvez caiba melhor, ampliou – para a compreensão da atuação de profissionais de saúde em equipe, dos trânsitos que ali se configuram, dos fluxos e comunicações que se estabelecem – ou não –, das frestas que encontram para atuar coletivamente, enfim, das possibilidades de ação transdisciplinar como produção coletiva. Compreendo que apesar de a diretriz de um trabalho configurado a partir de equipes multiprofissionais na área da saúde se embasar na idéia de uma tessitura conjunta, de uma produção coletiva, o que já indica uma proposta transdisciplinar, a ação real costuma se caracterizar, quando muito, como interdisciplinar (troca entre múltiplos saberes) e aí vislumbro a fertilidade deste trabalho: pesquisar, pela aproximação com a experiência de profissionais de equipes NASF, tanto as brechas quanto os empecilhos que os profissionais encontram para trançar um trabalho coletivo, em que haja negociações, transações, desestabilizações de fronteiras, gerando produção do novo e introdução de diferença, pela criatividade e invenção diante das inusitadas demandas no campo da atenção à saúde. Compreende-se que a ação transdisciplinar constitui um desafio às equipes de composição multiprofissional, que têm o projeto de trabalho conjunto. Compreendo que estudos que possam expandir a compreensão acerca de como a produção coletiva pode se efetivar, delineando possibilidades para que se torne real, representam uma contribuição ao avanço das práticas, saberes e discursos no campo das intervenções em saúde. Uma vez que a integralidade é indicada como uma diretriz fundamental do SUS, a transdisciplinaridade entra como uma ferramenta fundamental para sua operacionalização. Contudo, parece prudente perspectivá-la para além de uma estratégia ou de algo que se instale por meio de uma normatização, indicando ser algo mais da ordem da criação ou invenção a partir do encontro entre profissionais de diferentes áreas.

5 As residências multiprofissionais e em área profissional da saúde são cursos de pós-graduação Lato Sensu, tendo sido criadas a partir da promulgação da Lei n° 11.129 de 2005. São orientadas pelos princípios e diretrizes do SUS, com base nas necessidades e realidades locais e regionais, abrangendo as profissões da área da saúde (exceto medicina). Constituem dispositivo fundamental de formação para o SUS, valorizando o aprimoramento profissional a partir da inserção em serviços da rede de saúde.

21

Como indicado, discutir isto com base no trabalho em ato dos NASFs é a proposta desta pesquisa, ou seja, evidencia-se a via experiencial escolhida para a construção de compreensões a respeito desta velha temática, contudo ainda atual e instigante. Sua atualidade se revela pelas dificuldades comumente encontradas de se engendrar trabalhos em equipe marcados pela produção coletiva em vez de uma mera soma de diferentes olhares, habilidades e saberes. Destaca-se, ainda, o caráter instituinte das transformações no campo das políticas públicas de saúde no país, demandando estudos de caráter avaliativo em relação às práticas nos novos dispositivos de cuidado, como os NASFs. Penso que a escolha das cidades de Juazeiro-BA e Petrolina-PE para efetivação do estudo, municípios do sertão, com um grau de desenvolvimento sócio-econômico destacado e em franca expansão, contempla a lógica de descentralização e regionalização das ações de saúde, priorizada pela própria política ministerial nesta área, perspectivando o contínuo aprimoramento destas intervenções. Os municípios são referência para macro-regiões de saúde situadas ao longo das cercanias do Submédio São Francisco, em seus respectivos Estados, tecendo uma integração que ultrapassa os limites geográficos e que precisa ser potencializada. É importante destacar que está em experimentação a articulação de uma rede regionalizada de atenção à saúde na Macro-Região do Médio São Francisco, de caráter interestadual6, que tem sido chamada Rede PEBA, tendo nos referidos municípios os principais pólos de conexão. Nessas redes de saúde municipais, que são relativamente complexas, os atores vêm perfilando suas ações, em geral, sem muitas oportunidades de interlocução em relação a sua destinação. Nessa perspectiva, o estudo buscou igualmente contribuir para a elaboração de sentido sobre as práticas engendradas, considerando seu recorte específico, especialmente por seu traçado metodológico, caracterizado como pesquisa interventiva.

6

Informação obtida em http://portal.saude.gov.br/portal/saude/area.cfm?id_area=1517, acessado em 14.11.2011.

22

Capítulo 2. Da caracterização do cenário da pesquisa: os fios da trama O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte.

2.1. Reforma Psiquiátrica e Reforma Sanitária no Brasil: breve delineamento da construção do campo contemporâneo das políticas de saúde Na segunda metade da década de 80, o movimento de transformação no campo da saúde mental no Brasil atravessou um período significativo de mudanças, surgindo novos serviços “num contexto histórico, político e conceitual emergente” (AMARANTE; TORRES, 2001, p. 27). Estes autores destacam a realização de duas Conferências Nacionais de Saúde Mental (em 1987 e 1992)7 e a inserção da proposta do Sistema Único de Saúde (SUS) na Constituição de 1988 como marcos na abertura de outros caminhos para a saúde pública, num país marcado por um expressivo processo de redemocratização. O Movimento de Reforma Psiquiátrica foi caracterizado por uma ampla mobilização da sociedade, a partir da militância de profissionais da saúde mental, articulados por todo o país em torno do lema Por uma sociedade sem manicômios, adotado no II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, ocorrido em Bauru, em dezembro de 1987. As discussões provocadas no bojo deste movimento culminaram em uma série de experiências inovadoras de intervenção junto às pessoas que passam pela experiência de loucura e/ou intenso sofrimento psíquico. Neste cenário, os primeiros Núcleos/Centros de Atenção Psicossocial surgiram antes mesmo que fossem publicadas portarias ministeriais que regulamentassem este tipo de serviço8. Segundo Tenório (2001), a Reforma Psiquiátrica seria uma tentativa de dar ao problema da loucura outra resposta social, entendida, grosso modo, como uma solução não-asilar, desmontando a lógica da internação como único ou mais representativo recurso, de modo a permitir à pessoa com transtorno psíquico se manter na sociedade e circular pelos espaços sociais. No Brasil, o movimento pode ser entendido como “um processo histórico de formulação crítica e prática, que tem como objetivos e estratégias o questionamento e elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria” (AMARANTE, 1998, p. 87). Desde o início da Reforma Psiquiátrica Brasileira, a experiência da Psiquiatria Democrática Italiana tem sido uma das principais inspirações – senão a fundamental –, atravessando e Desde então, mais duas Conferências Nacionais de Saúde Mental aconteceram: a III, apenas em 2001 e a IV, de caráter intersetorial, que só emergiu a partir de intenso movimento social, sendo realizada em 2010. 8 As primeiras portarias de regulamentação de Caps foram a SNAS, nº189, de 19 de novembro de 1991 e a SNAS, nº 224, de 29 de janeiro de 1992; as principais portarias atuais a esse respeito são as GM nº 336, 19 de fevereiro de 2002 e a SAS nº 189, de 20 de março de 2002. (BRASIL, 2004a) 7

23

fundamentando o ideário presente no país relativo a esse campo constituído de muitas tensões. Em sua proposição, a desinstitucionalização é tomada como conceito-chave: questiona-se o próprio dispositivo médico-psiquiátrico bem como as instituições e equipamentos terapêuticos a ele relacionados. Trata-se, portanto, de um processo de desconstrução do aparato manicomial, implicando a invenção de novos saberes e fazeres com base na construção de outros sentidos para a experiência de loucura, que não sejam marcados pela patologização, exclusão e discriminação. A desinsitucionalização não se confunde, assim, com mera desospitalização, tal como ocorreu nas experiências de reforma dos EUA e de alguns países europeus principalmente nas décadas de 50 e 60. Tais processos foram batizados de “psiquiatria reformada” (ROTELLI; DE LEONARDIS; MAURI, 2001), caracterizando-se por uma retroalimentação do circuito de internação. Nesta crítica reside o caráter central da experiência italiana: seu intento nunca foi de o de resgatar o potencial ou vocação terapêutica do hospital psiquiátrico, pois não se acreditava em sua existência. A reforma psiquiátrica italiana tomou a experiência concreta no interior dos manicômios (nas cidades de Gorizia, nos anos 60, e, especialmente, Trieste, nos anos 70) como motor para transformação das relações da sociedade com as pessoas que passam pela experiência de loucura. A desinstitucionalização se caracteriza como um trabalho prático de transformação do próprio manicômio – tomado como lugar zero de trocas sociais – visando desmontar o problema a que buscar tratar – a doença mental – bem como os recursos instituídos para essa empreitada, que se respaldam na eliminação de todos os direitos civis do paciente. De acordo com Rotelli, De Leonardis e Mauri (op. cit.), a desinstitucionalização em Psiquiatria na Itália se caracterizou como um processo social complexo, mobilizando, como atores, os diversos sujeitos sociais envolvidos – sobretudo técnicos e pacientes –, com vistas a transformar as relações de poder entre os pacientes e as instituições e a produzir estruturas de saúde mental inteiramente substitutivas à internação no hospital psiquiátrico, nascidas da desconstrução e transformação do que ali estava depositado. Nesse processo, a compreensão do objeto de intervenção da Psiquiatria transita da doença mental, como entidade abstrata e descolada de uma pessoa em sofrimento, para a noção de existência-sofrimento da pessoa, em relação com o corpo social. Desse modo, o objetivo da intervenção passa a ser, em vez de cura, o de cuidado, ou “invenção de saúde”, numa recomplexificação do objeto, como indicam Rotelli, De Leonardis e Mauri (op. cit.). Em suas palavras, “o mal obscuro da Psiquiatria está em haver separado um objeto fictício, a ‘doença’, da ‘existência global, complexa e concreta’ dos pacientes e do corpo social” (p. 28). Enfatiza-se que a perspectiva de cura costumava assumir o caráter de ortopedia moral, principalmente pela constituição, refratária a classificações, do próprio objeto doença mental.

24

Para alinhavar essas breves considerações em relação ao legado italiano às experiências de transformação da atenção à saúde mental no Brasil, cabe referir que a proposta italiana, cujo principal mentor foi Franco Basaglia, teve essencialmente uma preocupação clínica, porque voltada à transformação do cuidado às pessoas institucionalizadas, não prescindindo jamais da relação com estas no processo de mudança – aliás, os chamados pacientes foram/são fundamentais para qualquer possibilidade de êxito do processo. Entretanto, assumia-se a compreensão de que tal intento não se cumpriria sem um posicionamento político, em função da composição de forças existente na sociedade, em que se destacava – e ainda se destaca – um mandato de normalização social exercido historicamente pela Psiquiatria, fortemente enviesado por atravessamentos moralistas. Amarante (2003) defende que a tradição inaugurada por Basaglia, ainda que privilegie transformações sociais e políticas, não o faz sob pena de um descuido da questão clínica, ainda que o sentido de clínica seja totalmente engravidado de outras direções por sua tendência de desligamento do aspecto meramente patológico. A proposta de desinstitucionalização, tal como compreendida na tradição basagliana, inaugura “a abertura de um novo contexto prático-discursivo sobre a loucura e o sofrimento humano” (AMARANTE, op. cit., p. 55), promovendo uma recomplexificação dessa experiência denominada loucura. Para o autor, Basaglia se preocupava com os sujeitos, e não com suas doenças, entendendo isto como uma preocupação clínica. No entanto, parece se referir verdadeiramente a um outro modo de compreender e fazer clínica: como construção de possibilidades, de subjetividades, não enfatizando estratégias de normalização e disciplinamento tampouco se pautando pela referência patológica. Em sua proposta de colocar a doença entre parênteses, Basaglia se debruça na defesa de modos singulares de ser dos humanos. Basaglia (2005) revela uma preocupação com a pessoa institucionalizada e a restituição – ou reconstrução – de sua relação com o corpo social, de que foi separada ou seqüestrada: importa, sobretudo, “substituir a relação de tutela por uma relação de contrato” (p. 248). Isso constituía – e constitui – um desafio permanente aos operadores ou técnicos que precisam se lançar no imprevisível e arriscado terreno das práticas institucionais, sem respaldo em saberes ou respostas pré-formatadas com base nos meios e regras da instituição psiquiátrica, aprendendo a se relacionar com a diversidade sem reduzi-la a um patamar de inferioridade, abrindo-se à experimentação de novos lugares de intervenção – os diversos espaços da cidade. Assim, no processo de desinstitucionalização, tal como experimentado na Itália, a clínica precisaria assumir novos contornos, demandando uma permanente reinvenção no panorama das relações com as pessoas – e não com a doença –, em cenários diversos do território em que a vida social acontece. Desse modo, a atuação não poderia se descolar de um sentido político, por remeter a todos os processos de negociação peculiares à convivência entre humanos, permeada pelo embate de

25

interesses e forças diversos. Essa perspectiva implica uma instigante reviravolta nas compreensões do cuidado em saúde além de contínuas recomposições do saber técnico, o que não ocorre sem ambigüidades e contradições, com as quais é preciso aprender a lidar. Dado que a ambiência de intervenção passa a ser, mormente, o próprio território, ou seja, os diversos espaços sociais, em que as pessoas transitam e vivem, ampliam-se expressivamente as possibilidades terapêuticas. Percebe-se que a palavra território expressa conotação que extrapola a perspectiva da espacialidade, referindo-se aos mais variados cenários de vida em que os usuários podem e devem exercer o seu poder de contratualidade, ou, dito de outro modo, a capacidade de negociação, como enfatiza Saraceno (2001). Para Amarante & Torres (2001), no contexto da reorientação do modelo de atenção em saúde mental, torna-se necessária uma ruptura fundamental com quatro referenciais, minimamente: o método epistêmico da psiquiatria; o conceito de “doença mental”, tomada como erro, desrazão e periculosidade; o princípio pineliano de isolamento terapêutico e, por fim, os princípios do tratamento moral, que embasam as terapêuticas normalizadoras. Onocko-Campos & Furtado (2006) acrescentam a isto, como características centrais dessa reorganização da proposta de cuidado, “a inserção de uma clínica ampliada, centrada no sujeito e inseparável tanto das formas de organização dos processos de trabalho, quanto das maneiras de habitar a polis, isto é, a política” (p. 1055). Reafirma-se que a perspectiva clínica assume outras dimensões nesse cenário. A expressão clínica é proveniente do grego klíne (leito, repouso), relacionando-se com o exercício da medicina em seus primórdios, quando o clínico se inclinava para melhor interagir com o sujeito doente, que geralmente se encontrava em repouso, num leito9. Esse sentido etimológico da palavra revela o caráter de investigação e produção contínua de sentidos por meio do debruçar-se sobre um determinado fenômeno, na busca de compreendê-lo, mas parece preservar a relação com o aspecto patológico. Percebe-se que a discussão em torno da clínica continua sendo um assunto extremamente provocativo na contemporaneidade, havendo uma extensa discussão sobre os redimensionamentos possíveis, em que se destacam inúmeros pontos de vista. No campo da saúde coletiva no Brasil, está em voga a proposta de clínica ampliada, referida em várias produções e assumida na política atual de saúde (CAMPOS, 2003; CUNHA, 2004; AMARANTE, 2003; BRASIL, 2008a). Não compete a este trabalho entrar profundamente no mérito dessa discussão, limitando-se a uma indicação de que a experimentação de uma clínica que se descola da referência patológica como critério exclusivo para intervenção tem uma de suas grandes fontes na experiência e proposta de desinstitucionalização italiana, no campo da saúde mental.

Alfredo Simonetti, em seu Manual de Psicologia Hospitalar (São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004), indica a origem do termo “clínica” no verbo grego inclinare, a partir da experiência dos médicos na Grécia antiga, que se inclinavam sobre o leito de seus pacientes, para com eles conversar, como parte do ato de cuidar/tratar. 9

26

Goldberg (1994), ao discutir a atenção pública em saúde mental no Brasil, refere-se à importância de um campo terapêutico dilatado, que incorpore as questões da vida dos usuários. Importa ir além do foco no sintoma, em que a doença é tomada como categoria abstrata, com que os profissionais de saúde se relacionam primordialmente, em detrimento da interação genuína com os seres humanos que buscam auxílio terapêutico. Lobosque (2003) caracteriza a atuação em saúde mental como clínica em movimento: “uma clínica que não caminha para si mesma, mas se combina e articula com tudo o que se movimenta e se transforma na cultura, na vida, no convívio entre os homens” (p.21). Falar em ampliação da clínica remete a uma mudança paradigmática na atuação em saúde – que na atualidade ainda é marcada pela hegemonia da racionalidade biomédica –, visando uma compreensão que ultrapassa a questão sintomatológica apresentada pela pessoa – sem, contudo, negá-la –, valorizando sua inserção no mundo e, portanto, suas características existenciais. Penso que há, então, algo a aprender com Basaglia e sua equipe... Falar em clínica ampliada pode parecer muitas vezes redundante, pois toda atuação em saúde deveria se pautar numa perspectiva ampliada de consideração do humano; entretanto, marcar essa diferença me parece um caminho interessante, desde que se escape à sua utilização como mero jargão ou modismo. Entretanto, fica a questão: até que ponto as experiências que vêm se perfilando no contexto da chamada “clínica ampliada” de fato extrapolam essa compreensão de clínica ligada à doença? Ressalta-se que o processo de Reforma Psiquiátrica no país ocorre paralelamente e, apenas até certo ponto, em articulação com o movimento sanitário. Paim (2008) indica que este surgiu em meados da década de 1970, reunindo diversos segmentos sociais na defesa da democratização da saúde e configurando-se um ator fundamental no processo da Reforma Sanitária Brasileira (RSB). A inserção do capítulo sobre saúde na Carta Constituinte de 1988 representou um marco para a concretização de um sistema de saúde descentralizado e democrático. Este autor defende que a RSB representa uma “proposta, projeto e processo de reforma social” (PAIM, op. cit., p. 47), extrapolando o setor saúde, na medida em que pretende “intervir de forma ampla no atendimento das necessidades de saúde, com vistas à melhoria das condições de saúde e da qualidade de vida da população” (p.30). Uma questão que se interpõe substancialmente nesse debate sobre a efetivação de políticas de saúde é o reconhecimento da multiplicidade/diversidade da existência humana e a necessidade de respeito aos modos singulares de subjetivação, estando aí inserida a experiência dos que apresentam transtornos psíquicos, como ilustração. Sem pretender enveredar na discussão dos encontros e desencontros entre os processos de Reforma Psiquiátrica e Sanitária no Brasil, por não ser o tema central deste estudo, assume-se a compreensão de que ambos devem estar articulados, inclusive a ponto de refletir uma superação da fragmentação em tipos de “saúde” que a utilização do termo “saúde

27

mental”, por exemplo, parece indicar. Seguindo essa trilha da necessária articulação – ou integração – entre saúde mental e saúde coletiva, darei ainda alguma ênfase a este debate nesta seção, para compor parte do arcabouço teórico-conceitual de que lançarei mão na avaliação das práticas de equipes NASF, as quais precisam se incubir também da promoção da “saúde mental” nos territórios de atuação. Como indica Amarante (2003), o processo de Reforma Psiquiátrica tem como pano de fundo um verdadeiro debate epistemológico, pois implica a necessidade de repensar a própria relação entre conhecimento e objeto que, nos primórdios de constituição da chamada Psiquiatria Clássica10, respaldou-se no modelo de ciência que se forjava, de caráter positivista e metafísico, portanto, voltado à busca de verdades e soluções definitivas. Isto implicaria uma superação paradigmática desse campo de saber/poder, fundado na invenção da categoria doença mental e no projeto de compreendê-la como verdade abstrata, tratando-a como patologia. Sendo assim, haveria quatro dimensões fundamentais envolvidas no processo de reforma: a teórico-conceitual, a técnico-assistencial, a jurídico-política e a sociocultural. Nesse sentido, tal consideração impossibilita a compreensão desse processo reduzida a uma mera reorientação do modelo técnico-assistencial. Retoma-se a necessidade de colocar a clínica no campo da saúde mental entre parênteses – expressão utilizada por Amarante (op. cit.), inspirado na proposta basagliana de por a doença entre parênteses – dado se tratar de um processo a ser permanentemente reinventado, não cabendo que se atenha ao aspecto patológico, como já discutido. A atuação na rede de cuidados reveste-se, sobremaneira, de um caráter ético e político, compromissada com a inclusão social das pessoas que atravessam a experiência de loucura. Como defendido em outro texto (CABRAL, 2007), não se trata de negar o transtorno psíquico, mas de empreender compreensões a partir de sua polissemia, que se traduz singularmente na vida de cada um que passa pela experiência de precisar de cuidado nesse campo. Não se trata de negar saberes produzidos, mas de ressignificá-los, na perspectiva de construção de outros saberes e práticas que possam contribuir para que as relações da sociedade com a diversidade, a alteridade, o que lhe parece estranho possam ser, sobretudo, de acolhimento, reconhecimento e busca de compreensão em vez de exclusão e de julgamento imediato e irrefletido. Destaca-se, assim, a reabilitação psicossocial como um dos pilares básicos no campo das novas práticas em “saúde mental”, devendo atravessar qualquer intervenção nesta área, revestindo-se de um sentido ético-político. Este conceito é trabalhado por Saraceno (2001), com base na idéia de estímulo ao exercício do poder de contratualidade nos três grandes cenários da existência: habitat/casa, rede social e trabalho com valor social. O sentido da reabilitação psicosssocial precisa ser O que se denomina de Psiquiatria Clássica é a tradição inaugurada no final do século XVIII e consolidada no século XIX, quando surge a “Medicina Mental” ou “Alienismo”, cuja terapêutica se funda no tripé: classificação nosográfica, tratamento moral e organização do espaço asilar (AMARANTE, 1998).

10

28

compreendido além de uma perspectiva ortopédica – confusão possibilitada pelo próprio termo utilizado –, dado que se refere à abertura de espaços de relação e de trocas sociais, tendo como mote a singularidade dos sujeitos envolvidos. Neste contexto, seus principais objetivos seriam: “a emancipação do usuário, a redução da discriminação e estigmatização, o melhoramento da competência social individual e a criação de um sistema de apoio social de longa duração” (OMS, 2001, p. 94). Neste panorama, considero relevante apresentar algumas reflexões sobre o sentido de política. Refletir sobre “saúde mental” a partir de sua inserção no campo das políticas públicas – e nesse termo se identifica também outra possível redundância – implica resgatar a compreensão de política. Compreensão é empregada aqui como processo contínuo e, que, portanto, não chega a um fim. Arendt (2001) indica que o sentido de política remete à concepção de polis grega, espaço de convivência e de agir coletivo, em que os cidadãos opinavam, decidindo rumos coletivamente, entre iguais. A esfera política, para os antigos gregos, era a esfera da liberdade por excelência, distinta da vida em família, que se regia pela necessidade de preservação da vida e na qual a força e violência se justificavam em função da organização do lar. Para ingressar na polis, era necessário estar liberto da necessidade de subsistência para conquistar a liberdade do mundo. Embora o sentido de política tenha se transmutado ao longo da história, a perspectiva de construção coletiva e de liberdade próprias da polis podem ser consideradas uma referência para a discussão em torno da compreensão de política na contemporaneidade. Arendt (2002a) propõe, ainda, que o sentido de política é a liberdade, indicando que disso decorre uma série de outros questionamentos. A liberdade é tomada não como livre-arbítrio, como é comumente referenciada na nossa tradição ocidental, mas sim, como idêntica ao iniciar. Sob essa ótica, liberdade está relacionada à ação que, na perspectiva de Arendt, é “sempre essencialmente o começo de algo novo” (2002b, p. 51.). O dom de agir é próprio da condição humana e isso implica, continuamente, iniciar algo, provocar acontecimentos. O caráter iniciador está presente na ação política, como em qualquer ação. Ser livre é próprio da condição humana, pois o homem, pela ação, tem sempre a possibilidade de produzir o inesperado, de iniciar algo, de provocar o imprevisível. O fim de uma ação é imprevisível. É a partir dessas reflexões que Arendt nos instiga a pensar em milagre a partir de outra perspectiva, que não a religiosa. O milagre por ela apontado é da ordem do imprevisível e do inesperado, característicos da existência sempre que ocorre algo novo, que se configura inexplicável do ponto de vista causal. Nessa direção, ela enfatiza: Se o sentido da política é a liberdade, então isso significa que nós, nesse espaço, e em nenhum outro, temos de fato o direito de ter a expectativa de milagres. Não porque acreditemos [religiosamente] em milagres, mas porque os homens, enquanto puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível, e realizam-no continuamente, quer saibam disso, quer não (ARENDT, 2002a, p. 122).

29

Sob essa perspectiva, “o sentido da política reside na própria atividade política, que se manifesta na convivência e no agir coletivos” (SCHMIDT, 2003, p.55). Recorrendo também a Arendt, Schmidt discute que as políticas públicas, a partir dessa compreensão, precisam ser definidas para além de seus objetivos e metas, não se restringindo, portanto, a estes. Embora os objetivos e metas sejam elementos do agir político, não podem por si definir o sentido da ação. Desse modo, a dimensão do coletivo precisa ser continuamente revitalizada, de forma que as políticas públicas não se restrinjam aos meios e recursos para atingir um fim. Essas reflexões, orientadas na perspectiva arendtiana de ação e política, podem iluminar uma compreensão possível do processo de consolidação de outros modos de cuidar em saúde, fruto dos princípios e diretrizes dos movimentos de Reforma Psiquiátrica e Sanitária no Brasil, anteriormente referidos. Assim, considero ser propício, neste ponto, apresentar resumidamente aspectos centrais do modo de atenção à saúde mental que está em processo de expansão e implementação no país. Como indicado, trata-se da efetivação de uma proposta de transformação de um modo de atenção à saúde mental hospitalocêntrico para outro centrado na perspectiva de uma rede de cuidados diversificada, de forte caráter ambulatorial, de base territorial e comunitária, demandando, fundamentalmente, a construção de outros sentidos ou formas de compreensão da loucura na sociedade. Os princípios que regem as políticas da área de “saúde mental” fundamentam-se em uma ética e uma lógica do cuidado. Como fio condutor das linhas de ação delineadas está o propósito de criar um modo substitutivo à lógica manicomial. Historicamente, os manicômios representam uma proposta pautada na exclusão, tutela e classificação de sujeitos. Busca-se, a partir da reorientação dos modos de atenção à saúde mental, não apenas eliminar os manicômios concretos, mas romper com as práticas manicomiais e concepções fossilizadas – caracterizadas por forte atravessamento moral – sobre a pessoa com transtornos psíquicos e a experiência de loucura. Há uma política claramente definida, que aponta para um processo transicional e reorientação do modelo de atenção. Um processo transicional implica uma construção contínua e a coexistência temporária de dispositivos de cuidado diversos, instalando-se, naturalmente, uma tensão em decorrência disto. A Lei Nacional de Reforma Psiquiátrica – Lei n° 10.216/2001 (BRASIL, 2004a) – configura-se como norteadora desse processo, dispondo sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e o redirecionamento do modelo assistencial em saúde mental. Este dispositivo legal refletiu o consenso possível sobre uma lei para a reforma psiquiátrica no Brasil, após anos de tramitação até aprovação final no plenário da Câmara Federal, sendo fruto de intensos debates e mobilizações de diversos setores da sociedade. Além de priorizar o tratamento em serviços comunitários de saúde mental, indicando a internação apenas quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, regulamenta cuidado especial com a clientela de longa permanência de

30

hospitais psiquiátricos e prevê possibilidade de punição para a internação involuntária ou desnecessária. Ressaltam-se cinco princípios que fundamentam a reorganização do modelo de atenção, de acordo com a política nacional em andamento (BRASIL, 2005): 1. Acolhimento universal – o serviço público de saúde mental deve funcionar de “portas abertas”, ou seja, estar disponível para acolher, num primeiro momento, toda e qualquer demanda a ele direcionada. Acolher implica receber, escutar e responder – o que não significa absorver –, nas propostas de tratamento ofertadas pelo serviço, todas as pessoas atendidas. Compreende-se que “acolher, ouvir e reconhecer a legitimidade da procura já é uma forma de cuidado, sempre possível, que pode dar lugar a diferentes encaminhamentos, segundo o caso” (p.12); 2. Encaminhamento implicado – refere-se à responsabilização do serviço/profissional pelo encaminhamento definido, a partir do aclaramento da demanda apresentada, facilitando-se a chegada do usuário ao serviço/instância que poderá lhe melhor beneficiar. Pode ocorrer, inclusive, a desconstrução da demanda como demanda de tratamento. Esse princípio relaciona-se com a construção permanente de rede e a intersetorialidade; 3. Construção permanente de rede – partindo-se de uma compreensão de rede como um modo de conceber e agir o cuidado, e não simplesmente um conjunto de serviços interligados, o serviço inclui, no escopo de suas competências, o trabalho com os demais equipamentos do território; 4. Território – categoria fundamental no campo da saúde/saúde mental, sendo definido como “o lugar psicossocial do sujeito” (p. 13), ultrapassando, assim, o recorte regional/geográfico, sendo tecido por diversos fios das instâncias pessoais e institucionais que atravessam a experiência da pessoa; 5. Intersetorialidade na ação do cuidado – na perspectiva de uma clínica exercida no território, o serviço de saúde mental precisa intervir junto a todos os equipamentos existentes, de natureza clínica ou não, que possam contribuir para a operacionalização do projeto de cuidado ao usuário. Considerando estes princípios, percebe-se que o eixo do cuidado passa a ser definido pelos direitos de cidadania, compreendendo-se a esfera pública como um “lugar de excelência de ação protetiva, de cuidados éticos emancipatórios das pessoas em situação de risco social” (BRASIL, 2005, p. 14). Portanto, caracteriza-se uma ampliação da função social dos equipamentos de saúde mental, que precisam extrapolar

31

o afazer meramente técnico do tratar, e que se traduz em ações, tais como acolher, escutar, cuidar, possibilitar ações emancipatórias, melhorar a qualidade de vida da pessoa portadora de sofrimento mental, tendo-a como um ser integral com direito à plena participação e inclusão em sua comunidade, partindo de uma rede de cuidados que leve em conta as singularidades de cada um e as construções que cada sujeito faz a partir de seu quadro (BRASIL, 2005, p. 14).

2.2. Rede de atenção à saúde: a tessitura conjunta de ações no território Identifica-se a noção de rede como nodal na consolidação desses outros modos de atenção à saúde propostos. Além de serviços e recursos físicos, uma rede é tecida fundamentalmente pelas pessoas. Parece fértil uma compreensão de rede proposta metaforicamente por Guimarães Rosa11, em uma de suas muitas histórias, como buracos unidos por fio, em que destaca a confecção de redes como um costurar buracos. Daí se depreende a necessidade de um investimento contínuo no processo de articulação de dispositivos e pontos de vista diversos, requerendo comunicação e coresponsabilidade entre todos os envolvidos, inclusive das instâncias gestoras das políticas. A construção dessa rede precisaria se balizar pelo sentido de oferecer sustentação/apoio/suporte ao usuário que recorre aos serviços, apresentando necessidades de cuidado, reconhecendo-se nesse processo a singularidade dos casos. Nesta rede, os CAPS, caracterizados como serviços da média complexidade, assumem papel estratégico na organização da atenção às pessoas com transtornos psíquicos, estando regulamentados atualmente principalmente através das Portarias Ministeriais n° 336/GM e nº 189, ambas de 2002 (BRASIL, 2004b). São caracterizados como dispositivos de cuidado intensivo, comunitários, personalizados e promotores de vida, tendo como objetivo garantir atendimento às pessoas que sofrem com transtornos mentais severos e persistentes, num dado território, oferecendo cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial, com o objetivo de substituir o modelo hospitalocêntrico, evitando as internações e favorecendo o exercício da cidadania e da inclusão social dos usuários e suas famílias (BRASIL, 2004b, p. 12).

Entretanto, os CAPS não foram delineados para dar conta de todas as demandas em saúde mental isoladamente, sendo fundamental a existência de outros equipamentos de saúde e sociais, com os quais devem se articular. A rede de cuidados em saúde mental, no contexto da política nacional vigente, deve ter caráter diversificado e marcadamente territorial, fundamentada numa perspectiva de integralidade. No campo da atenção psicossocial, que se configura no contexto da construção da rede de cuidados integrais em saúde mental, há uma exigência de práticas que lancem seu olhar investigativo e compreensivo para a complexidade própria dos humanos, que transitam num dado território, que habitam lugares psicossociais, cuja experiência de loucura e de sofrimento psíquico é atravessada por suas condições existenciais.

Idéia inspirada num fragmento retirado de uma das situações contadas num prefácio de Tutaméia (ROSA, Guimarães. Tutaméia, Rio de Janeiro: José Olympio, 1968): Um menino vendo pescadores consertando suas redes, diz ao pai: “Olha, estão costurando buracos!!!”.

11

32

Como argumentado, a clínica exercida – ou desejável – no cenário contemporâneo da saúde coletiva tem sido denominada de “clínica ampliada” (CAMPOS, 2003), expressão que aponta para a integralidade da atenção, indo além dos sintomas, na perspectiva da promoção à saúde. Disso decorre a necessidade de invenção, criatividade e flexibilidade por parte dos profissionais envolvidos nos variados serviços/dispositivos da rede, a partir do que é demandado pelas pessoas em intenso sofrimento no cotidiano das práticas de cuidado. Dentre os diversos dispositivos previstos na constituição deste sistema, ressaltam-se, em função dos objetivos desta pesquisa, as equipes da Estratégia Saúde da Família (EqSF) e as equipes dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (EqNASF), que compõem a Atenção Básica. É pertinente, nesse ponto, retomar a ampliação do foco de abrangência dessa discussão, caminho sinalizado no capítulo precedente: o cenário é o da atenção à saúde, no SUS, sendo enfocada a prática de EqNASFs, que precisam transitar na rede de saúde, embora sejam componentes do primeiro nível de atenção do sistema. Nesse contexto, considerando-se o delineamento das diretrizes políticas a este campo, destaca-se a centralidade da noção de território, que tem conexão direta com intervenção. Reconhece-se o lugar de vida das pessoas como locus privilegiado do cuidado. Pode-se afirmar a expansão da sua potência de vida como um dos objetivos principais de qualquer proposta terapêutica no campo da saúde. Isto, fundamentalmente, só pode se construir a partir de uma consideração ou relação estreita com o modo/local de existência dessas pessoas. A compreensão contemporânea de saúde, que relaciona o processo saúde-doença às condições existenciais, configura-se como um reconhecimento da complexidade em que as políticas, ações e serviços de saúde estão inseridos. Não há como criar perspectivas de intervenção pertinentes sem uma conexão com esse território vivo, tomado para além da referência física, uma vez que é perfilado pelos modos como as pessoas o habitam. Penso que isso ajuda a compreender a relação hoje assumida entre saúde e condições de vida. Parece claro, a partir da consideração histórica e das proposições principais do movimento pela transformação dos modos de atenção em saúde/saúde mental, que o território é o lugar por excelência para a efetivação de estratégias para o acolhimento e inclusão social da pessoa que passa pela experiência de loucura. Muito vem sendo aprendido, na atuação em saúde, a partir desse processo. O desafio é superar a antiga perspectiva de isolar para melhor compreender e tratar. O cuidado se dá pela inserção social e as vias para a expansão das possibilidades de vida dessas pessoas somente podem ser encontradas na comunidade, no convívio social, nos lugares da cidade. Obviamente essa é uma luta que vem engrossar um cordão de movimentos sociais voltado ao questionamento dos modelos políticos adotados na contemporaneidade, que assumem a exclusão como algo natural/próprio do sistema capitalista.

33

Nesse panorama, os cuidados primários em saúde vêm se caracterizando como foco de discussão e vários delineamentos no mundo. A Conferência Internacional de Cuidados Primários de Saúde, realizada em 1978, em Alma Ata (na antiga URSS), constitui um marco no processo de valorização dessa instância primeira de atenção à saúde como modo de propulsionar avanços nos sistemas de saúde no mundo, especialmente nos países em desenvolvimento, reduzindo as desigualdades existentes. A Declaração de Alma Ata defende os cuidados primários de saúde como chave para a consecução de um nível de saúde suficiente para uma vida social e economicamente produtiva em todo o mundo – meta estabelecida para o ano 2000... Tais cuidados primários são definidos nesse documento-marco como: cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter em cada fase de seu desenvolvimento (...). Fazem parte integrante tanto do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e econômico global da comunidade. Representam o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, pelo qual os cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à saúde. (OMS, 1978)

Dessa definição se destacam algumas das características principais da Atenção Primária à Saúde (APS): primeiro contato da população com o sistema de saúde, fácil acesso à população, continuidade do cuidado, participação da comunidade. De acordo com Andrade, Barreto e Bezerra (2007), o investimento na APS pode ser compreendido como uma tendência um tanto recente de inversão na priorização das ações de saúde: em vez da ênfase em uma abordagem curativa, médicocentrada e desarticulada, valorizam-se intervenções de caráter preventivo e promocional, integradas nos vários níveis de atenção e construídas coletivamente por equipes de saúde. Dentre as definições de APS consultadas, os autores indicam uma das mais completas, a partir de uma referência cubana, cujo sistema de saúde se destaca mundialmente como um dos mais integrais: Estratégia flexível, caracterizada através de um primeiro contato entre pacientes e equipe de saúde, que garante uma atenção integral oportuna e sistemática em um processo contínuo; sustentada por recursos humanos cientificamente qualificados e capacitados; a um custo adequado e sustentável, que transcende o campo sanitário e inclui outros setores; organizada em coordenação com a comunidade e concatenada com os demais níveis da rede sanitária, para proteger, restaurar e reabilitar a saúde dos indivíduos, das famílias e da comunidade, em um processo conjunto de produção social de saúde – mediante um pacto social – que inclui os aspectos biopsicossociais e do meio ambiente; e que não discrimina a nenhum grupo humano por sua condição econômica, sociocultural, de raça ou sexo. (LAGO & CRUZ, 2001, apud ANDRADE, BARRETO & BEZERRA, op. cit., p. 787)

O Brasil tem seguido essa tendência de valorização da APS a partir de diversos investimentos. Dos mais expressivos, foi a decisão do Ministério da Saúde (MS) de eleger o Programa Saúde da Família (PSF), implantado em 1994, como a estratégia de reestruturação dos sistemas locais de saúde, após o sucesso da experiência do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Indicando um

34

processo de maturação da Atenção Básica no país, a Estratégia Saúde da Família (ESF) foi reafirmada, em 2006, no Pacto pela Vida, como modelo de Atenção Básica e centro ordenador das redes de atenção à saúde no SUS, sendo prioridades sua consolidação e qualificação (BRASIL, 2007). Em 2011, foi publicada nova Portaria sobre Atenção Básica no país (Portaria GM, Nº 2.488, de 21 de outubro de 2011)12 – em substituição à Portaria nº 648, GM/MS, de 28 de março de 2006 –, confirmando os investimentos nesse âmbito do sistema, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a ESF e o PACS. Em relação à caracterização da APS13, o documento destaca que deve ser desenvolvida por meio do exercício de práticas de cuidado e gestão, democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios definidos, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações. Utiliza tecnologias de cuidado complexas e variadas que devem auxiliar no manejo das demandas e necessidades de saúde de maior freqüência e relevância em seu território, observando critérios de risco, vulnerabilidade, resiliência e o imperativo ético de que toda demanda, necessidade de saúde ou sofrimento devem ser acolhidos. É desenvolvida com o mais alto grau de descentralização e capilaridade, próxima da vida das pessoas. (BRASIL, 2011)

Assim, em relação à constituição das redes de atenção à saúde – que são arranjos organizativos constituídos por ações e serviços de saúde, de base territorial, diversos em configurações tecnológicas e missões assistenciais, tendo entre si caráter complementar –, a APS deve constituir a sua base, sendo resolutiva, coordenando o cuidado e ordenando-as. A ESF é novamente afirmada como estratégia prioritária para expansão, consolidação e qualificação da APS, tendo como um dos seus principais fundamentos a criação de vínculos das equipes com a população adscrita, de modo a garantir a continuidade das ações e a longitudinalidade do cuidado, a partir do trabalho em equipe, de caráter interdisciplinar. As equipes multiprofissionais da ESF devem ser compostas por, no mínimo, médico generalista ou especialista em saúde da família ou médico de família e comunidade, enfermeiro generalista ou especialista em saúde da família, auxiliar ou técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde (ACS); pode-se acrescentar a esta composição os profissionais de saúde bucal: cirurgião dentista generalista ou especialista em saúde da família, auxiliar e/ou técnico em Saúde Bucal, dentre outros profissionais, em função da realidade epidemiológica, institucional e das necessidades de saúde da população (BRASIL, 2011). A EqSF é substitutiva em relação à rede de APS tradicional, atuando no território pelo qual é responsável, devendo realizar cadastramento domiciliar e diagnóstico situacional, na perspectiva de desenvolver ações para os problemas de saúde, pactuadas com a comunidade, visando o cuidado dos Disponível no sítio http://www.brasilsus.com.br/legislacoes/gm/110154-2488.html, acessado em 14.11.2011. A Portaria foi publicada no Diário Oficial da União de 24 de outubro de 2011. 13 Os termos Atenção Básica e Atenção Primária à Saúde são tomados como equivalentes na Portaria GM nº 2.488, de 21 de outubro de 2011, optando-se pela utilização de APS neste trabalho. 12

35

indivíduos e famílias. É fundamental que desenvolvam parcerias com outras instituições e organizações sociais, especialmente no seu território de abrangência, buscando ser um espaço de construção de cidadania. Na nova portaria, continua a existir a previsão de implantação da agora chamada Estratégia – e não mais programa – de Agentes Comunitários de Saúde nas Unidades Básicas, como uma possibilidade para a reorganização inicial da Atenção Básica, visando à implantação gradual da ESF ou agregar os ACS a outras maneiras de organização da APS. Em resumo, as EqSF se inserem no seio das comunidades, funcionando como a porta preferencial de entrada do sistema de saúde, trabalhando com adscrição/cadastramento de clientela num dado território e a lógica da promoção à saúde, responsabilizando-se pela população adscrita e coordenando o cuidado mesmo quando se recorre ao atendimento em outros pontos de atenção da rede. Ressalta-se que a consolidação da ESF ainda está em andamento no país, havendo inúmeros desafios a esse processo, especialmente nos grandes centros urbanos. A legislação em vigor aponta que o redirecionamento do modelo de atenção implica a necessidade de transformação da lógica de funcionamento dos serviços e do processo de trabalho das equipes, o que resvala a uma demanda pedagógica, de modo que os diversos atores envolvidos (trabalhadores, gestores, usuários) possam ampliar sua “capacidade de análise, intervenção e autonomia para o estabelecimento de práticas transformadoras, a gestão das mudanças e o estreitamento dos elos entre concepção e execução do trabalho” (BRASIL, 2011). Importa destacar que a Portaria GM nº 2.488 abre também a possibilidade para a constituição de equipes de atenção básica voltadas a populações específicas, como equipe do consultório na rua (voltada a populações de rua)14, Equipes de Saúde da Família Ribeirinhas e Fluviais (essas duas últimas voltadas ao atendimento da população ribeirinha da Amazônia Legal e Pantanal Sul Matogrossense). Sempre se percebeu, nesse processo de fortalecimento da APS, um mote para as experiências de articulação da saúde mental com a Estratégia Saúde da Família, que passaram a ocorrer em diversas localidades do país. Essas experiências tinham como princípio norteador desde a idéia de que as equipes de saúde mental deveriam assessorar as EqSF nos casos relacionados à saúde mental até a de uma intervenção das equipes de saúde mental nas próprias comunidades, em articulação com as EqSF, havendo graduações diversas entre esses pólos15. As experiências variavam também quanto à vinculação das equipes de saúde mental: algumas volantes, outras lotadas nos CAPS, com profissionais se dividindo entre assistência “interna” e intervenção no território. A forte convicção consensual que parecia articular todas as experiências em processo era a seguinte: não há como um Constituindo uma novidade, essas equipes ainda serão alvo de regulamentação específica, conforme indicado na própria Portaria GM/MS nº 2.488/2011. 15 Vide a Coletânea SaúdeLoucura vol. 7, organizada por Lancetti e publicada em 2001, que tematiza a articulação entre saúde mental e saúde da família a partir de várias experiências existentes no país. 14

36

programa de saúde mental de qualquer localidade se furtar a construir estratégias de articulação com as equipes da APS. Tendo estado à frente de significativa experiência de articulação de saúde mental na atenção básica em São Paulo, coordenando equipes volantes de saúde mental, forjadas para intervir no território junto com as equipes de Saúde da Família, Lancetti (2001) defende a proposta de que a responsabilidade do cuidado das famílias atendidas deve ser compartilhada pelas duas equipes, priorizando intervenções não burocratizadas e o cuidado no território. Para este autor, a lógica da complexidade nos níveis de atenção se inverte no caso da saúde mental: um grau maior de complexidade está envolvido nas intervenções no território, que se revestem de maior potencialidade em relação à produção de vida, diferentemente das intervenções no hospital, havendo aí procedimentos “mais simples”. Paralelamente, vai se delineando e fortalecendo a idéia de apoio matricial, a partir da experiência de Campinas. Campos (1999) e Campos & Domitti (2007) caracterizam-no como um arranjo organizacional de trabalho que visa garantir retaguarda especializada a equipes e profissionais responsáveis pelos problemas de saúde de uma determinada população adscrita – as denominadas equipes de referência, como são as EqSF. A perspectiva de matriciamento se configura tanto como retaguarda assistencial quanto como suporte técnico-pedagógico, assumindo basicamente três planos de intervenção: atendimento e intervenções conjuntas com as equipes de referência, atendimentos e intervenções especializadas dos apoiadores e troca de conhecimentos e orientações entre equipe e apoiadores. Partindo da constatação de que as equipes da APS se deparam cotidianamente com problemas de “saúde mental” e do princípio de que “todo problema de saúde é também – e sempre mental, e que toda saúde mental é também – e sempre – produção de saúde” (BRASIL, 2004b, p. 79), a Área Técnica de Saúde Mental do MS tem destacado a importância e a necessidade do vínculo e diálogo entre saúde mental e atenção básica. Assim, adotou a perspectiva do apoio matricial como estratégia para a organização de ações de saúde mental na APS, a partir das equipes de CAPS (e/ou outros equipamentos de saúde mental) ou de equipes compostas exclusivamente para esta função. De fato, as equipes da APS são estratégicas para o enfrentamento de agravos vinculados ao uso abusivo de álcool e outras drogas e diversas formas de sofrimento psíquico. Essas experiências e diretrizes certamente foram fontes importantes para a concepção e publicação, em janeiro de 2008, da Portaria GM/MS nº 154 (BRASIL, 2008b), que cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), com o objetivo de “ampliar a abrangência e o escopo das ações da atenção básica, bem como sua resolubilidade, apoiando a inserção da estratégia de Saúde da Família na rede de serviços e o processo de territorialização e regionalização a partir da atenção básica”. É

37

interessante notar como o documento aponta a retaguarda de diversas outras políticas já definidas no contexto da saúde coletiva como forma de fundamentar a proposição e atuação do NASF, o que denota seu caráter articulador. Trata-se, portanto, de um dispositivo que chega para compor e auxiliar as EqSF, no sentido de implementar uma integralidade da atenção aos usuários nos territórios de referência, via qualificação e complementaridade do seu trabalho. A referida portaria foi recentemente revogada pela Portaria GM/MS nº 2.488, de 2011 (BRASIL, 2011), anteriormente mencionada, sendo redefinidos alguns aspectos operacionais sobre o funcionamento do NASF, embora tenham sido mantidas suas diretrizes fundamentais. Tomando como referência a nova Portaria, destaca-se que cada equipe NASF (EqNASF) tem composição necessariamente multidisciplinar, devendo atuar em parceria e apoiar as EqSF, as equipes de atenção básica para populações específicas (consultórios na rua, equipes ribeirinhas e fluviais, etc.) e a academia da saúde16, com responsabilização compartilhada e integração de práticas e saberes nos territórios sob responsabilidade dessas equipes. A atuação do NASF se respalda no apoio matricial às equipes da APS da unidade à(s) qual(is) está vinculado e no território adscrito. Assim, o documento reafirma que a atuação do NASF implica necessariamente uma “revisão da prática do encaminhamento com base nos processos de referência e contrareferência”, enfatizando que o NASF não constitui porta de entrada do sistema de saúde, devendo se integrar à rede de atenção à saúde e redes sociais e comunitárias, focalizando as demandas identificadas no trabalho conjunto com as equipes de APS e/ou academia da saúde. Os NASFs não são, portanto, serviços com unidades físicas independentes ou especiais, de modo que o acesso a essas equipes de apoio deve ser regulado pelas equipes de APS, valorizando-se, sobretudo, um processo de compartilhamento de casos e acompanhamento longitudinal de responsabilidade dessas equipes: Os NASF devem buscar contribuir para a integralidade do cuidado aos usuários do SUS principalmente por intermédio da ampliação da clínica, auxiliando no aumento da capacidade de análise e de intervenção sobre problemas e necessidades de saúde, tanto em termos clínicos quanto sanitários. São exemplos de ações de apoio desenvolvidas pelos profissionais dos NASF: discussão de casos, atendimento conjunto ou não, interconsulta, construção conjunta de projetos terapêuticos, educação permanente, intervenções no território e na saúde de grupos populacionais e da coletividade, ações intersetoriais, ações de prevenção e promoção da saúde, discussão do processo de trabalho das equipes e etc. Todas as atividades podem ser desenvolvidas nas unidades básicas de saúde, academias da saúde ou em outros pontos do território. (BRASIL, 2011)

O Programa Academia da Saúde foi instituído pela Portaria nº 719, de 07 de abril de 2011, com o principal objetivo de contribuir para a promoção da saúde da população via implantação, nas cidades, de pólos com infraestrutura, equipamentos e pessoal qualificado para a orientação de práticas corporais, atividades físicas, de lazer e modos de vida saudáveis. Informação disponível no sítio http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/visualizar_texto.cfm?idtxt=37078, acessado em 15.11.2011. 16

38

As EqNASF podem ser organizadas em duas modalidades: NASF 1, com equipes compostas por profissionais de nível superior17, de acordo com as seguintes condições: a soma das cargas horárias semanais dos membros da equipe deve acumular no mínimo 200 horas semanais, nenhum profissional poderá ter carga horária semanal menor que 20 horas e cada ocupação, considerada isoladamente, deve ter no mínimo 20 horas e no máximo 80 horas de carga horária semanal; e NASF 2, seguindo as mesmas condições, exceto que a soma das cargas horárias semanais dos profissionais deve atingir no máximo 120h e, para cada ocupação, o máximo de horas semanais é de 40h. Da Portaria nº 154/2008 para esta, houve algumas mudanças, pois era considerada, para o NASF 1, a possibilidade de, no mínimo, cinco profissionais, de categorias não-coincidentes, e, para o NASF 2, três profissionais diferentes, sem a possibilidade de inserção de médico. Abriu-se, então, a possibilidade de inserção de dois profissionais de mesma categoria em cada EqNASF, contato que sejam observados os critérios de carga horária estabelecidos. Alerta-se que o repasse de recursos financeiros federais não será feito caso haja a implantação de mais de uma modalidade concomitantemente nos municípios e no Distrito Federal. Um aspecto crucial é que a composição de cada um dos NASF deve ser definida pelos gestores municipais, segundo critérios de prioridade ancorados em dados epidemiológicos e nas necessidades locais e das equipes de saúde apoiadas. Observa-se que a conquista comemorada na área de saúde mental, que se referia à inserção, na portaria anterior, de recomendação relativa à inclusão de ao menos um profissional desta área nas EqNASF, justificada pela magnitude epidemiológica dos transtornos mentais, foi suprimida da Portaria GM/MS nº 2.488/2011. Exige-se que cada NASF 1 realize suas atividades vinculado a, no mínimo, 8 (oito) e no máximo 15 (quinze) EqSF e/ou equipes de atenção básica para populações específicas. Em caráter excepcional, em cidades com menos de 100.000 habitantes dos Estados da Amazônia Legal e Pantanal Sul Matogrossense, cada NASF 1 poderá realizar suas atividades vinculado a, no mínimo, 5 (cinco) e no máximo 9 (nove) equipes. Define-se que cada NASF 2 realize suas atividades vinculado a, no mínimo, 3 (três) equipes de Saúde da Família e no máximo 7 (sete) equipes de saúde da família, sendo indicados para municípios de menor porte (menos de 100.000 habitantes). Na Portaria GM/MS nº 154/2008, algumas ações haviam sido definidas como sendo de responsabilidade das EqNASF, sempre na perspectiva de realização com as EqSF: identificar as necessidades de ações nos territórios e o público prioritário das mesmas; atuar na internação Dentre as categorias profissionais possíveis para o NASF, de acordo com o Código Brasileiro de Ocupação (CBO), estão: Médico Acupunturista; Assistente Social; Profissional/Professor de Educação Física; Farmacêutico; Fisioterapeuta; Fonoaudiólogo; Médico Ginecologista/Obstetra; Médico Homeopata; Nutricionista; Médico Pediatra; Psicólogo; Médico Psiquiatra; Terapeuta Ocupacional; Médico Geriatra; Médico Internista (clinica médica), Médico do Trabalho, Médico Veterinário, profissional com formação em arte e educação (arte educador) e profissional de saúde sanitarista, ou seja, profissional graduado na área de saúde com pós-graduação em saúde pública ou coletiva ou graduado diretamente em uma dessas áreas. (Portaria GM nº 2488/2011) 17

39

domiciliar; acolher os usuários e contribuir na “humanização” da atenção; desenvolver ações intersetoriais, promover a gestão integrada, estimulando a participação dos usuários; divulgar as ações do NASF; avaliar ações e impactos em articulação com instâncias de controle social; elaborar e divulgar material educativo e informativo; além de elaborar projetos terapêuticos individuais. Em relação a este último ponto, destaca-se que a elaboração de projetos de cuidado deve ocorrer via discussões periódicas, possibilitando o compartilhamento de responsabilidade e apropriação coletiva pelas EqSF e EqNASF do acompanhamento dos usuários, com ênfase nas ações multiprofissionais e transdisciplinares. Como grandes grupos de ações possíveis indicados, além de ações de saúde mental, especificavam-se ações de atividade física/práticas corporais, ações das práticas integrativas e complementares (acupuntura e homeopatia), de reabilitação, de alimentação e nutrição, de serviço social, de saúde da criança, de saúde da mulher e de assistência farmacêutica. A publicação de diretrizes específicas para o NASF, nos Cadernos da Atenção Básica, em 2010 (BRASIL, 2010c), auxiliou na fundamentação das práticas que vinham sendo experimentadas desde a implantação das primeiras EqNASF, em 2008. Ainda que seja esclarecedor, o caderno destaca a importância contínua de negociações e compartilhamento de experiências como vias para realização e aprimoramento do trabalho, não existindo uma receita mágica. “É necessário que os profissionais do NASF assumam suas responsabilidades em regime de cogestão com as equipes de SF e sob a coordenação do gestor local, em processos de constante construção” (BRASIL, op. cit., p. 8). As nove áreas estratégicas do NASF são reafirmadas, sendo, porém, melhor especificadas, havendo, inclusive alguns redelineamentos, na perspectiva de expansão. Por exemplo, amplia-se o foco de saúde da criança à abrangência de adolescentes e jovens; na área de reabilitação, insere-se o foco na saúde da pessoa idosa e, no serviço social, refina-se a importância da intersetorialidade, das redes sociais e da participação cidadã. Em cada seção, fica explícita a necessidade do trânsito dos profissionais das várias categorias por todas as ações estratégicas, o que alinhava a perspectiva de prática transdisciplinar. Com a publicação da nova Portaria da APS, determinou-se que a organização do trabalho do NASF deve seguir as normas publicadas pelo MS, destacando os Cadernos de Atenção Básica/Primária acima citados. Sendo um componente da APS, o NASF precisa atuar em consonância com as diretrizes desse âmbito de atenção, dentre as quais se destacam: ação interdisciplinar e intersetorial; educação permanente em saúde dos profissionais e da população; desenvolvimento da noção de território; integralidade, participação social, educação popular; promoção da saúde e

40

humanização (BRASIL, 2010c)18. Sobre o processo de trabalho do NASF, a publicação enfatiza que devem ser criados espaços coletivos de discussões e planejamentos, em que possam ser definidos atendimentos compartilhados, intervenções específicas de profissionais do NASF com os usuários e famílias e ações comuns nos territórios sob sua responsabilidade, dentre outras estratégias. Como ferramentas para a organização e o desenvolvimento do processo de trabalho do NASF, sugerem-se algumas consideradas amplamente testadas no cenário brasileiro, como o apoio matricial (discutido acima), a clínica ampliada (que compreendo muito mais como atitude do que como ferramenta, considerando o que já foi discutido previamente sobre isso), o projeto terapêutico singular (PTS), o projeto saúde no território (PST) e a pactuação do apoio. Farei breves caracterizações destes três últimos. Em relação ao PTS, Oliveira (2008) o define como “um movimento de co-produção e de cogestão do processo terapêutico de indivíduos ou coletivos, em situação de vulnerabilidade” (p. 285), ressaltando sua importância como “dispositivo de integração e organização de equipes de profissionais de saúde” (p. 283). O autor reconhece a origem do que atualmente se concebe como PTS no país na experiência antimanicomial de Santos, disparada em 1989, com base da proposta de desinstitucionalização italiana. A extensão do processo de elaboração de projetos terapêuticos, que valoriza a singularidade dos sujeitos, da saúde mental à atenção básica, possibilita a reconfiguração da noção de vínculo, extrapolando-se a simples adscrição de clientela: trata-se de vínculo com responsabilização. Ainda recorrendo à experiência italiana, em Trieste, a ideia de “tomada de responsabilidade” (DELL’ACQUA & MEZZINA, 1991) de uma equipe por uma dada região da cidade foi crucial para a constituição de redes territoriais eficazes de atenção em saúde mental, sendo possível fazer as ligações com o que se nomeia no Brasil de responsabilidade sanitária. É curioso perceber – e Oliveira também aponta esse aspecto – que, em saúde mental, a elaboração de projetos terapêuticos singulares (por um bom tempo chamado de “individuais”) nos serviços de saúde mental implicava – e implica – a definição de profissionais de referência para cada usuário ou grupo de usuários, havendo aí uma relação com a noção de equipes de referência para a população de um dado território, como ocorre na ESF. A elaboração de PTS abrange a co-produção da problematização, referente a um processo de construção diagnóstica contextualizada; a co-produção de projeto, que remete à definição de objetivos, estratégias e metas, incluindo vias para participação do usuário/grupo em seu processo de cuidado, além da divisão de responsabilidades na equipe e, finalmente, co-gestão e avaliação do processo Algumas dessas diretrizes apontadas constituem políticas específicas dentro do campo da saúde, a exemplo da Educação Permanente em Saúde (Portaria GM/MS n° 1.996, de 20/08/07), Promoção da Saúde (Portaria GM/MS nº 687, 30/03/06) e da Política Nacional de Humanização (BRASIL, 2008a). 18

41

(OLIVEIRA, 2008). Os movimentos acima indicados precisam ser compreendidos como interrelacionados e interpenetráveis. Fundamental ressaltar que não deve haver uma normatização dos modos de fazer PTS, sob pena de obliterar o próprio sentido de sua existência, que é o respeito à singularidade das diversas situações com que as equipes se deparam. O projeto de saúde no território (PST) parte da compreensão ampliada de saúde e dos seus determinantes sociais, além do reconhecimento da complexidade das situações que se apresentam às equipes. Configura-se como um conjunto de estratégias elaborado pelas EqSF e EqNASF para o desenvolvimento de ações voltadas à produção de saúde, partindo da identificação de uma situação, demanda ou necessidade de saúde de uma dada área e/ou população vulnerável ou em risco. Implica um aprofundamento da compreensão em torno da situação, envolvendo um foco na articulação dos serviços de saúde com outros dispositivos ou políticas sociais, visando investimento na qualidade de vida e expansão da autonomia de sujeitos e comunidades (BRASIL, 2010c). A pactuação do apoio está circunscrita em duas atividades: a avaliação conjunta da situação inicial do território, devendo comprometer gestores, EqSF, EqNASF e o Conselho de Saúde e a pactuação do desenvolvimento do processo de trabalho e das metas, entre esses mesmo atores, ampliando-se a participação social. Evidencia-se novamente, pela sugestão dessa ferramenta, a importância da co-construção dos processos de trabalho e ações nas comunidades, o que se revela como chamamento desafiante. A atuação em EqNASF se trata, assim, de um campo em construção, em que a ênfase no trabalho em equipe e na co-responsabilização está claramente posta. Geralmente as necessidades complexas expressas por parte significativa da população não podem ser satisfeitas com base apenas em tecnologias utilizadas por esta ou aquela especialidade, mas, sim, exigem esforços criativos e conjuntos inter e transdisciplinares, mobilização de recursos institucionais e comunitários, bem como recursos materiais e subjetivos (...). (BRASIL, 2010c, p. 37).

Tecer esse trabalho em equipe e na articulação entre equipes (ESF, NASF, CAPS e outros dispositivos da rede) se revela, portanto, como alvo cotidiano. Tendo em vista este panorama, compreendeu-se que escolher as práticas de EqNASF como cenário para a pesquisa se constituía como promissor caminho...

42

Capítulo 3. Práticas em saúde e transdisciplinaridade: percussões e repercussões Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.

Focalizando a intervenção profissional no cenário da saúde pública, Silva (1992) destaca que o trabalho dos profissionais em instituições de saúde deve se dirigir às atuações integradas, na perspectiva de ações que se constroem na própria prática, com ênfase na análise do trabalho cotidiano, o que implica preparo para compor equipes multiprofissionais. Percebo nessa afirmação o cerne da preocupação desse estudo, conforme reafirmo a seguir. Como já indicado, iniciei esta pesquisa tendo um interesse no trabalho em equipes de saúde, com a intenção de destacar a ação do psicólogo nesse contexto. Penso que isso está relacionado, sobretudo, com a minha formação e atuação, que foi se perfilando, após a graduação, em equipes de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), principalmente. Nesse contexto, tive a oportunidade de me experimentar como psicóloga e, a partir das demandas que surgiam, ia compreendendo a importância de uma atuação flexível, exigindo competências que extrapolavam as habilidades aprendidas no âmbito da graduação, ligadas exclusivamente ao núcleo da Psicologia. Sentia que a experiência cotidiana fazia um apelo significativo à troca de experiências entre os diversos profissionais do serviço, e mais, à composição de projetos de intervenção que pareciam não se relacionar tão somente a um núcleo profissional: eu aprendia a ser uma técnica de saúde mental, denominação genérica a todos os profissionais que compõem uma equipe de CAPS. Reconheço que essa experiência em CAPS constitui uma referência fundamental ao tipo de psicóloga em que me fui transformando, muito disponível ao trânsito entre as diversas áreas profissionais – independentemente de ser de nível superior, médio ou elementar. Compreendi, nestes serviços, a importância de uma composição para a atuação em saúde costurada cotidianamente, por todos que fazem parte da equipe – do gerente ao porteiro – e, fundamentalmente, pelos usuários. Reafirmo que foi a minha trajetória profissional – antes de ser professora universitária – que garantiu o terreno para a gestação dessa questão de pesquisa assumida para o doutorado; portanto, trata-se de uma questão engendrada a partir de uma experiência profissional que se forjou em alguns diferentes cenários. Experimentei “trabalho em equipe” em vários momentos dessa trajetória e, assim, a aposta que faço nas possibilidades de produção coletiva na experiência de equipes de saúde não é vã ou meramente retórica (em seu sentido sofista). Aposto que as frestas para um trabalho com marcas de produção coletiva podem ser descobertas ou inventadas no cotidiano das práticas e foi em busca disso que me lancei quando fiz a definição da questão e imersão no campo de pesquisa. Como psicóloga e pesquisadora, burilei e lancei olhares a essa questão, passando a percebêla em metamorfose, saltando da ilha do meu núcleo profissional para a travessia no rio comum e

43

caudaloso da atuação dos vários profissionais de saúde, particularmente no contexto da Saúde Coletiva. Assim sendo, meu interesse pôde se desvencilhar do enfoque inicial que eu buscava dar à intervenção do psicólogo em equipes de saúde, ampliando-se à atuação profissional em equipes de saúde. Essa espécie de migração de foco da pesquisa – que considero uma ampliação – me parece estar sintonizada ao mais originário de minha inquietação quanto à atuação dos profissionais de saúde: a preocupação de que possa haver comunicação e produção coletiva entre todos envolvidos no processo de promoção de saúde, pois este me parece o maior desafio para intervenções mais contextualizadas e responsivas às necessidades trazidas pelos usuários. Feitas estas considerações, penso ter esclarecido o motivo de iniciar esse capítulo retomando algo da perspectiva histórica de atuação do psicólogo na rede pública de saúde para, então, passar a reflexões em torno da prática em equipe, na frequência transdisciplinar, situando o leitor em relação a certas discussões teóricas que tomarei como referências para a compreensão dessa temática, posteriormente, com base na matéria-prima construída no trabalho de campo. A inserção do psicólogo em serviços de saúde teve como um dos seus fatores determinantes o processo de contestação das políticas públicas nesta área e do modelo assistencial predominante, que configurou os movimentos de Reforma Sanitária e de Reforma Psiquiátrica no Brasil, anteriormente referidos. Como vem sendo discutido, tais movimentos culminaram na reorganização do modelo de atenção à saúde no país, cuja consolidação ainda se processa. Focada particularmente na abertura de campo para o psicólogo na área da saúde mental, Dimenstein (1998) destaca que isto se deu em um momento de crítica ao modelo asilar e às equipes de saúde formadas predominantemente por médicos, bem como de ênfase na constituição de equipes multiprofissionais, consideradas imprescindíveis para a efetivação das novas propostas de atenção nesse campo. A autora enfatiza que as diretrizes da política de saúde pública e de saúde mental, redefinidas no contexto de abertura democrática dos anos 80, foram reforçando uma tendência a atribuir às equipes um papel decisivo no processo de reforma do sistema de saúde, permitindo a inserção de outros profissionais nesse campo. Desde então, a inserção de psicólogos em equipes de saúde e no contexto do SUS tem sido alvo de vários debates e estudos que indicam, principalmente, dissonâncias entre a formação profissional e os desafios para atuação nesse campo, como já foi sinalizado na apresentação desse trabalho. Andrade (2007) indica que a maioria das pesquisas sobre práticas psicológicas em saúde pública conclui que a formação acadêmica não prepara o profissional para a atuação neste campo, no sentido da ausência de conteúdos teórico-práticos específicos. A autora propõe, entretanto, outra perspectiva de compreensão: aponta o aspecto de que a genealogia de práticas destoantes no contexto público está “no excesso de ‘conteúdos disciplinares’, que com-formam posturas também

44

disciplinares ou especialistas, descartando conteúdos, considerados menores, porém múltiplos e complexos, que não são transmissíveis ou não são comportáveis na relação vertical professor-aluno” (ANDRADE, 2007, p. 33). Considero que essa discussão pode ser ampliada igualmente para a formação nas diversas áreas da saúde, ainda marcada pela fragmentação e hiperespecialização. A partir dos aspectos mencionados, reflito que a ação no campo da atenção psicossocial – onde fui me tornando psicóloga – configura-se como um desafio para os profissionais que aí exercem sua prática, instalando-se, a partir disto, um mote significativo para reflexão. Torna-se importante compreender como estão situados os psicólogos nesse campo de atuação: de que modo percebem esse processo de construção de uma rede integral de cuidados em saúde/saúde mental, como tem se efetivado sua inserção, como interagem com os demais profissionais na equipe interdisciplinar, como encaram e praticam as perspectivas da integralidade, da intersetorialidade e da territorialidade na intervenção em saúde pública. São inúmeras as questões emergentes, que vêm disparando estudos nesta fecunda área de intersecção entre prática psicológica e políticas públicas de saúde. Para esta discussão, assume-se a caracterização do psicólogo como fundamentalmente um profissional do encontro, como tão bem argumentado por Figueiredo (1993). Na mesma direção, Andrade e Morato (2004) sinalizam que “nas práticas institucionais faz-se necessário, pois, que o psicólogo se despoje do lugar de especialista, portador de um saber a ser transmitido e passe a funcionar como um mediador, um entre, que acolhe a produção emergente nos diversos encontros” (p. 347). Discutindo práticas psicológicas e a hegemonia do saberes especialistas, Andrade (2007) tematiza agudamente a relação do psicólogo com o saber e a repercussão disto na sua prática. Aponta a tradição da Psicologia como disciplina fortemente enviesada por perspectivas naturalizantes, metafísicas, transcendentes à própria experiência da vida, fundamentando práticas disciplinares, moralizantes, voltadas frequentemente à adaptação e ajustamento dos sujeitos. Desse modo, seriam práticas redutoras da potência de vida, da potência singular a cada ser vivo, usando a concepção e terminologia de Espinosa produzida no século XVII19, que parece ter inspirado a veemente crítica nietzschiana ao valor da verdade, feita séculos depois. Os saberes especialistas e seu modo de incorporação por profissionais da Psicologia, como verdades universais ou modelos explicativos que parecem negar a processualidade da vida, praticamente eliminam sua inventividade, podendo gerar práticas que restringem as possibilidades de expansão da vida no seu contato com quem recorre aos serviços, na relação com outros membros da

No capítulo subsequente, serão apresentados fragmentos da filosofia de Espinosa, sobretudo referentes à sua produção sobre a ética e a correspondente dinâmica das afetações a partir dos encontros, tomada como uma das referências conceituais que alicerçam esta pesquisa.

19

45

equipe e em relação a si próprios. É a sua própria potência em ato como profissional que fica constrita, podendo produzir angústia e desânimo. A primazia do saber especialista, compreendido dessa forma, coloca o profissional no lugar moral da obrigação, do “ter que”, da necessidade de dar conta das situações que lhe são apresentadas. A função de saber/poder sobre o outro se fundamenta nessa perspectiva modelar: formata-se a prática, formata-se a percepção do outro, formata-se o modo de agir. A busca incessante por modelos ou moldes de atuação reflete essa cristalização do saber em torno do humano, tolhendo a multiplicidade que é imanente à condição de ser vivo e desconsiderando a fertilidade que pode brotar na própria prática, compreendida como originária de compreensões e modos de ver, que constituem as teorias. Mais uma vez, destaco que, conforme compreendo, essa crítica-reflexão poderia ser estendida à atuação das outras profissões da saúde, além da Psicologia, dado todas estarem, de algum modo, capturadas por perspectivas naturalizantes e objetificantes na compreensão dos sujeitos e das práticas, por submissão a uma racionalidade biomédica ainda hegemônica. Para indicar as possibilidades de uma prática em saúde inventiva e conectada com a processualidade da vida, torna-se interessante perceber como as mudanças no campo da atenção à saúde no SUS, geralmente, vão além da questão normativa/legislativa, ou a ela se antecipam. Compreende-se que a legitimidade de quaisquer empreendimentos nas práticas de saúde extrapola portarias e legislações, embora o avanço obtido no panorama nacional relativo a esse aspecto seja fundamental e deva ser sempre visado. O que busco enfatizar é que essa legitimidade – não restrita ao aspecto normativo e legal – se constrói a partir da ação cotidiana, no envolvimento dos diversos agentes nela implicados. Como exemplo, destaca-se que a expansão atual da rede de serviços substitutivos à lógica manicomial (representada principalmente pelos hospitais psiquiátricos) no Brasil denota a possibilidade concreta de outros modos de cuidar, que se fundem no respeito à condição cidadã dos que passam pela experiência da loucura: muitas experiências ocorreram antes da instituição de uma legislação específica. Assim, a própria experiência serviu como motor para a produção de aspectos específicos da política, havendo momentos vários de efervescência, porque marcados pela ousadia da experimentação – com responsabilidade – como no caso do processo de reforma da rede da política de saúde mental de Santos, deflagrado em 1989 (LANCETTI; AMARANTE, 2007). Partindo dessa contextualização, reenfatizo um dos argumentos centrais desse projeto: a necessidade de estudos avaliativos/compreensivos nos diversos âmbitos dessa rede de atenção psicossocial, de modo a ampliar suas possibilidades de responder coerentemente aos seus propósitos de instituição de outras formas/modos de atenção à saúde, a partir da identificação dos limites e impasses e construção de modos de enfrentamento. Como já assumido, esse estudo toma um aspecto

46

específico para essa avaliação – o trabalho em equipe – fazendo-se, neste ponto, a transição para a discussão em torno da prática transdisciplinar, saltando da ilha específica da Psicologia. Onocko-Campos & Furtado (2006) apontam a distância disciplinar ente a saúde coletiva e a saúde mental, por terem trilhado caminhos paralelos na última década, apesar de a Reforma Sanitária e a Reforma Psiquiátrica pertencerem a um movimento de raízes comuns. Identificam que a saúde coletiva, em suas vertentes relacionadas à avaliação de serviços e desenvolvimento de pessoal, vem ampliando seu espaço na academia sem correlativo aumento de sua utilização nos serviços de saúde mental que, por sua vez, requerem uma necessária adaptação desse instrumental e não a simples extrapolação de categorias já consagradas em outros âmbitos (ONOCKO-CAMPOS & FURTADO, 2006, p. 1054).

Assim, estes autores indicam, como necessário e fértil, o desenvolvimento de investigações na interface entre saúde coletiva e saúde mental, que permanece ainda um território quase inexplorado, caracterizando-se, potencialmente, como uma área emergente de destacada relevância social. Enfatizam que o estabelecimento de interlocução sistemática entre esses dois campos poderia trazer conquistas importantes para ambos. Como sinalizado, penso ser interessante apontar até mesmo uma incoerência na separação entre saúde e saúde mental (bem como de “outras saúdes”), considerando os avanços das discussões em torno da integralidade. A manutenção de “caixinhas temáticas” dentro da política de saúde acaba por fragmentar a compreensão e as práticas de atenção à saúde, não se restringindo a uma lógica de organização do sistema, mas se reproduzindo em intervenções pontuais e fragmentadas, sem a introjeção da perspectiva de rede e suas conexões múltiplas e variadas, característica da compreensão ampliada de saúde atualmente assumida. Hartz (1997, citada por FURTADO, 2007) indica que tem havido um crescente interesse por práticas avaliativas dos programas e serviços de saúde no Brasil, particularmente a partir da década de 90. São diversos e até antagônicos os motivos para este fenômeno. Uma linha de explicação é contemplada no fragmento a seguir: O SUS aumentou a extensão e importância política e econômica de serviços e programas na área da saúde. Como grande projeto social de nosso País, desdobra-se e operacionaliza-se em numerosas ações e iniciativas que se tornam alvo constante de questionamentos sobre sua eficiência, eficácia e efetividade. Pairam indagações sobre a qualidade dos serviços prestados, a pertinência da tecnologia utilizada e sobre os modelos assistenciais implementados, dentre outros e que convocam a avaliação como um dos instrumentos na busca de respostas (NOVAIS, 2000 apud FURTADO, 2007, p. 723).

Furtado (2007) assim resume o sentido das práticas de avaliação: “emitir um juízo de valor sobre determinada intervenção (programa, serviço etc) com critérios e referenciais explícitos, utilizando-se dados e informações construídos ou já existentes, visando a tomada de decisão” (p. 717). Segundo o autor, como aspectos básicos a serem garantidos em um estudo avaliativo, destacam-se: inserção dos diferentes grupos de interesse; clareza em relação ao porquê e para que se pretende iniciar o processo; cuidadosa discussão na elaboração das perguntas e escolha do método;

47

transparência na elaboração e comunicação dos resultados; e preocupação em levantar informações realmente pertinentes e úteis para a tomada de decisão. Como a perspectiva de trabalho em equipes constitui um aspecto central no cotidiano dos serviços da rede pública de saúde, considero que merece especial atenção, como já indicado e defendido. Compreender as possibilidades de ação transdisciplinar, de importância axial para a consolidação e a dinâmica do trabalho em equipes de saúde, consiste no fundamento da pesquisa ora apresentada. Destaca-se que o estudo é atravessado por um viés avaliativo, com uma perspectiva bem particular: a avaliação proposta repousa na genealogia das práticas, saberes e discursos20 relativos ao trabalho em equipe no campo da saúde, com atenção às brechas para ações de caráter transdisciplinar, em equipes que objetivam produzir práticas voltadas à promoção de saúde. Em meio a esse debate, a própria compreensão assumida dos termos multi, inter e transdisciplinar se revela fundamental. A atuação interdisciplinar costuma ser referenciada como o processo de troca de saberes entre diversos profissionais (e, consequentemente, entre núcleos disciplinares) na tentativa de delinear uma intervenção em sintonia com a complexidade dos fenômenos humanos e da vida. Na área da saúde, a diretriz do trabalho em equipes é datada desde o período inicial de reformulação das políticas públicas de saúde no Brasil, no bojo do movimento sanitário. Paralelamente, o movimento pela reforma psiquiátrica convocava os diversos profissionais a participar de equipes multiprofissionais na perspectiva de redirecionar o cuidado em saúde mental. Nesse contexto de disputas e conquistas democráticas, o trabalho em equipe vem se destacando como dispositivo fundamental nos serviços de saúde para a conquista da integralidade da atenção à saúde, um princípio constitucional. A Política Nacional de Humanização - PNH (BRASIL, 2008a) destaca como um dos desafios precípuos à produção de saúde “(...) melhorar a interação nas equipes e qualificá-las para lidarem com as singularidades dos sujeitos e coletivos nas práticas de atenção à saúde” (p. 14), o que pode ser viabilizado pelo fortalecimento do trabalho em equipe multiprofissional, na perspectiva da transversalidade e da grupalidade. Segundo Ceccim (2010), o trabalho em saúde, no contexto do SUS, engloba a formação e o exercício profissional, que configuram o seu campo de análise situacional e de formulação política. Ressalta-se, assim, a perspectiva da multiprofissionalidade e da transdisciplinaridade, sob a referência de ampliação da clínica em saúde, que implica o trabalho em equipe, a integralidade da atenção à saúde e a responsabilização da gestão (CECCIM; FEUERWERKER, 2004). Compreende-se que a proposta do trabalho em equipe corresponde a uma tentativa de enfrentar o crescente processo de especialização na área da saúde, que remete à hegemonia dos A discussão em torno da genealogia como método avaliativo será empreendida no próximo capítulo, a partir de um referencial nietzschiano.

20

48

saberes especialistas – sob a regência da racionalidade biomédica – numa atuação fragmentada e individualizante, com vistas a promover uma atenção integral a partir da articulação de olhares e saberes (PEDUZZI, 2001; CAMPOS, 2000; GOMES, GUIZARDI; PINHEIRO, 2010). Desse modo, chegou-se ao ponto em que “não está em negociação impor ou não a condição multiprofissional” (CECCIM, 2008, p. 262), visto que já se tornou orientação legitimada, presente tanto nas diretrizes curriculares para a formação em saúde quanto para o exercício profissional no SUS (CECCIM, 2008, 2010). O desafio ora imposto é a negociação dos “modos, meios, processos e dinâmicas” (CECCIM, 2008, p. 262) para a sua efetivação. Diante desse panorama, a organização dos processos de trabalho em saúde ganha pertinente destaque, sendo necessário garantir investimentos no processo formativo para o trabalho em saúde21. De fato, a legitimidade dessa diretriz não parece garantir por si a produção de um trabalho tecido a partir da conjunção e articulação entre os diversos atores/autores. Apesar da proposta de um trabalho configurado a partir de equipes multiprofissionais na área da saúde parecer se embasar na idéia de uma tessitura conjunta, de uma produção coletiva diante das situações da prática cotidiana – o que já caracterizaria uma atuação transdisciplinar, conforme será defendido adiante – a ação real22 costuma se configurar, quando muito, de caráter interdisciplinar, destacando-se algum nível de troca e articulação entre saberes diversos, tal como apontado. Não é raro que a atuação em equipe acabe se reduzindo a uma composição de profissionais de diferentes áreas, numa lógica fracionada, sem garantia de produção conjunta de fazeres. Discutindo o trabalho em equipe, Peduzzi (2001) argumenta que é necessário ir além do enfoque de equipe multiprofissional tomado meramente a partir da existência de profissionais de áreas diferentes que atuam conjuntamente. Torna-se fundamental uma atenção à articulação entre ações e saberes no contexto da equipe, de modo a conhecer sua dinâmica. Respaldando-se na perspectiva habermasiana – que distingue entre agir instrumental e agir comunicativo – e em concepções de processo de trabalho em saúde, a autora buscou compreender a complexa dinâmica da ação multiprofissional, abordando, numa perspectiva dialética, tanto a dimensão estrutural dos arranjos rígidos do trabalho e da racionalidade assistencial quanto a dimensão da intersubjetividade. Assim, apresenta dois tipos de equipe possíveis: a equipe-agrupamento – em que se destaca a fragmentação das práticas, com justaposição das ações e aglutinação dos agentes – e a equipeCompreende-se que aqui se abre uma fresta para uma discussão vigorosa em torno das propostas educativas para o trabalho em saúde, a exemplo da Política de Educação Permanente em Saúde (BRASIL, 2009), englobando a proposta do quadrilátero da formação “atenção, gestão, ensino e controle social” (CECCIM E FEUERWERKER, 2004); entretanto, essa trilha não será seguida dada a intenção de focalizar na temática proposta, a partir da experiência no exercício profissional, ainda que se reconheça a interface fértil e necessária aí existente. Essa discussão será, em certa medida, retomada no capítulo interpretativo da matéria-prima colhida em campo. 22 “Real” e “concreto” são termos que utilizo ao longo da tese para me referir ao plano do cotidiano, da imanência, no contexto das práticas das equipes de saúde. Tais adjetivos revelam, portanto, o contexto experiencial vivido pelas equipes no seu trabalho cotidiano, dizendo de possíveis realizados em oposição ao que é proposto, imaginado, idealizado. 21

49

integração – em que ocorre a articulação das ações e interação dos agentes, em consonância com a perspectiva da integralidade. Nessa tipologia, ressalta-se o caráter da comunicação entre os agentes, que, ao ocorrer, pode se delinear numa frequência instrumental e técnica – relacionada ao agir instrumental – ou como genuína prática comunicativa, com argüição mútua do trabalho cotidiano, caracterizada pela busca de consensos e construção de um projeto assistencial comum – relacionada ao agir comunicativo (PEDUZZI, 2001). Outrossim, Gomes, Guizardi & Pinheiro (2010) indicam que a mera reunião de diferentes profissionais, com percursos diversos de formação e de práticas, não garante o êxito de uma ação integral e articulada pela equipe de saúde. Essa multiplicidade acaba por refletir distintos processos de trabalho, que se revelam na “dissociação de procedimentos e das tarefas inerentes às diferentes profissões, como na cisão presente nas relações interpessoais entre os trabalhadores das diferentes especialidades” (p. 108). Daí a necessidade de extrapolar atuações individuais e pontuais de cada membro, numa perspectiva de ação em concerto. Tal como defendido pelos autores, o agir dos profissionais de uma equipe de saúde que se configura como em uma orquestra implicaria no reconhecimento e afirmação cotidianos das especificidades dos saberes e fazeres, valorizando-se, assim, tanto a heterogeneidade quanto as interfaces das práticas em vinculação aos objetivos da equipe. Com diversos saberes e técnicas, além de diferentes instrumentos de trabalho, há a intenção de gerar um trabalho em conjunto, que teria, sim, o caráter de arte. Na orquestração do trabalho, importam as relações entre os componentes da equipe e, fundamentalmente, com os usuários: o contato com os usuários – via acolhimento, vínculo e escuta – seria tomado continuamente como a batuta a conduzir o ritmo e arranjo das práticas. Discutindo a questão da clínica e analisando os esforços em flexibilizar as fronteiras entre disciplinas, que costumam circunscrever seus objetos de pesquisa e/ou interesse de modo preciso, Passos e Benevides (2000) identificam os seguintes arranjos possíveis entre diferentes disciplinas (ou saberes): o movimento de disciplinas que se somam na tarefa de dar conta de um objeto que, pela sua natureza multifacetada, exigiria diferentes olhares (multidisciplinaridade), ou, de outra forma, o movimento de criação de uma zona de interseção entre elas, para a qual um objeto específico seria designado (interdisciplinaridade). Mas o que vemos como efeito, seja da multidisciplinaridade, seja da interdisciplinaridade, é a manutenção das fronteiras disciplinares, dos objetos e, especialmente, dos sujeitos desses saberes (PASSOS; BENEVIDES, 2000, p. 74).

Curioso perceber que os autores equalizam as perspectivas multi e interdisciplinar, dado não se caracterizarem por expressivas mudanças ou interferências nos próprios saberes – tampouco entre os seus sujeitos – como efeito da aproximação que é proposta ou que efetivamente acontece. Esses arranjos não comportariam, assim, uma interpenetração entre os saberes, ainda que na perspectiva

50

interdisciplinar haja referência a uma interseção; mas aí parece se tratar do reconhecimento de aspectos que já são de algum modo comuns na compreensão de um dado fenômeno. Já a perspectiva transdisciplinar, para estes autores, implicaria repercussões mútuas, correspondendo a uma atitude crítica, que põe em questão a relação sujeito-objeto, no sentido de desestabilizar a dicotomia sujeito que conhece e objeto de conhecimento: sujeito e objeto são efeitos de relações, não se caracterizando como categorias dadas a priori. Haveria, portanto, um coengendramento de sujeito e objeto no próprio ato de conhecimento, sem anterioridade alguma muito menos garantias apriorísticas: “conhecer é estar em um engajamento produtivo da realidade conhecida, mas também é constituir-se neste engajamento por um efeito de retroação, já que não estamos imunes ao que conhecemos” (PASSOS; BENEVIDES, 2000, p. 77). Assim, a aposta transdisciplinar implicaria relações de interferência entre os saberes ou disciplinas, de intercessão, de atravessamento desestabilizador; o que se produziria, a partir disto, não seria uma nova identidade – como na perspectiva interdisciplinar – mas “um processo de diferenciação que não tende à estabilidade” (Ibidem: p. 77). Em sintonia com essa discussão, Lavrador (1999) aponta que não se trataria da relação polida entre os conhecimentos – que seria a proposta de multidisciplinaridade – muito menos de uma aproximação entre disciplinas que, de certo modo, repetiria o isolamento anterior – o que caracterizaria a interdisciplinaridade. De modo ousado, a transdisciplinaridade poria em questão a própria noção de disciplina, promovendo um esmaecimento ou borramento de fronteiras. Desse modo, compreende-se que a perspectiva de ação transdisciplinar, relacionada com a produção coletiva, remete à construção de algo novo, inesperado, que não se conforma à redoma de saberes de qualquer disciplina específica, estando no campo da criação. Esta atitude se respalda no questionamento aos saberes cristalizados, que geram práticas fossilizadas, pré-formatadas com base em teorias construídas a partir da noção de um sujeito epistemológico pleno, tal como formulada no receituário iluminista e racionalista – portanto, sujeito transcendental, universal, abstrato e a-histórico. Tais práticas são fundamentadas em valores morais, porque apoiadas nessa noção metafísica de sujeito e num conjunto de preceitos transcendentes à própria vida e aos sujeitos concretos. Andrade (2007, 2008) defende que a produção coletiva implica algo que surge no entre, não comportando concepções apriorísticas, exigindo o experimentar constante e criação de outros modos a partir dos diversos encontros com o outro. Aqui também se destaca, além do encontro entre profissionais de diferentes disciplinas, o encontro destes com os usuários concretos, os sujeitos que recorrem às práticas das equipes de saúde e aos serviços em que elas se realizam, compreendidos como utensílios. Também eles são artífices desse cuidado, ainda que estejam em condição de demandante; também eles trazem ao processo de construir saúde uma contribuição fundamental;

51

também suas mãos (aqui simbolizando saberes e fazeres) entram nessa produção coletiva. Evidenciase, portanto, que o coletivo é uma expressão usada para caracterizar a condição de algo que se configura a partir dos encontros diversos das pessoas na teia de relações implicada na produção de saúde. Concordo com Ceccim (2008) quando enfatiza “que não existirá um modelo à ética entredisciplinar para o exercício entre as profissões de saúde, exceto a estética multiprofissional, esta como um território de exposição” (p. 275). Para o autor, trata-se de buscar uma interdisciplinaridade sem unidade possível, em que a equipe multiprofissional não requereria uma supressão da pluralidade, mas um expor-se, no contato com a alteridade e desenvolvimento de conhecimentos aproximativos e intuitivos. Assim, em vez de rotinas normativas e compartimentalização técnico-burocrática do trabalho, propõe a entredisciplina, como “zona de fronteira e de intercessões das práticas disciplinares, umas às outras, diferenciando-se cada uma de forma viva” (CECCIM, 2008, p. 275). Nesse sentido, a ética entredisciplinar se referiria à condição de cada profissional estar na fronteira de sua profissão em relação às demais, implicando contínuo trânsito na equipe, de modo que as composições possíveis são múltiplas e plurais, marcadas pela invenção e compartilhamento. Daí a noção de um trabalho em equipe como um espaço protegido, porque não se atua na frequência do individual, havendo a construção de laços de confiança e uma corresponsabilização pelo engendramento do cuidado, com implicação dos próprios usuários. Cabe introduzir, neste ponto, a já clássica e difundida distinção feita por Campos (2000) entre campo e núcleo de saberes e práticas da Saúde Coletiva. Inicialmente o autor realça o fato de que, ao que lhe parece, o borramento de limites entre disciplinas, propalado por diversos autores “pósmodernos”, apontaria muito mais a impossibilidade de isolamento no campo de práticas do que a progressiva extinção, em direção à fusão, de todas as disciplinas, profissões e especialidades, sendo fundamental escapar ao paradoxo do “isolamento paranóico” ou o da “fusão esquizofrênica”. Nesse sentido, a proposta é de que a institucionalização dos saberes e a sua respectiva organização em práticas ocorreriam pela conformação de núcleos e campos. Por núcleo, compreende uma aglutinação de conhecimentos ou uma determinada concentração de saberes e práticas, circunscrevendo a identidade de uma área de saber e de prática profissional; campo, por sua vez, corresponderia a um espaço de limites imprecisos, em que as diferentes profissões e disciplinas buscariam entre si apoio para o exercício de suas tarefas teóricas e práticas. Essas definições se baseiam numa relação dialética entre núcleo e campo, de modo que se mantem uma articulação entre ambos: “metaforicamente, os núcleos funcionariam em semelhança aos círculos concêntricos que se formam quando se atira um objeto em água parada. O campo seria a água e seu contexto” (CAMPOS, 2000, p. 221). Tomando por base essa distinção, podemos compreender, no contexto de nossa discussão, o

52

campo como sendo o da atenção à saúde na rede SUS – composta por múltiplos serviços e suas respectivas equipes de saúde – e como núcleos, os vários saberes aí envolvidos – não apenas os disciplinares, relativos às diversas áreas profissionais, mas também a diversidade dos saberes populares. Ceccim23 reflete que existiria uma tensão permanente entre as instâncias campo e núcleo, pluralizadas no panorama cotidiano das relações de trabalho. Atuar numa perspectiva entredisciplinar implicaria uma não-fixidez dos profissionais a seus núcleos, havendo reconfigurações contínuas das fronteiras disciplinares, permanentemente apagadas e reconstituídas, sempre de modos diversos, no cotidiano das práticas. Não se pretende eliminar a importância dos núcleos profissionais, até porque cada um se reveste de competências técnicas que são fundamentais às intervenções de saúde, existindo uma demanda concreta e real a cada um deles. Entretanto, as atuações nucleares podem e devem ser discutidas no contexto de cada equipe de saúde, considerando-se os profissionais reais e concretos que ali estão bem como os usuários reais e concretos que a buscam. Arranjos diversos são possíveis, contanto que se garanta uma abertura dos profissionais a esse diálogo permanente em relação às possibilidades de intervenção vislumbradas, em negociação com os usuários. Assim, os núcleos (profissionais) vão ganhando contornos nas práticas cotidianas, a partir do objetivo maior, que deve ser o cuidado a quem procura – o usuário. Frisa-se que a noção de núcleo poderia ser extrapolada às composições de saberes diversos, não modulados restritamente à circunscrição de disciplinas. Considero ilustrativo recorrer a um exemplo utilizado por Ceccim para ampliar a compreensão em relação a essa dinâmica entre campo e núcleos: muitas vezes o que é constitutivo do núcleo de uma profissão pode e deve funcionar como campo para todas as outras. Esse é o caso da escuta para a Psicologia: considerando que uma intervenção na atenção à saúde não pode se processar sem algum tipo de escuta, o profissional com quem o usuário tem contato precisará ter uma habilidade mínima de escuta e acolhimento, independentemente de ser ou não psicólogo. Obviamente, a escuta do psicólogo tem características peculiares, relativas ao seu núcleo profissional, mas qualquer profissional de uma equipe de saúde precisa saber fazer, a princípio, um acolhimento do usuário, que implica necessariamente a escuta. A intervenção será tanto mais apropriada quanto maior for a possibilidade de ouvir o usuário, buscando-se compreender a queixa/pedido, o que não se faz sem o contato com o outro.

23 Neste e no parágrafo seguinte, recorro a reflexões feitas por mim a partir de anotações da aula proferida pelo Professor Ricardo Ceccim, na Disciplina “Educação e Liberdade: aportes teórico-conceituais para estudar a formação em saúde”, promovida pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da UERJ, sob coordenação da Profª. Drª. Roseni Pinheiro, de 04 a 11 de outubro de 2011.

53

Penso que a proposta de entredisciplinaridade (CECCIM, 2008, 2010) assemelha-se ao que chamo neste trabalho de ação transdiciplinar, como produção coletiva, auxiliando, portanto, na compreensão da perspectiva que assumo. Na ação transdisciplinar, a busca por modelos precisaria ser superada: não há um padrão previamente definido ou a definir, pois essa parece ser, em essência, sem essência, fruto de criação, de produção, de transformação, brotando da bricolagem, gerando híbridos, novidades, produzindo diferença, em moto-contínuo. Isto por ser tecida conjuntamente, na prática cotidiana, escapando-se à formatação dos saberes enrijecidos, tão bem sustentados sobre o edifício naturalizante e metafísico do projeto científico da modernidade, que gera tanto o desejo quanto a ilusão de controle e domínio. O profissional de saúde, ao assumir tal perspectiva, está livre para se lançar na aventura da coexistência, transforma-se e transforma, sem a antecipação (impossível) do que será, com o compromisso da produção de vida-saúde-qualidade, que não se submete a padrões ou qualquer molde que represente rigidez e vontade de controle. Teixeira (2001), ao discutir os agenciamentos tecnosemiológicos e a temática da transformação/formação do sujeito no campo da saúde, apresenta metáfora que achei particularmente rica, relativa à compreensão da técnica ou dos objetos técnicos, como interfaces, ou seja, como operadores de passagem – passagem que ocorre entre dois (e por que não mais de dois?) elementos heterogêneos, operação que ocorre no encontro, no contato, na comunicação, incluindo transportes, transmissões, traduções, transformações. O que produzimos (nossas práticas, modos, técnicas) são elementos de articulação. Estamos continuamente, a partir de nossa existência e contato com os outros, operando passagens, dado que a alteridade é o que vai nos marcando: nada sei do outro a priori. Assumindo essa metáfora, seríamos todos “regiões de fronteira” e, o que produzimos ou buscaríamos produzir, seriam mecanismos de comunicação, de passagem, de contato. Parece-me que o compromisso da produção de vida-saúde-qualidade, no grande campo da atenção à saúde, precisa se relacionar com a perspectiva de movimento, tão própria da vida. Retomando a compreensão do psicólogo como fundamentalmente um profissional do encontro (FIGUEIREDO, 1993), penso se isso não poderia ser apropriado a todos os profissionais de saúde, cuja prática exige uma condição de encontro – sempre com a alteridade, que acaba por remeter a nós mesmos – como via de produção de intervenções pertinentes. Nomeio de pertinentes ou apropriadas porque seriam intervenções conectadas com o que vai se apresentando – e se clareando – como necessidade de saúde nessa aproximação e contato com o outro. Destaco que assumir isso na ação cotidiana vinculada à produção de saúde facilitaria a expansão de vida, estando sempre à vista a possibilidade de bons encontros24; “bons” contanto que afirmadores e promotores da própria vida, 24 Essa expressão foi aprendida ao longo do processo de orientação dessa pesquisa, com a Profª. Angela Nobre de Andrade, que a utilizava frequentemente com referência à discussão de ética de Espinosa.

54

abrindo-se ao que surge, sem a urgência de dar respostas ao outro, pelo outro, sustentando-se em um saber técnico esquecido da sua origem como techné, ou seja, desprovido da dimensão artística e criativa. A partir das reflexões sobre técnica empreendidas por Heidegger (2002), em que resgata seu sentido originário de techné, arrisco afirmar que compreender a técnica como dimensionada na Modernidade – sentido ainda reinante no mundo contemporâneo –, apenas em seu modo de exploração e, portanto, de domínio/controle, não parece responder ao real da vida humana, ainda mais em se tratando da atenção à saúde. Em trabalho anterior (CABRAL, 2004), recorri à discussão heideggeriana sobre técnica, cuja retomada no contexto da discussão da temática ora focalizada parece iluminadora. Segundo Heidegger (2002), a técnica é comumente pensada como um meio para que se atinja um determinado fim ou como uma atividade do homem, compreensão a partir da qual se configura a determinação instrumental e antropológica da técnica. No entanto, o que este filósofo propõe é que tal caráter instrumental da técnica, ainda que correto, não deixa aparecer a essência da técnica. Uma vez que instrumento é geralmente pensado como algo que produz um fim, evidencia-se a noção corrente de causalidade atrelada ao seu uso. Ao apontar o sentido originário de causa (aitía, em grego), Heidegger (ibidem) esclarece que, antes de ser ponto de partida ou algo que desencadeia um efeito, causa é o que conduz qualquer coisa ao seu aparecer ou o que faz-vir uma coisa à sua presença. O que faz-vir da não-presença à presença, ou seja, o que conduz do encobrimento ao desencobrimento, é a poiésis, a produção. Por esse prisma, a técnica se revela como algo mais que um simples meio ou instrumento, caracterizando-se como uma forma de desvelamento, aproximandose do sentido grego de verdade, como alethéia. Verdade como alethéia é algo que se produz na medida do desvelamento, não se deixando aprisionar em um sentido único, correto. Assim, a essência da técnica implicaria em desvelamento, pois neste se funda toda produção e repousa a possibilidade de toda elaboração produtiva. Assim, este filósofo destaca que: Outrora, não apenas a técnica trazia o nome de techné. Outrora chamava-se também de techné o desencobrimento que levava a verdade a fulgurar em seu próprio brilho. Outrora chamava-se também de techné a pro-dução da verdade na beleza. Techné designava também a poiésis das belas-artes (HEIDEGGER, 2002: 36).

Percebe-se que esse sentido originário de técnica enquanto techné, que remete ao fazer do artesão, ao fazer das belas artes, sendo pertencente à poiésis, foi se perdendo ao longo da história, sendo uma das razões para tal fato o aprisionamento da técnica atrelada ao sentido de verdade tal como traduzida pelos romanos, ou seja, como veritas – o correto de uma representação. Mas seria possível resgatar esse sentido originário para a técnica moderna, que rege toda atividade humana no mundo contemporâneo? Para Heidegger (2002), a técnica moderna também é

55

compreendida como um modo de desvelamento. Entretanto, o desvelamento dominante na técnica moderna se configura no modo de exploração, ao invés de se desenvolver pautado na produção enquanto poiésis. O desvelamento é o destino, o por-se a caminho do homem, que ora se caracteriza no sentido produtor, ora no sentido explorador. Recorrendo à poesia de Hölderlin, Heidegger aponta uma saída para o predomínio da técnica moderna, cuja essência está na exploração ou domínio: “Ora, onde mora o perigo, é lá que cresce o que salva”. Na sua compreensão do dizer do poeta, Heidegger indica que salvar não diz apenas “retirar, a tempo, da destruição o que se acha ameaçado em continuar a ser o que vinha sendo”, mas diz ainda “chegar à essência, a fim de fazê-la aparecer em seu próprio brilho” (Heidegger, 2002, p. 31). Assim, da própria técnica pode medrar a força salvadora. A via de escape apontada por Heidegger é nomeada em outro trabalho seu como a serenidade para com as coisas, ou seja, “uma atitude do sim e do não em relação ao mundo técnico” (HEIDEGGER, 1959, p. 24). Na conferência em questão, Heidegger afirma que o homem atual está em fuga do pensamento. O pensamento a que se refere é o pensamento que medita, que reflete sobre o sentido que reina em tudo que existe, em contraposição ao pensamento que calcula, através do qual se busca o domínio da terra. Para este pensador, o maior perigo que ameaça os homens é o de que “a revolução da técnica que se está a processar na era atômica poderia prender, enfeitiçar, ofuscar e deslumbrar o Homem de tal forma que, um dia, o pensamento que calcula viesse a ser o único pensamento admitido e exercido” (HEIDEGGER, 1959, p. 26). Nesse contexto, a atitude de serenidade para com as coisas implica em dizer “sim” à utilização inevitável dos produtos da técnica moderna (e por que não dizer contemporânea?) e, simultaneamente, dizer “não”, vetando nossa absorção total por eles, a ponto de esgotarem a natureza. Há que se preservar uma abertura ao segredo, ao mistério, ao sentido oculto no mundo técnico, em aliança à serenidade: tal é a proposta de Heidegger. O homem é um ser que reflete, que medita, sendo necessário manter desperta a reflexão. Esse caminho de reflexão seria o solo possível de um futuro enraizamento. A partir dessa discussão sobre a técnica inspirada em Heidegger, tornam-se claras, ao menos, duas possibilidades para a ocorrência do desvelamento que ela implica: o modo da poiésis e o modo da exploração. A técnica, compreendida como desvelamento, é um modo destinado, isto é, um modo de o homem se por a caminho para lidar com o que está ainda por ser conhecido. No modo da poiésis, o homem se abre à dimensão do mistério, sem a necessidade do controle sobre as coisas e o mundo, mas sim, com tolerância em relação ao que se mostra ou está por se mostrar. No modo da exploração, evidencia-se a necessidade do controle sobre as coisas e o mundo, que se busca dominar a partir da definição da verdade, enquanto veritas. A serenidade se apresenta como a possibilidade de trânsito

56

entre esses dois modos, libertando do aprisionamento que a técnica moderna/contemporânea tende a imprimir ao pensamento. O trabalho em saúde, mais especificamente, em equipes de saúde, na perspectiva de ação transdisciplinar como produção coletiva, implica uma reflexão continuada em torno do uso da técnica, no sentido de extrapolar um tecnicismo – compreendido como veneração da técnica em seu sentido moderno/contemporâneo, tal como apontado por Heidegger, que visa controle e dominação – e de resgatar seu sentido originário de arte e criação, na medida em que as relações entre humanos demandam um fazer inventivo, sintonizado com as demandas que se apresentam no campo da atenção à saúde. Percebo como bastante enriquecedora a essa reflexão a compreensão de Arendt (2001) sobre a condição humana. Com a expressão vida ativa, a autora busca designar três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação. O labor corresponde ao processo biológico do corpo humano, relacionando-se à manutenção da vida pela satisfação das necessidades vitais e tendo a própria vida como condição. Esta atividade humana se relaciona, portanto, à sobrevivência. O trabalho produz um mundo artificial, tendo como condição a mundanidade da existência. Com o trabalho de suas mãos, o homo faber transforma o mundo, ou melhor, fabrica uma infinita variedade de coisas que acabam por constituir o artifício humano. O homem, nesta perspectiva, é um fabricante de utensílios. A ação é exercida diretamente entre os homens, correspondendo à condição humana da pluralidade e tornando real o homem, por meio de seus feitos, gestos e discursos. A pluralidade é especificamente a condição de toda a vida política. De acordo com Arendt (2001), “a pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença” (p. 188). Sendo assim, a pluralidade humana é paradoxalmente constituída de seres singulares. Por meio de palavras e atos os homens se inserem no mundo humano. Esta inserção funciona como um segundo nascimento, no qual o homem confirma e assume o fato original e singular do aparecimento físico. Através da ação e do discurso, os homens se manifestam uns aos outros enquanto homens, e não como mera existência corpórea. Isto não é da ordem da necessidade, como no caso do labor, e nem se rege pela utilidade, como no trabalho. Como já indicado em outro trecho desse trabalho, o agir, para Arendt, tem caráter de iniciativa, da qual ser humano algum pode se abster sem deixar de ser humano: “Agir, no sentido mais geral do termo, significa tomar iniciativa, iniciar (como o indica a palavra grega archein, , e, em alguns casos, ), imprimir movimento a alguma coisa (que é o significado original do termo latino agere)” (ARENDT, 2001, p. 190). A perspectiva de ação transdisciplinar como produção coletiva é também iluminada pela compreensão de ação arendtiana.

57

Sob prisma semelhante, Morato (1999) destaca que “a ação, como processo, diz respeito à experiência humana real, que se realiza no percurso, ou seja, em trânsito pela vida” (p. 85). A ação transdisciplinar em saúde revelaria, assim, uma dimensão política – porque dimensionada entre homens – e ética – na articulação do cuidado do outro e de si –, implicando cruzamento contínuo de regiões fronteiriças diversas, calcadas na alteridade como diversidade: disciplinas/núcleos como fronteiras, sujeitos como fronteiras (profissionais e usuários com necessidades de saúde), em um campo comum – o da produção de saúde-vida-potência. Fronteira aqui é compreendida como: região de passagem, do cruzar de um lugar específico para outro. Em viagens, é na fronteira que o viajante apresenta sua identidade, o que lhe garante entrar/passar para outro país/área. Fronteira, nesse sentido, expressa trânsito, pois, na linha de mudança de território, tudo e todos podem ser ou pertencer. Como uma metáfora, revelando possibilidade de dirigir-se com liberdade de escolha. Como trânsito pela vida. (MORATO, 1999, p. 85)

Tendo explicitado o que se concebe como ação transdisciplinar no contexto dessa pesquisa, penso ser importante indicar sumariamente a existência de outros caminhos para a compreensão de transdisciplinaridade. Há em curso no mundo um profícuo debate, de cunho epistemológico, relativo ao processo de produção de conhecimento, pondo-se em questão a própria noção de ciência e seus fundamentos, métodos e propósitos. Como indicado por Almeida Filho (2005), diversos elementos epistemológicos e metodológicos, agrupados sob a denominação de “novo paradigma”, têm surgido no cenário científico como uma tendência alternativa à ciência contemporânea, encontrando na ideia da complexidade um eixo organizador principal. Em linhas gerais, trata-se de movimento epistêmico voltado ao questionamento do paradigma ainda hegemônico de ciência, fundado na tradição cartesiana, que valoriza a perspectiva analítica para o conhecimento de objetos. Considera-se que a ciência ocidental vem se desenvolvendo com base na fragmentação do objeto e na noção de especialidade – vinculada à disciplinaridade, como constituição de ramos particulares do conhecimento –, de modo a não contemplar a complexidade dos fenômenos e objetos tomados para conhecimento, predominando abordagens reducionistas e simplificadoras na explicação dos mesmos. Almeida Filho (1997, 2005) e Vasconcelos (2007) argumentam que diversos autores têm apontado uma crise paradigmática da ciência contemporânea, estando em pauta a produção de novos modos e abordagens do pensamento e prática científica. Nessa cena, ganham destaque as noções de inter e transdisciplinaridade, articuladas ao paradigma da complexidade, em contraposição ao paradigma da simplificação. A introdução do pensamento complexo é atribuída a Edgar Morin, que empreende uma discussão em torno da necessária articulação entre os diversos campos do saber, a partir da premissa de que “o ser humano nos é revelado em sua complexidade: ser, ao mesmo tempo, totalmente biológico e totalmente cultural (MORIN, 2001, p. 40), resgatando o sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto.

58

O paradigma da complexidade partiria da compreensão de que os objetos de conhecimento são complexos, ou seja, sintéticos, não-lineares, múltiplos, plurais, multifacetados, extravasando os recortes disciplinares da ciência, ao passo que o paradigma da simplicidade ou simplificação assumiria uma perspectiva reducionista, valorizando a simplicidade ou parcimônia como aspectos centrais de seus objetos e modelos (ALMEIDA FILHO, 2005). Longe de haver uma homogeneidade de compreensões acerca do pensamento científico, seus valores e modos de produção no mundo contemporâneo, há que se reconhecer que a ideia de complexidade tem se proliferado em várias áreas, a exemplo da Química, Física e Biologia, com produções que promovem um repensar crítico em torno da ciência – ou ciências – indicando a fertilidade ou mesmo necessidade de trançados inter ou transdisciplinares. Entretanto, Vasconcelos (2007) alerta ao fato de que “as propostas de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade não devem operar através de uma opção pela homogeneização e imperialismo epistemológicos, dados os seus riscos intrínsecos” (p. 43), destacando a sua importância crescente por demandar a contraposição e abertura a outras formulações interna ou externamente a um dado campo disciplinar ou paradigmático. Considero que esse debate epistemológico constitui, de certo modo, pano de fundo à configuração do cenário científico atual, que repercute na organização dos campos de saberes (disciplinares) e profissões da saúde, sendo impossível estar alheio a esse movimento. Nesse sentido, é crucial marcar o caminho por mim escolhido para essa discussão: tomar a experiência de equipes de saúde como mote para a reflexão em torno das possibilidades de ação transdisciplinar, como produção coletiva, no cotidiano das práticas. Assumo, assim, a minha experiência de aproximação com a experiência dessas equipes de saúde como ponto de amarração da pesquisa, garantindo-lhe um caráter de práxis, como ação concreta e refletida.

59

Capítulo 4. Referencial teórico-filosófico: dos bons encontros à expansão de vida – transitando entre Espinosa e Nietzsche para a compreensão das possibilidades de ação transdisciplinar em saúde Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar.

Para a compreensão que se pretende forjar acerca das possibilidades de ação transdisciplinar em equipes de saúde, mais particularmente em equipes NASF, recorrerei fundamentalmente a alguns aspectos da proposta filosófica de Espinosa e Nietzsche, pensadores que se identificam quanto a um ponto crucial: a valorização da vida em sua imanência. Em Espinosa, interessa-me, sobretudo, a discussão acerca de ética. Como ponto de partida para uma breve apresentação de sua compreensão a respeito dessa temática, torna-se fundamental explicitar que a grande tese teórica do espinosismo, de acordo com Deleuze (2002), é a de que existe uma única substância, que possui uma infinidade de atributos. Assim, todas as “criaturas” são modos desses atributos ou modificação dessa substância primária, que é Deus. Destaca-se que, para ele, Deus sive Natura, ou seja, Deus corresponde à potência da Natureza, Deus é Natureza, portanto, uma força atual, infinita e imanente, o que fundamentaria a negação da existência de um Deus moral, transcendente, criador. Em função das teses práticas daí decorrentes, que fundamentam uma denúncia da “consciência”, dos “valores” e das “paixões tristes”, Espinosa foi bastante criticado e odiado em sua época, sob as acusações de materialista, imoralista e ateu25. Espinosa recusa uma superioridade da coisa pensante (mente) sobre a coisa extensa (corpo) ou vice-versa, ao mesmo tempo em que nega qualquer ligação de causalidade entre ambos, tese teórica conhecida pelo nome de paralelismo, segundo Deleuze (op. cit.). Nas palavras de Espinosa, encontramos: “(...) a mente e o corpo são uma só e mesma coisa, a qual é concebida ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão. (...) a ordem das ações e das paixões de nosso corpo é simultânea, em natureza, à ordem das ações e das paixões da mente” (SPINOZA, 2009, p. 100). Para Espinosa, o homem se constitui de mente e corpo, sendo que o corpo existe tal como o sentimos, de modo que a mente está unida ao corpo. A compreensão dessa união mente-corpo tem, portanto, acepção bem peculiar no contexto da filosofia espinosana, a ponto de se afirmar que a mente somente pode se conhecer a partir das idéias das afecções do corpo, ou seja, as afecções do corpo são tomadas como via de conhecimento da própria mente; nessa linha de raciocínio, o conhecimento do corpo se dá por suas afecções, pelas quais a mente constrói idéias a respeito do corpo e de si. Tamanha é a imbricação corpo-mente que 25 Espinosa viveu de 1632 a 1677, tendo nascido na Holanda, judeu, sendo expulso posteriormente da comunidade judaica em função de suas produções filosóficas.

60

não se pode compreender essa relação a partir de uma perspectiva dicotômica. Com base nessa compreensão, Espinosa defende que a primazia da mente em relação ao corpo, característica da tradição do pensamento filosófico do século XVII – e até os dias atuais –, não se sustentaria. Revela que a própria experiência humana fundamenta seu argumento e, como uma das tentativas de demonstração de sua tese, recorre, dentre outros, ao exemplo dos sonâmbulos, cujos atos ultrapassam a compreensão das possibilidades do corpo e da própria mente. Para Deleuze, a tese do paralelismo implicaria a seguinte conseqüência: “o que é ação na alma é também necessariamente ação no corpo, o que é paixão no corpo é por sua vez necessariamente paixão na alma” (DELEUZE, 2002, p. 24). Assume-se, então, que o corpo ultrapassa o conhecimento que temos dele bem como o pensamento ultrapassa a consciência que dele temos, em vias de a consciência ser considerada como o lugar de uma ilusão, apenas recolhendo efeitos e ignorando as causas. A ordem das causas seria uma composição ou decomposição de relações entre os corpos, afetando toda a natureza, gerando um todo mais potente ou coesão de suas partes, no primeiro caso, ou destruição da coesão, no segundo. Além da desvalorização da consciência, em proveito do pensamento, Espinosa propõe uma desvalorização de todos os valores transcendentes e universais, sobretudo do bem e do mal, em proveito do bom e do mau. Isso implica um questionamento das verdades universalizantes e das leis eternas, defendidas por uma concepção metafísica de conhecimento e mundo. Em substituição às categorias universais de bem e mal, propõe bom e mau, como aspectos que caracterizariam as relações diversas entre corpos. O bom acontece se um corpo compõe diretamente sua relação com a nossa, aumentando nossa potência, e o mau, por sua vez, surge se um corpo decompõe a relação do nosso, reduzindo, portanto, nossa potência. Cabe destacar que potência não é compreendida como essência ou substância, mas como ato, portanto, sendo. Na ontologia espinosana, de acordo com Chauí (2003), o homem é concebido como parte da natureza, ou seja, parte do todo natural. Sendo assim, sua essência corresponde a sua potência de agir, também nomeada como conatus ou direito natural. Sendo tomado como ser vivo e constituinte da natureza, o homem tem sua potência de ação definida não pela razão, e sim pelo desejo: Se, assim, a natureza humana estivesse disposta de tal modo que os homens vivessem seguindo unicamente as prescrições da razão, e se todo o seu esforço tendesse apenas para isso, o direito natural, enquanto se considerasse o que é próprio ao gênero humano, seria determinado tão-só pela capacidade de razão. Mas os homens são menos conduzidos pela razão do que pelo desejo cego, e, portanto, a capacidade natural dos homens, isto é, o seu direito natural, deve ser definido não pela razão mas por toda a vontade26 que os Capacidade natural corresponde à potência natural e vontade, a desejo, conforme encontrado no mesmo fragmento citado em Chauí (2003). Embora se entenda a importância da tradução, identificando-se maior coerência em Chauí, optou-se por manter a tradução encontrada na edição consultada. Na parte III de sua Ética, inclusive, Espinosa (2003) distingue vontade de desejo: vontade indica o 26

61

determina a agir e através da qual se esforçam por se conservar. Confesso, na verdade, que esses desejos não originados na razão não são ações como paixões humanas. Mas, tratando-se aqui do poder universal da natureza, que é a mesma coisa que o direito natural, não podemos reconhecer nenhuma diferença entre os desejos que a razão nos engendra e os que têm outra origem: uns e outros, de fato, são efeitos da natureza e manifestam a força natural pela qual o homem se esforça por perseverar no seu ser. (Spinoza, 2005, p. 30) (Grifos meus, explicados na nota de rodapé)

O conatus do homem corresponderia à essência atual do corpo e da mente, distinguindo-se de uma inclinação ou potencial. Assim, potência não é virtualidade, mas poder atual. Caracterizar-se-ia como uma força sempre em ato. Na parte III de sua Ética, Espinosa define como essência atual “o esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser” (SPINOZA, 2009, p. 105). O ser é sempre singular, sendo essa sua essência. O que o ser humano compartilha com outros seres, particularmente outros humanos, são propriedades gerais comuns, e não sua essência. Conforme Chauí (2003) aponta, “um ser humano não é a realização particular de uma essência universal ou de uma natureza humana universal, mas é uma singularidade por sua própria essência” (p. 211). Disso decorre que a essência de um ser singular são suas operações e ações, realizadas para que se mantenha na existência, sendo anteriores à sua caracterização como racionais ou irracionais, certas ou erradas. A essência singular do ser humano se relaciona à sua atividade. Sendo o conatus a essência atual de um ser singular, daí decorre a compreensão de que “apetites, impulsos e volições não são inclinações ou tendências virtuais que se atualizariam ao encontrar uma finalidade de realização, e sim aspectos atuais do conatus e, por isso mesmo, são causas eficientes que operam determinadas por outras causas eficientes e não em vista de fins” (CHAUÍ, op. cit., p. 211). Os atos humanos não poderiam ser compreendidos meramente numa perspectiva teleológica, portanto. Retomando a discussão em torno dos sentidos de bom e mau, destaca-se que haveria dois possíveis: num primeiro, objetivo, mas relativo e parcial, trata-se do que convém ou não convém à nossa natureza; num outro sentido, subjetivo, qualifica dois tipos ou modos de existência do homem: será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto quanto pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém à sua natureza, por compor a sua relação com relações combináveis e, por esse meio, aumentar sua potência. Pois bondade tem a ver com o dinamismo, a potência e a composição de potências. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as conseqüências, pronto a gemer e a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrário e lhe revela a sua própria impotência. (DELEUZE, 2002, p. 29)

Assim, Espinosa elabora sua Ética como uma tipologia dos modos de existência imanentes, sem referência a valores transcendentes, com caráter de verdades eternas, universais ou absolutas, compreendendo que esta referência caberia à Moral, que se baseia num sistema de julgamento. Em meio à discussão sobre Ética e Moral, Espinosa constrói uma filosofia da vida, denunciando tudo o que esforço de uma coisa por perseverar em seu ser, quando referido apenas à mente, ao passo que desejo (ou apetite) indica o esforço quando referido à mente e ao corpo simultaneamente. Mais precisamente, aponta que desejo é o apetite juntamente com a consciência que se tem dele.

62

nos separa da vida, particularmente os valores transcendentes que contra ela se orientam, depreciando-lhe. Nessa freqüência de valorização da vida, a ética espinosana se fundamenta nos efeitos das composições e decomposições características das relações entre os seres, tal como indicado. Esses efeitos decorrem dos afetos, tomados como diapasão para avaliar o que é bom ou mau. É no mínimo curiosa sua compreensão de que “não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa” (SPINOZA, 2009, p. 106). O afeto corresponde às “afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecções” (Ibidem, p 98). Retomando a tese do paralelismo, cabe lembrar que se algo aumenta ou diminui a potência de agir de nosso corpo, a ideia dessa coisa estimula ou refreia a potência de pensar de nossa mente. De acordo com a perspectiva espinosana, a intensidade da força do conatus pode aumentar ou diminuir a depender da forma como cada singularidade se relaciona com outras em seu esforço por sua conservação: há diminuição se a singularidade for afetada pelas outras de modo a se tornar delas dependente ao passo que o aumento ocorre se a singularidade não perder independência e autonomia ao afetar e ser afetada por outras. Essa modulação da intensidade ou força do conatus indica uma realização adequada ou inadequada do esforço de autoconservação. Diz-se que: A realização é inadequada quando o conatus individual é apenas uma causa parcial das operações do corpo e da mente porque é determinado pela potência de causas externas que o impelem nessa ou naquela direção, dominando-o e diminuindo sua força. A realização é adequada quando o conatus aumenta sua força por ser a causa total e completa das ações que realiza, relacionando-se com as forças exteriores sem ser impelido, dirigido ou dominado por elas; o nome da inadequação é paixão; o nome da adequação é ação. (CHAUÍ, 2003, p. 212)

Considerando o ser vivo como uma essência singular, ou seja, um grau de potência, Espinosa acredita que “a essa essência corresponde uma relação característica; a esse grau de potência corresponde certo poder de ser afetado” (DELEUZE, 2002, p. 33). A Ética se refere a uma etologia que considera o poder de ser afetado, para os seres vivos de forma geral. Como indicado no fragmento acima, retirado de Chauí, no caso da etologia dos homens, existem duas espécies de afecções: as ações (explicadas pela natureza do indivíduo afetado, derivando de sua essência) e as paixões (explicadas por outra coisa, derivando do exterior). “O próprio da paixão, em qualquer caso, consiste em preencher a nossa capacidade de sermos afetados, separando-nos, ao mesmo tempo de nossa capacidade de agir, mantendo-nos separado dessa potência” (DELEUZE, 2002, p. 33). Desse modo, Espinosa compreende que dos encontros entre os corpos e suas mútuas afetações, brotam paixões tristes ou alegres. As paixões são alegres ou tristes conforme tenha sido aumentada ou diminuída nossa potência para agir, a partir dos encontros e relações em que nos

63

enredamos. Assim, “é à medida que uma coisa nos afeta de alegria ou de tristeza que nós a chamamos boa ou má. Portanto, o conhecimento do bem e do mal nada mais é do que a ideia de alegria ou tristeza que se segue necessariamente desse afeto de alegria ou de tristeza” (SPINOZA, 2009, p. 163). Essa ideia de alegria ou tristeza não está descolada do afeto, da mesma forma que a mente não se descola do corpo; o conhecimento do bem e do mal é o próprio afeto, na medida em que estamos conscientes dele. Os afetos da alegria e da tristeza podem ser explicados, portanto, pelas paixões, que surgem quando não somos causa adequada das afecções, ou seja, quando não passamos de sua causa parcial, dado haver a intervenção e o predomínio de causas externas. Nesse contexto, agir e padecer são dois modos possíveis de existência dos seres, que se alternam ao longo da vida. Segundo Espinosa (2009), por alegria se compreende “uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior” e por tristeza “uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor” (p. 107). Torna-se importante esclarecer que, por perfeição, Espinosa compreende a própria essência de uma coisa e a sua realidade; enfatiza que se a essência da mente corresponde a uma afirmação da existência atual de seu corpo e perfeição é a própria essência de uma coisa, decorre que “a mente passa a uma maior ou menor perfeição quando lhe acontece afirmar, de seu corpo ou qualquer de suas partes, algo que envolve mais ou menos realidade do que antes” (SPINOZA, 2009, p. 152). Passar a uma perfeição maior, no caso da alegria, implica um ato pelo qual a potência de agir é aumentada ou estimulada; já na tristeza, está implicado um ato que promove uma diminuição da potência de agir. Desejo, alegria e tristeza se caracterizam, segundo o filósofo, como os afetos primários, de onde brotam todos os outros. Espinosa defende que a Ética está fundamentalmente relacionada à alegria, aos bons encontros, que compõem e aumentam a potência de agir, alargando as possibilidades dos humanos diante da vida, uma vez que se tornam menos sujeitos à intensidade das causas externas, ainda que um domínio absoluto sobre os afetos que brotam dos encontros entre corpos seja da ordem do impossível. Nesse sentido, não se pode ignorar ou almejar eliminar as interferências de causas externas na própria vida, mas a elas não se atribui um peso determinista, dada a possibilidade de ampliar a potência de ação ao mesmo tempo em que se reduz o padecimento. Seria interessante, nessa perspectiva, que os humanos buscassem um alargamento contínuo de sua potência de ação, de modo a privilegiar as paixões alegres no contexto dos seus encontros na vida. Ao longo deles, os corpos são movidos de diferentes maneiras, havendo infinitas possibilidades de composições (paixões alegres) e decomposições (paixões tristes): todas as maneiras pelas quais um corpo qualquer é afetado por outro seguem-se da natureza do corpo afetado e, ao mesmo tempo, da natureza do corpo que o afeta. Assim, um só e mesmo corpo, em razão da diferença de natureza dos corpos que o movem, é movido de diferentes maneiras, e, inversamente, corpos diferentes são movidos de diferentes maneiras por um só e mesmo corpo. (SPINOZA, 2009, p. 63).

64

Pode-se depreender da ética de Espinosa, portanto, que um agir ético estaria associado à produção, criação de novos modos, favorecedores de vida e de sua expansão, a partir do encontro entre os seres e das afetações dele decorrentes, que implicam aumento da potência de ação. Considero pertinente recorrer à compreensão de potência de ação, por Sawaia (2003), a partir de Espinosa, dado se sintonizar com o aspecto ora discutido, qual seja, a dinâmica das afetações a partir dos encontros como um motor para a transformação de modos relacionais no contexto da atuação em saúde. Trata-se da capacidade de um corpo ser afetado por outro, num processo de possibilidade infinita de criação e de entrelaçamento nos bons e maus encontros, portanto, é quando o homem se torna causa de seus afetos e senhor de suas percepções. A potência de padecer é viver ao acaso dos encontros, joguete dos acontecimentos, pondo nos outros o sentido da própria potência de ação. (SAWAIA, 2003, p. 93)

Deleuze (2002) indica a tríplice crítica de Espinosa – à “consciência”, aos “valores” e às “paixões tristes” – como as grandes semelhanças com Nietzsche27, chegando a caracterizá-lo como espinosista em alguns pontos. Penso que essa aproximação se evidencia especialmente quando este fundamenta seu projeto filosófico em uma crítica contundente dos valores morais – chamados superiores por estarem relacionados ao pensamento metafísico ocidental, hegemônico, que defende valores transcendentes, além da vida, fora do mundo, considerados, portanto, como verdadeiros. O pensamento metafísico retoma e se respalda na tradição socrático-platônica, que acentua a dicotomia essência-aparência, instituindo a supremacia da essência, tomada como verdade, e desvalorizando a aparência, dimensionada como simulacro, erro, mentira e desvio. Propondo a inversão disso, Nietzsche defende a necessidade de uma transvaloração dos valores, enfatizando a própria vida como critério de valor e o perspectivismo do conhecimento, em articulação com uma consideração histórica. Afirma veementemente que “toda a teleologia se baseia no fato de se tratar o homem dos últimos quatro milênios como um ser eterno, para o qual se dirigem todas as coisas do mundo, desde o seu início. Mas tudo veio a ser; não existem fatos eternos: assim como não existem verdades absolutas” (NIETZSCHE, 2008, p. 16). Assim, os valores são compreendidos como históricos, advindos ou em devir, não tendo uma existência em si, de caráter essencial, tampouco sendo eternos. Ainda que critique as dicotomias, próprias da tradição metafísica de pensamento, nesse processo de questionamento dos valores morais e da vontade de verdade, Nietzsche enfatiza a aparência, valorizando-a em contraponto à essência: importa o que é (sendo, em ato), o que se mostra, a superfície, o imediatismo da experiência, a ilusão. É o mundo sensível que constitui palco de nossas experiências, onde a própria vida acontece e em que se cria a própria existência. Esse aqui e agora constitui a imanência da vida, único lócus legítimo para 27 A produção nitetzschiana ocorre na segunda metade do século XIX, tendo o filósofo tido acesso ao pensamento de Espinosa, chegando inclusive a fazer rápidas referências ao seu nome em sua obra, como no prólogo de Genealogia da Moral.

65

avaliação da própria vida, que jamais deveria ocorrer a partir de categorias abstratas, fixas e imutáveis, exteriores ao mundo e à vida, transcendentes. A vida, em sua processualidade, não comporta uma valoração a partir de valores além do mundo, tidos como universais e absolutos. De acordo com Machado (2002), a valorização da aparência empreendida por Nietzsche foi um modo encontrado de se contrapor à tradição socrático-platônica, indicando outras possibilidades de compreensão da produção de conhecimento; mas é importante destacar que a sua filosofia busca escapar a quaisquer dicotomias, dado instituir uma perspectiva que ultrapassa as categorias de verdade e erro. “Afirmar que a vida é aparência, reivindicar a positividade do falso é se insurgir contra a possibilidade de um julgamento da vida a partir de um critério de verdade; é ressaltar como a vontade absoluta de saber é um ultraje à vida” (MACHADO, op. cit., p. 106). O projeto de transvaloração dos valores constitui o cerne do projeto filosófico nitetzschiano, que pode ser caracterizado como uma filosofia do valor (MACHADO, Ibidem). Nietzsche exortava o questionamento do valor dos valores, situando a própria vida, em sua imanência, como critério maior de avaliação. Diante desse panorama, a crítica à ciência se revelava como um dos pontos nodais da sua filosofia: estando calcada na tradição socrático-platônica, a perspectiva científica em voga era percebida por Nietzsche como sendo diretamente relacionada à moral e à vontade de verdade. No seu pensamento, a moral é compreendida como contrária à vida, por se fundar em valores transcendentais – fixos, imutáveis e fora do mundo –, revelando-se como manifestação de fraqueza e negação dos valores mais fundamentais da vida, tomada em sua processualidade. A vontade de verdade, que move a própria ciência e o conhecimento racional, é a crença – tipicamente metafísica – de que o mais necessário é a “verdade”, tomada como essência e valor superior, que se contrapõe ao falso, ao aparente, ao superficial. Nessa conjuntura, a vida é compreendida como força, como potência, ou melhor, como embate de forças, cuja correlação cria valores, que a direcionam seja no sentido de sua expansão e aumento ou de sua conservação e diminuição. A concepção de vida aí expressa está intimamente relacionada a um conceito nietzscheano fundamental: a vontade de potência. A essência da vida é vontade de potência, que corresponde à “primazia fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente precede a ‘adaptação’ (...)” (NIETZSCHE, 2009, p. 62). A vontade de potência seria operante em todo acontecer, implicando atividade e, portanto, alargamento de vida. Como indicado por Zaratustra, em suas andanças a vida lhe confiou um segredo, o qual revela sua essência: ela é o que deve se superar indefinidamente (NIETZSCHE, 2005). Sendo a vontade de potência o elemento básico da vida, em tudo ela existe. “Há muitas coisas que o vivente aprecia mais do que a vida; mas nas próximas apreciações fala a ‘vontade de domínio’.”

66

(NIETZSCHE, 2005, p. 97). Mesmo quando dos embates de forças, que compõem a vida, resulta sua diminuição, pelo predomínio das forças reativas, há vontade de potência. Segundo Machado (2002), nesse caso existiria uma vontade de potência negativa ou fraca, exprimindo-se como uma vontade de nada. É o caso da moral, compreendida como a manifestação de uma vontade enfraquecida, porque vinculada a uma representação, a uma potência imaginária, em sua aliança com valores transcendentais, indicando uma atitude niilista, ou seja, de negação da vida e dos seus valores. Em sua Genealogia da Moral, Nietzsche discute as três principais figuras do niilismo: o ressentimento, a culpa ou má-consciência e o ideal ascético. Em linhas gerais, o ressentimento se refere ao predomínio de forças reativas, de modo que não se assume a responsabilidade por atos ou situações, que é imputada sempre aos outros – considerados maus – ou a causas externas, implicando uma passividade e um contínuo rancor diante da vida. A culpa pode ser caracterizada como o resultado de um retorno do ressentimento ao próprio homem, sendo, em certa medida, fruto do ideal ascético. O ascetismo implica fundamentalmente uma concepção da vida como um erro, uma mentira, em favor de um mundo além, que deve ser almejado; assim, a vida é considerada apenas como uma ponte para outra existência, que deve ser ultrapassada numa condição de humildade, pobreza, castidade, abnegação. A rigor, essas três atitudes estão intimamente relacionadas, constituindo o sistema moral judaico-cristão, sustentáculo da sociedade ocidental, vigorosamente criticado por Nietzsche. Não se pode em absoluto esconder o que expressa realmente todo esse querer que do ideal ascético recebe sua orientação: esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio – tudo isto significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma vontade!... E, para repetir em conclusão o que afirmei no início: o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer... (NIETZSCHE, 2009, p. 140)

Em sua análise, Nietzsche apresenta dois modos de existência possíveis, que se alternam ao longo da vida: um relacionado ao circuito da moral plebéia ou escrava e outro, ao circuito da moral aristocrática ou nobre, privilegiando este último. A moral escrava fundamenta um modo em que predominam as forças reativas em relação às ativas, sendo, portanto, contrário à vida. A esse modo, relacionam-se as perspectivas de doença, fraqueza, adaptação, uma vez que implica negação dos instintos da vida, constituindo uma vontade de nada e favorecendo o declínio da própria vida. O diapasão característico desse modo são os valores do bem e do mal. A moral aristocrática, por sua vez, sustenta-se na valorização dos instintos da vida, caracterizando um modo em que predomina a ação e a saúde, promovendo afirmação e, consequentemente, expansão da própria vida. A sua frequência se sintoniza com a contínua avaliação do que é bom ou ruim. Assim, depreende-se que a moral aristocrática corresponde, na verdade, a uma ética, tal como definida por Espinosa: nesse circuito, o homem é definido por sua potência, por sua capacidade de agir, pelo que pode fazer,

67

estando comprometido com a contínua produção de valores que promovam o alargamento das possibilidades existenciais. Tal modo só se viabilizaria a partir de uma libertação dos grilhões da moral. Nesse contexto, a perspectiva de grande saúde defendida por Nietzsche relaciona-se com a disponibilidade de afirmar a vida, para além dos valores de bem e de mal. Assim, esse conceito se ilumina a partir do projeto nietzscheano de transvaloração de todos os valores, indicado anteriormente como o eixo de sua proposta filosófica: questionam-se permanentemente valores tomados como categorias absolutas ou universais na avaliação da própria vida. Seu projeto filosófico vislumbra o tortuoso transitar na vida, valorizando os encontros promotores do “excesso de forças plásticas, curativas, reconstrutoras e restauradoras, que é precisamente a marca da grande saúde, o excesso que dá ao espírito livre o perigoso privilégio de poder viver por experiência e oferecer-se à aventura: o privilégio de mestre do espírito livre!” (NIETZSCHE, 2008, p. 11)28. Oferecer-se à aventura, na vida, implica sorver a existência, afirmando o que vier, como vier, jamais numa perspectiva conformista, entretanto, pois isto seria niilista. Tomada em sua processualidade imanente, “a vida (e tudo aí implicado: dor, alegria, sofrimento, desejo, etc.) não tem um início ou fim a ser alcançado; não é para ser explicada ou justificada (concepção cristã), mas simplesmente afirmada” (ANDRADE, 1999). A proposta de Nietzsche implica afirmar a vida em sua pluralidade/diversidade, estando aí o sentido do trágico, a partir da “união artística do dionisíaco e do apolíneo na tragédia”, como destaca Machado (2002, p. 102). Esta compreensão do trágico revela, então, uma afirmação da vida, para além de uma contradição ou reconciliação de opostos: Não se trata de um drama, mas do trágico; ou seja, o trágico não está na angústia ou na repulsa, mas na multiplicidade, na afirmação da diversidade enquanto tal. O que define o trágico é a alegria do plural, e esta alegria não é o resultado de uma sublimação, de uma purgação, de uma compensação, de uma resignação, de uma reconciliação. Trata-se de uma outra maneira de interpretar a existência, não mais recriminando a vida (fruto do ressentimento, da impotência), mas afirmando-a em sua pluralidade (ANDRADE, 1999, p. 79).

Considerando o embate de forças próprio da vida, destaca-se que toda força tende a dominar e se expandir em relação às outras. Não faz sentido falar de força no singular: trata-se sempre de relação entre forças, gerando configurações diversas, em um contexto sempre plural. Entretanto, na perspectiva nietzscheana, não há um predomínio de uma força sobre a outra, que resulte na negação ou anulação de alguma delas – afirma-se sempre uma diferença. Como destaca Andrade (op. cit.): (...) o que uma vontade quer não é a negação de outra vontade, mas, sim, a afirmação de uma diferença. É a partir deste conceito de hierarquia de forças e afirmação de uma vontade que Nietzsche avalia a vida, ou seja, ao interpretar qualquer configuração, temos que avaliar qual conjunto de forças está produzindo um certo tipo de valor e que direção este valor imprime à vida (ANDRADE, 1999, p. 78). 28

Grifos do próprio Nietzsche, presentes da edição consultada, o que acontecerá também em outras citações adiante.

68

Viver no modo de um agir ético configurar-se-ia, então, como um contínuo exercício de avaliação das forças em embate em cada situação. A perspectiva genealógica nietzscheana se baseia na avaliação do valor dos valores, implicando uma crítica ao caráter de verdade desses valores. Explícita nessa proposta está, por conseguinte, a superação da vontade de verdade, característica da perspectiva metafísica de ciência. Avaliar o valor dos valores requer uma avaliação de sua força, ou melhor, das forças ali presentes. Assim, a genealogia envolve uma interpretação, dado que avaliação implica uma análise da configuração de forças e valores que se correlacionam numa certa situação, por sujeitos e, aqui, ganha volume o perspectivismo nietzscheano: Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade”. Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? – não seria castrar o intelecto?... (NIETZSCHE, 2009, p. 101)

Para auxiliar na compreensão da perspectiva genealógica – inclusive, assumida e experimentada nessa pesquisa – recorro a Foucault, que diferencia genealogia de pesquisa sobre a origem das coisas, destacando, entretanto, sua aliança com a História. A recusa da pesquisa da origem em Nietzsche é assim justificada: (...) a pesquisa, nesse sentido, se esforça por recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira. Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas, há “algo inteiramente diferente”: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça, a partir de figuras que lhe eram estranhas. (FOUCAULT, 2007, p. 17,18)

Compreendendo a história como o próprio corpo do devir, a genealogia considera os saberes, discursos e práticas como peças de um dispositivo político em um dado contexto sócio-histórico, marcado por acidentes e acasos, e não por linearidades. Nesse contexto, destaca-se a figura do acaso, compreendido como um “risco sempre renovado da vontade de potência que a todo surgimento do acaso opõe, para controlá-lo, o risco de um acaso ainda maior” (FOUCAULT, 2007, p. 28). Como um longo trecho retirado de Genealogia da Moral, que discute um princípio fundamental a toda ciência histórica, encerro a caracterização de genealogia. Trata-se do princípio de que a causa da gênese de uma coisa e a sua utilidade final, a sua efetiva utilização e inserção em um sistema de finalidades, diferem toto coelo [totalmente]; de que algo existente, que de algum modo chegou a se realizar, é sempre reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira nova, transformada e redirecionado para uma nova utilidade, por um poder que lhe é superior; de que todo acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e assenhorear-se, e todo subjugar e assenhorear-se é uma nova interpretação, um ajuste, no qual o “sentido” e a “finalidade” anteriores são necessariamente obscurecidos ou obliterados. (...) Mas todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função; e toda a história de uma

69

“coisa”, um órgão, um uso, pode desse modo ser uma ininterrupta cadeia de signos de sempre novas interpretações e ajustes, cujas causas nem precisam estar relacionadas entre si, antes podendo se suceder e substituir de maneira meramente casual. Logo, o “desenvolvimento” de uma coisa, um uso, um órgão, é tudo menos o seu progressus lógico e rápido, obtido com um dispêndio mínimo de forças – mas sim a sucessão de processos de subjugamento que nela ocorrem, mais ou menos profundos, mais ou menos interdependentes, juntamente com as resistências que a cada vez encontram, as metamorfoses tentadas com o fim de defesa e reação, e também os resultados de ações contrárias bem-sucedidas. Se a forma é fluida, o “sentido” é mais ainda... (NIETZSCHE, 2009, p. 61).

Em se tratando do exercício das profissões de saúde, visto como práticas sociais, ao se assumir essa trilha de compreensão, há que se avaliar o conjunto de forças em confronto, em processo de contínua dominação de umas sobre as outras, conforme o contexto em que se desenvolvem as práticas. Diante disto, a perspectiva genealógica como ferramenta de pesquisa me pareceu bastante fértil para o tema a que me proponho, uma vez que se caracteriza como um processo permanente de avaliação coletiva dos valores presentes nos diversos encontros (ANDRADE, 2007 e 2008), adotandose uma atitude e intenção provocativa e desconfiada. Penso não haver como mudar estados de coisas, tão firmemente calcados em toda uma tradição dos saberes disciplinares e da sociedade moderna ocidental, baseada em valores metafísicos e transcendentais, senão a partir de uma atitude provocativa, que convoque à reflexão, chacoalhando as certezas e indicando a possibilidade de construção de outros sentidos. Cabe ressaltar que “a genealogia não é uma metodologia, não comporta uma técnica a ser aplicada nas diversas situações. Trata-se antes, de uma postura, de um modo de estar no mundo que se presentifica em toda a ação do pesquisador, em suas experiências, olhares e falas cotidianos” (ANDRADE, 1999, p. 83). Busquei me apropriar, portanto, da perspectiva genealógica no percurso desse estudo, para compreender as tramas sócio-históricas em que se inserem as práticas, discursos e saberes de profissionais de saúde inseridos em equipes multiprofissionais de NASF, provocando e buscando compreender. A genealogia foi avocada nesta proposta de pesquisa tanto como referencial teóricofilosófico para a discussão da temática quanto como farol a guiar o trajeto em campo, no contato com os sujeitos e cenário da pesquisa, a ser mais explicitamente delineado adiante. A pesquisa de inspiração genealógica busca não apenas conhecer, mas também transformar, destacando-se a importância da reflexão sobre a implicação ético-política do ato de pesquisar. Não existe ali neutralidade ou isenção de objetivos: há uma intenção provocativa, de questionamento de verdades estabelecidas e dos valores que as norteiam e, portanto, de construção de outros sentidos. Esse sentido ético-político da prática de pesquisa se refere a um posicionamento em relação aos interlocutores, ao tema pesquisado e à própria pesquisa, com permanente construção de sentido envolvendo o coletivo. Como destaca Andrade (1999), o que vai provocando transformação é “a produção de sentidos que vai sendo instituída por todos, nos diversos encontros” (p. 86).

70

Apostando no caráter interventivo da pesquisa, tal como destacado por Andrade, Morato e Schmidt (2007), compreende-se que a simples presença do pesquisador já implica alguma interferência nessa ação e, sendo assim, que seja na direção de produzir modos mais fluidos e de afirmação da multiplicidade imanente ao encontro entre sujeitos, da alteridade e da potência singular dos seres. Diante destes referenciais e antes de passar a uma explicitação do método, reafirmo a seguinte questão de estudo: Como se caracterizam as possibilidades de ação transdisciplinar nas equipes multiprofissionais, com inserção de psicólogos, dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) dos municípios de Petrolina-PE e Juazeiro-BA?

71

Capítulo 5. Do caminho trilhado para a compreensão do trabalho em equipes de saúde – em busca da produção coletiva Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.

5.1 Caracterização geral O estudo se caracterizou como pesquisa interventiva, tal como discutida por Andrade, Morato e Schmidt (2007), referindo-se ao que, “da perspectiva fenomenológica existencial e nietzschiana, é constitutivo da investigação na área das ciências humanas e sociais, ou seja, a propriedade intrusiva e modificadora da presença do pesquisador num campo de relações” (p. 194). As autoras destacam que tal cunho intrusivo/modificador próprio dessa perspectiva de pesquisa se relaciona à intenção de compreender e encontrar alteridade(s), a qual se constitui um valor em si mesma. Outra faceta da pesquisa, sinalizada pelo uso da palavra intervenção, refere-se à proposta de atuar no atendimento de alguma demanda/necessidade, reforçando-se a importância da construção democrática nos modos de interpretá-la e/ou clareá-la. Recorreu-se, destarte, à avaliação genealógica e à inserção cartográfica, como modalidades possíveis de pesquisa interventiva, para empreender o trajeto de produção de compreensões em relação ao tema de interesse: o trabalho em equipes de saúde, compreendido como produção coletiva. Sob esse ponto de vista, pretendeu-se uma interação constante entre pesquisadores e participantes compromissados com a criação de práticas coletivas e transdisciplinares na saúde coletiva. Os participantes não aparecem como sujeitos da pesquisa, mas como atores/autores na produção conjunta de ações e reflexões sobre o cotidiano das práticas, sendo considerados, assim, interlocutores. Adjetivar a pesquisa como interventiva revela seu caráter de provocação, visando à elaboração em torno do que se faz, partindo da própria experiência. Não se pressupõe, entretanto, determinadas transformações, em dada configuração, propostas pelo pesquisador: a intervenção ocorre no contexto do encontro entre pessoas, em que a própria presença já se configura como intervenção. Importa ao pesquisador, no entanto, ir além: a proposta é provocar pensamento-afetação. Na perspectiva genealógica, a provocação acontece coletivamente, entre as pessoas, na ordem das intensidades – ou seja, nem sempre nos damos conta dos seus efeitos. Assim, o genealogista é também constantemente provocado e age a partir do que é produzido nos encontros. Realiza-se, nesse sentido, uma inversão absoluta – em relação ao paradigma científico positivista – no modo de compreender a produção de conhecimento e a sua validade: trata-se de algo forjado a partir da experiência e dos efeitos das afetações dos encontros.

72

Considera-se, portanto, a existência de um plano movente da realidade das coisas, constituído por coletivos de forças29, tal como indicado por Escócia e Tedesco (2010), distanciando-se da compreensão da produção de conhecimento como algo representacional. Sendo a realidade constituída no encontro entre as pessoas, no mundo, em um processo permanente de construção, cabe uma atenção especial do pesquisador ao movimento de produção das coisas do mundo – em que também está inserido – indo além dos seus contornos formais, na perspectiva de compreender a correlação de forças que as configura. A avaliação proposta buscou comportar, dessa forma, a pluralidade de vozes e saberes envolvidos no processo, extrapolando e somando-se aos olhares da pesquisadora. Trata-se, como enfatizado, de um processo avaliativo que se sustenta na própria experiência, de modo que esta se torna objeto de investigação, passando a assumir o primeiro plano. Sabendo-se ser este um posicionamento possível relativo ao processo de elaboração de conhecimento, recorre-se à experiência como fonte primeira, na perspectiva de construção de sentido – o qual será sempre contextual, ou seja, relacionado à experiência vivida. Ao se caracterizar como campo do imprevisível, do incerto, das tentativas, da errância, a experiência demanda – para que se produza sentido a partir dela – ser posta sob reflexão. Recuperar o valor da experiência em sua função provocativa ao pensamento faz-se importante para não cair no eterno ciclo ilusório das classificações abstratas ou das racionalizações universais. A experiência, quando somente vivida, é imaginativa e errante, buscando encontrar universais que a decepcionarão em outro momento; porém, ao mesmo tempo, suscita a necessidade de alcançar o conhecimento da gênese daquilo que se apresenta. A experiência é assim concebida em sua dupla determinação: como universal e como sujeita a interpretações. Nessa segunda, ela exige o exercício do intelecto, não para encontrar uma essência verdadeira do acontecimento, mas para encontrar a genealogia das próprias interpretações. (ANDRADE; MORATO & SCHMIDT, 2007, p. 203)

Em se tratando de uma pesquisa que teve como mote principal o próprio processo de trabalho das equipes envolvidas, empreendeu-se uma avaliação genealógica das práticas e dos problemas ou situações apresentados pelos profissionais. Valorizando-se as questões/demandas levantadas pelos interlocutores, viveu-se um processo contínuo de experimentações e debates ao longo da inserção no campo. A ênfase recaiu nas relações de trocas e afetações presentes nos diversos encontros, que, passando ao campo investigativo, traziam os temas mais relevantes a serem problematizados. Esperou-se, dessa forma, alcançar avaliações calcadas nas ações concretas e cotidianas dos participantes, acompanhadas de experimentações/ensaios de outros fazeres.

A expressão “coletivo de forças” deriva de uma rede conceitual tecida por autores diversos como Deleuze, Guattari, Foucault, Simondon, Lourau, dentre outros. Remete ao plano genealógico referente ao conjunto de forças que, em sua correlação, interferem na criação dos objetos do mundo. Poderíamos chamar de plano instituinte – na referência da Análise Institucional. O importante é que tal expressão escapa da dicotomia coletivo/indivíduo, sendo tal oposição substituída pelas relações permanentes estabelecidas entre as formas e as forças, que constituem a realidade. Aqui se recorreu a esta expressão por sua clara referência à compreensão nietzschiana de vida e mundo, tomada como um referencial central neste trabalho.

29

73

5.2 Participantes e cenários de pesquisa Os interlocutores da pesquisa foram, prioritariamente, os componentes das EqNASF, de composição multidisciplinar, de Juazeiro-BA e Petrolina-PE, configurando-se dois cenários a serem pesquisados em relação à dinâmica e ao modo de funcionamento destes dispositivos. Cabe esclarecer que a opção por dois contextos não foi fundada em intenção comparativa, mas de ampliação do campo de pesquisa, dada a disponibilidade da conjuntura regional. Considero pertinente ressaltar que, no período de imersão em campo, estavam em vigor as antigas portarias relativas à Atenção Primária e NASF, de modo que ambos os municípios organizavam suas equipes NASF na modalidade 1, com cinco profissionais de categorias não-coincidentes, de acordo com a Portaria GM/MS nº 154/2008. Além das EqNASF, foram considerados participantes todos aqueles envolvidos, direta ou indiretamente, no processo de acolhimento às demandas que se apresentavam a essas equipes. Nesse sentido, componentes das EqSF que recebiam apoio do NASF, além de porteiros, secretárias e atendentes das unidades em que as práticas ocorriam, foram também interlocutores, de certo modo, conforme sua atuação no contexto da atenção à saúde e a realidade local no momento da colheita. Juazeiro é um município do sertão baiano, com população estimada em 197.965 habitantes, segundo dados do IBGE (2010)30. Destaca-se pela agricultura irrigada, sendo uma das maiores cidades da Bahia em extensão territorial, com 6.500,6 km². Localiza-se à margem direita do Rio São Francisco, no extremo norte da Bahia, na zona do médio e baixo São Francisco, estando a 500km da capital baiana. Faz divisa com o Estado de Pernambuco, estando interconectado à cidade de PetrolinaPE principalmente pela Ponte Presidente Dutra31. A rede de atenção à saúde municipal se organiza em dois níveis: Atenção Básica e Atenção Especializada, sendo que a gestão da atenção à saúde está organizada em seis Distritos Sanitários (quatro na zona urbana e dois na zona rural), que são unidades territoriais correspondentes às regiões político-administrativas da cidade. Sob a regência da Coordenação da Atenção Básica municipal, existe um apoiador para cada Distrito Sanitário, responsável por gerenciar a dinâmica da rede de atenção básica à saúde naquela região específica. A Atenção Básica é composta pelas EqSF, equipes de Saúde Bucal (EqSB) e NASF. O município possui uma cobertura de 93% da população pela Estratégia Saúde da Família, sendo 44 Unidades de Saúde da Família (USF), onde se distribuem 54 EqSF – 37 na zona urbana e 17 na zona

Informações sobre as cidades, a partir do Censo 2011, obtidas no sítio http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1, acessado em 24.11.2011. 31 Informações retiradas do sítio http://www.juazeiro.ba.gov.br/?pag=juazeiro, acessado em 08.11.2011. 30

74

rural. Existe uma equipe de PACS – Programa de Agentes Comunitários de Saúde e 46 EqSB (modalidade I)32 que trabalham em articulação com as EqSF (JUAZEIRO, 2011). A Atenção Especializada abrange, principalmente, os seguintes serviços: Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), Policlínica, CAPSII, CAPSad, Centro de Prevenção, Reabilitação e Inserção Social (CERPRIS), Centros de Especialidades Odontológicas (CEO), Maternidade Municipal e Hospital da Criança, além da Assistência Farmacêutica, Controle e Regulação e Tratamento Fora do Domicílio (TFD). A rede contempla, ainda, a Promoção e Vigilância à Saúde, operacionalizada por meio dos seguintes equipamentos: Setores de Vigilância Epidemiológica e Vigilância Sanitária, Laboratório Central (LACEN), Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) e Centro de Referência para o Tratamento e Acompanhamento das Doenças Sexualmente Transmissíveis (CIDHA) (JUAZEIRO, 2011). No Projeto de Implantação do NASF municipal, de 2008, havia a indicação para a composição de equipes da modalidade 1, com a seguinte configuração: assistente social, farmacêutico, nutricionista, psicólogo, médico pediatra e ginecologista. O projeto foi implantado em junho do mesmo ano, com a proposta de que as EqNASF atuassem em parceria com as EqSF nos territórios adscritos, na perspectiva da corresponsabilização, garantindo apoio às EqSF e à unidade na qual o NASF está cadastrado. Por ocasião da minha inserção em campo, quatro EqNASF estavam em atividade, sendo cada uma delas responsável pelo apoio matricial das EqSFs de um dos quatro Distritos Sanitários localizados na zona urbana do município. O atendimento às EqSFs da zona rural era feito apenas esporadicamente, a partir de demandas específicas e pontuais. A composição de cada EqNASF correspondia ao indicado no projeto de implantação – embora apenas uma estivesse completa –, cabendo frisar que os médicos vinculados às EqNASF não compunham efetivamente o grupo, sendo lotados em unidades de saúde da rede e trabalhando na lógica ambulatorial. Assim, o grupo NASF de Juazeiro-BA era constituído por: quatro assistentes sociais, quatro farmacêuticos, quatro psicólogos e um nutricionista. Na condição já explicitada, havia quatro ginecologistas e dois pediatras. À época da imersão em campo, estava em fase de execução no município o Plano Municipal de Educação Permanente, com o objetivo de contribuir para ampliar “as relações entre os processos educativos dos trabalhadores e usuários, fortalecendo a gestão, o desenvolvimento institucional e o Controle Social na Saúde” (JUAZEIRO, 2011). Dentre os seus componentes, destaca-se o processo De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica (Portaria GM/MS nº 2.488, de 21 de outubro de 2011), a Equipe de Saúde Bucal (EqSB) da modalidade I tem a composição básica de cirurgião dentista generalista ou especialista em saúde da família e auxiliar em saúde bucal (ASB), trabalha de modo integrado a uma EqSF, compartilhando a gestão e o processo de trabalho e assumindo a responsabilidade sanitária pela mesma população e território adscritos à EqSF à qual está vinculada, tendo os seus componentes jornada de trabalho de 40 horas semanais. No caso da modalidade II, acrescenta-se à EqSB o técnico em saúde bucal (TSB). Existe, ainda, a modalidade III, em que profissionais das modalidades I ou II operam em Unidade Odontológica Móvel.

32

75

pedagógico com as EqSF, contando com facilitadores do NASF, e o Projeto Territórios, correspondente à formação em gestão clínica das doenças crônicas, em parceria com o MS e o Hospital Albert Einstein. Petrolina, cidade vizinha, no sertão pernambucano, tem população estimada em 293.962 habitantes (IBGE, 2010), numa área de 4.558,4 km², estando a 722 km da capital Recife-PE. Assim como Juazeiro, destaca-se pela agricultura irrigada e conta com infraestrutura aeroportuária para a exportação das frutas do semi-árido. Juazeiro e Petrolina integram a região do submédio São Francisco, que tem se destacado nacional e internacionalmente na produção de frutas diversas, além de vinhos. Em relação à demanda ao sistema de saúde, de acordo com o Plano Municipal de Saúde de Petrolina (2010-2013), o município constitui referência na região, dado que no Plano Diretor de Regionalização (PDR) do Estado de Pernambuco é sede de uma das três Macrorregiões do Estado, com uma cobertura territorial de 28 municípios pactuados, totalizando uma população aproximada de 885 mil habitantes dependentes do SUS, em sua maioria. Indica-se que, além da população circunscrita no PDR, existe uma população não pactuada de mais de 500 mil habitantes, o que revela uma sobrecarga ao sistema. No que tange à organização da rede de saúde, destaca-se que se subdivide em Atenção Primária e Especializada. A primeira é composta pelo projeto AME Saúde da Família33, composto por EqSF, Equipes de Agentes Comunitários de Saúde (EqACS), EqSB e NASF. A Atenção Especializada conta, basicamente, com os seguintes serviços: CAPS II, CAPSad, CAPSi, CEO, Centro Auditivo, AME (Atendimento Médico Especializado) Políclínica e SAMU. No município, há o setor de Vigilância à Saúde, que se ramifica em: Vigilância Epidemiológica – Programa Nacional de Imunização (PNI), Laboratório Central (LACEN), Espaço Vida (Centro de Orientação e Apoio Sorológico – COAS e Serviço Ambulatorial Especializado em DST/AIDS e Hepatites Virais – SAE), Serviço de Infectologia (SEINPE); Vigilância Sanitária e Ambiental – com vistas ao controle de endemias e zoonoses; Assistência Farmacêutica e Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST). Há, dentre outros programas, a oferta de Tratamento Fora do Domicílio (TFD), inclusive aéreo, para casos específicos.

Em Petrolina-PE, tem acontecido uma aposta da Gestão da SMS na implantação do Projeto AME (Atendimento Multiprofissional Especializado) Saúde da Família, considerado “uma potencialização do Sistema Único de Saúde (SUS) na Atenção Primária”, implantando-se “unidades com infraestrutura adequada, com profissionais em diversas áreas e com um sistema eficaz de atendimento acolhedor e humanizado, funcionando em horário ampliado” (Informações obtidas no sítio http://www.petrolina.pe.gov.br/2010/noticia.php?id=282, acessado em 24.11.2011). Destaca-se que as equipes das AMES são compostas por várias EqSF, cujas Unidades de Saúde da Família originais são desmontadas. Há significativa polêmica em relação ao fortalecimento da ESF por esta via, de modo que, em campo, escutei várias críticas dos profissionais em relação a esse direcionamento da Gestão. No período de campo da pesquisa, havia apenas uma AME Saúde da Família em funcionamento.

33

76

Em relação à Atenção Primária, as quinze regiões administrativas são agrupadas em cinco conjuntos, cada qual sob a referência de um coordenador de área. Existem registradas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES/MS) 32 EqSF, 22 EqACS e 18 EqSB no município34, compostas por enfermeiros, médicos, auxiliares de enfermagem, técnicos de enfermagem, cirurgiõesdentistas, auxiliares de cirurgião-dentista, auxiliares de serviços gerais, recepcionistas e agentes comunitários de saúde. O NASF foi implantado no município em 2009, com cinco equipes da modalidade 1, cada uma composta por educador físico, farmacêutico, nutricionista, psicólogo e médico ginecologista. A proposta é que as equipes respaldem sua prática no apoio matricial, ampliando e potencializando a Estratégia de Saúde da Família35, o que implica trabalhar de modo articulado com as EqSF. Durante o período em que estive em campo, três das cinco EqNASF estavam completas, mas apenas duas se mantiveram assim, existindo a seguinte configuração dos profissionais: cinco profissionais de Educação Física, quatro farmacêuticos, três nutricionistas (um dos quais foi desvinculado naquele período) e cinco psicólogos. Em relação aos médicos, havia dois constando na lista dos profissionais do NASF. Entretanto, como em Juazeiro, embora formalmente façam parte da composição das EqNASF, a participação efetiva dos médicos no grupo não acontece, tendo aqueles uma atuação nos moldes tradicionais, totalmente descolada da proposta NASF. Como no município vizinho, o apoio do NASF às EqSF da zona rural é feito pontualmente, com base em solicitações específicas, sendo a distância e a dificuldade de transporte a esses locais aspectos que dificultam o acesso. Torna-se importante indicar que cada EqNASF é responsável por cerca de nove EqSF da zona urbana, sendo uma quantidade sinalizada como excessiva pela maioria dos interlocutores – ainda que condizente com a portaria regulamentadora –, podendo ser este outro empecilho à inclusão efetiva das EqSF da zona rural no apoio matricial das EqNASF nos dois municípios. Em relação à atenção terciária, há três hospitais que são referência macrorregional interestadual nos municípios, via articulação da Rede Interestadual de Atenção à Saúde da MacroRegião do Médio São Francisco (Rede PEBA), em vigor desde 2009: o Hospital Regional de Juazeiro, além do Hospital Dom Malan e do Hospital de Urgência e Traumas, ambos situados em Petrolina (PETROLINA, 2011).

Dados obtidos no sítio http://cnes.datasus.gov.br/Mod_Ind_Equipes.asp?VEstado=26&VMun=261110&VComp=201109, acessado em 08.11.2011, relativos à competência de setembro/2011. 35 Informações obtidas no sítio http://nasfpetrolina.blogspot.com, acessado em 09.11.2010. 34

77

5.3 Procedimentos Inicialmente, foi feito um levantamento da rede de saúde dos dois municípios, destacando-se a composição e abrangência das EqNASF, além de contatos com os gestores/responsáveis, a fim de explicitar a pesquisa. A partir do exposto anteriormente, além do consentimento dos Secretários Municipais – registrado por meio da assinatura da carta de anuência –, foi fundamental conhecer o desejo/interesse de participação de cada profissional na efetivação do estudo – legitimado a partir da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Ressalta-se que todos os cuidados éticos em relação à pesquisa com seres humanos foram tomados, inclusive a submissão e aprovação do projeto de pesquisa em Comitê de Ética. Na sequência, ocorreram os contatos para apresentação da pesquisadora e proposta de pesquisa a cada uma das EqNASF envolvidas no processo, empreendendo-se um conhecimento inicial do seu funcionamento. Já nesse momento, foram feitos acordos, coletivamente, em relação à minha inserção na dinâmica de cada grupo. Dentre as atividades acordadas para minha participação, destacaram-se: reuniões formais das equipes, contatos e diálogos informais em grupos ou individuais com os profissionais e atividades nas USFs. A imersão em campo ocorreu por cerca de cinco meses em cada um dos cenários, consecutivamente: Juazeiro (março a agosto de 2010) e Petrolina (agosto de 2010 a janeiro de 2011). A entrada em campo ocorreu na perspectiva de cartografar (ANDRADE; MORATO & SCHMIDT, 2007) as práticas das EqNASF no cotidiano de trabalho. Essa cartografia buscou, muito além de uma simples descrição, uma compreensão dessas práticas por meio do mergulho do pesquisador nos cenários de sua ocorrência: a compreensão vai se forjando a partir da experiência de trânsito do visitante (pesquisador) nos territórios em que a ação se cria, nos encontros com os que ali habitam e/ou circulam. Como indica Morato (1999), ao longo da peregrinação nos territórios que busca conhecer, o cartógrafo – pesquisador-viajante – vai marcando e se deixando marcar pelos encontros vividos, colecionando tatuagens de várias texturas em sua pele-existência, como o arlequim na história contada por Serres36. Compreende-se, desse modo, que cartografia não se descola do território em que se transita – vivo e pulsante. O trabalho do cartógrafo se caracteriza por um arremesso de si nas tramas existenciais que busca compreender, sendo que esse conhecimento ocorre – ou se produz – na 36 Michel Serres, em “Filosofia Mestiça – Le tiers-instruit. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993”, conta a história de Arlequim que, de volta de uma expedição às terras lunares, tenta defender, em uma entrevista coletiva, que em toda parte tudo é idêntico ao que pode ser visto sobre a Terra, decepcionando a audiência. Entretanto, ao tentar sustentar tal afirmação, é desmentido por seus vários casacos, que vai tirando um a um: todos uma composição descombinada, feita de pedaços mil, multicoloridos, como uma espécie de mapa-múndi, que revelavam as marcas adquiridas pelo trânsito nas terras distantes. “Cebola, alcachofra, Arlequim nunca acaba de se desfolhar ou de escamar suas capas cambiantes” (p. 3), até que fica nu e a grande revelação acontece: tatuada, também a sua pele é como os seus vários casacos, indicando sua mestiçagem.

78

medida em que participa da vida que ali transcorre, num compromisso visceral com a vida mesmo e suas intensidades, implicando uma abertura e sensibilidade ao que ali se constitui como configurações: O cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado. Está sempre buscando elementos/alimentos para compor suas cartografias. Este é o critério de suas escolhas: descobrir que matérias de expressão, misturadas a quais outras, que composições de linguagem favorecem a passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos que pretende entender. Aliás, “entender”, para o cartógrafo, não tem nada a ver com explicar e muito menos com revelar. Para ele não há nada em cima - céus da transcendência -, nem embaixo - brumas da essência. O que há em cima, embaixo e por todos os lados são intensidades buscando expressão. E o que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem. (ROLNIK, 1987, s/p)

Envolta nessa atmosfera de pesquisa-intervenção-viagem, no ato contínuo de me lançar no campo, alimentei-me dos contatos diversos que vivi, fazendo anotações sistemáticas do que presenciei e participei: sentimentos, pensamentos, frustrações, alegrias, percepções, impressões, fragmentos de conversa – tudo importava. Assim, fui elaborando, ao longo da imersão em campo, textos em que registrava principalmente o que brotava das minhas afetações nesses encontros. Como é próprio de uma proposta de pesquisa cartográfica, além do que era pesquisado, havia uma intenção de registrar o próprio processo de pesquisar (PASSOS; BARROS, 2010), incluindo as minhas impressões e as que eu tinha a oportunidade de colher dos meus interlocutores. Tais registros extrapolaram, portanto, um caráter meramente descritivo, constituindo um diário de bordo, instrumento fundamental no estudo empreendido. De acordo com Passos & Barros (2010), a cartografia empreende uma reversão no sentido tradicional de método: em vez de um caminhar para atingir metas estabelecidas a priori, valoriza-se, sobretudo, o próprio caminhar – e o que nele vai se constituindo a partir do que vai sendo experimentado no campo. Destacam, assim, que “a diretriz cartográfica se faz por pistas que orientam o percurso da pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados” (p. 17). Estes autores se alinham com a perspectiva de pesquisa-intervenção, compreendendo a inseparabilidade entre conhecer/fazer ou pesquisar/intervir e tomando o plano da experiência como nascente da produção de conhecimento. Passos, Kastrup & Escóssia (2010) defendem que o método cartográfico não se define por um “conjunto de regras para ser aplicadas, nem um saber pronto a ser transmitido” (p. 201). Trata-se, sobretudo, de um processo a ser praticado, dado ser aprendido apenas a partir do mergulho na experiência, referindo-se, muito mais, a um contínuo “refinamento da percepção do que um apelo a um saber acumulado ou à memória” (p. 201). Assim, a experiência de pesquisa suscita a ampliação da sensibilidade ao que se mostra relevante, a partir da afetação – ou, dito de modo nietzscheano, da aproximação com o campo de forças ali correlacionadas – e o “aprendizado da própria atenção ao presente vivo” (p. 201).

79

Quando considerado pertinente para a melhoria da qualidade da avaliação final, conversas individuais com profissionais e/ou equipes, inclusive algumas reuniões, foram registradas em áudio – por meio de aparelho de mp3 – sempre mediante autorização. Os depoimentos gravados foram transcritos na íntegra. Destaca-se que, paralelamente aos trabalhos de campo, a pesquisadora esteve em contínua pesquisa sobre outras experiências, avaliações e produções que pudessem acrescer ao que estava sendo vivido no contato com as EqNASF. Documentos institucionais, tais como relatórios de gestão e de atividades da Gerência de Atenção Básica e das equipes NASF, projetos de implantação das ações e outros, de ambos os municípios, constituíram, outrossim, importantes fontes de consulta e análise. Numa segunda etapa, no intuito de encerrar o período de imersão em cada uma das realidades, foi realizado um encontro com cada EqNASF para troca das impressões construídas durante os contatos da pesquisadora com os profissionais. Embora eu já viesse, pela própria proposta metodológica, partilhando as compreensões produzidas a cada momento, assumindo um modo de provocação dos profissionais em relação às suas práticas, essa reunião final foi crucial por vários motivos: a possibilidade de compartilhar uma espécie de síntese das compreensões por mim produzidas até aquele ponto, a escuta dos profissionais em relação às suas impressões sobre a minha participação no grupo naqueles meses e a pertinência do que eu apresentava em termos de compreensões parciais, além do reforço ao meu compromisso de retornar após a finalização da pesquisa e defesa da tese para discutir com eles a produção final. Tais encontros finais com os profissionais das equipes envolvidas tiveram, portanto, o propósito de aprofundar a investigação e destacar temas e problemáticas levantadas nas situações cotidianas ao longo da minha imersão em campo, tendo sido registrados em vídeo – por meio de câmera filmadora. Para tanto, contei com a generosa participação de dois estudantes da graduação em Psicologia da Univasf, cada um assumindo a responsabilidade de filmar um dos encontros. Compreendo que, de certo modo, esses encontros cumpriram uma função devolutiva – ainda que parcial – do processo de pesquisa. Dado o caráter interventivo da pesquisa, também destacado por Lévy (2001), é importante que haja envolvimento efetivo dos seus interlocutores/beneficiários. Particularmente em se tratando de uma pesquisa com cunho avaliativo, importa que os resultados sejam utilizados, tornando-se nodal esse compromisso de fazer circular o que foi produzido em termos de compreensões/interpretações, gerando provocações com vistas à produção continuada de sentido ao que se faz. Ressalta-se que, no estudo em questão, tanto os momentos de conversas em grupo quanto individuais ocorreram do modo mais informal possível, sendo coordenados de modo a facilitar o fluxo das narrativas dos interlocutores, interferindo-se minimamente, exceto quando havia necessidade de

80

retomar, na discussão, o foco do trabalho. Buscou-se valorizar, assim, os momentos de diálogo como propícios à narração, ou seja, voltados à comunicação e elaboração de experiência. Benjamin (1996) aponta a articulação entre narrativa e experiência, enfatizando que as narrativas são vias de acesso para o conhecimento da experiência do narrador. Este “retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada por outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (p. 201). A faculdade de intercambiar experiências, por meio da narração, está em vias de extinção em nosso mundo moderno, de acordo com a análise do teórico. Entretanto, considerando que pela narrativa se torna possível acessar o terreno vivo da experiência – que constitui a matéria-prima fundamental do narrador –, percebe-se a fertilidade de (re)valorizar a capacidade narrativa nos humanos, que se caracteriza como algo fabricado artesanalmente, como ofício manual: A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em-si” da coisa narrada como uma informação ou relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1996, p. 205)

Recorrendo a Benjamin, Schmidt (1998) destaca que o relato oral – a narrativa – abre a possibilidade de elaboração e transmissão da experiência, considerando que a experiência contada reporta à elaboração do fluxo do vivido. Nesse contexto, a narrativa se caracteriza como a forma de expressão sintonizada com a pluralidade de conteúdos, incorporando as próprias mudanças do conteúdo e das características dessa elaboração. Nesta pesquisa, a metodologia dos relatos orais se sobressai, principalmente, pela busca de valorização da experiência dos interlocutores – acessada prioritariamente via narração. Igualmente a minha própria experiência como pesquisadora – tatuada que fui pelos encontros diversos com esses interlocutores na imersão no campo – é enfatizada: em todas as fases da pesquisa, esforcei-me a assumir a minha condição de narradora, sobretudo na escrita deste trabalho. 5.4 Processo Interpretativo da Matéria-Prima Diferentemente das pesquisas tradicionais, em que apenas se colhe inicialmente o “material” ou os “dados” para posterior análise, o caráter interventivo desta pesquisa implicou uma análise coletiva (pesquisadora e participantes) e continuada ao longo da imersão em campo. O coletivo, aqui, é compreendido não na perspectiva de estar junto presencialmente, sendo muito mais da ordem do que dispara, do que provoca outras compreensões e reflexões no contexto dos encontros. Sendo o foco da avaliação as próprias experimentações, estas eram, sempre que possível, debatidas e refletidas nesses encontros, subsidiando análises e decisões sobre outras possibilidades

81

de agir. Pode-se dizer que, durante a etapa de campo, aconteceu uma produção de compreensões compartilhada, em que as tensões eram alvos de reflexão e busca de soluções, sempre parciais e locais. Pretendeu-se um exercício permanente de trabalho coletivo, no qual se vivenciou e analisou as dificuldades presentes para favorecer sua ocorrência e, no mesmo movimento, criar outras formas de relação em que se vislumbrasse a existência cotidiana de um trabalho transdisciplinar, compreendido como produção coletiva. Cabe ressaltar, contudo, que ao longo da pesquisa fiz um investimento permanente, pela própria condição de pesquisadora, no processo de interpretação/hermenêutica das narrativas colhidas, uma vez que existe a singularidade de minha posição, a partir do interesse de compreender um dado fenômeno. Foram observados os conflitos, as tensões, as contradições, as incongruências e mesmo os paradoxos, apostando-se que, neles, a teia de nexos se revela ainda mais, desvelando o sentido – como direção – que não se deixa aprisionar nas diversas formas de registro, instituindo-se aí uma construção infindável. Dessa forma, atina-se que qualquer configuração que se apresenta é uma dentre várias possibilidades, sendo sempre circunstancial. Assumindo a perspectiva genealógica, a minha atenção se direcionou à avaliação – na forma da produção de compreensões – da correlação das diversas forças e dos diversos modos de se relacionar presentes na atuação dos interlocutores bem como na minha própria intervenção. Parti, assim, do ponto de vista de que o pesquisador precisa tentar desvelar essa conjuntura de forças (sentimentos, pensamentos, concepções etc.) presentes, sendo ele também partícipe, num processo de construção de sentido que não se encerra jamais – sendo apenas “recortado”, em certo momento e num arranjo específico, em função da necessidade de apresentar algumas compreensões, como no contexto da realização de uma pesquisa. À luz dessa compreensão, delineio os passos dados para a produção de interpretações acerca do que foi vivido e colhido em campo, num segundo momento de aproximação dessa experiência: - inicialmente, houve um empenho de circunscrever as primeiras impressões a partir da leitura dos relatos de campo escritos durante a inserção na dinâmica de trabalho das equipes, cuja síntese foi discutida no encontro final com cada uma delas; - posteriormente, fiz uma leitura das transcrições dos diálogos gravados (em áudio), destacando as primeiras impressões das conversas tidas com os profissionais, além de assistir ao vídeo do encontro final com cada EqNASF; - busquei, então, escrever as sobre as afetações a partir da releitura das primeiras impressões dos relatos de campo, da leitura das primeiras impressões das conversas e do vídeo do encontro final, que constituíram documentos fulcrais do processo interpretativo.

82

Torna-se fundamental esclarecer que os passos acima indicados ocorreram para cada um dos grupos participantes separadamente. Todavia, durante o processo interpretativo para escrita dos resultados, a matéria-prima foi revisitada frequentemente, inclusive em seu estado bruto – relatos de campo, conversas transcritas e gravação em vídeo do encontro final com cada equipe. Após o encerramento do campo, por meio de recorrentes passeios na matéria-prima produzida – que inicialmente se desdobrava diante dos meus olhos e mãos como trilhas enigmáticas e múltiplas a serem exploradas –, brotou um modo possível de revelar as nuances e riquezas envolvidas no trabalho daquelas equipes: contar histórias vividas na peregrinação com aqueles profissionais – eu, Arlequim, assumindo o desafio de ampliar a minha porção narradora...

83

Capítulo 6. Das possibilidades de ação transdisciplinar em atos: contos da cartografia Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares.

Como contar da riqueza vivida durante aqueles meses de inserção em campo, acompanhando e vivendo o cotidiano de trabalho daquelas equipes de saúde? Como produzir compreensões a partir do meu transitar naqueles territórios, matizados por ações, pensamentos, frustrações, conquistas, insatisfações, incertezas daqueles profissionais? A questão é que eu era também aqueles “outros” que eu tomava como interlocutores – não apenas pela condição comum de humanidade, mas pelas marcas que trazia das minhas andanças como profissional de equipes de saúde em minha história de vida – e isto tornava ainda mais instigante a minha tarefa de ser, então, narradora. Aportei naquelas terras estando prenhe de tatuagens, cunhadas não só pela experiência de ter já trabalhado em equipes de saúde no contexto do SUS, como também pela experiência no ofício recente de docência e pesquisa, tendo escolhido focar esse mesmo contexto. Cheguei, fundamentalmente, como pesquisadora, mas me sentindo em casa: não me eram cenários completamente estranhos, embora tivessem peculiaridades bem delimitadas, que eu visava tatear e compreender mais detalhadamente. À medida que eu me inseria nas atividades – reuniões, grupos, visitas domiciliares – eu vivia aqueles instantes com intensas reverberações que, no momento de reaproximação com a matéria-prima colhida, ficaram ainda mais intensas. A minha experiência se mesclava à experiência daqueles que estavam perfilando o trabalho cotidiano naqueles cenários e dispor compreensões a respeito do vivido na travessia se tornou um desafio que mal consigo qualificar. Chegara a minha vez de narrar e, concomitantemente, produzir e apresentar algo – com sentido e consentido – a partir daquelas andanças, vividas como inserção cartográfica. Precisava comunicar e elaborar a experiência vivida no campo, guiada por uma questão-bússola, como é toda questão de pesquisa (CABRAL; MORATO, 2003). Então, concebo como fundamental neste ponto retomar meu objetivo principal, resgatando aqui o “essencial” da pesquisa, ou, dito de outro modo, o seu fio condutor. Iniciei tudo querendo compreender como as equipes estavam organizando o seu cotidiano de trabalho, atenta especificamente ao sentido de coletivo que construíam ao se caracterizarem como equipes. Buscava compreender melhor o trabalho em equipes de saúde, a partir da ação cotidiana de grupos assim “denominados”, tendo escolhido as equipes NASF de Juazeiro-BA e Petrolina-PE como locos para a minha inserção. Lembro que, enquanto estava em campo, pensava constantemente que a minha proposta, ao final de tudo, não era construir uma espécie de manual em relação ao “bom” trabalho em equipe de saúde, embora algumas vezes tenha sido assim interpretada por meus interlocutores. É certo que eu

84

não pretendia indicar, ao final da pesquisa, modos corretos para o trabalho coletivo, pois isso seria até incoerente com o que acredito e o marco teórico-conceitual que tomo como ponto de partida. Até me dou conta de que as pessoas com quem cruzei, trabalhadores/gestores da saúde, conseguiam indicar uma série de características teorizadas sobre o trabalho em equipe, seus aspectos primordiais, etc. etc. etc. Não era disso que eu precisava saber, mas, confesso, que quando isso surgia, muito me chamava atenção. Ao deslizar pela matéria-prima colhida, tinha aquela confirmação de que as marcas da inserção em campo estavam em mim e, de algum modo, encontraria as vias para transformá-las em compreensões que pudessem servir, não a mim, mas a trabalhadores que precisam lidar com equipes, que integram equipes, particularmente de saúde. Enfim, o modo surgiu, muito suavemente, trazendo consigo uma segurança – ainda incerta – de que seria possível, pela via vislumbrada, revelar a fertilidade desabrochada nas afetações e provocações produzidas pelo processo de pesquisa. Decidi contar histórias, causos ou contos, originados de situações vividas em minhas passagens pelos cenários escolhidos, que ganharam destaque nos meus diários de campo e conversas com os interlocutores. Mas “o que é um conto? Uma narrativa de experiências? Uma narrativa investigativa/reflexiva?” – provocou minha cara orientadora com um bilhete, que ficou muito animada com a proposta e me encorajou a seguir. Deixei aquilo tudo marinando e segui lendo a matéria-prima. Os motes para os contos foram se mostrando à medida que ia mergulhando novamente no campo, desta feita por meio dos registros. Era como reviver as situações, porém com a possibilidade de compreendê-las sob outras perspectivas, desnudando-as, reconstruindo-as e, por que não assumir, quase as reinventando. Assim, declaro-me autora dessa produção que, obviamente tem marcas coletivas – porque brotou dos diversos encontros em que me lancei nessa trajetória de pesquisa – porém exigiu de mim um alargamento da minha capacidade narrativa: e narração implica elaboração, portanto, é invenção, criação, poiésis. Reconheço que está essencialmente aí meu exercício de pesquisadora. Apresento a seguir os contos37 brotados do processo cartográfico descrito, vivido de modo provocativo, entrelaçado que estava com a perspectiva de avaliação genealógica. A elaboração de tais causos prontamente demandou um exercício interpretativo da matéria-prima colhida. Compreendo que a própria escolha dos motes para a sua confecção já engloba um trabalho de pesquisa e aponta vias para avaliação do tema enfocado. Sendo partes fundamentais do processo de construção de compreensões em torno do tema pesquisado, os contos elaborados foram, assim, ganhando o status de narrativas vivas, surgidas de histórias vividas nos territórios, que se realçaram ao meu olhar, 37

Acabei optando por chamá-los mesmo de “contos”, embora pretenda enfatizar o caráter narrativo de situações acontecidas e vividas, portanto, reais, e não fictícias.

85

buriladas arduamente a partir de cada impressão, sentimento, pensamento surgido nas minhas andanças nos cenários de pesquisa. Os contos da cartografia são histórias com um caráter críticoreflexivo, nesse caso totalmente sintonizadas como o exercício de pesquisa. Admito que usar o conto como recurso foi uma ousadia, que demandou de mim empenho vigoroso. Os contos se transformaram, portanto, em minha via de comunicação da preciosidade da experiência vivida, sendo por meio deles que pretendi fazer a discussão sobre a questão-bússola. Desse modo, após cada um, teço compreensões embasadas, sobretudo, no marco teórico-filosóficoconceitual que tomei como referência ao iniciar a viagem-pesquisa, garantindo, entretanto, uma abertura a outras demandas de discussão percebidas, podendo-se extrapolar tal demarcação primeira. Como indicado na explicitação do método, não houve de modo algum intenção comparativa quando da seleção dos dois municípios como cenários de pesquisa. Sendo assim, os contos produzidos dizem respeito a um ou outro cenário – sem que haja a preocupação de identificar de qual se trata – ou a ambos, como acontece em dois deles. As equipes dos municípios – que somavam um total de nove quando da realização da pesquisa – foram nomeadas conforme especiarias, sendo tomadas metaforicamente como temperos diversos em suas experimentações do trabalho coletivo. Não há como negar aqui a inspiração das viagens e batalhas empreendidas em busca das especiarias de origem oriental na época das Cruzadas – ao empreender essa pesquisa-viagem, eu buscava, também, alguma orientação, como luz, para temperar a discussão em torno do trabalho em equipe. Os profissionais componentes das EqNASF, para os quais opto por usar siglas simples, são: assistente social (AS), educador físico (EF), farmacêutico (Farm), nutricionista (Nutri) e psicólogo (Psi). Cabe esclarecer que os profissionais envolvidos são adjetivados de acordo com o nome da equipe a que pertencem, o que permite ao leitor identificar a inserção de situações com diversas equipes, ao mesmo tempo em que podem perceber os profissionais que são parceiros da mesma miniequipe. A sigla SMS é também utilizada para representar Secretaria Municipal de Saúde. Embora em ambos os municípios existam médicos como componentes das EqNASF, nunca presenciei uma efetivação dessa integração na prática, de modo que essa categoria não foi inserida na pesquisa. Passemos, finalmente, aos contos!

*** Primeiro Ato – As Rodas de Conversa: aprendendo a aprender coletivamente

E

ra uma vez a equipe NASF Gengibre, pertencente à rede de saúde de determinado município do sertão do submédio São Francisco. Ela já tinha passado por várias reconfigurações em termos

de composição profissional: como é comum no contexto político de diversas cidades brasileiras, havia

86

uma rotatividade expressiva de profissionais, em decorrência, sobretudo, da precariedade dos vínculos empregatícios. Com a chegada da nova psicóloga, outro processo de reorganização da dinâmica de trabalho teve início. Como aconteceu com vários dos seus colegas, ela estranhou o acolhimento às avessas que teve na sua entrada na SMS: não foi apresentada a sua equipe nem decentemente introduzida nos lugares onde teria que circular para desenvolver o trabalho – de caráter volante – do NASF. Apenas foi informada de que havia algumas USFs sob a responsabilidade de seu grupo e foi, aos poucos, tendo a chance de conhecer seus companheiros de trabalho, muito em função de um esforço pessoal seu: ligava para um, ligava para outro e tentava marcar encontros, ansiosa por se apropriar mais da proposta. Do NASF, tinha uma compreensão superficial e teórica, mediada principalmente por leituras da Portaria 154, o que também era a condição de praticamente todos os seus outros colegas. As reuniões gerais semanais, de que participavam todas as miniequipes NASF, pareciam uma oportunidade excelente para essa tão desejada aproximação. Entretanto, percebeu rapidamente que seria investindo nas relações com sua mini-equipe que encontraria vias mais rápidas para essa apropriação do trabalho no NASF. Não era a única a estar tendo seu primeiro emprego naquele grande grupo e sentia um enorme desejo de acertar. Embora fosse sua primeira experiência profissional, parecia trazer, de sua formação e em seu modo de ser, uma valorização – um tanto intuitiva – de modos coletivos de produzir saúde. Acho que foi justamente esse desejo de “fazer as coisas acontecerem” – como ela própria caracterizou em alguns de nossos papos – que a moveu em direção a minha proposta: acredito que ela reconheceu em mim uma possível interlocutora. Por meio dessa abertura, tive a facilidade de acompanhar algumas atividades junto a essa equipe, tendo a chance de perceber aspectos de sua dinâmica de trabalho, que, depois, descobri ser fruto de um processo intenso de maturação e conquista do grupo, identificando na figura da Psi uma função articuladora importante. Nesses contatos com componentes da EqNASF Gengibre, um ponto foi ganhando destaque: o aprendizado coletivo do que aqui chamarei de “tecnologia da roda de conversa”, sem referência conceitual livresca, estando ancorada tão somente na experiência que essa equipe viveu e pôde relatar a mim, quase como um presente, em diferentes momentos de encontro. A primeira vez em que me lembro de ter ouvido o grupo falar disso foi quando Psi mencionou que estava começando a realizar umas rodas de conversa nas comunidades. Fiquei interessada em conhecer e confesso que um tanto desconfiada, imaginando que talvez a prática não correspondesse à força da expressão utilizada para nomeá-la. Infelizmente não tive a oportunidade de participar de roda alguma, mas me deparei com relatos extremamente fortes, que me convenceram do aprendizado que a

87

experimentação desse fazer estava mediando na EqNASF Gengibre, nas EqSF e nos usuários que vinham tendo a chance de participar das rodas. É isso que tentarei expressar aqui. Em uma conversa individual com Psi Gengibre, ela me contou como tinha introduzido essa possibilidade de intervenção nas reuniões com sua equipe: “Gente, fiz uma roda de conversa na comunidade e queria muito que vocês pudessem participar também!”. Para sua surpresa, encontrou uma grande receptividade na equipe, principalmente de Farm e Nutri, que expressaram vontade de participar de alguma roda e conhecer como funcionavam, até porque já tinham ouvido falar muito bem nas USFs sobre essa atividade realizada por Psi. Nessa mesma conversa, Psi me disse que em determinada ocasião foi convidada por Nutri a participar de uma roda que realizaria. Meio decepcionada como o modo como a roda aconteceu, Psi esperou a oportunidade de Nutri participar de uma roda facilitada por ela, para discutir alguns aspectos metodológicos. Depois da participação de Nutri na roda, o interesse por esse dispositivo na EqNASF Gengibre começou a aumentar e o grupo combinou de discutir esse tópico em uma reunião, que acabou sendo um marco para eles: Psi: Nutri me disse “Adorei! Vou fazer! Tenho um monte de ideia aqui.”. E engraçado que, enquanto ela tinha um monte de ideia, eu tinha um monte de ideia pra ela. Aí eu pensei: “Que legal!”. Porque eu não ia chegar para ela e dizer “Olha, tenho essas idéias...”; eu queria poder trocar com ela as ideias que eu tinha com as dela. Porque eu queria ajudar elas a poderem estar fazendo junto, entendeu? Não só me vendo fazer ou ouvindo dizer que eu fiz. A mesma coisa foi com Farm... Farm não participou e aí Nutri falou pra ela: “Olha, participei, foi muito legal!” e contou tudinho como foi. Ela disse: “Que legal, mas eu não pude ir...”. Aí eu disse “Gente, vamos fazer o seguinte...” – porque estava todo mundo querendo fazer roda – “Na próxima terça-feira eu me comprometo com vocês de a gente só discutir roda, o que vocês acham?” e elas disseram: “Ah, quero muito!”.

O interessante é que mais tarde, em um bate-papo que tive com toda a EqNASF Gengibre (Psi, Farm, Nutri e EF), esse mesmo episódio da reunião foi contado por Nutri e Psi: Nutri: (...) teve uma reunião muito boa que a gente fez, pra falar sobre os nossos grupos... como tavam sendo... um ajudando o outro... (...) Eu não sabia fazer roda de conversa, nunca tinha feito roda de conversa e disse a Psi “Vamos fazer roda de conversa!”. Psi: Mas não era bem roda de conversa... Nutri: Não era uma roda de conversa... Era assim: eles perguntavam e eu respondia. Eu tava ali como profissional e eles como usuários. Tava essa troca: eu sei e eles tão perguntando. Aí, depois, Psi, analisando, falou assim: “Bora fazer de outra forma? O que é que você acha?”. Aí me levou pro grupo dela, ela fazendo o grupo...

Quando Nutri participou da roda de conversa sobre saúde mental facilitada por Psi, ela pôde viver outra dinâmica, ficando muito empolgada. Assim aconteceu: Psi: (...) me apresentei e levei um monte de papeizinhos, de cartolina, com frases, palavras: medo, saudade, família, pai e mãe, depressão (...) mas tentando colocar palavras que poderiam fazer pensar em várias coisas... (...) Coloquei tudo virado pra baixo, no chão, todos em roda. Aí apresentei, falei da proposta, que era só uma conversa, que a gente não tinha um tema específico...

Psi se colocou de modo a estimular a participação das pessoas, sem pretensão de responder perguntas. A partir do estímulo de algumas palavras, as pessoas falaram de suas experiências, acontecendo uma intensa interação na roda. O resultado disso foi que a participação de Nutri na roda

88

facilitada por Psi possibilitou que aquela percebesse a importância de promover o debate entre os integrantes, a ponto de relatar no bate-papo grupal que tivemos posteriormente: “(...) eu não sou... eu não tô ali como o profissional ‘sabe-tudo’. Eu tô ali igual a eles.”. À medida que esse ponto foi tratado nessa discussão com a equipe, o relato ia sendo feito como que “em coro”, revelando-se o aprendizado da valorização do saber do outro e a importância de abrir espaço, nas atividades propostas, para que as pessoas comuniquem suas experiências e saberes, promovendo-se uma genuína troca. Naquele momento reforcei a importância de o profissional se colocar na posição de provocar o outro a dizer de si, a falar, a evidenciar também o seu saber ou ponto de vista, sem a preocupação de estar certo ou errado, mas de partilhar compreensões e aprender a partir de outras visões também: Nutri: E essa foi uma das coisas que a gente fez... eu provoquei! Psi me ensinou a provocar mesmo: “E aí, por que você acha que é assim? Você faz assim?”, entendeu? E a gente foi trazendo pra nutrição mesmo, até que eles mesmos percebessem que não é dessa forma. Eu só entrava na questão de desmistificar... se era um mito, eu dizia que não, que aquilo era um mito e porque... na forma técnica, mas sendo igual a todos! Psi: Já pegando as falas, já aproveitando o que tinha sido dito! E a mesma coisa Farm.

Outro aspecto que me chamou atenção foi a repercussão da utilização das rodas de conversas no contato com as ACSs. Segundo Psi, também elas são convidadas a participar das rodas, podendo experimentar esse outro modo de discutir temas em saúde. Nesse contexto, a metodologia das “palestras” – comumente usadas nas atividades de Educação em Saúde na comunidade – acaba ficando em questão, já que se evidencia seu caráter autoritário, transmissivo e pouco estimulante. Essa participação conjunta das ACSs acaba, portanto, sendo mote para a discussão e contato com outros modos de fazer saúde: Psi: (...) sempre quando a gente sai de alguma atividade, eu reforço para elas que a intenção da gente é estar ali trocando, aprendendo junto com elas, umas com as outras... Porque a gente aprende muito com elas também, né? Eu falei para elas: “Essa roda que a gente fez, você pode estar fazendo! Sendo que não necessariamente do jeito que eu fiz... Não precisa ser com papelzinho, não precisa ser sobre saúde mental... Pode ser sobre qualquer outra coisa.” Aí eu sempre falo: “Você percebeu que ali houve uma conversa? Que todo mundo participou?”. Eu tentei mostrar para ela que quando a gente conversa uns com os outros sobre uma temática, e não simplesmente escuta, a gente aprende muito mais.

Em uma reunião geral de todas as EqNASF, que teve um caráter avaliativo das ações, tendo acontecido após essas conversas cujos fragmentos foram aqui apresentados, um ponto crucial surgiu, levantado por uma integrante de outra equipe, a Psi Açafrão: tratava-se da falta que sentia da troca de experiência entre as EqNASF e até dentro de sua própria equipe. Achei aquilo corajoso! Em meio à discussão, presenciei Nutri Gengibre mais uma vez fazendo referência, de modo enfático, ao aprendizado disparado pela proposta das rodas de conversa e o processo que aconteceu em sua equipe.

***

89

Um primeiro ponto que pode ser destacado a partir desse conto é relativo à precariedade dos vínculos empregatícios no contexto público de saúde, tendo isso se revelado como uma sombra constantemente presente no cotidiano dos profissionais com quem tive contato, dado não serem concursados. Há vários desdobramentos disso passíveis de consideração; entretanto, para a discussão desse conto, penso que cabe enfatizar a rotatividade dos profissionais que compõem as equipes. Havia um histórico de freqüentes mudanças de profissionais em ambos os contextos (e sabemos que essa não é uma peculiaridade do dispositivo NASF, em se tratando da rede pública de saúde). Inclusive, quando há uma aproximação do período eleitoral, a possibilidade de demissão costuma se tornar uma ameaça ainda mais significativa. Como uma implicação considerável, estava a dificuldade de as equipes partilharem uma história e uma organização gradual e coletiva dos processos de trabalho, havendo uma desconfortável sensação de recomeço a cada nova chegada/despedida de profissional. Consigo estabelecer uma relação entre essa rotatividade freqüente e os processos de acolhimento “às avessas” de cada novo integrante do NASF, referido com contundência por alguns dos meus interlocutores: até que ponto vale investir de fato no profissional que chega se não há garantia de uma permanência mais prolongada? Profissionais “descartáveis” e equipes que se liquefazem em fração de dias não parecem combinar com qualquer proposta que seja de cuidado à saúde, mas isso era bem freqüente nos contextos que pesquisei. Nessa discussão, considero pertinente atentar a uma relação existente entre cuidar do outro e cuidar de si – não se tratando de uma relação unívoca e direta, podendo assumir diversos contornos. Quero destacar muito mais uma inter-afetação entre essas duas dimensões. Não me pareceu existir uma proposta de atenção a esses trabalhadores, de modo que eles tivessem ou percebessem a oportunidade de cuidar de sua prática – que compreendo como uma via do cuidado de si. De modo algum estou querendo enfatizar aqui uma perspectiva de cuidado ao cuidador – atualmente tão em voga – numa ênfase a qualquer perspectiva de vitimização desses ou subestimação de sua potência de ação, mas somente da importância do reconhecimento e legitimidade de sua condição profissional nos contextos institucionais pesquisados. Como indicam Machado e Lavrador (2009), “o objetivo do ‘cuidador’ deveria ser menos cuidar e mais incitar o desejo de ser cuidado, ou melhor, provocar no outro o desejo de cuidar de si” (p. 516). As autoras entendem o “cuidado de si” a partir de referência foucaultiana, relacionando-o a um exercício ético e caracterizando-o como uma prática social. O cuidar de si não se refere a uma introspecção, mas sim a uma intensificação das relações sociais. Desse modo, refletem que “a prática do cuidar precisa constituir práticas do cuidado de si, onde ‘usuários’ e trabalhadores possam tomar ‘posse da vida’, ou melhor, possam inventar possibilidades de vida que escapem ao padecimento, à sujeição, ao vitimarse” (MACHADO e LAVRADOR, 2009, p. 517). Sintonizando com esse modo de perceber, acredito que

90

as redes institucionais no campo da saúde precisam investir nessa tomada de responsabilidade dos profissionais em relação ao cuidado, promovendo espaços para que estes reflitam sobre sua prática, havendo aí uma responsabilidade direta dos gestores. Entretanto, gestar mecanismos para a garantia dos quadros profissionais parece o compromisso primeiro a ser assumido. A definição da política de saúde necessariamente precisa por em perspectiva essa relação: profissionais que trabalham no cuidado do outro poderiam ter sua prática potencializada ao experimentar a condição de ser cuidado. Trata-se da circunscrição de política como algo voltado a uma coletividade, como bem-comum, implicando relações de cuidado do Estado para com as pessoas. No nível micro, estamos tratando das relações entre profissionais de saúde e usuários do sistema público, com ênfase no cuidado a partir de um pedido/queixa que se expressa. A insatisfatória realidade de nossas redes públicas, marcada pela instabilidade dos quadros profissionais – sendo essa apenas uma das facetas – torna o panorama desalentador. Percebi isso no contato com meus interlocutores e vi reativados sentimentos de desesperança do período em que também era trabalhadora de redes municipais de saúde. Às vezes resta a sensação de um eterno faz-de-conta, havendo a dificuldade de acreditar nas perspectivas de transformação. Que vias para a mudança poderiam ser vislumbradas diante dessa configuração? Penso que essa reflexão pode ser iluminada pela discussão em torno do sentido da política, empreendida por Arendt (2002a). Relacionando política e liberdade, ao tomar como referência a Grécia Clássica, a pensadora defende que o sentido da política é a liberdade, por mais estranho que isso possa nos parecer no mundo contemporâneo, especialmente quando nos lembramos dos regimes totalitários, uma expressão política que se tornou possível e concreta. O campo da política é o campo do agir humano. Nesse contexto, o agir é destacado como a mais propriamente humana das atividades da nossa existência. Para fundamentar esse ponto de vista, Arendt recorre à etimologia: agir deriva dos termos archein (do grego), que significa iniciar e comandar, ou seja, ser livre, e de agire (do latim), que quer dizer por em movimento, desencadear um processo. Pela característica primordial de começar algo novo, o agir humano pode disparar os mais diversos processos e configurações, dado não se ter a previsão de onde vai dar. Isso possibilita a ocorrência de milagres, segundo Arendt, não no sentido religioso, mas no âmbito da vida mesma – e por que não dizer “em sua imanência”, como caracterizaria Nietzsche? A expectativa de milagres – portanto, de mudanças de rotas, de redirecionamentos na vida – é algo totalmente possível na esfera política, que se refere por excelência à ação de humanos, entre humanos, com vistas ao bem-comum. Aqui considero que cabe uma referência tanto ao nível da macropolítica quanto da micropolítica, sendo que todos nós sofremos as reverberações das conformações que se instalam nos dois níveis e, em alguma medida, somos sempre responsáveis por elas.

91

Esse conto das rodas de conversa, contudo, abre margem primordialmente para duas outras discussões que considero fundamentais no contexto da atuação de equipes de saúde: a possibilidade de aprendizado a partir experiência dos outros e o respeito aos diferentes saberes. Quando falo de saberes, remeto-me não somente à perspectiva disciplinar, constituída no âmbito das organizações científicas e profissionais, cuja evolução tem se marcado por uma crescente especialização, mas também ao âmbito da experiência de vida de cada um e da cultura popular. Todos esses saberes estão necessariamente em jogo quando discutimos a atuação em saúde, sendo fundamental a valorização do saber das pessoas que recorrem aos serviços, como já suficientemente indicado por pensadores/militantes da Educação Popular em Saúde, a exemplo de Vasconcelos (1997; 1999). Certamente essas pessoas – “usuários” – são muito mais que meros receptáculos das prescrições dos profissionais: têm hipóteses e compreensões próprias a respeito de sua doença, seu sofrimento, sua vida; fazem apostas em relação às possibilidades de cuidado; carregam histórias e sabedoria de vida. Tudo isso precisaria ser considerado para o desenho de um projeto de cuidado. Entretanto, se tal universo é levado em conta ou não, trata-se de uma questão dependente dos modos de relação que são criados pelas e entre as pessoas nos diversos dispositivos de saúde, havendo uma interferência significativa do posicionamento dos profissionais. A roda de conversas pode ser compreendida na perspectiva de um encontro entre profissionais de saúde – os “cuidadores” – e usuários do SUS – os que recorrem ao sistema com o objetivo de buscar “cuidado”. Cabe questionar quando conseguiremos escapar às polaridades – heranças positivistas – que fundamentam e atravessam nossos pensamentos e atitudes, inclusive na área da saúde, como na percepção de que: um cuida e é dotado de um saber técnico e o outro é cuidado, sendo passivo e ignorante naquela esfera. Às vezes o “especialista” ignora até mesmo o “saber de si” que o sujeito – tido, assim, como objeto-passivo – carrega. Se esse é o modo de relacionamento predominante, estabelece-se uma relação totalmente assimétrica, em que um se sobrepõe ao outro. Segundo Machado e Lavrador (2009), esse tipo de relação impediria a ocorrência de um encontro, caracterizado por confluência, tensão, contrariedades, diferenças, porosidade, permeabilidade. Nesse contexto, “o cuidador seria o arauto da ciência enquanto o usuário seria portador da doença e da ignorância do senso comum” (p. 517). Acredito que essas são reflexões fundamentais no contexto da atenção à saúde. O conto revela a concretização de um processo de aprendizado na própria EqNASF, mediado pela Psi. Com o devido reconhecimento das características “agregadoras” da profissional, relacionadas a qualidades pessoais, empreendeu-se ali um aprendizado coletivo enquanto possibilidade real e concreta. Percebi, naquela situação, a disponibilidade dos vários envolvidos para ensinar e aprender com o outro, numa via de mão-dupla. A roda de conversas facilitada por Psi, que serviu como mote

92

para o aprendizado de outras formas de fazer um grupo, promoveu a interação entre os participantes, sem uma preocupação primordial com o repasse de informações. A principal característica que se destacou foi o reconhecimento genuíno da legitimidade do saber de cada um. Havendo essa abertura, ampliam-se as possibilidades de produção e invenção de saúde, compreendida como expansão de vida – das compreensões, das perspectivas, dos modos de ser e se posicionar no mundo. Nesse contexto, a roda é mais que uma metáfora, apresentando-se como um dispositivo para a construção coletiva, na medida em que viabiliza encontros entre as pessoas e, das afetações mútuas que dali emergem, novas configurações de pensamento sobre a vida e posicionamento no mundo podem surgir. A produção de saúde não remete a isso, demandando extrapolar prescrições de qualquer ordem? Como efeitos dos encontros, ampliação da vida como possibilidade. É nisso que o profissional de saúde precisaria investir. Não adianta fazer roda restringindo a circulação das falas, o que acontece quando se assume uma perspectiva transmissiva. Não é possível que o profissional saiba exatamente o que é melhor ao outro – porque, a rigor, ele não é o outro –, mas pode apontar outros caminhos, valorizando os diversos saberes que entram da discussão, em que se comunica e elabora experiência de vida. Penso estar aí a riqueza dos grupos, que pareceu se revelar na roda coordenada por Psi. É preciso estar aberto ao que o outro tem para dizer – que, inclusive, pode ser contrário ao que penso, ainda que eu seja profissional de saúde e tenha passado anos na faculdade em processo formativo. Processo formativo não se encerra jamais e a imprevisibilidade das situações da vida torna necessária uma abertura ao que cada um traz aos encontros. Interessante perceber que esse processo incluiu também os ACSs, que são indicados pelos interlocutores como atores fundamentais na APS, especialmente em virtude de sua função intermediária entre a população e os serviços de saúde. Essa percepção da importância do agente de saúde já fora indicada em trabalhos como o de Valla (2007), ao considerar a atuação desses profissionais no contexto da educação popular e saúde comunitária. Esses atores estão propriamente inseridos na dinâmica existencial dos territórios cobertos pelas equipes de saúde, promovendo articulações fundamentais ao propósito de fortalecer a atenção à saúde; contudo são trabalhadores que também demandam investimentos em processos formativos. A proposta de inserção das ACSs nas rodas de conversa funcionou como uma estratégia de aprendizado conjunto, sendo um modo de o NASF exercer a função de apoio, indicada por Campos & Domitti (2007). No caso específico, pareceu se tratar de uma espécie de suporte técnico-pedagógico que ocorreu pela via experiencial, implicando o fazer-junto como meio de o outro aprender outras “tecnologias relacionais” – ou tecnologias leves, como caracteriza Mehry (2002). Nesse sentido, a

93

perspectiva de apoio ganha outra roupagem, dado utilizar o próprio momento de encontro com a população, via alguma atividade desenvolvida, como lócus para o aprendizado. O aprendizado que aconteceu na própria EqNASF com o mote da tecnologia das rodas de conversas, revelado por seus integrantes, indica a viabilidade de processos coletivos de trocas e compartilhamento de responsabilidades, que são assumidos pelos próprios profissionais. No grupo, havia possibilidade de alargamento da atuação da equipe, por meio da disponibilidade de partilhar experiências e modos de fazer. Pela experiência contada, penso ter ficado realçada a força do compartilhamento de experiências e tecnologias em saúde, que envolve a grandeza da disponibilidade de comunicar uma experiência considerada exitosa e a igualmente preciosa disponibilidade de escutar/valorizar a experiência do outro. Essas me parecem “dicas” importantes para o trabalho em equipe. Assim, a discussão em torno das rodas de conversa proporcionou ao grupo um aprendizado mútuo, revelandose uma abertura para aprender com a experiência do outro.

∞ Segundo Ato – Processo Formativo: possibilidades de entrelaçamento de saber e sabor?

U

m dos aspectos a que fiquei mais atenta durante minha imersão em campo foi ao processo formativo das equipes NASF. Em um dos municípios, deparei-me com a preocupação da Gestão

com um programa de formação para o NASF, que ia sendo montado com base nas necessidades identificadas – geralmente pelos próprios Gestores – como sendo fundamentais ao exercício profissional desse dispositivo. Eram discutidas temáticas próprias à intervenção em saúde, como, por exemplo, o trabalho em equipe e a noção de território. Os momentos de formação eram intercalados com as reuniões de equipe. Participei algumas vezes desse espaço e vi as pessoas muito pouco participativas, como se aquilo não tivesse apelo para elas. Mais uma vez, fiquei pensativa em relação a todo aquele processo e me perguntava: “Por que isso não engrena? O que não está fluindo bem?”. Naquele ano, houve uma série de oficinas, promovidas pelo MS, em articulação com as Secretarias Estaduais de Saúde, voltadas às ações de combate da mortalidade infantil (MI). Pude participar de partes dessas Oficinas nos dois municípios em que estive inserida e percebi um anseio expressivo dos profissionais do NASF acerca de esclarecimentos e discussões sobre o próprio dispositivo NASF. Para as Oficinas, foram convidados principalmente profissionais “nasfianos” e da Estratégia Saúde da Família, congregando diversos municípios das Regionais de Saúde a que pertenciam.

94

Quando ocorreu a oficina que envolveu o município em que vinha acontecendo um processo formativo do NASF durante minha imersão em campo, um fenômeno interessante ganhou destaque: a Oficina (que durou três dias) promoveu uma aproximação impressionante entre os profissionais do NASF. Eu já estava em campo naquele cenário há pouco mais de dois meses e conheci ali uma EqNASF muito mais leve e expansiva: parecia outra, na verdade. Formaram-se turmas diversas e a equipe de profissionais do município – sendo já volumosa – juntou-se à de outro município do sertão do Submédio São Francisco, gerando uma mistura bem divertida. Fui convidada a participar da Oficina pela Coordenação do NASF, que sempre se mostrou muito aberta à minha proposta de pesquisa. O modo de organização da Oficina baseou-se no envolvimento e participação ativa dos integrantes, mesclando momentos de apresentação de conteúdo e realização de atividades com base na realidade das equipes. Como o foco era MI, as atividades geralmente se voltavam a essa temática. Houve um exercício, por exemplo, em que as equipes discutiram um caso envolvendo MI, tendo que identificar os problemas e discutir a rede de suporte para a família, com base nos recursos locais. Foi muito interessante esse formato, que extrapolava o mero repasse de informações. Houve também espaço para fortalecimento da compreensão dos profissionais sobre o que se espera do NASF e para troca das experiências de trabalho: isso aconteceu de modo muito tranqüilo e pude perceber (e reafirmar essa percepção a partir dos relatos dos meus interlocutores) que tinha sido possível aprender algo mais da função e atuação possível do NASF. O interessante é que sempre se utilizava uma estratégia que promovia alguma reflexão acerca do assunto a ser discutido. Ao longo da oficina, fui sentindo a turma se entrosar cada vez mais. O processo de aprendizagem foi acontecendo com sabor e os profissionais pareciam estar sentindo o gosto bom daquilo. Posteriormente, muitos interlocutores me indicaram também ter percebido esse movimento e tentavam até justificar: Psi Canela: Porque desmitificou a história de que a gente tinha que resolver as coisas, que a gente tinha que saber tudo de saúde publica! Porque diziam pra gente: “Ah, tem que estar no posto e resolver os problemas da unidade!”. (...) Acho que o que funcionou, o que marcou nessa oficina foi que elas chegaram e começaram a trazer a coisa como simples, do dia-a-dia, que você pode trocar com o outro, aprender...

Ao final da Oficina, todos revelaram satisfação com o processo vivido, relatando estarem saindo acrescidos de informação e experiência. Realmente o processo formativo é um elemento essencial no aprimoramento do trabalho em saúde (e, provavelmente, em todos os âmbitos), mas é fundamental cuidar dos modos de viabilizar isso. Também eu gostei muito de ter participado e saí com impressões diversas, a ponto de considerar este um bom mote para um conto! No encontro final com a equipe, antes de encerrar o campo, trouxe esse assunto do “fenômeno Oficina” à baila. Revelei ter ficado impressionada com a leveza mostrada pelo grupo naquele outro espaço, coisa inexistente nas reuniões gerais semanais. O grupo sintonizou totalmente com essa

95

percepção e riu bastante. EF Açafrão chegou a dizer que o grupo “saiu do armário” na Oficina. EF Noz-Moscada falou dos processos de ruptura vividos pelo grupo – como as mudanças de coordenação –, que acabavam prejudicando o processo de integração dos profissionais. Ele lembra uma reunião, que foi inclusive conduzida por estagiárias de Psicologia, na qual a coordenação do NASF não pôde estar presente: naquele contexto a equipe estava descontraída e pôde brincar e falar de si. “Houve uma soltura no grupo!”, enfatizou EF Noz-Moscasda. Pegando a deixa, Farm Canela e Psi Coentro também se expressaram, trazendo pontos de vista relacionados aos diferentes modos de coordenação. Ficou explícito, pelo que foi dito, que o grupo se sentia tolhido, preso, controlado, avaliado nas reuniões gerais. Entretanto, foi interessante a percepção revelada por EF Canela e Farm Noz-Moscada de que a relação com a coordenação era um processo construído, indicando, assim, a possibilidade de mudança na relação. Uma sutileza a ser evidenciada aqui é que os momentos destinados à formação ocorriam no contexto das reuniões de equipe e talvez não fosse possível ao grupo perceber uma diferença entre essas atividades. A intenção da Coordenação era de que houvesse, sim, uma diferenciação. Ainda no encontro final, discutindo as repercussões da oficina, Psi Açafrão destacou suas impressões sobre a dinâmica do grupo ao longo da história e a importância da coordenação. Mas queixou-se de que nunca houve uma atenção à construção de laços na equipe, dando um destaque ao “fenômeno” da Oficina: Psi Açafrão: Mas eu sinto que nunca realmente teve um momento para a gente sentar, pra se conhecer. Sempre foi muito assim: informação... vai ser assim, vai ser isso, vai ser... E ninguém parava pra olhar pro lado, pra saber quem era o outro. Tinham pessoas que não me conheciam, que achavam que eu era de um jeito... assim como você também acha que o outro... (...) Mas acho que foi o encontro em si... ninguém tava ali armado pra receber uma notícia, ninguém tava ali armado pra receber uma cobrança, ninguém tava ali, eu acho, pra ser avaliado... Então tava todo mundo ali disposto a participar de um momento em conjunto... Isso abriu as portas! Acho que isso fez toda a diferença.

Ao longo do tempo em que acompanhei aquele grupo, várias solicitações de trabalho com as EqSF foram surgindo, muitas vezes a partir de demandas do MS, que eram recebidas e repassadas verticalmente, como a de implantação da Política de Saúde do Homem. De repente, surgiu a exigência de que cada EqNASF discutisse com as EqSFs sob sua responsabilidade o tema saúde do homem. O que percebi foi que os próprios profissionais do NASF tinham dificuldade nessa discussão, que de certo modo era nova para todo mundo. Não percebi esse tema sendo foco no processo formativo, mas era cobrada a realização das oficinas – pelas EqNASFs – com as EqSF. Participei de uma dessas oficinas, que acabou assumindo um caráter muito transmissivo, sem muitos debates. A proposta era discutir a temática com a EqSF e já pensar estratégias para inserir mais efetivamente o cuidado à saúde do homem em sua dinâmica. De modo geral, na tentativa de realização dessa “tarefa”, o grupo se deparou com muitas dificuldades na relação com as EqSFs, destacando-se a percepção de que faltava interesse da equipe no assunto, muitas vezes refletida no esquecimento das

96

reuniões marcadas. Vi frequentemente a recorrência à culpabilização das EqSF pelo insucesso. De modo geral, houve vários relatos indicando que a discussão não tinha fluído como esperado. Uma temática introduzida no processo formativo proposto, numa dada reunião, foi a territorialização, que acabou virando outra demanda às EqNASF. Em linhas gerais, a discussão se desdobrou numa tarefa: cada EqNASF deveria realizar um processo de reconhecimento aprofundado da área coberta de uma das EqSF sob sua responsabilidade, destacando as condições de vida, vulnerabilidades e os principais problemas de doença enfrentados pela população adscrita, além de desenhar um breve planejamento. Na reunião geral da semana seguinte, o tema territorialização foi abordado novamente. Senti que esse assunto vinha causando algum desconforto e tentava me apropriar dos motivos, embora tivesse suspeitas, que depois se confirmaram – relacionavam-se, sobretudo, com o caráter autoritário na definição dos territórios a serem “cartografados”. Eu andava meio incomodada com essa tarefa, ou melhor, pelo modo como ela tinha sido definida, não apenas por considerá-la complexa, mas, sobretudo, por entender que tal processo deveria ser pactuado com a Coordenação da Atenção Primária em Saúde da SMS, não devendo ficar sob responsabilidade exclusiva ou prioritária do NASF. Mapear o território é algo da responsabilidade de cada EqSF, o que não significa que o NASF não possa apoiar nesse processo... A reunião foi facilitada por uma componente do Núcleo de Educação e Saúde da SMS, que já vinha coordenando a discussão de algumas temáticas no processo formativo. Profissionais do NASF começaram a falar de como andavam as articulações para o processo de territorialização na USFs. Alguns não pareciam satisfeitos com a escolha das USFs. A Coordenação do NASF as definiu de acordo com critérios que só mais tarde foram esclarecidos. Senti uma tensão no ar. Percebi os profissionais muito quietos diante de uma tarefa, a meu ver, gigantesca. Depois fiquei sabendo que tinha ocorrido um momento muito delicado nessa definição das USFs a serem mapeadas, que não presenciei, numa reunião anterior: diante da discordância de uma EqNASF em relação à USF indicada para o mapeamento, houve uma reação de caráter impositivo da Coordenação. Em dado momento, falei da minha percepção sobre a complexidade de um processo de mapeamento, resgatando experiências que tinha tido na área de Saúde Mental. Falamos das divisões confusas das áreas e numeração (quando existe) das famílias nos bairros. Mas percebi que o propósito de levar adiante o mapeamento estava firmemente definido e assumido: não estava para ser questionado! No encontro final com a equipe, o aspecto da imposição de tarefas foi debatido. Puxei, por exemplo, a participação do NASF no mutirão do Programa Bolsa-Família. Foi interessante surgir um elogio à colaboração do NASF – que praticamente aconteceu a partir de uma coação –, considerando

97

que a demanda havia gerado muito incômodo no grupo. Retomei minhas lembranças de como tinha sido questionada aquela participação, de como o pedido não tinha ficado claro, de como tinha tido pouca discussão a respeito da proposta. Encadeei com as oficinas de Saúde do Homem e, de novo, a impressão de que aquela demanda vinha atropelando todo mundo. Então, alguém expressa o desconforto: Psi Coentro: Tava vindo goela abaixo! Isso que foi difícil! Aquela reunião do Bolsa Família foi uma reunião muito difícil, porque veio goela abaixo! Eu lembro que eu questionei e a pessoa que me respondeu: “Não, o conhecimento do Bolsa Família chegou agora para vocês.” (...) Foi muito estranho: eu fui pesar criança, medir criança, organizar fila, organizar gente entrando na unidade... Foi o que fiz, assim... (...) Mas não me preencheu! Se deu resultado aí, que bom, mas....

Aí aproveitei para falar da definição das USFs para mapeamento, como algo imposto, apenas citando. Ninguém se contrapôs tampouco reforçou. Entretanto, pareciam concordar com esse aspecto. Insisti em alguns pontos, como a necessidade de escapar do automatismo no trabalho em saúde, o que significa que todos precisam se sentir construindo as ações. De novo Psi Coentro se posicionou e com seu depoimento, encerro esse conto: Psi Coentro: (...) Eu senti falta de uma postura... de uma postura não... Assim, eu acho que todo mundo... ninguém sabe aqui... Não é porque eu tô aqui há mais tempo que, não sei que... A gente não sabe ainda... Tá construindo nesse processo... Você tá trazendo uma coisa super interessante... falar... não utilizar o datashow... quer dizer, a gente avançou tanto em tecnologia, mas ao mesmo tempo a gente tem que voltar, olhar pra trás e dizer: “Não, a gente tem que utilizar o que a gente talvez nunca aprendeu a fazer, que é nossa linguagem mesmo... aprender a conversar, no olho-a-olho!”, como você falou... Às vezes a postura que a gente sente das Gestões com a gente é que a gente tá sendo realmente avaliado e que eles sabem e nós não sabemos. É muito ruim essa sensação... vamos dizer assim... de que eles sabem e então empurram pra gente... “Vocês têm que fazer isso porque esse é um caminho!”. E nem a gente, que está aqui trilhando, conseguir enxergar isso?... Como pode alguém vir e dizer assim: “O cenário é esse!”. É muito frustrante mesmo. Acho que algo em relação à motivação no trabalho, é muito baixo... Se tiver um questionário e aplicar aqui, todo mundo vai detonar!

*** Inicio a discussão desse conto destacando um fio: a tendência dos profissionais de culpabilização dos “outros” em relação ao insucesso de algumas propostas interventivas. Penso que isso se relaciona de algum modo com processo formativo. Fico meio resistente ao termo “formativo”, porque me lembra formatação, enrijecimento, rigidez. Mas recorro a brincadeira fonética para marcar a diferença entre forma (com ô) – um molde, um modelo, com vistas a um processo de padronização – e forma (com ó) – como um modo possível, dentre vários, valorizando-se um contínuo movimento de transformação. Penso em processo formativo como um alargamento continuado das possibilidades de atuação a partir da experimentação de diversos modos. Assim, um processo formativo – seja em que área for – nunca pode ser dado por encerrado, tendo em vista que há sempre algo que se pode aprender para a intervenção, ainda mais na área da promoção de saúde. Por sua própria condição, processo formativo remete o aprendiz a um processo contínuo de reflexão em torno do que faz ou pretende fazer. Cabe esclarecer que reflexão aqui não é tomada num

98

referencial baseado no dualismo razão-emoção. Reflexão remete a um processo exploratório e compreensivo das afetações que surgem a partir dos encontros, na medida em que se põe a experiência sob investigação. Reflexão tem a ver, portanto, com pensamento-afetação, tomando-se que corpo e mente são uma só coisa, como destaca Espinosa (2009). Seguindo esse rastro compreensivo, culpabilizar os outros costuma reportar a uma ausência de reflexão sobre suas próprias ações e o modo como se relaciona no mundo, consistindo, em alguma medida, em desresponsabilização. Torna-se, assim, a via mais fácil e rápida para justificar o insucesso de alguma intervenção. O interessante, no caso das EqNASF, é que o principal “alvo” das intervenções são outros profissionais de saúde e, aí, a situação assume outra configuração. São profissionais cuja principal função é dar suporte a profissionais de outras equipes – as EqSF –, apesar de também poderem assumir atividades diretas com os moradores dos territórios de abrangência. Como indicado por Andrade (2007), nas relações dos profissionais de saúde com a população, não são raros posicionamentos que enfatizam o “saber especialista”, revelando relações heterônomas, com uma desvalorização do saber popular, sob o respaldo do know-how técnico-científico, tomado como diapasão para arbitrar um modelo ideal de saúde – e, por que não dizer, determinar “comportamentos saudáveis”. A autora indica o predomínio de um verdadeiro processo de epistemicídio ao longo da história das práticas em saúde no Brasil, por meio da desqualificação ou extermínio de outros saberes que não estejam sob a batuta dos saberes/poderes especialistas, reforçados muitas vezes por uma perspectiva moralizante do agir humano. Entretanto, vislumbra vias de redirecionamento disso no contexto de consolidação do SUS, que propõe a construção coletiva de práticas em saúde. O mais curioso de sua análise – que, embora enfoque a prática de psicólogos no contexto do SUS, penso poder ser estendida a outras categorias profissionais da saúde – é que ela escapa à indicação comum de outros estudos de que haveria um despreparo relacionado com a ausência de conteúdos teórico-práticos específicos a essa outra realidade; a sua aposta é de que existe, pelo contrário, um excesso de conteúdos disciplinares acadêmicos (Andrade, 2007). A partir dessa excessiva preocupação com conteúdos, enfatiza-se um processo formativo de conformação de posturas disciplinares ou especialistas, sem uma abertura para o aspecto relacional – em que nem tudo é ensinável ou transmissível –, devendo-se estimular a construção permanente de sentido ético-político ao que se faz. Será fundamental, portanto, que os profissionais de saúde possam experimentar diferentes modos de relação no contato com os outros de que pretendem cuidar, reconhecendo e valorizando efetivamente a alteridade e escapando a modelos universais de normalidade, que instituem, consequentemente, tabelas de correção e/ou receituários para comportamentos e modos de ser.

99

Retomando a situação específica que eu tentava analisar, penso em como fica essa disposição de forças – no caso, saberes/poderes – quando as relações se dão entre profissionais de saúde? Para fazer jus à complexidade dessa situação, opto por adicionar mais pimenta no grosso caldo: como fica a relação dessas equipes de saúde – dessa vez, foco especificamente as EqNASF –, que precisam apoiar outras equipes (EqSF), com a sua coordenação/gerência, que acabou entrando também no conto? Essa correlação de forças corresponde aos jogos de saber/poder na relação entre as pessoas. Certamente será necessário extrapolar o viés da culpabilização/vitimização para compreender essa dinâmica – justificativa ou movimento que se apresentou inúmeras vezes na minha inserção em campo e que trouxe no conto apenas exemplarmente – na perspectiva de vislumbrar brechas possíveis para a promoção de práticas coletivas e integrais de saúde. Como verso e reverso, culpabilização e vitimização revelam-se como faces de uma mesma figura. Ora o outro é culpado, ora me ponho como vítima, mas a freqüência é uma só: o enfraquecimento da própria potência de ação – ou conatus, na linguagem espinosana. Dito de outro modo, está aí implicada a concepção do outro (culpabilização) ou de si (vitimização) pela falta, pela ausência, pelo que não há. Por essa via, perdem-se importantes oportunidades de composição de ação, de ampliação da potência singular dos seres, de expansão de vida, ou seja, de produção de saúde. O que predomina, assim, é a estagnação, pois se trata de um movimento que estanca qualquer possibilidade

de

verdadeiros

encontros,

caracterizados

pela

afirmação

de

diversos

saberes/poderes/dizeres/fazeres, pela via do reconhecimento da alteridade. As brechas, portanto, só poderiam ser encontradas pela abertura à alteridade, no contexto dos encontros entre as pessoas. Essas reflexões acabaram por me remeter à metáfora do espelhamento, utilizada por Bacchi e Morato (2009), quando discutem a supervisão de apoio psicológico a educadores de rua e os diferentes lugares ocupados pelo supervisor e pelos profissionais a cada momento nessa trama de relações. Ressaltando a figura do supervisor, as autoras indicam que ele age como o narrador de um conto, sendo sua experiência o fio condutor, unindo pedaços da teia dispersa que se revela nos encontros com os educadores. Vai se tecendo um processo de espelhamentos mútuos e diversos, envolvendo a atuação dos profissionais de educação narrada no contexto da supervisão, que é amalgamada à experiência do supervisor, ocorrendo um processo coletivo infindável de construção de sentido, cujas reverberações atingirão a prática desses educadores ao retornarem a campo. Cabe retomar aqui a relação entre narração e experiência, tal como defendida por Benjamin (1996): podem acontecer nesses espaços processos intensos de elaboração de experiência. Momentos de supervisão assim compreendidos assumem um viés formativo, justificando-se, assim, a recorrência a isto neste ponto do processo interpretativo. De acordo com MORATO et al (1999):

100

Gerar condições de lugar e espaço para colocar questionamentos é do que mais necessitamos no mundo atual, repleto de situações de crise e desamparo: promover encontros onde experiências possam ser compartilhadas e interrogações possam ser formuladas ou reformuladas. É nessa dimensão que a atividade de supervisão da prática de um ofício se apresenta como uma dessas condições possíveis para redescobrir a experiência de viver a experiência na experiência. (...) ... a ocasião para elaborar a experiência vivida na prática de um ofício cria aberturas para ajudar o profissional para, a partir daquilo que faz e como faz, compreender sua atividade na inserção em contexto de mundo mais amplo. (MORATO et al, 1999, p. 220)

Claro que se trata aqui de outro contexto, porém vejo o paralelo como algo possível. Esclareço: a tarefa das EqNASF de propor atividades para as EqSF, visando a um processo formativo daquelas, correspondia à necessidade da Coordenação do NASF de propor atividades no contexto do processo formativo da EqNASF, inclusive com alinhamento de temáticas, muitas vezes; da mesma forma, o interesse buscado ou desejado pelas EqNASF nas EqSF em relação às atividades propostas se assemelhava ao interesse buscado ou desejado pela Coordenação em relação às EqNASF no momentos do processo formativo apresentado. Em se tratando das propostas de processo formativo, havia como que um espelhamento dos modos de relação das EqSFs com as EqNASFs no binômio EqNASF-Coordenação NASF. Recorro à metáfora dos espelhos, pensando na multiplicação de imagens e afetações, a partir do momento em que os profissionais do NASF transitam da condição de facilitadores de aprendizagem de práticas em saúde junto às EqSF para a de aprendizes no processo formativo proposto pela Coordenação. Que enlaces e desenlaces? Que reflexões – dessa vez como espelhamentos – acontecem nesse trânsito? Para mim, era patente que aconteciam, mas não havia indicação de reconhecimento disso pelos que estavam diretamente envolvidos. Isso não parecia ser sequer percebido para poder ser posto sob investigação. Atenta ao que se pode aprender a partir do que foi experimentado com as EqNASFs, vislumbro frestas para a incrementação de espaços que já são garantidos nos cenários pesquisados, a exemplo das reuniões voltadas ao processo formativo. Focando especificamente estas reuniões, o aspecto ora em destaque, questiono: onde estava o furo? Por que não engatavam? Certamente não se tratava apenas de uma questão de “consciência” em relação à colaboração possível dos profissionais. Penso ser necessário tematizar, sobretudo, os modos de condução dos momentos voltados ao processo formativo, não devendo se perder de vista, entretanto, o atravessamento de muitos outros fatores, em respeito à complexidade da situação. A cegueira em relação ao jogo de espelhos que se estabelecia – e não era tomado como matéria-prima para elaboração da experiência de trabalho – era o que me incomodava e só nesse momento da análise consegui nomear. Daí a fertilidade de recorrer ao fenômeno do espelhamento como via para compreensão e mesmo redirecionamento de modos de relação.

101

Arrisco avaliar que a Coordenação do NASF, assumindo um viés muito mais tecnicista e fiscalizador em relação ao cumprimento de tarefas, buscando visibilidade do NASF, teria dificuldade de atentar a esse fenômeno, embora eu acredite na viabilidade de um gerenciamento que concilie a consideração de vários aspectos, inclusive este: a necessidade de garantir os espaços de reflexão em torno do que se faz, indo além do transmissivo e impositivo. Pontuo que a discussão em torno dos modos de coordenar será disparada a partir de outro conto, entretanto. Pertence aqui uma sinalização da necessidade de uma atenção/sensibilidade da figura que assume a Coordenação a processos formativos que se sintonizem com as demandas e ponham em investigação os modos de fazer dos profissionais, de maneira que esses se percebam na rede, em sua prática cotidiana. No jogo de espelhos, os profissionais do NASF também precisariam atentar a isso quando na relação com as EqSFs. Pela experimentação, descobre-se o que não agrada, com respeito às singularidades das pessoas e grupos. Sobre a verticalização – ou autoritarismo – da decisão e imposição de temas/estratégias para o processo formativo, penso que possivelmente nisso resida o aspecto central desse conto: o delineamento de um processo formativo deveria ser desenhado e garantido em significativa medida a partir da compreensão das solicitações do grupo. Quando não há espaço para negociação genuína – de temas, estratégias, planejamento – o risco de perda do gosto ao que se faz é imenso. Considero importante frisar que essa verticalização já vem, muitas vezes, do próprio MS, na definição de suas ações programáticas. Porventura esteja nisso alguma chave para a compreensão do desinteresse que percebia nos profissionais nas reuniões – não apenas nas voltadas ao processo formativo... Quiçá esteja aí uma via para a compreensão do desinteresse das EqSF em relação às propostas das EqNASF... De novo o jogo de espelhos na ativa, como via de construção de compreensão! Com o exemplo na fala de Psi Coentro sobre a imposição para a participação do NASF no mutirão do Programa Bolsa Família, reforça-se o ponto axial: a verticalização do modo de gestão. Os profissionais não são convidados a compor as ações: quase viram meros reprodutores, tendo que dar conta de tarefas. Os que estão efetivamente envolvidos com a prática cotidiana nem sempre são vistos como os que teriam alguma autoridade para opinar – ou ao menos co-definir – possibilidades de recondução das práticas. Muitas vezes percebi esse modo autoritário ser reproduzido na relação com as EqSF, sem que os profissionais pudessem se dar conta. Por outro lado, aconteceu com frequência de os profissionais irem a campo sem ter clareza do que deveriam fazer ou propor, sentindo-se extremamente inseguros ou chateados com a imposição da tarefa. Não raramente acabavam recorrendo ao datashow, apresentando coisas, num elogio prático à pedagogia transmissiva ou bancária, tão criticada por Freire (1996).

102

Desse modo, pergunto se haveria espaço para construção de gosto e cultivo de prazer pelo trabalho quando inexiste a valorização da potência singular daqueles seres, que acabam muitas vezes tendo práticas automatizadas e desidratadas. Contudo, é preciso ter cuidado para não centrar toda a análise nesse aspecto. A genealogia das práticas das EqNASFs pesquisadas apontou para uma diversidade de modos de atuar, de graus de implicação, de desejos, de valores e, portanto, de leituras/percepções, que precisa ser constantemente considerada. Sobre a leveza da Oficina relatada no conto, penso que o que aconteceu foi uma espécie de relaxamento, de descontração. É isso! Acho que as reuniões gerais semanais – nas quais se inseriam os momentos de processo formativo – tinham um caráter meio tenso, em que as pessoas pareciam se sentir pouco à vontade, embora todo o esforço aparente da Coordenação NASF fosse no sentido de estimular a fala. O modo como os encontros aconteceram na tal Oficina foi promotor de leveza e de envolvimento, estimulando um processo de aprendizagem significativa, pois se recorreu à experiência de cada um. Das impressões que me marcaram a partir do que vivi na Oficina, destacarei algumas que parecem importar a essa avaliação: a turma do NASF que eu vinha acompanhando mostrou-se de modo muito descontraído e leve, de maneira inédita para mim (e, pelo que pude ouvir deles próprios em relatos informais, inédita para eles também!); a oficina teve um formato propiciador de trocas e aprendizagens: discussões de caso, construção de estratégias, reflexão sobre conceitos e outros; houve diversos relatos de aprendizado e aproximação com a proposta NASF a partir da experiência da oficina; foi interessante a participação de ACS, enfermeira, médico e dentista, profissionais das EqSF, tendo alguns revelado não entender, até ali, o que era NASF, de forma que a oficina parece ter viabilizado uma aproximação efetiva da proposta. Possivelmente a minha impressão mais forte tenha sido o destaque à importância da leveza no processo de produção de sentido sobre o que se faz. Sinto necessidade de clarear o que chamo de leveza: talvez essa expressão diga de relações mais fluidas, de tensão relativizada (não ausente), de um sentir-se à vontade para se expor. Apenas por meio da exposição ao outro, pela ousadia em se mostrar, em dizer o que se sente e pensa, um processo de aprendizagem pode ocorrer, como aponta Serres (1993). Esse parece ser um dos mais difíceis exercícios no contexto dos trabalhos em equipe. Criou-se, então, um contraste evidente do vivido na tal Oficina com o experimentado no processo formativo então em curso naquele município. Uma aprendizagem com sentido, com gosto, com prazer tinha sido saboreada. De acordo com Houaiss, Villar & Franco (2009), um dos significados do verbo saber, como transitivo indireto e intransitivo, é ter gosto, sabor de. Quão frequentemente há uma preocupação de que o processo de aprender/saber tenha gosto de algo, de preferência algo que seja delicioso? É necessário que se criem oportunidades para que os temperos de cada um se

103

apresentem nas rodas, nos grupos, nas reuniões. Pela participação e responsabilidade de todos – coisas construídas e não definidas por decretos – há maiores chances de o processo ser degustado coletivamente. Talvez outra faceta da referida e fugidia leveza em processos formativos se relacione com a possibilidade vislumbrada de construção de um sentimento de pertencimento a um grupo NASF: mais amplamente, do país, e, mais especificamente, daquele município. Parece que, naquele contexto, os profissionais tiveram a chance de se perceberem como “iguais” e “diferentes”, num processo de aproximação e entrosamento que se revelou possível e satisfatório. O grande desafio seria conseguir valorizar e aprofundá-lo no cotidiano de trabalho. De qualquer modo, a experimentação tinha ocorrido e poderia ser tomada como um motor para a ação – que, por si só, já implica disparar/iniciar processos, como defende Arendt (2001).

∞ Terceiro Ato – O “terceiro olho”: as reverberações da chegada de estrangeiros

E

nquanto eu mergulhava no campo do doutorado, repercutiam em meu pensamento várias reflexões feitas no contexto de minha pregressa prática profissional em redes de saúde e,

particularmente, na construção de minha dissertação de mestrado, em que discuti o sentido que equipes de saúde davam à ação nos territórios – e ali estavam profissionais de EqSF, de Centros de Atenção Psicossocial e gestores, no contexto de um município agora distante. Principalmente a dicotomia entre ação proposta e ação real era uma temática reiterada: isso parecia vir como uma reação em cadeia, desde a proposição de políticas até a prescrição de projetos terapêuticos. Nesse meio, destacava-se a função de gestão, que penso dever ser assumida por todos, na respectiva medida. Pensava, por exemplo, na ferramenta do Projeto Terapêutico Singular, também sacramentada no Caderno da Atenção Básica sobre o NASF, lançado em 2010. Em relação àquele grupo de profissionais, essa palavra-ferramenta estava na boca de todos, particularmente dos que tinham tido a chance de participar de alguns projetos no contexto do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde – PET-Saúde38, em parceria com a universidade, com o qual tenho significativa aproximação. Relacionada a isso, porém mais antiga e conhecida, era a ferramenta dos estudos de caso. Em minhas

O PET-Saúde constitui uma iniciativa dos Ministérios da Saúde e da Educação, que se configura como importante estratégia de reorientação da formação do profissional de saúde, envolvendo a constituição de grupos de aprendizagem tutorial em diversos contextos das redes de serviços do SUS, com a participação de professores, profissionais de saúde e estudantes, estando em vigor no país desde 2009.

38

104

conversas com os profissionais e nas reuniões de que participei, costumeiramente era reconhecida a importância de utilização de tais dispositivos. Mas não era isso que eu via acontecer na prática. Não via os profissionais se lançando na utilização-experimentação dessas e outras ferramentas com frequência, embora reconhecessem sua fertilidade. Que pistas para a compreensão desse fenômeno se revelariam? Algumas situações vividas me fizeram perceber que recursos como a discussão de caso pareciam ser usados mais sistematicamente quando havia a provocação de alguém “de fora”, que reforçava a importância de algo que o grupo já sabia – e mesmo defendia – mas não conseguia implementar: esse “estrangeiro” poderia ser um gestor, um facilitador de aprendizagem, um pesquisador... Naquele ano, havia um “apoiador institucional” indo mensalmente ao município, para dar um suporte na implantação de um projeto de gestão do cuidado no contexto da Atenção Básica. Penso que por compreender a posição estratégia do NASF na rede, ele se dispôs a se reunir com o grupo a cada vez que estivesse na cidade, para ajudar no aprimoramento do processo de trabalho das equipes. Participei de alguns desses momentos e pude claramente identificar a riqueza do que ocorria ali, além de perceber as reverberações no grupo ao longo de diversas conversas. Em um dos primeiros desses encontros, um caso foi levado para discussão, a pedido do apoiador. O caso serviria de mote à discussão do processo de trabalho da EqNASF, tendo ficado combinado que seria apresentado pelas psicólogas. Até o dia da discussão, o grupo não tinha conseguido se organizar para preparar coletivamente o caso, que acabou sendo inédito para alguns. Desse encontro, eu não pude participar; entretanto as repercussões foram tão intensas, que me chegaram por meio de várias conversas individuais com os profissionais bem como via supervisão de estágio – já que eu orientava uma estudante de Psicologia em Estágio Profissionalizante no NASF, na época, que participou dessa roda. O apoiador questiononou o grupo no que se refere a sua dinâmica de trabalho, que não comportava uma discussão sistemática de situações/casos/problemas. Eu percebia que a equipe estava em busca dessa maior organização do processo de trabalho, estando num ponto em que percebia ser preciso dar um salto na construção conjunta do NASF e de suas estratégias... Percebi que o encontro com o apoiador serviu como uma baita provocação; contudo, foi compreendido de formas diferentes pelos profissionais: alguns acharam que tinha havido um malentendido a ser esclarecido, outros concluíram que o ocorrido revelara um modo de o NASF funcionar – marcado pela fragmentação – e que as ponderações dele tinham sido fundamentais à equipe. Tive chance de escutar compreensões diversas: AS Cravo-da-India: Psi Orégano chegou com o caso. No máximo quem teve acesso foram as outras psicólogas, porque ela mandou por email. Mas Psi Cravo-da-India não teve! Foi aqui mesmo, antes da reunião. E a gente, das outras categorias, nem conhecia. Então o caso foi apresentado e ali começou uma discussão. Mas, como AS Orégano disse, teve esses atropelos, o próprio pessoal do grupo... O que tinha sido discutido na época em que o

105

caso apareceu não foi passado para o grupão. (...) Não sei como ficou o entendimento de (apoiador)... Se ele tá pensando que a gente discutiu aqui e levou para ele daquela forma, ele tá vendo o NASF lá embaixo! Se ele souber realmente que o caso foi discutido anteriormente no Distrito e, ali, muita gente nem sabia, mas que estavam vendo o caso pela primeira vez, mas que colocou sua opinião... Agora mesmo eu tô sabendo que esse caso foi discutido no PET porque vc está falando... Eu vi o caso naquele dia pela primeira vez! Realmente ficou... Não sei qual foi a percepção dele do grupão, porque foi horrível! (...) Eu queria que isso fosse esclarecido com o apoiador: “Olha, o caso não foi socializado com o grupão!”. Porque ele começou a perguntar a pessoas que nem sabiam do caso e a pessoa ficava perdida...

*** Nutri Orégano: Acho que era o primeiro caso e a gente se sentiu um pouco... Porque eram muitos questionamentos, ele fez muitos questionamentos: como é que vai ser isso e aquilo outro... A gente ainda tentou responder, mas não era bem aquilo que ele queria escutar. Mas também não concluiu essa discussão, ficou pra próxima reunião dele. Mas é muito bom. É como diz a história: quem tá por fora da situação vê melhor. Porque às vezes a gente tá por dentro e se sensibiliza mesmo como a equipe... E ele orientou que não, que a gente tem que sensibilizar diferente pra justamente a gente andar e dar alguma resolutividade. Porque se tiver tudo o mesmo olhar, vai estar olhando tudo pra mesma situação. Então ele orientou a gente a estar vendo com um olhar diferenciado. (...) Foi a primeira vez que a equipe toda parou para discutir um caso. Agora, entre as mini equipes no NASF, a gente discute, sim. Psi Orégano chega pra mim: “Olhe, eu tenho um caso assim, assim, assim... Tá acontecendo isso...”. Então a gente discute qual a melhor forma de contribuir, qual o apoio que a gente pode dar. A gente, entre NASF, discute, mas nunca aconteceu de isso ser no grupão, todos os NASF juntos, a discussão de caso junto.

*** Psi Mostarda: (...) Eu acho que é isso: a gente planeja, a gente vai ter algum tipo de vitória. Agora se a gente não planeja... Pense na mancada quando a gente viu (o apoiador)! Naquele dia a gente não fez nada, nada! Eu não sei nada! E aquilo que eu tive há quase 20 anos atrás, que era de planejar, o porquê, as metas, esse caso como é que eu devo fazer, qual é o foco do caso, aquilo tudo veio na minha mente... (...) E o pano caiu! Eu me senti mal! Eu me senti assim “Meu Deus do céu, que vergonha!”. Como é que realmente eu vou cuidar do caso, quais são as metas que eu tenho que ver com a minha equipe, como está o cuidado, como que eu chego lá, sento numa mesa e “Manda entrar!”, você entendeu? Tem que ser toda uma coisa... Então, ele tá conseguindo, me acordar, acordar dentro de mim aquilo que ficou pra trás, porque eu sei que aprendi aquilo tudo, eu aprendi daquele jeito. Aí tudo veio no dia. (...) Tá sendo tão boa essa vinda dele, porque ele é desafiador, ele não é de passar a mão na cabeça. Ao mesmo tempo que você pensa que ele tá falando.. mas não é não! “Minha gente, como é que vocês botam um caso desses e não sabe se a equipe tá de acordo? Por que a mulher não tá aceitando a visita da enfermeira? Por que é que ela não gosta? Vocês já foram lá perguntar pra ela? Vocês já sentaram? Como é que a equipe pode trabalhar sem ter um foco, sem ter um pensamento centrado? Vamos saber, vamos conversar, vamos botar no papel... Quais são as metas desse caso?”. Ele tá certo! Ele tá certíssimo!

No encontro final com toda a EqNASF (o grupão), essa situação foi relembrada, a partir de uma provocação minha. Psi Pimenta reforçou que a primeira discussão de caso levado pelas Psis à roda com o apoiador gerou mesmo repercussão no grupo. A possibilidade de revelar a “fragilidade do processo de trabalho do NASF” a alguém de fora gerou ansiedade. Contou que de início achou esquisito isso de os casos serem levados por categoria profissional. Percebeu mudanças do primeiro ao segundo caso discutido, levado pelas ASs. Destacou que a discussão sobre a Assistência Farmacêutica foi “bombástica”, porque demandou uma reflexão coletiva. Achava que não deveria ter havido aquela personificação que houve na discussão do caso levada pelas Psis, tendo Psi Orégano como porta-voz, já que se tratava de um processo/trabalho coletivo. “Talvez essa seja a grande estratégia coletiva pro NASF, de pensar realmente... que não é coisa só da Assistência Farmacêutica, das meninas da Farmácia... vai mexer com o grupo... se a gente se dispuser a tal!”, enfatizou Psi Pimenta. Tratava-se de um chamamento desafiante e isso parecia lhe causar

106

preocupação: implicava responsabilidade coletiva, implicava pensar uma significativa intervenção política – como posicionamento. Em relação à reunião com o apoiador, Psi Orégano, que tinha sido a relatora do caso, identificou que aquilo revelou um modo de o NASF funcionar por vezes: um jogo de empurra, predominando uma falta de perspectiva de coletividade. Percebeu que a discussão encaminhada se voltou para “apoiadores”, não acrescentando muito no caso em si. Expressou, ainda, sua compreensão de que as pessoas do NASF tinham um receio de se expor, como se fosse uma exposição pessoal. Isso me fez pensar que ainda não havia, ali, um sentimento de equipe. Reconheceu, por fim, que aquele momento revelou várias fragilidades do grupo. Entretanto, achou que o encontro promoveu algumas compreensões interessantes. AS Pimenta falou também da experiência de definir um caso para a discussão com o apoiador e fez uma preleção em relação à importância da troca de impressões, sobre situações vividas em campo, por parte dos profissionais. Esse é um ponto crucial: as pessoas parecem perceber e concordar com isso, mas não conseguem efetivar modos de tornar isso real. AS Pimenta pontuou ainda que aquele fora um semestre de conquistas, principalmente de integração e aprimoramento do processo de trabalho. Percebeu uma aceitação do NASF nos diversos setores da Secretaria, impressão partilhada por vários membros do grupo. Destacou que a perspectiva de minha entrada em campo tinha gerado alguma preocupação, uma necessidade de efetivação do trabalho. Isso provocou risos... Achei de uma transparência desconcertante, quase como se assumisse que a coisa não estava andando como “poderia”. Concluo o conto com uma forte impressão: a chegada de “estrangeiros” gerou mudanças de atitudes naquele grupo... Eu era também uma dessas “estrangeiras”, embora familiar a boa parte da equipe, em função da parceria em outros projetos. Quais seriam os desdobramentos dessas afetações?  

*** Algo que muito me intrigou durante o período em que estive em campo foi a percepção de um distanciamento entre o que os profissionais diziam e o que punham em prática. Essas contradições parecem povoar a vastidão da experiência humana – sempre situada a partir da vida e modos de cada pessoa, evidentemente – e talvez essa seja uma questão que mereça reflexão especial no âmbito do trabalho em saúde. Aqui, é fundamentalmente a perspectiva do outro – suas queixas, expectativas, compreensões – que precisa ser levada em conta para que qualquer intervenção venha a produzir possibilidades outras de vida, “mais saudáveis”, extrapolando-se a mera prescrição. Não é à toa que as

107

discussões em torno do cuidado no campo da atenção à saúde têm tido um destaque (PINHEIRO; GUIZARDI, 2004), enfatizando-se a importância de que a produção de atos terapêuticos seja centrada no usuário (MEHRY, 2002). Parece que clarear o alvo da intervenção, que se relaciona com um processo de compreensão em torno do pedido/queixa/necessidade, é sempre importante quando se trata de planejar políticas de atenção à saúde – e, possivelmente, isso valha tanto para o nível micropolítico – nas relações profissional-usuário, por exemplo – quanto macropolítico – em se tratando das definições de políticas, programas, estratégias. Na atenção à saúde, esse processo de esclarecimento em torno do que é de fato demandado, mantendo-se uma perspectiva que valorize a centralidade do usuário, torna-se crucial. Perseguir esse objetivo se relaciona à intenção de um exercício de cuidado, compreendido como ação integral, “efeitos e repercussões de interações positivas entre usuários, profissionais e instituições, que são traduzidas em atitudes como: tratamento digno e respeitoso, com qualidade, acolhimento e vínculo” (PINHEIRO; GUIZARDI, 2008, p. 23). Daí a compreensão de que a ação integral em saúde não se faz sem relações entre as pessoas, sendo “entre humanos” que as intervenções precisam ser delineadas. Dar conta – ou se dar conta – desse processo não parece algo corriqueiro e tranqüilo no cotidiano das práticas de cuidado. A sensação de estar perdido ou não saber ao certo o que e como fazer – o que vem acompanhado de uma carga de angústia –, além de uma tendência à automatização nas práticas, revelaram-se frequentemente no meu contato com os profissionais. As equipes pareciam saber de algumas de suas fragilidades e indicavam a necessidade de um suporte ou apoio, que muitas vezes se traduzia num desejo de maior visibilidade ou reconhecimento da legitimidade do trabalho realizado. Entretanto, quando surgiam oportunidades de refletir sobre o que faziam e como, as situações se tornavam desconfortáveis, surgindo resistência à percepção crítica de certos modos de “funcionar” que não eram tão sintonizados com uma perspectiva de trabalho coletivo. O predomínio de ações e investimentos individuais, muitas vezes provocando em mim a sensação de desperdício de energia, foi se apresentando. Não que houvesse falta de trabalho ou empenho, mas muitas vezes o foco parecia ser difuso, de modo que os profissionais recorriam a atitudes autoritárias, transmissivas ou normativas na realização das atividades. O que importava era cumprir a tarefa! Penso que escapar a essa teia perversa seria uma brecha para o trabalho como produção coletiva. Viver a entrada em cena de um profissional externo que se propôs, em certa medida, a discutir a função do NASF e o seu processo de trabalho naquele município constituiu uma oportunidade sem igual para reflexões em torno da importância da garantia de espaços coletivos, nos quais o próprio trabalho é tomado como objeto de investigação. Na discussão do primeiro caso, levado a pedido do apoiador, o grupo NASF não conseguiu se organizar para mostrar alguma dinâmica de trabalho coletivo. Possivelmente porque o grupo ainda ensaiava a construção desses modos coletivos e

108

partilhados. Talvez não fosse possível que a coisa acontecesse de outro modo naquele ponto da trajetória. A fala de Psi Mostarda – “O pano caiu!” – revelou uma sensação de desnudamento diante de um estrangeiro, que chegava para tentar saber do trabalho, encontrando certa desorganização e dificuldade de entrosamento do grupo. As inúmeras provocações de alguém que assumia circunstancialmente o lugar de “apoiador” do NASF se direcionaram a diversos aspectos: a relação das EqNASF com as EqSF, o processo de organização da própria EqNASF, a consideração da perspectiva do usuário na elaboração de projetos de cuidado, dentre outros. O desconforto foi geral, justificado de uma ou outra maneira. Percebi que nem todos conseguiram de imediato fazer a crítica de que uma reorganização no processo de trabalho era necessária, mas essa compreensão pareceu ir se forjando no grupo paulatinamente. Os momentos com o apoiador continuaram, tendo eu tido a chance de participar de apenas um durante o período de campo. Todavia as repercussões chegavam a mim, nas conversas com os profissionais, e era possível perceber a efervescência gerada pelas provocações. É isso que quero tematizar/discutir a partir desse conto! Não são raras as análises que indicam a necessidade de reforma das organizações e do trabalho em saúde no Brasil, sendo Campos (1999; 2003; 2005) um dos principais expoentes dessa ideia. Ele propôs inovações no modo de organização do trabalho em saúde, por meio dos conceitos de equipe de referência e de apoio matricial, já expostos no início desse trabalho (Campos e Domitti, 2007; Campos, 1999), que acabaram sendo experimentadas em diversos contextos do SUS e incorporados às diretrizes políticas de saúde, a exemplo da Política Nacional de Humanização – PNH (Brasil, 2008a). Tais conceitos integram a sua proposta Paideia, ou Método da Roda, delineado como um método de apoio à cogestão, visando ampliar a capacidade de análise e de intervenção de todos os envolvidos no processo de produção de saúde (CAMPOS, 2005). Como setting básico do método, figuram os espaços coletivos, em qualquer modalidade – as rodas humanas. A noção de apoio utilizada junto ao grupo do NASF protagonista do conto é retirada dessa referência teórico-metodológica, daí gerando-se a terminologia “Apoiador Institucional”, conectada, até certo ponto, com a idéia de apoio matricial, um arranjo pensado para incrementar as relações entre profissionais e equipes de saúde na perspectiva de ampliação e co-construção do cuidado: nesse caso, mais que troca de saberes, está implicado um “fazer-junto”, como dispositivo pedagógico. O principal objetivo do Apoiador Institucional – ou Supervisor Matricial – seria auxiliar as equipes na gestão e organização dos processos de trabalho, enfatizando a construção de espaços coletivos. O autor enfatiza que não se trata das funções tradicionalmente indicadas como assessoria, consultoria ou supervisão, conforme denominações sugeridas pela Teoria Geral de Administração, pois

109

se pretende extrapolar funções meramente passivas, prescritivas ou fiscalizadoras. O Apoiador compromete-se em primeira instância com as equipes, com quem discute suas percepções e avaliações permanentemente, não se restringindo à relação com a cúpula dirigente de cada organização. Claro que também as diretrizes da política são debatidas com o grupo, dado haver um pertencimento institucional da equipe, com vistas ao exercício de atenção à saúde de populações. Cabe destacar que exercer a função de apoio institucional – que objetiva a ampliação da capacidade de análise e cogestão de coletivos – demanda um contexto institucional favorável e sintonizado com essa perspectiva, já que implica uma proposta explícita de democratização institucional. Na situação vivida, percebi, com o passar do tempo, um reconhecimento de aprendizado a partir das discussões com o apoiador, que funcionava como uma espécie de “terceiro olhar”, promovendo reflexões em torno da prática e dos modos de organização do trabalho cotidiano. De acordo com Cunha (2009), o apoiador deveria chegar “em uma equipe ‘como quem chega na casa dos outros’, com ofertas, com propostas, mas também com cuidado e respeito. No limite trata-se de uma ferramenta de combate à separação entre quem pensa (e sabe) de quem executa” (s/p). As experimentações de discussões conjuntas de casos, no grande grupo, era um formato inédito para a equipe, que fez perceber um modo de funcionar ainda fragmentado e com falhas na comunicação. Isso certamente repercutia na intervenção dos profissionais nas próprias EqSF, onde exerciam também uma “função apoio”, porém em outro contexto. Os momentos com o apoiador serviram como espaço para experimentação da produção coletiva, pela reflexão em torno das práticas, revelando muitos aspectos da dinâmica de trabalho e modos de compreensão dos profissionais. Era um espaço para desnudamento e, por espelhamento, possibilitava que os profissionais pensassem sobre sua atuação junto às equipes. Em uma das reuniões com o apoiador, de que pude participar, este revelou que a “função apoio” assemelhava-se à situação de “ter um pé fora e outro dentro da canoa”: era diferente a forma de ser equipe, pois não se estava cotidianamente naquele contexto de trabalho, e isso poderia trazer possibilidades outras de compreensão das situações vividas pelas EqSF. De certo modo, é essa ampliação do olhar das EqSF que considero desejável provocar na “função apoio”, via atuação do NASF. Contudo esse apoio precisa ser compreendido como presença, no contexto dos encontros, viabilizando um fazer-junto promotor de reflexão. Isso se relaciona à metáfora do jogo de espelhos e da supervisão de apoio psicológico, a que recorri na discussão do conto anterior, e me faz perceber que os contos trazem aspectos que se entrecruzam, dizendo, possivelmente da complexidade da atenção à saúde e do trabalho em equipe. Os espaços coletivos me parecem dispositivos fundamentais para que as equipes pensem a respeito do que fazem, do modo como atuam, dos planos para intervenção. Esses planos precisam ser

110

pensados coletivamente e, portanto, apenas “pisando no território” é que se encontram as melhores brechas, pois o que é vivido ali serve como néctar para a produção da continuidade de qualquer projeto de cuidado, que se alinhe às necessidades das pessoas. Nesses espaços coletivos, penso que o outro, qualquer outro, pode sempre funcionar como um “olhar externo”. Pensando no contexto do NASF dos municípios pesquisados, a composição de várias equipes numa grande equipe dispõe um arranjo fértil para o aprendizado conjunto, em que os de outra miniequipe são, até certo ponto, estrangeiros, podendo cumprir essa função provocativa, que parece ser axial ao apoiador. Equipes que possam se desarmar a esse olhar externo – em geral visto como ameaça – terão oportunidades mais amplas de expansão de sua potência de ação. Claro que há limites nisso, mas o próprio Campos (2005) admite a possibilidade de uma “autoaplicação” do método da roda por ele proposto. Um “estrangeiro” não necessariamente é uma ameaça: introduz tão-somente a possibilidade de outras formas de perceber, de enxergar uma dada realidade, fugindo da teia de repetições, ressentimentos e queixas que frequentemente se instala nas equipes. As reverberações podem ser no sentido de mudanças expansivas, alargadoras das possibilidades de ação. Embora não se defenda aqui a existência de modos corretos ou errados de atuação, aposta-se que a construção e garantia de espaços para pensar a práticas, pondo-lhes sob investigação, reduz as probabilidades de uma atuação inconsistente e incoerente com os objetivos atualmente em voga do SUS, voltados à construção de práticas coletivas, envolvendo uma participação democrática das pessoas. É nessa teia produtora de vida que as equipes de saúde precisariam se lançar – os encontros com os colegas de trabalho e a pessoas de que pretendem cuidar, aprendendo a lidar com os conflitos, a diversidade de opiniões e os desejos de poder. Por essa via, uma aproximação entre o que se defende no discurso e o que se efetiva na prática pode ser tecida, cotidianamente. Concordando com Arendt (2009), a ausência de pensamento pode ser a fonte de atos malévolos e distorcidos – e não o fato de ser “do bem” ou “do mal” – os quais, uma vez feitos, não retrocedem. Em se tratando da atenção à saúde, penso que um compromisso fundamental do profissional de saúde é o de assumir a responsabilidade que lhe cabe na produção coletiva de modos de promover expansão de vida, o que vai se afirmando nas composições interpessoais que possa ir fazendo, nas relações com os outros que estão ao redor, no contexto de sua prática.



111

Quarto Ato – Os Livros de Ata: capturados pelo desejo de controle?

C

erta vez participei de uma reunião que inaugurava o formato “coordenação-miniequipe NASF”. Segundo a coordenação, o objetivo era estreitar laços e discutir alguns aspectos específicos por

equipe e localidade coberta. À medida que alguns pontos iam sendo discutidos, fiquei pensando se efetivamente haveria fertilidade nesse tipo de reunião: não seria mais interessante discutir coisas – como organização do trabalho do NASF e exposição de cronogramas das atividades nas USFs – no grupão? Seria necessário esse formato por EqNASF? Como estariam sendo aproveitadas as grandes reuniões que aconteciam semanalmente? Teria a coordenação condição para esse acompanhamento a cada equipe? Achei que aquele arranjo não perduraria muito – e foi o que acabou acontecendo ao longo do tempo que acompanhei o grupo. Um ponto que particularmente me chamou atenção nessa reunião foi a entrega de uns livros de ata – um para cada profissional. A utilização dos mesmos era uma deliberação da Gerência da Atenção Primária à Saúde da SMS, à qual a coordenação do NASF estava subordinada, visando à transcrição das atividades feitas cotidianamente pelos profissionais. Foi esclarecido que os livros substituiriam os registros feitos em folhas avulsas, como vinham acontecendo. Percebi que a coordenação tentou redirecionar o sentido daquela estratégia, atribuindo-lhe o caráter de portfólio ou diário de campo. Entretanto, foi destacado que cada atividade precisaria ser assinada pelos participantes – “Quase como testemunhas!”, caracterizava eu, em pensamento. Imediatamente aquilo me reportou a uma situação vivida em campo, em uma das USFs, em que um fiscal da SMS passou para saber quem se encontrava ali. Na USF mesmo, partilhei meu incômodo com a EqNASF Coentro, que trabalhava ali, sentindo uma ressonância. Tendo vindo a lembrança e a forte correlação, contei isso naquela reunião com a coordenação – representante da Gestão –, dizendo da minha surpresa, sendo também um modo de provocar reflexões em torno daquela exigência de preenchimento do livro. Falamos um pouco sobre isso, entretanto sem maiores aprofundamentos... Durante o meu período em campo, depois dessa reunião, vi os livros circularem em cada atividade de que participei, muitas vezes chegando a assinar ao final, como modo de legitimar que o momento descrito tinha de fato ocorrido. No encontro final com o grupo NASF, esse assunto voltou à tona. Antes do início, houve alguns informes passados pela coordenação, que não pôde ficar até o encerramento. Dentre os informes, foi comunicada a mudança possível de coordenação, que gerou um grande impacto, bem como a chegada de novos integrantes. Também se destacou, para mim, a cobrança da produtividade (um Boletim de Produção Ambulatorial – BPA – que é preenchido mensalmente pelos profissionais da rede de saúde) em conjunto com uma cópia de parte do livro de

112

ata referente ao período. Já tinha me esquecido de que o tal livro era cobrado mês a mês! “Haveria de fato leitura daquilo lá ou seria meramente um mecanismo de controle?” – pensava eu. EF Noz-Moscada foi o primeiro a falar do impacto da mudança de coordenação: “Acho negativo isso, sabia? Em tão pouco tempo que estou aqui, já houve duas mudanças. Então, assim, quando a coisa começa... a gente começa a se agregar, começa com essa articulação... E é um grupo pequeno, o NASF é um grupo pequeno. (...) A gente começa a se articular, começa a quebrar o pau, começa a resolver as coisas... Daí a pouco, muda!”. Ao longo do encontro final, o grupo seguiu expressando angústia em relação à mudança de coordenação. Eles tinham receio de quem viria, sendo de fora do grupo. Relembraram fases da coordenação, destacando um período em que não havia coordenador. As referências eram, então, os coordenadores de Distrito (responsáveis pelo acompanhamento das ações/serviços de saúde em cada área delimitada do município), que costumavam ligar apenas para cobrar, saber se o grupo estava trabalhando, e nunca para oferecer algum suporte. De modo geral, o grupo avaliou a existência da figura do coordenador do NASF como algo fundamental. Pelo que pude entender, durante o hiato entre coordenadores, o grupo NASF meio que tentou se autogerir, o que parece ter sido visto como algo nocivo na SMS. Ao falarem da atitude fiscalizadora dos coordenadores de Distrito, peguei a deixa para expressar meu incômodo em relação ao que havia presenciado na USF, quando chegou um fiscal para verificar os profissionais presentes. Acabei falando também do incômodo sentido com a introdução dos “livros pretos”, destacando que percebia aquilo como algo policialesco. Psi Açafrão foi a primeira a falar, dizendo perceber o livro de forma positiva e enfatizando que sua única resistência a ele era a necessidade de assinatura. Destacou que, muitas vezes, não dava tempo (d)escrever o que tinha ocorrido, mas aí tinha que ter a assinatura. De nada adiantava o que estava escrito se não houvesse a assinatura... Referiu que já tinha recebido feedback de coisas escritas, enfatizando que acreditava que ali havia um rico material que poderia ser aproveitado para pesquisa, boletins etc. Concordei. Entretanto, será que não haveria outras vias para valorizar esse importante registro? “É um ponto mascarado. Torna-se uma folha de ponto mascarada!”, enfatizou Farm Açafrão. Nesse mesmo encontro, a relação com os coordenadores de Distrito – também representantes da Gestão – foi retomada como ponto de discussão. De acordo com Farm Noz-Moscada, essas figuras não convocavam o NASF para um trabalho conjunto, só se importando em cobrar resultados. Destacou que o NASF era considerado parte da EqSF apenas quando isso parecia conveniente. Psi Coentro introduziu outra questão: “É a parte mais difícil... O povo quer muito esse lugar do atendimento!”. Questionei de que isso queria dizer. Como discutir e construir outra lógica de atuação/intervenção quando o pedido vai na contramão? Vejo que isso é mais presente para algumas especialidades, como a Psicologia e Nutrição, que já tem uma tradição de atendimentos clínicos. EF Açafrão falou de sua

113

experiência como educador físico e destacou que, ao chegar nas USFs, frequentemente se deparava com o espanto dos profissionais e mesmo dos usuários dos grupos de atividade física: “Tá fazendo o que aqui, professor?”. Interessante também o depoimento de Psi Açafrão: “Tem vez que eu chego nas unidades e a primeira coisa que eles olham é pra agenda: ‘Que é que você está fazendo aqui? Vai atender hoje’, ‘Não, eu não vou atender hoje.’, ‘E o que você tá fazendo aqui?’. Eles se assustam com aquilo: ‘Meu Deus, ela vai atender hoje e a gente não marcou ninguém!’”. Um destaque importante feito pela própria Psi Açafrão foi a falta de instrumentos para o registro das atividades realizadas. Nesse aspecto, os livros pretos passaram a cumprir uma função, pois lá se podia registrar tudo. “Você sente que nem você, como profissional, consegue enquadrar o seu trabalho para mostrar pra Secretaria...”, desabafou. Discutiu-se que o instrumento – o tal BPA – era formatado para atendimentos clínicos, sobretudo. Havia também rubricas/entradas específicas para certos grupos profissionais: por exemplo, educador físico não poderia registrar visita domiciliar! Discutiu-se, então, a dificuldade de evidenciar o trabalho que é feito pelo NASF. Muita coisa feita não cabia naquelas fichas. Soube que já tinha havido tentativas de mudança do BPA, com participação do próprio NASF, mas sem atingir ainda um formato interessante. Antes, quando a diretriz era fazer atendimentos nas comunidades, os psicólogos e nutricionistas, sobretudo, se davam bem! Para estes profissionais, o tipo de intervenção parecia ser mais evidente... Psi Açafrão destacou que sua ficha sempre tinha muitos atendimentos... Mas aí é outra questão! E terminou aquele grupo, com um astral excelente. Sem dúvida, um bom encontro!!! Percebi, ao longo do meu contato com os profissionais e gestores, que evidenciar o trabalho do NASF era uma constante preocupação e um desafio, sendo a cobrança da Gestão em relação a este aspecto algo sempre no ar. Em uma conversa com Farm Noz-Moscada, isso foi explicitado: “Eu me preocupo com o NASF... O NASF tem que... Isso é o que a coordenação coloca pra gente toda semana, e escuta todos os dias ‘O NASF não faz nada!’. E a gente mesmo sabe que faz, faz muita coisa, com certeza”.

*** Confesso que a introdução dos livros de ata, a serem preenchidos por cada profissional do NASF, mediante o registro dos passos dados (com assinatura dos presentes de modo a confirmar a veracidade do fato), chegou a me estarrecer: parecia-me uma forma nítida de controle. Obviamente não penso que a coisa deva correr solta, em se tratando do exercício cotidiano das práticas. Há que se prestar contas do que se faz, até porque isso implica um retorno do investimento de verba pública para a consolidação do SUS. Entretanto, acredito que há muitos modos de viabilizar isso, sem que se

114

caracterize um rígido mecanismo disciplinar. Ademais, considero que se expressava, por meio da exigência de preenchimento e entrega dos livros ao final de cada mês, a falta de confiança no grupo. Não foi difícil relacionar essa introdução dos livros de ata com o momento de fiscalização-surpresa da presença dos profissionais na USF. Aos poucos fui me dando conta de que a freqüência predominante naquele contexto institucional era a de relações autoritárias e verticalizadas, valorizando-se as vias de cobrança e controle, sem o correspondente sucesso, no entanto: não se garantia, a partir dos mecanismos utilizados, um real acompanhamento – leia-se “controle” – do que era feito no cotidiano pelos profissionais. Dito de outro modo, havia uma hegemonia dos modos disciplinares na Gestão, que tendiam a se reproduzir nos diversos contextos – inclusive nas relações dos profissionais do NASF com as EqSFs ou com os usuários. A referência que tomo para utilização da palavra “disciplinar” tem origem nas investigações e produções foucaultianas, tal como apontado por Machado (2007). A discussão em torno de “poder disciplinar” demanda situar a compreensão de poder como prática social, constituída historicamente, remetendo a uma rede de dispositivos ou mecanismos a que não se escapa na vida em sociedade: existem práticas e relações de poder em diversos pontos da estrutura social, dado que poder é algo que se exerce, que se efetua, tendo, portanto, um caráter relacional e funcionando em níveis macro e micropolíticos. O poder faz parte da vida humana, portanto. O que Foucault chama de poder disciplinar ou disciplina, de acordo com Machado (Ibidem), revelou-se a partir de suas investigações sobre contextos específicos, tais como a prisão, em que verificou uma relação específica sobre os indivíduos enclausurados, que agia sobre os seus corpos, baseando-se em tecnologia de controle e vigilância panóptica. O curioso foi observar que essa tecnologia não se restringia ao sistema prisional, mas poderia ser encontrado em instituições tais como hospital, exército, escola. A análise genealógica foucaultiana remonta as origens desse poder disciplinar especialmente à explosão demográfica do século XVIII, num dado contexto político e econômico, e a correspondente necessidade de controle dos corpos, voltada à sua utilização como força de trabalho. Entretanto, seus mecanismos e efeitos atravessaram séculos e ainda se fazem sentir em nosso mundo contemporâneo. Torna-se interessante lembrar que, até pouco tempo, tínhamos no país várias escolas intituladas “normais”, sendo relativamente simples depreender daí o ideal de disciplinarização dessas instituições, conforme o padrão de humano desejável à sociedade. Para fins da análise aqui empreendida, cabe indicar as características básicas do poder disciplinar para que se façam as relações com o que foi indicado acima a partir do contexto pesquisado: organização do espaço,

115

controle do tempo, vigilância como instrumento de controle e registro contínuo de conhecimento do que se faz. Nessa atmosfera, senti predominar cotidianamente um clima de insegurança e insatisfação geral, que se revelou em diversos depoimentos tematizando a falta de legitimidade do NASF na SMS. Apesar do esforço do grupo NASF, não havia um reconhecimento do trabalho realizado, sendo as reuniões semanais momentos em que frequentemente se fazia referência a alguma queixa ou desconfiança em relação ao dispositivo. Analiso que foi como uma tentativa de divulgar mais as ações do NASF, buscando fazer um contraponto a essa representação, que a coordenação do NASF pensou em lançar, periodicamente, um boletim com algumas das iniciativas empreendidas pelas EqNASFs. No período em que estava em campo, vi um boletim ser finalizado. Essa proposta, por exemplo, pareceume muito mais pertinente, como via de produzir visibilidade e conseqüente legitimidade ao trabalho realizado, do que a perspectiva de controle por meio do registro nos livros de ata, pois poderia funcionar como uma espécie de mecanismo de avaliação. A cultura avaliativa, sim, precisa, de fato, ser incorporada no cotidiano dos serviços, superando a sua tradicional vinculação à punição. Penso que um importante ponto que se mostra a partir dessa discussão é a falta de legitimidade do trabalho do NASF no contexto institucional, havendo contínuas cobranças em relação às ações empreendidas e aos resultados. Garantir uma materialidade ao que estava sendo feito, de modo a apresentar isso aos gestores, era uma significativa questão. Isso nem sempre indicava uma preocupação com a qualidade da intervenção, por não se revestir da atenção a processos avaliativos de caráter permanente. A angústia pela dificuldade de compilação do trabalho em um formato palpável – dado não caber na linguagem do BPA – era partilhada pelos profissionais e coordenação do NASF. Contudo, produção ou promoção de saúde realmente nem sempre se revela por dados quantitativos, ainda que esses sejam importantes. A legitimidade do trabalho realizado cotidianamente deveria vir pela realização do mesmo, no cotidiano dos serviços, na medida do possível a cada equipe, em cada contexto. A legitimidade vai se construindo via ação (e de novo recorro ao sentido arendtiano), a partir das singularidades expressas nos encontros e pela pluralidade que os humanos carregam: somos seres plurais e singulares simultaneamente – somos seres acontecendo nos e pelos encontros, destinados à tessitura conjunta de nossa vida em sociedade, em seus vários níveis. Desse mergulho nas possibilidades de ação, nos territórios, e conseqüente geração da ação, a visibilidade vai brotando, porque algo vai se gestando e ganhando força pelo testemunho dos envolvidos. Resultados de ações voltadas à promoção de saúdevida-qualidade nem sempre se registram em números, cabendo aos participantes o testemunho do que foi acontecendo. Isso é necessário que se aprenda a mostrar, mas os canais demandam criatividade.

116

A percepção de Psi Açafrão da importância daquele registro nos livros de ata me fez repensar essa crítica: ela vislumbrava ali possibilidades de elaboração da experiência, relatando já ter tido feedback do que estava escrito. Contudo, não é o registro que questiono, como indiquei acima: é, sobretudo, o modo de ele ser cobrado. Na minha compreensão, a exigência das assinaturas era o indicador maior do caráter disciplinador da estratégia. Se as assinaturas eram exigidas, acredito que era pela função primordial de fiscalização e controle que o preenchimento dos livros viabilizava. A entrega dos BPAs já não cumpriria, de certa forma, a função de ponto, se essa era a questão? Penso que a dificuldade de escapar a mecanismos disciplinares no modo de gestão revela uma falta de habilidade para construção coletiva, em que todos se sintam parte do que é produzido. Predomina, assim, uma separação entre os que mandam e os que obedecem, privando-se o grupo de uma ampliação da capacidade de cogestão, tal como indicada por Campos (2000), e respectiva corresponsabilização. Já é possível sinalizar, a partir da historieta, uma discussão em torno do sentido de gestão que, além de implicar fundamentalmente a perspectiva de gerenciamento – em suas diversas facetas e modos – comporta ainda um viés gestacional, como criação e formação de uma prática ou modo de operar. No entanto, esse ponto será mais detalhadamente trabalhado a partir de outro conto... Fazer um trabalho como é exigido às EqNASF, a partir do trânsito no território, em articulação com diversas EqSF e usuários do sistema, ou seja, no aberto dos territórios em que as pessoas substancializam sua existência, demanda iniciativa e ousadia. Diante do inusitado das situações, apresentadas pelas próprias EqSF, um grau mínimo de implicação com a prática e de disponibilidade para gestar e gerir projetos de cuidado, em parceria com os profissionais das USFs e com os próprios usuários, revelam-se como imprescindíveis para um êxito nas intervenções. Não funcionará a mera aplicação de técnicas – em seu sentido hard e cru – ou repasse de informações, seguidas de cobrança de um retorno dos “receptores” do cuidado. Cuidado em saúde não é mercadoria a ser passada e repassada: trata-se de algo que se forja no contexto dos encontros entre os envolvidos, com base em um compromisso de acolhimento ao que surge. Concordo com a perspectiva de cogestão do cuidado e com a via da democratização nas relações, por mais difícil que isso possa parecer e não acredito que serão jamais definidas regras a serem fielmente obedecidas para isso. É certo que no campo da saúde precisamos de alguns protocolos de intervenção e ampla apropriação de determinadas técnicas próprias a cada núcleo profissional. Protocolos de fluxos na rede são fundamentais: uma organização mínima é demandada quando se trata de viabilizar o cuidado à saúde numa perspectiva de rede. Os profissionais do NASF estão a tentar costurar esse cuidado por meio de um trabalho em trânsito e necessitam do estabelecimento desses protocolos e regras de funcionamento englobadas na política de saúde de um dado município. Dificilmente prescindiremos

117

dessas definições de caráter mais burocrático, mas o cuidado em ato, no dia-a-dia dos profissionais de saúde, acontece no contato com os usuários e desaloja frequentemente as pessoas, desafiando certos protocolos instituídos e que não respondem à necessidade apresentada ineditamente em dadas situações. Algum risco precisa ser assumido no trabalho em saúde. Isso foi tematizado de forma magistral em trabalho escrito por Louzada, Bonaldi e Barros (2007), em que recorrem ao aporte ergológico francês para discutir o trabalho em saúde, valorizando a dimensão inventiva das práticas, “no concreto das experiências produzidas pelos trabalhadores e usuários do SUS” (p. 35). Primeiramente indicam a necessidade de que o SUS deixe de ser considerado apenas como letra de lei ou prescrição para que efetivamente se constitua conforme a proposta de seus atores/autores. Com atenção especial ao princípio da integralidade, destacam que ela se perfila no cotidiano dos serviços do SUS, a partir dos encontros entre os diversos agentes, com seus saberes e fazeres próprios, indo além do que está instituído e não tendo um sentido estável a ser aplicado nas práticas. Segundo as autoras, a atuação em equipes de saúde se configura, sobretudo, entre normas antecedentes (procedimentos, protocolos, formas de ação já consolidadas) e normas recentradas (construídas pelos agentes no agir cotidiano diante das imprevisibilidades das situações vividas), caracterizando-se em fazeres continuamente “renormalizados”, que brotam da produção coletiva, num processo permanente de escolhas e arbitragens, dado a vida extrapolar as regras instituídas. É por respeito ao vivo que a produção de valores e modos deve ser algo constante no trabalho em saúde, uma vez que existe um vazio das normas que convoca cada profissional a novos fazeres e exercícios no cotidiano de trabalho (SCHWARTZ, 2002 apud LOUZADA, BONALDI E BARROS, 2007). Assim, assume-se que o trabalho se materializa por sujeitos reais, em situações reais, cuja marca é a imprevisibilidade – daí a impossibilidade de cumprimento à risca de todas as normas antecedentes, pois isto seria “invivível”, de acordo com Schwartz (op. cit.). Como pano de fundo dessa discussão, está também a consideração do humano em sua diversidade normativa, a partir de Canguilhem (1990), que amplia vastamente a compreensão em torno das possibilidades de uma prática em saúde mais apropriada e inventiva, sem que isso constitua uma visão romântica. Neste autor, encontrei uma das mais férteis perspectivas sobre saúde: desvencilhando a concepção de saúde da ideia de normalidade – e, por conseqüência, desvinculando doença e anormalidade –, Canguilhem relaciona saúde com capacidade normativa, ou seja, a capacidade de criar normas e modos outros de relação com a vida e as pessoas. Aqui identifico uma relação possível com o pensamento nietzscheano, que situa o homem como produtor permanente de valores e juízos, os quais são sempre circunstanciais e situados historicamente (NIETZSCHE, 2009).

118

Saúde é, então, caracterizada pela “possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas” (CANGUILHEM, 1990, p. 158) e se define como “uma margem de tolerância às infidelidades do meio” (p. 159). As infidelidades do meio se referem às imprevisibilidades da vida, ou seja, ao ineditismo, ao inesperado que lhe marca. Ter boa saúde é mais que estar normalizado (adaptado) ao meio e às suas exigências – algo que é viável mesmo quando se está doente; implica, sobretudo, ser normativo, capaz de seguir ou instituir outras normas de vida, de lidar com o inusitado, com as diferentes condições que a vida apresenta. Talvez pudéssemos estender essa compreensão de saúde para o modo de funcionar das equipes (e mesmo organizações), avaliando a flexibilidade e o exercício da capacidade normativa diante das situações a serem enfrentadas cotidianamente. No que se relaciona ao exercício de cada profissional nos territórios de abrangência, destaco que essa é uma problemática ou temática instigante, que permeou toda a minha inserção em campo: nem é evidente a função de cada núcleo profissional na proposta do NASF tampouco o trabalho do próprio NASF é “explicável” – isso vai se clareando a partir do trabalho em ato e as fronteiras vão se contornando e redelineando no contexto das práticas. A própria função apoio, abordada na discussão do conto anterior (O “Terceiro Olho”), vai sendo construída na prática cotidiana. Como pode ocorrer o entrelaçamento entre profissões, para além do que é específico a cada núcleo, parece ser o grande trampolim disponível às EqNASF: o espaço está aberto à invenção pois se demanda escapar do esperado tradicionalmente de cada área profissional para uma atuação na perspectiva da promoção à saúde no contexto de cada comunidade, nas articulações com cada EqSF. Ressalta-se o desafio de produzir outros modos de trabalho, que escapem da representação comum atrelada especialmente a alguns núcleos profissionais, como é o caso da Psicologia e da Nutrição, que enfatizam os atendimentos clínicos. Aí estaria uma fresta para a ampliação da perspectiva de trabalho em equipe, na direção da produção coletiva, aspecto por ora apenas sinalizado, dado que também será aprofundado adiante a partir de outros motes.

∞ Quinto Ato – Um encontro quase marcado e seus efeitos miraculosos

A

convocação para uma reunião com SecSau (Secretário de Saúde) mexeu com a dinâmica do NASF e pôs o grupo cara-a-cara com as questões que eu tinha percebido como cruciais durante

os meses de minha imersão naquele contexto: “o que é NASF e quais os seus resultados?”. A possibilidade da reunião com o gestor “maior” reverberou no grupo por vários dias e é disso que trata esse conto... Iniciou-se uma série de debates em torno do que deveria ser trabalhado na tal reunião. O

119

sol se levantou e se pôs diversas vezes até se chegar ao consenso de que o mais interessante seria apresentar um consolidado do que o NASF vinha fazendo no município, com esclarecimento de seus objetivos e atribuições. O pitoresco é que, certo tempo depois de iniciado o ciclo de encontros preparatórios para a tal reunião, que começou bem no início de minha entrada em campo, ninguém sabia ao certo de onde tinha vindo a demanda. Alguns diziam que o assessor de SecSau tinha comunicado ao NASF o desejo de o gestor se reunir com o grupo. Depois de várias desmarcações da reunião, disseram que o próprio assessor tinha chegado a perguntar o que o NASF queria discutir com SecSau, como se o grupo tivesse solicitado a reunião! Como é de se imaginar, isso gerou a indignação de alguns... Enfim, o fato é que essa possibilidade de reunião do todo o grupo NASF com SecSau disparou um processo interessantíssimo de construção de uma “identidade” desse dispositivo. Aquela possibilidade de encontro gerou uma tensão produtiva, uma necessidade de exposição, ou melhor, explicitação do que se fazia, relacionada à busca de uma legitimação e maior visibilidade do grupo. Só um detalhe: isto não era algo evidente, e facilmente executável; portanto, demandava um investimento na construção de um material conciso e claro sobre o trabalho do NASF. Assim se gerou um estimulante processo de reflexão em torno do que se fazia, possivelmente nunca vivido antes – ao menos não naquela intensidade. Tive certeza disso ao escutar depoimentos de alguns profissionais a respeito daquele momento, como esse: Psi Pimenta: Agora, quando eu me senti trabalhando em equipe foi na discussão pra reunião com SecSau. Eu acho que ali a gente teve um processo extremamente interessante. Eu fiquei feliz em vários momentos, por estar sentando, das pessoas terem uma preocupação de discutir, dar conta, de fazer a comunicação por email, de estar em vários espaços de várias trocas, de várias idéias... Aquele momento eu senti. Mas acho que foi o único até agora! Porque teve uma extensão, a gente ficou quase uns vinte dias discutindo isso... Acho que aquele momento pra mim foi bem específico dessa... Pesq: Engraçado que a reunião ainda não aconteceu, pelo que eu sei! Psi Pimenta: Não aconteceu... Pesq: E só o mote “a reunião vai acontecer” já fez um movimento, algo bem interessante. Porque aquele momento foi um momento em que eu também pude estar mais presente, coincidiu com meu mergulho no campo, eu fiquei muito instigada, porque eu percebi uma abertura das pessoas para tentar caracterizar, enfim, que projeto NASF é esse que a gente quer pra o município. E, na verdade, nunca vai ser algo fechado: vai ser um fio condutor... Psi Pimenta: Eu acho que mexeu muito na sensibilidade... de ver que foi um projeto de ação, porque conseguiu atravessar as pessoas. Eu percebi isso. E eu sentia também que existe a possibilidade da gente estar mudando o rumo, né? Então, todo mundo foi pra aposta, mesmo que a conversa não tenha chegado até onde ela queria chegar, mas acho que a gente ainda hoje colhe alguns frutos... (...)

Durante o processo de discussão da apresentação, vários pontos foram ressaltados, tais como: relações na Secretaria, particularmente com os gestores; comunicação no NASF; definição de propósitos e objetivos do NASF; importância da trajetória até o momento, como balizadora do que estaria por vir; relações entre núcleos profissionais e caracterização do campo comum; definição do alvo direto das intervenções da equipe NASF – as EqSF ou a comunidade?, dentre vários outros.

120

Chamou atenção o aspecto de que, nos momentos voltados à preparação da apresentação para SecSau de que participei, boa parte dos profissionais tinha o Caderno da Atenção Básica sobre NASF, publicado recentemente pelo MS, nas mãos. Entretanto, reparei que não raramente o grupo resvalou, nas discussões preparatórias, a uma freqüência de ressentimento em virtude da percepção, expressa como “constatação” ou “fato”, de uma falta de valorização do dispositivo NASF na SMS. Aliás, lembro que esse foi o tom inicial do processo. Foi por um triz que o grupo não seguiu essa linha argumentativa e afetiva – situando-se na queixa e reclamação – enquanto organizava o material. Esse parecia ser um espinho difícil de arrancar! Mas o grupo dava mostras de que começava a perceber que a via para construção dessa legitimidade (e visibilidade) seria um mergulho na prática, junto à definição de objetivos comuns, coisa que eles começaram a experimentar a partir daquele movimento: Psi Orégano: (...) Falta a gente demarcar realmente e ver melhor esses... A gente se juntou muito pra fazer aquela apresentação. Então ali definiu que realmente faltava... A gente tem que estar incorporando essas diretrizes e orientação do NASF. Mas eu acho que a gente teria que ter incorporado mais essas diretrizes, de forma a se organizar mais de acordo com elas e que isso fosse um consenso.

Foi interessante retomar o ponto da preparação para a reunião com SecSau no encontro final com aquele grupo NASF. Farm Mostarda destacou que aquilo funcionou um pouco como “pressão”. Farm Orégano revelou a frustração pelo não acontecimento do momento com SecSau – ou seja, seis meses haviam transcorrido e a reunião não aconteceu –, mas destacou que o processo foi rico para o NASF. Psi Orégano refletiu que aquela preparação revelou que o trabalho desenvolvido não estava muito consistente e fez críticas à falta de cuidado da Gestão com o NASF, reafirmando a percepção de que ali, naquele processo, o grupo tinha funcionado como equipe, saltando das “ilhas”. Parece, então, que alguma disponibilidade para a travessia tinha se revelado. Psi Pimenta destacou sua chegada bem naquele momento e sua sensação de que ali algo importante acontecia, podendo se reverter em mudanças. Informou que já havia carro à disposição do NASF, que era um grande problema vivido pela equipe. Defendeu que embora a reunião não tivesse acontecido, avanços se apresentaram. Destacou que talvez esse fosse um ponto a aprofundar na análise, dando essa dica para mim: às vezes a equipe não se dá conta do processo reflexivo em andamento e das mudanças que vão acontecendo. Exemplificou, então, contando de uma reunião de sua miniequipe NASF, em que sentiu o grupo disponível para ousar, discutir casos etc. etc. Compreendeu isso como repercussão daquele processo vivido em função da possibilidade de reunião com SecSau. “Tava todo mundo esgotadíssimo, na freqüência da queixa!”, mas lhe parecia que algo tinha mudado. Enfatizou que eram comuns as seguintes atitudes: “Ou a gente fica retomando o passado ou fica visualizando o futuro, que está muito distante!”. Assim, foi firme na sua

121

compreensão de que as reverberações daqueles momentos de reflexão sobre o fazer chegaram à Gestão de algum modo. Foi desse modo que, mesmo sem ter acontecido, o encontro quase marcado cumpriu uma função provocativa e instigante... quase miraculosa... Só tendo vivido para acreditar! Ainda assim, achei que valeria tentar contar...

*** O processo de elaboração da apresentação para SecSau parece ter provocado um processo de reflexão sobre o que se fazia, talvez ainda mais importante que a reunião em função de que se elaborava a apresentação – que nunca aconteceu. Foi curioso perceber, durante a análise, que em nenhum momento se solicitou apresentação alguma do NASF, não se sabendo ao certo qual era propriamente a demanda de SecSau. A decisão do grupo de preparar uma apresentação parecia revelar a necessidade de externar uma “identidade NASF” no município, como modo de tornar o trabalho visível – entretanto, a construção dessa identidade no grupo ainda demandava um investimento. Desde que vivi aquele processo, pensei que ele constituiu um momento trans39 – por promover uma produção coletiva do grupo –, mesmo com as expressões de insatisfação, a ansiedade em relação ao encontro, as manifestações de decepção e os incômodos todos relativos pelo ao não reconhecimento do NASF na SMS. Foi bastante interessante como o grupo conseguiu se organizar para o intuito de se preparar para a reunião e, quiçá mais importante, ultrapassando a frequência queixa que tendeu a se instalar no início dos encontros. Lembro bem que esse foi um dos aspectos que mais me desalojaram e comuniquei isso aos interlocutores, dizendo que aquela possível reunião com SecSau era um momento a ser bem aproveitado e o grupo precisaria decidir se escolheria o caminho da lamentação pela não legitimidade do seu trabalho no contexto da SMS ou descobriria outras vias de conquistar essa reconhecimento40. Percebo que aqueles encontros promoveram uma espécie de catarse, pois muita coisa foi dita no grupo, revelando-se um alto grau de insatisfação em relação ao modo como o NASF se situava – e era situado – naquele contexto. Que o grupo pudesse se perceber – em suas ações, contradições, discursos e história institucional – parecia ser um passo importante para a conquista da tão desejada visibilidade, que compreendo como legitimidade ou reconhecimento do NASF. Sendo assim, percebo Por momento trans, refiro-me a ação transdisciplinar, tal como definida e defendia no Capítulo 3 dessa tese. Utilizo os termos legitimidade e reconhecimento como sinônimos, equalizando-os pela via do caráter de genuinidade – e não pela via legalista, já garantida pela Portaria – o que ocorre mediante configuração de uma dada identidade (ainda que fluida e passível de reconfigurações) num contexto específico, que é vista e aceita. A questão da falta de reconhecimento/legitimidade do NASF no contexto institucional ganhou destaque nos dois cenários pesquisados, o que pode ser vislumbrado ao longo do processo interpretativo apresentado nos contos e respectivas discussões.

39 40

122

que aquele processo preparatório para a reunião com SecSau, que tinha um forte simbolismo de encontro com o representante hierarquicamente superior da instituição, adquiriu um caráter interessante de proatividade e busca de mudança na situação do grupo. Daí a minha compreensão do encontro quase marcado com SecSau como um intercessor, tal como definido por Deleuze: “A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores” (Deleuze, 2010, p. 158). A função intercessora da quasereunião se evidenciou pela efervescência gerada a partir dessa possibilidade de encontro e, sobretudo, pela produção de um movimento entre aqueles profissionais do NASF, que se sentaram inúmeras vezes em prol do objetivo de planejar esse encontro e, quase sem se darem conta da importância maior disso, foram construindo e pactuando coletivamente uma direção desejada para o NASF, revisitando o que já vinha sendo realizado esparsamente por cada miniequipe. Curiosamente, o grupo avançava, às vezes sem perceber, na construção de um sentido comum para o que vinha sendo realizado, a partir da necessidade de elaboração de uma apresentação para o Secretário: a aposta que se configurava era a de revelar o trabalho e o processo de construção de sentido em andamento. Ao longo do processo, eu pensava em como precisamos – e buscamos – “nortes” definidos, já que a sensação de “estar à deriva” geralmente é suportada apenas à custa de muita angústia... No caso do trabalho em NASF, a construção de objetivos comuns parece fundamental; porém, uma padronização de modos de efetivar o trabalho não se revela como algo fértil. No contexto em questão, lidar com essa tensão era um desafio! Compreendo que a experimentação de fazeres nos territórios parecia a via mais própria para a legitimação do trabalho, em articulação com um processo contínuo de avaliação do que era promovido. Assumir a condição de “criar valores”, nortes, rumos – tomando o próprio fazer do profissional/equipe como uma bússola – parece uma atitude condizente com a realidade das necessidades de atuação no SUS. As referências importam – como normas antecedentes, na perspectiva já discutida – mas precisam ser autenticadas a partir de cada experiência, abrindo-se à construção de outras formas e normas, dado o inusitado das situações com que se depara. Importante frisar que não se apologiza aqui a via anárquica, pois, como já explicitado no método desse trabalho, aposta-se no primado da experiência, tomada como fonte primeva de produção de conhecimento (fazeres e saberes), atrelado a uma criação permanente de sentido ético-político ao que se faz. Assim, a possibilidade de reunião com SecSau – e a perspectiva de apresentação do que é feito pelo grupo – demandou um processo de organização coletiva, tendo se sobressaído a necessidade de uma melhor circunscrição do trabalho já feito e suas destinações, legitimada pelo

123

coletivo. Penso que o mote da reunião com SecSau teve função intercessora, forçando o grupo a entrar no movimento de buscar um lugar visível e legítimo na SMS. O grupo ia se dando conta da importância de construção de um projeto do NASF, autenticado por todos, de forma a escapar da dispersão e fragmentação das ações pela articulação via objetivos comuns; entretanto, penso que os modos possíveis deveriam continuar cabendo na invenção de cada miniequipe, com fundamento nas necessidades e demandas encontradas em cada contexto. Segundo Psi Pimenta, a partir daquele processo vivido, efeitos estavam sendo colhidos, mesmo sem que se percebesse. Quando mencionou a garantia do carro para o trabalho nos territórios como um possível efeito – bastante concreto, inclusive – destacou-se que o grupo vinha conquistando um espaço naquele contexto. Mas quase que aquela notícia passava despercebida – o que será melhor tematizado e discutido a partir de outro conto. De qualquer modo, a continuidade daquele processo de aproximação coletiva do NASF, deflagrado pelo encontro quase marcado com SecSau, dependeria de fatores diversos, inclusive da maturidade dos profissionais quanto à percepção da importância da garantia daqueles espaços de encontro, uma vez que o processo de construção de sentido ao que se faz é infindável e os efeitos nem sempre vêm na ordem do concreto – como a conquista de um carro – mas se situam na ordem das intensidades (campo de forças, numa referência nietzschiana), de impactos na correlação de forças em embate no âmbito da convivência humana no mundo, não sendo sempre nomeáveis. Isso diz respeito à possibilidade – sempre posta – de introdução de diferença, de inovação, de outros modos. Penso que apostando nisso se torna mais tranqüilo – ou menos angustiante – recarregar as baterias para seguir adiante no trabalho em saúde.

∞ Sexto Ato – Reuniões de Equipe: o desafio da criação de espaços de produção coletiva

M

eu primeiro contato oficial para tratar do Projeto de Doutorado e inserção em campo naquele município aconteceu com dois representantes da Gestão. Na conversa, ressaltou-se, para

mim, a defesa feita por eles da proposta de um processo de cogestão no trabalho do NASF. Falaram, à época, sobre o processo formativo que a equipe estava vivendo e do estímulo a reuniões por categorias, ressaltando-se a intenção de fazer circular saberes no NASF. Assim, fiquei animadíssima para a entrada em campo, reafirmando a decisão de priorizar os espaços de reunião de equipe como lócus primordial para a minha pesquisa-intervenção. O fato é que raramente vi acontecer essa circulação de saberes/dizeres/fazeres nas reuniões semanais que envolviam todas as EqNASF do município, tornando essa perspectiva de cogestão algo distante do cotidiano de trabalho que pude viver e testemunhar durante aquele período. Logo que cheguei, os

124

profissionais estavam apresentando, nas reuniões gerais semanais, os resultados dos encontros que vinham sendo feitos por categoria. Depois não vi muitos desdobramentos nem muita ênfase nesse aspecto... Segui interessada nessas reuniões gerais semanais, que tive a chance de acompanhar com uma frequencia razoável. Achava muito importante que pudesse ser garantido esse espaço profícuo – ao menos em tese – à discussão do que era feito pelas EqNASF: suas conquistas, dificuldades e desafios. Entretanto, não demorei a perceber que a garantia do espaço não trazia, na proporção esperada, o debate e a participação dos profissionais. Estive em várias reuniões e senti que a participação era algo que surgia apenas a partir de muito estímulo da coordenação e, ainda assim, costumava se restringir às mesmas pessoas. Parecia haver ali uma dificuldade de partilhar experiências, mesclando-se momentos de certa tensão e de apatia no clima do grupo. Aquilo começou a me deixar inquieta e, paulatinamente, aspectos diversos foram se descortinando nos meus contatos com os profissionais. Percebi que as pessoas reconheciam a importância das reuniões – que nem sempre existiram – porém relatavam diferentes momentos e modos de condução, destacando-se a ausência/presença de coordenador. Cabe destacar, outrossim, os diferentes tempos de entrada dos profissionais no NASF, que modulavam sua percepção desse dispositivo, com base em uma perspectiva histórica, inclusive. Algo que se realçou foi a percepção de alguns de que havia uma atmosfera competitiva entre as EqNASF, o que de certa forma poderia entravar o compartilhamento do que vinha sendo feito. Psi Açafrão, em conversa comigo, revelou ter essa impressão, que admitiu estar mudando em função de transformações na própria dinâmica do grupo: Psi Açafrão: Aí eu sentia muito essas rivalidades, tanto é que... – eu sou muito observadora! – no começo sentava por equipe... Sentava EqNAF X, sentava EqNASF Y, EqNASF Z..., sabe?, tudo fechadinho... E hoje você percebe que, às vezes é coincidência, sei lá... um senta do meu lado, o outro... Mas você já percebe que ficam separadas as pessoas... Não sei se você já pegou todo mundo separado, mas no início...

De qualquer forma, esse não parecia ser o aspecto principal a provocar o silêncio hegemônico dos profissionais nas reuniões, uma vez que em meus papos e participação em algumas atividades, eu pude vislumbrar o interesse e mesmo necessidade de vários membros da equipe em relação à troca de experiências. Em algumas conversas foi também pontuada a dificuldade de alguns profissionais do NASF de escutar críticas, especialmente em se tratando de equipes que não mantinham as suas reuniões sistemáticas. Percebi ainda que era bastante difícil, para as EqNASFs, conseguir realizar essas reuniões específicas (por miniequipe) periodicamente. Compreendi que isso era importante para a construção de uma sintonia mínima no grupo: as equipes mais entrosadas geralmente eram as que conseguiam se

125

encontrar para discutir suas intervenções. Todavia, esse é outro conto... Neste, tento tematizar as reuniões gerais do NASF, que se divide em equipes regionais no município. Em alguns diálogos, profissionais indicaram não sentir um investimento ou envolvimento equânime de todos os colegas em relação ao trabalho – e à construção do seu sentido. Embora essa análise seja delicada, dependendo muito da percepção de cada um, fica difícil não abordar esse ponto nesse conto, já que foi muito recorrente nas falas. Em se tratando da relação disso com as reuniões de equipe, no contexto de uma discussão de sua miniequipe, Psi Gengibre revela: Psi Gengibre: Agora assim, eu acho que nem todo mundo pensa dessa forma que a gente está discutindo aqui. Eu penso que pra muita gente é assim... é mais cômodo simplesmente seguir as ordens e pronto! Pra mim ficou um pouco isso lá naquela reunião... que pra eles, o que decidirem ali tá bom e pronto. Não precisa discutir! Eu não vi discussões tipo: “Por que a gente não pode fazer assim?” ou então “Por que...?”, sabe?, eu não senti uma discussão no sentido da prática.

A reunião a que ela se referiu foi uma das últimas reuniões gerais de que participei, que teve um caráter avaliativo do trabalho empreendido pelo NASF, tendo um dos pontos abordados sido justamente o formato das reuniões, acessado inicialmente via freqüência nos encontros. Então, EF Noz-Moscada jogou na roda a proposta de as reuniões serem quinzenais, argumentando que essa seria uma estratégia para potencializar as reuniões e a participação das pessoas. Psi Coentro destacou que a cobrança de presença nas reuniões era algo que incomodava, por vezes. Psi Canela destacou que as reuniões costumavam ser “monótonas e desinteressantes”, indicando que talvez esta fosse uma justificativa para faltas freqüentes. Psi Açafrão propôs que houvesse apresentações de experiências exitosas de cada EqNASF para troca e aprendizado. A coordenação acatou, dizendo: “Quanto mais a gente conseguir trazer vocês para trabalhar juntos, melhor!”. Em meio ao debate, alguém observou que geralmente a maior parte do grupo estava presente nas reuniões, com o que concordei e, assim, põs-se em questão a baixa assiduidade. De fato, este não parecia ser o xis do problema. EF Noz-Moscada, então, disparou: “Falta um senso coletivo!” e aprofundou, enfatizando que cada um, ali, pensava apenas em sua participação, em si. Senti que se instalou uma tensão. Outros aspectos passaram a ser discutidos. O importante, entretanto, foi que a necessidade de “turbinar” as reuniões foi sendo explicitada. Foi então que, no dia posterior a tal reunião, em contato com uma das EqNASF, em atividade de campo, numa conversa informal se revelou um ângulo fundamental para a compreensão da dinâmica que eu sentia nas reuniões. Enquanto esperávamos o início da atividade, fui questionada quanto à minha percepção da reunião. Respondi que, apesar de ter sido interessante, senti as pessoas muito travadas, sem se expressar. Naquele momento a equipe disparou a falar de sua insatisfação com as reuniões. Foi dito que não se podia ficar à vontade nelas: que apesar de a coordenação sustentar que todos poderiam falar abertamente, no final prevalecia o que eles (da Gestão) pensavam. Falou-se também da facilidade com que as pessoas eram demitidas na SMS.

126

Depois desse episódio, a minha compreensão se alargou. Eu estava tão convencida – e continuo pensando assim – da importância de uma coordenação (de equipe, de política, de serviço) a ponto de ter a percepção obliterada acerca de certos fenômenos que estavam se passando no grupo. A questão é que o modo de a coordenação acontecer é fundamental. Segui, assim, nas brechas possíveis, provocando os profissionais em relação ao silêncio e à estreita utilização do espaço das reuniões gerais para expressão do que se sentiam, percebiam e/ou construíam, mesmo com tanto estímulo da coordenação. Num encontro com uma das equipes, a mesma com quem tinha tido a conversa informal citada anteriormente, esse ponto foi discutido amplamente: Pesq: Mas nem por isso aquele espaço ali tem que ser um espaço só operatório, de cobrança e resposta, né? Vai depender muito do que esses atores estão disponíveis a bancar... Porque tem isso... tudo tem um preço. Acho que aquele silêncio de boa parte das pessoas na reunião já vem de um processo... Não sei o que vocês vão conseguir fazer com isso! Eu fico na torcida e também muito disponível também pra bater papo, daqui por diante, né? Voltar de outros modos... Psi: Eu acho que o silêncio demonstra muito medo, né? Nutri: Muito medo. Psi: Pelo menos é o que a gente meio que discute... que simboliza o medo... de tipo, o que eu falar, isso aqui vai se ver como uma coisa positiva ou negativa. É a insegurança, a insegurança que o ambiente nos traz. É uma coisa tensa! Nutri: A gente tem medo de falar uma coisa e aí vir uma bomba, como já aconteceu antes. Antes, só por causa de uma risada que a gente deu, virou uma reunião super pesada, foi uma discussão danada, por causa de uma risada, que foi minha e de Psi... Psi: Só nossa não: de todo mundo! Nutri: Foi, todo mundo, mas caiu apontada pra gente. E depois disso a gente falou “Não, a gente não pode mais falar nada na reunião!”. (...) Psi: Mas acho que é questão de atitude mesmo! Acho que é como você estava falando... O espaço tem que ser mais participativo, e não apenas impositivo, de cobrança. Acho que é isso que tá também pesando. A sensação que a gente tem, pelo menos o que a gente tem conversado, é tipo “Eu vou falar o que, se a gente começa a discutir uma coisa e, no fim, o que prevalece é o que a coordenação decide?”. Não é verdade? Não é isso que a gente tava discutindo? Farm: As coisas parecem que são acordadas, mas na verdade não são. (...) Psi: (...) Porque a gente sabe que na reunião ninguém vai falar totalmente do que acha. Se você já vive nesse clima de medo, de insegurança... (...) Farm: Eu acho importante. Eu acho que tem que ter... Eu sou a favor das reuniões semanais, que a gente já teve a experiência de ser quinzenal e não dá certo. É muita gente e o grupo se distancia... Psi: ... se distancia mais... Farm: O grupo se distancia, se perde, tá entendendo? Eu acho muito importante. Pesq: Que é essa coisa do espaço coletivo, onde as pessoas falam do que pensam e do que fazem. Farm: É bom a gente estar discutindo o que tá acontecendo, isso tudo... Mas a questão é que as coisas vêm de lá de cima já determinadas, tá entendendo? Nutri: Acho que se o NASF fosse concursado, acho que seria completamente diferente... Eu acho, né? Se eu fosse concursada, eu falaria ali o que eu tava pensando... Aí ia ser um debate de ideias... Mas eu falar ali para me expor?... e depois... Nunca!! Farm: (...) Ali é um espaço para a gente discutir e opinar as coisas! Só que a gente fala, a gente discute, cada um diz o que é que acha, só que no final é o que tem que ser e pronto.

127

Psi: Eu acho que ali só muda mudando a coordenação. Farm: É! Psi: Não digo necessariamente tirar uma pessoa e colocar outra... mas mudar o sentido de a pessoa ser coordenador, sabe? Pesq: Mudar o modo...

Como era esperado, esse ponto das reuniões gerais voltou a ser discutido em diversos encontros, já que revelava uma dinâmica do grupo. No encontro final que tive com a equipe, muitas reflexões foram feitas em torno disso e opto por encerrar essa história (a ser levada adiante nas discussões) com um fragmento de lá. Em dado instante da discussão, eu disse que uma grande fonte de aprendizado estaria na própria troca de experiências entre os componentes do grande grupo NASF, coisa que não vi acontecer com frequencia. Isso me permitiu entrar na revelação de minhas impressões em relação às reuniões semanais – dessa vez para a maior parte do grupo, simultaneamente – de que não eram espaços de produção coletiva e troca de experiências, tornando-se muitas vezes áridas. Aproveitei para fazer uma instigação a respeito do clima de competitividade entre EqNASF como algo sem sentido, já que se trata, no final das contas, do mesmo grupo NASF. Então, Psi Açafrão desabafou: “Nunca começa com troca. Não me lembro de uma reunião – alguém me lembre aí se eu estiver equivocada – em que tenha tido alguma abertura, alguma interrogação, algum incentivo... que dissesse assim: ‘Fale alguma coisa e vamos trocar!’ Não tem! Eu vejo as reuniões como informações, informações... e compartilhar a atividade que a gente vai fazer. Mas o que a gente tá fazendo, ser compartilhado, não!”. Fazendo eco a essa percepção, Farm NozMoscada falou: “A gente só ta ali pra sentar e receber informação!”.

*** No conto se revela a curiosa dinâmica nas reuniões gerais semanais: embora agregassem os profissionais de todas as miniequipes NASF, não vinham sendo espaços em que as pessoas se sentiam à vontade para falar do trabalho produzido, por vezes envolto de insatisfações e dúvidas, embora houvesse um estímulo da coordenação para que se expressassem. As reuniões costumavam ser silenciosas e áridas. De partida, é fundamental frisar que esse ponto relativo à dinâmica nas reuniões de equipe assumiu um caráter transversal na experiência de campo, estando inclusive presente em outros contos. A grande inquietação que vivi ao participar daqueles momentos pode se traduzir na seguinte questão: como promover, por meio das reuniões gerais, um espaço de expressão genuína dos êxitos e das insatisfações com o trabalho realizado, como via de elaboração da experiência vivida e produção de sentido ao que se faz? Percebi que havia a necessidade de maior atenção às possibilidades de trocas e aprendizagens conjuntas que existiam dentro do próprio grupo do NASF, pois de fato havia

128

pouco compartilhamento de experiências, em um grupo que apresentava uma diversidade riquíssima de profissionais com seus respectivos saberes/fazeres. Ali, no próprio grupo, havia fontes de aprendizagem, a exemplo do que foi apresentado e discutido a partir do conto sobre a tecnologia das rodas de conversa. Percebi algumas outras experimentações desse compartilhamento de experiências, como em uma reunião dos educadores físicos, para planejar o encerramento da Semana dos Idosos, em que houve momentos férteis de trocas a respeito dos grupos de atividade física, de modo muito light e prazeroso. Essa pareceu uma forma de dar maior realidade ao trabalho, de perceber o que vinha sendo feito e de aprender naquele coletivo. Retomando a perspectiva espinosana sobre a dinâmica das afetações a partir dos encontros, percebia que nas reuniões predominavam as paixões tristes. O espaço garantido para o coletivo, antes de privilegiar a criação conjunta dos rumos do NASF e de suas atividades a partir da elaboração em torno da experiência vivida em campo pelos diversos participantes, estava preenchido de um caráter burocrático e essencialmente normativo. As reuniões acabavam funcionando prioritariamente como momentos para repasse de informações institucionais e tarefas, não sendo raras as cobranças. Por algum arranjo contingencial, as composições entre os corpos – utilizando a linguagem de Espinosa – não estavam se constituindo como arranjos promotores de ação. Dito de outro modo, o padecer parecia se sobressaía ao agir e, via de regra, das reuniões não brotava muita novidade ou, ao menos, apetite para a ação, preponderando um caráter um tanto repetitivo. Os momentos destinados ao processo formativo buscavam escapar a essa espécie de monotonia, mas nem sempre alcançavam esse fim, como já discutido em outro conto. Partindo das pistas que indicavam que as reuniões não eram espaços abertos à expressão das idéias/ afetos, fui percebendo que, nelas, as pessoas se sentiam tensas ou desinteressadas e a relação com os modos de gerenciamento do grupo, além de características do próprio contexto institucional, foram se evidenciando. Quando foi se apresentando uma percepção do próprio grupo de uma condução autoritária das reuniões do NASF, a minha compreensão daquela dinâmica das reuniões foi se configurando mais claramente. Eu sabia que não tinha que ser a porta-voz direta daquilo, mas fui fazendo provocações a respeito dos modos de relação grupo-coordenação NASF, em momentos que considerava oportunos, porém nem sempre fáceis de vislumbrar. Havia um estímulo contínuo da coordenação para que as pessoas falassem e se posicionassem, que não parecia surtir efeito – aquilo me causava muita estranheza. As reuniões não eram de fato espaços em que as pessoas se sentiam confortáveis para se expor, para falar. Foi se fortalecendo a percepção de que o silêncio característico das reuniões gerais era – em grande medida – fruto de uma opção, dos próprios profissionais, fundamentada na necessidade de autodefesa ou

129

proteção. Imaginei que, nesse clima, não seria fácil promover encontros em que as pessoas se sentissem abertas a dizer o que pensavam e sentiam, participando efetivamente do processo criativo do trabalho. Inevitável tocar em aspectos do contexto político-institucional, em que prevaleciam relações também autoritárias, destacando-se a precariedade dos vínculos de trabalho. Essa característica remete a um macro contexto político-econômico de nosso país, que assume contornos mais graves em alguns municípios: mudam as gestões municipais e não se percebem investimentos reais e continuados na contratação efetiva de profissionais para os serviços da rede pública, com garantia de direitos trabalhistas, de modo que a população fica ao sabor da mudança de equipes inteiras, por vezes. Não é difícil imaginar o sofrimento dos profissionais em função da instabilidade de sua vinculação institucional. Entretanto, não é objetivo dessa pesquisa aprofundar este ponto, sendo, entretanto, imperativo, ao menos apontá-lo. Esse aspecto parecia constranger as pessoas, que não bancavam expor suas idéias sob pena de sofrer algum tipo de retaliação. Percebi que o fantasma da demissão – retaliação maior – estava constantemente presente, nos dois cenários pesquisados. Fui, então, percebendo o descrédito nos espaços coletivos. Os profissionais não se sentiam com liberdade para criar e definir possibilidades de trabalho/intervenção, pois tinham a impressão de que, no final das contas, as definições vinham mesmo do “alto”, das instâncias hierarquicamente superiores, representadas ali pela coordenação. Cheguei a ouvir a indicação de que as reuniões gerais constituíam um espaço “falsamente democrático”, o que me pareceu muito significativo. Penso que cabe um destaque à delicadeza do lugar do coordenador, que fica entre as instâncias superiores de Gestão e as equipes que gerencia, sendo cargos comissionados – cuja terminologia corriqueira é “cargo de confiança” – não sendo simples lidar com essa tensão ou dupla pressão (da Gestão da SMS e da equipe). Assumir um cargo de gestão compromete a pessoa com uma dada cartilha institucional, sendo esta uma marca indelével, de modo que fica o desafio de construir laços de confiança com o grupo sob sua responsabilidade gerencial. Considero pertinente destacar que nos contatos mais privativos, no contexto da pesquisa – fossem conversas informais individuais ou com alguns participantes de EqNASF simultaneamente – os interlocutores pareceram se sentir confortáveis e muito à vontade para falar comigo de questões bem próprias da relação com a coordenação e com a própria SMS, muitas vezes fazendo análises das dinâmicas percebidas. Penso que isto está relacionado com a proposta metodológica e seu caráter interventivo, em que me pus em contato com os interlocutores, disponível a também me posicionar de algum modo em relação ao que eu estava vivendo e percebendo na imersão em campo. Foram particularmente nesses momentos que surgiram críticas contundentes ao modo de exercício da

130

coordenação do NASF, caracterizado como autoritário, tenso, rígido, ao ponto de as pessoas revelarem medo e insegurança de se expor e de falar. Assim, a dimensão prazerosa da prática, quando existia, acabava não tendo a chance de surgir ou se revelar. Neste ponto percebo a possibilidade de fazer uma articulação teórica com a discussão empreendida por Hannah Arendt em torno da fragilidade dos negócios humanos (ARENDT, 2001). Para a compreensão da ação e do discurso – tomados como atividades humanas por excelência – Arendt recorre principalmente à experiência grega do agir político, no contexto da polis, lançando mão novamente do sentido etimológico do verbo agir, encontrando, tanto no grego como no latim, dois vocábulos diferentes, mas correlatos, que lhe designam: archein – com os sentidos de começar, ser o primeiro e, por fim, governar – e prattein – significando atravessar, realizar e acabar –, no grego, e os correspondentes latinos agere – indicando por em movimento, guiar – e gerere – originalmente significando conduzir. A partir disso, analisa a dupla natureza da ação, que envolve o começo – realizado por uma pessoa apenas – e a realização – em geral, levada adiante e acabada por muitas pessoas. Em sua análise, Arendt observa que as palavras prattein e gerere, que se relacionavam à segunda parte da ação – sua realização – passaram a ser utilizados para designar ação em geral ao passo que archein e agere, relativas ao começo da ação, adquiriram um sentido especial – na linguagem política, sobretudo – relacionados a governar e liderar, esmaecendo-se os sentidos originários de começar e por em movimento. Assim, destaca: (...) a interdependência original da ação – a dependência do iniciador e líder em relação aos outros no tocante a auxílio, e a dependência dos seus seguidores em relação a ele no tocante a uma oportunidade de agir – dividiu-se em duas funções completamente diferentes: a função de ordenar, que passou a ser prerrogativa do governante, e a função de executar, que passou a ser o dever dos súditos. O governante está só, isolado contra os outros por sua força, tal como o iniciador estava, a princípio, isolado por sua própria iniciativa, até encontrar adesão dos outros. Contudo, a força do iniciador e líder reside apenas em sua iniciativa e nos riscos que assume, não na realização em si. No caso do governante bemsucedido, ele pode reivindicar para si aquilo que, na verdade, é realização de muitos (...). (ARENDT, 2001, p. 202/203)

Considero que esse fragmento pode aprofundar a compreensão em torno da dicotomia que muitas vezes se estabelece no contexto da política – e nesse caso, estamos nos referindo especificamente ao campo da política de saúde – entre os gestores e os profissionais dos serviços, ou seja, entre os que planejam e os que executam. É no sentido de superação disso que defendo que o gestor deve antes ser um disparador, em sua função de governar, sem uma separação do processo de realização, que envolverá muitas mãos, ao mesmo tempo em que aos profissionais que põem em andamento os projetos, no processo de realização, também podem disparar processos, assumindo algum nível de gestão em relação a sua prática. Outra perspectiva importante é perceber que a atividade de gestão precisa se alimentar da experiência de realização, como forma de ser conduzida ou acabada de modo apropriado às reais necessidades que se apresentam no contexto das práticas.

131

A fragmentação achein/prattein ou agere/gerere que foi se forjando historicamente prejudica o agir político e pode ser entrevista, por exemplo, no modo de gestão predominante nos cenários pesquisados. Ainda recorrendo a Arendt (Ibidem), aposta-se que a ação e o discurso estão entranhados na teia de atos e palavras de outros humanos: a ação ocorre sempre na teia de relações, entre homens, não no isolamento. Sendo assim, modos de gerir que promovam o afastamento e o isolamento dos componentes do grupo – ou o silêncio – não se coadunam a uma perspectiva de ação política, que parece ser a exigência para a atuação em saúde, a qual, necessariamente, ocorre entre pares, num processo contínuo de co-engendramento dos envolvidos. Lembro-me da discussão em torno da proposta de cogestão empreendida anteriormente e reafirmo a importância de ir além do teórico ou proposto, experimentando-se em ato este tipo de arranjo, o que implica, ao mesmo tempo, construí-lo, posto que não haveria regras fixas nem modelos ideais a serem perseguidos, conforme compreendo. A proposta de cogestão, enquanto participação de todos na definição dos rumos do trabalho em saúde, é iluminada pela perspectiva da polis grega, esfera política por excelência, espaço da aparência, em que todos deveriam se mostrar via ação e discurso. Difícil dar conta desse exercício se há um tipo de organização do contexto institucional que limita propostas sintonizadas com a corresponsabilidade. Retomando o sentido arendtiano de ação, podemos iluminar a discussão sobre a dicotomia entre ação idealizada e ação concreta, com foco no trabalho em equipe, que se revelou com certa freqüência no campo. Possivelmente nem mesmo caiba falar em ação idealizada, dado que ação remete ao ato e à palavra viva. Aspectos em geral percebidos de forma idealizada se apresentavam nas falas dos profissionais, tais como um trabalho sintonizado, integração do grupo, pessoas com objetivos comuns, planejamento conjunto, atividades conjuntas, conhecimento do trabalho e passos de cada um por todos da equipe e outros. Mas poucas vezes vi isso como ação concreta, engendrada no cotidiano das práticas. Os modos de fazer – ação concreta experimentada em cada contexto – não eram tomados para reflexão ou postos sob investigação nas reuniões. Enfim, concluo que a mera existência de reuniões e coordenação não garante a tessitura de um trabalho coletivamente orientado, sendo fundamentais os modos em que esses dispositivos se configuram. A aposta nos espaços coletivos, como via de construção de sentido ao que se faz, depende do trançado das relações que se estabelecem entre as pessoas, importando significativamente os modos de gestão. A circulação de fazeres/dizeres/saberes constitui um desafio no qual interferem muitos fatores, a exemplo das características institucionais; existência de investimento na construção de laços de confiança; grau de abertura à alteridade, pela valorização dos diversos pontos de vista; caráter das relações de poder estabelecidas; modo de ocorrência das necessárias

132

negociações e outros. Aí entraria também a análise da qualidade das relações estabelecidas nos grupos de trabalho. Como indicado no conto, alguns componentes sentiam um clima de competitividade entre miniequipes NASF – participantes de um mesmo grande grupo – que inicialmente se marcava até no modo em que sentavam: os profissionais de cada equipe juntos. Pela indicação de que se percebiam mudanças nessa dinâmica, acredita-se na possibilidade da criação de outros modos de relação – por que não dizer mais solidárias – ainda mais por se tratar de um mesmo grupo de trabalho, dentro de um mesmo projeto. A percepção dos próprios interlocutores de diferentes graus de investimento dos profissionais com o trabalho também se destacou como ponto importante de análise para mim. Penso que, talvez, isso se relacione à falta de identificação com o trabalho, um aspecto que considero pertinente para que sejam gerados resultados interessantes. A isso se faz necessária uma atenção especial do gestor.

∞ Sétimo Ato – Esquecimentos e Desencontros: a delicadeza na construção das relações nas e entre equipes

U

m dos pontos que mais me inquietaram foi a reiteração dos seguintes fatos: reuniões esvaziadas, atrasadas ou canceladas – tanto as reuniões do grupão NASF em cada município, das próprias

EqNASF especificamente e das EqNASF com alguma EqSF. Inicialmente havia uma dificuldade de conseguir marcar um horário e, posteriormente, de garantir o cumprimento do horário e da atividade combinada. Em relação às reuniões gerais NASF, vi um esforço de tentar garanti-las com freqüência semanal, o que me parecia um empenho crucial. Focarei, nesse conto – que mescla situações dos dois cenários pesquisados – as reuniões das EqNASF (por miniequipe) e destas com as EqSF. Raras vezes consegui articular a minha participação nessas duas modalidades de reunião, considerando o período de 10 meses em que fiquei em campo. Escutava frequentemente sobre a importância de garantir que as EqNASF sentassem para discutir sua dinâmica de trabalho e planejamento das ações bem como de articular espaços com as EqSF para que qualquer planejamento feito partisse das demandas indicadas por estes grupos – já que as EqSFs estão imersas cotidianamente naquela realidade específica, ao menos em tese, conhecem melhor o que se apresenta ali em termos de recursos e dificuldades. No entanto, a dificuldade que tive em conseguir me inserir em tais modalidades de atividade revelou para mim – de certa forma – o aperto que era para as EqNASFs conseguir efetivar esses encontros. Depois, nas conversas com os profissionais, percebi que essa era uma dificuldade concreta!

133

Um dos empecilhos que eu pude perceber era a ginástica necessária para conciliar horários, uma vez que todos das EqNASFs e EqSFs estavam com frequência bastante ocupados – geralmente em tarefas individuais –, havendo muito a dar conta. No que se refere às reuniões com as EqSF, muitas vezes escutei como justificativa a dificuldade do transporte até o local. Outras tantas, a própria EqSF desmarcava o encontro, em função de alguma tarefa urgente que surgia. Ainda em outros momentos, o desencontro se dava de modo desalentador: apesar de marcado, um dos grupos deixava de comparecer. Às vezes, os encontros engatavam, mas percebi que não era o mais comum. O relato da Psi da EqNASF Açafrão indica duas situações – uma de abertura e outra de desencontro com EqSFs: Pesq: E a equipe NASF junto com a equipe saúde da família? Psi Açafrão: É complicado! Pesq: Tem algum movimento com essa EqSF Abacateiro que te faz pensar que algo se abre pra ser trabalhando em equipe? Porque eu sei que vocês estão em várias EqSFs, então cada realidade vai ser... Psi Açafrão: Aqui em Abacateiro, é a equipe que eu sinto mais aberta pra gente. Eles – e a própria enfermeira também – têm realmente uma disposição muito grande. No dia que a gente veio combinar uma reunião com os agentes de saúde, que era pra começar a coletar os dados, na mesma hora ela saiu pegando as fichas dela e disse: “O que é que eu faço pra ajudar vocês?”. Me mostrou uns mapas que ela tinha e tal. Então, se ela tiver tempo, ela senta mesmo. Às vezes ela diz: “Olha, eu tô atendendo hoje, tu não podia vir tal hora, não?”. Então, você percebe! Não sei se é por aqui ser só uma equipe, e por ser pequeno, principalmente ela ser sozinha, entendeu? Então realmente ela não tem a ajuda do médico... porque o médico dá 20 horas... Pesq: Ah, o médico... Porque já é uma distorção, né? Psi Açafrão: Eu acho muito complicado... Pesq: ... pra uma equipe Saúde da Família. Psi Açafrão: Mas ela tem uma preocupação muito grande, ela é muito disposta a ajudar... Tudo que a pessoa achar necessário, ela faz. Já a EqSF da Caraibeira, por incrível que pareça, é a USF da gente, de referência, e é onde a gente tá tendo mais dificuldade... (...) A gente tá agendando a apresentação do NASF, são as primeiras apresentações de reunião que a gente vai fazer... A Caraibeira foi a última a dar uma data pra gente. Desmarcava, marcava, desmarcava, marcava. Depois foi Saúde do Homem. Uma dificuldade tremenda pra marcar também! E os agentes de saúde, não: eles chamam muito a gente, para várias visitas. Mas a equipe em si, eu já percebi que eles querem ser convidados. Eles não querem convidar a gente. E pra gente convidar mesmo, tem que ficar lá, pedindo, lembrando. Aconteceu um fato lá: a gente marcou uma reunião, de apresentação do NASF, e eu lembro que era pra manhã seguinte, e disseram: “Eita, vai ter reunião do Bolsa-Família!”. Não, era uma reunião sobre uma dessas doenças que eu esqueci agora... “Mas venha a partir de dez e meia, onze horas a gente faz a reunião, que é o tempo que acaba, que o posto já vai estar fechando”. Eu lembro que eu cheguei e, no que eu cheguei, a médica tava saindo de carro, com a estagiária de enfermagem. Eu disse: “Vocês tão indo embora?”, aí ela falou: “Tamo indo!”. Nisso combinaram comigo um dia antes, por exemplo, como se fosse assim, na quarta e foi na quinta. Pesq: É de ficar com a cara no chão, não? Psi Açafrão: Aí eu: “Não é reunião?”, e ela: “E você chegou agora? Porque não marcou comigo ontem onze horas? Ainda são dez e meia. Você poderia ter vindo mais cedo. Faz tempo que terminou o negócio... E tá tendo um evento no colégio e todo mundo tá indo embora, todo mundo já foi, os ACS já foram, e a gente tá indo pra lá... inclusive as coordenadoras de área estão lá.”. Eu lembro que eu olhei pra menina e disse: “E a enfermeira?”, “A enfermeira tá tirando folga, tá indo embora. Não tem mais ninguém.”, “Então eu tenho que ir embora?!”, “É! Você vai fazer o que aí?”. Eu ainda fiquei no carro, liguei pra Farm, ele estava saindo com o datashow... “Deixa o datashow... Tá desmarcado, todo mundo foi embora!”, aí ele: “Mas eles não marcaram?”. (...) Foi o tempo de eu chegar em casa, onze e meia, outra enfermeira liga pra mim: “Cadê você?”, “Eu tô na porta de casa.”, ela: “Tá todo mundo aqui!”, “Não, me explique isso direito, eu cheguei...”, “Não, realmente o pessoal saiu, e eu fiquei aqui, e liguei pra todo mundo e pedi pra todo mundo voltar, inclusive a médica voltou também!”.

134

Pesq: Não acredito! Psi Açafrão: Aí eu fiquei: “Eu não tô entendendo”. Pesq: Que erro de comunicação foi esse?! Psi Açafrão: Eu disse “Eu não tô entendendo esse erro de comunicação.”. Depois ela me disse: “Inclusive, a coordenadora de área tá aqui.”, e eu disse “Então eu acho que o pessoal voltou por causa da coordenadora de área, não foi isso?”, e ela, “Eu não sei... Sei que a médica esqueceu, pensava que a reunião era antes...” e não sei o que... Eu disse, “Eu só fiquei preocupada porque isso foi combinado ontem comigo, não tem nem vinte e quatro horas, não deu nem pra fazer vinte e quatro horas direito! Enfim, eu posso voltar, eu volto agora, se você quiser...”, aí ela: “Não, já são onze e meia! Vamos marcar outro dia.”. Marcamos outro dia, até que deu certo.

Nesse panorama, recorrentemente vi as EqNASF culpabilizarem as EqSF pela falta de envolvimento e interesse, nem sempre conseguindo fazer uma autocrítica. Em conversa com Farm Noz-Moscada, escutei um desabafo em relação à dinâmica de sua equipe, que vai na contramão do que acabei de escrever, mas posso afirmar que foram raros os momentos em que vi este tipo de avaliação: Farm Noz-Moscada: (...) porque eu só vejo a galera jogar as dificuldades nas equipes: “Ah, a equipe não quer fazer isso”, “Ah, a equipe não faz isso”... Pesq: E não se percebe... Farm Noz-Moscada: E a gente não tá se percebendo... que a gente não tá fazendo esse trabalho... que a gente não tá nem ajudando a eles... que eles estão necessitando de nossa ajuda... e que a gente não tá ajudando. A gente tá cobrando na realidade... e realmente isso é verdade.

Em relação à dinâmica de sua EqNASF, Farm Noz-Moscada falou da dificuldade de comunicação entre eles bem como da dificuldade de partilhar responsabilidades, a ponto de se sentir muito sobrecarregado: “Foi o que eu coloquei... que eu não tô aguentando assim, levar o barco só... Não tô aguentando, só eu puxando, só eu puxando!”. A busca de estratégias que viabilizassem uma maior aproximação entre EqNASF e EqSF foi um tema constantemente em pauta e escutei um relato bem instigante de Psi Pimenta em relação ao movimento de sua EqNASF na direção desse estreitamento de laços com as EqSF, após muitos desencontros: Psi Pimenta: Eu e Farm sentou pra ver como a gente vai fazer esse planejamento, como é que a gente vai se apresentar, partindo do princípio de que a gente já fez essa apresentação com a equipe, a gente fez uma rodada com todas as equipes, foi em todas as unidades, quer dizer, faltou uma... (...) A gente já fez isso que, pra mim, eu fiquei embolada, tentado fazer uma conversa com elas que não fosse como nas reuniões que a gente foi e escutou muita queixa, mil coisas (...) Então os agentes de saúde vinham com três pedras na mão pra jogar na nossa cabeça “Ah, porque vocês já vieram aqui...”. Isso pra mim foi muito tenso e triste... “Ah, vocês já vieram aqui, já prometeram que fariam e ia acontecer, e nada! E nada!”. Aí, a gente demorou demais! Por exemplo, a gente foi na primeira equipe, até chegar nessa equipe, percorrer as nove e voltar, haja tempo, né? A gente fez uma arrumação pra dividir, a gente criou – não sei se isso é meio certo, mas é o que a gente tá fazendo – um técnico de referência pra cada equipe. Eu tô com três equipes, AS com três, e Farm com três. Aí, dessas três, por exemplo, eu vou ter um contato semanal e direto com essas pessoas, essas equipes, reunião de equipe. (...) a gente fez uma rearrumação pra gente conseguir estar nessas reuniões. Tudo que acontecer, eu sou a referência direta, mas isso não significa que só eu vou trabalhar lá. A gente vai se organizar enquanto NASF pra estar... Mas é só pra gente fazer essa vinculação direta... pra não ficar aquela sensação “Ah, o NASF só vem aqui de mês em mês, que o NASF isso, que o NASF aquilo”... A gente tá tentando, na reunião com elas (as EqSF). Elas acharam ótima a experiência...

135

A necessidade dessa aproximação era patente, inclusive pela expressiva demanda que começava a chegar na própria Secretaria de Saúde, como uma evidência da falta de articulação entre EqNASF e EqSF nos territórios, forçando os profissionais do NASF a buscar saídas: Psi Pimenta: Quando a gente vai fazer visita, eu sempre tento conversar com a equipe. A gente tem outra questão de uma menina que... inclusive ela vem direto aqui na Secretaria... Não! Tem chegado vários usuários! Pesq: Na Secretaria? Psi Pimenta: Sim, isso tem me incomodado muito, muito, muito. Tem me incomodado muito! Até tava conversando isso com Farm... tipo: como o trabalho tá chegando pra os usuários? Tem vindo direto! Vários, vários, vários! Pesq: Eu acho que tem alguma coisa aí que tá... Eu acho que a retaguarda... Se tá chegando aqui é porque a retaguarda de algum modo não tá funcionando bem. Psi Pimenta: Não tá funcionando! Não sei como não chegou um ainda. Todo dia chega, tem dia que eu fico aqui fazendo atendimento, uma hora conversando e eu “Meu Deus do céu!”, me incomodando, mas ao mesmo tempo não querendo me negar e “Meu Deus, o que é que eu faço? Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come!”. E aqui, você viu o fucofuco que é, né? Impossível qualquer tipo de acolhimento, aqui não é o lugar, nada... Aí, a gente tá com esse cuidado pra que não venha, porque acaba vindo por uma série de questões. No caso, essa menina que vem queria falar, aí um que vem atrás do exame, um que vem atrás não sei de quê, um que vem atrás de uma cesta, um que... Vem por mil motivos! E aí eu não sei se, por exemplo, é a equipe que diz: “Ah, vai na Secretaria, porque o NASF tá na Secretaria.”, porque a gente não tá lá... Tem essa questão. E aí fica super, super complicado... (...) Aí ela veio, eu fui e marquei o atendimento lá na unidade. Eu fiz o atendimento que a gente acabou marcando. Mas aí a gente amarrou que tinha uma atividade educativa antes (...) Surgiu uma série de questões. Era um grupo de família pra discutir o uso e abuso de substâncias psicoativas. Aí a gente fez e daí surgiram algumas questões... que a gente vai amarrar ainda isso, a esse caso e a outros que... Mas aí a equipe (a EqSF) tem que estar fazendo e o NASF estar junto, né? A equipe que vai ter que se virar nos trinta.

O processo de conquista das EqSF pelas EqNASF se revelou árduo e a questão da falta de infraestrutura para a inserção em campo, característica de um trabalho volante, destacou-se como um dos empecilhos, particularmente em um dos cenários, tendo como expressão maior a falta de transporte: Farm Mostarda: Agora uma coisa que me preocupa demais aqui... Porque querendo ou não a gente esbarra nisso direto... é muito forte... Porque eu acho inadmissível a gente marcar um negócio com a unidade... um encontro com a equipe, seja lá para fazer o que for... e a gente não ir! E é corriqueiro isso aqui: ligar para dizer que não vai. E eu não tô mais disposta a estar no meu transporte. Porque eu não acho justo, sabe? Acho que a Secretaria teria que se preocupar mais com isso... pelo fato de realmente ser um programa federal, de ser uma verba federal. Eu tô muito preocupada pela questão da continuidade mesmo... A gente tá marcando atendimento, marcando visitas... Pesq: Abriu uma frente aí de trabalho... Farm Mostarda: Abrir, a gente abriu... agora cumprir, me preocupa muito! Porque também não adianta... Por exemplo, o meu andar, porque eu ando no meu transporte... e os outros não andarem... Acho até injustiça com quem não tem... ou com quem é de área distante... por mais que tenha, eu acho que não vai nem botar o seu carro lá! E são nove unidades, 12 unidades... Eu acho que é uma realidade meio... é meio inviável você ficar rodando... Isso me preocupa! E a gente tem que estar mendigando um carro, um motorista... É uma loucura! E isso aí atrapalha muito... Quem quiser que ache que não, mas quando a gente tá aqui, com um horário marcado lá, e que vê que não tem possibilidade de ir, pra mim é horrível... E a credibilidade cai!

Quando finalizei o campo com essa equipe, tive a notícia – quase por acaso – de que um carro tinha sido garantido para o NASF, mas, pelas discussões no encontro final com o grupo, percebi que aquela não tinha sido a solução dos problemas, como era de se imaginar...

136

De modo geral, a dificuldade das EqNASF na relação com as EqSF parecia se relacionar fundamentalmente com a pouca clareza sobre o trabalho a ser feito e, muitas vezes, à falta de sintonia na miniequipe NASF, que raramente conseguia garantir o tempo para sentar e discutir – de modo próprio – o sentido do trabalho que estava efetivamente fazendo e/ou propondo. Curiosamente, foi frequente a impressão dos participantes “de tempo desperdiçado” com reuniões consideradas improdutivas, como indicado no relato abaixo, retirado de uma conversa com o Núcleo de Assistentes Sociais durante uma reunião “por categoria”: Pesq: Então tem algo da dinâmica mesmo que talvez tenha que ser revisto... AS Orégano: ... na dinâmica do processo de trabalho... Pesq: É muito legal vocês já estarem se dando conta disso! AS Mostarda: Então, essa reunião nossa, mensal, é para isso. Mas a gente só ta reclamando, reclamando... Mas ninguém ta fazendo! É para isso que a gente tem a reunião entre NASF, NASF com NASF, por Núcleo... Veja, nós temos três: Núcleo, NASF e Grupão! E a gente não conhece? Pesq: Núcleo Disciplinar, né? Por categoria? AS Mostarda: É. Então, se a gente tivesse essa sintonia toda, se essas reuniões fossem da forma que é para seguir, todo mundo estava sabendo de tudo. Aí não acontece e quando chega no grupo, todo mundo se espanta com a colocação do outro.... “Ah, porque eu não conheço...”, “E foi isso? E acontece?”. Uma coisa estranha para um grupo que convive todo dia...

Para fechar esse conto, que tematiza fundamentalmente os descompassos nos processos de trabalho das EqNASF, recorro a fragmentos do depoimento de Psi Orégano: Psi Orégano: Estou desde o começo. Na verdade, eu tenho percebido que ainda não tem conseguido funcionar como equipe, no sentido de estar junto no acompanhamento de casos, diretamente com a equipe de saúde da família. Ainda está muito fragmentado! Assim, a gente vai... ainda tem muitas ações ou algumas questões muito do Núcleo de cada um... e a gente compartilha, a gente discute, tem reunião da equipe, mas eu acho que ainda falta. Eu, particularmente, não vejo como uma equipe, uma equipe assim no sentido de afinidade, afinidade de propostas, afinidade de olhar, afinidade com relação ao objeto do NASF... Eu não vejo ainda! Eu acho que a gente não conseguiu ainda! Pesq: É assim como se faltasse ainda essa sintonia do grupo em relação a um projeto comum? Psi Orégano: É, ainda está fragmentado... Ainda tem muitas ações, não isoladas, porque mesmo que a gente acompanhe – muitas vezes a gente não vai sozinho pra unidade – mas o fato de eu estar acompanhando Nutri ou mesmo Nutri estar me acompanhando, isso não significa que é uma equipe. Eu sinto falta disso, eu acho que não é uma equipe, no sentido dessa equipe múltipla, eu acho que não é ainda. Ainda está muito fragmentado e muito cada um no seu pedaço.

*** A dificuldade dos profissionais das EqNASF de se reunir – na sua própria equipe e com as EqSFs – parecia se relacionar tanto à pouca clareza em relação ao objetivo da aproximação quanto à parca organização do processo de trabalho. Como é comum acontecer no contexto de serviços públicos – particularmente de saúde – as demandas costumavam surgir sempre marcadas pela pressa e os trabalhadores seguiam no ritmo de “apagar incêndios”, sendo praticamente inexistente um processo continuado de planejamento e avaliação das ações. Nesse cenário, reservar tempo para

137

repensar os modos de intervir acabava sendo visto, muitas vezes, como algo que atrapalhava, em função da primazia do fazer – sem reflexão –, caindo-se, assim, no automatismo das práticas. Mais especificamente em relação ao contato das EqNASF com as EqSF, chamou atenção a indicação de que, com algumas delas, conseguia-se mais facilmente uma aproximação, o que possibilitava a contratualidade de projetos e práticas, a começar pela marcação dos próprios encontros, em que esses acordos poderiam ser construídos. Apenas pela aproximação é possível o início da construção de algum laço de confiança que permita o trabalho numa perspectiva coletiva. Tal como compreendo, não é viável que o trabalho do NASF se perfile sem um diagnóstico das necessidades e pactuação de ações em cada um dos territórios abrangidos, o que pode ocorrer apenas pelo contato entre equipes. Parece relativamente óbvia a necessidade da aproximação; entretanto, era bastante difícil às EqNASF dos cenários pesquisados ter êxito na manutenção de um cronograma de encontros com as EqSF. Não foram raras as reclamações que escutei em relação ao quantitativo de EqSF a serem apoiadas por cada EqNASF – variando de nove a doze –, justificando muitas vezes a dificuldade do acompanhamento. De fato, um grande número de equipes a acompanhar implica um alto grau de organização para que não haja uma demora expressiva entre as visitas do NASF a cada EqSF. Aqui se insere uma questão crucial em relação à definição da própria Portaria 154, que indica o apoio a grupos de 8 a 20 EqSF para cada EqNASF da modalidade I. Na nova portaria (nº 2.488/2011), o número máximo ficou em 15 EqSFs. Pelo que pude perceber, torna-se importante rever essa proporção, inclusive em cada contexto municipal, pois parece de fato um número excessivo de EqSFs a ser apoiado por uma EqNASF. De qualquer sorte, penso ser imprescindível uma reorganização do próprio processo de trabalho das EqNASF: a experimentação do técnico de referência41 por uma das EqNASF, por exemplo, pareceu uma estratégia interessante. A organização do processo de trabalho precisa ser permanentemente empreendida no contexto das práticas de saúde, por cada equipe de trabalho, em articulação com um processo avaliativo ininterrupto, outra grande lacuna em nossas redes assistenciais. Percebi também que muitas vezes eram as próprias EqNASF que desmarcavam encontros. Em um dos contextos, houve severas críticas à falta de envolvimento da Gestão na resolução da questão do transporte para garantir as idas às USFs. Uma vez resolvida essa questão, o grupão NASF apresentou outras dificuldades. Claramente o problema não parece se situar apenas nos aspectos estruturais, embora elas tenham crucial importância. Não bastam as condições objetivas de trabalho Como já indicado, a proposta de técnico de referência (TR) se delineou no contexto da atenção à saúde mental, especialmente nos CAPS: cada membro da equipe técnica assume a coordenação da construção e acompanhamento do projeto terapêutico singular (PTS) de um determinado número de usuários, embora toda a equipe seja responsável pelo cuidado. Atualmente a definição de TR em articulação com a construção e efetivação de PTS, inclusive no cenário da Atenção Primária à Saúde, compõem as orientações da Política Nacional de Humanização - PNH. 41

138

para a garantia de uma “satisfação”. Retorna-se ao ponto da organização do processo de trabalho e dos processos avaliativos, que se engendram no contexto das relações estabelecidas nas equipes e instituições – o “bom” trabalho se relaciona com a qualidade das relações que conseguimos construir, tendo como fio condutor o próprio trabalho a ser feito. A experimentação de processos avaliativos implica uma análise dos diversos componentes em jogo no desenho da prática cotidiana, em cada contexto, permitindo-se uma autocrítica em relação ao próprio funcionamento da EqNASF em vez de recorrer de pronto à culpabilização das EqSF: não me parece muito convincente essa justificativa de que sempre as EqSF não se interessam, não investem, não comparecem. Como estão ocorrendo os encontros? – parece-me uma pergunta sempre pertinente. Utilizando metaforicamente o recurso de hipertexto, relembro a metáfora dos espelhamentos, a que recorri na discussão do conto relativo à supervisão, e misturo isso com a importância da avaliação a partir das afetações que brotam dos encontros. Essa é viável sem a necessidade de muitos mecanismos mirabolantes: é sempre possível perceber como saímos e garimpar como os outros saem de cada encontro, de modo a fazer redirecionamentos, caso se mostrem necessários... Nessa perspectiva, penso ser fundamental estar disponível a ouvir o que as EqSFs têm a dizer sobre a atuação do NASF – ultrapassando uma vitimização ou autodefesa – como modo de aprimorar o trabalho, pelos novos sentidos sinalizados no contexto das relações entre as pessoas. Em vez de nos sentirmos em um campo de guerra, é possível criar modos de trabalho que viabilizem, pela aproximação, a partilha de responsabilidade e produção coletiva. Penso que caberia ainda um destaque à aproximação com as EqSFs: é certo que há diversos arranjos nas equipes, inclusive pelos diferentes temperos representados pelos diferentes profissionais. Pensar na dinâmica das afetações apresentada na ética espinosana parece iluminar essa questão: como produzir bons encontros, em que se promova expansão das possibilidades de ação dos grupos, valorizando-se a potência singular dos envolvidos, de modo a se gerar saúde e alegria? Compreendo que essa não é uma questão a ser respondida de modo linear, com um “receituário” reto e específico. Os caminhos para essa produção estão por ser descobertos a partir das composições possíveis em cada contexto, incluindo-se os ingredientes introduzidos pelos usuários das comunidades. Destaca-se, assim, a discussão em torno da criação de vínculos nos cenários do trabalho em saúde. Para o trabalho do NASF, por exemplo, indica-se como “tarefa primeira o estabelecimento de um vínculo de confiança com os profissionais para integrar-se ao cotidiano das equipes e para o desenvolvimento do trabalho” (BRASIL, 2010c, p. 39). Como tive a chance de discutir em outro texto (CABRAL & MORATO, 2009), o vínculo no trabalho em saúde se produz nos encontros entre as pessoas enquanto possibilidade, relacionando-se a um processo de conquista, perdendo sua potência, possível somente em ato, caso se reduza a mera estratégia. Assim, continua-se apostando que

139

“tecnicizar o vínculo é imponderável, pois ser-com-outros, con-viver é algo próprio da condição humana. A aproximação pode ou não produzir laços; não há uma forma de garantir isso através de uma técnica específica” (p. 193/194). Se algumas das EqSF não se mostram abertas, há que se avaliar o modo de chegada e os anseios daquele grupo que se busca apoiar. Qualquer tessitura de projetos ou intervenções coletivas só pode ocorrer por meio desses encontros entre os profissionais, no “entre” pessoas e no interstício dos seus diversos fazeres/saberes/dizeres, assumindo-se como direção a articulação para a produção de saúde ou expansão da vida e como atitude a disponibilidade para a diversidade de modos e compreensões. Assim, apresenta-se uma via de construção de laços de confiança, em que os desencontros e os esquecimentos em relação aos encontros marcados possivelmente terão menos freqüência e destaque. Essa via possível para a legitimidade do trabalho das EqNASF em cada território de abrangência só pode ocorrer mediante a presença dos profissionais do NASF nesses lugares em que acontece a práticas das EqSF e a vida da comunidade. Legitimidade só se constrói pela via da presença. Essa presença é decisiva para que se revertam os jogos de empurra de responsabilidade para lá e para cá, num circuito de culpabilização mútua, em que os usuários muitas vezes são joguetes numa rede ainda excessivamente esburacada ou lacunar. As falhas de articulação no território reverberavam sérias distorções, como no caso de usuários chegando à SMS para atendimento. A articulação no território implica a construção de um senso de corresponsabilidade pelas situações que emergem, com definição de parcelas de responsabilidade que cabem às EqSFs e às EqNASFs, o que geralmente poderá ser facilitado pela mediação de um gestor. Reitero: pela aproximação entre as equipes, com construção do vínculo possível, que se tece pela presença em campo, essa legitimidade pode se construir, bem como a partilha de responsabilidade. Entretanto, o que encontrei muitas vezes foram profissionais cansados e desesperançados, chateados por se sentirem desamparados e sem apoio. Espantei-me com o predomínio de uma frequência de ressentimento e queixa: seja em relação à Gestão, aos próprios colegas, às EqSF, aos usuários, percebendo uma quase impossibilidade de abertura a outras formas de perceber um determinado ponto, que, por serem mal interpretadas ou divergentes da sua, passavam a gerar desconforto e distanciamento. A atitude de chegar junto para tentar esclarecer os pontos divergentes ou de conflito era rara. Parecia mais confortável ficar na frequência da queixa ou estagnação, justificada por todos os dissabores – e assim se criavam grupelhos com grande dificuldade de comunicação entre si. Isso se revelava, para mim, como algo totalmente destoante das necessidades do trabalho no grande campo da saúde, em que a articulação entre as pessoas – decorrente de um entendimento mútuo – mostra-se como condição imprescindível para intervenções pertinentes. Instala-

140

se um clima de angústia, sobrecarga, estresse, impotência, sobressaindo-se a sensação de que nada pode mudar. Concordo com Andrade (2007) quando alerta à tendência de proposição de projetos de intervenção com o viés de “cuidado ao cuidador”, como resposta de professores/pesquisadores ao se depararem com esse estado de coisas, tão presente nas redes públicas de Saúde e Educação. Não se trata de ignorar a situação, mas é preciso atentar ao perigo da alimentação de um círculo vicioso, em que o outro é sempre tomado como ser que padece, que sofre, que está alijado de algo – o ser da falta. A autora relaciona essa tendência como uma captura no circuito da moral escrava, em que não se questiona a respeito de outras possibilidades de ação, pois impera a obediência a uma ordem maior e abstrata, que vem sempre de fora: Deus, teoria, especialista e, poder-se-ia acrescentar, o gestor. Sinto que é preciso indicar que há todo um contexto sócio-cultural em nossa sociedade ocidental, que se baseia no circuito da moral, sendo as vias de escape relacionadas com uma perspectiva reflexiva, implicada no agir político e coletivo. Como indica ainda Andrade (Ibidem), é preciso questionar os modos de subjetivação cuja genealogia revela o predomínio dos valores morais e coloca os profissionais na obrigação do “ter que” dar as respostas, construir as saídas e soluções, como especialistas, sozinhos. Essa obrigação se funda no poder/saber sobre o outro, caracterizada por relações verticais e autoritárias, em que se perde a possibilidade de construção coletiva, implicando a diversidade de saberes, fazeres, poderes, dizeres. Patente esteja que não se pretende eximir o profissional da responsabilidade técnica, impressa a partir do processo formativo a que se submeteu nos anos de graduação (e que ali não deve ter se encerrado...). Há uma responsabilidade de expressão e utilização de um saber técnico, que seguramente é demandado no contexto da atenção à saúde, sendo imprescindível que esse saber seja exercido com rigor e ética. Entretanto, o exercício profissional em saúde não ocorre apenas “objetivamente”, descolado da relação entre as pessoas – colegas de trabalho e usuários, sobretudo. As tecnologias relacionais são fundamentais ao cuidado em saúde como apontado por diversos autores (MEHRY, 2002; PINHEIRO & MATTOS, 2010; PINHEIRO, BARROS & MATTOS, 2007). Além disso, torna-se pertinente resgatar o sentido originário de técnica como techné na atuação em saúde, o que implica uma dimensão criativa e inventiva diante das comumente desalojadoras situações com que as equipes se deparam no cotidiano de trabalho. Na discussão do primeiro dos contos/atos dessa travessia, tematizei o reconhecimento dos ACS como figuras fundamentais na geração e implantação de intervenções em saúde, sendo geralmente eles os parceiros primeiros para as ações. Entretanto, revelou-se, em alguns momentos de minha inserção em campo, uma fragmentação na compreensão das EqSF pelos profissionais do NASF: nem sempre os ACSs eram vistos como fazendo efetivamente parte da EqSF, constituindo

141

quase um grupo à parte. Ainda que fossem reconhecidos como figuras fundamentais, nem sempre eram qualificados como componentes efetivos das equipes. Acredito que a necessidade que percebo no registro e discussão desse ponto remete a meu próprio histórico profissional: sempre identifiquei essa distinção entre profissionais de nível superior e nível médio ou elementar, mas aprendi a considerar que a equipe se compõe por todos que circulam no serviço – do porteiro ao gerente. Penso ser fundamental frisar isto ao se trabalhar com “equipes”, especialmente equipes de saúde. Geralmente são pessoas de nível médio/elementar que recebem os usuários primeiramente e costumam estar mais presentes no cotidiano dos serviços. O reconhecimento da importância do ACS precisa extrapolar o discurso e se efetivar na prática do dia-a-dia. Considero que possivelmente essa distorção revele a valorização de uma hierarquia dos saberes, com privilégio dos saberes disciplinares, algo que precisaria ser assumido e debatido nas equipes de modos a se exercer um “efetivo” trabalho em equipe como produção coletiva. Em relação aos encontros das EqNASF, destaco a percepção que alguns profissionais revelaram de que há recorrente uso da queixa nos espaços de reunião, restando pouco espaço para inovação e proposição de ações. Em algumas conversas que tive, chegou-se a questionar a falta de organização e sintonia do grupo, considerando que tantos espaços de reunião eram garantidos. Frequentemente admitiu-se que os profissionais não partilhavam as informações, não discutiam o trabalho, tomando como fonte a experiência tida nos diversos territórios. A mera garantia dos espaços de reunião não viabilizava encontros produtivos. Percebiam-se as dificuldades de comunicação dentro das próprias equipes. Todos esses fatores pareciam fragilizá-las, gerando descrédito e indisponibilidade. Como os fragmentos de conversa com as assistentes sociais e com Psi Orégano indicaram, predominava a sensação de que “faltava algo” e que o destaque à perspectiva nuclear acabava por se sobressair. Os profissionais ainda deslizavam na busca da experimentação do fazer coletivo. Nas conversas com eles, foi ficando claro que não se sentiam num trabalho em equipe, como produção coletiva, exceto em uma ou outra atividade. O mais freqüente era o investimento de cada um em atividades relativas ao seu núcleo profissional, expressando a seguinte realidade: ainda não tinham aprendido que o fazer sozinho não era necessário nem produtivo e que a experimentação do “fazer coletivo” era um modo de aprendizado conjunto, contribuindo inclusive na redução da angústia e solidão das práticas. O contato com as EqNASF revelou a percepção e o reconhecimento de muitos dos profissionais de que ainda não se trabalhava em equipe, o que relacionavam principalmente à falta de afinidade em relação aos objetivos e objeto de intervenção, embora houvesse perspectiva de mudança nesse modo. Houve a indicação de que simplesmente fazer junto, como no acompanhamento a um

142

colega de trabalho em alguma ação, não garantia por si só um trabalho em equipe. Destaco que haveria aí uma brecha para uma produção coletiva caso se extrapolasse o mero “acompanhar”, permitindo-se aprender no “fazer junto”, como já discutido no conto das rodas de conversa. Foi-me dito algumas vezes que o que parecia impedir o “sentimento de equipe” era uma sensação de fragmentação do trabalho, de modo que se torna imperativa a construção de mecanismos para uma partilha de responsabilidades na equipe, valorizando-se o senso de coletivo, escapando-se ao mero encaminhamento de acordo com as especificidades nucleares. O coletivo acontece mesmo quando estamos sós, pois somos seres de pertencimento, como indica Espinosa (2009), desde que se construa esse sentido de coletivo que passa a fazer parte de cada um que compõe aquela equipe. Haveria o sentido de coletivo em cada EqNASF? Haveria o senso de coletivo nos grandes grupos NASF de cada um dos cenários pesquisados? O que vinha sendo tecido em termos de pertença coletiva? Embora fossem garantidas as reuniões, tive a sensação de que os encontros, em sua grande maioria, caracterizavam-se como “maus”: em vez de produzir aumento de ação nos envolvidos, produzia-se uma diminuição da essência singular de cada participante, gerando tristeza, angústia, falta de tesão, predominando o ressentimento e a queixa. Como escapar a essa captura? Que brechas poderiam encontrar – ou estariam encontrando – para uma ação transdisciplinar? Será que as percebiam? Que pulo do gato seria possível?

∞ Oitavo Ato – Reuniões por Categoria: o “lugar da contradição” ou um paradoxo?

D

iversas vezes escutei os profissionais do NASF daquele município se referirem a reuniões por categorias e comecei a pensar que seria interessante tentar participar de alguma. Parecia que

essa via era considerada importante e que todo/as estavam devidamente avisados sobre o risco, a ela inerente, de departamentalização das ações, algo indesejado. Esse seguiu sendo um dos pontos mais estimulantes para mim, especialmente por estar diretamente relacionado com o tema desta pesquisa. Foi curioso perceber que esse movimento de busca de sintonia ou fortalecimento da categoria no contexto do NASF aconteceu nos dois cenários municipais onde eu me inseri, mas não vi um crescimento expressivo dele. Admito que eu ficava extremamente receosa em relação a isso, pois pensava automaticamente na tendência ao corporativismo que, na minha compreensão, poderia minar um processo de construção partilhada de uma configuração de equipe NASF, que eu percebia em curso nos dois cenários.

143

O fato é que tais reuniões também não foram muito freqüentes no período em que estive com o grupo. Acabei participando de uma (das assistentes sociais) e tendo notícias das reverberações de outra (das psicólogas). Foi principalmente em conversas individuais, quando estive particularmente atenta às impressões em torno desse movimento, que escutei alguns depoimentos. Esse contomosaico busca revelar a miscelânea de compreensões com que tive contato. Dentre essas, ressalto primeiramente um relato de onde retirei o mote para nomear este texto. Conversando com Psi Pimenta, quando foquei especificamente este aspecto, senti que ela andava pensando muito sobre isso: Pesq: Já que você tocou nisso do pessoal de Serviço Social, que consegue se reunir e tal, como você percebe esse movimento de “se reúnem as psicólogas”, “se reúnem as assistentes sociais”, essas reuniões por núcleo? Como você percebe esse movimento quando tem um trabalho coletivo, que precisa ser construído? (...) Psi Pimenta: Pra mim é um lugar de contradição. Porque, por exemplo, teoricamente eu aposto no campo. Mas na prática, em uma hora ou outra, não tem também como negar a Psicologia, o Serviço Social... Não tem como negar! Mas, o peso da aposta, por exemplo, no trabalho multi e trans, é bem menor. Acho que é até uma questão de força, e aí não é uma força corporativa, né? É realmente uma questão de... Teve um momento que a gente sentou, eu e as outras Psis. A gente sentou e foi massa! A gente conseguiu discutir aquele texto da cartilha do Conselho Federal de Psicologia42. Então, a gente trocou várias idéias. Psi Mostarda disse: “Pra mim, tá sendo muito interessante, porque essa é uma discussão que eu ainda não tinha!”. A gente conseguiu trocar. Então, quando a gente senta nessa perspectiva de troca, é bacana; mas quando a gente senta e... – que é ai que eu falo desse lugar da contradição – é o Serviço Social pensando, é a Farmácia pensando, é a Psicologia pensando... Aí fica aquela contradição! Mas eu fico cheia de dedo, eu não vou mentir que eu fico cheia de dedo, de como estar também... Não que eu queira conduzir, mas estar nesse lugar em que, de repente, eu enxergue, mas tenha a paciência de esperar. Mas também, ao mesmo tempo, se eu for ficar só esperando... Sabe? Por exemplo, a gente chamou na reunião passada pra discussão sobre a questão da Assistência Farmacêutica, que é algo que eu desconheço, sei muito por cima. “Vamos discutir o fluxo da Assistência Farmacêutica na Atenção Básica. Vamos pensar como é isso e vamos discutir o NASF.”. Aí foi crescendo “Ah, vamos discutir também Vigilância Nutricional, discutir Saúde Mental, vamos discutir Assistência Social!”. (...) Eu fiquei tensionando em vários momentos: “Vamos! Vamos! Vamos!”. A gente marcou pra um dia e acabou não podendo, teve uma série de choques de horários etc. Mas, pra mim, é muito delicado, pra eu não chegar rompendo, mas ao mesmo tempo chegar propondo sem romper e ao mesmo tempo esperar, esperar e esperar, e agir, sabe?

Eu comecei a perceber que todos estavam meio confusos em relação ao posicionamento sobre esse aspecto. Nas várias conversas, sempre havia muita ambivalência, ora se reconhecendo a importância do fortalecimento da categoria, ora se enfatizando a necessidade de afinar o trabalho coletivo no NASF. Quando conversei com Farm Mostarda, ela destacou as reuniões do grande grupo NASF – no fragmento abaixo chamado de “grupão”: Pesq: (...) como é que você tá percebendo essa história das categorias, reunião por categoria, reunião do grupão? Como é sua compreensão dessa dinâmica? Farm Mostarda: A reunião de grupão, a gente até tá fazendo de forma sistemática. É uma reunião em que rola muita coisa interessante, tem algumas coisas pessoais, a gente acaba conversando tudo... Mas acho que também tem que amadurecer mais no processo de trabalho mesmo, a reunião do grupão, sabe? Acho que ela tem que melhorar um bocado ainda nesse sentido. Acho que a gente podia colocar mais um pouco do trabalho em si, do que tá acontecendo nas EqNASF, pra gente socializar no grupão. E a reunião por categoria, a gente faz, mas não de forma tão sistemática como a outra. Mas eu também acho que precisa melhorar, porque a gente discute muito direcionado, às vezes para um NASF, porque o outro não tá conseguindo fazer... Mas é válido, querendo ou não,

42

Refere-se à publicação do CFP intitulada A prática da Psicologia e o núcleo de apoio à saúde da família, em 2009.

144

né? Acho que a gente também precisa de sintonia no trabalho enquanto categoria, pra que também consiga efetivar na unidade.

Parecia uma questão intrigante para todos e a compreensão que eu ia tendo era de que a aproximação entre pares da mesma profissão era um modo de garantir um pouco mais de segurança em uma proposta extremamente desafiante, como é a do NASF. Psi Orégano falou longamente sobre as reuniões por categoria em um bate-papo que tivemos: Psi Orégano: Eu acho que ajuda e que dá pra gente ter bem definida essa questão de núcleo e do campo... que é um campo comum a todos, um campo de atuação comum a todos, independentemente da categoria. Mas eu acho que ajuda. A gente teve reunião de núcleo e a gente marcou uma outra, mas por algum motivo não nos encontramos novamente com o pessoal de Psicologia. Mas a gente já marcou outra. Porque nessas reuniões, a gente tá tentando discutir esse papel do profissional de Psicologia dentro do NASF. (...) Então a gente tem discutido as diretrizes estaduais e feito essa relação entre o que se tem de teoria e o que a gente tá construindo. Porque às vezes é tão diferente e às vezes não é muito. Eu sei que a gente faz coisa que de repente não é a proposta do NASF, mas eu acho que é uma construção. E eu acho que ajuda demais porque aí a gente vai ver como é que aquele núcleo vai se colocar no campo de uma forma que não perca a identidade profissional (...) Às vezes o profissional se coloca no campo na área de Psicologia porque quer ser um apoiador, como se uma coisa fosse separada da outra, como se você pudesse se despir da roupa de psicólogo pra poder ser técnico de referência ou pra poder ser apoiador. (...) Mas eu acho que ajuda muito, pelo menos no caso da Psicologia tem ajudado. (...)

Psi Orégano seguiu falando da Psicologia nesse cenário, marcando a importância de um fortalecimento da atuação do Psicólogo, ao mesmo tempo em que criticava uma aderência desse profissional à representação comum que existe em torno da sua atuação, vinculada ao consultório. Nesse caso, parecia mesmo o lugar da contradição... Psi Orégano: Muitos profissionais acham que pelo fato de... Têm medo de perder, por exemplo, a escuta qualificada... porque aí você não vai mais ter função... Mas isso realmente não existe, a gente continua sendo referência e isso eu tô vendo muito nas nossas unidades e eu sei que eu sou referência pra eles. Se a gente vai discutir um caso, dependendo da situação... como a de uma pessoa que teve a perda de um filho... a criancinha nasceu e veio a falecer depois... depois ela (outra profissional) teve a oportunidade de vir falar comigo e disse assim: “O que é eu faço? Porque às vezes fico meio perdida... Eu vou lá, quero escutá-la, mas fico assim pensando se eu posso fazer isso... Mas ao mesmo tempo eu penso que é mais do psicólogo, porque eu me emociono, porque ela mora praticamente na minha rua...” (...) E as pessoas até entendem, ampliam, não se negam... E eu acho que a gente tem que fazer justamente isso e não ficar com aquela história de “quem escuta é psicólogo”, orientação nutricional tem que ser a nutricionista, porque aí a gente fica muito restrito. Mas também o que é bom da equipe é que a gente vai aprendendo muito. Nutri às vezes brinca: “Quando tiver orientação nutricional agora quem faz é você!”, de tanto que a gente fica junto. Eu fico pensado que tem que ter uma flexibilidade muito grande, de você estar com aquela pessoa e de repente você não tem essa autoridade de fazer uma escuta, aí você procurar um lugar reservado, se for isso que a pessoa necessita. Mas isso pode ser em qualquer lugar. Eu acho que quando a gente anda, principalmente em interior, nesses lugares em que a casa é apertada, às vezes você chama a pessoa pro lado de fora, pra debaixo de uma árvore. Na Pitombeira acontece muito isso. Tem uma parte muito arborizada, e é tão bom, é muito diferente, porque se a gente for encaixar nessas coisas assim muito “engessadas”, aí não acontece... (...) E se for seguindo esse modelo bem formal eu acho que a gente não consegue. Quem sabe é até o contrário, às vezes até afasta. Tem profissional da Psicologia que ainda acha que, por exemplo, o profissional ainda tem que ser envolvido nessa névoa e mistério, porque é aquilo que faz com que aconteça a transferência e a contratransferência e quando a gente vai ver... Eu acho que o profissional tem que estar aberto à pessoa, a escutar e isso daí já é o certo.

Retornando à discussão sobre a o trânsito dos diferentes profissionais no NASF, Psi Orégano expressou que não percebia uma crise de identidade, parecendo se relacionar bem com essa perspectiva de interrelação entre as categorias, trocas, enfim, o trabalho em um campo comum. Destacou a necessidade de ampliação das perspectivas de atuação, para além das fronteiras

145

profissionais. Mais uma vez, fez crítica à colagem nos modos tradicionais de atuação, muitas vezes trazidos da formação em nível de graduação, e referiu estranhar essa atitude: “Então eu acho incrível! Como tem isso quando a gente está transitando nesse campo que é tão vasto? Se sente, realmente... a pessoa se sente deslocada... nesse sentido de estar... como se não tivesse cumprindo o seu papel... por não estar fazendo estritamente aquilo que aprendeu na academia. E tem muito isso, dessa formação clínica, que às vezes as pessoas se colocam que, se não tiver naquela postura, não é clínico, ou não é enfermeiro...”. Para finalizar essa profunda historieta, recorro a um fragmento de uma conversa com o grupo de ASs, na única reunião por categoria de que participei, que soou para mim como a construção – em andamento – de uma compreensão mais sintonizada com uma perspectiva de atuação transdisciplinar: AS Cravo-da-India: A gente tem tentando se organizar no trabalho aqui... Qual é a área, o que é conjunto mas o que é específico da categoria, e também tratando algumas atividades da categoria... (...) A gente só teve realmente uma para se planejar assim, fazer tipo um roteiro, quando a gente sai... enquanto categoria... Aí ainda não aconteceu a segunda. Eu não sei... Eu acho que... as outras categorias... (...) Mas cada categoria tá buscando o que é de sua categoria... Não sei também se é... porque é também se preparando para uma reunião que a gente combinou de fazer... cada categoria apresentar para o grupão qual é o trabalho, como faz, o que é... AS Orégano: Isso já houve, né? Você já teve oportunidade... nos relatos que a gente fez... A gente já se apresentou... Lembra que você estava naquele processo? AS Cravo-da-India: Ah, isso já houve ano passado, foi? AS Orégano: Já houve... no início... Pesq: É como se fosse sempre um movimento paralelo, né? Tem a coisa de “Vamos ver o conjunto NASF, mas vamos ver por categoria...”. AS Orégano: É porque a gente tem o cuidado de ver assim... Quando se diz “Qualquer pessoa pode fazer uma escuta!”. Pode! Mas qual o olhar enquanto profissional de Psicologia? Para que a gente não adentre... Pesq: Engraçado que quando se fala em escuta, se lembra logo de Psicologia, né? AS Orégano: É! Mas aí... Pesq: Todo mundo escuta... Todo ser humano! Pode ser profissional... Quem escuta não é apenas o psicólogo! E eu sou uma psicóloga dando esse depoimento! AS Cravo-da-India: Agora cada um tem o seu olhar voltado ao seu foco de interesse! E, ao mesmo tempo, enquanto NASF, tem que ter o olhar de uma coisa muito mais ampla... de apoio mesmo para uma equipe que talvez não tenha tido a oportunidade de aprender a se organizar, de aprender a se planejar... É assim que eu tô vendo... que eu tô absorvendo... É isso! Pesq: Eta, AS Mostarda abriu ali os cadernos do NASF... AS Mostarda: É que eu tava tentando ver um ponto aqui... que eu acho interessante quando você diz essa questão de categoria, de núcleo... (...) Pelo menos na nossa realidade, quando a gente fala categoria, visualiza mais rápido... E tem uma parte que a gente fala... (E lê um trecho do texto.) Então, o NASF funcionando certo, todo mundo na mesma sintonia, não precisa que seja: eu vou aqui definir e você, assistente social, é que tem que atender... Não! Todos os profissionais atendem, independentemente da área. (...) É uma equipe multidisciplinar que é para ter o mesmo olhar, independentemente de ser farmacêutico ou psicólogo... Então, isso faria um diferencial!

Assim, fica no ar a grande questão: a relação dos núcleos profissionais com a atuação em equipe – algo com que inevitavelmente precisaremos aprender a lidar – tratar-se-ia de um “lugar de contradição” ou um de um paradoxo? Há entre essas possibilidades larga distinção...

146

*** Pareceu-me particularmente instigante a questão das relações campo-núcleo, utilizando aqui a terminologia de Campos (2000). Essa tensão esteve a todo instante presente durante a colheita, quando eu estimulava a reflexão e discussão sobre o trabalho em equipe entre os meus interlocutores. Escutar a expressão “o lugar da contradição”, proferida por Psi Pimenta para se referir a essa relação, funcionou como uma espécie de catalisador dos diversos sentidos que eu vinha vislumbrando a respeito deste tópico nos contato com eles. Em campo e, especialmente, durante o processo interpretativo, fui aprofundando uma compreensão que remete à necessidade de sustentação dessa tensão núcleo-campo, conclusão que almejo apresentar nessa discussão específica. Prossigo, pois. O movimento de potencializar cada núcleo profissional, por meio das reuniões de categoria, aconteceu em ambos os cenários de pesquisa e me assustou bastante a princípio. Como expresso no conto, percebia nisso um grande risco de fragmentação das práticas e fortalecimento de cada categoria, realçando-se um viés corporativista, que é como um palheiro pronto a se incendiar com qualquer faísca. Precisei me aperceber de que eu tinha uma tendência a valorizar o trabalho coletivo e acreditava que essa seria a melhor aposta: que as questões precisariam ser discutidas no grande grupo, que as saídas deveriam ser buscadas por meio de discussões nos espaços coletivos, até mesmo a definição do que caberia especificamente a cada núcleo e, assim, os modos de operar essa passagem – ou passagens – núcleo-campo. Ter clareza desse meu posicionamento, ainda em campo, foi fundamental para que eu pudesse me abrir para compreender melhor que movimento era aquele e o que ele indicava, para além de minhas preferências e compreensões. Fui, então, aprendendo que era legítima a intenção de as categorias tentarem se perceber melhor naquele complexo campo de intervenções – o da atenção primária à saúde –, no contexto de um dispositivo que ainda estava se consolidando em termos de configuração de objetivos e modos de atuação para atingi-los, como era/é o NASF. Apoiar as equipes de APS e ampliar sua capacidade de intervenção não se constituía um objetivo claro per se, surgindo, dentre outras dúvidas, o foco de intervenção do NASF: EqSF ou usuários? Pensava eu: por que não os dois? Nesse efervescente contexto, compreendi que as reuniões por categoria simbolizavam uma necessidade de garantir e/ou circunscrever um lugar próprio, a cada núcleo profissional. Supostamente seria mais fácil encontrar pares entre aqueles da mesma profissão. Fui me dando conta, entretanto, de que os próprios interlocutores se sentiam ambivalentes em relação a essa questão. Pareciam também farejar uma maior fertilidade na discussão conjunta dos modos de atuação, embora insistissem na importância do encontro dos profissionais de cada categoria. A perspectiva a orientar esses encontros

147

parecia ser o grande lance: o que de fato mobilizava os profissionais – seria uma necessidade de troca das possibilidades de atuação que vinham sendo experimentadas por cada um dentro do núcleo profissional ou o desejo de massificar – ou mesmo normatizar – a atuação, garantindo uma segurança e força ao núcleo disciplinar no conjunto maior? Percebi que as reuniões por categoria eram destacadas como modo de delinear a função de cada núcleo profissional componente do NASF, sendo esse argumento comumente utilizado. Contudo, a prática parecia sinalizar a eles que a referência a ser construída nos territórios, junto às EqSF, não precisava estar prioritariamente ligada a uma especificidade profissional, mas poderia ser cultivada por outras vias – era possível criar uma referência da equipe. Embora se expressasse no contato com os interlocutores a percepção de que também a sintonia por profissão era importante, havendo o reconhecimento da importância das reuniões por categoria, identifiquei uma significativa indicação de que um trabalho em equipe demandaria muito mais do que a definição clara do trabalho por categoria e, assim, eu entrevia um movimento em direção à ação transdisciplinar como produção coletiva. Por vezes, inclusive, escutei críticas à rigidez do profissional em relação a uma caracterização inflexível dos “núcleos disciplinares” e seus respectivos fazeres. O reconhecimento da fertilidade de borrar as fronteiras parecia se anunciar – era necessário se melar de diversidade... Via isso tudo meio misturado, sobressaindo-se a ambivalência em relação à questão, a partir das falas e posicionamentos. Identificava também outros fatores, ligados ao contexto institucional, como o burburinho de que uma ou outra categoria profissional poderia ser substituída caso não mostrasse sua valência no trabalho do NASF. Assim, um ponto de grande tensão: que categorias conseguiam efetivamente desenvolver um trabalho de destaque? Quais seriam “essenciais”? Que outras poderiam entrar? E como ficaria a garantia de “emprego”? O fantasma das demissões pairava no ar... Percebi burburinhos em relação a vários outros pontos, compreendendo que aquilo gerava uma baita insegurança nos profissionais. Difícil não partir para a defesa, ainda que muitas vezes diante de um ataque imaginário. Isso remete à fragilidade dos vínculos empregatícios, já sinalizada em outro momento e que não será objeto de aprofundamento aqui, pois já se apresentou sua força e vigor, inclusive na produção de silêncio e angústia nas equipes. Eu pensava: Será que o grupo sacava a importância de um processo de afinação quanto à proposta NASF, extrapolando a dimensão das categorias? Enfim, o movimento que vi prevalecer foi, na verdade, o da busca de discussões ampliadas por temática/situações e não por núcleo, e os espaços em que havia possibilidade de discussão com a presença de todos os envolvidos passavam a ser mais valorizados. Foi assim que, ao longo do tempo que acompanhei o trabalho do NASF nos dois cenários, vi esmaecer as reuniões por categoria: frise-se – houve esmaecimento, porém sem desaparecimento desse aspecto. Nessa dinâmica, existiam diferentes posicionamentos, a favor de um ou outro

148

movimento, mas a maior credibilidade na força dos espaços coletivos, compostos na diversidade e heterogeneidade características dos grupos, foi se destacando, a partir das situações apresentadas no próprio trabalho a ser feito: demandava-se produção coletiva e flexibilidade em relação à atuação nuclear. A ética entredisciplinar, sinalizada por Ceccim (2008), que associo ao que tenho proposto como ação transdisciplinar, indicava-se como caminho mais próprio e conveniente ao trabalho em equipe no campo da saúde. Saltar das ilhas disciplinares – que nem por isso deixavam de existir e ter sua importância – tornava-se imperativo; a travessia das fronteiras parecia imperativa para lograr uma atenção à saúde realizada em equipe, sintonizada com as necessidades dos usuários. Durante a travessia, demanda-se a invenção de pontes, sendas, estilos, modos, tendo-se como farol o contato/aproximação dos sujeitos – pela presença –, fossem profissionais das EqSFs ou usuários do SUS, e a promoção de saúde/expansão de vida. Na travessia, experimenta-se, mela-se com a experiência, expõe-se, corre-se perigo, aventurase, tatua-se – a bússola é a própria experiência, que, uma vez vivida, deve ser elaborada, ruminada. “Não há aprendizado sem exposição, às vezes perigosa, ao outro”, como indica Serres (1993, p. 15), apontando que o aprendizado implica um terceiro instruído – o novo, a diferença, o que desaloja, o estranhamento, enfim, a mestiçagem. O estranhamento compõe o processo de aprendizagem, sendo próprio dos encontros. A partir disso, inventa-se, cria-se, com responsabilidade – que se refere à capacidade de responder pelo caminho escolhido, por tal escolha se calcar na avaliação do que vai sendo experimentado, pelo pensamento-afetação, em negociação e concordância com os que estão também envolvidos. Deparei-me com um dos sentidos de travessia no Houaiss, Villar & Franco (2009), que me pareceu corresponder ao que vem sendo debatido e a ele recorro para uma ampliação da compreensão forjada: trata-se do ato de negociar ou vender na clandestinidade gêneros alimentícios ou outras mercadorias. A ação transdisciplinar implica ousar a construção e negociação de outras direções para a prática em saúde, considerando a mestiçagem própria dos encontros e assumindo-se uma mobilidade das fronteiras: disciplinares, pessoais, institucionais. Sem a crença na possibilidade de mudança, não se encontra fôlego para seguir viagem. As negociações implicarão, em dadas contingências, transgredir o que está instituído, cristalizado, normatizado – a clandestinidade pode ser outro nome para a ousadia ou as renormalizações demandadas pelas situações que se apresentam às equipes de saúde no cotidiano das práticas, tal como apontado por Louzada, Bonaldi & Barros (2007). Como a mestiçagem é própria no encontro entre seres – que vão se compondo, decompondo e recompondo em suas relações –, há que se aprimorar a delicadeza de saber tanto esperar o tempo do outro quanto de provocar com vistas a alguma antecipação possível... Diferentes compreensões

149

chegam em diferentes tempos para cada pessoa. Com essa diversidade também é necessário lidar. Eventualmente um ou outro vai mesmo se sentir sobrecarregado, por perceber em suas mãos a tarefa de estimular o grupo, puxar discussões coletivas, com respeito aos diferentes tempos e percepções. Aí entram as habilidades pessoais e singulares. Há nisso uma função intercessora a ser exercitada, alargada, ampliada. Assim, o tema campo-núcleo precisa ser posto nas rodas, em debate, no contexto de cada equipe, pois as redefinições vão ocorrendo a partir da própria atuação, em ato, não adquirindo um caráter rígido e fechado, mas sempre fronteiriço. Nessa perspectiva, cada núcleo vai se redesenhando na relação e articulação com os demais, havendo vazios, brechas que possibilitam a criação de coisas novas, que não necessariamente estarão vinculadas a alguma especialidade. A equipe vai passando a ser reconhecida como coletivo à medida que os passes vão acontecendo, e não meramente a partir do que está prescrito, de modo a ganhar sentido em meio às pactuações e negociações necessárias. Dessa forma, indica-se a riqueza no trânsito dos profissionais “na fronteira”, implicando ampliação das possibilidades de atuação para além dos núcleos profissionais e o desbotar das próprias fronteiras. Aí se mostra, como condição, a disponibilidade para não se prender a settings: o campo pede isso e mostra-se supremo! O consultório pode ser, por exemplo, a sombra de uma árvore, o que se reveste ainda de maior sentido no ensolarado sertão. Nesse entrecruzamento de funções, encontramos, por exemplo, nutricionista fazendo escuta, psicólogo com alguma atenção à avaliação nutricional. Tratar-se-ia do mesmo olhar? De múltiplos olhares? A que e em que interessaria o olhar comum, como coisa partilhada? Em que enriqueceria a pluralidade? Torna-se pertinente lembrar, num trocadilho, que a pluralidade não está apenas nas diferentes disciplinas, mas nas diferentes pessoas. Escutei dos interlocutores um reconhecimento de que as reuniões gerais do NASF deveriam focar mais na discussão do processo de trabalho: sentiam que precisavam aprimorar seus modos de trabalho. Vislumbrei o início de uma compreensão de que o trabalho, entendido aqui como a prática cotidiana e a experiência dela decorrente, deveria ser o fio condutor das reuniões, a matéria-prima a partir de que deveria se delinear os “melhores modos”. Isso só poderia se gestar por meio dos dos espaços de construção coletiva, não apenas nas reuniões, mas também nos diversos encontros que ocorriam cotidianamente, inclusive em momentos informais. A introdução de um trecho das diretrizes do NASF (BRASIL, 2010c), lida inclusive por AS Mostarda, parece soar como música nessa discussão: (...) torna-se importante destacar que tais áreas estratégicas não se remetem à atuação específica e exclusiva de uma categoria. Por exemplo, a área de alimentação e nutrição, embora seja específica do nutricionista, acarreta ações que podem e devem ser empenhadas por outros profissionais do NASF. Assim, o que deverá definir se a ação é do nutricionista ou de outro profissional é a situação, ou seja, a necessidade da população e a

150

característica da equipe, e assim sucessivamente para outras áreas estratégicas. (BRASIL, 2010c, p. 31)

As tais diretrizes, que conheci enquanto estava imersa em campo, trouxeram, felizmente, uma perspectiva bem sintonizada com uma ação transdisciplinar, estimulando o debate das idéias, o desenvolvimento da capacidade criadora e a consciência crítica (BRASIL, 2010c). Na minha compreensão, indicam a necessidade de investimento das EqNASF na produção cotidiana do trabalho, pois as demandas que surgem extrapolam protocolos e modos normativos do fazer. Pelo exposto, não se defende a negação de especificidades profissionais, mas a necessidade de flexibilização das fronteiras. Além de um trabalho em equipe assim caracterizado se alinhar às necessidades – sempre mutáveis e desalojadoras – dos usuários e do campo, concordo com Ceccim (2008) quando indica que o trabalho em equipe, na perspectiva da ética entredisciplinar, funciona como trabalho protegido e, por isso mesmo, via de alívio do sofrimento muitas vezes produzido no cotidiano das práticas. A produção conjunta, pelo próprio partilhar, pela corresponsabilização visada, reduz a solidão e angústia na realização do trabalho. Por fim, à pergunta apresentada ao final do conto, ensaia-se uma resposta interpretativa: defenderia que antes de um “lugar da contradição”, tratar-se-ia muito mais de um paradoxo com o qual é necessário aprender a lidar, de modos inventivos e criativos. Por contradição, dentre as acepções possíveis, destaco: uma “relação de incompatibilidade entre dois termos ou juízos, sem qualquer dimensão intermediária ou sintética que os concilie”, uma “relação de incompatibilidade entre dois termos em que a afirmação de um implica a negação do outro e vice-versa” ou ainda uma “relação de incompatibilidade entre duas proposições que não podem ser simultaneamente verdadeiras nem simultaneamente falsas, por diferirem ao mesmo tempo em quantidade e qualidade” (HOUAISS, VILLAR, FRANCO, 2009). Daí se depreende uma mútua exclusão, o que não parece ser o caso da relação entre núcleos disciplinares e campo. Em relação a paradoxo, encontrei como sentido possível “pensamento, proposição ou argumento que contraria os princípios básicos e gerais que costumam orientar o pensamento humano, ou desafia a opinião consabida, a crença ordinária e compartilhada pela maioria” (Ibidem). Penso estar aí a chave para as possibilidades de ação transdisciplinar como produção coletiva no trabalho em equipe: um lugar paradoxal, por exigir a permanente construção de sentido, a flexibilidade, a contextualização de cada intervenção diante dos incontáveis desafios da travessia... Assim, o campo mostra-se aberto a várias recomposições e misturas entre disciplinas, pessoas, ações, práticas, dizeres, saberes, sobressaindo-se a demanda situada a cada momento.



151

Nono Ato – Trabalho em Equipe: um “quebra-cabeça”

U

ma vez inserida em campo, fiquei alerta a situações que comecei a chamar de “momentos trans”. Com essa expressão, caracterizava as configurações em que via um trabalho tecido

coletivamente acontecer – ou ao menos a sinalização dessa possibilidade –, com a interferência de todos, vários ou alguns envolvidos, havendo fluidez na comunicação, combinação de coisas a serem feitas, enfim, experimentação de produção coletiva. Essa denominação brotou a partir da experiência no contato com os profissionais e eu adotava uma atitude vigilante para não tornar isso um molde criado por mim. Tratava-se apenas de um modo divertido de nomear o que eu considerava “as brechas” encontradas pelos grupos para uma atuação transdisciplinar. Presenciar ou ouvir sobre momentos assim era algo que me deixava bastante feliz: indicavam a viabilidade de um trabalho coletivo, no qual sempre apostei e – posso dizer – até mesmo vivi em minha trajetória profissional como psicóloga. Esse é mais um conto misturado – inclusive dos dois cenários pesquisados – em que apresento algumas dessas situações. A primeira delas se refere a uma movimentação de uma EqNASF na articulação com uma escola de um dos bairros por ela cobertos. Como objetivo, estava a realização de uma Feira de Ciências, que deveria agregar os estudantes para a discussão de diversas temáticas. A EqNASF havia sido convidada para proferir uma “palestra” sobre o uso de esteróides anabolizantes (EA), um grave problema na comunidade. Havia também a proposta de realizar um grupo de atividade física no dia da Feira. Soube dessa empreitada ao conseguir articular minha inserção em uma atividade de campo com o EF Noz-Moscada: ele tinha marcado uma reunião com os professores da escola para discutir como seria a participação dos profissionais do NASF. O interessante é que a reunião se desviou para vários assuntos, inclusive a falta de apoio e valorização sentida pelos educadores. Saí do encontro muito entusiasmada. Achei que ali tinha acontecido um momento precioso de articulação, de encontro, de debate. Vislumbrei vias para uma produção conjunta. Aliás, acho que estava acontecendo uma produção coletiva entre EF e professores da Escola. Fiquei, então, animada para ir à Feira de Ciências, para ver no que aquilo daria. Acabei conseguindo participar da Feira, que ocorreu num sábado. Na programação, estava a “palestra” dos profissionais do NASF sobre o uso de EA. Cheguei e encontrei uma turma de estudantes (crianças e adolescentes) empolgada e barulhenta! O pessoal do NASF tentava se organizar para começar a atividade e eu imaginava como seria... Assunto delicado para tratar num curto espaço de tempo, com um grupo inquieto e problemas no equipamento de áudio! Quando já estava no pequeno “palco”, ajudando na transição de slides – que foram utilizados por todos da EqNASF – pude ter uma

152

visão mais abrangente do lugar: era uma espécie de galpão, anexo à escola, onde havia estandes (montados em carteiras escolares) para exposição dos vários trabalhos escolares produzidos para o evento. Percebi que havia membros da EqSF do bairro também trabalhando na feira e achei aquilo muito interessante. Os profissionais do NASF falaram separadamente, cada um abordando aspectos do uso de EA a partir do viés de seu núcleo profissional. Difícil prender a atenção da meninada, mas o pessoal foi dando conta... Percebi um tom meio moralista nas falas, como costuma ser a abordagem a essa questão. Entretanto, sei da dificuldade de incorporação de outros modos de lidar com essa temática e, ainda mais, com crianças e adolescentes. Ao terminar a “palestra”, fiquei circulando por ali e acabei conversando com algumas ACSs, que se mostraram bastante envolvidas com o seu trabalho, causando-me, inclusive, vontade de conhecer a EqSF do bairro. Saí pensando na riqueza – possível ou latente – do trabalho de uma equipe como o NASF, que trabalha em articulação com outras equipes de saúde. Ali estavam profissionais da EqNASF e da EqSF numa atividade realizada na escola. Pensei que ali se revelava um caminho promissor para esse trabalho no território, no “aberto” das comunidades, que têm seus mil recursos. Não, de fato não estamos falando de um trabalho simples e protegido: requer coragem e disponibilidade do profissional de garimpar o território, a começar pela gente do lugar. Senti que os profissionais do NASF saíram também satisfeitos com a iniciativa. Em conversa com Farm Noz-Moscada, em outro momento, ele indicou essa alegria: Pesq: Porque parece que o trabalho em equipe implica essa composição, cada um com seu talento... Farm Noz-Moscada: Vamos pensar, assim, talvez, num quebra-cabeça... Vai você montando as peças, aí você forma aquele quebra-cabeça! É eu vir com minha qualidade, você vir com sua característica... Eu com minha característica, você com a sua, ela com a dela... e a gente junta... Nem todo mundo é igual! Pesq: Junta... e produz coisas novas, que nem se imaginava... Farm Noz-Moscada: Por exemplo, você presenciou o trabalho naquela escola, não foi!? Ave Maria, eu saí de lá com aquela alma limpa!! Pesq: Eu achei arretado! Farm Noz-Moscada: Eu saí com aquela alma limpa. Porque foi um trabalho em equipe. Foi um trabalho em que EF se envolveu, em que eu me envolvi... Pesq: Ali aconteceu uma ação em equipe? Farm Noz-Moscada: Aconteceu! Eu me envolvi, EF se envolveu, Psi (...) acabou se envolvendo também. E foi ótimo! Só o que a gente escuta hoje é elogios desse nosso trabalho lá. Só tem aquela escola pra gente fazer? Pesq: Oh! Imagino que não... Farm Noz-Moscada: Um desafio pra gente aí. Várias escolas... Se a gente conseguiu fazer aquele...

Em uma situação com a EqNASF Canela, conversei com a psicóloga para escutá-la falar de sua experiência na equipe de que fazia parte. Em sua fala, percebi que havia um entrosamento com a outra única parceira de sua equipe, de forma que atividades eram sempre planejadas conjuntamente e

153

muitas vezes realizadas pelas duas. Mesmo desfalcada, no período em que eu estava em campo, a equipe conseguia fazer diversas intervenções nas áreas, em articulação com os componentes da EqSF. Compreendi que havia ali uma configuração “trans”. Inclusive percebi que era uma equipe muito bem vista no grupão NASF, citada em alguns momentos como exemplar. Psi Canela conta um pouco das “invenções” no território: Psi Canela: (...) porque quando a gente olha um mapa desses, a impressão que você tem é: “Coitadas dessas meninas!” (as ACSs). Mas não é! Elas ficam com ruas próximas, que elas podem fazer... sair de uma e entrar na outra... Mas elas não planejam! E o que a gente trabalhou muito com elas foi esse planejamento... de elas planejarem: quem vai ver hoje, as atividades delas... Elas não sabiam fazer isso! Aí a gente começou a trabalhar assim! Pesq: Pra mim, isso parece uma brechinha que vocês encontraram pra o trabalho em equipe. Psi Canela: É como eu disse a você: a gente começou a inventar coisa... Porque não tinha como entrar! Era terrível! Eu chegava e tavam a nutricionista e a educadora física numa mesa, e eu disse: “Minha gente, eu não vou ficar fazendo isso! Eu vou entrar nessa sala agora, vou conversar com essa enfermeira e vou perguntar o que tá acontecendo no bairro!”. Aí a gente conversava: “Vamos atrás desse presidente do bairro!” e a gente ia atrás do presidente do bairro e foi acontecendo... Pesq: Isso é um tipo de invenção, que você tá chamando... Psi Canela: É, a gente foi criando as coisas... oportunidades... “Ah vai ter um monte de menino pra pesar...”, então a gente propunha: “Vamos fazer assim: a gente vai pra baixo de uma arvore e vocês vão fazendo, e aí a gente vai ficar vendo o que vocês estão fazendo!”. Porque elas não tinham coragem também de inovar... Pesq: E fizeram? Psi Canela: Oxe, então! Muitas vezes! E agora elas fazem isso. Pesq: Sem vocês? Psi Canela: Sem a gente! (...) (...) Pesq: É possível fazer um trabalho legal, não? Psi Canela: É possível. Agora tem que ter muita vontade! Por exemplo, de sair à noite, como eu e EF saímos, de trocar horário... E eu vou te dizer, EF tem dois empregos, eu tenho um emprego só... e dá tempo! Ela vai pra a escola cedinho e vai à noite e no meio disso aí a gente faz o trabalho todinho. E não tem problema entre nós por isso, porque como a gente planeja, a gente tenta cumprir aquilo lá. Pelo menos noventa por cento daquilo, a gente cumpre no mês! E muitas vezes a gente cumpre cem por cento.

Fiquei vibrando também com o seu relato sobre como elas tinham aprendido a compreender o que era “acolhimento”, lançando-se no contato com os usuários das USFs: Psi Canela: Pois é! A gente começou a perceber... Eu tirei uma manhã e disse: “Eu vou ficar entendendo o que é isso!”. Porque a teoria não entrava!! Como é que eu vou fazer isso de chegar na pessoa? (...) Não! Deram uma ficha com três folhas pra gente preencher. Você imagine que alguém tá lá sentindo coisas e você vai: nome, idade... Pesq: Isso é anamnese... Psi Canela: É o que a gente faz quando o paciente já procura. Pesq: Que é diferente de acolhimento... Psi Canela: Exato! Aí eu fiquei observando... via como a atendente tratava... como o paciente esperava... como as coisas não... Por exemplo: para aferir pressão, o médico ficava correndo, não dava tempo! O médico entrava e saía... o tempo do paciente dentro do consultório... as insatisfações do atendimento na farmácia... Aí eu sentei com EF e a gente começou a falar sobre isso, o que a gente já tinha percebido... Aí a gente aprendeu a fazer acolhimento. A gente chega... como agora que não tem ninguém, eu fico geralmente lá fora esperando alguma

154

coisa acontecer. O paciente chega, procura e tal... E eu já vou me entrosando naquilo ali. E o acolhimento da gente acontece assim.

Por fim, em conversa com Psi e EF da EqNASF Canela, senti que as duas se sentiam realmente afinadas, conseguindo trançar um trabalho em parceria, inclusive com realização de grupos nas comunidades com a participação de ambas e de representantes da EqSF do bairro, envolvendo atividades físicas e discussão de temas a partir das demandas dos participantes. Relataram casos exitosos, com depoimentos elogiosos dos usuários em relação ao trabalho realizado; entretanto, defenderam que é importante que a EqNASF busque a articulação com as EqSF e o conhecimento dos recursos do lugar, sendo necessário muito investimento. Em outro dia, tive a oportunidade de participar de um momento bem importante da EqNASF Açafrão com uma EqSF, em que aconteceria uma dinâmica grupal para trabalhar as relações na equipe. Quando cheguei à unidade, as pessoas ainda estavam se organizando para começar o grupo: a enfermeira estava resolvendo algumas questões burocráticas, alguns ACSs iam para lá e para cá adiantando serviço, alguns conversavam, à espera do início da reunião. Fui recebida pelo “porteiro”, um diferencial que ainda não tinha testemunhado nas USFs. Finalmente foi possível começar o grupo, que seria facilitado por Psi e EF Açafrão. Os outros dois integrantes daquela EqNASF não puderam estar. Com todos em círculo e de pé, houve um processo de apresentação em que cada um introduzia o colega. Estavam todos presentes, exceto o médico. Foram incluídos o porteiro, um rapaz que estava prestando penas alternativas na unidade (auxiliar do porteiro) e a estagiária, o que me causou boas impressões... Na apresentação, uma coisa curiosa foi solicitada: cada um tinha que dizer a função do outro e a importância dela na equipe. A enfermeira foi apresentada por um dos ACS como sendo “o pulmão e a coluna do posto!” e essa expressiva metáfora me fez pensar que aquela profissional devia se fazer presente efetivamente no grupo, sendo uma grande referência. Em relação ao ACS, uma representante da classe destacou “A gente é a porta de tudo!”. Então, se EqSF é a porta de entrada no sistema, o ACS é porta da porta de entrada, ficando na linha de frente. Era assim que a ACS parecia se sentir. Outro aspecto interessante é que ela apresentou EF Açafrão como membro da equipe, vislumbrando outras perspectivas para o trabalho desse profissional na comunidade. Após a apresentação, Psi Açafrão utilizou diversas dinâmicas para promover reflexões em torno do trabalho em equipe, que possibilitaram que as pessoas falassem sobre como estavam se sentindo naquele grupo e no trabalho. A partir dos relatos de como as dinâmicas propostas tinham sido vividas, foram discutidos aspectos como cooperação, disputa, agressividade. O momento se caracterizou pela constituição de um espaço para exposição de si e das dificuldades cotidianas no trabalho, com destaque às relações interpessoais na equipe e com a comunidade, além de elaboração de experiência, à medida que se contou um pouco a dinâmica de trabalho e as pressões sofridas

155

cotidianamente, refletindo-se a respeito disso. Particularmente os ACSs revelaram uma capacidade de troca de experiências e de escuta entre si, de modo que pareceram ter criado uma rede de suporte e proteção ali mesmo, dentro da equipe. Tive a chance de expressar a minha percepção de que aquela roda tinha sido bastante significativa e que estratégias como essa poderiam potencializar o trabalho daquele grupo. Em outro cenário, participei do “Grupo de Obesidade” com usuários de uma EqSF, que ocorreu na própria unidade de saúde. Estavam como coordenadoras da atividade – que vinha sendo desenvolvida há uns meses – Nutri e Psi Orégano, além de uma estagiária Psi. Senti-me muito à vontade para participar, até porque havia iniciado recentemente um processo de reeducação alimentar e estava, portanto, intensamente sintonizada com a temática. Percebi naquele dispositivo uma potência para o encontro e as trocas dele decorrentes. A temática sugerida para o encontro seguinte, inclusive, sinalizava isso: o cotidiano de cada um! Os próprios participantes estavam indicando o que gostariam de discutir, tratando-se de um assunto que se descolava um tanto de questões relativas a doenças. Torci para que a EqNASF pudesse estar sensível a isso. A presença de profissionais de outras “especialidades” na USF foi destacada como um privilégio. Diante disto foi feito o esperado esclarecimento em relação à proposta do NASF, que se responsabilizava pelo apoio a diversas USFs, coisa e tal. Componentes do grupo reclamaram da ausência de profissionais da EqSF naqueles encontros, algo que me pareceu muito pertinente. Estava parecendo mesmo um grupo exclusivo do NASF e não da EqSF! A EqNASF admitiu isso e se comprometeu em conversar com os profissionais da EqSF. Foi muito importante essa participação! Saí com mil questões em relação aos desafios da articulação EqNASF e EqSF. Percebi ali o início de um trajeto com vistas a essa aproximação. Houve uma ida à zona rural dessa mesma EqNASF – dessa vez uma ação de AS em parceria com Nutri – de que tive a chance de participar. Em ambos os municípios, as EqSFs da zona rural são acompanhadas esporadicamente pelas EqNASF, que atendem demandas específicas, de modo pontual, em função da distância/dificuldade de transporte. Desta feita, acompanhei Nutri e AS Orégano para visitas domiciliares de alguns casos que vinham sendo acompanhados e de solicitações novas, em duas regiões diferentes, envolvendo duas EqSFs. Fizemos diversas visitas e tivemos contato com a enfermeira de cada uma das USFs – ambas nos acompanharam nas visitas de suas respectivas áreas. Eu ia rememorando a crueza/dureza de certas condições de vida, outras vezes já identificada em visitas domiciliares feitas por mim quando eu compunha equipes de CAPS em outros municípios. Arranjos de vida e moradia impensáveis e desalojadores das nossas representações comuns de família e casa...

156

Recortarei apenas uma das situações vividas, que se tratou da rápida visita a uma família que já tinha sido beneficiada por um projeto de intervenção da EqNASF em parceria com a EqSF. Tratavase de um casal com idade avançada, que tinha uma sua filha com problemas neurológicos. As profissionais me relataram que quando o NASF foi convocado, a menina estava com sério problema de anemia, tendo sido necessário partir para a internação. Nessa visita, elas se impressionaram com o aspecto da moça, que estava bem melhor, segundo elas. AS Orégano destacou que, no acompanhamento daquele caso, tinha acontecido um envolvimento efetivo da EqSF, com idas das enfermeira ao hospital, a partir de provocações da EqNASF. Pensei que o fundamental da proposta do NASF era mesmo isso: provocar as EqSF, auxiliando-as na construção/efetivação de modos de cuidado outros, sintonizados com as demandas postas pelas pessoas e suas realidades. Voltamos à cidade, enfrentando alguns quilômetros de estrada. A distância certamente marca um diferencial na possibilidade de acompanhamento... A proposta era voltar na semana seguinte, mas soube que não fora possível... Terminei a manhã bem afetada pela turnê no campo e o contato com facetas da realidade social de nossa região... O interior do interior... Tinha sido uma preciosa oportunidade de acompanhar uma ação in loco do NASF! Para fechar esse conto “bricolado”, não resisti a inserir uma situação relatada por Farm Mostarda, quando instigada a dizer de um episódio em que ela tinha sentido sua EqNASF agir como equipe. Ela contou: Farm Mostarda: Semana passada teve um episódio que, na verdade, a gente nem esperava... A gente foi, marcou os atendimentos lá. Eram visitas e atendimentos na Tamarineira. (...) A gente chegou lá e tava a unidade louca nesse dia. A enfermeira não teve tempo nem de falar com a gente direito... Mas a gente chegou, perguntou a ela se as ACSs tinham conversado sobre os casos, se tava marcado; ela disse: “Não, tá tudo marcado!”. Um dos atendimentos era pra um paciente que agora resolveu aceitar ajuda. Ele é alcoólatra, resolveu aceitar ajuda e a gente marcou esse atendimento com ele. Quando a gente chegou lá, pra Psi fazer o atendimento com AS – Atendimento, não, era visita domiciliar! – a ACS vinha chegando e disse que ele tava dando surto dentro de casa, tava em surto nesse dia. Aí, foi uma tarde improdutiva na unidade. Nesse dia a gente teve que apagar fogo, entre aspas... Mas foi muito interessante, pra mim, pra unidade começar a entender que a gente faz parte mesmo da equipe, que a gente pode assumir determinadas tarefas... não no lugar deles, mas enquanto apoio... Se eles não puderem fazer, a gente pode ir lá e fazer. Então, assim, a gente chamou SAMU, a polícia chegou junto, a gente transferiu esse paciente... Infelizmente no dia foi para o sanatório, porque ele estava em crise e não tinha outro lugar pra ele ir. Isso era uma visita domiciliar que a gente ia fazer e acabou tendo que tomar essas medidas... Pesq: Vocês fizeram junto com a equipe de Saúde da Família, sabendo que a equipe Saúde da Família é a equipe de saúde da família, vocês são apoio, mas algumas vezes... Farm Mostarda: Algumas vezes a gente tem que tomar... E eles nem sabem quem procurar! No dia foi a gente “Não, vamos ligar pro SAMU!”. Eu achei até que o SAMU não fosse lá, porque geralmente o SAMU vai quando o paciente tá ali... não é nem precisando de ajuda... o paciente tem que estar disposto a ir (...) E o SAMU foi e eu vi que no dia a equipe tava totalmente perdida, não sabia a quem recorrer. (...) A gente foi muito útil. Fizemos também outra visita domiciliar, eu e AS. A gente foi na casa de uma paciente que é muito carente, não financeiramente, mas de afeto mesmo, de carinho. É ela e a mãe... A filha tem um problema de saúde mental e a mãe tem diverticulite, mas é bem idosa... E no dia, eu vi o quanto a gente é útil em coisas básicas, que às vezes a gente acha que o paciente sabe. Cheguei lá, vi que a medicação dela... Ela tava com infecção urinária, além da diverticulite que ela já tem, crônica. (...) Aí, a gente vê como cada profissional, dentro da sua especificidade, também é muito útil, porque eu cheguei lá, a bichinha com infecção urinária, com a prescrição do Hospital na mão praticamente, e tava tomando a medicação pela metade, sentindo dor... Eu só fiz pegar e disse: “A senhora tá tomando esse remédio de verdade?”, “Minha filha, isso não serve é de nada, porque eu queria estar tomando era

157

um comprimido e tô tomando um líquido aqui que não serve de nada!”. Eu fui orientar, dizer a ela que ela tava tomando a metade da dose, que era por isso também que a dor não tava passando, não tava melhorando... E assim a gente vai ver como tem coisas básicas... que não tem preparação nem pra se atentar, pegar uma receita, ler para o paciente e dizer que ele tá tomando uma dose pela metade... Assim, são coisas que a gente vê que tem que estar junto mesmo ali, dentro da casa do paciente, sempre que possível... É muito interessante o trabalho! A gente vê o quanto a gente é útil quando tá no território, jogado lá mesmo, assim, com os pés no chão.

*** Como indicado, esse conto apresenta algumas das situações com que tive contato em campo as quais considerei brechas encontradas pelas EqNASF para uma ação transdisciplinar. Portanto, constitui de certa forma o ápice do processo interpretativo empreendido a partir da matéria-prima colhida durante os meses de inserção no cotidiano das equipes, tendo em vista o objetivo da pesquisa. Ponderando o que vivi em campo, sinto-me autorizada a afirmar que presenciei, nas práticas das equipes pesquisadas, vários interessantes ensaios que se sintonizavam ao sentido de produção coletiva do trabalho. Convem explicitar que nem sempre as equipes ou profissionais se davam conta da importância desses momentos. Percebi que muitos processos eram disparados pelos seus atos sem que se dessem conta. Assim, o destaque dado aos mesmos resulta em grande parte do olhar que lancei a eles, tendo a chance de elaborar durante a análise o que neles havia de fato despertado especial atenção, considerando o foco da pesquisa. Julguei fecunda a metáfora do trabalho em equipe como uma montagem de quebra-cabeça, a partir da consideração das características, talentos e modos de cada componente, utilizada por Farm Noz-Moscada: como no referido jogo, trata-se de um processo que requer reconhecimento da diversidade apresentada, paciência, experimentações, reflexões. A única ressalva é que não haverá um desenho pré-definido a ser montado: a priori não há como saber que composições e figuras poderão se criar a partir da mistura dos integrantes da equipe em cada situação específica, ainda mais em seu contato com os profissionais das EqSFs e os usuários. A capacidade de inovação no trabalho, diante das situações com que as EqNASFs se deparam – em sua diversidade e adversidades – mostra-se fundamental: os modos marcados pela ousadia de inovar, escapando-se aos moldes tradicionais de atuação relativos a cada núcleo profissional, possibilitam uma margem mais ampla de intervenções possíveis. Sendo assim, a atuação marca-se pela liberdade de apostar na intervenção em novos lugares, com formatos outros, sem definições rígidas de “setting” para atendimentos ou projetos terapêuticos. Ganham destaque a articulação e estímulo à participação de potenciais agentes de cuidado, como as lideranças dos bairros, a garimpagem de recursos que existem nos territórios, a tessitura de redes de cuidado para além do já formalmente estabelecido, a realização de atividades de saúde/educação em espaços inusitados – como debaixo de árvores. Minimamente, é necessário ousar sair das salas de atendimento das

158

unidades de saúde para a construção de outros espaços e modos de intervenção, valorizando os lugares onde a vida das pessoas acontece. Parece extremamente importante a compreensão de que os parceiros primeiros estão mais perto do que se imagina – os demais integrantes da própria equipe bem como aqueles das equipes com quem se busca trabalhar, como no caso dos cenários pesquisado, as EqSF. Nesse âmbito, os laços precisam também ser construídos e fortalecidos continuamente, como uma via de consolidação do trabalho em equipe. Essa construção só ocorre mediante a garantia de espaços de troca e reflexão sobre o fazer, que sejam criativamente e efetivamente aproveitados, escapando-se à burocratização e à normatização, como já foi discutido. A palavra intervenção comporta em sua escrita o prefixo “inter”, que convoca à co-produção ou co-laboração pela via do encontro, e o substantivo invenção, que poderia ser tomada como sua característica primordial. Os encontros que acontecem no contexto das práticas de saúde são, sobretudo, espaços de criação de brechas possíveis para intervenções pertinentes. Em sintonia com isso, afirmo que trabalho em equipe está relacionado como o planejamento conjunto, como foi indicado por vários interlocutores. Assim, vai se tecendo coletivamente, e não de modo solitário ou individualizado. Nesse sentido, é mais que mera adição, pois do próprio encontro surgem novidades ou diferenças que não correspondem simplesmente ao que é trazido por cada um. O encontro ganha relevância pela possibilidade de descobrir saberes e modos de cada um; por isso, é necessário que se preservem instantes em que cada um possa se expressar, sendo a comunicação fluida um elemento indispensável. Nas atividades educativas, a conversa deve ser valorizada, pois os relatos de cada um possibilitarão comunicação e elaboração de experiência. O datashow – ou qualquer outro recurso – só deverá ser utilizado tendo-se essa compreensão de base: não se pode matar a possibilidade de que cada um exprima seus conceitos, percepções, afetações em torno de cada temática trabalhada, inclusive os coordenadores da atividade. Penso ser imprescindível assumir que o fundamental são os encontros, pela possibilidade de produção e criação que representam. O envolvimento de cada um com o trabalho a ser feito se reflete na disponibilidade para usar bem o tempo garantido para as práticas. São as práticas que originam a produção de conhecimento e, por isso mesmo, a construção de modos mais condizentes com o que se demanda em termos de intervenção. Só se pode avaliar se algo é bom ou ruim pela experimentação. Aprender a fazer acolhimento a partir da experiência é um causo para lá de curioso. Dizer que a “teoria” de acolhimento não era incorporada até que se apostou na feitura de modos possíveis de acolhimento na USF me pareceu um exemplo concreto e contundente do que tenho defendido aqui.

159

Pela experiência relatada por Psi Canela, lembrei-me das experiências de plantão psicológico, a exemplo do que é discutido por Morato e outros autores (MORATO, 1999; MORATO, BARRETO & NUNES, 2009). O acolhimento é, sobretudo, uma atitude de abertura à alteridade, como deve acontecer nas práticas de Plantão Psicológico, as quais precisam ser as mais fluidas e menos burocráticas possíveis, escapando a tecnicizações (à semelhança da discussão sobre vínculo feita anteriormente), amparando-se sobretudo no sentido ético-político da práxis, a ser continuamente costurado. Diria que, para além do dispositivo Plantão Psicológico, mas inspirando-me no que sua experiência aponta, penso que importa ao profissional de saúde – seja ele psicólogo ou não – ter uma atitude-plantão em sua prática cotidiana, ou seja, estar disponível ao encontro com o outro e ao desalojamento que esse encontro pode provocar, no intuito de iluminar a partir de escuta e provocação um desvelamento do que leva o usuário a buscar o serviço. Acredito que essa atitude-plantão terá matizes particulares a partir de cada núcleo profissional, o que abriria uma discussão específica, que não é o objetivo nesse contexto. Contudo, haveria algo comum nessa atitude que busco destacar, como coisa partilhada, a ser perseguida ou cultivada: a disponibilidade do profissional ao encontro com o(s) outro(s), sem a intenção de transmitir verdades, valores, prescrições ou a conformação de simplesmente cumprir protocolos. Assim, acolhimento seria, antes de tudo, colheita, como ouvi Henriette Morato algumas vezes falar e defender. A situação relatada dá margem, ainda, para se falar de acolhimento sem referência a um jargão, já que tantas belas palavras no contexto da atenção à saúde nisso vêm se transformando – somente palavras artificializadas e descoladas de um sentido experiencial –, esquecendo-se de que só na experiência há uma via possível para o aprendizado de um agir político e ético. A título de ilustração, lembro dos usos recorrentes e banalizados de vínculo, o próprio acolhimento, clínica ampliada, escuta, responsabilidade sanitária. Apenas em ato é possível viver esses modos de atuação em saúde. São mais que estratégias... Por necessitarem estar fundamentados em uma perspectiva ética-política – que não é meramente ensinável –, tais dispositivos e modos precisam ser experimentados nos diversos níveis e contextos dos processos formativos. Em algumas atividades propostas pela EqNASF Açafrão para trabalhar a dinâmica de relações em EqSFs, algo que me chamou atenção foi que a Psi dizia a moral da história, sob sua perspectiva, ao final de cada dinâmica e, às vezes, sem escutar com mais vagar a experiência dos que quisessem falar. Assim, revelava o que tinha sido objetivado com a dinâmica e, com isso, percebo que acabava “fechando” e não “abrindo” compreensões. Penso que isso pode ser caracterizado como um ranço de nosso “especialismo” – parece que nos sentimos na obrigação de ter que dar a palavra final. Entretanto, os momentos foram riquíssimos, sendo um ponto importante a exposição de dificuldades

160

relacionais entre alguns profissionais das EqSF. Eles puderam falar o que incomodava no outro. Foram instantes tensos, mas que não se mostraram desastrosos... Há que se aprender a sustentar a tensão – penso. Realmente não sei o que veio depois, no trabalho cotidiano, mas acho que aqueles parecem ter sido espaços propícios para aquele tipo de troca e “acerto”. Considerei uma ousadia da EqNASF encarar esse tipo de proposta e penso que ali se produziram excelentes encontros. A lida com situações imprevistas pode ser vista como fonte de aprendizado. O episódio inusitado vivido em campo pela EqNASF Mostarda mobilizou os profissionais, também da EqSF, demandando articulação de rede e difíceis decisões. O trabalho em saúde requer a atuação em situações de “crise”. Ao mesmo tempo, foram apontadas por Farm Mostarda intervenções relativamente simples, revelando a potencialidade da aproximação com o usuário e promovendo, ao profissional, o sentimento de “ser útil”. Talvez se possa relacionar o sentimento de “utilidade” com a sensação de alegria pelo trabalho realizado – e isto me parece indicador de bons encontros. Disponibilidade, coragem, abertura: um pouco de cada um desses ingredientes parece acrescentar uma nota especial à mistura que pode emergir dos encontros no contexto das redes de saúde. Considerando que as possibilidades para intervenção eram vistas ou percebidas somente se os profissionais se lançavam no campo – de modo que não parece fértil ficar elucubrando sem um mergulho na experiência –, destaco, a partir do meu contato com os interlocutores e as situações por eles vividas, algumas características do que passei a chamar, então, de aposta trans: produção coletiva como exercício cotidiano; despojamento das ilhas disciplinares sem, contudo, negá-las; fronteiras necessariamente borradas; sustentação da tensão; poiésis; valorização de modos – a ser continuamente buscados – em contraposição a modelos – que podem servir apenas como referências – e construção permanente de sentido ético-político da prática. A produção coletiva é, assim, compreendida como algo que se faz junto, mas não presencialmente todo o tempo, podendo brotar apenas como fruto dos encontros e do compartilhamento e elaboração das experiências vividas. Percebi um alto grau de idealização do trabalho em equipe e muitas vezes senti uma expectativa dos interlocutores em relação à definição de modos corretos para seu exercício a partir da pesquisa. Entretanto, toda idealização é uma forma de captura, tolhendo as forças criativas, plásticas, abundantes na imanência da vida. Não há como universalizar o modo do trabalho em equipe – ou melhor, talvez não haja vantagem em fazê-lo –, dado ser algo sempre contextual, dependente da mestiçagem que ali se apresenta. O importante é que haja de fato um senso de coletividade, para o qual também penso não haver um molde, relacionando-se a um sentido de pertença a um grupo ou projeto que vai se tecendo a partir de objetivos de trabalho que vão sendo construídos e autenticados por todos. O coletivo se relaciona, assim, ao que é disparado a partir dos encontros que acontecem.

161

Ao perceber movimentos que aconteciam na freqüência de uma ação transdisciplinar/produção coletiva, as equipes tateavam pistas e caminhos para se apropriarem mais do próprio trabalho que vinham fazendo, ora se distanciando ora se aproximando da sensação de que estavam num rumo interessante: qual seria o pulo do gato?

∞ Décimo Ato – O “pulo do gato”: o desafio da afinação coletiva

E

m contatos com a Psi da EqNASF Pimenta, muito me instigou a expressão que utilizou algumas vezes para se referir ao que, segundo ela, seria necessário para o NASF do seu município

engatar no trabalho cotidiano: “Mas eu acho que falta ‘o pulo do gato’! Eu acho que a gente, enquanto equipe, falta dar ‘o pulo do gato’!”. Ao longo de uma conversa individual que tivemos, fui tentando compreender melhor o que ela tentava expressar, estimulando-a a falar mais sobre isso: “Eu acho que é a gente conseguir afinar uma comunicação. Eu acho que perpassa o ‘pulo do gato’... Sabe o que é aquela coisa assim de um insight coletivo?”. Seguiu falando das mil possibilidades de inserção do NASF na SMS que estavam em voga naquela conjuntura: participação na execução do Plano de Educação Permanente, a construção do Plano Municipal de Saúde, a inserção em um projeto de Gestão do Cuidado em andamento no contexto da Atenção Básica, a demanda da rede de atenção à Saúde Mental e outros dispositivos mais. Inquieta, ela enfatizou principalmente a necessidade de o NASF articular atenção e gestão. Insistia na sua compreensão de que existia um cenário fértil para uma efetiva atuação do NASF, o que geraria, assim, vias para o seu reconhecimento. Também ela percebia que faltava legitimidade a esse dispositivo no contexto da SMS, impressão que já tinha ouvido de vários outros integrantes do NASF. “(...) Agora essa questão desse ‘pulinho’ me mobiliza muito, porque eu fico pensando como tá... Não é que é pra fazer todo mundo a mesma coisa! Não é isso quando eu falo que a gente precisa afinar uma comunicação... É que a gente tem vários espaços aí, potência pra ocupar, enquanto proposição de NASF, enquanto aquela lógica toda de apoio matricial, de trabalhar com educação permanente (...)”, destacou Psi Pimenta. Seguiu destacando que o NASF ainda não havia aprendido – ou sacado – o pulo do gato e sentia que, apesar de o grupo estar num movimento interessante, acabava se “perdendo no vácuo”... No encontro final com a equipe, para encerramento do campo, Psi Pimenta reutilizou a expressão. Primeiramente na reunião se falou da importância da inserção do NASF nos territórios e de como essa experimentação que os profissionais do NASF vinham empreendendo de ir a campo com maior freqüência estava rendendo frutos. Ela pontuou que sentia essa aproximação como uma

162

provocação contínua. “A gente enxerga o caminho, mas não consegue dar os primeiros passos!”, frisava. Ao se referir novamente ao “pulo do gato”, caracterizou isto como a criação de uma consistência, em meio ao emaranhado da rede, em que estavam ocorrendo relações do NASF com diversos dispositivos. Num contexto mais amplo, sentia que as pessoas da rede estavam começando a ver sentido no trabalho do NASF, a partir, por exemplo, de encontros como os do Grupo de Trabalho de Humanização (GTH) que, mensalmente, reunia representantes de todas as unidades de saúde da rede, com vistas ao fortalecimento das articulações. Destacou, ainda, a necessidade de o grupo refletir sobre o trabalho realizado para que este ganhasse corpo. Compreendia que, minimamente, um sentido estava sendo construído, a partir da teia de provocações propositivas constituída pela participação do grupo em diversas rodas: rodas com um Apoiador Institucional que se disponibilizou a ter encontros mensais com o Grupão NASF, rodas entre os próprios profissionais do NASF, rodas com a minha participação como pesquisadora e outras. Desabafou que especificamente as rodas do NASF lhe causavam aflição: sentia que o grupo ia, ia, ia e, de repente, se perdia “no cotidiano, na demanda, nas nossas próprias ilhas profissionais”. Exemplificou: quando chegavam pessoas precisando de psicólogo, abria-se espaço na agenda para atendimento individual, o que ela percebia como uma perda do foco do trabalho coletivo. Contudo, por apostar na proposta política, nos dispositivos, ela dizia encontrar energia para seguir, num misto de felicidade e angústia. Nas minhas andanças no campo, percebi vários profissionais do NASF desse município em sintonia com essa compreensão expressa por Psi, dentre elas Farm Mostarda, que contou a mim, em conversa individual, sua preocupação: Farm Mostarda: Eu só acho que a gente tem que ter cuidado pra não se perder, sabe? Ter uma organização, ter foco... Não que a gente não possa entrar em tudo... Pode! Agora pra isso tem que estar bem argumentado, senão perde o foco. Pesq: E essa organização é o que, concretamente? Farm Mostarda: Essa organização é no mínimo integração do grupo pra gente estar ali, pra gente estar andando numa linha sem perder o foco... Pelo menos de integração, eu sinto falta! Acho que a gente precisa ter um norte mais... uma direção mais precisa de trabalho em grupo, do que todo mundo tá fazendo, do que é comum... Aí eu sinto falta ainda! Pesq: E você acha que o grupo está caminhando nessa direção ou...? Farm Mostarda: Eu acho que está começando um movimento para que isso ocorra, sabe? Eu acho que têm uns movimentos que são muito importantes para que o grupo entre nessa direção... Agora não chega a ter nada ainda concreto. Pelo menos é a ideia que eu tenho...

Reticente, encerro esse conto-provocação, também afetada com essa expressão da dificuldade encontrada pelas equipes para dar o “pulo do gato” em termos de produção coletiva e apropriação do sentido do trabalho... Muitos atos seriam ou serão ainda necessários!

***

163

Chego à análise do décimo conto-ato com a sensação de que não necessariamente esse teria que ser o último e muitos outros poderiam ter sido elaborados... À medida que avancei na análise de cada um dos contos preparados, fui percebendo a constituição de uma intertextualidade: os contos se interpenetravam, tendo muitas vezes os mesmos fios, que se evidenciavam, sobretudo, nas produções interpretativas. Ora, talvez isso fosse previsível, já que toda a tessitura do processo de interpretação fora iluminada pela mesma questão de pesquisa, voltada às brechas que as equipes de saúde encontravam para a ação transdisciplinar compreendida como produção coletiva. Tratava-se de uma atenção à produção coletiva em ato a guiar todo o processo de pesquisa! A expressão “pulo do gato” soou, para mim, de um modo instigante desde que a ouvi em campo. Curiosamente, durante as conversas com minha orientadora no momento de início da análise, ouvi dela a mesma expressão: “A análise é o pulo do gato!”. Imediatamente associei com o que tinha escutado: aquilo era um serendípite43! Não foi à toa que esse conto se delineou como o mais propício para finalizar essa seção... Investi na busca de uma compreensão aprofundada do que, no senso comum, essa expressão significava, ao mesmo tempo em que fiquei atenta a identificar qual seria o pulo do gato para o trabalho em equipe se caracterizar como produção coletiva em ato, considerando as indicações dos meus interlocutores em sua lida cotidiana. Tal expressão tem origem em um conto popular, segundo vasculhei na internet44: a onça, de olho no gato, como alimento, finge ser sua amiga e pede que ele lhe ensine alguns pulos; este prontamente se põe como professor e, quando esta, já douta em pulos, vislumbra uma oportunidade de dar o bote, pula em cima do gato, que escapa dando um salto inédito ao predador – trata-se do “pulo do gato”. Essa expressão pode ser compreendida, portanto, como uma habilidade pessoal para lidar com situações de apuros – ou desafiadoras –, sendo algo que não se ensina, que cada um aprende a partir da sua própria experiência. Saber dar o “pulo do gato” é, portanto, uma vantagem. Deparei-me frequentemente com uma sensação entre os profissionais das EqNASFs de que algo não engrenava no trabalho que desempenhavam. E qual seria o pulo do gato, afinal? Ao surgirem as possíveis caracterizações – afinação coletiva na equipe, integração, definição de norte/sentido/direção e, principalmente, criação de consistência –, algo começou a se desvelar. O pulo do gato estaria possivelmente no esquecimento da ideia de que sempre falta algo – em virtude de um ideal de funcionamento enquanto equipe –, aliado à valorização de um compromisso continuamente

Serendípite se refere ao encontro casual de algo que não se buscava, mas que se mostra interessante em função de uma atitude de abertura e atenção ao novo. A palavra origina-se a partir da Lenda “Os príncipes de Serendib”. Segundo Rogério Lacaz-Ruiz, professor de Metdologia Científica e Microbiologia Zootécnica da USP, a serendipidade é uma atitude útil às investigações científicas. (Informações encontradas em http://www.hottopos.com/mirand4/suplem4/oesprito.htm, acessado em 30.10.2011) 44 Site denominado Almanaque Brasil (http://www.almanaquebrasil.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10985:o-pulodo-gato&catid=12959:cultura&Itemid=142), acessado em 20.09.2011. 43

164

renovado de produção de sentido para o trabalho, de modo que houvesse sintonia em relação a alguns objetivos. Revigora-se a compreensão de que é inútil buscar receitas ou modos precisos e corretos para o trabalho em equipe – no NASF ou em qualquer outro dispositivo de saúde. Mais importa experimentar modos de se relacionar – com o trabalho, com os colegas, com os gestores, com os usuários –, sob a perspectiva do compartilhamento de responsabilidades na promoção de saúde/expansão de vida, construída via encontros. Fica difícil vislumbrar caminhos de legitimação de um trabalho ao se reforçar a falta, o padecimento, a queixa, já que esses modos indicam uma dominância de forças favoráveis ao declínio da vida – são reativos, enfraquecidos. Falo aqui em decadência da vida – numa perspectiva assumidamente nietzscheana –, pois percebi que quando há o predomínio desse modo reativo, configura-se certa estagnação e sensação de impotência nas equipes, por se acreditar que a força, a legitimidade, o reconhecimento, o impulso para seguir deve vir sempre de fora ou de alguém/algo considerado superior. Daí a sensação partilhada entre os profissionais de que muito trabalho é feito, mas com poucas articulações, com planejamento assistemático, além de parco investimento na efetiva reflexão e avaliação sobre o que se faz, gerando um grande cansaço e desperdício de energia. Em campo, nos dois cenários, percebi um movimento de abertura interessante nos grupos e uma grande fertilidade para mudanças. Notei os grupos NASF se apercebendo da necessidade de construção de um foco comum no trabalho e torci para que não se deixassem capturar pelas idealizações do que seria um “bom trabalho em equipe”, ponto sobre o qual estive provocando e estava sendo sempre provocada constantemente no contato com os profissionais. Discutindo a biopolítica e a construção de novas práticas em saúde, Fuganti (2009) alerta sobre a possibilidade de que tais ações permaneçam reféns de pré-julgamentos – ainda que sejam tidas como “inovadoras” –, sujeitando a vida a tristes poderes (normatizações, universalizações, padronizações, moralismos), e defende que o investimento em valores universais, tendência ainda em vigor na contemporaneidade, “é uma maneira de falsificar a realidade” (p. 670). Não parece fértil e consentâneo à expansão da vida a definição de valores considerados universais – portanto, imutáveis, rígidos, onipotentes. Fundamentada nesse alerta, considero fundamental refletir sobre os sentidos experienciais de cuidado, vínculo, acolhimento, humanização, apoio e outros tantos dispositivos no contexto das práticas em saúde e das relações que são sua base: no exercício dessas, quão abertos estão os operadores dessa política às forças plásticas, expansivas, criadoras que constituem a vida e que muitas vezes são amordaçadas e desvalorizadas em função do desejo de domínio e burocratização? Quão dispostos estamos todos a não definir de modo solipsista e atemporal a moral da história? Torna-

165

se imprescindível pensar que interesses movem a definição de uma moral específica e válida a todos e, portanto, a que ela serviria. Avalio que algo estava em trânsito naqueles cenários pesquisados, no sentido de reorganização do trabalho das EqNASF. O diagnóstico da situação, identificando-se fatores que estavam emperrando a produção coletiva no trabalho cotidiano, vinha sendo feito pelos próprios profissionais: havia necessidade de melhor definição de norte/sentido/direção comum do trabalho, mesmo que transitório; pouco aproveitamento dos espaços de construção coletiva; reconhecimento da importância de delineamento de um sentido de pertença ao grupo; reconhecimento da imprescindibilidade da presença nos territórios e tantos outros elementos discutidos ao longo dessa análise. Tudo isso pude colher nos meses de inserção em campo. Penso que a fonte para o aprendizado de modos possíveis para o “pulo do gato” estava ali mesmo, em cada EqNASF, e implicava o acerto de passo na produção coletiva, para o qual não há molde ou modelo, devendo se constituir da experiência vivida, posta sob investigação. Penso que encarar isso demanda coragem, como disposição! Particularmente interessante é a compreensão do pulo do gato como criação de consistência expressa por Psi Pimenta. Pude perceber que invés de desejo de “estabilidade”, o que era apontado parecia envolver um processo de apropriação da prática, brotando da experimentação, do movimento de por a experiência sob investigação. Pulo do gato é movimento. Dentre os sentidos indicados de consistência, encontra-se “propriedade de um conjunto de resultados de experiências (biológicas, físicas etc.) que satisfazem, dentro dos limites dos erros experimentais, as leis pertinentes aos fenômenos a que se referem” (HOUAISS, VILLAR, FRANCO, 2009). Tomemos, dessa definição, principalmente a noção de resultados que surgem da experiência e que se mostram pertinentes, gerando um solo um pouco mais firme – nunca estável. Reafirma-se, então, o sentido de consistência como apropriação, que vai acontecendo a partir do mergulho na experiência do trabalho, a qual, elaborada, permite que novas compreensões vão se incorporando e, muitas vezes, as pessoas podem nem se dar conta dos efeitos que surgem. Esse processo não se relaciona com “tomar consciência de”, pois não é o “eu” se apropriando, fazendo. A consistência vai acontecendo, não havendo um “eu” – como centro ou entidade abstrata e encapsulada – que dá consistência a alguma coisa. Que pulo do gato é possível e viável? Se os profissionais sentem que ainda estão prestes a dar o tal pulo – e realmente penso que é preciso pluralizar: são pulos – é porque não conseguem valorizar o que já fazem ou por que, de fato, não conseguem ir além, ultrapassando dificuldades e barreiras, descobrindo a fertilidade do encontro? Como viabilizar um melhor aproveitamento dos espaços de encontro para que essa reflexão ocorra e seja a via de saída da inércia e do desânimo?

166

Com esse mote, retomo um ponto de análise crucial dessa pesquisa: as afecções precisam também ser assumidas como motor para transformações. Percebi que havia uma certa “consciência de...”: eram freqüentes as sensações de fragmentação, de pouco senso de coletivo etc. etc. etc. Percebiam a importância do trabalho em equipe, das relações horizontais, da necessidade das reuniões e outros, mas apenas isso não os mobilizava. Respaldando-me em Espinosa e Nietzsche, acredito que esse movimento para seguir adiante só pode vir das afetações. As afecções são frutos dos encontros, ocorrem no encontro. Se estão mais freqüentes os “maus encontros”, os efeitos são sentidos inclusive no próprio corpo – sente-se desânimo, tristeza, desenergização. Esses efeitos devem ser compreendidos como indicadores importantes, demandando um processo avaliativo em relação à dinâmica do trabalho. Falo de processos avaliativos com vistas a planejamentos que tenham vida, que façam sentido aos participantes, que escapem da via burocrática – não sendo assim, virarão belas apostilas guardadas em gavetas. As afetações estão presentes a todo o tempo e, além de motor de transformações consideradas necessárias, são indicadores dessa necessidade de mudança. Um “bom” trabalho em equipe requer a construção de relações autônomas – autônomas porque marcadas pela tensão entre liberdade e responsabilidade no agir ético –, ao mesmo tempo em que se tece um sentido de coletivo. Assim, há que se afirmar a alteridade, compreendida como coexistência de modos singulares. A mistura dos temperos é antes uma virtude do que um veneno, contanto que haja reconhecimento e respeito à diversidade: o exercício de lida com as diferentes potências, ou seres singulares, é, simultaneamente, um desafio e um privilégio, que jamais se encerra enquanto há convivência. A alegria só pode brotar a partir do reconhecimento dessa diversidade, sendo importantes os debates, os conflitos, os desentendimentos – isso faz parte do processo permanente de afinação que significa, tão somente, negociações em torno do tom (que pode sempre variar), valorizando-se diferentes timbres. É crucial que se afirme a potência de variar, própria da vida. Finalizo, então, a análise desse conto e do capítulo, reafirmando que qualquer sentido – como direção – só pode ser construído a partir da experiência. Assim, sentido não é dado gratuitamente ou imposto, sob pena de se aniquilar a potência criativa – só perfilada em ato. A experiência é sempre o “essencial”, por ser fonte primeira de produção de sentido. Apostar que o sentido é sempre contextual requer que se escape a um relativismo anárquico em sua produção: torna-se crucial um permanente processo de elaboração/investigação da experiência ou, dito de outra maneira, é necessário que se avalie a própria prática continuamente. Desse modo, é possível que se vá delineando um sentido éticopolítico à atuação, processo que demanda atenção constante. Considera-se que tal processo pode se guiar pelas perguntas – quais as forças em embate e a que está servindo a tensão que se estabelece

167

entre elas, revelada por uma dada dominância de umas ou outras? Partindo desse mote, passemos às considerações vitais...



168

Capítulo 7. Das considerações vitais: provocações para levar adiante Eu quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa.

Escrever as considerações vitais dessa pesquisa, a título de finalização do seu processo elaborativo, é tarefa que se reveste de significativa dificuldade, principalmente pela sensação de que muito pode e deve ainda ser dito sobre a temática escolhida para estudo bem como sobre a matériaprima colhida em campo. Contudo, é necessário por um ponto final a este trabalho, ainda que eu deseje que ele tenha algum caráter de continuidade... Não pretendo cair no clichê de que um trabalho de pesquisa, na perspectiva aqui defendida, não se conclui; porém acho justo sinalizar que o que se apresentou até o momento foram compreensões possíveis a partir de um dado ponto de vista, tecidas no contexto dos encontros variados vividos ao longo do doutorado, assumindo uma marca autoral. Estive, durante o tempo desse estudo, agudamente atravessada por reflexões e concentrada em meditações em torno do trabalho em equipe, vislumbrando as brechas para sua acontecência em modos de produção coletiva. Não apenas enquanto estive no campo da pesquisa, mas também em minha práxis na universidade – na relação com os estudantes, com os colegas professores e com os profissionais da rede de saúde – estive atenta a essa temática. Admito que talvez toda minha vida profissional tenha se configurado como uma procura dessas brechas, por meio do exercício de abertura aos que estavam ao meu redor: exercício nem sempre tranquilo, por vezes até árduo, vivendo momentos em que chegava a desacreditar das possibilidades de um trabalho costurado coletivamente. Todavia, por tê-lo experimentado em alguns contextos profissionais/institucionais, a aposta se fortaleceu e vem continuamente se renovando, trazendo frutos à minha prática cotidiana – sigo acreditando e buscando coinventar modos para essa produção coletiva, em que se afasta a solidão e se aprende um bocado, pelo processamento das diversas afetações experimentadas em meio ao trabalho. Feitas essas considerações preliminares, a pergunta que agora me coloco e pretendo responder de modo resumido nesta última seção é a seguinte: o que surgiu como fruto da avaliação genealógica das práticas das EqNASF pesquisadas? A intenção é indicar aspectos que, a partir da avaliação dos modos de atuação, percepções e relatos com que tive contato, pareceram contribuir para expandir a atuação das equipes e os que a restringiram. Tais aspectos já foram apontados e discutidos por meio dos contos e respectivas análises; entretanto, percebo como importante filtrar e relevar alguns pontos que ganharam pujança no decurso interpretativo. Aproveito para partilhar a compreensão – maturada após a finalização do processo hermenêutico – de que a relação entre os contos teve um marcante caráter de interpenetração, sendo que o sentido-direção foi se evidenciando na medida em que eu seguia a trilha e o fluxo das

169

experiências vividas e os pensamentos-afetações delas decorrentes. Assim, é interessante notar que todos eles são transpassados, de certo modo, pela perspectiva da produção coletiva, pois em cada conto elaborado se expressou a preocupação com o trabalho tecido coletivamente, sendo este entrevisto em seus diversos desafios e facetas, via aproximação com o cotidiano profissional dos interlocutores. A perspectiva de expansão ou restrição empregada tem, assumidamente, fonte nietzschiana, levando em conta a apreciação das forças em embate e as relações de dominância que entre elas se estabelecem. Grosso modo, expansão se relaciona a movimento, criação, ao aumento da potência de ação ao passo que restrição se refere à estagnação, tolhimento da criatividade, diminuição da potência de agir. A avaliação desses modos e do que deles brotam ocorre na ordem da imanência: a avaliação acontece a partir da própria vida, via experiência vivida. Destaca-se que a imanência da vida é transformação, movimento e não repetição, mesmice, estabilidade. Há que se aprender a lidar com a processualidade da existência na construção de compreensões a respeito dos fenômenos que constituem fonte de interesse a pesquisa. Como ponto de partida, indico que a assunção do conatus ou potência de agir é um aspecto fundamental para o trabalho em equipes – tanto para os trabalhadores e os gestores quanto para os próprios usuários. Todos podem. O que podem? Como podem contribuir? Quais os talentos? E, fundamentalmente, o que se pode construir em ato, no cotidiano das práticas? As possibilidades de resposta só podem ser perfiladas via mergulho na ação. A liberdade para a invenção, no contexto da experimentação, é algo importante para que o trabalho flua para além de normas e padrões estabelecidos. Que cada um assuma a fatia de responsabilidade que lhe cabe parece algo imprescindível, de modo a responder por seus atos e propostas e avaliar continuamente o que deles surge como efeitos, na relação com um dado contexto institucional e político. Em relação a esse contexto, o aspecto político partidário foi sutilmente abordado na análise, em função da discussão em torno da precariedade dos vínculos empregatícios. Lembro que no início do doutorado, acompanhei uma mudança de Gestão, em função do período eleitoral municipal (2008/2009), tendo estagiários de Psicologia inseridos na rede de serviços de Juazeiro-BA, e foi evidente o impacto em todos os âmbitos do sistema público, não só da Saúde, ocorrendo demissões em massa e se instalando um clima de terror. Isso dá alguma noção da repercussão do posicionamento da gestão político-partidária no desenvolvimento do trabalho das equipes de saúde em geral, certamente não apenas do NASF. De certo modo, isso me faz pensar na necessidade de discutir relações de poder no processo de legitimação do trabalho das pessoas. A rotatividade nos cargos de gestão também é algo que chamou atenção, principalmente devido à desaceleração que costuma provocar nos processos em

170

andamento. A perspectiva de continuidade do trabalho e das equipes – sempre um desafio no contexto público, devido à forte instabilidade dos vínculos de trabalho – mostra-se quase inexistente, sendo imperativo avançar na discussão em torno da realização de concursos públicos como uma das vias de saída a esse grave problema. Nos encontros cotidianos nas redes de saúde, o profissional se depara com o inesperado e precisa inventar modos: de preferência, não sozinho, mas coletivamente, com o outro. Aprender que não é necessário “dar conta” isoladamente, por atos individuais, de cada situação que emerge parece uma condição sine qua non na direção da produção coletiva. Não é preciso que se faça sozinho, nem é “mais” produtivo. Um aspecto especial se refere à importância do processo de conquista coletiva e democrática, com valorização de todos os saberes/dizeres/fazeres envolvidos. Provavelmente esteja nisso uma das fontes de tanta angústia nas redes públicas de saúde: acreditar que se pode dar conta só, a partir do saber especialista, das demandas que surgem, sendo isto reforçado culturalmente e nos contextos acadêmicos. Nos próprios encontros, ocorre produção, criação ou invenção como possibilidade. Ao se experimentar o fazer junto, aprende-se também! Nesse cenário, é fundamental circunscrever que o trabalho em equipe pressupõe o envolvimento da população: os usuários são também partícipes e produtores da atenção à saúde e não seus meros receptores. Parece indispensável a atitude de abertura vinculada à disponibilidade de escuta como característica dos modos de se relacionar dos profissionais de saúde. A partir desse modo “aberto” de atuar, amplia-se a possibilidade de encontros ditos bons, em que não se pretende impor ao outro modos de pensar, sentir, viver. Assim, a intervenção – como invenção entre pessoas – ocorre em meio ao lançar-se à travessia, na própria travessia, entre margens, cruzando fronteiras, ousando criar novas formas diante das situações que emergem, avaliando os efeitos de cada passo. A abertura ao inusitado no trabalho em saúde implica a necessidade frequentemente posta de “recentrar as normas”, de produzir outras estratégias, de criar outras regras e valores. O agir cotidiano pede inventividade, possível apenas mediante investimento e disponibilidade. Daí a fertilidade do borramento ou esmaecimento das fronteiras disciplinares, com redefinições no contexto de cada equipe, em função das demandas cotidianas. Deve-se superar a dificuldade de perceber e valorizar a fertilidade de saberes e práticas dos próprios componentes das equipes, de forma que a raridade da utilização dos espaços de encontro como momentos de trocas efetivas de experiência e produção coletiva é algo a ser revisto. Por isso, nesse caso, o manual não se faz necessário, pois não é possível identificar de antemão o que pode ser criado a partir da presença e envolvimento de cada integrante... Um destaque particular precisa ser feito à via experiencial como norteadora de processos de aprendizagem. Os processos formativos precisam ter sabor, implicando construção coletiva de sentido, de sentimento de pertença, além da definição de rumos comuns/partilhados. A elaboração de objetivos

171

comuns é axial a qualquer equipe, ainda que se deva preservar a possibilidade de diferentes modos de fazer, em função de cada contexto/demanda. Cabe destacar a fertilidade do acolhimento a estagiários e pesquisadores, que podem ter uma contribuição expressiva ao processo formativo das próprias equipes, uma vez que podem funcionar também como intercessores, provocando e inserindo outras perspectivas. Em geral, essas entradas representam introdução de diferença, sendo, por vezes, fonte de ameaça, a exemplo do que se discutiu em um dos contos, relativo à chegada de estrangeiros. Contudo, é preciso perspectivá-las além desse aspecto. Quanto mais as equipes se mostram abertas a esse fluxo, maior a sua flexibilidade e permeabilidade a processos de reflexão, transformação e aprimoramento das práticas. A tendência à captura na frequência da queixa e do ressentimento, tolhendo-se as possibilidades de criação de novos fazeres/saberes, precisa se transmutar. Deixo claro que não pretendo que sejam negadas as dificuldades existentes no ambiente de atuação do NASF, algumas bem características de nosso sistema de Saúde (e outros setores públicos) – como a morosidade em garantir modos dignos de vínculo empregatício e a falta de materiais e infra-estrutura mínima para o desenvolvimento de alguns projetos e ações – porém defendo que é necessário, além de marcar essas dificuldades, buscar brechas para intervenção, sob pena de uma paralisia entristecedora. Importa, sobretudo, por o que brota das experimentações na práxis cotidiana sob reflexão. Qualquer possibilidade de consistência de uma prática ou projeto surge da experimentação e, sobretudo, do movimento de por a experiência sob investigação. Na apropriação do que se faz, com construção de sentido, está o pulo do gato possível. A reflexão em torno das práticas, viabilizando a construção permanente de seu sentido ético-político, é crucial para uma atenção à saúde consistente, encorpada, revelando apropriação e responsabilidade dos profissionais de saúde por seus atos. Nessa perspectiva, o que é NASF só poderá aparecer a posteriori, via prática; e haverá, então, muitos modos possíveis de configuração desse dispositivo. Não dá para explicar o que é NASF se antecipando à experiência, à sua experimentação no dia-a-dia, entre profissionais, no contato com usuários, nos territórios em que ação acontece. O que vai sendo realizado e produzido precisa ser registrado e relatado, buscando-se continuamente os melhores modos, de forma que essa constituição histórica das práticas seja avaliada permanentemente. Os modos mais interessantes de registro e avaliação devem ser procurados, considerando a peculiaridade do que se produz em ato na atenção à saúde, entre pessoas. A legitimidade de uma equipe e de seu trabalho ocorre apenas por intermédio da ação, do que é produzido, do processo de realização, com envolvimento de todos. Como já defendido, a legitimidade e o reconhecimento só pode se construir pela presença. Penso ser pertinente realçar a importância do encontro do NASF com as EqSF, da presença nos territórios como forma de construir a referência do

172

NASF para aqueles profissionais da ponta. Em relação às demandas da EqSF e da população, pareceme crucial que o NASF se ponha como intercessor, provocando as EqSFs e os próprios usuários a olhar as situações com as quais se deparam de outros modos. Assim, o NASF pode assumir uma função dialógica e provocativa. Daí a importância de retomar a perspectiva de apoio, discutindo-a via noção de intercessão, na perspectiva de provocar e fazer coletivamente. Para o trabalho em equipe acontecer, as pessoas teriam que, preferencialmente, despojar-se de anteparos e/ou proteções que dificultem um contato mais genuíno com o outro. Estar tete-a-tete sempre parte primeiramente da disponibilidade – o dispor-se ao outro e ao que pode emergir desse encontro – e costuma demandar um pouco mais de energia e despojamento. Nesse âmbito, cabe um alerta: a idealização de como esses encontros devem acontecer, caso não seja compreendida como utopia possível fruto da investigação da experiência, é captura em padrões de cunho inatingível ou moralista. Pela captura em idealizações, perde-se, portanto, a oportunidade de experimentação real – e valorização do que é experimentado –, sorvendo daí o néctar para o delineamento dos projetos e ações, em um contínuo processo avaliativo. O mergulho no campo me fez perceber variadas nuanças na práxis cotidiana das equipes, que tiveram repercussões em minhas meditações, tornando-se fonte de preocupação. Em dados momentos, vislumbrei a insegurança de alguns profissionais em relação ao trabalho, tantas vezes sentida por mim na minha trajetória enquanto profissional de saúde. Presenciei a repetição de fórmulas transmissivas e autoritárias, tais como palestras, recomendações e a incorporação de uma tecnologia centrada no projetor multimídia, nem sempre potente para a promoção do debate e, às vezes, cumprindo o papel de anteparo ou proteção. Testemunhei atitudes de julgamento – e não simplesmente avaliativas – em relação a usuários e outros profissionais. Percebi, com alguma frequência, tempo sendo “desperdiçado” na Secretaria em detrimento do necessário mergulho nos territórios. Entretanto, vislumbrei, em diversos momentos, um movimento de incômodo e insatisfação dos próprios profissionais em relação a esses modos de configurar a prática. Enfatizo mais uma vez a importância de instituir processos avaliativos e reflexivos sobre o fazer, implicando todos. Importa ressaltar que o horizonte desejável é o de uma atuação em saúde que escape ao viés autoritário, verticalizado, impositivo. Nesse sentido, os modos de gestão são cruciais, não se garantindo sua fertilidade pela simples existência de um gestor: importa como é a atuação do gestor. As perspectivas sinalizadas pelos verbos gregos archein/prattein ou latinos agere/gerere, a partir da pesquisa etimológica e discussão arendtiana, precisam ser entrelaçadas, assumindo-se uma transversalidade de ambos os sentidos nas ações de todos os participantes (gestores e trabalhadores, principalmente), reduzindo a distância entre governar e executar. Disso pode surgir uma apropriação

173

pertinente dos espaços coletivos, com construção de pertença e sentido compartilhado, criando-se modos de gestão genuinamente democráticos, com a abertura para diferentes pontos de vista e ideias. A magnitude do desafio para que os trabalhadores consigam configurar um trabalho em que se perceba, de fato e cotidianamente, a produção coletiva mostrou-se um expressivo desafio. Por vezes, o dia-a-dia lhes parece tão árido, que não conseguem perceber as aberturas que estão postas para esse modo de se relacionar e tipos de intervenção com ele condizentes... Os trabalhadores estão ali, com chances de se encontrar, de sistematizar esses encontros, de trocar experiências, de inovar, de inventar modos, de avaliar o que brota das experimentações... É indispensável construir vias para que esses encontros sejam mais valorizados e aproveitados, preservando-se ou construindo-se o gosto ao que se faz. De modo recorrente, enfatizo a importância dos encontros e, portanto, das tecnologias relacionais: as pessoas precisam aprender a se encontrar, especialmente os profissionais de saúde, que assumem o ofício de cuidar do outro. Penso ser interessante retomar um fato ocorrido em campo: no encontro final com um dos grupões NASF, Farm Mostarda disse – em tom de brincadeira, mas parecendo levar a sério – que sairiam diretrizes dessa pesquisa, que poderiam clarear coisas em relação ao trabalho em equipe... Reforçou que se tratava de um estudo centrado na experiência, destacando “Eu acho que nada mais importante que a experiência para lançar diretriz. Uma coisa é lançar diretriz sem nunca ter ido à prática.”, aspectos com os quais concordo integralmente. A partir disso, o meu compromisso e responsabilidade se ampliaram enormemente, embora imediatamente eu tenha marcado que a proposta não era mesmo lançar diretrizes, mas revelar alguns aspectos que pudessem contribuir para modos coletivos de trabalho. Penso que se reverberações houver em equipes de saúde – especialmente nas pesquisadas – o estudo terá cumprido sua função primordial de pesquisainterventiva. Enfim, como discutido, não defendo a negação de especificidades profissionais, mas a necessidade de flexibilização das fronteiras disciplinares, apostando que o acesso às possibilidades de ação transdisciplinar no trabalho em equipe está na admissão da produção coletiva como um lugar paradoxal, por exigir a permanente construção de sentido a partir da práxis. Aqui se revela a tensão entre núcleo profissional e campo, entre prescrição e criação, entre técnica e techné, entre atuação por especialidades e ação transdisciplinar. A aposta trans só se sustenta pela lida com essa tensão, que não necessariamente é algo angustiante, sofrido, penoso. Importará a perspectiva assumida: tensão é algo imanente à vida, implicando movimento e imprevisibilidade de desfechos, pois esses dependerão dos arranjos possíveis ao longo das travessias. Nesse trânsito, reafirmo: o que se produz precisa ser avaliado, posto sob investigação.

174

O trabalho em equipe que extrapole a simples soma de diversos olhares e perspectivas se respalda na noção de que, do encontro entre profissionais de diferentes áreas, havendo uma direção partilhada do(s) projeto(s) de atenção em saúde, surgem outros modos, que não correspondem meramente ao que é trazido por cada um, decorrendo da invenção e construção conjunta. A principal direção-sentido emergente é de que o fundamental são os encontros, dado representarem fontes possíveis de produção e criação de novos modos, estratégias, métodos. Nisso reside o fundamental da aposta trans. Enfim, penso, a partir de tudo que foi até este ponto discutido, que o pulo do gato no trabalho em equipe é puro movimento e processo, em busca constante de consistência e afinação, aspectos que se constroem coletivamente e são passíveis de contínuas recomposições. Momentos trans são momentos alegres e efervescentes na atuação das equipes, tendo eu tido a oportunidade de presenciar alguns em campo. Portanto, defendo que são possíveis e não devem ser engessados ou padronizados, porque se alimentam do inusitado. O que se revelou como caminho auspicioso para ação transdisciplinar como produção coletiva foi a garantia de espaços coletivos, com investimento na expansão da capacidade de sustentar a tensão que continuamente virá à tona no contexto da atenção à saúde, alargando-se o exercício de comunicação entre integrantes, pela disponibilidade de falar/escutar comentários, sugestões, críticas, elogios, e estimulando-se a atuação criativa e inovadora nas propostas de intervenção. Para fechar a panela e deixar o caldo apurar ou, dito de outro modo – ainda metafórico –, para atracar a embarcação ou o próprio corpo – cansado da travessia –, em algum cais provisório, proponho as últimas considerações vitais... O trans não cabe nas prescrições, passando pela criação na hora, em ato, ganhando contornos próprios em cada contexto, a partir dos encontros e misturas que ali ocorrem. Passa, portanto, pela criação, pela poiésis. A aposta trans está, consequentemente, para além das especialidades – embora não as negue –, caracterizando-se como inventiva e jamais prescritiva. Não cabe nas normatizações, implicando ousadia, transformação e, fundamentalmente, a sustentação de tensão, pelo exercício de borrar as fronteiras que sua ação põe em ato. Qualquer possibilidade de ação transdisciplinar, como produção coletiva, só se sustenta no hiato do que está prescrito, em meio ao inusitado das situações com que se depara na atenção à saúde. Isso posto, retomo algo do início dessa caminhada: a proposta de enfatizar a atuação do psicólogo nesse contexto não pôde se manter, sendo borrada e ressituada ao longo da travessia. Ainda assim, era fundamental, em função de minha formação e trajetória, que as equipes pesquisadas fossem compostas por psicólogos. O trânsito na pesquisa foi me permitindo descobrir que buscar compreender ação transdisciplinar focando uma dada especialidade não caberia. Compreendo que essa transmutação foi também um resultado importante da pesquisa. O interesse pelo trans demandou

175

a ampliação do foco, pois se relacionava à atenção a uma prática coletiva, que acontece entre-muitos, de forma que no e pelo entre, gera mestiçagem e diversidade. Não se pode categorizar uma prática transdisciplinar, ainda menos pelo viés de um núcleo profissional. O trabalho em modo transdisciplinar, tal como discutido nesse trabalho, não comporta ênfase nos “especialismos”, mas sim nas pessoas que estão se relacionando na feitura das práticas. As forças que compõem a aposta trans não medram das categorias, mas, sobretudo, da disponibilidade de saltar das ilhas disciplinares – e, acrescentaria, de qualquer ilha: pessoal, ideológica, sentimental... – sustentando o medo da travessia. Também eu, como pesquisadora, precisei saltar da ilha!

176

Referências Bibliográficas ALMEIDA FILHO, Naomar Monteiro de. Transdisciplinaridade e saúde coletiva. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, nº. 1/2, 1997. Disponível em: . Acesso em: 23 mar. 2009. ALMEIDA FILHO, N. Transdisciplinaridade e o Paradigma Pós-Disciplinar na Saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 14, nº. 3, p. 30-50, 2005. Disponível em: . Acesso em 23 mar 2009. ANDRADE, Ângela N. de. Avaliação genealógica. In: MENANDRO, Paulo R.; TRINDADE, Zeidi A.; BORLOTTI, Elizeu B. (org) Pesquisa em psicologia: recriando métodos. Vitória: UFES. Programa de Pós-Graduação em Psicologia: CAPES. PROIN, 1999. p. 73-87. ______. Práticas psicológicas, epistemicídio e unidades básicas de saúde. Revista Psicologia Política, Belo Horizonte, v. 7, n. 13, p. 35-46, 2007. __________. Oficinas de Criatividade - deslocamento e com-posições. In: CUPERTINO, Christina Menna Barreto (Org.). Espaços de Criação em Psicologia. 1. ed., v. 1. São Paulo: ANNABLUME, 2008. p. 53-76. ANDRADE, Ângela N.; MORATO, Henriette T. P. Para uma dimensão ética da prática psicológica em instituições. Estudos de Psicologia, Natal, v. 9, n.2, p. 345-353, 2004. ANDRADE, Ângela N.; MORATO, Henriette T. P.; SCHMIDT, Maria Luisa S. Pesquisa interventiva em instituição: etnografia, cartografia e genealogia. In: RODRIGUES, Maria M. P., MENANDRO, Paulo R. M. (Org.) Lógicas metodológicas: trajetos de pesquisa em psicologia. Vitória: GM Gráfica Editora, 2007. p. 193-206. ANDRADE, Luiz Odorico de, BARRETO, Ivana C. de H. & BEZERRA, Roberto C. Atenção primária à saúde e Estratégia Saúde da Família. In: CAMPOS, G. W. S. et al (orgs) Tratado de Saúde Coletiva, São Paulo: HUCITEC; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007. p. 783-836. ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ______. Será que a política ainda tem de algum modo um sentido? In: ARENDT, Hannah. A dignidade da política: ensaios e conferências. 3. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002ª. p. 117-122. ______. Compreensão e política. In: ARENDT, Hannah. A dignidade da política: ensaios e conferências. 3. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002b. p. 30-53.

177

______. O pensar. In: ______. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 17-83. AMARANTE, Paulo (Coord.). Loucos pela vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1998. __________. A (clínica) e a Reforma Psiquiátrica. In: SCLIAR, Moacyr et al.; AMARANTE, Paulo (coord.) Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Engº Paulo de Frontin, RJ: Nau, 2003. p.45-65. ______. Saúde mental e atenção psicossocial. 2. ed. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008. 120p. AMARANTE, Paulo; TORRES, Eduardo H. G. A constituição de novas práticas no campo da atenção psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na reforma psiquiátrica no Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 28, p. 26-34, 2001. BACCHI; Carolina; MORATO, HenrietteT. P. O poder encantador e transformador dos espelhos: revelando o espehamento em grupos de supervisão. In: MORATO, Henriette T. P.; BARRETO, Carmem Lúcia B. T.; NUNES, André Prado (orgs) Aconselhamento psicológico numa perspectiva fenomenológica existencial: uma introdução. Série Fundamentos de Psicologia. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2009. p. 270-280. BASAGLIA, Franco. O circuito do controle: do manicômio à descentralização psiquiátrica. In: ______. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica, organização Paulo Amarante; tradução Joana Angélica d’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. p. 237-257. BENEVIDES, Regina. A psicologia e o sistema único de saúde: quais interfaces?. Psicologia e Sociedade, Porto Alegre, Ago, v. 17, n. 2, p.21-25, 2005. Disponível em: . Acesso em 14 out. 2008. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. Obras escolhidas, v. 1. p. 197-221. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA-EXECUTIVA. SECRETARIA DE ATENÇÃO À SAÚDE. Legislação em saúde mental: 1994/2004. 5 ed. ampl.; Brasília: Ministério da Saúde, 2004a. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Saúde mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004b. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.

178

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Série E. Legislação de Saúde. Série Pactos pela Saúde 2006, v. 4. 4. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2007. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: Documento base para gestores e trabalhadores do SUS / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. 4. ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2008a. BRASIL, Portaria 154, Ministério da Saúde/Gabinete do Ministro, de 24 de janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família - NASF. 2008b. In: IMPRENSA NACIONAL. Diário Oficial da União, de 24 de janeiro de 2008. Seção 1, nº 18. Disponível em: < http://www.in.gov.br/>. Acesso em 14 out 2008. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação em Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Série B. Textos Básicos de Saúde. Série Pactos pela Saúde 2006, v. 9. – Brasília: Ministério da Saúde, 2009. BRASIL. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Comissão Organizadora da IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial. Relatório final da IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial, 27 de junho a 1 de julho de 2010. Brasília: Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, 2010a. 210p. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. In: PINTO, Antônio Luiz de T.; WINDT, Márcia C. V. dos S.; CÉSPEDES, Lívia (orgs.) Vade Mecum, 9 ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010b. p 7-75. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA DE ATENÇÃO À SAÚDE. DEPARTAMENTO DE ATENÇÃO BÁSICA. Cadernos de princípios e diretrizes do Núcleo de apoio à Saúde da Família; Série A. Normas e Manuais Técnicos; caderno de Atenção Básica n. 27; Brasília: Ministério da Saúde, 2010c. 152p. BRASIL, Portaria 2.488, GM, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). In: IMPRENSA NACIONAL. Diário Oficial da União, de 24 de outubro de 2011. Seção 1, nº 204. Disponível em: < http://www.in.gov.br/>. Acesso em 14 nov 2011. CABRAL, Barbara E. B. Cartografia de uma ação territorial em saúde: transitando pelo Programa Saúde da Família. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica), Universidade Católica de Pernambuco, 2004.

179

______. Reflexões sobre a prática em saúde mental: o desafio de manter a tensão. In: ROSA, Edinete M. et al. (orgs.) Psicologia e Saúde: desafios às políticas públicas no Brasil. Vitória: EDUFES, 2007. p. 131-143. CABRAL, Barbara E. B.; MORATO, Henriette T. P. Considerações metodológicas a partir da formulação de uma questão para pesquisa. Interlocuções. Recife: Fundação Antônio dos Santos Abranches: FASA, ano 3, n° 1 e 2, p. 155-176, jan-dez. 2003. CABRAL, Barbara E. B.; MORATO, Henriette T. P. Tecendo sentidos para uma ação territorial em saúde a partir do Programa Saúde da Família. In: MORATO, Henriette T. P.; BARRETO, Carmem Lúcia B. T.; NUNES, André Prado (orgs) Aconselhamento psicológico numa perspectiva fenomenológica existencial: uma introdução. Série Fundamentos de Psicologia. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, p. 192-205. CAMPOS, Gastão W. de S. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, p. 393-404, 1999. ______. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, 2000. Disponível em: . Acesso em 07 jan 2008. ______. Por uma clínica reformulada e ampliada. In: ______. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003. p.51-67. ______. Um Método para Análise e Co-gestão de Coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. 2. ed. São Paulo: Hucitec. 2005. CAMPOS, Gastão W. de S. & DOMITTI, Ana C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad. de Saúde Pública, Rio de Janeiro, p. 399-407, 2007. CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 144-163. CECCIM, Ricardo B. Equipe de Saúde: a perspectivas entre-disciplinar na produção dos atos terapêuticos. In: Pinheiro, Roseni e Ruben Araujo de Mattos (Org.) Cuidado: as fronteiras da integralidade. 4 ed. Rio de Janeiro: IMS/UERJ-CEPESC-ABRASCO, 2008. p. 261-280. ______. Onde se lê “recursos humanos em saúde”, leia-se “coletivos organizados de produção em saúde”. Desafios para Educação. In: PINHEIRO, Roseni & MATTOS, Ruben Araújo (orgs.) Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ: ABRASCO, 2010. p. 163-182.

180

CECCIM, Ricardo B.; FEUERWERKER, Laura C. M. O Quadrilátero da Formação para a Área da Saúde: Ensino, Gestão, Atenção e Controle Social. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.14, n. 1, p. 41- 65, 2004. CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa, São Paulo: Companhia das Letras, 2003. CUNHA, Gustavo Tenório. A construção da clínica ampliada na atenção básica. Dissertação (Mestrado), Universidade Estadual de Campinas - Faculdade de Ciências Médicas. Campinas, SP, 2004. ______. O apoio matricial: obstáculos e potencialidades nas práticas em construção. In: 2 º SEMINÁRIO DE HUMANIZAÇÃO. Textos de referência. Brasília, 2009. Disponível em . Acesso em 14 out 2009. DELL’ACQUA, Giuseppe e MEZZINA, Roberto Resposta à crise: estratégia e intencionalidade da intervenção no serviço psiquiátrico territorial. In: DELGADO, Jaques (org) A loucura na sala de jantar, São Paulo: Resenha, 1991. p. 53-79. DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. DELEUZE, Gilles. Os intercessores. Em: DELEUZE, Gilles. Conversações. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 155-172. DIMENSTEIN, Magda D. B. O psicólogo nas unidades básicas de saúde: desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos em Psicologia, Natal, v. 3, n. 1, p.53-81, 1998. ______. O psicólogo e o compromisso social no contexto da saúde coletiva. Em: Psicologia em Estudo, Maringá, vol.6, n. 2, p.57-63, 2001. Disponível em: . Acesso em 12 jun 2008. ESCÓCIA, Liliana da; TEDESCO, Silvia. O coletivo de forças como plano da experiência cartográfica. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. (orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade, Porto Alegre: Sulina, 2010. p. 92-108. FIGUEIREDO, L. C. Sob o signo da multiplicidade. In: Cadernos de Subjetividade. Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica da PUC/SP, São Paulo, v.1, n.1, 1993. FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: ______. Microfísica do poder. 24. ed., Rio de Janeiro: Graal, 2007, p. 15-37.

181

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. FUGANTI, Luiz. Biopolítica e produção de saúde. Interface, Botucatu, v. 13, supl. I, p. 667-679. FURTADO, Juarez P. Avaliação de programas e serviços. In: CAMPOS, Gastão W. de S. (et al) Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: HUCITEC; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007. p. 715-739. GOLDBERG, Jairo. A clínica da Psicose. Rio de Janeiro: Te Corá/Instituto Franco Basaglia, 1994. GOMES, Rafael da Silveira, GUIZARDI, Francini Lube & PINHEIRO, Roseni. A orquestração do trabalho em saúde: um deabte sobre a fragmentação das equipes. In PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben Araújo (orgs.) Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ: ABRASCO, 2010. p. 107-118. HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1959. Coleção Pensamento e Filosofia. HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 11-38. HENRIQUES, Regina Lúcia Monteiro. Interlocução entre ensino e serviço: possibilidades de ressignificação do trabalho em equipe na perspectiva da construção social da demanda. In PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben Araújo (orgs.) Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ: ABRASCO, 2010. p. 149161. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de S.; FRANCO, Francisco M. de M. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro, 2009. JUAZEIRO. SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE. GERÊNCIA DA ATENÇÃO BÁSICA. Relatório, setembro de 2011. LANCETTI, Antônio (org.) Saúde Loucura 7. Saúde Mental e Saúde da Família. São Paulo: HUCITEC, 2001. p. 11-52. LANCETTI, Antônio; AMARANTE, Paulo. Saúde mental e saúde coletiva. Em: CAMPOS, Gastão W. de S. et al. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: HUCITEC; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007. p. 615634. LAVRADOR, Maria Cristina. Interfaces do saber PSI. Em Barros de Barros, E. (Org.), Psicologia: questões contemporâneas (pp. 15-58). Vitória: EDUFES, 1999.

182

LÉVY, Andre. Ciências clínicas e organizações sociais: sentido e crise do sentido. Belo Horizonte: Autêntica; FUMEC, 2001. LIMA, Mônica. Atuação psicológica coletiva: uma trajetória profissional em unidade básica de saúde. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 10, n. 3, p. 431-440, dez. 2005. Disponível em: . Acesso em 09 jun 2008. LOBOSQUE, Ana Marta. Clínica em movimento: por uma sociedade sem manicômios. Rio de Janeiro: Garamond, 2003. LOUSADA, Ana Paula F., BONALDI, Cristiana e BARROS, Maria Elizabeth B. de. Integralidade e trabalho em equipe no campo da saúde: entre normas antecedentes e recentradas Em: PINHEIRO, Roseni, BARROS, Maria Elizabeth B. de e MATTOS, Ruben A. de (orgs.) Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: IMS/UERJ: CEPESC: ABRASCO, 2007. p. 37-52. MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002. MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 24. ed., Rio de Janeiro: Graal, 2007, Introdução p. VII-III. MACHADO, Leila Domingues & LAVRADOR, Maria Cristina Campello. Por uma clínica de expansão da vida. Interface. Botucatu, v. 13, supl. I, p. 515-21, 2009. MERHY, Emerson. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: HUCITEC, 2002. MEHRY, Emerson. Engravidando palavras: o caso da integralidade. In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben Araújo (orgs.). Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ: ABRASCO, 2010. p. 197-208. MORATO, Henriette T. P. (org) Aconselhamento psicológico centrado na pessoa: novos desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999. ______. Aconselhamento psicológico: uma passagem para a transdisciplinaridade. In: MORATO, Henriette T. P. (org) Aconselhamento psicológico centrado na pessoa: novos desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999. p. 61-88. MORATO, Henriette T. P. et al. Supervisão de apoio psicológico: espelho mágico para desenvolvimento de educadores de rua. In: MORATO, Henriette T. P. (org) Aconselhamento psicológico centrado na pessoa: novos desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999, p. 219-230.

183

MORATO, Henriette T. P.; BARRETO, Carmem Lúcia B. T.; NUNES, André Prado (orgs) Aconselhamento psicológico numa perspectiva fenomenológica existencial: uma introdução. Série Fundamentos de Psicologia. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2009. MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 5. ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. 128p. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2005. ______. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ______. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ORGANIZAÇÃO MUNIDAL DE SAÚDE. Declaração de Alma Ata. Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde. Alma-Ata, URSS, 6-12 de setembro de 1978. Disponível em: . Acesso em: 07 jan 2009. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório sobre a saúde no mundo 2001 – saúde mental: nova concepção, nova esperança. Geneva: Organização Mundial da Saúde, 2001. ONOCKO-CAMPOS, Rosana; FURTADO, Juarez. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 5, p. 1053-1062, mai, 2006. OLIVEIRA, Gustavo N. O projeto terapêutico singular. In: CAMPOS, gastão W. de S.; GUERRERO, André V. P. Manual de práticas de atenção básica: saúde ampliada e compartilhada. São Paulo: Aderaldo & Rothschild/HUCITEC, 2008. p. 283-297. PAIM, Jairnilson Silva. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador: EDUFBA, Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008. PASSOS, Eduardo; BARROS, Regina. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. (orgs) Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade, Porto Alegre: Sulina, 2010, p. 17-31. PASSOS, Eduardo; BENEVIDES, Regina. A construção do plano da clínica e o conceito de transdisciplinaridade. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 16, n. 1, p. 71-79, jan-abr, 2000. PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. Sobre a formação do cartógrafo e o problema das políticas cognitivas. In: ______. (orgs.) Pistas do método da cartografia: pesquisaintervenção e produção de subjetividade, Porto Alegre: Sulina, 2010, p. 201-205.

184

PEDUZZI, Marina. Equipe multiprofissional de saúde: conceito e tipologia. Rev Saúde Pública, São Paulo, 35(1):103-9 103, 2001. Disponível em: . Acessado em 01 nov. 2011. PETROLINA-PE. SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE. Secretaria Municipal de Saúde de Petrolina, apresentação em PowerPoint, julho de 2011. PINHEIRO, Roseni; BARROS, Maria Elizabeth B. de; MATTOS, Ruben A. de (Orgs.) Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: IMS/UERJ: CEPESC: ABRASCO, 2007. 208p. PINHEIRO, Roseni; GUIZARDI, Francini L. Cuidado e integralidade: por uma genealogia de saberes e práticas no cotidiano. In: PINHEIRO, Roseni e MATTOS, Ruben Araujo de (Org.) Cuidado: as fronteiras da integralidade. 4. ed. Rio de Janeiro: IMS/UERJ-CEPESC-ABRASCO, 2008. p. 23-38. PINHEIRO, Roseni & MATTOS, Ruben Araújo (orgs.) Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ: ABRASCO, 2010. ROLNIK, Suely. Cartografia ou de como pensar com o corpo vibrátil. 1987. Disponível em: . Acessado em 12 out. 2011. ROTELLI, Franco; DE LEONARDIS, Ota; MAURI, Diana. Desinstitucionalização, uma outra via – a reforma psiquiátrica italiana no contexto da Europa Ocidental e dos “países avanaçados”. In: ROTELLI, Franco; DE LEONARDIS, Ota; MAURI, Diana. Desinstitucionalização, organização Fernanda Nicácio, 2. ed, São Paulo: HUCITEC, 2001. p. 17-59. ROSA, João Guimarães. Tutaméia. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1968. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1968. SARACENO, Benedetto. Reabilitação social: uma estratégia para a passagem do milênio in: PITTA, Ana (org). Reabilitação psicossocial no Brasil. 2.ed. São Paulo: HUCITEC, 2001. p. 13-18. SAWAIA, Bader. O Sentido Ético-Político da Saúde na Era do Triunfo da Tecnologia e do Relativismo. In: GOLDENBERG, P.; MARSIGLIA, R.M.G. & GOMES, M.H.A. (Orgs) O Clássico e o Novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003, p. 83-94. SCHMIDT, Maria Luisa Sandoval. Identidade, pluralidade e diferença: notas sobre psicologia social. Boletim de Psicologia, São Paulo, v. 47, n. 106, p. 57-72, 1998.

185

______. Políticas públicas e saúde mental. In: TRINDADE, Z. A.; ANDRADE, A. N. Psicologia e saúde: um campo em construção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. p. 55-71. SERRES, Michel. Filosofia mestiça – Le tiers-instruit. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. SILVA, R. C. da. A formação em psicologia para o trabalho na saúde pública. In: CAMPOS, Florianita C. B. (Org.). Psicologia e Saúde: repensando práticas. São Paulo: HUCITEC, 1992. p. 25-40. SIMONETTI, Alfredo. Manual de psicologia hospitalar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. SPINK, Mary-Jane. A psicologia em diálogo com o SUS: prática profissional e produção acadêmica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. SPINOZA, Benedictus de. Tratado político. 2. ed. São Paulo: Ícone, 2005. SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. TEIXEIRA, R. R. Agenciamentos tecnosemiológicos e produção de subjetividade: contribuição para o debate sobre a trans-formação do sujeito na saúde, Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, 2001. TENÓRIO, F. A psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. VALLA, Victor Vincent. Educação popular, saúde comunitária e apoio social numa conjuntura de globalização. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em . Acessado em 10 ago. 2011. VASCONCELOS, Eduardo M. Complexidade e pesquisa interdisciplinar – epistemologia e metodologia operativa. 3. ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. VASCONCELOS, Eymard M. Educação popular nos serviços de saúde. 3. ed. ampl. São Paulo: HUCITEC, 1997. VASCONCELOS, Eymard M. Educação popular e a atenção à saúde da família. São Paulo: HUCITEC, 1999.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.